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Título: Um convite muito especial.

Título original: The Christmas Invitation.


Autora: Trisha Ashley.
Tradução por Raquel Dutra Lopes.
Publicação: Editora Quinta Essência/Leya.
Ano: 2020.
Género: Chick-lit.
Número total de páginas do livro impresso: 472.
Numeração de páginas: Ausente.
Disponibilização e correcção: Dores Cunha.
Nota importante:
Esta obra foi preparada para ser lida exclusivamente por pessoas com
deficiência visual. Salienta-se que qualquer outra utilização que se
dê a este material é ilegal e o infrator arcará com as
responsabilidades.
Sinopse:
Não se pode dizer que Meg seja fã do Natal. Nunca se entusiasmou com
as músicas da época, o azevinho e as decorações amorosas, e ainda por
cima este ano está a recuperar de um problema de saúde. E, no entanto,
quando recebe um convite para passar as festas no campo, numa paisagem
coberta de neve, dá por si a aceitar.
Ao chegar à acolhedora casinha no cimo de uma colina, Meg começa a
perguntar-se como será passar um Natal como deve ser. Mas ainda nem
acabou de se instalar quando se depara com um rosto familiar: Lex, uma
paixão mal resolvida dos tempos da faculdade.
Apesar do ambiente festivo que os rodeia, Meg agora só quer fugir...
de Lex e dos segredos do passado de ambos. Mas... se ficar... será que
é desta que se deixa render, por fim, à magia do Natal?
Divertido, inteligente e terno (e com umas deliciosas receitas à
mistura!), o novo romance de Trisha Ashley vai aquecer-lhe a alma e
derreter-lhe o coração...

Revisão: Domingas Cruz


ISBN: 9789896609351
QUINTA ESSÊNCIA , uma marca da Oficina do Livro - Sociedade Editorial,
Lda uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, nº 2, 2610-038 Alfragide - Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
1.ª edição: novembro de 2020
Trisha Ashley, 2019
Esta edição é publicada com o acordo de David Luxton Associates Ltd.
através de International Editors’ Co. e Oficina do Livro - Sociedade
Editorial, Lda.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: quintaessencia@oficinadolivro.leya.com
www.quintaessencia.com.pt
www.leya.pt
Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Trisha Ashley
UM CONVITE MUITO ESPECIAL
Tradução Raquel Dutra Lopes
Para o meu filho Robin Griff Aneurin Ashley Com amor

Prólogo
Inscrito na Pedra
5 de janeiro de 2016
Era a véspera do Dia de Reis e um vento gelado soprava em torno da Casa
Vermelha, causando de vez em quando um leve sussurro de flocos de neve
contra a janela, ou uivando ameaçadora pela chaminé.
- Não tens dentes para me fazer mal - murmurou Clara Mayhem Doome. -
Bem podes soprar e bufar, mas não me hás de atirar a casa pelo ar.
Lass, a cocker spaniel do seu marido, que tinha sido temporariamente
banida para o escritório de Clara enquanto a enorme árvore de Natal
era desguarnecida das bolas e das fitas, batia educadamente no chão
com a cauda não aparada.
- Raios - acrescentou Clara, ao dar-se conta de que ainda tinha o
microfone ligado e de que as suas palavras tinham sido adicionadas ao
policial que ditara como um estranho posfácio após o grande final.
Apagou-as e depois desligou o microfone e o computador, recostando-se
na sua cadeira e sentindo aquele momento passageiro de catarse, que
todos os autores conhecem após escreverem as últimas palavras de um
livro... antes de a vontade de começar um novo surgir para ocupar o
espaço vazio.
A professora Clara Mayhem Doome era uma mulher grande e vigorosa no
final da casa dos setenta, com um nariz fortemente curvado, olhos
escuros e vivazes e uma melena de caracóis cinzentos como ferro e
raiados de fios de prata. Usava umas calças de bombazina escarlates
e uma camisola peruana às riscas, com todas as cores do arco-íris, em
frente às quais marchava uma procissão de lamas. Isso e os grandes
brincos de prata em forma de lua e sol que tinha nas orelhas haviam
sido os presentes que o marido lhe oferecera naquele Natal.
A divisão era espaçosa, quente e bem iluminada, com paredes forradas
a estantes e armários com lâmpadas que continham pedaços de pedra,
argila, madeira e outras substâncias duras, gravadas com formas
estranhas de escrita antiga. Clara era uma epigrafista de renome
internacional, que construíra a carreira a partir da sua paixão por
decifrar o que quer que não estivesse escrito em papel. Gostava de ter
alguma dimensão no seu trabalho e achava que os paleógrafos, como a
sua amiga - ou desamiga - Pookie Longridge, tinham escolhido a opção
chata e enfadonha.
A grande secretária em forma de U encontrava-se no centro do escritório,
voltada para as janelas altas que davam para o jardim, e os
computadores, os monitores e o portátil refletiam as diferentes facetas
da sua natureza.
À esquerda, com um microfone antiquado de bola e cone, estava o
computador devotado à escrita do seu policial anual, que era o seu
passatempo principal. No centro, encontrava-se um monitor enorme, no
qual ela podia examinar pormenorizadamente fotografias de pedaços de
cerâmica, tábuas de argila ou outras superfícies inscritas, que também
podia mover como um puzzle virtual até que as peças encaixassem. Era
invulgarmente dotada a encontrar uma «junta», como lhes chamavam. O
computador a que este monitor estava ligado era totalmente dedicado
à sua profissão, incluindo a escrita dos seus livros mais eruditos,
bem como dos seus ensaios e artigos. O seu livro mais recente, no qual
estabelecia uma nova linha temporal para o desenvolvimento de três
formas primitivas e interligadas de escrita, mais do que causar
alvoroço entre as aves raras da sua área, como que detonara uma pequena
explosão, deixando penas espalhadas por todo o lado.
Já o portátil, no lado direito da secretária, era usado para enviar
correio eletrónico a amigos e familiares, para navegar na internet e
armazenar fotografias pessoais. Preferia que as coisas estivessem bem
compartimentadas e imaginava a sua mente como uma colmeia cheia de
néctar nas suas células hexagonais interligadas.
Ainda eram apenas onze da manhã, mas ela já estudara as fotografias
de uns quantos fragmentos de terracota com inscrições cuneiformes, que
um colega dos Estados Unidos lhe enviara por email, tendo-lhe
respondido com a sua opinião, após o que ditara o último capítulo do
seu romance policial.
Ainda faltava uma boa hora antes de ser uma altura decente para almoçar,
mas já lhe chegavam cheiros agradáveis da cozinha.
Tartes de queijo e cebola, pensou ela, e depois talvez alguns scones
salgados, a especialidade de Den, para acompanhar o chá.
O som da voz doce e ressonante de Henry e o trinado mais agudo do
sobrinho-neto dela, Teddy, passou para a frente da casa, o que deveria
querer dizer que tinham acabado de desmontar a árvore de Natal da
entrada e iam dedicar-se então à mais pequena e artificial da janela
de sacada na sala de estar. Henry, que adorava o Natal e colecionava
bolas de vidro antigas, todos os anos pendurava algumas nessa árvore
menor, e retirá-las cuidadosamente para as devolver aos seus lugares
no escritório levaria algum tempo.
Mais tarde, o sobrinho Lex ajudaria a desmanchar as árvores de Natal
e a guardar as caixas de decorações num dos sótãos. Não faltavam zonas
esconsas naquela imponente casa gótica da época vitoriana.
Tinha sido mais um encantador Natal em família. Ainda que ela e Henry
não tivessem tido filhos, os sobrinhos, Lex e Zelda, mais do que
compensavam essa falha. E agora que Teddy, o filho de Zelda, vivia com
eles, havia novamente uma criança lá em casa para tornar o Natal ainda
mais especial.
O escritório estava aquecido e luminoso, o relógio tiquetaqueava e o
tempo parecia ondear à sua volta. Em momentos assim, com frequência
Clara dava por si a pensar cada vez mais no passado e em como este se
ligava à sua vida atual, um raciocínio instigado pela pequena
introdução autobiográfica que lhe tinham pedido que escrevesse para
o seu policial mais recente.
Surpreendera-a descobrir que até tinha bastante a dizer sobre a sua
vida, ainda que nem tudo se prestasse a ser publicado. Mas desfrutaria
de escrever as suas memórias completas e francas, mesmo que apenas para
futuras gerações da família.
Com Clara, pensar era agir. Minutos depois, já tinha criado um documento
novo e recitava o prefácio da sua autobiografia ao microfone.
Prefácio
Uma Vida Inscrita
As Memórias de Clara Mayhem Doome
No final do ano passado, os editores dos meus policiais pediram-me que
escrevesse uma breve nota autobiográfica, a ser incluída no início do
meu livro seguinte, Argila Morta.
Queriam algo mais pessoal do que a enumeração dos meus feitos
profissionais que consta nas minhas obras mais eruditas de epigrafia.
Mas, para mim, as partes mais interessantes da minha vida foram
sobretudo as gravadas na pedra... ou, por vezes, terracota. Que
perspetiva, perguntei-me eu, daria aos leitores dos meus policiais
saber trivialidades como onde nasci, que preferia torradas a cereais
de pequeno-almoço e que raramente assistia a televisão?
Mas os meus editores insistiam que, deveras, tais detalhes os
fascinariam... e vejo-me forçada a reconhecer que, apesar das minhas
reservas iniciais, o exercício despertou todo o género de memórias que
havia muito estavam adormecidas.
O meu marido, o célebre poeta Henry Doome, indicou-me que desde a
infância tem examinado e feito a crónica de aspetos da sua vida (e,
depois, por associação, da minha), através da sua obra, mas isso
dificilmente se compara com estabelecer os factos.
Seja como for, como verão, agora deixei-me levar pelo apelo da
autobiografia, tendo decidido portanto escrever umas memórias - se bem
que para a família, e não para publicação, julgo... a menos que,
posteriormente, sejam submetidas a um desbaste radical.
Começarei por onde nasci, na aldeia que fica no vale abaixo da casa
onde agora resido, reservando o direito de vaguear para trás e para
a frente ao sabor da minha vontade. É claro que regressarei sempre aqui,
pois, como diz Henry, ambos temos raízes profundas na aldeia de
Starstone, mesmo se tais raízes agora se perdem sob as águas paradas
do reservatório.
Provoquemos então algumas ondas para agitar o sedimento...
Clara Mayhem Doome
Casa Vermelha,
Starstone Edge,
Janeiro de 2016
1
Tornar-se Viral
Meg
Novembro de 2016
Eu costumava pensar que a pneumonia era uma coisa que só acontecia aos
idosos e a pessoas com o sistema imunitário debilitado... mas já não
penso isso. O outono perdeu as suas folhas de bronze e transformou-se
em inverno rigoroso antes de o River finalmente me tirar do hospital
e levar para casa para convalescer; talvez não me tivessem dado alta
caso tivessem visto o estado do seu vetusto Land Rover. Assim sendo,
olharam ligeiramente de lado para o seu cabelo grisalho e comprido,
para a barba entrançada e para o capote ao estilo medieval, usado sobre
uma túnica e umas calças pretas, que só se revelaram quando ele despiu
o casaco de zagal oleado manchado e puído.
Lá fora, exposta ao ar frio do parque de estacionamento, sentia-me como
uma planta de estufa a definhar, mas garanti a mim mesma que voltaria
a robustecer, como após a minha última hospitalização, seis anos antes,
quando um acidente de carro pusera fim à nova vida que ainda mal começara
dentro de mim. O desespero e as cicatrizes mentais dessa perda haviam
demorado mais a sarar do que as físicas.
As minhas malas, feitas pela minha melhor amiga, Fliss, já estavam na
parte de trás do jipe e, depois de River me ter envolvido cuidadosamente
numa manta rústica e áspera feita à mão, seguimos diretamente para fora
de Londres.
Estivesse eu onde estivesse, a minha casa seria sempre na Quinta de
River, nas Montanhas Negras de Gales.
Quando ele se mudara para lá, em busca de solidão e de uma vida
autossuficiente (dentro dos limites do razoável; havia alguns luxos,
como bom café, que ele não fazia qualquer tenção de dispensar), o espaço
tinha um nome gaélico que resumia o seu belo isolamento geográfico.
Mas, com o sucesso da sua primeira publicação, Um Manual para o
Vegetariano Autossuficiente, tal nome depressa fora esquecido e a
correspondência de admiradores endereçada a «Quinta do River» ou até
somente «A Quinta, Gales» acabara por lá chegar sem qualquer
dificuldade, tal como uma correnteza de admiradores e acólitos.
Ao longo dos anos seguintes, a simples comuna evoluíra para algo bem
mais complexo, que não deixava porém de permanecer fiel às suas raízes,
tendo sido um sítio maravilhoso para se crescer.
Depressa adormeci, apesar da suspensão praticamente inexistente do
Land Rover, e acordei apenas com o chocalhar quando atravessámos a ponte
de tábuas e avançámos aos solavancos pela longa estrada de terra batida
até à Quinta. Na neblina espessa e densa de uma tarde invernal, as
coníferas escuras do bosque da Comissão Florestal aproximavam-se de
um lado da vedação, enquanto mais acima éramos iluminados pelas janelas
mais baixas da casa e pelas oficinas de trabalhos manuais nos celeiros.
Entre as sebes e as árvores à nossa esquerda, luzes das cabanas no campo
mais abaixo cintilavam como um enxame de pirilampos.
Baixei um pouco o vidro da janela e inspirei o aroma estonteante dos
pinheiros do bosque, misturado com um pouco de fumo de lenha.
Em breve estaria aninhada no calor e na segurança do ventre da comuna,
como se nunca tivesse partido - e como ansiava por isso!
Era o sítio onde ia para me recuperar, sabendo que o recobro da saúde
traria também o impulso desesperado de fugir de novo.
E não me enganava. No início de dezembro, as minhas penas para voar
tinham voltado a crescer e eu estava mais do que preparada para deixar
de novo a suavidade sedosa do ninho, onde Maj, uma das pessoas que havia
mais tempo pertencia à comuna, quase me sufocava com amor maternal e
tentava engordar-me com uma sucessão interminável das minhas comidas
preferidas.
Bem, para além de um ou outro almoço quando Oshan (filho de River e
meu mais ou menos irmão - as relações na Quinta são complicadas) fizera
questão de cozinhar. Infelizmente, tinha-se tornado vegano e preterido
livros de receitas a favor de «cozinha intuitiva», fosse lá isso o que
fosse. O resultado fazia lembrar feijão-manteiga com molho picante
sobre relva picada, e era a isso que sabia. Provavelmente, era isso
mesmo.
Poucos dos membros originais da comuna viviam ainda na casa, como Maj
e o marido, Kenny, enquanto os outros, na maioria, tinham partido ou
passado para o acampamento de tendas que surgira no campo mais abaixo.
No entanto, toda a gente continuava a entrar e sair a toda a hora do
dia ou da noite, pelo que a falta de privacidade era total. É claro
que podíamos ir para um dos campos mais afastados da casa, mas, ainda
assim, era possível encontrar Jerry e Luke com as cabras, ou um burro
inquisitivo que nos empurrasse as costas e zurrasse ruidosamente,
revelando onde estávamos.
De qualquer forma, no inverno e depois de uma pneumonia, essa opção
provavelmente não teria sido lá muito boa ideia, se bem que, tendo
sobrevivido à viagem desde Londres no veículo sem aquecimento de River,
houvesse claramente esperança de uma recuperação total.
Tinha, isso sim, um quartinho só para mim, sobre o alpendre da frente
da casa, que nunca era usado para visitas, nem sequer no verão, quando
o espaço se enchia de ajudantes temporários e os dormitórios do sótão
ficavam abarrotados.
Era um privilégio que Oshan partilhava, embora, como filho de River,
o seu direito fosse hereditário, enquanto a mim me eram outorgados
direitos de neta por afinidade.
Para todos os fins oficiais, Maj e Kenny eram meus pais, Oshan meu irmão
e River meu avô. Isso poupara-nos muitos problemas e explicações ao
longo dos anos.
Eu tinha uma mãe biológica, tal como Oshan, se bem que ambas tivessem
sido muito rápidas a depositar a descendência na Quinta e partir,
deixando os pequenos cucos no ninho.
No primeiro domingo de dezembro, River acedera com relutância a
devolver-me ao apartamento do tamanho de uma caixa de sapatos em
Greenwich, que, até pouco tempo antes, eu partilhava com Fliss.
Com os quilómetros a desaparecer atrás de nós, libertei-me da tristeza
que sentia por deixar a Quinta e comecei a empolgar-me com a ideia de
estar de novo no meu pequeno espaço de tranquilidade... mais tranquilo
ainda agora que Fliss se mudara. Ela ia fazer-me muita falta e, para
além disso, teria também a preocupação acrescida de ter de pagar a renda
sozinha.
River interrompeu-me o devaneio dizendo, quiçá pela terceira vez:
- Devias ter ficado pelo menos para o Solstício de Inverno, Meg, ou
mesmo para as festas do Yule1. Parte da família vem a casa e ia adorar
ver-te.
Por «família» ele referia-se a qualquer um que alguma vez tivesse ficado
na comuna ao longo dos quarenta anos passados desde que a fundara,
independentemente de ter sido uma estada curta ou longa. E as pessoas
de facto tendiam a voltar como pombos-correio, sobretudo as que tinham
crescido ali, como eu. Todas sentíamos a necessidade de fugir, mas,
com frequência, o cordão umbilical puxava-nos para trás.
- Não quero deixar o apartamento vazio durante muito tempo e, seja como
for, tenho de tratar de encomendas, tenho de recuperar coisas e de
ganhar a vida - respondi.
- Mas podias levar as coisas com calma durante mais algum tempo. De
certeza que ninguém vai querer que lhe pintes o retrato durante o Natal?
- É provável que não, mas preciso de acrescentar uns toques finais à
última encomenda que me fizeram.
Como assinar o quadro, por exemplo. Tinha praticamente a certeza de
que me tinha esquecido de fazer isso antes de ser levada para o hospital.
Eu preferia pintar todo o retrato à vista, mas os meus modelos nem sempre
podiam proporcionar-me sessões suficientes, pelo que eu tirava montes
de fotografias com o iPad. Estas, e a memória vívida da pose do modelo,
permitiam-me completar o fundo depois, se necessário.
Fliss acabava de se casar, motivo pelo qual tinha saído da casa. O
casamento fora outra das coisas que eu perdera durante a minha estada
no hospital, se bem que, para ser sincera, realmente nunca tivesse tido
a menor vontade de enfiar aquele vestido de dama de honor
azul-esverdeado com mangas de balão e uma pequena capa a condizer,
debruada com penas falsas de cisne, e passar o dia a rapar um frio
desgraçado.
As coisas que fazemos por amor.
- Então tens mesmo de voltar para a cerimónia do Solstício no dia vinte
e um, mesmo que não possas ficar para o Yule - continuava River a
insistir com a sua voz delicada, culta e melodiosa, que combinava tão
bem com a sua aparência: imagine-se um Gandalf pequeno, esguio e
semelhante a um elfo, com barba e rabo-de-cavalo grisalhos e uns olhos
luminosos de um azul-claro como o céu no verão. - Eu venho cá buscar-te.
Fiquei comovida, pois era uma viagem longa, sobretudo naquele veículo,
e ele já não era novo... isto apesar de eu não fazer ideia de quantos
anos teria ao certo. Sempre me tinha parecido basicamente igual: sem
idade e possivelmente imortal.
- Vou tentar - prometi. - E, se for, por essa altura já vou ser capaz
de conduzir. Sinto-me muito melhor.
- Ainda bem, mas a Maj achava que precisavas de mais uns dias de comida
caseira nutritiva. Continuas demasiado magra.
Era verdade que a minha figura habitualmente curvilínea passara a
ostentar a magreza apregoada pela moda, mas havia limites para a
quantidade de peso que se poderia recuperar num mês, mesmo seguindo
uma robusta dieta vegetariana, com quantidades generosas de queijo de
cabra, iogurte e ovos de galinhas criadas muito livremente - quando
as galinhas muito livres os ofereciam.
- Também vamos ter visitas no campo de cabanas, porque a Posy e o Simon
estão a organizar um retiro de tambores e meditação.
Bem, isso parecia irresistível, apesar de, na casa, os batuques dos
tambores se escutarem apenas como um ritmo ténue na brisa.
Ele virou ligeiramente a cabeça e dirigiu-me o seu sorriso encantador
de duende, pleno de afeto.
- Somos a tua família e a Quinta é a tua casa: vai haver sempre lugar
para ti lá e nos nossos corações.
Ele era propenso a estas expressões de afeto ligeiramente embaraçosas,
mas, ainda assim, emocionei-me e fiquei com os olhos a arder. Uma das
sequelas da doença fora tornar-me mais sensível e, nos momentos mais
sombrios, recordar o que tinha perdido e o que poderia ter sido.
Não obstante, se pudesse ter escolhido qualquer avô no mundo inteiro,
River teria sido a minha opção.
Por sorte, não tivera de o fazer, porque ele escolhera-me a mim.
1 Comemoração pagã e pré-cristã dos povos germânicos, que antecede
historicamente a celebração do Natal. (N. da T.)
2
A Centelha Vital
Como por magia, River encontrou lugar para estacionar mesmo à porta
do meu prédio, coisa que fazia com frequência... da mesma maneira que
era frequente encontrar os trocos certos para um parquímetro caídos
a seus pés.
Quando entrámos, o apartamento da cave parecia escuro, frio e vazio,
apesar de eu saber que Fliss tinha deixado o aquecimento ligado no
mínimo e que de vez em quando ia lá ver se estava tudo bem. Mas a caldeira
era antiquíssima e a luz do piloto muitas vezes apagava-se sozinha.
Acendi o aquecedor enquanto River desaparecia na cozinha, levando o
presente de despedida de Maj: um cesto de bolinhos.
Quando as barras da lareira elétrica que havia muito não eram usadas
começaram a emitir um brilho fosco e um cheiro a pó aquecido, os canos
deixaram escapar um estertor súbito e brônquico e River voltou para
a sala com a expressão satisfeita de alguém que tivesse realizado um
ritual esotérico e difícil.
- Ofereci a centelha vital e foi aceite - anunciou. - Os nossos
antepassados diriam que era magia.
Ele deveria ter um ar ligeiramente ridículo, com o cabelo comprido e
grisalho apanhado num rabo-de-cavalo, a barba entrançada e a túnica
preta, que tinha uma bainha bordada com símbolos prateados que talvez
fossem runas. Usava-a sobre umas calças pretas atadas com um cordão
e enfiadas em botas largas à pirata, mas, sem que se percebesse como,
o estilo adequava-se-lhe.
- Ótimo - disse eu, desejando que a centelha vital da minha vida (pintar)
também pudesse ser reatada com tanta facilidade. De momento, tudo me
parecia um pouco húmido e acinzentado, sem qualquer sinal de uma fénix,
fosse a renascer ou não. - Vou preparar-nos uma bebida quente e a seguir
vamos dar cabo do orçamento e pedir que nos tragam comida.
Depois de um mês a serem-me impingidas tisanas herbais e a comer
refeições que, por mais bem preparadas que fossem, muitas vezes
continham vegetais crus ralados, frutos secos tostados e empadão de
lentilhas, eu estava desesperada por litros de café e um arroz frito
com camarão ao estilo de Singapura.
River optava sempre pela versão vegetariana da Delícia do Monge e depois
roubava-me alguns camarões. Tínhamos em comum o facto de, apesar de
nos abstermos sempre de carne vermelha e de aves, não sermos avessos
a um pouco de peixe ou marisco quando não estávamos na Quinta.
- Boa ideia - concordou ele, após o que acrescentou. - Está uma luzinha
a piscar no teu telefone. Talvez sejam mensagens com notícias de novas
encomendas de retratos?
Olhei de relance para a base do meu telefone sem fios, que de facto
tinha uma luz vermelha a piscar.
- Espero que sim. Seria ótimo ter uma encomenda para o Ano Novo. Em
janeiro - esclareci, pois, para River, o Ano Novo começava no dia a
seguir ao Solstício de Inverno, a 21 de dezembro. Por vezes, eu tinha
a impressão de que vivia com os pés em dois mundos diferentes.
Desconfiava de que pelo menos metade das mensagens deixadas no telefone
seriam do meu ex-namorado, Rollo, profundamente ofendido pela minha
falta de reação ao seu catálogo mais recente de desfeitas, afrontas
e sucessos ocasionais. Ter-se-ia esquecido de que eu tivera pneumonia
cerca de dez minutos depois de eu lhe ter contado, já que, ao longo
dos seis anos desde que eu pusera fim à nossa relação, ele se fora
tornando tão obcecado consigo mesmo que eu esperava que um dia acabasse
por implodir com um grande estrondo.
- Daqui a pouco já ouço as mensagens todas e vejo do que tratam, mas
vou precisar de aumentar os preços para futuras encomendas, se quero
manter este apartamento sem a Fliss; e mesmo assim seria complicado.
- Devias deixar Londres agora - sugeriu River, contemplando o ar à volta
da minha cabeça com os seus olhos azuis cristalinos, como se avaliasse
algo que só ele pudesse ver. - Não te faz bem à aura estar aqui.
- Estou o mais longe que posso estar sem sair realmente do centro de
Londres; agarro-me à orla de Greenwich pela pontinha dos dedos -
comentei. - Dá jeito, sobretudo tendo o pequeno anexo nas traseiras
a servir-me de estúdio. Mas também parece que viajo cada vez mais até
às casas dos meus modelos, pelo que não há nenhuma razão concreta para
que me mantenha aqui.
De qualquer forma, sem Fliss, não seria o mesmo, pois éramos as últimas
solteiras do nosso grupo de amigos. Tinha sido um certo choque quando
ela se apaixonara de súbito e casara... se bem que definitivamente não
haveria de se arrepender facilmente, pois Calum era tão bom homem que
quase a merecia.
A sala de estar minúscula já estava a aquecer e eu despi o casaco e
fui à cozinha ligar a chaleira e buscar o menu do restaurante. River
quereria considerar todas as opções antes de se decidir pelo prato que
comia sempre. Era um ritual. Ele gostava de rituais.
Enquanto punha colheres de café na cafeteira, ouvi vozes vindas da sala
de estar e parti do princípio de que ele teria ligado o televisor, outra
novidade, já que não havia televisão na Quinta (se bem que tivessem
um computador portátil no escritório do centro de trabalhos manuais,
e eu desconfiava de que tanto ele como Oshan por vezes assistiam a
programas e filmes lá). Mas então, para minha surpresa, River
chamou-me, com a sua voz absolutamente sofisticada:
- Meg, tens uma visita!
Não me ocorria quem pudesse visitar-me àquela hora de um domingo à
noite, para além do senhorio, que parecia funcionar apenas a horas
vampíricas, mas não era ele. A sala parecia estar completamente ocupada
por uma senhora grande e idosa que usava uma capa volumosa de tecido
roxo. Tinha uma melena de caracóis grisalhos, de um cinzento férreo
raiado de prata, um forte nariz romano e olhos escuros e profundamente
inteligentes que pareciam avaliar-me num só relance; alta, demasiado
magra, pálida como um fantasma - na verdade, sem cor, à exceção do meu
cabelo, que um dos membros da comuna tinha pintado de um tom lustroso
e interessante de verde-escuro, usando uma tinta vegetal natural. River
dissera que eu parecia uma fada do lago, mas Maj achava que cor-de-rosa
me daria à pele pálida um pouco mais de vida e, em retrospetiva, parecia
que ela era capaz de ter tido razão.
A minha visita sorriu, revelando uma data de dentes fortes, e anunciou,
como um oráculo particularmente pessimista:
- Maim-doom2!
As pregas da capa de fazenda agitavam-se enquanto ela libertava uma
mão quadrada e ligeiramente nodosa adornada por um anel de aspeto antigo
com uma pedra de cornalina gravada e apertava a minha com vigor.
- Deve ser Meg Harkness.
Algo me parecia familiar naquela voz profunda e ressonante de classe
alta, juntamente com o sorriso... e então fez-se luz.
- É a professora Clara Mayhem Doome! - exclamei. - Eu vi aquela série
televisiva que fez, Escritos na Areia.
- Pronuncia-se «Maim-Doom» e o título desse programa era ridículo!
Deram-lhe esse nome, apesar de o tema serem as tábuas de terracota que
encontrámos na areia.
River tinha estado a observar com um ar interessado.
- Ah, a famosa epigrafista - disse ele, encantado. - Tenho o seu livro
de ensaios, Os Primórdios da História Escrita.
Ele nunca deixava de me espantar. Se o puséssemos numa sala com um
especialista fosse de que área fosse, por mais obscura, ele teria sempre
algo a dizer.
- Oh? - A minha visita arqueou as sobrancelhas escuras e retas. - É
melhor arranjar a edição nova e revista, porque tive de mudar de rumo
em relação a uma ou outra coisa, depois de ter unido vários fragmentos
de uma tábua de terracota assíria. Ficaria espantado com a relutância
de museus e colecionadores quanto a emprestarem-me as suas peças, mesmo
que eu prometa estudá-las no Museu Britânico. Mas os meus dias de passar
a vida a dar a volta ao mundo já acabaram há muito e o que consigo fazer
com gráficos de computador é limitado.
- Que fascinante! Tenho de encontrar o livro revisto - disse River.
- Quem me dera que o compre, assim talvez os meus direitos de autor
cheguem a números com dois dígitos! - disse ela, soltando uma risada
profunda.
Eu tinha praticamente a certeza de que ela não me visitara para falar
de inscrições antigas com River, por mais que ele estivesse disposto
a entretê-la. Só me ocorria outro motivo...
- Queira sentar-se - sugeri -, e diga-nos o que a traz por cá.
- Oh, sim. Desculpem ter aparecido sem aviso - disse ela, afundando-se
no abraço inesperadamente sufocante do sofá de veludo abatido, antes
de se esforçar por recuperar uma posição sentada. - A Sociedade Real
de Retratistas passou-me o seu endereço de correio eletrónico e o seu
número de telefone aqui há algum tempo, mas não obtive resposta aos
meus contactos. A Real Sociedade só me disse que haveria de entrar em
contacto comigo quando possível e depois fartaram-se de falar de
contratos e essas tretas. Por isso, já que estava em Londres, lembrei-me
de passar por cá e ver se a encontrava. Obviamente, trata-se de uma
encomenda de um retrato. Foi a Pookie Longridge que me deu a sua morada.
- Será... a professora Priscilla Longridge? - arrisquei.
- Ela mesma.
A professora assentiu com a cabeça e os seus caracóis elásticos
cinzento-escuros e prateados agitaram-se vigorosamente, tal como os
seus brincos, que eram em forma de minúsculos periquitos de madeira
garridamente pintada em gaiolas douradas. Oscilavam de uma forma
hipnótica nos seus poleiros diminutos e custava-me desviar o olhar.
- Assim que vi o retrato dela... um lagarto personificado, minha
cara!... soube que era a artista para mim.
- Mas eu fiquei com a impressão de que ela não tinha gostado do retrato
- confessei, surpreendida.
- É claro que não gostou, porque estava igualzinho a ela. Só lhe faltou
a língua bifurcada - disse ela. - Mas, claro, como é um retrato tão
espetacular que toda a gente lhe tece elogios, ela não pode dizer nada!
E é um retrato assim que eu quero: igualzinho a mim, verrugas e tudo.
- Eu conheço um bom encantamento para as verrugas - sugeriu River.
- Na verdade, não tenho... estava a falar num sentido figurado... mas
agradeço a oferta - disse-lhe Clara. - Seja como for, Meg (espero poder
tratá-la por Meg, já que estamos prestes a passar muito tempo na
companhia uma da outra), aqui estou. Na verdade, já cá tinha passado
duas vezes na semana passada, encontrando a casa completamente fechada,
pelo que a minha visita desta noite era uma última tentativa de lançar
os dados, pois amanhã já volto para casa. Mas a sorte costuma
favorecer-me - acrescentou com complacência -, e achei que, se tivesse
regressado de qualquer trabalho que estivesse a terminar e tivesse
ficado livre, eu facilmente poderia levá-la comigo.
Fez esta proposta insólita como se me oferecesse uma recompensa
fantástica e esperasse que eu alinhasse de imediato nos seus planos.
A sua personalidade era bastante impositiva, pelo que calculei que
seria isso que faria a maior parte das pessoas.
- Lamento, mas é impossível - respondi com firmeza. - Passei os últimos
dois meses fora de casa e voltei há menos de uma hora. Não respondi
às suas mensagens ou emails porque deixei aqui o meu iPad e o meu
telemóvel. Devem estar tão mortos como o dodô, por esta altura.
- Um desinteresse invulgar pela tecnologia moderna das comunicações,
para alguém da sua idade - comentou ela, antes de mudar de tática. -
Não se parece nem um pouco com a sua fotografia no sítio da Sociedade.
Para começar, tinha o cabelo castanho-escuro, à exceção de uma franja
branca, a fazer lembrar um cappuccino espumoso. E o seu rosto está mais
magro... embora me pareça ligeiramente familiar. Nunca nos tínhamos
encontrado, pois não?
- Não, tenho a certeza de que não. E gosto de variar a cor do meu cabelo
- disse-lhe, antes de invocar um sorriso profissional. - Mas sou mesmo
a Meg Harkness! Acabo de recuperar de uma pneumonia. Depois de ter alta
do hospital, aqui o River levou-me para casa para a convalescença.
- River? - perguntou ela, a olhar para ele. - Como um curso de água?
Algum em particular?
Ele ofereceu-lhe um dos seus sorrisos mais enigmáticos.
- Não, só River - disse ele, e depois disse-lhe que tinha lido outro
dos livros dela, um que tratava das primeiras gravações rúnicas das
Órcades, e havia uma questão que gostaria de discutir com ela...
- Agora não, River - apressei-me a dizer, mas o olhar dela tinha-se
detido nas runas impressas a prateado à volta da bainha da túnica dele.
- Vire-se - ordenou-lhe ela, ao que ele rodopiou obedientemente.
- Sabe o que isso diz? - perguntou ela.
- Sei: e a senhora? - respondeu ele com tranquilidade.
- Hmmpf! - fez ela. - Então, será o avô da Meg? Não se parecem nem um
pouco.
Isso era verdade, dado que eu era vários centímetros mais alta do que
ele, para começar. E também não tinha as suas feições patrícias
elegantes, ou os seus olhos de um azul-celeste.
- Sou avô da Meg em espírito e afeto - explicou River. - Não temos laços
de sangue, mas a comuna é a família dela e o meu filho, Oshan, é como
se fosse seu irmão.
Tudo aquilo soava um pouco estranho, mas, antes que ela pudesse exigir
mais explicações, apressei-me a intervir:
- Seja como for, tenho estado a convalescer. Pretendo começar a aceitar
encomendas no Ano Novo, mas ainda tenho algumas pontas soltas por
resolver antes.
- De certa forma, a pneumonia foi uma sorte para mim, já que isso quer
dizer que, de momento, não está ocupada com outros retratos - disse
Clara, indo diretamente ao que lhe interessava. - Está disponível para
aceitar a minha encomenda desde já!
- Não, eu... - comecei a protestar, mas ela prosseguiu como se eu não
tivesse falado.
- Vai constatar que o ar das charnecas lá no Norte é muito revitalizante,
sabe? Vai fazer-lhe muitíssimo bem. Descanso e boa comida, ar puro...
afinal, uma pessoa não poderá passar o dia inteiro a pintar.
- No Norte, onde? - perguntei, sem ter a mínima intenção de o fazer.
- A nossa casa fica num pequeno vilarejo lá no alto das charnecas de
Lancashire... é grande, espaçosa, quente, muito confortável - disse
ela, tentando-me com as suas atrações. - Até tem um estúdio, já que
um dos Gillyflower se considerava artista.
- Gillyflower...?
Sentia-me como uma mosca presa em âmbar. Tinha sido um dia muito longo
e eu começava a perguntar-me se teria adormecido e se não acordaria
dali a pouco no velho Land Rover aos solavancos, com a manta áspera
ainda a envolver-me.
- Demoraria demasiado a explicar-lhe agora. Verá por si mesma. - E
sorriu-me, como alguém que tivesse resolvido tudo de uma forma que a
satisfizesse.
River acorreu em meu auxílio:
- A Meg teve um mês de repouso, ar puro e boa comida na Quinta. Ainda
agora regressou.
- Ainda bem, então, porque assim não tem de fazer as malas outra vez
- disse Clara. Parecia que nada a demovia: era uma força da natureza.
Concentrou-se de novo em mim: - Mas deve querer reunir o seu material
de pintura durante a noite. Venho buscá-la de manhã. Tenho um carro
alugado com motorista e bastante espaço para tudo.
Fitei-a com um ar inexpressivo.
- Mas é absolutamente impossível que eu vá consigo para o Lancashire
amanhã! Quero dizer, terei todo o gosto de falar de uma encomenda
consigo e marcá-la para o Ano Novo, mas...
Ela continuava a não ouvir.
- Quero que pinte o meu retrato e também o do meu marido, o Henry, como
um presente conjunto de Natal para nós próprios... e talvez para a
posteridade. - Sorriu, feliz e muito sedutoramente. - Vai ser tão
divertido. Não percebo como é que nunca tinha pensado nisto!
2 Os apelidos da personagem, «Mayhem Doome», assemelham-se a «Caos e
Perdição». (N. da T.)
3
Condenada
Parecendo convencida de que resolvera a situação de uma forma que a
satisfazia, Clara libertou-se das garras do sofá e sacudiu a capa.
- Está combinado, então, e pode ficar connosco o tempo que precisar,
Meg. Vai depender de quão depressa trabalha.
- Na verdade, muito depressa, depois de ter feito os esboços
preliminares: muitas vezes, basta uma sessão ou duas para o rosto.
Depois uso fotografias no meu iPad para dar os toques finais nos
retratos, já no meu estúdio - respondi automaticamente, enquanto reunia
recursos para a persuadir de que aquilo que me pedia era uma
impossibilidade. - Mas, de momento, não posso...
- Tenho a certeza de que para si seria muito melhor trabalhar por
completo a partir de modelos vivos e, dado que há um estúdio na Casa
Vermelha, não há qualquer motivo para que não o faça.
Lembrei-me de ter desejado que a centelha vital da pintura regressasse
e refleti que de facto é preciso ter cuidado com o que se deseja, pois
agora, apesar da minha resistência, eu tinha começado a querer mesmo
pintar Clara. Para além disso, já percebera que Henry Doome era o poeta
famoso mas eremítico que, a julgar pelas fotografias, também seria um
modelo interessante... só não já, quando acabava de chegar a casa e
me encontrava tão em baixo de forma.
Juntei a pouca força de vontade que me restava e declarei num tom
resoluto:
- Professora Mayhem Doome, terei todo o gosto em aceitar a encomenda,
e tenho a certeza de que poderemos chegar a acordo para o início do
próximo ano, mas terá de compreender que, antes de isso, será
impossível.
Ela fitou-me, surpreendida.
- Não vejo quaisquer dificuldades. Na verdade, tudo parece ter ocorrido
com a maior das conveniências.
- Nem por isso, porque daqui a menos de três semanas a Meg voltará a
casa para a cerimónia do Solstício de Inverno e as festividades do Yule.
Só se encontra aqui agora porque tinha muitas questões profissionais
a resolver - disse River. - E também não deve andar a viajar pelo país
em pleno inverno, passado tão pouco tempo desde a sua doença -
acrescentou, desprezando por completo a prova de resistência a que eu
já me submetera no velho Land Rover.
Clara fitava-nos com uma expressão especulativa.
- Disse Solstício de Inverno? Então celebram o dia mais curto do ano
e o Yule, em vez do Natal?
- Assim é, e temos uma cerimónia especial num local próximo, a que se
segue uma semana de festejos e celebração. A Meg volta sempre a casa
para isso.
Bem, pelo menos aparecia sempre para a cerimónia, embora os festejos
pudessem durar bem mais do que uma semana, sendo consumidas grandes
quantidades do hidromel caseiro de River, o que tornava sempre a época
memorável... ou melhor, nada memorável, já que era suficientemente
forte para mandar abaixo beberrões.
- Que coincidência! Também temos uma cerimónia todos os anos em
Starstone Edge, na noite do Solstício de Inverno - disse ela. - A Meg
poderia ir antes a essa.
- Starstone? - perguntou River com avidez. - Ouvi falar da cerimónia
de Starstone e consta-me que se baseia num ritual muito antigo! -
Depois, acrescentou num tom melancólico: - Bem que gostaria de
assistir.
- Então não há qualquer motivo para não o fazer. Pode ficar connosco;
espaço não falta - ofereceu ela. - Assim também poderá ver como avançam
os retratos da Meg.
Abri a boca para a recordar que não tinha acedido a dar início ao
trabalho antes de janeiro, mas só me saiu um gemido rouco.
Não havia dúvida de que ela acertara nos pontos mais sensíveis de River,
porque ele estava com um ar muito tentado.
- É extremamente generoso da sua parte, mas nunca me ausento da Quinta
aquando das cerimónias importantes do ano, sobretudo esta.
Eu não percebia porque haveria de se negar esta possibilidade, quer
eu estivesse lá, quer não.
- Mas no ano passado disseste que subir a montanha para atear a fogueira
estava a tornar-se excessivo para ti e que ias passar o testemunho da
cerimónia ao Oshan - lembrei-o. - Ele é perfeitamente capaz de tratar
de tudo sozinho. E ainda podias chegar a tempo dos festejos, depois
da cerimónia de Starstone.
- Até poderia... - concordou ele, a repensar. - É mesmo muita
amabilidade sua convidar-me, professora Mayhem Doome.
- Tratem-me por Clara, por favor. O resto faz-me sentir como uma firma
de advogados pouco fiáveis. E fico muito contente por achar que pode
vir.
- Se por essa altura a Meg já tiver terminado os retratos, poderá voltar
comigo para a Quinta depois do Solstício - sugeriu River.
Fitei os dois sem conseguir falar, pois parecia que se dera uma súbita
alteração sísmica e passara a dar-se por assente que eu iria para
Starstone, conforme decretado por Clara.
- Mas ela decerto precisará de um pouco mais de tempo para nos pintar
aos dois... - disse Clara. - De facto, espero que se deixe ficar e
celebre o Natal connosco, podendo então completar os dois retratos
depois, com calma.
- Mas eu nunca celebrei o Natal - protestei, numa última tentativa,
porque, ainda que fosse perfeitamente capaz de recusar a sugestão, o
desejo crescente de pintar Clara estava a sugar-me a vontade de resistir
mais. - Se começar os retratos antes do Natal, irei para a Quinta depois
do Solstício e completá-los-ei no estúdio.
- Disparate! Toda a gente deveria experimentar um Natal em família a
sério pelo menos uma vez na vida - disse ela. - Deveremos ter a casa
cheia e o Henry adora tradições, pelo que teremos a árvore, as meias,
o enorme pudim de ameixa... o bolo ainda mais gigantesco, o...
- Lamento, mas sou vegetariana, o que só causaria problemas - interrompi
à pressa, apesar do fascínio que aquela perspetiva me causava. Um
verdadeiro Natal em família... como seria?
- Isso não é problema algum - respondeu Clara com ligeireza. - Também
somos vegetarianos na Casa Vermelha, de certa forma. É por causa do
Henry: ele é vegetariano na maior parte do tempo, embora também coma
algum peixe e marisco.
- É pescetariano? - sugeriu River, num tom solícito. - Ora, eu e a Meg
também... que coincidência!
- Perfeito! - Clara sorriu-nos e soltou um profundo suspiro de
satisfação. - Então fica assim, está tudo tratado. Bom, a que horas
devo vir buscá-la amanhã, Meg?
- Receio bem que isso seja impossível, porque tenho mesmo de tratar
de algumas coisas antes - disse-lhe. - Para além disso, preferiria levar
a minha própria carrinha.
- Tem uma carrinha?
- Tenho, uma pequena autocaravana. Deixo-a no terreno de uns amigos
em Saint Albans e eles trazem-ma quando eu preciso dela.
O que não acontecia com frequência, e Freddie e Joe usavam-na durante
o resto do tempo, pelo que a combinação funcionava bem. Não que fosse
uma Dormobile antiga e romântica, nem nada do género, era mais um
pequeno veículo moderno, estreito mas alto, que continha apenas os
equipamentos essenciais. Podia guardar lá todo o meu equipamento de
pintura e também transportar telas em segurança, pelo que me dava jeito
acampar nela quando era inconveniente ficar na casa dos meus modelos.
Na verdade, muitas vezes preferi essa situação, ainda que, neste caso,
isso não fosse uma opção nas charnecas do Lancashire no meio do inverno.
Clara, tendo conseguido o seu objetivo principal, cedeu nesse ponto.
- Assim sendo, pode ir ter comigo a Starstone Edge assim que esteja
pronta. - Dirigiu-me de novo aquele sorriso magnético. - Se decidir
passar o Natal connosco, o Henry teria todo o gosto em ensinar-lhe todas
as manifestações festivas da época.
Aquilo fazia lembrar um pouco Jacob Marley.
- A maioria das tradições natalícias corresponde a uma versão vitoriana
de antigos ritos pagãos - disse River.
- Isso é verdade, o que as torna muito adequadas à Casa Vermelha, cuja
arquitetura não poderia ser mais gótica vitoriana. Deixo que o Henry
tenha rédea livre nas celebrações: é o ponto alto do seu ano, sobretudo
a árvore. Escolhe sempre uma tão alta que temos de decorar metade a
partir das escadas ou usando um escadote.
Na Quinta, também tínhamos um pinheiro, pequeno, que pendurávamos ao
contrário na entrada da casa e decorávamos com figuras de palha, frutos
secos, raminhos de azevinho, visco e outras coisas simbólicas.
O Natal na Casa Vermelha parecia muitíssimo diferente de qualquer coisa
a que já tivesse assistido, o que era tentador. Mas, por outro lado,
acabava de escapar de uma casa cheia de gente, por isso, porque quereria
ser lançada para um grupo de desconhecidos?
Mas não precisava de decidir já, concluí. Iria para lá e iniciaria os
retratos e depois, se aquilo se tornasse assoberbante, fugiria com
River para a Quinta, a seguir ao Solstício.
Clara, tendo cumprido a missão a que se propusera, saiu, levando o campo
magnético da sua personalidade para o clube onde se hospedara e deixando
uma grande marca na almofada do sofá como única prova de alguma vez
ter estado em minha casa.
Acho que ela tinha usado a maior parte do oxigénio da sala, porque eu
mal tinha energia para comer quando o que encomendáramos chegou.
Quando acordei no dia seguinte, já era tarde e River já regressara a
casa. Tinha deixado um seixo em cima da colcha da cama do quarto de
hóspedes, no qual escrevera a lápis: «Vemo-nos no dia 21!»
Quando o virei, vi que tinha acrescentado:
«Que a Deusa te abençoe!»
Mas eu acho que já me tinha abençoado, ainda que pudesse vir a revelar-se
uma bênção com resultados contraditórios.
Clara
Nasci há mais de setenta anos, na aldeia de Starstone, no Lancashire.
O meu pai, Cecil Mayhem (sempre pronunciado «Maim»), era o vigário da
aldeia, um homem sereno e estudioso com um profundo interesse por
línguas antigas e arqueologia.
Para todos os efeitos, cresci como filha única, pois a minha irmã,
Bridget, chegou tarde, à última hora possível, muito depois de nos
termos mudado para uma paróquia em Devon. Eu era precoce e esperta e
o meu pai complementava os ensinamentos da pequena escola local com
lições em temas como latim e grego antigo, enquanto a minha mãe, filha
de um diplomata, se assegurava de que eu me tornava fluente em francês,
alemão e italiano.
Estas lições eram partilhadas pelo meu grande amigo Henry Doome, o
segundo filho da família que vivia na casa senhorial da zona, Underhill.
Embora fosse quase um ano mais novo que eu, era meu igual em tudo e,
mesmo durante a infância, dava para ver a direção que as nossas
carreiras um dia tomariam. Henry interessava-se profundamente pela
poesia e pelos jogos de palavras, enquanto o meu fascínio precoce pela
epigrafia foi suscitado por uma pedra antiga gravada com marcas rúnicas
que se destacava no cemitério da pequena igreja da aldeia. Eu e Henry
passámos séculos a fazer decalques da pedra e a tentar decifrar as
inscrições.
O irmão de Henry, George, era a sua completa antítese, sendo vaidoso,
bastante estúpido e louco por desporto. A única coisa que partilhavam
era a cor loura do cabelo, os olhos azuis e o nariz reto e grego que
aparecia em tantos dos retratos da família.
George foi enviado para a escola primária aos oito anos, fadado a seguir
a tradição familiar de manter uma carreira militar durante alguns anos,
um ritual de passagem presumivelmente com a intenção de instilar
disciplina e transformar o filho varão em oficial e cavalheiro. É claro
que, no caso dele, se tratava de uma esperança vã: tornou-se de facto
oficial do exército, mas nunca foi um cavalheiro, nem alguma vez, que
eu tenha reparado, desenvolveu alguma disciplina ou autocontrolo.
Starstone era uma antiga aldeia das terras altas, localizada num lindo
vale e rodeada por colinas cujas urzes e tojos não raro floriam em tons
de açafrão e roxo.
Para além da igreja, tínhamos um pavilhão, o pub, uma loja e uma pequena
escola: tudo o que se pudesse precisar, ali mesmo à porta.
O pub, chamado o Lúcio de Duas Cabeças, também arrendava quartos era
frequentado tanto por pescadores, desejosos por tentar a sorte no rio
que corria pelo meio da aldeia, como por artistas atraídos pela paisagem
escarpada e pelo V impressionantemente invertido da rocha em forma de
estrela (ou melhor, rochas, pois eram duas, inclinadas e apoiadas uma
na outra) sobre a colina por trás da casa senhorial dos Doome, que dava
o nome à aldeia.
O vilarejo de Starstone Edge3 alongava-se pela estrada superior que
percorria um lado do vale até se deter no cimo, junto à entrada das
traseiras da propriedade de Underhill. Para além do portão, havia
apenas um trilho de terra batida que seguia pelas charnecas na direção
do Yorkshire.
Mas, se seguíssemos a estrada no sentido oposto, pelo vale abaixo,
passando pelas casinhas juntas e pelas vivendas do vilarejo,
chegaríamos à grande pilha gótica da era vitoriana que era a Casa
Vermelha, o lugar dos Gillyflower. O nome da casa provinha dos tijolos
vermelhos que dividiam a pedra local, cinzenta e sóbria em camadas,
como um estranho bolo.
Depois disso, não havia outras habitações, apenas a curva que dava para
as charnecas até à aldeia de Thorstane, no vale seguinte, a menos que
se seguisse pelas curvas sinuosas e assustadoras da Passagem Sinistra
até à pequena vila do mercado de Great Mumming, que nos parecia uma
metrópole emocionante.
E este, durante os primeiros oito anos da nossa vida, foi o nosso mundo.
3 À letra, «Ponta da Estrela de Pedra». (N. da T.)
4
Licença Poética
Passei os dois dias seguintes num rodopio de atividade, incluindo
responder a toda a correspondência eletrónica e a todas as mensagens,
depois de ter carregado o iPad e o telemóvel.
Eu não me enganara quanto a pelo menos metade das mensagens serem de
Rollo e, com um suspiro, apaguei-as sem as ler.
Ele era quatro anos mais velho que eu. Quando andava no segundo ano
da faculdade e o conheci e me apaixonei por ele numa festa de estudantes,
ele tinha uma qualidade dourada e mercurial, combinada com muito
encanto. Nessa altura, também era capaz de ser muito doce... mas suponho
que a criança mimada sempre tivesse estado à espreita dentro do homem.
Rollo era poeta e um dos proprietários e colaboradores de uma venerada
revista trimestral chamada Strimp! (Não me perguntem por que se chamava
assim; não faço ideia.)
Atualmente, era também professor a tempo parcial, ensinando escrita
criativa, o que lhe dava acesso a um fluxo interminável de estudantes
do sexo feminino, embora, desde que fizera quarenta anos, todo esse
encanto mercurial tivesse começado a transmutar-se num Peter Pan idoso,
pelo que talvez estivesse a acabar.
Era poeta performativo e ganhava vida em palco de uma forma que fazia
a sua poesia soar muito melhor do que aquilo que eu desconfiava que
realmente fosse.
Quanto à sua aparência, imagine-se um cruzamento envelhecido mas ainda
atraente entre Dylan Thomas e Lorde Byron, com o cabelo ruivo-alourado,
uma boca melancólica e um olhar pensativo, e assim é ele.
A minha mente recuou até àquela breve fase, seis anos antes, quando
o casamento e uma família tinham finalmente parecido algo ao meu alcance
apenas para voltarem a ser-me roubados. Depois disso, eu quisera uma
rutura total com ele. Tinha sido Rollo quem insistira em que
mantivéssemos a amizade, o que, dissera ele, provaria que eu não o
culpava por completo pelo acidente.
Obriguei firmemente os pensamentos a regressarem ao presente, mas
ignorar Rollo não era possível, pois telefonou-me na segunda-feira de
manhã para exigir saber, com todo o histrionismo, por que razão eu o
ignorava.
- Tenho andado a ignorar toda a gente - respondi-lhe pacientemente.
- Tive uma pneumonia, lembras-te? A Fliss contou-te e tu enviaste
flores.
- Mas isso foi há séculos!
- Estive muito doente e não se recupera de uma pneumonia em cinco
minutos. Tenho estado na Quinta em convalescença desde que me deram
alta do hospital e só agora voltei para casa. Como é que vão as coisas
contigo?
Entalei o telefone entre a cara e o ombro e deixei-o tagarelar enquanto
preparava um café e comia umas bolachas de gengibre ligeiramente mofas.
Ia apanhando uma ou outra frase, como...
- ... ela não dava realmente valor ao meu trabalho e depois, quando
me viu com uma das alunas...
- Ai, foi? - murmurei com um desinteresse distraído. Como ele ia
saltando de mulher em mulher como um colibri a visitar flores, era-me
fácil unir os pontos sem escutar realmente. Eu tinha sido a única mulher
com quem ele alguma vez tivera uma relação que durasse mais do que duas
semanas, ainda que acabasse por se revelar que nunca tivera direitos
exclusivos... mas, mesmo agora, tanto tempo passado do fim da relação,
ele não parecia ser capaz de funcionar sem me usar para desabafar o
que lhe ia na alma e como caixa de ressonância. Aquilo não era a
definição de amizade e, juntamente com a sua auto-obsessão crescente
e nada apelativa, tratava-se de um hábito a que eu gostaria de pôr fim.
- Mas pelo menos nos Estados Unidos apreciam a minha obra e vai sair
lá uma nova coletânea dos meus poemas na primavera - terminou ele, numa
nota positiva e triunfante. Sempre fora mais popular nos EUA do que
no Reino Unido.
- Bem, isso é maravilhoso, Rollo. Fico muito contente. Mas infelizmente
agora vou ter de desligar, porque na quarta parto para o Norte para
pintar um retrato que me encomendaram e tenho muito que fazer.
- Mas se disseste que ainda agora voltaste... - ressentiu-se.
Pensei no que poderia interessar-lhe para além de si mesmo.
- Vou pintar a mulher do Henry Doome, o poeta.
Arrependi-me logo de não ter guardado segredo, porque ele ficou logo
demasiado empolgado.
- Henry Doome? - arquejou ele, maravilhado. - Dizem que recusou ser
Poeta Laureado por duas vezes! É claro que já é um velhote - acrescentou
ele, num tom menos exaltado -, mas não deixa de ser um Grande Nome.
- Bem, acho que também o vou pintar a ele.
- Diz-se que ultimamente vive completamente isolado e quase nunca dá
entrevistas... mas que furo seria para a Strimp! se ele falasse comigo
e me deixasse publicar um dos seus poemas. Meg, vais ter de preparar
o terreno antes de eu o contactar... ou, espera, talvez fosse melhor
se eu simplesmente estiver por perto e te visitar... e depois podes
apresentar-me e a partir daí eu trato de tudo.
- Nem pensar. Estás louco? - repliquei, horrorizada. - Se quiseres
entrevistá-lo, então esforça-te para isso e não tentes envolver-me.
Não o conheço, sequer, e não vou tentar persuadi-lo a fazer algo que
não queira.
- Mas, Meg, seria...
- Não - respondi friamente. - Agora tenho de desligar, Rollo, e vou
andar muito ocupada, por isso não me telefones. Falo contigo quando
voltar.
Ou não, se puder evitá-lo, acrescentei mentalmente. Depois pousei o
telefone enquanto ele continuava a tentar convencer-me.
Já não funcionava comigo: o feitiço mágico tinha-se quebrado, tal como
o meu coração, vários anos antes.
Consegui falar rapidamente pelo telefone com a maioria dos meus amigos
mais próximos, nenhum disponível para nos encontrarmos antes de eu
partir, pois todos estavam ocupados a procriar, ou a criar filhos, à
exceção de Fliss, que eu imaginava que fosse fazer o mesmo assim que
fisicamente possível.
Foi a única que pôde encontrar-se comigo para tomarmos um café. Quando
lhe contei tudo sobre o trabalho encomendado, Clara e tudo o mais, ela
disse que o mais provável era que eu desaparecesse no Norte Negro e
nunca mais voltasse a ser vista, pelo que tinha de lhe telefonar e enviar
emails com informações atualizadas, pois tudo parecia fascinante.
- Mas que pena ires já embora, porque eu queria apresentar-te ao primo
do Calum, o Rob. É mesmo o teu género.
- Eu acho que não tenho um género - respondi. - Ou, se tenho, já está
extinto. Decidi que vou mudar-me para uma casinha pequena no campo e
devotar-me à minha Arte.
- Pois, está bem - disse ela, pouco convencida, mas, dado que tanto
a minha única relação séria (ainda que esporádica) como a minha única
tentativa de ser mãe não tinham dado em nada, parecia-me que finalmente
estava a aceitar o meu destino.
Isso fez-me pensar em Rollo e contei à minha amiga que ao regressar
me tinha deparado com uma data de mensagens dele e que ainda me ligara.
- Não percebo porque é que continuas a deixar que te massacre - disse
ela. - Quero dizer, já não gostas dele, pois não?
- Não, sobretudo porque parece estar a transformar-se num monstro
obcecado por si mesmo. Mas livrar-me dele não é fácil, a menos que mude
de número de telefone, de endereço de correio eletrónico e já agora
de casa, sem lhe dizer.
- Isso seria um pouco drástico - disse ela. - Só tens de ser brutalmente
sincera com ele.
- Pois, já tinha chegado a essa conclusão - reconheci. - É o que vou
fazer quando voltar deste trabalho.
Soprei o pó do meu grande cavalete dobrável e do meu material de pintura,
guardando-os para os levar. Tinha ficado com o contacto de Clara, para
poder perguntar-lhe que tipo de retrato pretendia, o qual era, como
poderia ter imaginado, grande. Por sorte, eu mantinha uma reserva de
telas estiradas e preparadas de vários tamanhos. Guardei também algumas
das mais pequenas, porque teria uma exposição individual em fevereiro
e estava a preparar obras para isso. Talvez tivesse algum tempo livre
e me deparasse com um motivo interessante.
A caravana tinha um armário, onde cabia o cavalete, as telas e as tintas,
pelo que eu costumava guardar apenas algumas roupas nas duas gavetas
pequenas debaixo do beliche. Mas desta vez preparei também uma mala
de viagem e um saco grande.
Não costumava precisar de grande guarda-roupa, pois tendia a viver e
trabalhar de calças de ganga, T-shirts e camisolas feitas à mão. Na
Quinta, mudar de roupa para jantar significava despir qualquer peça
que cheirasse a cabra e substituí-la por uma que não fedesse. Desta
feita, eu não sabia ao certo do que precisaria, nem sequer quanto tempo
duraria a minha estada. Ainda assim, como não tinha muitas roupas, e
menos ainda que fossem elegantes, limitei-me a meter tudo na mala.
Na quarta-feira, de manhã cedo, finalmente dei início à viagem para
norte; Joe e Freddie tinham-me devolvido a autocaravana na noite
anterior. Ou melhor, Joe fora levar-ma e Freddie seguira-o no velho
Dois Cavalos de ambos para regressarem a casa.
Embora tivessem lavado a carrinha, esta mantinha o cheiro agradável
a coentros e outras ervas exóticas que eles cultivavam nas suas estufas
ecologicamente aquecidas, juntamente com vários tipos de malaguetas,
que vendiam a bares, restaurantes, lojas e cafés da zona.
Freddie, a meu pedido, também me levara um grande cesto das compotas
e dos chutneys que ele fazia, já que me ocorrera que, se acabasse por
passar lá o Natal, então seria boa ideia ter alguma prenda para
oferecer. E, se depois do Solstício de Inverno já me chegasse e quisesse
desertar com River, isso talvez adoçasse um pouco a minha partida.
Não sabia bem como seria recebida a nova criação de Freddy, o Chutney
Picante Fiesta Fogosa, mas ninguém haveria de torcer o nariz aos doces
de limão, laranja e lima que ele colocava em frascos tão bonitos, com
tecido axadrezado da cor do conteúdo a cobrir as tampas e preso com
uma fita de gorgorão a condizer.
A vantagem de viajar sozinha na minha própria casa acolhedora de caracol
era que podia parar onde quisesse e preparar uma bebida quente e
qualquer coisa para comer, sem ter de fazer a peregrinação das lojas
das estações de serviço em busca de algo vegetariano e comestível, o
que, na maior parte dos casos, equivaleria a encontrar o Santo Graal
no supermercado local.
Não usava GPS, mas tinha verificado a rota no Google, que me oferecera
também vistas de um reservatório no vale abaixo de Starstone Edge, onde
eu ficaria. As fotos tinham obviamente sido tiradas no pino do verão,
com barquinhos de velas brancas numa superfície imóvel que refletia
o céu azul e umas quantas nuvens de algodão brancas como a neve. Os
equipamentos do vilarejo (a vila maior no vale fora inundada aquando
da criação do reservatório) incluíam um clube náutico sazonal, uma
mancheia de casas de férias e uma pensão. As atrações da área em redor
eram descritas como sendo uma zona para caminhadas e observação de
pássaros, sendo possível velejar e pescar no reservatório. Eu já tinha
ficado em áreas remotas de charnecas e tinha a forte suspeita de que
tudo naquele lugar estaria fechado desde o início do outono até ao final
da primavera.
A rota recomendada era através da aldeia de Thorstane, no vale seguinte,
e depois passar as charnecas, sendo a única alternativa uma passagem
em ziguezague, cujo aspeto eu não podia dizer que me agradasse,
sobretudo em pleno inverno.
Perdi-me duas vezes depois de sair da autoestrada, mas acabei por dar
comigo a subir por estradas rurais cada vez mais estreitas, até dar
pela placa de sinalização de direção a indicar Thorstane. Era uma aldeia
grande, com uma feia igreja vitoriana, umas quantas lojas e, mesmo no
extremo onde a estrada recomeçava a sua subida íngreme, um pub grande.
Parei para dar uma vista de olhos: era evidentemente um edifício velho
que já tinha sofrido ampliações, com uma ala de motel no que
provavelmente antes eram estábulos e celeiros. Tinha uma placa: Lúcio
de Duas Cabeças.
Pareceu-me uma estranha escolha de nome para um pub numa charneca
distante, sem um único rio à vista...
Mas não havia tempo a perder, porque o crepúsculo já avançava, tal como
o frio, e o aquecimento da autocaravana não era tremendamente
eficiente. Dei de novo à chave e fiz-me à estrada, subindo a custo até
que, com alívio, ultrapassei o cume e comecei a descer para o vale
seguinte.
Lá ao fundo, um lençol de água emitia um brilho fosco, como peltre
polido, e uma fileira de edifícios de brincar acompanhava a estrada
ao longo da água. Havia muitas coníferas à beira do lago e espalhando-se
pelas colinas do outro lado.
Na direção oposta, a estrada serpenteava pelo vale abaixo, numa série
de ziguezagues rumo ao dique. A subir lentamente por aí, e parecendo
do tamanho de um carrinho de brincar, vinha uma carrinha branca de caixa
aberta. Já tinha desaparecido quando desci cuidadosamente pela pista
só com uma faixa, fazendo marcha-atrás a dada altura para uma berma
ao deparar-me com um trator.
Por fim, cheguei ao entroncamento com a estrada do vale e virei à
direita... e à minha frente estava a forma imponente e impossivelmente
exagerada de uma mansão gótica do período vitoriano: com torreões e
torres em forma de pimenteiro, decorada como biscoitos de gengibre,
com espigões e muitas chaminés. Fora construída com alguma pedra
cinzenta, dividida por linhas de tijolo vermelho, algumas a formar um
padrão espinhado.
Eu tinha parado para poder admirar a monstruosidade. Era como se um
arquiteto tivesse tentado incluir todos os elementos do gótico
vitoriano numa única casa. Só podia ser aquele o meu destino. Era
impossível que houvesse duas casas assim.
A pouca luz que restava extinguiu-se e a fachada ficou escura, à exceção
das muitas janelas pontiagudas ou arqueadas.
Estava a ficar cada vez mais frio, pelo que arranquei de novo e subi
pelo acesso, estacionando num espaço com gravilha atrás de uma carrinha
branca que parecia a mesma que vira a subir pela passagem.
Saí da autocaravana com relutância e a pensar que, com a luz a
desaparecer rapidamente e o vento gelado que assobiava à volta das
minhas pernas, aquele não parecia o lugar mais convidativo para uma
festa de Natal.
Um homem alto e de ombros largos, com o cabelo escuro e encaracolado
a ser chicoteado pela brisa, estava a tirar uma criança do lugar do
passageiro da carrinha. O menino subiu as escadas até à casa a correr,
com uma mochila azul pendurada de uma mão. A porta abriu-se e ele entrou.
Eu ainda estava a enfiar-me no meu velho anoraque de penas quando o
homem se virou e deu um passo na minha direção... e depois estacou,
a fitar-me.
Eu gelei, e não foi por ter levado com a rajada de vento glacial que
assobiava pelas charnecas, nem devido à expressão de descrença
horrorizada naqueles olhos de musgo verde-escuro... olhos que podiam
parecer tão suaves como aveludados.
Mas naquele momento não estavam suaves.
Memórias do Lex Mariner que eu em tempos conhecera passaram-me
rapidamente pela mente: a andar pela faculdade de belas-artes, com os
seus caracóis negros compridos e o sobretudo escuro a adejar, as
sobrancelhas arqueadas e o rosto estreito, com o seu nariz fino e curvo,
que lhe dava o ar de um jovem falcão, o som da sua voz grave elevada
numa discussão artística qualquer... e outra memória havia muito
suprimida: a da sensação dos seus braços à minha volta.
E depois tudo se verteu no homem que estava à minha frente, uma versão
mais velha, com rugas de dor e resistência gravadas no rosto, como um
mapa do passado.
Dei por mim a corar e logo o sangue se esvaiu para as minhas botas:
as feridas antigas podiam curar à superfície, mas, no fundo, permanecer
vivas. Nunca tinha pensado que voltaria a vê-lo - nem o desejara.
O sentimento parecia ser mútuo, pois, sem dizer palavra, ele deu
meia-volta, voltou para a cabina da carrinha, executou uma inversão
de marcha apertada e arrancou, com os pneus a atirarem gravilha contra
mim e a autocaravana.
Apedrejada - e nunca fora sequer culpada do que me acusavam.
5
A Toda a Volta
Por fim, uma voz interrompeu-me o devaneio espantado, no qual se
formava, entre outros pensamentos caóticos, um forte desejo de me meter
na autocaravana e regressar a Londres.
- Miss Arkness? - chamava-me.
Virei-me e descobri que um homem pequeno e completamente calvo, com
um rosto amistoso e simiesco, se encontrava perto de mim. Usava um
grande fato-macaco de linho rústico.
- Mas ond’é que su’alteza foi com tanta pressa?
O rugido do motor da carrinha de caixa aberta ia-se desvanecendo como
um leão pelo vale abaixo e depois desapareceu. Sem esperar por resposta,
o homem continuou:
- Chamo-me Den, sou o cozinheiro e faz-tudo daqui. É melhor entrar...
a sala é à esquerda. ‘Tão todos à sua espera. Eu levo-lh’as malas, se
me mostrar o que quer, sim?
- Oh, pois - disse eu, recuperando finalmente as cordas vocais e
avançando para as traseiras da carrinha. - Só aquele saco e a mala de
viagem. Deixo o material de pintura e o resto para depois.
- ‘Tá bem - disse ele, tirando a minha bagagem. Fungou e depois franziu
levemente o nariz. - Nã lev’a mal, mas esta caravana tem um cheiro
estranho. Não cheira mal... é só esquisito.
- É sobretudo a coentros, acho. Uns amigos meus às vezes usam a carrinha
para entregarem ervas aromáticas da sua horta.
- Deve ser isso, então - disse ele. - E, se me der as chaves, eu cá
lev’a carrinha mais p’o lado, p’a ficar mais protegida, não?
Não fazia ideia, nem conseguia localizar ao certo de onde seria o seu
sotaque. Parecia ter elementos de cockney, mas com outras camadas por
cima mais difíceis de identificar.
Fechei a porta de novo.
- Aquele homem que acabou de ir embora... - comecei, cautelosamente.
- Lex Mariner, sobrinho da Clara. - Den pegou na minha bagagem como
se fosse leve como uma nuvem, coisa que não era, já que eu tinha enfiado
ali vários livros, para além das galochas. - Ela queria qu’ele ficasse
para lanchar e conhecê-la, mas devia ter qualquer coisa urgente p’a
fazer. Se calhar o Teddy sabe.
Presumi que seria o rapazinho - poderia ser filho de Lex? Peguei na
minha mala bordada e segui Den pelos degraus acima e por um vestíbulo
com uma porta com vidros, que dava para um átrio enorme a partir do
qual uma grande escadaria subia, perdendo-se na escuridão. A águia
sentada no poste central retorcido ao fundo das escadas parecia prestes
a lançar-se para a frente e levar-me nas suas garras enormes.
Com a cabeça, Den indicou uma porta à esquerda.
- Ali. Descongele a medula qu’eu vou deixar as malas no seu quarto e
trago mais chá... a menos qu’a Tottie já tenha tratado disso.
Quando se inclinou para levantar de novo as minhas bagagens, a gola
do seu fato-macaco desceu e vi-lhe uma tatuagem na parte de trás do
pescoço. Era uma seta com cores lúridas a apontar para cima e por baixo
tinha as palavras: «Este lado para cima.»
- Que tatuagem interessante - comentei.
- É. Fiz em Brixton. Dá p’a passar o tempo, não?
- Imagino - concordei, ligeiramente alarmada. Poderia estar a
referir-se à prisão de Brixton? Passariam as longas horas a tatuarem
coisas uns nos outros... com instrumentos pontiagudos? Não haveria de
ser isso!
Ele seguiu escada acima, recusando a minha oferta de levar um dos sacos,
e eu voltei os meus passos para a porta da sala de estar. O corredor
era cavernoso e escuro, de tal maneira que só se discernia o contorno
de um grande cabide, cadeiras de madeira com espaldares bicudos, uma
mesa comprida encostada a uma parede e um relógio de pé alto a
tiquetaquear ruidosamente, como a pulsação da casa. O chão era de
ladrilhos com um lindo padrão de folhas de carvalho em vermelho-ocre
e verde-salva, e o ar estava perfumado de verniz de alfazema e
pot-pourri, para além de uma ligeira camada de cão molhado.
Mas, ao abrir a porta, pestanejei, pois dei por mim numa sala muito
grande que até ofuscava de tão luminosa. Para começar, as paredes
pintadas num tom vivo de amarelo-dourado, ostentavam vários espelhos
com molduras douradas, e o espaço era iluminado por um imenso e
brilhante lustre. Havia uma mistura eclética de sofás e cadeiras
esponjosos de veludo ao estilo dos anos vinte do século passado, uns
horríveis bancos em forma de sela de camelo e uns pufes egípcios de
cabedal. Antigas tapeçarias orientais ornamentavam todos os espaços
livres das paredes e uma estátua em tamanho real do deus Anúbis
encontrava-se mesmo a meu lado. Usava um pano dourado a cobrir-lhe o
baixo-ventre e um chapéu de palha muito veraneante com uma aba desfiada,
adornada com um laço desbotado.
Havia várias pessoas em volta da lareira acesa, como uma ilustração
algo excêntrica para a revista Homes and Gardens, e todas se tinham
virado para me ver.
Clara estava sentada num sofá diante de uma grande mesa de centro sobre
a qual se encontrava um tabuleiro de objetos para o chá e uma travessa
já desprovida de sanduíches. Uma mulher de meia-idade, magra e de aspeto
seco, com cabelo louro e encaracolado, estava numa cadeira de espaldar
reto de brocado ali perto, de chávena de chá na mão, enquanto à sua
frente, num pequeno sofá de veludo cor de mostarda, estava o menino
que eu vira, carinhosamente encostado a um senhor elegante de cabelo
grisalho, que reconheci de imediato como sendo o grande poeta Henry
Doome.
Rollo teria morrido de inveja.
- Cá está a Meg - disse Clara, com o sorriso luminoso e magnético que
eu recordava tão bem. - Chegou na altura perfeita, porque a Tottie acaba
de sair para ir ferver mais água para o chá e os scones de queijo já
devem estar prontos. Deve estar faminta?
- Eu... sim, tenho fome - descobri, surpreendida. Seria de pensar que
o choque de rever Lex Mariner me tirasse o apetite para o resto da vida.
Também estava gelada, pelo que, quando ela deu uma palmadinha no assento
do sofá a seu lado, foi com todo o gosto que acedi à chamada.
- Venha e sente-se aqui para descongelar que eu apresento-a a todos.
E aí vem a Tottie - acrescentou enquanto a porta se abria e uma mulher
alta e castigada pelo tempo, de físico liso e angular, cabelo grisalho
e a usar umas calças de bombazina e uma camisa aos quadrados, entrou
na sala a empurrar um carrinho no qual as loiças tremiam e tiniam.
Aquele sofá parecia ser uma versão sofisticada do que eu tinha no meu
apartamento, pois envolveu-me numa suavidade tão ondulada que não
estava a ver como alguma vez lhe escaparia.
- Meg, esta é Tottie Gillyflower, um dos membros da casa - disse Clara,
enquanto Tottie levantava as chávenas sujas e o bule vazio e os
substituía por novos num conjunto de porcelana com um padrão
completamente diferente, antes de acrescentar mais sanduíches e um
grande prato de scones. O cheiro deixou-me a salivar.
- Ah! - exclamou Tottie, à laia de saudação, e depois empurrou o carrinho
para o meio da sala e colocou-se à nossa frente no outro sofá, ao lado
do menino.
- Este é o Henry, o meu marido, claro - continuou Clara.
- Como está, minha querida - disse Henry numa voz que reconheci de
programas radiofónicos. Podíamos nunca ter tido um televisor lá na
Quinta enquanto eu crescia, mas tínhamos rádio. - Não posso
levantar-me, porque a Lass está a dormir.
Aquilo que eu tinha pensado ser um tapete felpudo preto, cinzento e
branco sobre os seus joelhos, era, afinal, uma cocker spaniel. Na
verdade, acordou nesse momento, resfolegou e, abrindo os olhos, deu
por mim. Uma cauda agitou-se um pouco e quase acertou nos scones.
- No meio está o Teddy - disse Clara. - É o filho da minha sobrinha,
mas vive connosco porque a Zelda é atriz e de outra forma seria muito
complicado quando anda em digressão, o que parece ser o que acontece
quase sempre.
- É uma pena que não tenham mantido a personagem dela no Coronation
Street. Isso era mesmo bom, com as filmagens aqui tão perto - comentou
Tottie.
- Era só um pequeno papel, infelizmente - explicou Henry. - Não dá
realmente para causar grande impressão, tendo apenas duas frases para
dizer.
- Isso depende de quão bom seja o ator - replicou Clara.
- A mamã e o papá estão estranhados - disse o menino, fitando-me com
um par de olhos escuros.
- Separados - corrigiu Clara. - Se bem que as formas modernas de casar
e descasar decerto causem estranheza. Sybil, ainda não te apresentámos
- acrescentou, dirigindo-se à mulher seca sentada na cadeira de
brocado.
- Meg, apresento-lhe Sybil Whitcliffe, sobrinha do Henry. O filho dela,
o Mark, herdou o monte da família, Underhill, e está a arrasar o espaço
para o transformar nalguma espécie de local para copos-d’água elegantes
e um hotel rural, pelo que ela escapou para aqui para poder tomar o
seu chá em paz.
- Muito gosto... - murmurou Sybil num tom ténue. Fazia-me lembrar
aquelas plantas que parecem mortas até que as pomos em água, altura
em que regressam verdejantes à vida. Parecia-me que teria uns cinquenta
anos e seria bonita se a deixassem de molho durante tempo suficiente.
A porta abriu-se e Den, ainda com o fato-macaco de linho castanho,
entrou, pegou num scone de queijo que comeu em duas dentadas e depois
tornou a sair.
Lass saltou para o chão e seguiu-o antes que a porta se fechasse.
- Está na hora do jantar dela, mais coisa, menos coisa - explicou Henry.
- Hoje na escola comemos douradinhos de peixe ao almoço - disse Teddy,
levantando o olhar de um livro que tinha aberto no colo. - Mas os peixes
não são retangulares, pois não? Eu perguntei isso a Miss Dawn e ela
disse-me: «Não comecemos uma das tuas longas conversas até acabarmos
de almoçar, Teddy. Agora come.»
- Eu nunca vi nenhum retangular, não - confirmei, começando a sentir
que tinha entrado por engano numa festa do Chapeleiro Louco. - Acho
só que os fazem com pedacinhos de peixe branco e depois lhes dão essa
forma.
- Está bem, porque se não seriam muito estranhos - disse Teddy.
Submeteu-me a um forte escrutínio. - Vais pintar a tia Clara?
- Vai, e o Henry também, mas a Meg está a recuperar de uma doença, por
isso precisa de muito descanso, ar puro e boa comida - disse-lhe Clara.
- O teu cabelo é muito verde - observou Teddy, com uma dessas mudanças
súbitas de tema típicas das crianças. - Eu também sei pintar, por isso
posso pintar-te com o cabelo verde.
- Isso seria maravilhoso, Teddy. Adoraria que pintasses o meu retrato.
- É um verde muito bonito - disse Henry com amabilidade.
Ele deveria tê-lo visto depois de Roz o ter tingido, quando estava mais
verde-esmeralda e não aquele tom desbotado de alga.
Olhou para mim com um ar pensativo.
- E os seus olhos têm um tom muito invulgar, minha querida, algures
entre o verde-claro e o turquesa... - Franziu o sobrolho. - Faz-me
lembrar outra pessoa que tinha os olhos mesmo dessa cor...
- Sabes, pensei exatamente o mesmo quando conheci a Meg - concordou
Clara. - Mas não me lembro onde os vi. Hei de lembrar-me.
Eu herdara da minha mãe o cabelo invulgarmente claro e a cor dos olhos
(ainda que o meu pai também fosse claro, se bem que de um louro mais
deslavado), mas parecia-me pouco provável que o caminho dela alguma
vez se tivesse cruzado com o dos Doome. Ainda assim, há coincidências.
- Não foram à Índia nos últimos anos, ou será que sim? - perguntei num
tom esperançoso.
- Não, há já... oh, talvez uns quinze anos. O tempo voa - disse Clara,
aceitando a mudança de assunto sem surpresa aparente.
A minha súbita centelha de esperança extinguiu-se: a minha mãe tinha
desaparecido por lá uns anos antes e, apesar de isso não ser incomum,
até então acabara sempre por tornar a aparecer. Desta feita, porém,
parecia simplesmente ter sumido, sem mais contacto algum.
- A minha mãe tem os mesmos tons que eu e desapareceu na Índia há uns
anos - expliquei. - Desde então que não temos notícias dela, pelo que
me perguntei simplesmente se os vossos caminhos poderiam ter-se
cruzado.
- Não, infelizmente, não - disse Clara.
- O River foi lá há uns anos, visitar uns amigos, e encontrou-se com
o proprietário do bar onde ela trabalhava. O homem ainda tinha uma mala
que ela deixara lá, com o passaporte e outras coisas, mas ela nunca
voltou para ir buscá-la.
- Um mistério total, então - disse Tottie, olhando para mim com
curiosidade.
- A Meg foi criada numa comuna das Montanhas Negras e o River é o seu
avô adotivo - explicou Clara. - Um senhor encantador. Virá passar umas
noites connosco para o Solstício de Inverno.
E eu, pensei, depois definitivamente fugiria com ele, se Lex Mariner
andasse por ali!
Mas não disse isso. O meu primeiro impulso, ao vê-lo, tinha sido
meter-me de novo na autocaravana e desaparecer, mas não podia fazê-lo.
Tinha aceitado a encomenda e pintaria o retrato de Clara. Depois, se
não tivesse completado o de Henry, voltaria para a Quinta com River,
prometendo voltar mais tarde, sem qualquer intenção de cumprir tal
promessa. Teria de acrescentar quaisquer toques finais já no estúdio.
- Coma outro scone - sugeriu Clara, e apercebi-me de que já tinha
devorado o que ela me pusera no prato. - Ainda faltam umas boas duas
horas para servirmos o jantar, por isso não vai perder o apetite.
- De facto, tenho uma fome surpreendente - admiti. - É capaz de ser
do ar frio lá fora. A temperatura pareceu descer rapidamente assim que
saí de Thorstane e subi pelas charnecas.
- Sim, temos o nosso próprio sistema climático aqui em Starstone Edge.
Estamos a uma altitude considerável, por isso no inverno é como viver
num globo de neve que uma mão gigante de vez em quando agita - disse
Henry poeticamente. Tinha uma voz agradavelmente leve e melódica.
- Só se pode conduzir pela Passagem Sinistra quando faz bom tempo, pelo
que, no inverno, nos valemos sobretudo da estrada até Thorstane, e mesmo
essa muitas vezes fica intransitável por causa de neve ou gelo -
explicou Sybil.
- Estamos muito mais acima do que Thorstane, mas os agricultores locais
costumam desimpedir a estrada sobre as charnecas ao fim de uns dias
- disse Clara num tom despreocupado. - E as linhas elétricas e
telefónicas raramente falham, se bem que também temos óleo para o fogão
e o aquecimento, e montes de toros, velas e lanternas, pelo que passamos
bem, se isso acontecer.
- Eu e o Den preferiríamos de longe não ter de preparar o jantar de
Natal num velho fogão temperamental à luz das velas - abespinhou-se
Tottie, e perguntei-me que papel seria o seu, e também o de Den, naquela
casa. Era tudo um pouco desconcertante e sentia-me demasiado cansada
para perceber as ligações. Fosse como fosse, esperava que se
esclarecessem dali a um dia ou dois.
- É melhor ir andando - disse Sybil, pousando o seu prato e
levantando-se. Vi que usava umas calças de montar e uma camisola grossa
com gola de polo. - Deixei o Juniper no estábulo e vai ficar demasiado
escuro para ver o caminho se não formos já.
- Eu acompanho-a - disse Tottie, seguindo-a para fora da sala.
- Nós já não temos cavalos, mas a Tottie muitas vezes pede um cavalo
emprestado à Sybil e passeiam as duas - disse Henry. - Os nossos
estábulos estão sempre disponíveis, para o caso de serem necessários.
- Eu sei montar - disse Teddy. - A Sybil pediu um pónei de Shetland
emprestado a uma amiga no ano passado e ensinou-me.
- Se for o Mark a decidir, os estábulos de Underhill não tardarão a
transformar-se em aposentos para hóspedes ou funcionários, e a coitada
da Sybil terá de pagar para que os seus cavalos possam pastar no prado
de cima - disse Clara.
- Dado que o George lhe deixou um bom estipêndio anual, não há qualquer
motivo para que não pague pela manutenção dos cavalos, pois não? - disse
Henry, num tom razoável.
- Mas a Sybil parece nunca ter dinheiro - respondeu Clara.
- Talvez seja apenas sovina ou tenha um vício secreto - sugeriu ele.
- Não me ocorre nenhum vício, para além de gastar demasiado em bolbos
para a primavera, que ela pudesse ter - replicou Clara, com um sorriso.
- A mim tampouco - concordou ele.
Clara virou-se para mim e explicou:
- O Mark estava a trabalhar no estrangeiro, em gestão hoteleira, quando
o irmão mais velho do Henry, George, morreu, aqui há uns dois anos.
A Sybil manteve a propriedade até que o filho finalmente decidiu deixar
o emprego e voltar.
- Mas primeiro tem uma data de planos para transformar Underhill num
negócio - ressalvou Henry. - Apercebeu-se de que teria de fazer
Underhill dar lucro para poder mantê-lo. E, se for como lugar para
casamentos, vai ter de ganhar esse dinheiro na curta temporada entre
a primavera e o início do outono, pelo que não há tempo a perder. -
Pôs-se de pé. - Acho que vou voltar um pouco para o meu escritório até
à hora do jantar, querida. - Inclinou-se para beijar a esposa e depois
sorriu-me com gentileza. - Imagino que queira conhecer o espaço e depois
instalar-se, Meg. Estou muito satisfeito por ter vindo. A Clara está
entusiasmadíssima com os retratos e vamos divertir-nos muito no Natal.
Esperava ter podido ir tratar da árvore com o Lex - acrescentou. - Mas
ele devia ter algo urgente para fazer na olaria e teve de voltar. Há
de telefonar.
Enquanto não aparecesse pessoalmente, por mim tudo bem.
- Isto deve ser tudo muito confuso para si, Meg - disse Clara. - O meu
sobrinho, o Lex, hoje trouxe-nos o Teddy da escola. Fica em Great
Mumming, onde fica a Terrapoter.
- Terracota? - disse eu, hesitante. Tinha passado a maior parte da
conversa um pouco à deriva, mas despertara à menção do nome de Lex.
- Não, Terrapoter... é o nome da firma dele.
- E... ele também vive aí? - perguntei com cautela.
- Sim, na casa ao lado da olaria, a Antiga Forja.
Isso era uma benesse. Talvez ele não fosse à Casa Vermelha enquanto
soubesse que eu ali estava.
- O Teddy pode ir despir o uniforme da escola enquanto eu lhe faço uma
pequena visita guiada pela casa e depois a Meg pode desfazer as malas
e descansar - disse Clara, levantando-se sem dificuldade do sofá
envolvente. Eu debati-me um pouco, tentando escapar às suas garras,
e depois segui-a.
Juro que aquele sofá estava a tentar engolir-me por completo. Preferia
não me transformar num esqueleto ressequido encontrado no fundo da
estrutura, como uma nova versão de uma história de fantasmas.
6
Verdejante
Clara avançou pelo corredor com o dobro da energia que eu alguma vez
possuíra, mesmo antes de ter adoecido.
- Bom, esta porta aqui à minha esquerda é do escritório do Henry, mas
vamos deixá-lo em paz por agora - disse ela. - Ele gosta da vista pela
janela lateral, que dá para os campos e para o reservatório lá em baixo.
Quando o tempo está limpo, também consegue ver Underhill, a casa da
família, no alto do vale, e a Starstone. Tem todos os seus pontos de
referência enquadrados numa só janela.
De súbito, ela virou para um corredor lateral, iluminado apenas por
uma lâmpada fosca num candeeiro de vidro opaco pintado com uma cena
holandesa de moinhos e mulheres de socas e xailes.
Quando a alcancei, tinha aberto a porta para um estúdio
surpreendentemente grande que devia ter sido acrescentado à casa cerca
de um século antes. O piso estava coberto de linóleo castanho antigo
e manchado, e um grande cavalete de estúdio com um design antigo ocupava
uma posição de destaque no meio, ao lado de uma mesa cheia de marcas
de uso e ainda com uma caixa de tintas, de tampa fechada, e uma grande
palete de madeira em forma de rim com resquícios fantasmagóricos e baços
da tinta que havia sido retirada dela. Perto encontravam-se uma
espátula plana, dois pincéis e um trapo, como se estivessem a postos
para o trabalho do dia.
Era uma versão artística do Mary Celeste.
A divisão era comprida e ao fundo estava um estrado para um modelo,
com uma cadeira grande e esculpida voltada para o cavalete. Os únicos
outros móveis eram umas mesas mais pequenas, um par de espreguiçadeiras
velhas e umas estantes praticamente vazias. Em cima de uma delas, um
pequeno e silencioso relógio de madeira fitava-me com tristeza.
Embora o estúdio estivesse desocupado havia muito, mantinha um leve
aroma a terebentina e óleo de linhaça que era perfume para as minhas
narinas. Eu não quero tintas acrílicas modernas: cheiram mal e as cores
são mortas.
Cortinas de um verde desbotado tapavam todas as janelas, mas lá no alto
eu via parte do céu azul crepuscular, através da grande claraboia.
- O pai da Tottie mandou construir o estúdio quando herdou a Casa
Vermelha - disse Clara, surpreendendo-me. - É claro que já tinha uma
certa idade quando a Tottie nasceu, pelo que morreu há muito tempo.
- O pai da Tottie? - ecoei.
- Sim, a Tottie é a última dos Gillyflower e comprámos-lhe a casa há
mais de trinta anos, com a condição de que continuaria a viver aqui.
- Não me tinha apercebido disso - respondi, antes de acrescentar: -
Não foi difícil para ela ficar na casa que tinha sido sua, depois de
a ter vendido?
Quero dizer, talvez parecesse metediça, mas aquilo era interessante.
- Oh, não, ela disse que era um alívio não ser responsável pela
manutenção de um casarão antigo e poder dedicar-se ao jardim e às suas
abelhas. É claro que já todos nos conhecíamos, o que ajudou, e depressa
nos entendemos. Imagino que seja muito parecido numa comuna, não?
Encontramos os nossos próprios interesses e o nosso lugar no grupo e...
homogeneizamo-nos, por assim dizer.
- Sim, isso é verdade - disse eu, pensando no assunto.
- O pai da Tottie tinha passado muito tempo em França e Itália,
aprendendo a pintar em vários ateliers, mas era uma espécie de
diletante. A fortuna da família vinha da cervejaria, mas ele vendeu
as Cervejas Gillyflower a uma empresa maior e passou a viver dos
rendimentos. Um pouco como o irmão do Henry, o George, que saiu do
exército assim que casou com uma herdeira e não tinha o menor juízo
com o dinheiro... se bem que o pai da Tottie não parece ter bebido
excessivamente, nem gastado em mulheres ou apostas, o que já é qualquer
coisa.
- Eu... pois suponho que seja! - Aquela franqueza espantou-me, e as
suas palavras também lançavam uma luz pouco edificante sobre o falecido
George Doome. Os irmãos eram obviamente o oposto um do outro.
Clara concentrou-se em questões mais práticas.
- Renovámos a instalação elétrica do estúdio juntamente com o resto
da casa quando a comprámos, e já houve uma remodelação depois disso,
pelo que tem muita luz. Instalámos todos estes candeeiros de parede.
Ela demonstrou e a parede comprida em frente transformou-se de súbito
numa manta de retalhos de pinturas de todos os tamanhos, do chão ao
teto e praticamente sem um centímetro de intervalo entre elas.
Aproximei-me para as examinar melhor.
- Foram todas pintadas pelo pai da Tottie?
- Sim, todas elas são obra de Adrian Gillyflower. Ainda há uma ou outra
pela casa e várias no quarto da Tottie, mas ela passou a maior parte
para aqui quando estava a tentar transformar o espaço numa pensão. O
que acha?
Eu via que, na maioria, eram retratos, ou naturezas-mortas de fruta
e flores, e o seu estilo parecia não ter sofrido qualquer influência
artística posterior ao século XVIII.
- Competente, mas pouco inspirado - respondi por fim, cautelosamente.
- Sim, também foi o que pensei. É possível aprender a técnica de qualquer
forma artística, mas nem toda a gente consegue instilar-lhe vida. Mas
a Tottie acha que o paizinho era um génio por descobrir, pelo que não
vamos desiludi-la.
- Não, claro que não, nem me passaria pela cabeça.
- Então, este estúdio serve-lhe? É claro que pode instalar-se aqui e
pintar-me e ao Henry em qualquer outro lugar da casa, se quiser. Veja
o que lhe parece amanhã, depois de estar instalada e de conhecer melhor
o espaço.
Saímos e ela indicou outra porta que dava para o seu escritório, com
vista para o jardim das traseiras, a pequena biblioteca, que
aparentemente era o domínio de Tottie, mas que ela usava sobretudo para
guardar os materiais para vários tipos de trabalhos manuais, e o
corredor que levava à sala de jantar formal, um átrio com um bengaleiro
e a porta para a estufa, a cozinha, a despensa e a lavandaria. Ouvia-se
um ligeiro estardalhaço de tampas de panelas e vozes, vindo nessa
direção.
- O Den e a Tottie estão a começar a preparar o jantar - disse ela.
- Deixemo-los. O Den é capaz de ser um cozinheiro muito inspirado, mas
a Tottie não tem imaginação nenhuma. Não foi educada para cozinhar e
limpar, o que foi parte da razão para que a pensão nunca tivesse tido
sucesso. Despejar um pão, manteiga e um frasco de compota em frente
aos hóspedes quando descem para tomar o pequeno-almoço e dizer-lhes
que se sirvam do café já feito em cima da placa elétrica, porque ela
ia tratar das abelhas ou fazer um pouco de jardinagem, nunca poderia
ter sido lá muito bem-visto.
- Suponho que não - concordei, se bem que, se me tivesse acontecido
a mim enquanto hóspede, até teria gostado bastante.
- Mas era compota caseira: ela aprendeu a fazer conservas e picles,
bem como vinho e hidromel.
- Ai, sim? O River faz uma espécie de hidromel medicinal, com o mel
das abelhas da Quinta.
- Então terão algo em comum de que falar quando ele nos visitar - disse
Clara. - A Tottie é oficialmente nossa governanta-barra-jardineira,
mas autodenominou-se assistente de cozinha ocasional do Den. O Den é
cá uma bênção! O Henry encontrou-o na Grécia, há anos, antes de termos
casado. Tinha acabado de sair da cadeia local (um pequeno
desentendimento qualquer num bar) e tem-se revelado insubstituível
desde então. É capaz de fazer o que quer que seja.
- A sério? - perguntei, a pensar que Clara e Henry pareciam atrair as
pessoas. Eu já começava a sentir que não se importariam nem um pouco
se eu também nunca me fosse embora de todo e me limitasse a incorporar-me
no estúdio, aparecendo apenas à hora das refeições.
Não que isso fosse provável, estando Lex Mariner à espreita...
- Então, a Tottie e o Den não... - interrompi-me, à procura da expressão
correta, e Clara fitou-me, intrigada. Depois o seu rosto aclarou-se.
- Oh, não, não têm nenhuma relação, são só bons amigos - disse ela.
Eu tinha pensado que pareciam um casal extremamente improvável, mas
essas coisas nunca se sabem!
- Aquela tatuagem no pescoço do Den é... interessante. Ele disse-me
que a fez em Brixton. Na prisão?
- É provável. Ele teve uma carreira bastante colorida antes de conhecer
o Henry, mas resumia-se a pequenos furtos e a não resistir a um carro
dispendioso se encontrasse um à mão de semear. Mas agora pode conduzir
o Jaguar antigo do Henry sempre que quiser pelo que já não faz isso.
Virou-se e encaminhou-se para a escadaria principal com um passo
estugado.
- Venha, vou mostrar-lhe o seu quarto e a casa de banho mais próxima
e depois deixo-a para que desfaça as malas antes do jantar.
Clara agarrou a feroz águia de madeira no poste da escadaria,
segurando-a pelo pescoço com um gesto familiar enquanto começava a
subir até ao patamar de onde um corredor partia para um lado e para
o outro.
- O quarto do Teddy, o meu e do Henry, e o do Lex ficam para a direita
- disse ela. - A Meg fica aqui à esquerda, perto do da Tottie.
- Julgava que tinha dito que o Lex não vivia convosco? - saiu-me,
alarmada.
- Oh, não, mas há uns anos viveu algum tempo connosco, antes de instalar
o seu negócio em Great Mumming. Mas muitas vezes passa cá fins de semana,
e também vem para cá no Natal, claro.
Pronto! Faria questão de partir com River depois do Solstício de Inverno
e só esperava que Lex se mantivesse longe até então. Eram só quinze
dias, pelo que decerto conseguiria fazê-lo? Deveria ter tão pouca
vontade de me ver como eu a ele.
O meu quarto ficava mesmo ao fundo do corredor e Clara abriu a porta
e acendeu a luz.
- Tem uma vista encantadora do reservatório, quando há luz suficiente
para se ver o que quer que seja - disse ela. - Há uma casa de banho
mesmo em frente e tem um lavatório no quarto, que é o mais parecido
com uma suíte que temos até agora.
- Está absolutamente ótimo - assegurei-lhe, porque era quase luxuoso,
comparado com muitos dos sítios onde eu já tinha pernoitado e, enquanto
crescia, River preocupava-se mais com a eliminação ecológica das águas
residuais das casas de banho do que com a conveniência.
Fosse como fosse, o quarto parecia-me encantador, com poucos vestígios
da escuridão gótica que em tempos deveria ser prevalecente, para além
de uma imponente cama de mogno com uma espécie de semicírculo de madeira
trabalhada a sobressair por cima da cabeceira, da qual pendiam umas
cortinas pesadas e recolhidas de brocado vermelho desbotado. Parecia
absolutamente adequada para um velório e eu teria de resistir à tentação
de dormir de barriga para cima, com os braços cruzados sobre o peito
e os dedos dos pés a apontar para o teto.
A cor dominante da decoração era um rosa-velho carregado... e fiquei
mesmo a desejar ter pintado o cabelo dessa cor em vez de verde.
- É encantador - exclamei. E também era quente, o que não acontecera
em várias outras casas de campo em que passara algum tempo enquanto
pintava quadros encomendados.
- Aquela pequena porta ali dá para umas escadas que a levarão a um dos
torreões... o que é em forma de pimenteiro. É como uma salinha pequena
só para si.
Parecia algo digno da Rapunzel, só que eu não tinha cabelo
suficientemente comprido para o papel.
- Há muitos mais quartos no sótão, que antigamente eram dos criados,
mas agora usamo-los apenas para guardar coisas.
- Então e o Den? - perguntei, curiosa.
- Começou por viver aqui, mas depois fizemos-lhe um apartamento por
cima da garagem. Ele gosta de ter a sua privacidade e assim também pode
cozinhar lá o tipo de comida que aprecia: salsichas com puré de batata,
esse tipo de coisa. Desconfio de que de vez em quando também dá à Tottie
uma sanduíche de bacon, mas não fazemos perguntas.
- É um pouco assim na Quinta, mas com peixe - disse-lhe. - Eu e o River
comemos, quando não estamos em casa, mas não falamos disso lá.
- Ainda chama «casa» à Quinta - observou ela com interesse. - Deve ser
onde tem as suas raízes, tal como as minhas e as do Henry levam
diretamente a Starstone, mesmo que agora estejam inundadas.
Lancei-lhe um olhar intrigado e ela acrescentou:
- Eu nasci e vivi em Starstone até aos meus oito anos, quando construíram
o reservatório. O meu pai era o vigário da aldeia. Eu e o Henry
conhecemo-nos quando éramos crianças e depois voltámos a encontrar-nos
em Oxford.
E agora viviam na Casa Vermelha, com vista para o lugar que contivera
as suas casas... presumivelmente, ainda conteria, sob as águas do
reservatório.
- Desça para a sala de estar quando estiver pronta, Meg - disse-me.
- Jantamos às sete durante a semana, para deitarmos o menino a uma hora
razoável.
As minhas malas estavam no meio da carpete desbotada. Quando finalmente
fiquei a sós, tomei a firme resolução de não reabrir a caixa de Pandora
que era Lex naquele momento, deixando-a para depois, quando o choque
inicial de o ter encontrado ali e descoberto que fazia parte daquela
família se tivesse dissipado.
Guardei tudo no grande roupeiro e numa cómoda que era quase da minha
altura; depois lavei-me na casa de banho em frente, que era antiquada
mas tinha um duche elétrico instalado por cima da banheira de pés. Os
radiadores estavam todos quentes, e a água também. Clara e Henry
obviamente gostavam de conforto e tinham os recursos necessários para
aquecerem uma casa tão grande.
De novo no quarto, ponderei o que usar para jantar. Calculei que
qualquer coisa fosse aceitável, e ainda bem, já que tinha deixado os
Dior e os Balenciaga em casa e, quanto ao vestido de seda pregueada
Fortuny, estava na lavandaria...
Na maior parte do tempo, uso calças de ganga e ténis All Star, e as
minhas roupas elegantes são uma mistura eclética de estilos que vão
do hippy ao vagamente na moda, este último regra geral por acidente.
Naquela noite, vesti uma túnica de veludo verde-água e umas calças
verdes mais escuras, e pus uns brincos de malaquite e uns sapatos
fechados de veludo coçado com uma tira e tacões chineses. Era uma
sinfonia verdejante dos pés à cabeça.
Perguntei-me se na mitologia também haveria uma Dama Verde, tal como
havia um Homem Verde. Tinha de confirmar com River.
Parecia-me que tanto Clara como Henry eram anfitriões atenciosos e
amistosos, e deixei o meu quarto com uma expetativa calma em relação
à noite que me esperava.
7
Na Sopa
Antes de descer, não consegui resistir a espreitar a sala na torre em
forma de pimenteiro. Uma estreita escada em caracol levou-me até um
minúsculo espaço circular com uma janela de fresta à frente, para o
caso de me apetecer treinar um pouco o tiro com arco e flecha. Estava
singelamente mobilada, com um cadeirão confortável de tecido, uma
banqueta e uma pequena mesa.
O espaço era tão bonito que me deixei ficar mais tempo do que deveria,
pelo que, quando finalmente cheguei à sala de estar, vi que já todos
se encontravam ali, a tomar xerez ou uísque com água mineral, tendo
eu recusado tanto um como outro. Teddy ofereceu-se generosamente para
partilhar o seu sumo de laranja comigo.
- Não, obrigada, Teddy - disse eu, aceitando antes um copinho cónico
de pé alto de hidromel dourado oferecido por Tottie, que o fizera.
Beberiquei-o com cautela, mas era ainda melhor do que feito por River
com uma infusão de ervas, segundo uma receita gaélica muito antiga,
se bem que eu nunca lho dissesse: ele tem muito orgulho no seu hidromel.
Teddy tinha trocado o uniforme da escola por uma camisola às riscas
de todas as cores do arco-íris, umas calças de fato de treino escuras
e umas pantufas do Rato Mickey com orelhas com volume.
Viu-me a olhar para elas e disse:
- Eu não gosto do Rato Mickey, mas o meu pai mandou-as da América e
só agora é que me servem porque ele se enganou no número. A Clara disse
que eu devia usá-las até os meus pés voltarem a crescer e depois já
posso escolher outras.
- Eu gosto - disse eu. - Se alguém me enviasse umas pantufas do Rato
Mickey, eu usava-as.
- Ele não sabe de que tamanho sou porque nunca me visita - explicou
ele.
- Mas é bom que te mande presentes. E já te visitou, mas eras tão pequeno
que já te esqueceste - disse Clara. Teddy não parecia convencido. -
O pai do Teddy é o Radnor Vane, um ator norte-americano, se bem que
eu acho que agora se dedica à realização.
- Conheceu a Zelda, a minha sobrinha, há uns anos, quando veio cá -
acrescentou Clara.
- A Zelda partilha um apartamento pequeno com outras três atrizes em
Londres, que não era nada indicado para criar um bebé, sobretudo por
passar tanto tempo em digressão. Por isso, o Teddy vive connosco e a
Zelda vem quando pode - disse Henry.
- A mamã vai passar o Natal connosco - atalhou Teddy. - Pensava que
ia ser a Branca de Neve numa pantomina, mas não conseguiu o papel.
- Bem, que sorte a nossa - comentou Clara num tom animado.
Henry ainda estava a usar as calças de bombazina deslavada, a camisa
azul e a camisola de lã com o típico padrão de Fair Isle que usara antes,
mas penteara o cabelo branco para trás, revelando o rosto elegante,
simples e com uma estrutura óssea interessante... um rosto que seria
muito bom pintar.
Clara e Tottie tinham mudado de roupa para jantar; a primeira envergava
um cafetã comprido vermelho e preto que parecia feito de duas colchas
unidas pela costura lateral. Tottie vestia umas calças de veludo preto,
um pouco lustrosas e gastas no traseiro e nos joelhos, e uma blusa de
seda lilás, que não lhe favorecia de todo a compleição. Por cima usava
um avental às flores cheio de folhos, parecendo só então dar por ele,
pois tirou-o e enfiou-o atrás de uma almofada.
Imediatamente atrás da porta, alguém desatou a bater num gongo, ao que
parecia um sinal para que todos esvaziassem os copos, os pousassem e
se pusessem de pé. Ou de patas, no caso de Lass. Não a tinha visto debaixo
da mesa de centro até ela sair dali.
- Jantar! - anunciou Henry num tom alegre. - Venha, Meg. Estou faminto
e calculo que também esteja, depois de uma viagem tão longa e fria.
Den encontrava-se no corredor, com um gongo de cobre amolgado e
brilhante numa mão e a baqueta na outra. Tenho a certeza de que o ar
ainda estava a vibrar; o gongo certamente estava.
- Despachem-se antes qu’a sopa arrefeça - disse ele. - Eu vou buscar
o pão, não?
Desapareceu cozinha adentro e todos fomos para a sala de jantar. Henry
e Clara ocuparam cada um uma extremidade da mesa comprida, que tinha
umas pernas trabalhadas e bolbosas sob uma incongruente toalha oleada
às flores. Teddy, elevado por um grande almofadão, sentou-se ao lado
de Tottie, enquanto eu fiquei à sua frente, junto a Henry. Ainda
caberiam bastantes mais pessoas à volta daquela mesa.
Como se me adivinhasse os pensamentos, Tottie disse:
- Isto é o mais pequeno que esta mesa fica, mas dá para a tornar muito
mais comprida com tábuas.
Havia uma terrina de sopa e uma pilha de tigelas em frente a Clara,
que levantou a tampa e começou a servir a sopa nas tigelas, passando-as
por nós.
- A sopa tem bocados duros de pão? - perguntou Teddy com um ar
desconfiado.
- Não, não é do género de sopa em que se põem croutons, querido -
disse-lhe Clara.
- E, mesmo que fosse, podes sempre afundá-los até que fiquem moles -
ensinou-lhe Tottie. - É o que eu faço.
Den entrou com um cesto de filigrana de prata cheio de pães e deu a
volta à mesa com uma pinça de baquelite verde, colocando um pão no prato
ao lado de cada um. Quando tirei o meu guardanapo da sua argola de
madeira trabalhada, descobri que era um quadrado de papel de cozinha.
- Acabaram-se os toalhetes, não foi? - explicou Den, depositando um
pão quente no meu prato, cujo cheiro a pão fresco me estimulou as
narinas.
- Guardanapos - corrigiu Clara.
- Guardanapos para si - respondeu Den num tom amistoso. - Guardanapos
é p’ós bebés.
- Se fossem toalhetes, as argolas para guardanapos não se chamariam
assim - observou Clara.
Era obviamente um diferendo de longa data, porque Den entoou
guturalmente:
- Cada cabeça, sua sentença...
- Não pôs um prato para si - comentou Henry. - Não nos acompanha esta
noite, Den?
- Ná, já comi feijão com torradas, não? - disse ele. Tinha trocado o
fato-macaco castanho por um grande avental às riscas azuis e brancas,
que lhe envolvia a figura esguia do pescoço aos tornozelos, como um
estranho manto oriental. - Sou capaz de levar um bocado de sopa e do
pudim para a minha ceia.
- Muito bem.
- Volto p’a casa depois de pôr a loiça na máquina - acrescentou Den.
- Há uma coisa que quero ver na televisão, não?
- Temos um televisor na sala do pequeno-almoço, mas o Den tem o único
ecrã de tamanho decente - indicou-me Clara. - É viciado em futebol,
dardos e telenovelas.
- Ele consegue ver televisão por causa dos postes que crescem nas
colinas mais altas - explicou-me Teddy. - Crescem lá para refletirem
ondas invisíveis.
- Os satélites também as refletem e os postes não crescem lá, as pessoas
é que os põem lá para comunicar - disse Tottie num tom instrutivo.
- Como a Starstone? - perguntou Teddy.
- Sim, de certa forma, se bem que não se saiba se as pessoas queriam
comunicar umas com as outras ou com algo que não conheciam - disse Henry,
interessado, e depois explicou-me: - A lenda sobre a pedra na colina
diz que se, no Solstício de Inverno, se conseguir ver a estrela mais
brilhante, Sírio, pelo V invertido das pedras (na verdade são duas
pedras, apoiadas uma na outra), a boa fortuna abençoará o vale. É claro
que era preciso vê-la a partir da aldeia de Starstone, e já não é
possível ver a partir desse ângulo.
- A menos que se seja um peixe - atalhou Teddy, tentando ajudar.
- É bem verdade, Teddy - concordou Henry. Depois prosseguiu: - A pedra
encontra-se diretamente numa antiga linha de ley... sabe o que são,
minha querida?
- Sim, o River dá-lhes muita importância.
Eu também tinha lido o livro clássico sobre essas linhas, The Old
Straight Track.
- Então sabe que uma linha de ley une vários locais antigos, monumentos
ou acidentes geográficos em linha reta... demasiados para serem mera
coincidência. Originalmente, a Starstone alinhava-se com um monólito
esculpido no cemitério da aldeia inundada (agora está no terreno de
Underhill), depois com a igreja de Great Mumming, que tem alicerces
antigos, e depois também com o cavalo branco esculpido na colina por
cima de Little Mumming, embora se debata muito a idade deste último.
É capaz de ser relativamente recente.
- Eu sempre achei as linhas de ley fascinantes - disse eu. - Há algo
mágico em todas estas linhas invisíveis que cruzam e ligam a paisagem.
Seguiu-se uma pausa enquanto todos comíamos a sopa deliciosa e Tottie
ralhava com Teddy por espalhar a manteiga como se fosse betão no seu
pãozinho.
- O Den diz que a manteiga faz bem e ainda me deixa pôr-lhe açúcar em
cima quando como na cozinha - respondeu ele, num tom esperançado.
- Eu vou fingir que não ouvi essa revelação de apodrecer dentes - disse
Clara.
Henry limpou o fundo da tigela de sopa com o último pedaço de pão e
depois retomou a sua aula sobre a história da Starstone.
- A cerimónia que se realiza na noite do Solstício de Inverno tem raízes
muito antigas.
- Não é grande cerimónia, querido - disse Clara. - Só cinco homens de
velhas famílias da zona, que sobem até à pedra, contornam-na e... bem,
dizem umas quantas palavras.
- Versos burlescos... e agora são quatro homens e uma mulher, desde
que eu assumi o lugar, sendo a última dos Gillyflower - comentou Tottie.
- É verdade, os Gillyflower começaram a participar quando uma família
local mais antiga se extinguiu - concordou Henry.
- Há uma fogueira no socalco por baixo das pedras, onde o público se
reúne - disse Clara.
- Sim, e não se esqueçam do sexto participante, o Velho Inverno - lembrou
Tottie. - Ele está à espera numa fenda entre as rochas na parte de trás
do socalco, Meg, e, quando os outros sobem, aparece de súbito e dá a
volta à fogueira, até que eles tornam a descer. Então o Homem Verde,
que deve representar o Ano Novo, ou a primavera ou algo assim,
expulsa-o.
- Tudo se baseia em renovação, renascimento, fertilidade e esse tipo
de coisa - comentou Clara. - A aldeia inteira costumava aparecer, mas
já restam muito poucos dos habitantes originais, pelo que agora se reduz
basicamente aos participantes e às suas famílias. Depois todos vão até
Underhill, onde se reúnem e tomam hot toddies e bolo de melaço.
- A Sybil manteve o costume desde que o George morreu, mas será que
o Mark fará o mesmo? - perguntou Tottie. - E devia ser ele o Homem Verde,
em vez do Henry, agora que voltou.
- Bem-visto, Tottie - assentiu Henry. - Tenho de falar com ele acerca
disso, porque ainda que não me tenha importado de ir no seu lugar, este
ano seria agradável ficar apenas a assistir.
- Eu perguntei-lhe e ele disse-me que não estava nada interessado nessas
tretas velhas - disse Clara.
- O George também não estava - contrapôs Henry -, mas como era
supersticioso, fazia-as na mesma. E o Mark é capaz de se deixar
convencer. Vou falar com o rapaz.
- Devias mesmo, porque subir para ali às escuras e com um frio de rachar
de mantos e uma data de coisas verdes e frondosas não te vai fazer bem
nenhum com a idade que já tens, Henry - insistiu Clara.
- Se tiver de o fazer, uso a minha roupa térmica por baixo.
- Eu não passo frio, porque, para além da máscara de pássaro, é de
tradição usar uma capa, que dá para usar montes de roupas quentes por
baixo - explicou Tottie. Começou então a contar os membros do grupo,
servindo-se dos dedos. - Eu, o Henry, no lugar do Mark, o Bilbo, o Fred,
do Lúcio de Duas Cabeças, e o Len Snowball, que é o jardineiro e criado
de Underhill... e depois, como o último membro de outra velha família
se foi embora, da última vez o Lex teve de fazer de Velho Inverno.
Eu estava ainda a pensar se teria ouvido corretamente o nome Bilbo
quando ela voltou a mencionar Lex. Se participava na cerimónia, seria
impossível evitá-lo. De facto, parecia que todas as conversas da Casa
Vermelha iam dar a Lex, pelo que eu tinha mesmo de confessar que o
conhecia - ou que o tinha conhecido.
Porém, a conversa tinha avançado e Tottie estava a dizer:
- O Mark disse à Sybil que, se ela quer que o Len lhe dê uma mãozinha
com os cavalos, vai ter de ser ela a pagar-lhe. Mas eu acho que, se
chegar a tanto, nós as duas conseguiremos dar conta dos cavalos -
acrescentou, à vontade. - Já fazemos a maior parte do trabalho, seja
como for.
A sopa já tinha sido levada havia muito e tínhamos comido o prato
principal, um guisado de vegetais muito delicioso com pastéis salgados.
Eu começava a sentir a cintura apertada e Den acabava de trazer o pudim
e um grande jarro cheio de um creme amarelo.
- Vá lá para o seu apartamento, Den - disse-lhe Clara -, ou ainda perde
o início da sua telenovela. Nós levantamos a mesa e pomos a loiça na
máquina.
- Mas o café da Tottie é asqueroso - lembrou ele.
- Mas o meu não é - replicou Clara. - Ponha-se a andar!
- Que lata! - exclamou Tottie enquanto ele se afastava, já a desatar
os atilhos do avental comprido às riscas.
Por esta altura, eu começava a sentir-me extremamente ensonada. A
doença, a viagem longa e o choque de tornar a ver Lex Mariner... tudo
isso se juntava e me deixava tonta, com as vozes a chegarem-me como
numa espécie de sonho.
- Minha querida, está acabada - disse Clara quando nos levantámos. -
É melhor ir já para a cama e ver se tem uma boa noite de sono.
Eu estava demasiado cansada para resistir e a ideia de ir para a cama
parecia-me tão tentadora que, declinando o chocolate quente que ela
me oferecia, foi mesmo isso que fiz.
E não fiquei a remoer sobre o passado nessa noite, dormindo antes como
se estivesse morta, na minha cama que parecia um catafalco... muito
à semelhança da esposa extremamente defunta de Lex, Lisa.
Clara
Éramos uma comunidade autossuficiente no vale, ajudávamo-nos uns aos
outros em alturas difíceis e criávamos os nossos próprios
entretenimentos, na maioria ligados ao ano eclesiástico e às estações.
A uma altitude tão elevada, muitas vezes Starstone ficava bastante
isolada desde o outono até à primavera - e como adorávamos a liberdade
que tínhamos quando a professora não conseguia chegar, retida em
Thorstane!
Havia um lago no terreno de Underhill, onde nós e as outras crianças
da aldeia patinávamos quando gelava por completo, e não faltavam
encostas para descermos de tobogã.
Grandes pingentes de gelo pendiam de todos os beirais e dos parapeitos
das janelas, já que nessa altura o aquecimento central era uma raridade.
Partíamos um pingente e segurávamo-lo nas mãos até que começava a
derreter e as nossas luvas tricotadas ficavam empapadas e a cheirar
a lã molhada...
De volta à cozinha do vicariato, a aquecer junto à salamandra, assávamos
castanhas numa pequena pá de metal perfurado até a doçura suave rebentar
as cascas furadas.
Prazeres simples...
O Natal não era tanto uma questão de consumismo em massa e de comer
e beber em excesso, mas antes uma época mágica que começava com a
cerimónia do Solstício do Inverno no final de dezembro, continuava com
as missas de Natal, a noite da Natividade e cânticos, terminando apenas
no Dia de Reis.
As origens da Starstone na colina e da cerimónia anual do Solstício
de Inverno perdiam-se nas brumas do tempo, mas toda a aldeia
participava. Lembro-me da excitação da fogueira no planalto abaixo do
cume, das figuras estranhas que executavam o seu ritual à luz de tochas
à volta da pedra e de ser levada para casa, meia a dormir, pela noite
escura.
Se o tempo o permitisse, levavam-nos a Great Mumming mesmo antes do
Natal, e as montras das lojas eram maravilhosamente empolgantes: as
pilhas de maçãs e tangerinas a brilhar como joias na mercearia, a
exposição de caixas de bombons com laços na loja dos doces... já para
não falar dos encantos da loja de brinquedos!
A mãe de Henry era uma senhora frágil e delicada que morreu jovem, mas
adorava o Natal, e a árvore de Underhill era sempre a maior e a mais
excentricamente decorada da aldeia. Terá sido isso a suscitar a paixão
de Henry pelas tradições natalícias e o seu interesse por bolas de vidro
antigas.
Também tínhamos uma árvore no vicariato, e era maravilhoso decorá-la
com a coleção vitoriana de bolas de vidro, sinos, cornetas, pássaros
e pingentes de gelo, que, durante o resto do ano, ficava embrulhada
em papel de seda. Tenho todos esses objetos - ou melhor, fazem parte
da extensa coleção de Henry.
8
Velhos Tons
Na manhã seguinte, depois de uns pesadelos confusos em que tentava
escapar a um monstro nebuloso mas aterrorizador, com a fuga dificultada
por profundos montes de neve contra os quais me debatia em vão, voltei
lentamente à superfície escutando lobos a uivar...
Eu tinha a certeza de que já não havia lobos no Reino Unido, pelo que,
ao fim de uns momentos atarantados, percebi que os uivos, na verdade,
deveriam ser o vento a soprar agudamente pela chaminé. Também fazia
abanar as janelas com caixilhos em forma de diamante, mas, como estavam
atrás de painéis de vidro duplo, nem uma corrente de ar agitava as pregas
abertas das cortinas de veludo.
Parecia-me recordar que os lobos também tinham entrado no meu pesadelo,
pelo que o meu subconsciente deveria ter dado pelo vento daquela noite
e, como estava enterrada debaixo de um edredão grosso de penas, isso
devia corresponder aos montes de neve. A antiga colcha de cetim roxo
que estivera por cima, como uma camada extra ainda que absolutamente
desnecessária de isolamento, ou deslizara para o chão, ou fora atirada
pela minha agitação, pois encontrava-se num monte informe ao lado da
cama.
Encostei-me às almofadas fofas e pensei na minha chegada na tarde
anterior e em Lex Mariner.
Nunca tinha esperado voltar a vê-lo, nem alguma vez quisera que isso
acontecesse. Ele deveria ter ficado firmemente enterrado no meu
passado, em vez de regressar bem mais de uma década depois, trazendo
consigo uma memória que eu fizera os possíveis por esquecer.
Agora tornava a sentir a dor e a zanga desse tempo tão distante, e apesar
de não ter a consciência completamente tranquila quanto ao meu
comportamento naquela noite que partilháramos, o episódio fora
distorcido e exageradíssimo por Lex e pelo seu amigo Al.
Na verdade, se Al não me tivesse procurado no meu estúdio na faculdade
depois de a mulher de Lex, Lisa, ter morrido para me dizer exatamente
o que pensava de mim, eu não teria ficado a conhecer os papéis tanto
de bode expiatório como de Dalila que me tinham sido atribuídos.
Acho que o que me tinha magoado mais era que Lex devia ter contado a
Al tudo o que acontecera... ou o que se lembrava, pelo menos.
Agora, deparar-me com ele de uma forma tão inesperada tinha reavivado
tudo, como se tivesse acontecido no dia anterior em vez de - fiz um
rápido cálculo mental - catorze anos antes.
Qual seria a probabilidade de o encontrar ali, nos ermos do Lancashire?
Infinitesimal, teria eu pensado. E ele tinha olhado para mim como se
o seu pior pesadelo tivesse regressado para o atormentar também, embora
talvez isso se devesse em parte ao facto de ver-me o recordar
subitamente da dor de perder Lisa.
Depois de ela morrer, ele só tinha regressado uma vez à faculdade, para
recolher parte do seu trabalho e, quando nos vimos no corredor, dera
meia-volta e desaparecera antes de eu poder transmitir-lhe os meus
pêsames - pois Lisa fora uma pessoa luminosa e bela, tanto por dentro
como por fora. Na altura, eu tinha ficado desconcertada e sentida, mas
depois, quando Al me encurralara e, num arroubo furioso e imparável,
me dissera o que pensava de mim, eu simplesmente nunca mais quisera
ver ou sequer pensar em qualquer um deles.
Que jovens éramos! Eu tinha somente vinte e dois anos e Lex e Lisa eram
apenas um ou dois anos mais velhos que eu. Mas eu não era a pessoa que
Lex me considerara nessa altura, e mudara ainda mais nos anos passados
desde então. Para começar, tinha uma noção muito melhor da tragédia
da perda...
Qualquer que fosse a emoção que o meu aparecimento súbito suscitara
em Lex, fora suficientemente poderosa para o fazer virar costas e ir
embora sem dizer palavra, como uma horrível repetição da última vez
que nos víramos.
E, se eu tivesse nem que fosse um pingo de bom senso, teria feito o
mesmo: voltaria para a autocaravana e partiria, enviando depois alguma
desculpa a Clara. Agora que perdera a minha oportunidade de fazer uma
retirada rápida, estava presa ali até depois do Solstício, no dia 21.
De repente, duas semanas pareciam imenso tempo.
Se Clara e Henry pudessem posar para mim vezes suficientes, estava certa
de que conseguiria adiantar grande parte dos dois retratos até então,
pois, após completar o desenho inicial na tela, usava uma técnica forte
e quase impressionista com uma espátula para aplicar a tinta. Quando
estava inspirada, por norma terminava o rosto em duas sessões e o resto
em quatro ou cinco... ou ao meu próprio ritmo, de volta ao estúdio.
Não tinha realmente confirmado que passaria ali o Natal, pelo que
poderia dizer que me tinha apercebido do quanto sentiria a falta do
Festival do Yule na Quinta, com toda a minha família afetiva, coisa
que era verdade, por mais sedutora que tivesse sido a ideia de um Natal
tradicional em família, antes de me inteirar da presença de Lex.
E também já desconfiava que muitas das tradições da Casa Vermelha se
revelariam invenções dos seus habitantes, que nem por isso deixariam
de ser divertidas.
A imagem do rosto de Lex no momento em que se virara e se apercebera
de quem chegara à Casa Vermelha no dia anterior regressava-me à mente
sem que eu a chamasse ou desejasse. Era difícil definir a sua expressão.
Choque? Zanga? Talvez até algum desprezo?
Ainda assim, agora que sabia que me encontrava ali, provavelmente
evitaria o local até eu me ir embora e, se aparecesse, seria eu a
recolher-me.
Suspirei. De nada valia ficar ali deitada a remoer em vão tudo aquilo.
Quanto mais depressa preparasse o meu material de pintura e avançasse,
melhor!
Tomei um duche, perdendo mais uma camada de verde do cabelo, e vesti
umas calças de ganga, uma T-shirt e uma túnica tricotada larga e às
riscas, com uns bolsos que davam muito jeito. Todas as peças estavam
indelevelmente marcadas por tinta a óleo, lembranças permanentes de
retratos passados - memórias mais felizes.
Enrolei o cabelo num carrapito alto - estava suficientemente comprido
para isso e assim não me caía na cara enquanto trabalhava - e fiquei
pronta.
Antes de descer, olhei pela janela, vendo, para além das copas de muitos
abetos a oscilar majestosamente, o vale inundado. A superfície baça
cor de peltre da água espelhava melancolicamente as colinas em redor
e os pinheiros escuros, que se amontoavam junto à margem, como se cada
um desafiasse os olhos a mergulhar na água gelada. Faziam-me lembrar
o bosque na Comissão Florestal ao lado da Quinta, que uns anos antes
despontara subitamente com trilhos para caminhantes e um café num chalé
que até tinha um centro para visitantes.
Sentia-me bastante culpada enquanto descia as escadas, por ser tão
tarde. A casa estava silenciosa, à exceção do relógio de pé alto que
tiquetaqueava pesadamente no corredor.
Clara tinha-me dito que ao pequeno-almoço e ao almoço cada um se servia
na cozinha, pelo que atravessei o corredor escuro e abri a porta ao
fundo, deparando-me com luz, conforto e a fragrância de pão quente de
fazer crescer água na boca.
- Bom dia, minha querida - disse Clara, com uma fatia de pão com compota
a caminho dos lábios. - E está com um ar muito trabalhador.
- Desculpe ter descido tão tarde - disse-lhe.
- Não há que pedir desculpa, estava cansada e precisava de repousar
- tranquilizou-me. - O Den e a Tottie levaram o Teddy à escola e depois
vão fazer umas compras. A Tottie fica sempre com mentalidade de cerco
nesta altura do ano, com medo de que fiquemos isolados pela neve ou
pelo gelo, pelo que enche a despensa e o congelador até rebentarem pelas
costuras.
- É costume isso acontecer? - perguntei, ansiosa, pois tal poderia
dificultar-me a fuga. Pensando bem, River até poderia não conseguir
chegar a Starstone.
- Acontece com frequência, mas a estrada para Thorstane costuma ser
desimpedida ao fim de uns dias. Mas uma vez a neve deixou-nos isolados
durante uma semana, na Páscoa, e a Tottie nunca mais se esqueceu disso!
- Acho que eu também não o teria esquecido - respondi, a pensar que
a minha autocaravana alta e estreita decerto não estava preparada para
condições difíceis na estrada.
- Hão de voltar não tarda, tenho a certeza, e depois o Den pode ajudá-la
a trazer o seu equipamento de pintura.
- Oh, não é preciso. Não tenho nada pesado e estou habituada a
carregá-lo.
- Bem, primeiro coma qualquer coisa. O café no fogão ainda está quente
e o pão acabou de sair do forno. Temos uma dessas máquinas de fazer
pão e o Henry e o Den divertem-se muito a experimentar tipos diferentes
de massa. Se os homens precisam de ter um hobby, ao menos que sirva
para produzirem algo delicioso. Este estava tão saboroso que me pareceu
uma pena torrá-lo.
- Eu também vou comê-lo assim mesmo - concordei, e barrei manteiga e
um pouco do mel de Tottie no meu.
De repente, lembrei-me que Clara tinha dito que Tottie era uma
entusiasta das compotas, das geleias e dos picles e ocorreu-me que o
meu cesto de doces e chutneys talvez fosse um pouco redundante. Mas
apostava que não teriam um chutney de malagueta capaz de os deixar de
cara à banda.
- O Henry gosta de trabalhar cedo, mas agora está na sala da manhã a
fazer o seu tai chi - disse ela. - A Lass está a vê-lo. Ela acha que
deve ser alguma espécie de jogo, mas não sabe como participar.
Dei uma dentada no pão com mel e mastiguei pensativamente. Aquela casa
não se parecia com nenhuma em que eu tivesse ficado enquanto pintava
um retrato, ainda que não fosse mais estranha do que crescer numa comuna
cheia de excêntricos. Na verdade, já me sentia bastante à vontade...
ou sentiria, não fosse a sombra do tamanho de Lex a pairar sobre mim.
Pouco depois, Clara retirou-se para o seu escritório, dizendo que ia
ditar o capítulo seguinte do policial que andava a escrever, o que
estimava que lhe tomasse cerca de uma hora, após o que me mostraria
o resto das divisões do piso térreo e poderíamos falar de quando
faríamos a primeira sessão e de onde eu quereria pintá-la.
Também acrescentou que depois teria de trabalhar, pelo que eu não sabia
o que consideraria ela que era escrever um policial! Talvez fosse um
passatempo?
Levei a segunda chávena de café para o estúdio e constatei que a luz
ali era bastante boa, sobretudo tendo em conta que estávamos em
dezembro. Pela claraboia via um pedaço de céu azul, com nuvens
esfiapadas a passar, mas o vento tinha parado de uivar e, em vez disso,
limitava-se a emitir alguns gemidos descontentes, como que por
obrigação.
Mas ainda parecia estar um frio tremendo lá fora, pelo que vesti o meu
anoraque de penas antes de ir procurar a autocaravana, que encontrei
estacionada nas traseiras da casa, num espaço com chão de gravilha
protegido pela garagem dupla, pelo estábulo e por uma moita de coníferas
um pouco maltratadas.
Levei o meu material de leitura usando a porta das traseiras para o
átrio do jardim, resistindo ao apelo da estufa mais adiante, com a sua
massa de vegetação que se acumulava e pressionava longos dedos em forma
de palmeiras contra o vidro embaciado.
Imaginava que também fosse território de Tottie, como o jardim, e estava
interessada em saber o que ela cultivaria ali.
Ainda não sabia ao certo onde colocaria o meu cavalete, mas entretanto
o velho estúdio estava ali, a postos, e depois de passar o material
do proprietário original para uma das prateleiras vazias, ali deixei
o meu.
Havia algo que me apaziguava a alma ao dispor os materiais do meu ofício:
os lápis pretos e suaves e a massa pão, uma enorme caixa de madeira
de óleos, uma palete e o tento - uma cana com montes de fita-cola à
volta da ponta para formar uma bola, que eu usava para manter o braço
e a mão afastados da superfície molhada enquanto trabalhava.
Quando levei as duas grandes telas que seriam para pintar os retratos
de Henry e Clara, a brisa tentou levar-me, usando-as como velas.
A última carga incluía umas quantas lâmpadas boas com tripés, do género
usado por fotógrafos, e que no passado me tinham sido imprescindíveis.
Tentei mudar a cadeira de sítio no estrado e apontar-lhe as lâmpadas,
mas não tinha a certeza de ir pintar Clara aí, ou Henry, ou cada um
nos seus respetivos escritórios, que presumivelmente estariam cheios
de artigos significativos para eles e impregnados das suas
personalidades igualmente fortes mas muito diferentes.
À luz do dia, o estúdio era bastante agradável, com as paredes pintadas
de um tom suave de cinzento e mobilado com um par de espreguiçadeiras
velhas mas confortáveis, bem como a de veludo e madeira trabalhada em
cima do estrado. O próprio estrado estava parcialmente coberto por um
tapete de esplendor desbotado, que decerto seria demasiado valioso para
estar de forma tão descuidada no estúdio de um artista.
O chão de linóleo tinha um odor próprio, agradável mas indescritível,
e evocava uma memória de fazer placas de linóleo para xilografia no
primeiro ano da faculdade de belas-artes, em que tínhamos experimentado
todo o género de formas artísticas, de gravura a cerâmica, antes de
decidirmos em que queríamos especializar-nos.
No meu caso, eu já tinha decidido: queria estudar pintura e retratos
em particular.
Depois de bater à porta, Den apareceu com uma caneca de café e dois
biscotti italianos ainda no seu invólucro, que poisou numa das mesas
de pintura mais pequenas.
- Aqui tem, e a senhora diz que já ‘tá quas’acabar de matar um
pobr’inocente e que vá ter com ela ao’scritório daqui a dez minutos.
Aquilo soava um pouco a ser chamada ao gabinete da diretora, mas, mesmo
tendo algo a pesar-me na consciência, ia calar-me.
9
Bens Valiosos
Apesar de forrado com estantes a abarrotar e vários armários altos com
portas de vidro que continham, ao que parecia, pedacinhos de cerâmica,
tábuas de terracota, pedras e fragmentos de madeira, o escritório de
Clara era grande e luminoso.
Havia uma grande secretária em forma de U no centro da divisão, com
vários computadores e ecrãs.
Clara estava sentada diante de um monitor pequeno, a falar para um
desses microfones antiquados, com uma pega e uma bola.
- O sangue de um vermelho vivo corria pelas letras gravadas da tábua
partida e foi coagulando lentamente ao longo da noite, de maneira que,
de manhã, a mensagem parecia ter sido preenchida com lacre de um
carmim-escuro - entoou ela numa voz grave ao microfone, após o que
parou, clicou num botão para o desligar e virou-se para mim, com um
sorriso que exibia os seus dentes grandes e saudáveis. - Pronto: um
capítulo por dia e fica acabado num instante. Este chama-se Escrito
a Sangue.
A julgar pelo pouco que eu tinha ouvido, parecia muito apropriado.
- Lamento, mas ainda não li nenhum dos seus policiais - confessei.
- Porque haveria de ter lido? Eu só comecei a escrevê-los por diversão
e decerto não espero que toda a gente queira lê-los. Mas, se lhe apetecer
experimentar algum, essa prateleira está cheia deles, por isso sirva-se
à vontade.
Ela apontou para uma fila comprida ali perto, que alternava entre
grandes livros de capa dura e livros mais curtos de capa mole, como
uma estranha espinha fóssil... uma espinha de lombadas, de facto.
- Morto como Uma Pedra foi o primeiro que escrevi. Está um bocado datado,
mas eu também.
- Acho que gostaria de começar por esse - disse eu, encontrando o livro
de capa mole e sentindo-me estranhamente culpada acerca do buraco que
deixei na prateleira, embora não pudesse propriamente comparar-se com
retirar a pedra angular do universo e assistir à queda do céu.
A julgar pela quantidade de monitores e de equipamento informático na
secretária em forma de U, eu não diria que Clara fosse antiquada de
forma alguma.
- A internet chega bem aqui? - perguntei. - Ainda não experimentei.
De facto, ainda não tinha sequer ligado o telemóvel ou o iPad desde
que chegara, mas a verdade era que tinha tido outras coisas em que
pensar.
- Oh, sim, banda larga. Hoje em dia é preciso muito azar para ficar
num lugar fora do seu alcance. E ainda bem que temos, porque eu passo
a vida a trocar emails com colegas. E acabo de receber uma versão nova
de um programa fantástico com que posso brincar - acrescentou num tom
entusiasta, impelindo a sua robusta cadeira de escritório com rodas
até ao monitor do meio sem se levantar e revelando rapidamente um ecrã
que mostrava vários pequenos fragmentos de tábuas de barro gravadas.
- Cuneiformes, hititas - explicou ela. - Os pedaços parecem ser da mesma
tábua de barro, mas as imagens foram obtidas de várias fontes
diferentes. Antigamente, muitas vezes as descobertas eram divididas
e vendidas a colecionadores e museus, nem sempre com a sua proveniência.
Mas, felizmente, eu tenho uma memória fotográfica que me diz onde vi
coisas que podem fazer parte da mesma inscrição e, com este programa,
dá para as juntar e ver se realmente encaixam.
Ela fez uma demonstração, movendo os fragmentos e virando-os. Era mesmo
fascinante, como um puzzle sem a caixa, pelo que não se tinha a certeza
de que todas as peças pertencessem à imagem ou como esta acabaria por
ser.
- É claro que não é tão bom como jogar com um tabuleiro de peças - disse
ela, num tom entristecido. - Não se tem a mesma sensação do que deve
ir onde, mesmo que já estejam demasiado britadas para encaixarem bem.
- Eu nem sabia que se podia fazer isso num computador - disse eu. -
Mas também parece que não consigo interessar-me muito pela internet,
por telefones ou por qualquer uma dessas coisas que os meus amigos acham
tão espetaculares. Talvez ter crescido na comuna, apenas com telefone
fixo e rádio, tenha algo a ver com isso. Na maior parte do tempo, nem
a televisão me interessa muito, a menos que sejam documentários.
Prefiro ler a minha ficção e ver as imagens na minha cabeça.
- Percebo o que diz. Na minha opinião, a internet é uma boa ferramenta,
mas um mau amo. E, infelizmente, parece ter dominado e escravizado toda
uma geração... quando não está vidrada na TV a assistir a uma série
inane de uma assentada.
Estava certíssima, pensei eu.
- Não sente a necessidade de publicar tweets sobre a minúcia quotidiana
da sua vida a cada cinco minutos? - perguntou-me com um sorriso. - A
minha sobrinha, a Zelda, faz isso.
- Não, prefiro viver a vida em vez de a registar. E o mesmo em relação
às fotografias. Quero olhar para as coisas diretamente, não através
de uma lente. Mas uso o iPad para fotografar os meus modelos, o que
me ajuda a fazer os retratos: permite-me conseguir a pose certa em todas
as sessões e aviva-me a memória em relação a pequenos detalhes, quando
os completo no estúdio.
- É uma jovem muito invulgar - comentou ela, e eu pensei, mas não disse,
que ela era uma idosa extremamente invulgar. Não que idosa parecesse
ser o termo certo para alguém tão radiantemente vital, e a sua mente
certamente não estava envelhecida.
A luz do ecrã iluminava os ossos interessantemente fortes do seu rosto
e eu dei por mim a observá-la com um olhar de pintora. Ela pegara num
pedaço de pedra gravada que tinha estado sobre um monte de papéis e
virava-o distraidamente entre as mãos, com o anel de cornalina a
refletir um brilho fraco à medida que se moviam. Naquele dia, usava
uma camisola vermelha como cerejas, umas calças pretas atadas com um
cordão e uns brincos em forma de cruz ansada. Um fio comprido de contas
egípcias azul-turquesa pendia-lhe do pescoço, o que fazia um contraste
maravilhoso com a camisola.
Atrás dela estava a manta de retalhos de lombadas de livros nas
prateleiras e, reparei então, um poste alto de madeira gravada com
carantonhas de várias criaturas pintadas de cores garridas. No cimo
havia um pássaro empoleirado, trazendo-me à memória a águia feroz do
poste das escadas.
- Aquilo é um totem? - perguntei.
- Uma réplica em miniatura. Encomendei-a quando fui de visita ao Canadá
há uns anos e trouxe-a para cá. O pessoal da Alfândega até a passou
pela máquina de raios X para ver se não tinha droga lá dentro antes
de me deixarem recolhê-la, porque ninguém acreditava que se pagasse
tanto por transportar um poste gravado.
- Adoro - disse eu. - E quero pintá-la tal como está agora... quero
dizer, se não se importa que lhe invada o espaço?
- De todo... invada à vontade - replicou ela num tom amistoso. - Seja
como for, quando trabalho depressa esqueço se há mais alguém presente.
Saquei o iPad das profundezas da minha mala de tecido, liguei-o e
tirei-lhe uma foto. Ela pareceu ficar um pouco espantada.
- Quero reproduzir essa pose exata - expliquei.
- Pode colocar o seu cavalete aí mesmo onde está agora e deixá-lo durante
o tempo que precisar - sugeriu ela.
- Ótimo, mas vai ter de me dizer quando posso começar e quanto tempo
poderá posar em cada sessão.
- Vai precisar de boa luz, por isso posso dar-lhe uma hora ou duas de
manhã, talvez a partir das dez? Serve? Hoje não, obviamente, já é
demasiado tarde e primeiro quero mostrar-lhe o resto do espaço e
deixá-la instalar-se.
- Isso seria perfeito; e será que, quando não estiver a usar o espaço,
eu posso vir para trabalhar um pouco o cenário?
- Muito bem, está tudo tratado - disse ela, desligando os computadores
e levantando-se. - Venha... está na hora da nossa pequena visita guiada.
À luz do dia, a sala de estar parecia ainda maior do que na noite
anterior, e agora as cortinas de veludo cor de mostarda estavam
afastadas de um nicho quadrado em frente às janelas salientes, que tinha
bancos almofadados de um lado e do outro, revelando uma vista
impressionante.
- Até se vê Underhill ali à direita. É aquela casa atarracada e em ruínas
ali em baixo, por baixo da colina de Starstone.
- Oh, sim - disse eu, espreitando. - As duas pedras em cima da colina
parecem mesmo só uma, a partir deste ângulo, não parecem?
- Acho que sim. Na verdade, nunca tinha reparado - concordou ela. -
Por sorte, Underhill ficava a uma altitude suficiente para evitar ser
inundada; perdeu, isso sim, a maior parte do terreno à frente, que
costumava seguir até ao limite da aldeia. Aquilo e Starstone Edge são
tudo o que resta.
- Vejo uns quantos telhados - disse eu.
- Mas é mais um vilarejo do que uma aldeia, e espalhado ao longo da
estrada. Talvez possamos fazer uma pequena excursão por ali depois.
- Isso seria encantador - respondi educadamente, apesar de me parecer
um pouco frio e desolador para caminhadas.
- Não que haja muito que ver nesta altura do ano - continuou Clara.
- A maioria dos chalés foi transformada em casas de férias que só são
usadas no verão, e nessa altura torna-se um sítio diferente. O Clube
de Vela abre para os entusiastas de desportos náuticos e o café sazonal
de madeira no pinhal à beira da água também recebe visitas: caminhantes,
observadores de pássaros e outros que tais.
Mesmo tendo visto na internet as imagens, quando pesquisara o local,
era difícil conceber tamanha transformação.
O dia estava um pouco mais luminoso agora e nuvens brancas e
cinzento-claras corriam no reflexo da superfície da água, como um filme
acelerado do céu sempre a mudar.
Clara virou costas e reassumiu o seu modo de guia turística.
- O paizinho da Tottie não apreciava o estilo gótico vitoriano, pelo
que guardou a maior parte dos móveis nos sótãos, substituindo-os por
algo que, ainda que menos coerente, fosse mais confortável e funcional.
É uma misturada estranha, e é claro que eu e o Henry também acrescentámos
a nossa quota-parte. Parece que acumulámos muita coisa ao longo dos
anos, e grande parte estava guardada. Chegámos a ter um apartamento
em Londres, mas era mínimo.
Do outro lado do corredor havia um salão igualmente grande, que continha
um televisor e espreguiçadeiras em redor, mas que, exceto isso, fora
atribuído a Teddy, pois esteiras cobriam as carpetes e um cavalete e
tintas, uma pista de comboio, uma quinta, animais de peluche, uma
bicicleta com rodinhas, um trator e uma miríade de outros brinquedos
ocupavam aquele espaço.
- Céus! - exclamei.
- É como uma explosão numa loja da Hamleys, não parece? - disse Clara.
- O Henry é louco por comprar brinquedos. Não se pode deixar o Henry
e o Teddy perto de uma loja a menos que se confisque a carteira do Henry
primeiro.
- Mas é divertido - comentei. - Acho que o Teddy não vai ficar sem coisas
para fazer em dias de chuva.
- Oh, ele anda sempre ocupado. Eu e o Henry ensinamos-lhe italiano e
grego, e ele já começa a aprender os rudimentos dos hieróglifos.
Quando avançámos pelo corredor, Henry abriu a sua porta e disse:
- Bem que me tinha parecido ouvir vozes. Gostaria de entrar e ver o
meu pequeno reino, Meg?
- O Henry escolheu esta divisão porque sempre gostou de escrever em
espaços apertados como sapateiras - explicou Clara. - Isto foi o mais
próximo que arranjou na Casa Vermelha.
- Há aí algum exagero, minha querida, mas é verdade que escrevi alguns
dos meus melhores poemas no corredor do nosso apartamento de Londres.
Mas aqui, têm de reconhecer que tenho uma divisão a sério, ainda que
não seja muito grande.
No entanto, o escritório era bastante luminoso e atraente, com a maioria
das paredes forradas com estantes pintadas de verde-claro e bem
preenchidas. Uma secretária com um portátil encontrava-se em frente
a uma parede, junto a uma cesta de vime almofadada na qual Lass
ressonava, indiferente. Diante da janela estava uma mesa de cozinha
de pinho muito coçado, sobre a qual repousava uma máquina de escrever
à antiga, do género que eu só vira em filmes. Era preta e dourada, com
teclas cor de marfim.
Tinha uma folha de papel a sair da parte de cima, com uma fina coluna
de letras no meio.
- Gosto de pensar diretamente na máquina de escrever - disse ele,
seguindo a direção do meu olhar. - Aprendi a datilografar sozinho quando
era pequeno e os velhos hábitos mantêm-se. Preciso de ouvir e sentir
o baque pesado das teclas para conseguir criar.
- Mas depois passa os poemas para o portátil - completou Clara. - Não
é um ludita total.
- Longe disso, como bem sabes, Clara! De facto - acrescentou ele -,
passo a vida a consultar sítios de leilões na internet, onde procuro
ornamentos e faço licitações.
- Ornamentos? - perguntei, surpreendida, pois não o imaginava de todo
como um colecionador de animais de porcelana ou de vidro de Cranberry.
- Bolas, fitas, coisas brilhantes e reluzentes, tra-la-la-la!4 -
cantarolou Clara. - Mas o Henry não coleciona joias; a sua paixão é
antes por decorações de vidro antigas para árvore de Natal.
- Sempre as adorei - disse Henry, levando-me até algo que parecia um
daqueles armários vitorianos com gavetas para guardar coisas horrendas
como ovos de pássaro ou borboletas e besouros empalados em alfinetes.
Por cima estava um armário de vidro que se iluminava com o toque de
um interruptor, revelando fileiras cintilantes de bolas de Natal de
vidro com formas e cores estranhas e maravilhosas. Todas pareciam muito
velhas, frágeis e estranhamente excitantes.
- Mantenho a maior parte armazenada e vou trocando as que exponho -
disse ele, abrindo a gaveta de cima para revelar as divisões habituais
de pequenos compartimentos, cada um não com um inseto empalado, mas
antes com um ornamento de vidro num ninho de algodão em rama. Havia
pais natais, duendes, fadas, frutos, flores, relógios, anjos, bonecos
de neve, instrumentos musicais e pássaros com caudas compridas de
fibras de vidro branco, um dos quais se parecia impressionantemente
com uma avestruz. - Estou constantemente a encontrar novas formas e
desenhos - disse Henry. - Começaram a produzi-los numa aldeia alemã
chamada Lauscha, no século dezanove, e eram infinitamente inventivos.
Ainda os produzem lá.
Uma gaveta um pouco mais abaixo continha ornamentos maiores e
decorações para o cimo da árvore, de vidro soprado e prateado - e um
objeto mais baço em que ele pegou e exibiu com orgulho.
- Este cimo de árvore que é o Pai Natal em papel mâché moldado tem mais
de cem anos.
Eu acreditava sem dificuldade, porque era de uma cor pastosa castanha,
à exceção de uma ou duas tentativas claramente equivocadas de o animar
um pouco com purpurinas e algodão.
- Pertencia à família da Tottie e, originalmente, o seu casaco era verde
vivo. O vermelho só se tornou a cor dominante muito mais tarde.
- O Henry está sempre a licitar ornamentos online, onde consegue
encontrá-los - disse Clara num tom indulgente. - O meu passatempo é
assassinar pessoas, mas o Henry, como uma pega, coleciona coisas
brilhantes.
- Nem todas brilham - respondeu ele calmamente. - E todos os natais
usamos algumas para decorar uma das árvores. Foram feitas para serem
usadas e darem prazer, mesmo que algumas destas sejam sobreviventes
únicas de centenas.
- Árvores? - repeti, surpreendida. - Têm mais do que uma?
- Sim, temos um grande pinheiro natural no átrio e um mais pequeno,
artificial, na janela saliente da sala de estar.
- Penduramos as decorações antigas na árvore artificial porque não está
na passagem e o tapete por baixo é tão espesso que, se os ornamentos
caírem, ressaltam sem se partir - explicou Clara.
- Muitas vezes compramos ornamentos novos para o grande pinheiro na
entrada. Há uma loja de produtos natalícios aberta todo o ano num antigo
moinho perto de Little Mumming, e o Teddy adora ir lá escolhê-los -
disse Henry. - Tal como eu, adora o Natal... e espero que a Meg também
adore o seu primeiro Natal aqui, se o passar connosco.
Eu abri a boca para dizer que lamentava, mas iria mesmo partir no dia
a seguir ao Solstício, mas Clara falou primeiro.
- A Meg vai pintar-me sentada à minha grande secretária, Henry. -
Virou-se para mim. - Então e o Henry? Aqui ou no estúdio?
- Oh, no estúdio - disse eu sem pensar. - No estrado, com boa luz...
- Terei todo o gosto em posar para si quando e onde achar melhor, desde
que possa ler ao mesmo tempo - declarou ele.
Lass acordou de súbito com um ronco galvânico, lançou-nos um olhar vago
e depois saiu da cesta e foi olhar decididamente para a porta.
- Deve ser hora de almoçar - disse Henry. - A Lass gosta de um bocadinho
de pão molhado na sopa.
- A Lass gosta de qualquer coisa comestível - disse Clara com ironia.
- É mais uma refeição livre, Meg, habitualmente por volta da uma, mas
por essa altura há sempre uma panela de sopa a postos no bico de trás
do fogão, para quando nos apetecer.
- A Clara contou-lhe que eu e o Den fazemos o pão? - perguntou Henry.
- Não é preciso misturar nem amassar, basta deitar os ingredientes para
a máquina e ligá-la.
- A tecnologia tem de facto muitas vantagens - afirmou Clara, abrindo
caminho para fora do escritório. - Hum, sopa Mulligatawny5,
parece-me... a minha preferida.
4 «Baubles, Bangles & Beads», originalmente uma canção do musical
Kismet. (N. da T.)
5 Sopa anglo-indiana, composta por um caldo de carne e tempero de caril
e muitas vezes engrossada com arroz. (N. da T.)
10
Sinistra
Na cozinha não havia sinal de Den ou de Tottie, para além de uma nota
a explicar que tinham deixado as compras e voltado a sair.
- Provavelmente um almoço no Lúcio de Duas Cabeças - disse Clara, depois
de ler a nota em voz alta. - Mas pelo menos o Den deixou a sopa no fogão
antes de voltarem a sair.
- Devíamos levar a Meg lá a almoçar um dia destes - sugeriu Henry.
- Na sexta... à sexta fazem um bom empadão de peixe, mas também há sempre
um prato vegetariano apetitoso no menu, se não gostar disso.
- Parece ótimo - disse eu.
Henry, entretanto a barrar generosamente uma fatia de pão integral com
manteiga, disse:
- Há bocado liguei ao Lex porque ontem foi embora antes de eu ter tempo
sequer de lhe perguntar pela árvore, e já estamos no final da primeira
semana de dezembro!
- O Lex leva-nos na sua carrinha de caixa aberta para irmos buscar o
pinheiro de Natal. Vai ser enorme... é sempre - explicou-me Clara. -
O Henry quer sempre montá-la demasiado cedo e depois a árvore acaba
a perder as agulhas bem antes do dia de Natal!
- Depende do tipo de árvore que se arranje - disse Henry. - Algumas
mantêm as agulhas durante mais tempo do que outras e, seja como for,
o cheiro perdura, mesmo que a árvore vá ficando depenada. Mas, para
além disso, preciso do Lex para tirar do sótão a artificial e as caixas
com decorações.
- Eu podia levá-los na minha autocaravana - apressei-me a sugerir,
esperando evitar um possível encontro com Lex.
- Obrigado, minha querida, é muita amabilidade sua, mas não vai querer
uma grande árvore na sua caravana encantadora.
Claramente, ele não vira o interior delapidado, que já cheirava a terra
húmida e ervas exóticas, com uma ligeira camada por cima de óleo de
linhaça e terebentina.
- Para além disso, tornou-se outra tradição anual do Natal na Casa
Vermelha, desde que o Lex voltou para casa das suas viagens pelo
estrangeiro e se instalou com a olaria. Todos vamos escolher a árvore
e, desta vez, tem de vir connosco, Meg.
Correspondi ao sorriso a custo. Pensei que talvez fosse o momento de
confessar que tinha conhecido Lex quando andávamos na faculdade de
belas-artes, mas, para minha surpresa, Henry antecipou-se.
- Ao telefone com o Lex, ele disse-me que a tinha reconhecido ontem
enquanto se ia embora, Meg. Ao que parece, conheceram-se em tempos?
- E acrescentou: - É claro que a Clara lhe tinha dito que persuadira
uma retratista a vir passar umas semanas connosco, mas não lhe contara
quem era.
- Eu... sim, eu também o reconheci... tenho-me esquecido de o dizer.
Ele andou na mesma faculdade que eu, mas estava um ano à minha frente
e a estudar cerâmica, enquanto eu estudava pintura, pelo que nos
movíamos em círculos diferentes.
Não mencionei que os círculos ocasionalmente se sobrepunham, por vezes
com resultados catastróficos...
- O mundo é muito pequeno - disse Clara. - Quanto mais velhos nos
tornamos, mais evidente isso se torna.
- É claro que ele desistiu da faculdade quando eu estava prestes a
começar o primeiro ano do meu mestrado e ele o segundo do dele e...
- calei-me de súbito, ao dar-me conta de onde aquilo ia levar-me.
- Pois, pobre rapaz, que tragédia, mas depois do diagnóstico da Lisa,
percebo que ele tenha sentido que era a única coisa a fazer. Sabe que
casaram e que ele se devotou a cuidar dela até à sua morte? -
perguntou-me Clara.
Assenti com a cabeça, entorpecida com a vaga de velha culpa que me
invadia e me fazia sentir menos do que um verme.
- Depois... bem, ele simplesmente não conseguiu voltar e terminar o
mestrado - concluiu ela.
- Todos soubemos da Lisa, claro, mas... eu não fazia ideia do que tivesse
sido feito dele depois.
- Foi para o estrangeiro: limitou-se a vaguear pelo mundo durante uns
anos - disse Henry. - Eu fiz basicamente o mesmo entre os meus vinte
e trinta e poucos anos, ainda que, claro, passasse a vida a ir parar
onde quer que a Clara estivesse, como uma traça atraída por uma chama.
Entreolharam-se com sorrisos ternos.
- Isso costumava ser nalgum local de escavações, nos primeiros anos
depois de eu ter deixado Oxford - disse Clara. - Mas, de qualquer
maneira, parecíamos gémeos: unidos mesmo quando estávamos separados.
- O Lex foi arranjando trabalhos temporários enquanto corria mundo -
continuou Henry -, mas acabou por se instalar numa aldeia grega onde
ainda fazem daqueles vasos gigantes de terracota à moda antiga... numa
roda, sabe.
Não sabia. Na verdade, nunca tinha pensado muito nisso.
- Quando ele finalmente voltou para casa, ficou connosco - disse Clara.
- Depois teve a ideia de abrir um negócio a fazer a sua própria versão
dos enormes vasos de terracota para o jardim.
- E foi assim que nasceu a Terrapotter? - terminei por ela.
- Um antigo amigo da faculdade, o Alan, tinha ido passar umas semanas
com ele à Grécia e aprender o básico, e decidiram criar o negócio juntos.
A minha boca abriu-se e fechou-se em silêncio um par de vezes como um
peixe moribundo, antes de eu recuperar a fala:
- Alan Lamb, será?
- Isso mesmo. Também o conhece de vista, Meg?
Assenti com a cabeça, emudecida.
- Por sorte, a Antiga Forja de Great Mumming ficou à venda nessa altura
- disse Henry. - Era uma casinha delapidada com um jardim e um grupo
de edifícios por trás, incluindo a ferraria e o que tinha sido um forno
de tijolo. Perfeito, na verdade. Comparticipámos a compra e ele e o
Alan tornaram-se sócios. Têm tido grande sucesso.
- Vamos ter de a levar lá - sugeriu Clara. - O Alan e a mulher, a Tara,
vivem numa casa lá perto e têm dois filhos encantadores, que são só
um pouco mais novos que o Teddy. A Tara é irmã da falecida esposa do
Lex. É estranho como as coisas às vezes acabam, não é?
Decerto era. O horror ia-se acumulando e eu já sentia o sangue gelado.
Iria evitar a Terrapotter e Great Mumming como se a Peste Negra tivesse
despontado lá, com bubões à vista por todo o lado. Na verdade, já estava
desesperada por sair dali... o que se digladiava com o meu desespero
equivalente por pintar Clara e Henry. Eu tinha de os pintar, mas iria
embora para nunca mais voltar na primeira oportunidade que surgisse
depois disso.
Terminado o almoço, Henry, como parecia ser seu hábito
independentemente do tempo que fizesse, saiu para dar um passeio com
Lass.
- Vou trabalhar um pouco agora - disse Clara -, mas, se quiser aparecer
e fazer alguns esboços, ou qualquer que seja a preparação necessária,
não me importo nada. Provavelmente, nem vou dar pela sua presença.
- Isso seria maravilhoso, obrigada - disse eu, porque, quanto mais cedo
me dedicasse aos retratos, mais fácil seria escapar ao mesmo tempo que
River.
- Mais tarde podemos ir de carro pela estrada de Starstone Edge, para
que conheça a zona - sugeriu ela.
- Ótimo - concordei, porque pelo menos isso ficava na direção oposta
de Great Mumming e Lex.
Mas depois ela disse:
- Só uma voltinha rápida até Underhill, mas não vamos visitar a Sybil,
para termos tempo suficiente para descer e ir buscar o Teddy à escola;
assim poupamos o Lex a ter de vir outra vez. Felizmente o tempo anda
bastante ameno, para dezembro, por isso podemos ir pela rota panorâmica
até à Passagem Sinistra.
- Sinistra? Que nome tão peculiar.
- Conta a lenda que, sempre que visitas perguntavam pela estrada que
descia pela passagem, os habitantes locais diziam que parecia
«Sinistra» e o nome acabou por ficar.
Eu mal podia esperar.
Nessa tarde, Den trouxe-nos um velho e batido Range Rover branco e
ter-nos-ia levado, não fosse Clara insistir em conduzir.
- Adoro conduzir e, depois de tantas escavações no Oriente, não há
veículo nem estado de uma via que me assuste - declarou ela, arrancando
com brio. - Pelo menos aqui não é provável que apareça uma cáfila de
camelos ao virar de uma curva apertada.
- Não, suponho que não - murmurei desalentadamente, enquanto nos
lançávamos pelo acesso da casa abaixo e, depois de uma pausa mínima,
disparávamos para a estrada à direita que era estreita, mas, por sorte,
estava vazia.
- Não há muito trânsito nesta época do ano; no verão é diferente, quando
toda a gente das casas de férias, os entusiastas de vela e desportos
náuticos, os campistas e outros que tais infestam o lugar - disse ela
num tom animado. - Quando os citadinos compram um veículo com tração
às quatro rodas, partem do princípio de que todas as estradas rurais
só têm um sentido: aquele em que eles vão.
- A Casa Vermelha fica mesmo bastante isolada, não fica? - disse eu,
porque só ao fim de quase um quilómetro é que apareceram os primeiros
chalés de Starstone Edge.
- O Isaiah Gillyflower construiu a Casa Vermelha quando o gótico
vitoriano era o último grito da arquitetura. Ele era um cervejeiro
abastado que gostava da posição imponente do terreno, a ver a aldeia
lá de cima. Calculo que, como a maioria dos que têm aqui a sua segunda
casa, só a tenha visto no verão, antes de se mudar. Montes de pessoas
compram os chalés daqui quando o tempo está encantador e depois
apercebem-se de como pode ser pavoroso desde o outono até ao início
da primavera... e, por vezes, até ao final da primeira. Então fecham-nos
ou vendem-nos de novo.
- Deve ser um sítio completamente diferente no verão.
- Sim, basta um bocadinho de sol e parece Blackpool num feriado.
- Nunca fui a Blackpool, na verdade - confessei.
- A sério? - Ela virou a cabeça para me fitar, estupefacta, o que, tendo
em conta a velocidade a que conduzia, eu preferiria mesmo que não
fizesse. - Quem nunca comeu um chupa-chupa a passear pela Milha Dourada,
vendo as Luzes ou ouvindo o Wurlitzer da Torre do Salão de Baile não
pode dizer que tenha vivido. Eu e o Henry costumávamos levar lá os nossos
sobrinhos quando eles eram pequenos e ficavam connosco durante as
férias da escola. São filhos da minha irmã mais nova, a Bridget. Ela
e o marido faziam parte do corpo diplomático, por isso passavam muito
tempo no estrangeiro. Agora reformaram-se e foram para a Nova Zelândia,
onde vive o irmão mais velho do Lex, o Chris.
Desejei fervorosamente que Lex tivesse ido com eles.
- Vai ver o dique e a casa das máquinas, ou como queira chamar-lhe,
quando descermos pela Passagem - disse ela. - Mas, nesta direção, depois
de Underhill a estrada é praticamente um beco sem saída. É só uma pista
estreita de terra batida pelas charnecas, que tem pontes de gado e
portões sem fim, por isso quase ninguém se dá ao trabalho de a usar,
exceto os agricultores. Mas, continuando por aí, vai-se ter ao
Yorkshire. É uma velha estrada de pastores.
Ela abrandou à medida que as casas começavam a ficar mais próximas umas
das outras, talvez para poder gesticular mais facilmente com um braço.
- Este é o centro da metrópole de Starstone Edge, misericordiosamente
poupado ao Grande Dilúvio - anunciou ela, com um gesto senhorial que
abarcava os chalés de pedra nos terraços de um lado e do outro, uns
quantos casebres de madeira, um dos quais com uma bomba de gasolina
antiquíssima e enferrujada ao lado e umas quantas moradias geminadas
dos anos 1920 e 30.
Um casarão maior, pintado de um amarelo-limão leve e incongruente e
afastado da estrada, tinha uma tabuleta de madeira que oscilava ao vento
e tinha sido envolvida em serapilheira.
- Chama-se Bella Vista e durante a temporada estival é uma pensão -
disse Clara, com mais um aceno que atirou o Range Rover para o meio
da estrada. - A Deirdre fecha as portas no inverno e vai ter com a filha
à Austrália - acrescentou. - Ali temos a família Adcock, que vive no
último chalé da fila seguinte e ganha algum a cuidar do espaço da
Deirdre, das casas arrendadas no verão e das casas de férias, enquanto
o filho mais novo, o Gil, gere o bar do Clube de Vela e vai tomando
conta de quaisquer barcos que passem aí o inverno.
- Parece uma família muito empreendedora - disse eu.
- Pois, para conseguir ter um rendimento decente durante o ano inteiro.
Clube de Vela é um nome muito sofisticado para algo que não passa de
uma cabana grande, na verdade, e a maioria dos membros não tem mais
do que pequenos botes insufláveis ou canoas e caiaques.
Espreitei pelo para-brisas riscado, tendo entrevisto uma montra plana
ao fundo do último terraço mais afastado.
- Aquilo é uma loja?
- Sim, é a loja do Bilbo... uma espécie de loja de souvenirs e de coisas
New Age, para além de vender gelados e bebidas por uma portinhola na
parede lateral quando há turistas por cá. Nesta altura do ano, só abre
se alguém tocar à campainha e lhe mostrar dinheiro vivo.
- Disse Bilbo? - A placa por cima da loja decerto dizia «B. Baggins»
e, em letras grandes, «Preciousss». E, pensando bem, tinham mencionado
alguém com esse nome como sendo um dos participantes da cerimónia do
Solstício.
- É verdade. Os Baggins são uma velha família de Starstone, se bem que
o nome dele fosse Bob até ficar completamente apanhado por Tolkien.
Acontece a muita gente, não acontece? E depois, com esse apelido,
claro... devia ser demasiado para conseguir resistir.
- É capaz.
- Agora todos lhe chamam Bilbo. Não é mau tipo. A família mudou-se para
aqui quando o vale foi inundado. Era uma pequena drogaria antes de o
Bilbo se ter encarregado dela. Agora tem uma mulher e um bebé... ou
suponho eu que seja sua mulher. Uma vez perguntei-lhe e ela disse que
tinham saltado por cima de uma vassoura e ficado prometidos.
- É mais ou menos a mesma coisas - disse eu.
- Ela chama-se Flower e a bebé é Grace-Galadriel.
- Um bocado comprido, para bebé.
- É, mas eu chamo-lhe Gladdie.
Perguntei-me o que acharia disso a mãe da bebé.
Já tínhamos deixado bem para trás as últimas casas quando uma pequena
cabana ao lado de uns portões abertos apareceu à nossa esquerda. Parecia
habitável, se não se fosse claustrofóbico. Ocorreu-me que talvez Bilbo
tivesse algum amigo hobbit que vivesse ali.
- Por ali desce-se para Underhill - disse Clara, fazendo um dos seus
gestos grandiloquentes. Quem me dera que não os fizesse. - Costumava
ser a entrada das traseiras, até o reservatório ter ocupado a maior
parte da terra em frente à casa. O jardineiro, Len Snowball, vive na
cabana. É viúvo e homem de poucas palavras. A mulher costumava falar
pelos dois, pelo que deve ter-se desabituado.
A estrada acabava num espaço mais amplo para se inverter a marcha, logo
a seguir à cabana. Clara parou para apontar para o portão da quinta
que dava para a estrada pelas charnecas, que parecia mais o rasto escuro
e brilhante de uma lesma gigante.
- E a pista que desaparece ali atrás da urze leva à Starstone.
Ziguezagueia um pouco, por isso não é uma subida muito íngreme. Até
dá para ir de moto-quatro quase até ao cume.
Espreitei para cima, mas, daquele ângulo, mal se via o cimo das pedras
unidas.
Clara verificou as horas no seu grande relógio de pulso e deu novamente
à chave, invertendo a marcha a escassos centímetros da vala na berma
da estrada.
- É melhor irmos andando: liguei ao Lex para lhe dizer que íamos buscar
o Teddy e que ele não precisava de ir.
O caminho pela Passagem Sinistra abaixo era sinuoso. Fiquei satisfeita
por estarmos do lado esquerdo da estrada, junto à face do rochedo, onde
as pedras tinham sido cobertas por uma rede de aço para prevenir
deslizamentos de terras, pois era estreita, com poucas passadeiras,
e o outro lado tinha apenas um muro baixo. Reparei em remendos
assustadoramente claros, zonas reconstruídas, e para lá disso o chão
dava subitamente lugar a um vale estreito por baixo do dique.
- Ainda se vê a antiga estrada lá em baixo - disse Clara, ainda que
eu ficasse contente por observar que ela agora mantinha as duas mãos
no volante. - Mas já ninguém a usa muito, porque realmente não se quer
ir fazer um piquenique debaixo de um dique.
- Não, claro que não!
Ela contornou as últimas curvas com grande à-vontade e emergiu numa
interseção com uma estrada ligeiramente maior.
- Para a esquerda segue-se para Thorstane e, para a direita, que é para
onde vamos agora, vai-se para a escola do Teddy e depois, continuando,
chega-se à Terrapotter e aos encantos urbanos de Great Mumming. É o
local mais próximo para se fazer compras e para encontrar as alegrias
metropolitanas como cafés e bares de vinhos.
Ela passou por um par de postes de pedra demasiado depressa para que
eu conseguisse ler a placa informativa que oscilava com a brisa forte
e seguiu outros dois carros pela subida curta até uma casa vitoriana
grande, feia e pesada.
- Chegámos. E ali vem o Teddy a sair com uma das irmãs Rigby. Elas são
três, todas professoras e muito boas, mas não lá muito extrovertidas.
Se bem que parecem comunicar bem com as crianças, que é o mais
importante. O Teddy é muito esperto, por isso acho que depois irá para
uma boa escola privada.
Depois de Teddy estar instalado na sua cadeira de criança nas traseiras
do carro, partimos para casa. Fiquei mais do que aliviada ao ver que
Clara seguia pelo caminho mais longo, por Thorstane, onde fizemos uma
breve paragem para nos abastecermos de doces de alcaçuz.
- O Lúcio de Duas Cabeças é um nome estranho, sobretudo para um pub
aqui em cima nas charnecas, não é? - comentei depois de nos fazermos
novamente ao caminho e de passarmos por ele na estrada que subia desde
a aldeia.
- Há lá um lúcio de duas cabeças - explicou Teddy. - Está morto e tem
enchimento.
- É um lúcio mutante muito antigo, do rio que corria por Startstone
- explicou Clara. - Foi pescado e costumava estar exposto no pub da
aldeia. Depois, quando fizeram o reservatório, os Golightly compraram
este sítio (acho que se chamava O Repouso do Pastor) e deram-lhe esse
nome. Mas são muito empreendedores e construíram uma fila de quartos
de motel nas traseiras, para além de servirem refeições. Conseguem bom
dinheiro dos locais no inverno e dos turistas no verão.
- A mamã diz que Starstone Edge fica no cu de judas - confidenciou Teddy.
- Bem, é conveniente para nós, não é? - respondeu-lhe Clara,
imperturbada, enquanto punha uma mudança abaixo para a subida.
Chegámos ao cimo da colina e lá em baixo cintilavam as luzes fortes
da Casa Vermelha e a longa correnteza de luzinhas da aldeia.
Mergulhámos na escuridão, entre sebes espinhosas, e emergimos na
estrada lá no fundo.
- A casa chega o caçador, preparado para o seu chá6 - citou erradamente
Clara, ao estacionar em frente à porta da Casa Vermelha sobre um pedaço
de gravilha e debaixo da grande lanterna de vidro que iluminava o
alpendre. - Chegámos!
6 Referência ao poema de Robert Louis Stevenson, cujos primeiros versos
dizem «Home is the sailor, home from sea, And the hunter home from the
hill» («A casa chega o marinheiro, Vindo do mar, E o caçador, vindo
da montanha»). (N. da T.)
11
Um Festim Ambulante
O lanche estava servido na sala de estar quando regressámos, pelo que
calculei que fosse uma coisa quotidiana, não apenas preparado para a
minha chegada. Mas aquela era uma seleção mais comedida do que a do
dia anterior, com scones de sultanas e uma lata cheia de bolachas
digestivas. Desconfiava de que aquela comida toda não só ia fazer-me
recuperar o resto do peso que tinha perdido enquanto estava doente,
mas também envolver-me rapidamente numa camada permanente de gordura.
Tottie levou a porção de Henry e a sua chávena de chá para o escritório
dele, já que, ao que parecia, ele continuava a debater-se com uma ode
intransigente. De vez em quando, ouvíamos o staccato das teclas da
máquina de escrever.
Teddy tinha sido mandado lavar as mãos e tirar o uniforme da escola,
composto por umas calças pretas e uma camisola que dizia «Gobelins»
à frente, em letras douradas e espiraladas. Eu nunca tinha visto um
uniforme escolar preto, mas ficava-lhe bem, com a sua melena de caracóis
escuros e o nariz aquilino tão semelhante ao da sua tia-avó... e ao
do seu tio Lex. Na verdade, Lex deveria parecer-se muito com Teddy
quando tinha aquela idade.
As feições fortes não se adequavam muito a um menino, mas eu sabia que
haveria de crescer e tornar-se um jovem elegante. Não costumo ter
vontade de pintar crianças - os seus rostos costumam ser tão incompletos
-, mas Teddy seria um bom modelo.
Era mesmo uma pena que não fosse ter tempo.
Teddy voltou e, mal parando para devorar um scone com sumo de
groselha-negra, pegou num livro de colorir e instalou-se firmemente
num dos sofás, a meu lado. (Havia três sofás e, desta feita, eu tinha
escolhido um que não tentava engolir-me.)
- Aposto que nunca viste um destes, Meg - disse Teddy. - É um livro
de colorir mágico!
- Tens razão. Acho que nunca me deparei com um que fosse mágico.
Ele foi virando as páginas, revelando imagens antigas de damas em
crinolinas, cavalos a puxar arados e mulheres de touca a dar de comer
a galinhas. Os contornos pretos tinham sido levemente preenchidos com
uma paleta limitada de cores ligeiramente manchadas.
- Já fiz metade. - Virou para uma página nova, que tinha uma casa com
telhado de colmo e uma sebe de flores. - Não é preciso tinta, basta
usar água e as cores aparecem... por magia!
- Nem sei se ainda se arranjam desses - disse Tottie. - Eu lembro-me
deles de quando era pequena, mas a Sybil encontrou uns no antigo quarto
das crianças de Underhill, quando fez aquela grande limpeza depois de
o pai ter morrido, e deu-os ao Teddy.
- Parece divertido - comentei.
- É - concordou Teddy. - Mas temos de pintar dentro das linhas e não
usar demasiada água no pincel, senão as cores misturam-se. Vou
mostrar-te.
- No sofá, não, querido - disse Clara. - Poisa o livro na ponta da mesa
de centro. - E empurrou um pouco o tabuleiro que tinha o bule, para
lhe dar espaço.
Den, que tinha estado silenciosamente sentado num dos pufes egípcios
de pele, consumindo scones a bom ritmo, disse que ia buscar água e se
alguém podia encarregar-se de impedir que Lass, que se encontrava
debaixo da mesa com um ar ávido, roubasse a comida. Teddy não tardou
a demonstrar como é que se produzia cor do nada. Ou da água.
Deixou-me pintar uma das malvas-rosas altas e foi estranhamente
satisfatório vê-la florir subitamente num tom granuloso de amarelo.
Fez-me lembrar da altura, muitos anos antes, em que a chefe dos correios
da aldeia mais próxima da Quinta me dera um pequeno conjunto para pintar
segundo os números, de um cisne num rio. Eu tinha preenchido
obedientemente cada secção com as cores numeradas e depois, recuando,
vira como se uniam surpreendentemente para formar um todo. Fora então
que me apercebera de que, na natureza, nada era de uma só cor, sendo
antes composto por vários tons, alguns dos quais bastante inesperados.
Tinha sido empolgante... e o cheiro oleoso dos pequenos frasquinhos
de tinta fazia parte disso.
No presente, Henry foi à sala para encher novamente a sua chávena de
chá e sentou-se ao lado de Clara, que o fitou com um olhar interrogativo.
- Às vezes as palavras fluem, outras vezes pingam e, de vez em quando,
é preciso espremer o tubo para que saiam - disse ele.
- O Henry anda a escrever um livro de poemas interligados acerca de
Starstone e o Grande Dilúvio, recorrendo a várias histórias antigas
de outros grandes dilúvios, incluindo o bíblico - explicou-me Clara.
- É um pouco autobiográfico. E eu ando a escrever as minhas memórias,
nada poéticas e só por diversão, na verdade.
- As duas coisas parecem fascinantes - disse eu, perguntando-me como
conseguiria Clara arranjar tempo para encaixar mais projetos na sua
vida atarefada.
Eu começava a familiarizar-me com os vários habitantes da Casa Vermelha
e compreendia bem como se tinham compactado na unidade familiar
informal, funcional e alargada que passara a ser. Assemelhava-se muito
à forma como os principais membros da comuna de River se tinham
instalado e ocupado os seus lugares permanentes na estrutura, enquanto
os ajudantes de verão - visitantes transitórios das tendas e os que
usavam o acampamento - iam e vinham como destroços coloridos na maré.
Devia ser por isso que me sentia tão rapidamente em casa ali e, não
fora a presença sombria de Lex a pairar em redor e devendo ocupar um
papel mais importante no Natal, eu poderia ter-me simplesmente deixado
levar e ficado ali indefinidamente...
Como se à espera de uma deixa, Clara disse:
- O Lex começa sempre a sua estada natalícia connosco a seguir ao
Solstício, e será mesmo bom que este ano tenha uma antiga amiga cá,
Meg.
- Nunca fomos propriamente amigos - apressei-me a dizer. - E, seja como
for, como os retratos por essa altura já devem ir bem avançados, mesmo
que não estejam acabados, poderei ir embora com o River. Apercebi-me
do quanto ia sentir a falta das celebrações do Yule na Quinta.
Henry pareceu ficar profundamente desapontado.
- Oh, por favor, não fuja antes do Natal! Seria tão divertido
apresentá-la a todas as tradições...
- É claro que vai ficar connosco - decretou Clara. - Eu sei que está
apenas a ser bem-educada, porque acha que seria uma intrusão numa festa
familiar, mas não, de todo.
- Não, mesmo - disse Tottie. - Quantos mais, melhor!
- Eu também quero que fiques - acrescentou Teddy, com um entusiasmo
lisonjeador e levantando o olhar do livro de colorir.
- É muita amabilidade vossa, mas não o digo meramente por cortesia -
respondi. Sabia que teria ficado, sem hesitar, se não fosse Lex.
- Bem, ainda tem bastante tempo para mudar de ideias depois, se quiser
- disse Henry com amabilidade.
- É verdade - concordou Clara. - E eu tenho a certeza de que, no dia
vinte e um, vai estar tão feliz aqui instalada e a pintar no seu estúdio
que não vai querer deixar-nos.
Decidi que não valia a pena dizer mais nada então: Clara provavelmente
não acreditaria que eu me ia mesmo embora até ver a autocaravana a
afastar-se!
- A olaria fecha no Natal? - perguntei, curiosa.
- Oficialmente, sim, mas o Alan e a Tara vão cuidando das coisas, porque
vivem lá perto. A Tara tem o seu pequeno estúdio na Antiga Forja, onde
faz joias. Mas é claro que, com dois filhos pequenos, o Natal é uma
altura muito azafamada para eles.
Quanto mais azafamada, melhor, porque seria a última gota ter de
enfrentar Alan para além de Lex antes de me ir embora.
- Os filhos deles andam na mesma escola que o Teddy?
- Não, são mais pequenos e estão na creche da zona, que era onde estava
o Teddy até ter ultrapassado o que ensinavam lá e termos achado que
ficava melhor na Gobelins.
- Gobelins7 é um nome estranho para uma escola - comentei.
- Na verdade, não há duendes lá - disse Teddy, voltando a olhar para
mim -, a menos que se conte com os gnomos de jardim da Miss Aurora.
É só o nome da casa.
- Calculo que tenha o nome do antigo proprietário - disse Henry. - Estas
coisas ficam.
- «Gnomelins» não soaria tão bem - acrescentou Tottie e, por algum
motivo, Teddy achou tanta graça a isso que desatou a rir
incontrolavelmente e a rebolar no tapete. Tottie teve de deitar a mão
ao jarro de água antes que fosse pelos ares.
Lass, sem saber se deveria juntar-se à brincadeira ou proteger Teddy,
optou pela segunda possibilidade e tentou deitar-se em cima dele numa
posição protetora.
O caos prolongou-se durante vários minutos.
Depois do lanche, todos se dispersaram para tratar dos seus vários
afazeres e eu fui para o estúdio para me debruçar sobre um esboço de
Clara que fizera naquela tarde e que tinha prendido ao velho cavalete.
Ela tinha-se instalado a trabalhar mais ou menos na pose que eu queria,
com as carantonhas do totem a parecer observá-la por cima do ombro e
a luz do candeeiro a incidir sobre o pedaço de pedra gravada da cor
de mel em que ela pegava distraidamente e a que ia dando voltas enquanto
refletia profundamente.
Coloquei também o iPad com a fotografia que lhe tinha tirado para
definir a pose.
Agora que estava oficialmente de regresso ao mundo dos vivos, de vez
em quando lembrava-me de carregar os meus vários aparelhos, ainda que
nem sempre os ligasse. Não gosto de ter os dias interrompidos por
chamadas e mensagens e decerto não queria que o telemóvel tocasse
enquanto trabalhava.
Mas agora verifiquei-o e, para minha irritação, encontrei várias
chamadas perdidas de Rollo, para além de uma série de mensagens de voz:
Estás aí?
Já conheceste o Henry Doome?
Falaste-lhe de mim?
Sim, sim e um rotundo não, eram as respostas. A seguir, ele dizia: Se
ele não quiser dar uma entrevista à Strimp!, tive uma bela ideia.
«Aposto que teve», pensei eu, enquanto passava para a mensagem
seguinte.
Ele podia escrever o prefácio da minha nova coletânea de poesia. Ele
é da velha guarda, mas dava-lhe um grande prestígio.
- Então não dava! - resmunguei.
Liga-me, porque preciso de falar contigo. Estou a contar contigo para
abrires caminho antes de eu o contactar.
- Só podes estar a sonhar! - exclamei em voz alta e depois enviei isso
mesmo como mensagem de texto.
Em seguida verifiquei o correio eletrónico e encontrei apenas duas
mensagens, uma de Oshan e outra de River, enviadas do portátil no
escritório do centro de trabalhos manuais da Quinta.
A de Oshan dizia:
Olá, mana! O pai diz que vou poder usar o Manto do Poder e brandir o
Cajado do Domínio no Solstício deste ano, agora que o convidaram a
passá-lo com os teus clientes. Ele depois volta para as celebrações.
Mas não sabia se tu voltavas com ele ou não.
Respondi, assegurando-lhe que já teria acabado o trabalho antes do
Solstício e que tencionava voltar para a Quinta com River.
O email de River começava, previsivelmente, da seguinte forma:
Que a Deusa te abençoe, minha querida! Ver-nos-emos de manhã cedo no
dia 21, pois passarei a noite anterior com o meu velho amigo Gregory
Warlock, que tem um museu de bruxaria na aldeia de Sticklepond, não
muito longe de Starstone Edge. Levarei o meu manto e o meu cajado, para
o caso de serem necessários. Estamos a fazer mantos muito maiores para
o Oshan usar na cerimónia.
Claro, pois Oshan parecia ter herdado os genes da altura da sua robusta
mãe ucraniana, ainda que tivesse os olhos de um azul profundo e as
feições elegantes de River.
Os modos vagamente pagãos de River nunca se tinham concretizado nalguma
espécie de religião, tanto quanto me era dado a ver, mas por Deusa
referia-se sempre a Gaia, a Terra e toda a natureza. Ao que parecia,
Gaia seria capaz de nos enxotar a todos da face do planeta como insetos
irritantes, se lhe apetecesse, mas eu estava muito satisfeita por, até
à data, ela ter resistido à tentação.
Senti-me algo tranquilizada e reconfortada pelos dois emails: River
e Oshan sabiam que tipo de pessoa eu era e isso não correspondia de
todo ao monstro que Lex criara na sua mente e partilhara com o Al.
Ainda assim, continuava a sentir uma necessidade premente de falar
acerca daquilo com a única pessoa que conhecia toda a história.
Olhei de relance para o meu relógio e pareceu-me uma boa altura para
tentar. De manhã, ela dava aulas de arte numa escola privada, pelo que
já deveria estar em casa. Eu não fazia ideia se o seu marido de tão
curta data lá estaria ou não, já que Calum viajava muito em negócios.
Mas, sim, estava sozinha e aproveitámos para pôr a conversa em dia,
incluindo todos os pormenores acerca do seu casamento dos quais não
tivera tempo de falar no nosso breve encontro antes de eu tornar a
partir.
- Mas fizeste-nos falta - terminou ela.
- E eu tive mesmo pena de não poder ir... mas talvez não de não usar
aquele vestido pavoroso de dama de honor. Não era nada o meu estilo.
- Não sei o que aconteceu na loja dos vestidos de noiva - confessou
ela. - Há uma espécie de Mania Nupcial e deixamo-nos levar.
- Bem, agora já deram o nó - disse ela.
- Sim, e temos mesmo de arranjar maneira de tu seres a próxima.
- Acho que já me meti num nó górdio, é o que é.
- A família é terrível? - perguntou ela num tom compassivo.
- Não, não é isso. Fizeram-me sentir muito bem-vinda, ainda que a Clara
Mayhem Doome seja um pouco... avassaladora. Gosto dela, mas não sei
bem como descrevê-la, à exceção de que toda a gente faz o que ela quer.
E suspeito de que seja quase sempre assim. Mas o marido dela, o Henry,
é muito amável... e retratável. Recuperei mesmo a veia artística.
- Ora, isso é ótimo, não é?
- É, e estou mesmo desejosa de começar o retrato da Clara amanhã. Já
fiz um esboço.
- Tu és rápida, eu sei, mas pintar dois retratos não te vai deixar aí
até bem perto do Natal?
- Sim, e eles convidaram-me a passar o Natal com eles, mas tu sabes
que eu não celebro o Natal. Vou sempre para a Quinta, para o Solstício.
- Para variar, podias fazer algo completamente diferente: não te sentes
tentada?
- Poderia sentir, porque realmente parece divertido. Mas, Fliss,
aconteceu uma coisa pavorosa! Fez-me desejar nunca ter vindo para aqui
e vou-me embora assim que possa escapar!
- De que estás a falar?
- A primeira pessoa em quem pus a vista em cima ao chegar foi o Lex
Mariner!
- Oh, raios! - exclamou ela.
- Precisamente - confirmei num tom seco.
7 Jogo de palavras entre «Gobelins», apelido e nome da fábrica histórica
de tapeçarias em Paris, e «goblins», criaturas mitológicas semelhantes
a duendes. (N. da T.)
Clara
Pensando bem, a nossa infância em Starstone parece um idílio esquecido
- uma vida de aldeia que deveria ter terminado com a guerra, mas que,
em vez disso, seria apagada, como se nunca tivesse existido, pela
criação de um reservatório.
Aquele último verão mantém-se nítido na minha mente. À superfície,
continuámos a fazer o que sempre tínhamos feito: brincar no riacho,
montar o pónei de Henry, ter lições de história e de línguas antigas
e modernas com os meus pais... continuámos a ser, em geral, os catraios
precoces e felizes que éramos.
É claro que estávamos cientes da nuvem sombria que pairava sobre o vale,
apesar de tentarmos ignorar as mudanças que ocorriam à nossa volta,
como se, fazendo-o, pudéssemos impedir a destruição da nossa aldeia
encantadora e de toda a comunidade.
Mas já havia pessoas a mudar-se e os trabalhos de construção iam bem
avançados no muro do dique ao fundo do vale, onde as encostas das colinas
se aproximavam. Tinham sido afixados mapas na câmara, a mostrar o limite
superior das águas. A obra pouparia a casa senhorial e o vilarejo de
Starstone Edge, mas em breve tudo o mais, tão adorado e familiar,
ficaria submerso e perdido para sempre.
No final desse verão, os nossos pertences foram guardados numa grande
carrinha e partimos para uma nova paróquia em Devon.
Henry iria para um colégio interno dali a uma semana; despedimo-nos
na ponte, ambos entorpecidos e sem acreditar na forma como o mundo se
desmoronava à nossa volta. Quando chegou o momento de partir, tiveram
de nos puxar as mãos para nos soltarmos.
Passar-se-iam quase dez anos até voltarmos a ver-nos.
12
Reduzido a Osso
Na manhã seguinte, acordei mais cedo, e tinha dormido
surpreendentemente bem, tendo em conta as circunstâncias. Talvez a
possibilidade de partilhar com Fliss o meu choque por me ter deparado
com Lex tivesse ajudado um pouco, ainda que as referências frequentes
de Clara durante o jantar da noite anterior a «o Lex, tão querido, é
sempre muito solícito com...» ou «e o Lex fica connosco depois do
Solstício...» decerto não tivessem ajudado.
Enquanto tomava o pequeno-almoço, Tottie disse-me que Den tinha levado
Teddy à escola e depois falou com grande entusiasmo de abelhas,
jardinagem e cavalos, que pareciam ser os únicos tópicos que suscitavam
alguma paixão no seu rosto curtido, ainda que também parecesse
profundamente apegada a Teddy.
Ao que parecia, Henry e Clara eram muito madrugadores e já tinham tomado
o pequeno-almoço juntos e ido trabalhar, cada um para o seu escritório.
Eu esperava não ir perturbar Clara em demasia quando, dali a pouco,
levasse para lá o meu material de pintura.
Mas, depois do pequeno-almoço, descobri que Den regressara e já
colocara o meu cavalete em posição no escritório de Clara.
- Mas deixei as tintas e outras coisas. Não sabia o qu’é que queria,
pois não?
- Oh, obrigada, Den - respondi, agradecida. - Foi muito amável.
Espreitei cautelosamente pela fresta da porta do escritório e vi que
tinham tapado a bela e antiga carpete com um tapete de rotim para a
proteger e que a mesa mais pequena do estúdio fora passada para ali
também.
Clara já estava a ditar crimes sombrios para o seu microfone e nem deu
por mim, pelo que fechei delicadamente a porta e fui até ao estúdio,
onde Den contemplava a balbúrdia em cima da mesa grande.
- Não sei que mais é que quer.
- Oh, não se preocupe, eu trato do resto, Den, e também tenho a certeza
de que tem outras coisas para fazer.
Eu tinha reparado no grande desentupidor que lhe saía do bolso do
fato-macaco de linho rústico.
- É só um lavatório entupido na casa de banho lá de baixo - disse ele.
- Já vou ver disso quand’a menina ‘tiver instalada.
Assim sendo, levou a grande caixa de madeira de tintas e outra
desdobrável de plástico que tinha coisas como pastéis, lápis de cor
e de grafite, massa pão... uma pequena loja portátil de material de
artes, de facto, exceção feita a tudo estar gasto e usado.
Quanto a mim, levei a tela, o tento e o frasco com pincéis e espátulas.
Entrámos pé ante pé no escritório com as nossas cargas e, depois de
Den sair e fechar a porta silenciosamente, Clara ergueu o olhar
distraído e desligou o microfone.
Pestanejou e disse-me:
- Já chegou, Meg. Diga-me quando quiser que pose para si. - E tornou
a clicar no microfone e a retomar o ditado, sem pausa discernível para
pensar.
Tenho a certeza de que se esqueceu de imediato da minha presença, mas
também recaíra naturalmente na pose certa, por vezes com o pisa-papéis
de pedra na mão, revirando-o nas breves pausas entre cenas.
Desta feita, esbocei-a diretamente na tela, usando traços leves de
lápis, e depois recuei para estudar o desenho.
Sim, tinha conseguido: a base do retrato estava ali, à espera de ser
desenvolvida. Apaguei suavemente as linhas com a massa pão até ficar
apenas com o fantasma do desenho e depois preparei a minha palete, antes
de começar a pintar. Gosto de começar com espátulas largas, ainda que
depois muitas vezes arraste a tinta com um pincel ou até com os dedos.
Como sempre, assim que comecei, foi como se uma energia elétrica se
apoderasse da minha mão e fizesse os movimentos certeiros e ágeis que
criariam a pele, a personalidade e, esperava eu, capturariam a essência
interna da minha modelo.
Enquanto ia trabalhando, estava vagamente ciente da profunda voz
melódica de Clara a ditar.
- A amarrotada máscara dourada, que o sangue deixara escorregadia, caiu
dos dedos do assassino e aterrou por acaso sobre o rosto terrivelmente
mutilado de Vernon Tate, esparramado como um sacrifício na trincheira
lá em baixo... Fim do Capítulo Oito - entoou ela por fim, acrescentando
depois num tom ligeiramente queixoso: - Já posso mexer-me, Meg?
Continuei e escrevi dois capítulos hoje em vez de apenas um, mas estou
a sentir-me um pouco perra e já devem ser horas de almoçar.
- Estou a ouvir a Lass a uivar - respondi num tom alheado ao mesmo tempo
que recuava para que as manchas e os rabiscos de tinta se transformassem
magicamente no rosto de Clara.
- Isto foi o meu estômago.
Levantei então o olhar, dando-me conta do sentido do que ela acabava
de dizer.
- Oh, peço imensa desculpa! Sim, claro, mexa-se! Basta dizer sempre
que precisar de se esticar ou quando já lhe chegar por esse dia.
Ela levantou-se, alta e robusta, e espreguiçou-se. Depois contornou
o cavalete para espreitar a pintura.
- Hum, é interessante a forma como pôs uma manta de retalhos de cor
sobre a estrutura óssea da minha cara.
- Gosto de começar assim e depois trabalhar sobre a superfície húmida
com tinta mais espessa. Às vezes, misturo praticamente as cores na tela.
- Porque é que há aqui estas manchinhas de tinta por cima do resto?
- São notas de cor: para começar, acho que não vai usar as mesmas roupas
todos os dias, portanto isto depois vai ajudar-me.
- Interessante! - exclamou ela. - Bem, acho que ambas tivemos uma manhã
produtiva de trabalho, porque não só escrevi dois capítulos do policial
como, antes disso, acrescentei um pouco mais às minhas memórias. E,
depois do almoço, volto ao trabalho a sério. Tenho uma ideia acerca
daquela inscrição que tenho estado a estudar.
Limpei as espátulas e enfiei-as no frasco que tinha encontrado no
estúdio, incrustado com manchas antigas de tinta de óleo, como líquenes
de cores estranhas.
O dia tinha-se desanuviado e levei o retrato para o estúdio, pousando-o
no velho cavalete que aí havia, fazendo tenções de, a seguir ao almoço,
passar a tarde a bloquear o fundo.
Mas parecia que ainda só tinha passado cinco minutos no estúdio quando
Clara me fez sair e insistiu que fosse com ela a Underhill.
- A Sybil ligou para nos convidar para lanchar. A Tottie já lá está,
porque foram andar a cavalo nas charnecas. Podemos trazê-la, o que a
vai poupar à caminhada, ainda que seja um percurso muito mais curto
pelos cercados. E o Henry vai buscar o Teddy à escola e depois vão
visitar o Lex na olaria.
- O convite da Sybil é muito simpático, mas, na verdade, eu estou aqui
para trabalhar e...
- Para convalescer e divertir-se, também - interrompeu-me firmemente.
- Venha. O ar fresco vai fazer-lhe bem e eu estou curiosa por ver o
que o Mark tem feito em Underhill. Já lá não vou há séculos.
- Chegámos - anunciou Clara desnecessariamente, ao passar por um arco
de pedra e estacionar no meio de um pátio empedrado, afugentando o
galinhame. As galinhas eram do género com folhos de penas frívolas à
volta dos tornozelos, se é que as galinhas têm tornozelos.
A mansão era uma casa de pedra delapidada, baixa e em forma de L; tinha
um certo charme, mas nenhum grande mérito arquitetónico, sendo evidente
que haviam sido feitos acrescentos aleatórios, unidos ao longo de
várias gerações. Um grande anexo, que seria um celeiro ou uma
cavalariça, formava um dos lados do pátio, e pensei que talvez o
edifício original tivesse começado por ser uma quinta.
- Esta era a entrada das traseiras da casa, claro, antes de terem
construído o reservatório - disse Clara. - Venha!
Abandonei o calor do carro com relutância, porque gotas grossas de chuva
tinham-se juntado ao vento gelado e parecia que alguém nos atirava
mancheias gigantes de água.
- Não há de ter sido divertido andar a cavalo com este tempo - comentei,
mas Clara disse que Tottie e Sybil eram rijas e não deixariam que o
tempo as detivesse.
- Já o Mark é capaz de o fazer, a menos que a Sybil comece a pagar todas
as contas da manutenção dos cavalos e parte do salário do Len por servir
de moço de estrebaria - acrescentou ela num tom sardónico.
- Disse que o filho de Sybil ia transformar Underhill num espaço para
casamentos ou num hotel ou coisa do género?
Se assim fosse, poderia chamar-lhe Casa Sombria; isso haveria de atrair
clientes... para longe.
- Uma coisa assim. Acho que já quase terminou a conversão da cavalariça
em salão para copos-d’água, mas desentendeu-se com os empreiteiros e
não há de arranjar ninguém que esteja disposto a vir cá pelo menos até
ao Ano Novo... isso se conseguirem chegar cá nessa altura.
Que mau agoiro. A perspetiva de ficar presa pela neve na Casa Vermelha
durante o Natal com Lex Mariner não me seduzia de todo.
Clara seguiu para a casa, passando por uma porta grande de madeira de
carvalho com cravos de metal e por um corredor estreito, antes de, sem
qualquer cerimónia, abrir uma porta interior de par em par e gritar
para o espaço escuro e cavernoso:
- Oláá, chegámos!
A sua voz grave e profunda ecoou por um átrio muito grande, a partir
da qual subia uma esplêndida escadaria. Havia cerca de meio tronco de
árvore na vasta lareira aberta ao fundo desses espaço, mas, como estava
apagada, fazia praticamente tanto frio ali dentro como lá fora.
- Aquela lareira sempre foi mantida acesa durante o inverno, Mark -
comentou Clara, ao aparecer um jovem magro de um corredor ali perto.
Tinha cabelo acobreado muito escuro e umas sobrancelhas retas a marcar
aquilo que parecia uma careta permanente, mas não deixava de ser
atraente, fazendo lembrar uma raposa.
- Não posso suportar as lareiras acesas em todas as divisões - foi a
resposta concisa.
- Isso é um argumento económico falso numa casa antiga como esta,
querido, porque o vosso aquecimento central não é grande coisa e
precisam de manter todo o espaço quente, caso contrário não vai tardar
a ficar húmido.
Ele lançou-lhe um olhar irritado, embora a sugestão me tivesse parecido
muito sensata, e depois voltou os olhos castanhos e inquietantes na
minha direção, fitando-me.
Estava escuro ali, por isso, com a minha pele muito pálida e o cabelo
verde, talvez tivesse um ar um pouco espetral. Fosse como fosse, parecia
que ele não conseguia desviar os olhos de mim.
- Apresento-te a Meg Harkness. A tua mãe contou-te que eu ia ter uma
pintora lá em casa durante o Natal?
- Eu... acho que ela mencionou qualquer coisa - respondeu ele, ainda
de olhos fixos em mim. - Vai pintar o seu retrato, não é, tia Clara?
Chamo-me Mark Whitcliffe - acrescentou, dirigindo-se a mim e estendendo
a mão. - O herdeiro dos Doome... ou o herdeiro condenado.
O seu sorriso irónico era bastante atraente e eu dei por mim a
corresponder-lhe.
- Ninguém diria que ele fosse um Doome, porque costumam ser louros e
de olhos azuis. Saiu ao pai - comentou Clara. - A propósito, Mark, as
galinhas andam lá fora.
- Oh, fantástico. Vou dizer ao Gidney que recolha as sacanas, antes
que uma raposa as apanhe - disse ele num tom desconsolado.
- Vamos lá sair deste congelador para algum sítio quente. Onde está
a tua mãe?
- Na sala da manhã com a Tottie. Só agora é que me avisou que vocês
vinham, por isso Mistress Gidney vai preparar mais sanduíches.
- Ótimo, estou faminta. Venha, Meg, por aqui!
Enquanto a seguia pelo piso de pedra, uma porta abriu-se, revelando
uma luz quente e duas cadelas salsicha que desataram a correr na nossa
direção e a ganir, muito entusiasmadas.
- Para baixo, Wisty - disse Clara, quando a maior lhe saltou para as
pernas; já a mais pequena, que mal parecia ser capaz de controlar o
corpo, como um adolescente ainda a crescer, cheirava-me os pés com
interesse e contorcia-se.
- Esta é a Princesa Wisteria de Underhill e essa é a pequenota da última
ninhada dela, a Pansy - disse-me Clara. - A Sybil ainda não conseguiu
arranjar-lhe um comprador.
- Oh, entrem, as duas, por favor - instou-nos Sybil. - Faz tanto frio
aí!
A sala da manhã era bastante pequena e, felizmente, estava aquecida
tanto por um radiador como por uma lareira de proporções mais modestas
do que a do corredor.
Mark, que nos tinha seguido e fechado a porta, teve de voltar a abri-la,
para deixar as duas cadelas voltarem a entrar.
Tottie estava sentada perto da lareira, com as pernas compridas
esticadas e de botas.
- Olá, Tottie... foi uma boa cavalgada? - perguntou Clara.
- Sim, obrigada, fizemos um belo passeio pelas charnecas. Encontrámos
o velho Jonas, da quinta de Oxberry, e ele disse que vem aí uma frente
fria. Tem sempre razão.
O tempo já me parecia bastante frio.
- Disse a Mistress Gidney que são mais duas pessoas para o lanche e
já vem - atalhou Mark abruptamente e depois acrescentou, num tom
bastante ressentido: - Vai ter de cortar o presunto, que eu achava que
estávamos a guardar para o Natal, mãe.
- Oh, não... lembra-te, no Natal temos sempre presunto de Wesphalia,
Mark, e já está encomendado.
- Então cancele! São caríssimos e vamos ser só nós os dois.
- Três, com o tio Piers, e acho que é demasiado tarde para cancelar
a encomenda - replicou ela num tom duvidoso. - Já vem a caminho.
- Então cancele antes o peru, porque tenho a certeza de que também deve
ter encomendado uma ave ridiculamente gigante. Podemos comer presunto,
em vez disso. Ou uma daquelas malditas galinhas... que voltaram a
escapar-se.
Sybil começou a parecer afligida e eu apressei-me a dizer:
- Por favor, não abram o presunto por minha causa. Eu não como carne.
- E sabes muito bem que eu também não, Mark - disse Clara. - Vai lá
à cozinha e diz-lhe que não se incomode com isso.
Com um olhar irritado, ele saiu da sala mais uma vez e nós juntámo-nos
a Tottie num velho sofá de tecido próximo do fogo.
- Já percebo o que dizias quanto a contar tostões - disse Clara a Sybil,
que ia emitindo pequenos sons afligidos. Deixou-se cair numa cadeira
e Wisty logo se deitou a seus pés. Pansy saltou para o meu colo e
aninhou-se.
- Mande-a para o chão, querida - disse Sybil.
- Não faz mal, eu gosto de cães - respondi. Até de uma pequena e estranha
salsicha com uma orelha revirada, uma cauda torta e o ligeiro ar de
ter sido criada por alguém com sentido de humor e os olhos fechados.
- Aquele rapaz está a transformar-se num sovina - comentou Tottie.
- Oh, não, não é assim tão mau - protestou Sybil. - É só que as
remodelações estão a custar muito mais do que o orçamentado... e há
pouco dinheiro que sobre para as fazer, já que a maioria do que o
paizinho deixou está comprometido com a minha anuidade.
- O Henry disse que ele te tinha deixado o suficiente para viveres muito
confortavelmente - disse Clara.
- Sim, mas não para pagar todas as despesas com os cavalos, para além
de investir parte do meu rendimento no negócio, que foi outra das
sugestões do Mark. A ideia mais recente que teve foi que posso ganhar
a vida como rececionista ou estalajadeira ou lá o que é! Está a pensar
transformar o antigo quarto da governanta e o outro mais perto da
cozinha numa espécie de pequeno apartamento para mim.
A perspetiva não parecia animá-la muito.
- Porquê? Não há de querer todos os quartos para hóspedes, seguramente?
- perguntou Clara.
- Ele diz que sim. - Eu julgava que Sybil se tinha esquecido que eu
estava ali, mas, evidentemente, falava com tanta franqueza de questões
pessoais em frente a perfeitos desconhecidos como os Doome, pois
explicou para que eu entendesse: - O plano é que os Gidney fiquem onde
estão agora. Vivem numa casinha no terreno e o Gidney cuida das coisas
em geral, enquanto Mistress Gidney é a governanta e cozinheira. Mas
o Mark tem dois amigos que vêm para cá durante a temporada dos casamentos
exclusivamente para o catering dos copos-d’água.
- O que há de ser uma temporada curta, com o tempo que faz por aqui...
e isso é se conseguir pôr o negócio a funcionar - atalhou Tottie.
- Preencheu os formulários de todas as licenças necessárias, antes de
ter voltado de forma permanente, e o celeiro está quase terminado -
disse Sybil. - Os trabalhadores mandaram abaixo a velha copa antes de
largarem as ferramentas e irem embora.
- Mistress Gidney não vai gostar de partilhar a cozinha, pois não? -
perguntou Clara.
- Não vai ter de partilhar, porque várias das divisões pequenas por
trás, que têm a parede do celeiro como limite, foram unidas para fazer
aquilo que se vai transformar numa enorme cozinha nova própria para
servir grandes grupos.
- Tudo isso parece muito dispendioso - comentou Clara, dirigindo-se
então a Mark, que apareceu de novo. - O que estás a planear ao certo
para Underhill?
Mark trazia um tabuleiro grande, carregado com um bule, loiça e um prato
cheio de sanduíches.
- Se essas cadelas se aproximam da comida, vão para o átrio - decretou,
sentando-se à minha frente e dirigindo-me outro olhar ligeiramente
inflamado, mas, ao que parecia, aprovador. - Underhill precisa de ser
sustentável, para continuar com a família - disse-me, como se
estivéssemos ali só os dois. - O meu avô não deixou muito dinheiro e
o pouco que deixou não está disponível.
Lançou um olhar à mãe, como se a culpa disso fosse dela.
- A tua mãe cuidou do George durante vários anos, recebendo em troca
pouca gratidão e nenhum salário, pelo que está certo que ele tenha
garantido que ela não passará dificuldades - disse Clara. - Para além
disso, só tinha uma mísera pensão de viuvez e o que conseguia com a
criação dos cães.
- Mas não precisava de ser tanto. De facto, não acredito que precise
sequer de metade, mãe, por isso não faço ideia do que faz com todo.
- Oh, mas não é assim tanto, Mark... - protestou Sybil, parecendo
agitada, o que me fez começar a pensar se ela não teria, de facto, um
vício secreto, embora fosse difícil imaginar qual seria. - Agora que
vou começar a pagar a manutenção dos cavalos, isso vai fazer uma grande
mossa no meu rendimento: ferraduras, alimentação, mais as contas do
veterinário...
- E vai ter de chegar para pagar parte do salário do Len, se é para
continuar a cuidar dos cavalos, para além de ser meu jardineiro -
lembrou-a Mark.
Sybil parecia arrasada e Mark virou-se de novo para mim.
- Vou publicitar a mansão como espaço para festas de casamento (estas
realizar-se-ão todas no antigo espaço do celeiro e da cavalariça, que
transformei num grande salão) e espero poder celebrar casamentos
também. Talvez no átrio; o semipatamar seria um excelente palco para
a cerimónia, com os convidados mais abaixo.
- Consigo imaginá-lo - concordei. - Ou, melhor, conseguiria, se fosse
um espaço mais luminoso e quente.
- A minha intenção é abrir apenas entre a primavera e o verão, porque
não dá para confiar no tempo aqui no resto do ano. Isso quer dizer que
vai ter de ser caro e para um nível económico muito elevado, de maneira
a conseguir fazer muito dinheiro em pouco tempo.
Obviamente, ele tinha refletido muito, mas estariam as pessoas
dispostas a ir até tão longe para fazer um copo-d’água?
- E depois no inverno fecho o espaço, deixo os Gidney a cuidar dele
e vou para Itália - continuou ele. - Tenho uma casa lá.
Presumivelmente, a mãe também ficaria fechada com os Gidney em
Underhill durante o inverno.
- Devo conseguir criar seis quartos para arrendar, com casas de banho
privadas, para além do meu apartamento na ala ocidental e outro conjunto
de aposentos para o Art e o Gerry.
- O Art e o Gerry são amigos do Mark - explicou Sybill. - O Art é chefe
de cozinha e o Gerry... arranja coisas.
- O Gerry tem uma grande sensibilidade artística e vai organizar tudo
para os copos-d’água: flores, conjuntos de mesa, tudo isso - disse Mark.
- E o Art vai preparar a comida para os jantares ou bufetes dos
copos-d’água, o que quer que escolham, e cozinhará para quaisquer
convidados dos noivos que se hospedem aqui.
- O rapaz tem tudo planeado, é preciso reconhecer isso - disse Tottie,
e o rapaz (que parecia não ter muito menos do que os meus trinta e seis
anos) lançou-lhe um olhar irritado. Parecia ser a sua expressão por
definição. Devia mesmo ter nascido numa geração anterior, porque era
a personificação de um Jovem Britânico Irado.
Sybil começou a servir o chá e Tottie foi passando pratos. Eu fiquei
satisfeita ao ver que havia sanduíches de queijo e tomate, bem como
de ovo e agrião, sem sinal do presunto.
Mark começou a contar-me todos os pormenores dos avanços e recuos da
sua remodelação, que eram interessantes. A sua determinação em ter tudo
terminado a tempo de abrir na primavera, acontecesse o que acontecesse,
era bastante admirável.
Eu também achava que ele estava a ser bastante mesquinho com a mãe,
mas percebia que precisava de todos os tostões que conseguisse juntar.
E, para além disso, devia adorar Underhill para fazer aquilo, por mais
que parecesse gostar ainda mais da sua casa italiana, tecendo elogios
ao sol, às vinhas, ao limoeiro no jardim e às lindas vistas... que eu
tinha de visitar um dia.
Depois de ele ter feito esta sugestão, dei pelos olhos atentos de Clara
fixos em nós e corei um pouco.
Depois ela transferiu o seu olhar para Sybil e perguntou:
- Pensava que tinhas arranjado compradores para a Pansy?
Sybil suspirou.
- Eu também achava que sim, e disse-lhes que ia baixar o preço por ela
não ser material para exposições de cães, mas, quando a viram, disseram
que não era de todo o que esperavam e foram-se embora.
- Eu acho que ela é perfeita... tão querida! - exclamei, enquanto lhe
afagava a cabeça sedosa. Ela e a mãe tinham estado a olhar para a comida
e a suspirar pesadamente a intervalos regulares, mas sem fazerem
qualquer tentativa de roubar algum pedaço. Eu desconfiava de que, se
Mark não estivesse ali, as coisas fossem diferentes.
- Não há dúvida de que ela se afeiçoou a si, Meg - disse Tottie.
O sentimento era mútuo, definitivamente, mas precisaria eu de uma
cadelinha para me complicar a vida?
13
Como o Grinch
Apesar de tanto advogar a frugalidade, Mark estava a fazer jus ao
lanche. A quantidade de sanduíches que comera parecia tê-lo amaciado
um pouco, pois disse às cadelas, num tom bastante indulgente:
- Que coisinhas engraçadas!
Aparentemente encorajada por este degelo, Sybil disse timidamente:
- Hoje de manhã recebi uma carta do tio Piers, Mark, a dizer o quanto
está desejoso de passar outra vez o Natal connosco aqui em Underhill.
- Ele sabe que isto se transformou num estaleiro de obras? Quero dizer,
ainda não veio cá desde que o Mark voltou, pois não? - perguntou Tottie.
E depois explicou-me: - O Piers Marten era um amigo muito antigo do
avô do Mark e costumava passar grandes temporadas aqui.
- Ele e o George eram unha com carne - confirmou Clara. - E era um pior
do que o outro. Por sorte havia uma vasta adega em Underhill, pelo que
podiam concentrar-se em acabar com as garrafas durante as visitas dele.
Sybil emitiu um pequeno som de protesto, mas não com grande convicção.
Mark estava outra vez com um ar zangado, o que só queria dizer que tinha
mais uma camada sobre a sua expressão habitual.
- Mãe, da última vez que ele sugeriu visitar-nos, eu tinha dito que
já estava farto de que se aproveitasse de nós... a menos que tenha alguns
talentos por revelar como canalizador, rebocador ou decorador de
interiores?
- É da idade que teria o avô... fizeram a recruta juntos, em Sandhurst...
por isso não está mesmo capaz desse tipo de coisas, Mark, querido...
e há um desentendimento qualquer na família dele, pelo que prefere
passar o Natal e o Ano Novo connosco.
- Sendo que «ficar» é a palavra de ordem, já que ele se instala durante
o máximo de tempo possível - disse Mark. - Isso é um hábito a que vamos
ter de pôr fim, porque Underhill já não é uma casa privada, é uma
empresa.
- Mas vai continuar a ser a nossa casa de família - protestou Sybil.
- E, quanto ao Piers - acrescentou, ansiosa -, será que não podemos...
- Não - replicou ele. - Para começar, vou passar o Natal todo a
trabalhar, a pintar e decorar e a fazer qualquer outra coisa de que
seja capaz, por isso não me vou pôr a organizar nenhuma espécie de festa.
- Mas vais fazer uma pausa no Natal, não? - perguntou Clara.
- Sim, querido, e tu sabes que recebemos sempre a Clara, o Henry, a
Tottie, o Lex e o Teddy para o jantar da véspera de Natal - disse Sybil.
- E depois...
- Este ano, não - atalhou ele. - Isso é uma complicação dispendiosa
sem motivo, por isso este ano vamos ser só nós os dois. Eu tiro o dia
de Natal, jantamos como de costume e pronto. Não tenho tempo a perder
a ficar por aí, comer demasiado e fazer conversa de circunstância.
- Fazes-me mesmo lembrar o livro do Teddy sobre o Grinch que roubou
o Natal - disse Clara, e ele lançou-lhe um olhar impaciente. - Mas eu
não me preocuparia com o Piers, Sybil - continuou ela. - A ex-mulher
dele é amiga de uma amiga nossa e ao que parece os filhos revezam-se
a convidar o pai para passar o Natal com eles, porque acham que assim
deve ser, independentemente de quaisquer desentendimentos, por isso
ele tem outro sítio para onde ir.
- Deve ter razão... e é verdade que ele passou o último Natal muito
confortavelmente no seu clube, quando o paizinho estava tão doente...
mas isso não parece de todo o nosso Natal habitual - murmurou a pobre
Sybil. - É o oposto do que o teu avô quereria. Ele gostava tanto do
Natal...
- Sim, era praticamente a única coisa que ele e o Henry tinham em comum
- concordou Clara.
- Se o avô não tivesse desbaratado a maior parte do capital em cavalos
de corrida e luxos, eu era capaz de não estar a tentar transformar
Underhill numa empresa - realçou Mark.
Sybil suspirou.
- Deves ter razão, querido. Mas um hóspede não faria uma diferença tão
grande, de certeza, por isso o Piers...
- Não - atalhou ele intransigentemente. - É a minha última palavra.
- Sybil, porque é que não vens passar o Natal connosco? - sugeriu Clara.
- Se o Mark jantasse connosco também, os Gidney teriam o dia de Natal
todo livre e já não haveria necessidade de comprarem um peru caro e
tudo o resto. Podes comer o presunto enquanto fazes as remodelações,
querido - acrescentou, dirigindo-se a Mark.
- Oh, posso ir? - respondeu Sybil, agradecida. - Isso seria mesmo
maravilhoso, porque aquilo lá em cima é mesmo um estaleiro de obras
e lá em baixo há pó por todo o lado, não fazem ideia.
- Eu ficaria surpreendida se os trabalhadores voltassem antes do final
de janeiro - disse Clara a Mark. - Nunca se sabe como vai estar o tempo
aqui. Uma geada mais forte e as estradas podem tornar-se letais,
cobertas de gelo.
- Vou só continuar a fazer o que posso - disse ele, impaciente. - Vai
para a Casa Vermelha se quiseres, mãe, e é bom que escrevas ao Piers
e lhe digas que não pode vir para Underhill porque não vais estar cá.
Isso há de convencê-lo.
- É muita generosidade sua, Clara - disse Sybil.
- De todo - disse Clara. - Vamos adorar.
- Venha, vai ser divertido! - instou-a Tottie.
- Desde que não se importem que leve a Wisty e a Pansy? - perguntou
Sybil.
- Oh, não, a Lass adora brincar com elas - respondeu Clara. - Mark,
contamos contigo para o jantar de Natal, não?
- Obrigado, seria bom - respondeu ele sem grande delicadeza.
- Vamos ter a casa cheia! O Henry vai ficar tão contente! - exclamou
Clara. - A Sybil, o Lex, a Tottie, eu, o Henry, o Teddy, a Zelda, o
Den e a Meg...
- Mas por essa altura eu provavelmente já terei terminado os retratos
e ido embora... - ressalvei.
- Oh, eu tenho a certeza de que mudará de ideias e ficará connosco!
- afirmou Clara num tom confiante. - Afinal, tem de recuperar depois
da sua doença, pelo que precisa de algum repouso e depois, sabe, até
é capaz de querer pintar outros modelos.
Era uma observação perspicaz: havia suficientes rostos cheios de
personalidade em Starstone Edge para me manter ocupada durante um
ano...
- Para além disso, o Henry está mortinho por lhe mostrar todos os
encantos do Natal! - acrescentou ela, e depois teve de explicar porquê
a Sybil e a Mark.
Para minha surpresa, Mark disse que esperava que eu não me fosse embora
tão cedo e depois convidou-me a voltar em breve para me mostrar o que
estava a fazer à casa, o que foi lisonjeiro até ele ter acrescentado:
- Gostaria que me desse a sua opinião sobre os quadros na sala de estar
e na galeria lá em cima. Preciso de vender alguma coisa para financiar
o negócio até este começar a dar lucro e, como a minha mãe se opõe
completamente a que eu me livre do que quer que seja dos antepassados,
por mais horrível que seja, vai ter de ser o Stubbs.
- Discípulo de Stubbs - corrigiu Clara.
- O paizinho sempre disse que era um Stubbs - insistiu Sybil. - E tenho
a certeza de que era um dos cavalos favoritos de um antepassado nosso.
É um árabe cinzento muito bonito.
- Seria um lindo cavalo árabe cinzento, não fosse aquela ligeira
sugestão de ter mais de quatro pernas - disse Clara.
- Eu certamente não seria capaz de afirmar se é genuíno ou não -
apressei-me a dizer a Mark. - Quero dizer, gostaria de o ver, mas o
melhor será mesmo procurar a opinião de um perito.
- O avô do Mark já fez isso - disse Tottie. - Discípulo de Stubbs. Só
nunca o aceitou.
- Seja como for, há de render bastante - declarou Mark. - Um dos retratos
que a mãe não me deixa vender é um Lely e o seguro é tremendo. Quem
me dera poder vender esse.
- O seguro de um Stubbs genuíno seria ainda mais elevado - realcei.
- Suponho que tenha razão - concedeu ele.
- Porque é que não pede a uma dessas grandes leiloeiras que venha vê-los?
- sugeri-lhe, mas ele persuadiu-me a voltar dentro de uns dias e
dar-lhes uma vista de olhos.
Quando chegou a hora de ir embora, apercebi-me de que tinha Pansy nos
braços, como um bebé peludo, e que ela fazia os possíveis por ir comigo.
- Realmente gostou de si e, claro, fazia-lhe um bom preço - sugeriu
Sybil num tom esperançado.
- Ela é adorável! - Baixei-me para lhe afagar a cabeça sedosa. - Adorava
ter um cão, mas agora não tenho mesmo condições. E o meu estilo de vida
atual, viajando tanto, tornaria a situação muito difícil.
Sybil ficou com um ar desapontado, mas pareceu aceitar o argumento;
já Pansy lançou-me um ar de profunda reprovação quando me fui embora
sem ela...
No caminho de regresso, Clara avisou-me que Mark era um pouco
namoradeiro, como ela dizia, mas que, tanto quanto ela soubesse, nunca
tinha tido uma relação séria.
- Talvez tenha tido, em Itália - sugeri.
- É possível, mas da última vez que veio a casa teve um caso com a antiga
ama do Teddy, a Flora, que estava de visita à tia na aldeia, e tenho
a certeza de que a pobre rapariga julgava que aquilo era mais sério
do que era.
Garanti-lhe que não estava interessada nele, coisa que não estava,
sobretudo se ele era um casanova!
- É muito atraente, à sua maneira, mas não faz de todo o meu género
- disse. - Estive comprometida, aqui há uns anos, mas acabei a relação
depois... depois de uma coisa que mudou o que sentia por ele.
Clara teve o tato de não me perguntar que coisa havia sido essa, e ainda
bem, porque ainda me custava muito falar do assunto.
- Então, como se costuma dizer, desde essa altura não teve outra
cara-metade?
- Não, decidi que me bastava a pintura... e uma vida tranquila.
- Aqui certamente terá uma vida tranquila - disse Clara, virando para
o acesso à Casa Vermelha.
Subi logo para o meu quarto para mudar de roupa e reparei que tinha
pelos castanhos nas calças de ganga, o que me fez sorrir. Pansy era
uma cadela salsicha tão imperfeitamente perfeita... e se calhar, se
eu pernoitasse sempre na minha autocaravana, em vez de nas casas dos
meus modelos, poderia ter um cão...
Mas não era lá muito prático e, de qualquer forma, desconfiava de que,
mesmo não sendo material para concursos caninos, Sybil continuaria a
querer uma batelada de dinheiro por ela.
Na nossa ausência, Henry tinha ido buscar Teddy à escola e, juntos,
tinham ido visitar Lex à Terrapotter.
Como o dia seguinte era sábado, Teddy tinha permissão para ficar
acordado até mais tarde depois do jantar. Henry estava a ensinar-lhe
a jogar xadrez, enquanto Tottie, Clara e eu jogávamos Scrabble. A
inexistência de um televisor na sala e de pessoas a verificarem os seus
telemóveis a cada cinco minutos era como estar de novo na Quinta...
tranquila. Eu nem tinha pensado no meu telemóvel desde o último
telefonema; de facto, ainda devia estar algures no estúdio.
Teddy não queria ir para a cama de todo, porque estava empolgado com
a chegada de Lex no dia seguinte para levar a família na tradicional
saída para escolher a árvore de Natal do ano.
Eu tinha a intenção de me manter longe até eles terem ido embora, pelo
que foi um golpe quando Henry disse:
- O Lex amanhã passa cá a noite, para poder ajudar-nos a montar a árvore
no átrio e a trazer as decorações e a árvore artificial do sótão.
- Guardamos essas caixas no sótão mais alto, e para lá chegar é preciso
subir por uma escada - explicou Clara. - É um pouco desconfortável.
Talvez possa ajudá-lo a descer as coisas, Meg?
A minha boca tornou a fazer aquela coisa de abrir e fechar como a de
um peixinho dourado.
- Não pomos azevinho fresco nem outras plantas na árvore até estarmos
mais perto do dia de Natal, porque ficam com um ar tão triste quando
murcham, não ficam? - disse Tottie, antes que eu conseguisse falar.
- Tio Henry, posso ajudar a escolher que decorações antigas é que pomos
na árvore aqui?
- Claro que podes - respondeu ele. - Fiz uma licitação por outras há
pouco tempo num leilão e devem estar a chegar. Era um conjunto grande,
de coisas variadas, vi no catálogo em linha que havia uma ou duas
invulgares, mas o resto vai ser surpresa. Uma surpresa boa, espero.
- Se chegar quando eu estiver na escola, não vais abri-lo até eu chegar,
pois não? - perguntou Terry num tom ansioso.
- Não, guardo o pacote para o abrirmos juntos - prometeu Henry. - Depois
podes ajudar-me a catalogar as peças.
Eu continuava embrenhada a pensar que Lex não iria aparecer apenas para
a expedição da árvore de Natal - à qual eu não fazia a mínima intenção
de me juntar -, mas que também passaria ali a noite. Não imaginava que
ele quisesse demorar-se comigo ali; era apenas mais uma daquelas
tradições festivas anuais que eram tão importantes para a família.
Por fim recuperei a voz e disse num tom animado:
- Bem, tenho a certeza de que vão encontrar uma linda árvore amanhã.
Enquanto vão, eu vou aproveitar para trabalhar no fundo do retrato no
seu escritório, se não se importa, Clara? Depois talvez pudesse posar
para mim outra vez no domingo de manhã.
- Oh, mas não podes perder a caça à árvore de Natal! - exclamou Teddy.
- Tens de vir, Meg! Fazemos um piquenique e bebemos chocolate quente
de um termos e tudo!
Parecia divertido, só que o «tudo» incluía Lex.
- O Teddy tem razão, não pode perder a nossa pequena expedição, e tem
direito a um ou outro dia de folga - instou-me Henry.
- Ainda só agora cheguei - protestei, dizendo que preferiria realmente
ficar na casa e trabalhar; porém, como de costume, Clara não aceitava
uma resposta negativa e tanto Teddy como Henry pareciam genuinamente
perturbados com a ideia de eu ir perder uma oportunidade tão boa.
- Não vamos caber todos na carrinha de caixa aberta do Lex - disse Tottie
e, por um segundo, julguei que isso talvez me desse uma forma de escapar.
Mas não.
- Não faz mal, seja como for levamos sempre dois carros - lembrou Clara.
- O Teddy e o Henry podem ir com o Lex e nós seguimos no Range Rover.
- O pinhal fica perto de outro reservatório, chamado Rivington -
explicou-me Tottie. - Tem uma área para merendas perto da margem, que
é onde almoçamos depois.
- E em seguida voltamos com uma árvore enorme, que há de ir largando
as agulhas pelo átrio até ao Dia de Reis - terminou Clara.
- Não, não vai, porque vamos trazer um abeto norueguês, cujas agulhas
se aguentam mais - disse Henry.
- Nem um abeto norueguês vai manter as agulhas até ao Dia de Reis, a
menos que usemos supercola - comentou Tottie.
Depois de Teddy finalmente ter ido para a cama, Henry mostrou-me mais
da sua coleção de ornamentos antigos e a gaveta de baixo do armário,
que continha a coleção de Teddy de peixes de papel mâché. Na verdade,
aquelas criaturas aquáticas com formas estranhas eram pequenas caixas
para doces que se podiam encher e pendurar na árvore.
- Às vezes, encontro um ou dois em conjuntos de objetos variados em
leilão e ele adora-os, por isso agora mantemo-nos atentos a isso.
Henry era muito culto e contou-me muitas coisas interessantes sobre
a história dos ornamentos e a diferença entre vidro soprado de uma cana
aquecida num forno e o trabalho industrial, mas eu limitei-me a apreciar
o brilho das bolas de vidro prateado e as formas estranhas e muitas
vezes excêntricas - bonecos de neve, frutos, instrumentos musicais,
fadas... fosse o que fosse, tinha sido feito.
- Aquele adorno de papel mâché em forma de Pai Natal, para o cimo da
árvore de Natal, que lhe mostrei da última vez, vai sempre para a árvore
no átrio, para fazer a vontade à Tottie. Foi ela que teve a má ideia
de lhe acrescentar a tinta com purpurinas e o algodão.
- Eu até gosto dele assim - admiti.
- Eu também, a sério, e, mesmo que lhe tenha tirado o valor de
antiguidade, aumentou-lhe o valor de legado de família.
Ele voltou a fechar a gaveta dos seus tesouros e regressámos à sala
de estar, onde não me demorei, pois, de repente, sentia-me muito
cansada. Subi para o meu quarto, deixando Tottie e Clara a discutir
o que serviriam ao jantar do dia seguinte. O consenso parecia ser um
prato de massa de que Lex gostava em particular...
Por mais deliciosa que fosse a comida, o mais provável era que me
engasgasse com ela, se Lex estivesse sentado à mesma mesa que eu.
Perguntei-me se poderia desenvolver uma alergia súbita a árvores de
Natal. Parecia uma ideia cheia de potencial, já que não só me livraria
da expedição do dia seguinte como também uma árvore na casa me daria
um motivo para partir o mais depressa possível.
Só não sabia quão convincente poderia ser em relação a uma reação
alérgica e a mantê-la sob o olhar atento e astuto de Clara.
Clara
A nova paróquia do meu pai em Devon era cálida e acolhedora, mas eu
permanecia profundamente infeliz por ter deixado Henry e tudo o que
conhecia e adorava.
Então, a irmã mais velha da minha mãe, a tia Beryl, que era uma viúva
abastada e sem filhos, sugeriu generosamente pagar as propinas para
que eu pudesse ter acesso a uma educação privada, ao que os meus pais
escolheram um colégio interno conhecido pela erudição e pelos feitos
intelectuais das alunas. Muitas tinham seguido os estudos em Oxford
ou Cambridge.
Era um ambiente estimulante e também fiz lá várias amigas, tendo todas
vindo a alcançar um sucesso considerável nas áreas que escolheram. Mas
claro que nunca esqueci Henry. Parecia haver sempre um fio invisível
entre nós, como se tivéssemos nascido gémeos...
O pai de Henry (já que a sua mãe morreu pouco depois de nos mudarmos)
não era do género de escrever cartas ou enviar cartões de Natal todos
os anos, pelo que o contacto com os Doome acabou por cessar, como é
costume acontecer nestes casos. Secretamente, porém, eu tinha a
intenção de, quando fosse mais crescida, ir em busca de Henry; mas,
até então, teria simplesmente de ser paciente. A seu tempo, e um ano
antes das minhas colegas, fui aceite no Lady Margaret Hall, que era
a antiga faculdade da minha mãe, em Oxford.
A tia Beryl tinha começado por sugerir que eu «terminasse» os estudos
para que ela pudesse lançar-me na cena social londrina... mas eu estava
bem determinada em relação ao que queria fazer com a minha vida, e não
era uma ronda interminável de eventos sociais vácuos com um «bom»
casamento pelo meio. Quando lhe disse isso, e que a minha ideia de
diversão era decifrar uma inscrição numa pedra antiga, ela riu-se e
prometeu financiar-me durante toda a faculdade.
Viria a ter mais sorte, uns anos depois, com a minha irmã, Bridget.
Esta revelou-se mais do que satisfeita por entrar no rodopio social
de Londres, enquanto eu continuava os estudos e me dedicava à carreira
que escolhera.
Nunca fui uma pessoa fácil de desviar de um objetivo a que me propusesse.
14
Breve Encontro
Na manhã seguinte, todos nos reunimos cedo para o pequeno-almoço e
experimentei usar o meu cartão de «você está livre da cadeia».
- Infelizmente, ontem à noite lembrei-me de que sou alérgica a pinheiros
- disse eu num tom descomprometido, enquanto barrava a minha torrada
com manteiga.
- O que é que a leva a dizer isso, querida? - perguntou Tottie, que
estava a combinar o consumo de crumpets com a construção de um monte
de sanduíches para o piquenique. Den tinha acabado de tirar do forno
um tabuleiro de folhados de salsicha vegetariana, que provavelmente
também fariam parte do festim volante.
- Assim que levavam a árvore do Yule para a Quinta e a penduravam das
vigas no átrio, eu começava a chorar e a ficar com os olhos lacrimosos
- disse eu. - Acho mesmo que não seria boa ideia ir convosco escolher
a árvore. Quero dizer, uma plantação inteira desse tipo de árvores...
- tentei parecer desgostosa.
- Nunca ouvi falar de alguém que fosse alérgico a árvores - disse Clara,
num tom que fazia lembrar Lady Bracknell. - Decerto haveria de ser outra
coisa a desencadear-lhe essa reação, Meg.
- De facto, parece uma alergia invulgar, sobretudo para alguém criado
no campo - concordou Tottie.
- Eu acho, minha querida, que vir connosco hoje resolveria
definitivamente a questão, de uma maneira ou de outra - sugeriu Henry.
- Talvez fosse apenas o pó acumulado nas vigas que caísse quando
penduravam a árvore ou algo assim?
Caso eu tivesse realmente sofrido uma reação alérgica, isso poderia
ser uma possibilidade, dado que ninguém limpava o pó das enormes vigas
dos tetos da casa, nem retirava as teias de aranha e as suas respetivas
ocupantes («as nossas amiguinhas», como River se lhes referia).
- É claro que, se começar a espirrar e os seus olhos desatarem a chorar
assim que saiamos do carro, perceberemos que tinha razão - disse Tottie.
- Pouco provável - declarou Clara. - Mas, se acontecer, pode ficar no
carro, com as janelas fechadas.
- Também tinha era de comer no carro, porque a zona das merendas é mesmo
no meio das árvores, ao pé do reservatório - indicou Den, acenando com
as pinças que tinha estado a usar para transferir folhados de salsicha
para uma grelha, onde estavam a arrefecer, para enfatizar o que dizia.
- Não espero que chegue a tanto - afirmou Clara. - Não me tinha dito
que decoram a árvore do Yule com bonecas de milho, Meg? Em dezembro,
devem estar cheias de pó; só pode ser isso.
Como parecia não haver forma de escapar à expedição, cedi com
relutância:
- Talvez tenham razão.
Teddy, que tinha estado a ouvir a conversa cheio de ansiedade, com a
colher parada por cima dos cereais por comer, disse-me então, com uma
intensidade lisonjeira:
- Eu preciso que venhas, Meg. Queres ir até lá na carrinha comigo, o
tio Lex e o tio Henry?
- Ficavam um bocado apertados - respondeu Den. - É melhor no carro.
Suspirei de alívio e Teddy pareceu aceitar o argumento, pois, a fazer
o conteúdo da tigela rodopiar, comentou:
- Gosto quando o chocolate sai dos cereais e passa para o leite - e
recomeçou a comer.
- Pois aproveita, porque depois do fim de semana voltas aos cereais
integrais - disse-lhe Clara.
Deixámos Den e Tottie a preparar o piquenique. Henry e Teddy
prepararam-se para levar Lass a passear, já que ela ficaria em casa
enquanto nós saíamos.
Clara disse que ainda tínhamos uma hora, pelo que fomos para o seu
escritório, onde ela ditou rapidamente mais um capítulo do policial
enquanto eu aplicava tinta com a minha pequena espátula. Quando estou
a trabalhar, uma espécie de energia flui-me do cérebro para os dedos;
sinto-a, como uma corrente elétrica. Tinha sentido falta disso enquanto
estava doente, receando que pudesse nunca mais voltar.
Esqueci de imediato a expedição e tudo o mais, pelo que foi um choque
quando Henry espreitou pela porta e nos disse que Lex tinha acabado
de estacionar e que era melhor prepararmo-nos para sair enquanto eles
guardavam as cestas para o piquenique.
Quando acabei de limpar as espátulas e as mãos, e depois de ter corrido
ao piso de cima para trocar a camisola manchada por uma túnica quente
e os ténis All Star por uns botins, já toda a gente estava lá fora,
exceto Henry, que se dirigia para a porta com umas mantas axadrezadas.
- Aqui está, minha querida, e eu também já deixei a Lass instalada,
por isso podemos ir! - Passou-me uma das mantas. - Pode usá-la para
se tapar no carro. Não deve apanhar frio estando ainda a convalescer.
- Venha, Meg, estamos todos à sua espera - chamou-me Clara enquanto
eu descia os degraus, ao som de Henry a girar a chave na fechadura atrás
de mim.
Lex, com mais de um metro e noventa de beleza sombriamente inquietante
como um falcão, estava encostado à porta aberta da carrinha de caixa
aberta e lançou-me um olhar sisudo.
- Que bom que tu e a Meg sejam velhos amigos, Lex. Mas podem pôr a
conversa em dia depois. Agora é melhor irmos andando - disse Clara,
e a expressão naqueles olhos verde-escuros tornou-se sardónica.
Acharia ele que eu tinha dito a Clara que fôramos amigos?
No entanto, ele nada disse, limitando-se a passar Teddy, muito
empolgado, para o habitáculo, e a sentar-se depois ao volante. Henry
subiu agilmente para o lugar do passageiro, do outro lado de Teddy.
Clara e Den começaram a discutir acerca de quem deveria conduzir o Range
Rover, mas Den ganhou. (Eu não sabia como era que alguém conseguia levar
a melhor a Clara; devia haver algum truque que eu ainda não descobrira.)
Ela sentou-se à frente, ao lado dele, ainda a resmungar, enquanto eu
e Tottie entrávamos para as traseiras, com uma cesta de vime sem tampa
cheia de garrafas térmicas entre nós.
O percurso até Rivington fazia-se sobretudo ao longo de tranquilas
estradas rurais, passando por terras agrícolas, e eu teria desfrutado
não fosse saber que, quando chegássemos, teria de voltar a encarar Lex.
Ou não. Talvez ele se limitasse a afastar-se com aquelas pernas altas,
ignorando-me por completo.
O pinhal ficava no cimo de uma estrada de terra batida. Fileiras de
árvores de vários tamanhos espraiavam-se de um lado e do outro.
- Mais perto do Natal, daqui a cerca de uma semana, eles cortam as
árvores e envolvem-nas em rede, prontas para ser vendidas. Mas quem
vem mais cedo, como nós, pode escolher uma e eles abatem-na para a
levarmos - informou-me Tottie enquanto todos saíamos, agrupando-nos
contra o frio junto a um celeiro.
- Cá estamos, completamente submersos num mar de pinheiros - disse
Henry, poeticamente -, e não está a espirrar nem nada, Meg.
- Mas tenho lágrimas nos olhos - apressei-me a dizer.
- Isso é só deste vento frio... estamos todos assim - ressalvou Clara.
Examinou-me com o seu olhar atento e escuro, em busca de outros sinais
de um ataque alérgico iminente, e não encontrou nenhum.
- Parece que a reação sempre deveria ser ao pó, o que é uma sorte, porque
não poderia ter evitado a árvore depois de a pormos no átrio, pois não?
Só se deixasse a Casa Vermelha no momento em que a árvore, juntamente
com Lex Mariner, entrasse nela, pensei lamentosamente.
Porém, não dá para inventar uma reação alérgica total sem se ser melhor
atriz do que eu, pelo que abandonei a ideia.
Com grande sensatez, Den mantinha-se no bafo quente do carro, a ouvir
rádio, até que fosse preciso ajudar a carregar a árvore para a caixa
da carrinha.
Enquanto enfrentávamos os dentes do vento gelado - e Teddy desatava
a correr - desejei ter ficado lá dentro com ele.
Já entre as fileiras de árvores o espaço era mais abrigado e eu fui-me
interessando pelos diferentes tipos e pela forma como, à medida que
avançávamos de uma secção para outra, iam crescendo, desde pequenos
arbustos engraçados a monstros enormes.
Entre estes últimos contavam-se, ao que parecia, alguns da desejada
variedade norueguesa, pelo que parei para ver se conseguia dar pela
diferença. Talvez fossem as árvores com um tom verde-azulado bastante
bonito.
Desviei o olhar para perguntar a Henry, descobrindo então que já toda
a gente tinha seguido em frente e desaparecido pela fileira seguinte.
Não havia ninguém à vista, exceto Lex, que estava a observar-me de mãos
nos bolsos das calças de ganga e uma expressão a fazer lembrar a Morte,
ainda que, por sorte, não tivesse uma foice à mão.
Antes de conseguir controlar-me, disse-lhe:
- De todas as filas de árvores do mundo, tinhas de escolher esta.
Infelizmente, a minha boca muitas vezes lança comentários desaforados
na altura errada, sobretudo variações desta fala de Casablanca, e vi
logo que aquele não tinha sido muito bem recebido.
- Quero falar contigo - disse-me com secura.
Obviamente, estava na hora da verdade e, se ele fazia questão de falar,
talvez fosse aquele o momento em que finalmente poderíamos esclarecer
as coisas entre nós. Larguei o ramo que tinha estado a inspecionar e
endireitei-me para o encarar.
- Então? - respondi logo. - Já percebi que a minha chegada foi um
choque... e não dos bons... mas não podes pensar que eu teria acedido
a vir para a Casa Vermelha se soubesse que vivias aqui.
- Eras a última pessoa que eu estava à espera de ver quando trouxe o
Teddy da escola na quarta-feira - disse ele. Os seus olhos escureceram.
- Foi como se o passado tivesse voltado para me atormentar.
- Bem, digo o mesmo - repliquei.
- Então não havia nada que te impedisse de dar meia-volta e ir embora,
pois não?
- Não julgues que não tive vontade, porque esse foi o meu primeiro
impulso - disse-lhe. - Mas sou profissional e tinha aceitado a encomenda
para pintar a Clara e o Henry também.
- Ela tinha-me contado dos retratos e eu sabia que estava mesmo
entusiasmada por teres acedido a vir, mas não mencionou o teu nome.
- Pois, bem, também não lhe ocorreu referir que tu eras sobrinho dela
até eu ter chegado e descoberto por mim mesma. Mas quando fiquei a saber
que, na verdade, vivias a alguns quilómetros de distância, achei que
não faria mal. Não me tinha apercebido de que estarias tão presente.
- Encolhi os ombros, com uma descontração que não sentia. - Agora que
já nos encontrámos, não parece fazer tanta diferença, mas lamento se
te recordei do passado. Tampouco é uma altura de que queira lembrar-me.
- O que aconteceu entre nós não foi mesmo culpa tua. Não te culpo por
nada - disse ele num tom cansado.
- Ora que magnânimo, tendo em conta que não fiz nada pelo qual pudesses
culpar-me - respondi, apesar de, como sempre, aquela pequena centelha
de culpa se atiçar, fazendo-me sentir o rosto a corar.
Uma memória indesejada daquela noite fatídica acometeu-me naquele
momento inoportuno e ouvi a voz de Al, quando eu tinha atendido o
telemóvel de Lex, a exigir saber se ele estava ali comigo.
- Sim, mas está a dormir e... - começara eu.
- Então acorda-o e diz-lhe que a Lisa piorou de repente. Os pais dela
estão há duas horas a tentar encontrá-lo. Dá-me a tua morada e estou
aí daqui a dez minutos.
Entorpecida, eu obedecera e depois acrescentara, estupidamente:
- Mas tu estás a trabalhar.
Ele tinha tido de sair mais cedo do bar onde todos nos tínhamos
encontrado horas antes naquela noite, para ir para o seu turno noturno
de porteiro de hotel.
- Já não - replicara ele com secura, desligando em seguida.
A voz de Lex puxou-me de volta ao presente, ancorada num mar de verde
roçagante com um homem alto, moreno, bonito e dividido, como se fosse
o início de um filme de baixo orçamento.
- Nada se ganha a repisar o passado agora, isso é certo - dizia ele.
- Estás cá e teremos de aguentar, pela Clara e pelo Henry.
- Não vais ter de ser cordial durante demasiado tempo, porque eu vou
embora no dia a seguir à cerimónia do Solstício de Starstone.
- A Clara contou-me que o teu avô vem assistir à cerimónia, mas disse-me
que tu ficavas até ao Ano Novo.
- Também está sempre a dizer-me isso, mas não. Não faço ideia como é
que alguém consegue fazê-la mudar de ideias: é um rolo compressor
humano.
- Não é só a Clara que julga que vais ficar mais tempo, o resto da família
acha o mesmo. E, se também vais pintar o retrato do Henry, não hás de
despachar tudo até ao dia vinte e um, pois não?
- Na verdade, é o que conto fazer, se ambos posarem algumas vezes para
mim. Já comecei o retrato da Clara e está a avançar bastante depressa.
Não mencionei que adoraria pintar também os outros habitantes da Casa
Vermelha - Den e Tottie, e até a ligeiramente ressequida Sybil, de
Underhill - porque isso seria um desejo que nunca se realizaria.
- Bem, a Clara disse que o Henry está mesmo com vontade de te mostrar
um verdadeiro Natal em família, com todas as coisas festivas
associadas, porque parece que nunca celebraste o Natal.
Fitou-me com um ar cético, com uma sobrancelha arqueada. Isso só
demonstrava que nunca me conhecera realmente, e era mútuo, já que, até
ter chegado ali, eu também pouco sabia acerca da sua história.
- Não celebramos o Natal em minha casa, por isso, originalmente a ideia
pareceu-me interessante, mas já não.
Era uma mentira chapada, porque eu estava a ficar cada vez mais
fascinada por tudo aquilo.
- Vais fugir? Será que a consciência te pesa mais do que estás disposta
a admitir?
- Porque haveria de pesar? - ripostei friamente. - A única coisa de
que tenho culpa é de um gesto de bondade, afinal.
- É uma maneira de ver as coisas - disse ele com secura.
Fitei-o seriamente.
- É a única maneira de ver as coisas, independentemente do que o teu
amiguinho louco, o Al, me tenha acusado depois.
Ele pareceu espantar-se.
- O que é que isso quer dizer? O Al falou contigo acerca dessa noite?
Quando é que isso aconteceu?
- Lembras-te de quando, umas semanas depois de a Lisa ter... -
falharam-me as palavras, pois não havia forma delicada de dizer
«morrido». Recomecei. - Lembras-te quando voltaste à faculdade para
ires buscar umas coisas tuas e me ignoraste no corredor? Na altura,
eu achei que ou estavas a sofrer demasiado para teres dado por mim,
ou envergonhado por te teres embebedado naquela noite no bar e me teres
contado várias coisas muito pessoais.
Ele afastou os caracóis escuros dos olhos e disse:
- Lembrava-me de parte disso... mas esperava não me cruzar contigo nesse
dia.
- O Al apareceu e encontrou-me, depois de te teres ido embora. Não sei
que raio lhe tinhas dito, nem porquê, mas ele atirou-se a mim como se
eu te tivesse arrastado à força para o meu apartamento e me tivesse
aproveitado de ti num momento de fraqueza.
Então lembrei-me de novo do meu momento de fraqueza... ou melhor, do
nosso momento partilhado de fraqueza, e dei por mim a corar. Em seguida
o calor dissipou-se e o gelo instalou-se, porque claramente ele
acreditava na mesma versão que Al. Via-o nos seus olhos.
- Tenho sentido tanta culpa desde que a Lisa morreu, mas tenho tentado
deixar isso para trás e avançar, e agora tu apareces e trazes tudo à
tona outra vez.
- Bem, já disse que lamento, mas foi sem querer e em breve tornarei
a desaparecer. Podes continuar a usar-me como bode expiatório de
qualquer coisa que tenhas feito, se isso te faz sentir melhor.
Ele fitou-me por um minuto, de sobrolho franzido, como se tentasse
decifrar a minha atitude.
- Não te percebo... mas agora que estás aqui, mais vale que fiques até
acabares o trabalho. E eu gosto muito da Clara e do Henry, portanto,
até estou disposto a tolerar a tua presença no Natal, se tiver de ser.
- Ena, obrigadinha - repliquei com sarcasmo. - Adoraria ser o fantasma
do banquete.
Ele encolheu os ombros.
- Como queiras. Eu costumo ficar na Casa Vermelha a partir do Solstício,
pelo dia vinte e um até ao Ano Novo, mas se o tempo não estiver mau
poderei arranjar alguma desculpa para escapar até à olaria de vez em
quando. O Al e a Tara vão estar lá na maior parte do tempo. Sabes que
o Al é meu sócio?
- Sim, isso foi mesmo a cereja no cimo do bolo. E a Clara contou-me
que a Tara é a irmã mais nova da Lisa, o que faz com que também não
falte o chantili.
Ele lançou-me outro dos seus olhares atormentados e ligeiramente
ardentes. Seria uma séria concorrência a Heathcliff.
- Já todos aceitámos a perda da Lisa... os pais da Tara também.
Estamos... resignados.
Isso parecia confortável. Que pena que eu tivesse chegado e aberto a
ferida de novo.
- Trabalhamos todos juntos na Terrapotter. A Tara é ourives e tem um
pequeno estúdio lá, mas também nos ajuda com a cerâmica e a burocracia.
- Fitou-me de novo. - Faz como quiseres, fica ou vai, desde que não
desiludas a Clara e o Henry. Seja como for, já não me importa.
Eu estava a começar a sentir-me zangada outra vez. Não tinha feito nada
de mal e não merecia aquele desprezo. Ele poderia viver consumido por
culpa pelo passado, mas o meu papel imaginado não passara de uma pequena
parte.
Acreditaria em mim, se eu o obrigasse a ouvir a verdade acerca daquela
noite? Achei que mais valia tentar, quer ele acreditasse, quer não.
- Lex, já é mais do que altura de que saibas o que realmente aconteceu...
- comecei resolutamente, mas era tarde de mais: ele já tinha virado
costas e estava a afastar-se.
- Tio Lex! Tio Lex! - Teddy descia a correr por entre as fileiras de
árvores, com as faces rosadas e cheio de entusiasmo. - Tu e a Meg
perderam-se? Vem, encontrámos a árvore perfeita e é enorme!
15
Primeira Flor
Tive a impressão de que Clara nos tinha lançado um olhar atento quando
nos juntámos ao resto do grupo, mas mais ninguém pareceu dar por nada
e mantive-me o mais longe possível de Lex quando voltámos para trás
pelas fileiras de abetos cada vez mais liliputianos em direção ao grande
celeiro.
A árvore escolhida, que me parecia da altura de uma casa, já tinha sido
cortada e envolvida em rede. Não tardou a ser levada para as traseiras
da carrinha de caixa aberta, onde foi presa com corda.
Depois seguimos de carro até à zona das merendas, junto ao reservatório,
onde o conteúdo da cesta foi disposto numa grande mesa de piquenique,
perto da beira da água.
Dei por mim sem conseguir comer grande coisa, sentindo-me apenas grata
pelas canecas de café ou chocolate quente de que me ia servindo das
gigantes garrafas térmicas, porque estava enregelada não apenas até
aos ossos, mas até ao coração.
De volta à Casa Vermelha, poderia ter-me refugiado rapidamente no
estúdio, mas estava de tal forma convencida de que não conseguiriam
meter aquela árvore enorme no corredor, quanto mais pô-la de pé, que
me deixei ficar a ver.
Den foi buscar um suporte monumental de metal pintado de verde e, de
alguma maneira, a árvore passou pela porta e pelo vestíbulo até ao
corredor, sem partir nenhum vitral. Em seguida, endireitaram-na junto
à escadaria até ficar na vertical.
Por fim, fixaram-na à base metálica e manobraram-na até à posição
perfeita na curva da escadaria, com o topo uns bons palmos acima da
minha cabeça.
Houve ainda alguma discussão quanto a qual seria o melhor lado da
árvore, sendo esta virada um pouco para um lado e para o outro, até
todos se darem por satisfeitos.
Por esta altura, tinha-se passado algum tempo, e Tottie e Den, que a
certa altura haviam desaparecido na direção da cozinha, reapareceram
com o carrinho do chá.
- Sobras do piquenique para acabar! - exclamou Tottie alegremente, e,
como não tinha almoçado, o meu estômago agitou-se de supetão e emitiu
um ruído de fome. Mas não posso dizer que a ideia de me instalar na
sala de estar en famille com Lex me seduzisse muito.
- Eu levo o meu lanche para o estúdio, se não se importam - disse eu,
enquanto Clara dispunha as chávenas e os pires, que, naquele dia,
pareciam ter sido aleatoriamente selecionados de três serviços
diferentes. Ela levantou a cabeça.
- Oh, não vá, Meg. Porque é que não relaxa um pouco? Já trabalhou hoje
de manhã e, depois do lanche, gostava que desse uma mãozinha ao Lex
a tirar as caixas de decorações e a outra árvore do sótão.
- Não precisa. Consigo perfeitamente tratar disso sozinho - atalhou
Lex.
- É claro que consegues, mas é mais fácil se forem duas pessoas, porque
assim podes passar as caixas do sótão superior sem estares
constantemente a subir e a descer por aquela escada - disse Henry.
- Eu também posso ajudar - ofereceu-se Teddy, solícito.
- O Den ajudaria, mas teve de ir ao apartamento dele - disse Henry.
- E eu prometi à Sybil que ia lá abaixo e a ajudava com os cavalos,
porque o Len está de folga - disse Tottie.
- Bem, eu queria trabalhar um pouco mais... e o Henry também deve ter
tenções de desaparecer na sua toca durante uma ou duas horas - disse
Clara. - Por isso, se não se importa, Meg?
Só me restava concordar.
- Não, é claro que não me importo. Fico satisfeita por poder ser útil.
E, se somos dois... mais o Teddy, claro - apressei-me a acrescentar,
ao ver a sua boca abrir-se com indignação -, não deve demorar muito.
Eu posso ficar ao fundo da escada enquanto o Lex passa tudo para baixo.
Ou talvez me deixasse cair as coisas em cima da cabeça se lhe desse
para aí. De qualquer forma, caixas de bolas não deviam pesar muito e
no pior dos casos haviam de me causar uma ligeira contusão. A Bola da
Morte parecia um bom título para um policial, embora não do género que
Clara escrevia.
- E depois eu posso levar as caixas para o cimo das escadas do sótão.
- Se já acabaste de comer, mais vale despacharmos já isso - disse Lex,
levantando-se abruptamente.
Não tinha acabado - na verdade, apenas terminara um folhado de salsicha
e decidido que também comeria uma sanduíche de ovo e agrião -, mas
apressei-me a beber o chá e a segui-lo com Teddy, levando a sanduíche
comigo e comendo-a pelo caminho até lá acima.
Eu ainda não tinha ido ao sótão, mas lembrava-me de que Clara me dissera
que não o tinham renovado e que era usado sobretudo como arrecadação.
As escadas eram estreitas e sem carpetes, e um alçapão abria-se para
uma passagem com pequenos quartos de um lado e do outro, que calculei
que tivessem sido aposentos da criadagem. Havia outra porta ao fundo
do corredor. Lex abriu-a e acendeu as luzes, iluminando um espaço grande
e pardacento com as formas cobertas de grandes peças de mobiliário,
velhas arcas e caixas, cadeiras partidas... a estranha compilação
habitual de artigos que parece acumular-se naturalmente em sótãos e
depósitos.
Mesmo ao fundo estava a escada quase perpendicular que dava para um
nível acima. Não era muito alta, mas perguntei-me por que raio teriam
decidido guardar as decorações de Natal lá em cima, em vez de as deixarem
mais à mão, perto da porta principal do sótão.
Nem me dei ao trabalho de inquirir Lex, que tinha feito todo o caminho
em silêncio e agora desaparecia sem dizer uma palavra que fosse. Ouvi
objetos a deslizar por um piso de madeira e depois um saco de pano com
pegas, comprido e de aspeto ominoso, desceu até mim. Estiquei-me para
o agarrar e constatei que era surpreendentemente pesado.
- É a árvore para a sala de estar - disse Teddy e, assim que a pousei,
ele segurou nas pegas e arrastou-a até à porta e depois pelo corredor
até ao cimo das escadas.
- A seguir vão as caixas de plástico - avisou Lex, e a primeira desceu
pela escada até às minhas mãos expectantes.
As caixas eram bastante leves e com pegas, o que tornava a tarefa mais
fácil, e tinham rótulos escritos à mão, dizendo coisas como «Bolas
grandes» ou «Luzes». Teddy recebia cada uma como se se tratasse de uma
velha amiga.
- Esta é a caixa com os ornamentos novos. Compramo-los na loja de Natal
no moinho velho, perto de Little Mumming, e o Henry diz que são os
artigos colecionáveis do futuro.
- Calculo que sejam - concordei, passando-lhe uma caixa leve que, ao
que parecia, estava cheia de fitas prateadas e grinaldas de papel.
A seguinte era mais pesada.
- Esta está cheia com bolas de plástico enormes - disse Teddy, optando
por arrastá-la pelo chão. - As bolas de plástico têm três tamanhos
diferentes e são muito brilhantes e luzidias. Precisamos de muitas,
para uma árvore do tamanho da que temos no corredor.
A caixa seguinte era de cartão, com uma tampa - grande, retangular e
leve.
- Esse é o grande Pai Natal, que fica ao lado da árvore no corredor.
- Eu julgava que o Pai Natal vivia na Lapónia, não numa caixa no vosso
sótão! - brinquei.
- Não é o Pai Natal a sério - explicou Teddy, muito sério. - Tem a cara
de barro e uns mantos vermelhos compridos, mas o corpo é só um cone
grande, é por isso que é tão leve.
- Cara de porcelana - corrigiu a voz de Lex, vinda lá de cima. - Acho
que é tudo.
- Não, falta o Anjo Gabriel - disse Teddy.
Ouvi os pés de Lex nas tábuas por cima de nós e o pó desceu em revolutas
por entre as frestas, fazendo-me espirrar.
- És alérgica a sótãos, não é a árvores de Natal! - exclamou Teddy,
e riu-se.
- Acho que é uma alergia ao pó... a tua tia Clara tinha toda a razão.
- Tem sempre - declarou Lex, descendo a escada com uma caixa debaixo
do braço, como se fosse fácil.
- Um anjo - disse ele a Teddy, entregando-lho.
Foram precisas algumas viagens para levar todas as caixas até ao
corredor, onde as empilhámos de forma a não impedirem a passagem, à
exceção do saco de lona, do qual saiu a árvore artificial de antiguidade
óbvia, mas que mantinha ainda um tom verde profundo. Os ramos grossos
e felpudos tinham de ser enfiados num tronco de metal. Quando montada
e colocada no espaço quadrado em frente à janela de sacada da sala,
fez-me lembrar uma araucária chilena. O nicho era amplo, apesar de ter
bancos forrados de um lado e do outro, pelo que continuava a haver espaço
para contornar a árvore e cerrar as velhas cortinas de veludo.
Depois disso, já consegui fugir - só até ao meu quarto, para mudar de
roupa e preparar-me para o jantar. Não tive tempo para pensar e,
provavelmente, era melhor assim.
Ao jantar, dei por mim na ponta oposta da mesa em relação ao Lex, o
que tornava a situação menos incómoda para mim. A conversa também era
tão variada e interessante que, por vezes, até me esquecia de que ele
estava ali.
Den juntou-se a nós na sobremesa, e depois no café na sala de estar,
antes de voltar para o seu apartamento para ver televisão.
- E provavelmente para comer porcarias como torresmos e salame - disse
Clara.
- Bem, ele está à vontade para comer e beber o que quiser no seu próprio
apartamento - disse Henry.
- Pois está - concordou Tottie, passando-me um copo de hidromel para
acompanhar o café, uma estranha combinação de sabores. Não
desagradável, apenas invulgar.
Lex estava sentado numa ponta de um sofá, a afagar a barriga de Lass
que, de olhos fechados, suspirava, extasiada. O seu rosto distraído
parecia cansado, com olheiras escuras, como se não dormisse havia um
par de noites... talvez desde que eu aparecera. Só se haviam passado
uns dias desde a minha chegada, mas eu tinha a sensação de estar ali
havia meses.
Tanta excitação cansara Teddy. Acabou por ficar a cabecear para um lado
e para o outro com os olhos fechados, pelo que o mandaram para a cama.
Ele insistiu que fosse o tio Lex a dar-lhe banho e ler-lhe a história
antes de dormir e, depois de eles terem subido, os restantes embarcámos
num jogo de Scrabble. Tottie e Henry eram bons, mas Clara foi a
verdadeira vencedora: em jogos de palavras, um epigrafista sai sempre
a ganhar.
Não reparei quando Lex regressou; simplesmente estava na sala quando
acabámos o jogo, a ler serenamente junto à lareira.
E, por essa altura, os meus olhos já se fechavam como pouco antes
acontecera com Teddy, pelo que me despedi e deixei todos na sala.
No entanto, apesar de me sentir subitamente tão cansada, deitada na
cama não conseguia dormir. Não parava de ver imagens de um jovem Lex
deitado a meu lado, a sorrir sonolentamente fitando-me os olhos... mas,
a menos que eu tivesse uma síndroma de memória falsa acerca do que
acontecera em seguida, Al e Lex viviam ambos numa realidade
alternativa, habitada por uma versão completamente diferente de mim.
Acabei por cair num sono agitado; porém, o pesadelo que tive não se
passou nessa altura, mas sim uns anos mais tarde. Revivi o momento em
que o rosto horrorizado de Rollo se virara para mim depois de eu lhe
ter dito que estava grávida... e depois o carro derrapou para fora da
estrada, com um grito pavoroso e torturado do metal a juntar-se ao meu,
seguido por um eclipse súbito na escuridão.
Acordei tal como no hospital, com o rosto molhado pelas lágrimas e um
vazio doloroso onde o bebé tinha estado.
Depois disso, já não dormi de todo.
A julgar pelo ar de Lex ao pequeno-almoço, não me parecia que tivesse
dormido melhor do que eu. Comeu a sua torrada e bebeu o café em silêncio,
e Teddy falava o suficiente por todos nós, sobretudo acerca de ir
decorar as árvores mais adiante naquele dia.
Depois, Clara decretou que, como tinha avançado pouco nas suas
memórias, iria fazer uma sessão para se dedicar a isso, enquanto nós
saíamos para uma boa caminhada revigorante antes de uma tarde passada
a decorar a árvore.
- Se bem que o Den e a Tottie disseram que iam à igreja - acrescentou
ela.
- Assim que tiver tirado a sopa do congelador e o pão de banana do forno
- confirmou Den.
Eu não o tinha em conta de religioso praticante, e de facto não era,
pois Clara explicou:
- O Den é um grande amigo do Fred Golightly, do pub, por isso aproveitam
para pôr a conversa em dia enquanto a Tottie vai à igreja.
- Eu e o Fred somos melhores amigos, não somos? - ecoou Den.
- Pode pintar-me durante cerca de uma hora antes do almoço, Meg,
enquanto eu dito o próximo capítulo do policial - sugeriu Clara.
- Isso é ótimo - respondi. - Mas vou saltar o passeio e trabalhar no
estúdio até então.
- Acho que lhe fazia bem apanhar ar puro, Meg - disse Henry. - Para
além disso, por vezes ajuda a Clara ter a casa vazia para avançar para
a fase seguinte daquilo em que esteja a trabalhar.
Eu compreendia isso: à semelhança da maioria das pessoas criativas,
adorava sentir o abraço quente e pesado de uma casa vazia, a fechar-me
num mundo só meu.
- Sim, fiquei bastante atolada nos anos depois de termos saído de
Starstone para uma paróquia em Devon e antes da minha chegada à
universidade, que foram agradáveis, mas muito banais - concordou Clara.
- Só preciso de juntar essas pontas soltas e passar para uma fase mais
interessante da minha vida.
- Quando voltámos a encontrar-nos? - sugeriu Henry, e entreolharam-se
com um daqueles sorrisos ternos que fazem com que os casais juntos e
felizes desde sempre se assemelhem, por mais diferentes que sejam as
suas feições.
- Eu não vou passear a menos que tu e o tio Lex também venham - anunciou
Teddy num tom amotinado, ao que Lex me lançou um olhar sardónico.
- É claro que eu vou contigo, então, Teddy - respondi-lhe, e fui buscar
as botas e o casaco.
Henry, Lex, Teddy e eu saímos pela porta das traseiras, onde um caminho
largo de gravilha seguia pelo meio dos jardins entrelaçados e
contornava a horta, os túneis de cultivo e algumas árvores de fruto,
até acabar numa abertura numa sebe. Depois disso havia uma área relvada
com uma fileira aprumada de colmeias brancas, rodeadas de arbustos de
alfazema e rosmaninho.
Era um local sereno, e algures, perto do estábulo, ouviam-se as
galinhas.
Passámos por um portão baixo de madeira que dava para um campo e descemos
por uma pista que Henry me disse que levava ao cercado de baixo, onde
estavam os cavalos de Sybil. Também era um atalho até Underhill.
Fazia um frio tremendo e, de vez em quando, eu tinha a certeza de sentir
o leve toque de um floco de neve. Não falámos muito e Teddy ia correndo,
escondia-se atrás de muros e logo aparecia de um pulo.
Estavam dois cavalos no campo mais baixo, um baio e um castanho luzidio,
num abrigo aberto à frente, a puxar fardos de feno. Olharam para nós
quando passámos, mas, obviamente, não éramos tão interessantes quanto
o feno.
Corria um riacho pelo cercado. Lass, que tinha vindo a acompanhar-nos
num passo alheado mas alegre, de súbito ganhou ânimo, desatou a galopar
e saltou para um charco enlameado.
- Sua malandra! - exclamou Lex quando ela finalmente reagiu aos chamados
e emergiu, sacudindo-se vigorosamente enquanto nós nos afastávamos.
- Agora é uma cocker spaniel de chocolate - disse Teddy, a rir-se.
- Sim, e tu podes ajudar-me a devolver-lhe a cor habitual quando
chegarmos a casa - respondeu Lex.
- Oh, eu costumo fechá-la no jardim até ela secar e depois o Den
escova-lhe a maior parte da lama do pelo - disse Henry. - Se bem que,
desta vez, parece ter ficado bastante mais enlameada do que é habitual.
- Sim, e também tem mais do que um ligeiro laivo a bosta de cavalo -
indicou Lex.
Lass dava sinais de querer voltar para aquele banho deliciosamente
fragrante, mas foi firmemente presa à trela e levada dali.
A terra erguia-se à nossa frente até ao alto da colina encimada pela
Starstone. Daquele ângulo, eu via uma espécie de espaço horizontal por
baixo e uma fissura escura nas rochas. Não seguimos por aí, virando
antes para um caminho descendente que surgia na estrada imediatamente
antes dos portões que levavam a Underhill.
- Agora seguimos apenas a estrada até casa, passando pela aldeia -
disse-me Henry. - É pouco mais de um quilómetro e meio.
Lass, parecendo revigorada pelo mergulho gelado, puxou-o rapidamente
em direção a Starstone Edge, e Teddy foi a saltitar ao lado dele. Lex
não me tinha dirigido uma palavra que fosse durante toda a manhã e
seguiu-os em passo estugado, deixando-me para trás.
Quando chegámos ao fundo da aldeia, muitos dos chalés por que passávamos
pareciam fechados para o inverno e havia poucos sinais de vida, para
além de espirais de fumo azul-acinzentado de uma ou duas chaminés e
um cão a ladrar ao longe, possivelmente de uma das quintas, pois nos
vales o som viaja estranhamente.
Mas andava alguém por ali: ao dobrar uma esquina na estrada,
deparámo-nos com uma mulher pequena e magra a empurrar um carrinho.
O bebé lá dentro era quase invisível, tendo sido inserido numa espécie
de saco de carneira com capuz. Eu só via dois olhos fechados e um nariz
que parecia um botãozinho.
A mulher virou-se, revelando um rosto bastante bonito, com traços de
roedor - um nariz pontiagudo e umas bochechas cheias. Tinha o cabelo
mais ou menos da cor da lama em que Lass se revirara, comprido, lasso,
e parecendo um pouco húmido. Mas a verdade era que sempre tivera aquele
aspeto...
- Moonflower! - exclamei. - Não fazia ideia de que vivias aqui. Há anos
que não te via!
Ela afastou as madeixas compridas de cabelo e espreitou-me.
- És tu, Meg? O que te trouxe para estas bandas?
- Está a pintar o retrato da Clara - disse Henry. - Conhecem-se? Que
bom.
- A Moonflower viveu na comuna da Quinta com os pais durante uns anos,
antes de seguirem caminho - expliquei.
- Eles sempre gostaram de andar por aí na autocaravana, em vez de ficarem
sempre no mesmo sítio - disse Moonflower. - Viemos para aqui um dia
e acampámos entre as árvores junto ao reservatório... e eu conheci o
Bilbo e fiquei. Esta é a nossa menina, a Grace-Galadriel.
- É... linda - disse eu, a olhar para a bebé. Tinha o nariz de botãozinho
um pouco ranhoso, por causa do frio.
Lex ficara em silêncio a observar-nos, mas então disse:
- Olá, Flower.
Moonflower corou e sorriu afetadamente, e não se poderia julgá-la por
isso, já que ele parecia uma condensação de todos os heróis românticos
sombrios e divididos. Também eu me teria apaixonado por ele se não
tivesse já passado por isso e jurado para nunca mais.
- Como está a tua mãe? - perguntou-me ela.
- Não sei. Foi para a Índia, trabalhar no bar de um amigo há uns oito
anos, mas depois saiu para explorar um lugar qualquer e não voltou.
Sabemos que fazia tenções de voltar, porque deixou a maior parte das
coisas, mas desapareceu, pura e simplesmente.
- E não têm notícias dela desde então?
- Não, é um mistério total. O River já lá foi, para ver se encontrava
algum sinal dela, mas nada.
- Então deve ter morrido - sugeriu Moonflower sem o menor tato. Nunca
fora dada à empatia.
Esse também era o meu maior receio, apesar de ainda esperar que assim
não fosse.
- O River acha que não, mas é capaz de ter tido um acidente e, como
deixou o passaporte e o resto dos documentos no bar onde trabalhava,
não saberiam identificá-la. O rasto já estava frio quando o River tentou
encontrá-la, mas ele tem a certeza de que ela há de voltar a aparecer.
- Agora lembro-me que nos tinha dito que a sua mãe desapareceu. É muito
triste, minha querida - disse Henry com delicadeza.
- É, se bem que eu nunca passei muito tempo com ela enquanto crescia,
por ser um espírito tão livre - expliquei. - De vez em quando, aparecia
na Quinta e era animada e divertida... e depois, passado algum tempo,
lá ia ela outra vez.
Lex, que claramente não fazia ideia de como fora o meu passado, estava
a olhar para mim com um ar curioso.
- Quem é que te criou, então? - perguntou-me.
- A comuna em Gales, na Quinta do River, onde nasci. O River é como
um avô para mim e dois dos membros fundadores da comuna, Maj e Kenny,
foram como uma espécie de pais. E o Oshan, filho do River, é meu irmão.
- Vendo que Lex continuava a fitar-me, acrescentei: - Funcionou tudo
muito bem e tive uma infância muito feliz e segura.
- Oh, eu também adorei viver na Quinta - confirmou Moonflower. - Chorei
durante uma semana, quando fomos embora.
- Não fazia ideia do teu historial - comentou Lex. - Isso explica muito!
- Tipo o quê? - exigi eu saber, mas nesse momento a bebé acordou e começou
a fazer barulhos chorosos, enquanto tentava livrar-se do saco.
Flower disse que era melhor ir para casa e dar-lhe de comer.
- Vem lá a casa um dia destes - convidou-me. - Conhecer o Bilbo.
- Oh, obrigada, Moonflower, gostaria muito.
- Chama-me Flower; toda a gente me trata assim. E temos coisas giras
na loja, também, se precisares de comprar presentes - acrescentou, num
tom esperançoso.
Presentes? Bem, eu tinha trazido o cesto de compotas e chutneys, como
prenda geral para a família, ou como forma de adoçar a minha fuga se
conseguisse ir-me embora a seguir ao Solstício, mas não tinha pensado
em presentes individuais de Natal.
Mas, fosse como fosse, não tinha a menor intenção de continuar na Casa
Vermelha no Natal, pelo que não precisaria de presentes, pois não?
De volta à casa, Lex e Teddy encarregaram-se da spaniel enlameada e
muito malcheirosa, e Henry enfiou-se no seu escritório com um sorriso
alheado.
Quanto a mim, mudei para algo já manchado de tinta de óleo e depois
Clara ditou um capítulo do seu policial enquanto eu trabalhava no seu
retrato até o almoço chamar por nós. Ou, pelo menos, por Clara, já que
eu, como de costume, perdera a noção do tempo.
Quando passámos pelo corredor, cruzámo-nos com Lex, que estava a
destapar as caixas das decorações. Levantou a cabeça.
- Aí estão vocês! Ia agora mesmo lembrar-vos de almoçar, porque nós
já comemos e estamos quase a começar a decorar as árvores.
- Não dou pelo tempo a passar. Atrasámo-nos por minha culpa - disse
eu.
- Não tem importância, porque este retrato vai ficar maravilhoso -
entusiasmou-se Clara. - A Meg tem algo de mágico, para conseguir revelar
coisas minhas que eu nem sabia que existiam.
- Sempre teve - disse Lex. - Recebeu o prémio de Jovem Retratista do
Ano, pouco depois de ter começado a sua licenciatura em Belas-Artes.
Fiquei surpreendida por ele se lembrar disso e perguntei-me se, aos
poucos, ele recomeçaria a ver a verdadeira versão de mim mesma - ou
a versão que ele conhecera havia tanto tempo - em vez da falsa que fora
construindo mentalmente ao longo dos anos seguintes.
- Onde estão os outros? - perguntou Clara, interrompendo-me os
pensamentos.
- O Teddy e o Henry estão no escritório, a escolher os ornamentos para
a árvore da sala de estar. A Sybil apareceu a cavalo e com o outro pelas
rédeas, e ela e a Tottie saíram para dar uma volta, mas ela disse que
voltava muito a tempo para encimar a árvore.
Eu não fazia ideia do que «encimar a árvore» quereria dizer, a menos
que fosse apenas que toda a família tinha de estar presente aquando
da colocação do ornamento final, no cimo da árvore?
- Muito bem, então, vamos só comer qualquer coisa e depois voltamos
para ajudar - disse ela.
A sopa era de cebola, com pão e queijo derretido por cima, e comemo-la
ao som do ressonar em basso profundo de Lass, que dormia limpa, enrugada
e exausta no seu cesto junto ao fogão.
Den ia voltar para o seu apartamento e avisou-nos para que não
tocássemos no pão de ló que estava a arrefecer na grelha.
- Podem comer algum ao lanche, mas metade é pr’ó trifle, não é?
- Oh, boa - disse Clara, quando a porta se fechou depois de ele sair.
- O Den faz um trifle excelente com as framboesas em conserva da Tottie
e uma boa camada de creme.
Depois, assim que pousei a colher, ela levantou-se e exclamou, cheia
de energia:
- Venha, vamos ajudar a decorar as árvores. É tão divertido!
16
Iluminações
Com ou sem Lex, eu já estava desejosa de decorar as árvores e acho que
a magia do Natal começava lentamente a insinuar-se na minha psique.
O som de cânticos de Natal espalhava-se delicadamente pela casa, vindo
da sala de estar, e Lex encontrava-se em cima de um escadote muito alto,
a enrolar luzinhas no abeto norueguês, com Henry e Teddy a ajudar ou,
pelo menos, a oferecer conselhos.
- Ah, aí está, minha querida - disse Henry. - O Lex já pôs as luzes
na árvore pequena e eu e o Teddy vamos agora começar a decorá-la. Depois
vimos ajudar com este monstro, não é, Teddy?
Teddy, que estava corado e muito empolgado, assentiu com a cabeça.
- Mas não podes entrar na sala até termos acabado, Meg!
- Muito bem, não entro. Adoro surpresas.
- Deixamos a porta aberta, mas nada de espreitar.
- Juro - assegurei-lhe, num tom solene.
Ele e Henry desapareceram na sala de estar, enquanto Lex, depois de
ter enrolado as luzinhas do cimo da árvore até à base, começou a
ajudar-nos a escolher as bolas.
Havia montes de bolas de plástico brilhante, facetado e espelhado, em
todas as cores que se pudesse imaginar. Eram de três tamanhos e eu
comecei a pendurar as mais pequenas no cimo da árvore, subindo as
escadas e debruçando-me sobre o corrimão, enquanto Lex tratava do outro
lado, empoleirado no cimo do escadote de madeira de aspeto instável.
Clara começou na base, com as bolas maiores, e veio subindo ao nosso
encontro com as médias.
Havia muito movimento entre as duas divisões - por causa da tesoura,
ou da fita de cetim, ou de ganchos de plástico -, mas eu mantive a
promessa feita e nem sequer olhei de relance pela porta aberta.
A dada altura, Den voltou e sentou-se no degrau largo das escadas,
desemaranhando um enorme novelo de fitas metalizadas com todas as cores
do arco-íris. Lentamente, conseguiu separar cada fita, que enrolou
individualmente: prateada, dourada, verde, azul, vermelho e o tom mais
brilhante de roxo.
Teddy emergiu da sala e quis toda a fita dourada e prateada, mas isso
deve ter sido o retoque final, pois pouco depois fomos convocados para
admirar a árvore.
Começara a escurecer, pelo que tinham fechado as cortinas, mas as luzes
da sala estavam apagadas para podermos apreciar o efeito completo da
árvore iluminada.
Parecia tão mágica a cintilar na escuridão que fiquei sem fôlego. As
formas estranhas dos ornamentos antigos ganhavam vida e reluziam que
era uma loucura. Cachos de uvas roxas e fadas de barretes verdes
concorriam com ursos, cães às manchas e pais natais. Pequenas esferas
coloridas com indentações profundas e prateadas refletiam as luzes e
havia pingentes de vidro transparente torcido. Pássaros de todas as
formas empoleiravam-se nos ramos, com as suas caudas longas, brancas,
de vidro trabalhado a equilibrarem os corpos prateados.
A fita metálica ziguezagueava do alto da árvore até à base, como uma
estrada de montanha a cintilar à chuva, e, no cimo, encontrava-se uma
pequena fada com uma saia pregueada de papel crepe cor-de-rosa sobre
uma camada de rede branca.
Depois de a elogiarmos o suficiente para Teddy ficar satisfeito,
voltámos todos para o corredor para terminarmos a decoração da árvore
maior, se bem que, já com as primeiras bolas colocadas, aquilo mais
parecesse uma corrida para ver quantos dos outros ornamentos
conseguíamos enfiar-lhe.
- Esqueci-me das decorações de chocolate - disse Clara de súbito. -
Estão numa das gavetas da minha secretária.
- Os chocolates vão só para a árvore grande - explicou-me Henry. - E
ficam bem fora do alcance da Lass.
Clara voltou com as guloseimas: bolsas de rede com moedas douradas,
saquinhos de bombons embrulhados em papel de alumínio e com um laço
prateado e um grande saco de chocolates de várias formas: sinos, velas,
bonecos de neve, pais natais, renas e estrelas - com laços para serem
pendurados.
- Todos os anos, o Pai Natal põe-me uma destas bolsas grandes de moedas
de chocolate no fundo da meia, com uma tangerina - disse Teddy. - Eu
acho que ele rouba a tangerina quando entra, porque, no ano passado,
antes de ir para a cama, eu contei todas as que estavam na fruteira
e, de manhã, faltava uma.
Atrás dele, Henry piscou-me o olho.
- Talvez não consiga trazer tangerinas suficientes no trenó, com tantos
brinquedos? - sugeri-lhe. Ainda que não celebrássemos o Natal na
Quinta, uma vez no mundo não havia como escapar a saber coisas como
o serviço sazonal de entregas do Pai Natal, com o seu casaco vermelho
e o seu trenó... já para não falar do instinto irresistível de gastar
cada vez mais dinheiro em presentes.
- Acho que não é isso - disse Teddy, depois de ponderar a ideia com
toda a seriedade. - É um trenó mágico.
- Isso é verdade - disse Lex. - Mas talvez ele guarde as do trenó para
as casas onde não há tangerinas.
Essa explicação pareceu satisfazê-lo e depois todos começámos a
pendurar os chocolates a um nível a que nenhum cão chegasse, e alguns
a um nível onde Teddy também não, para não se sentir tentado a abusar,
acabando maldisposto.
Tínhamos terminado quando Tottie regressou, com as faces vermelhas do
frio. Ainda estava de calças de montar e um polo grosso, mas já
descalçara as botas, tendo nos pés apenas umas meias caneladas de lã
cinzenta.
- Começou a gelar a sério e um dos tratores da quinta está a espalhar
gravilha no chão - disse-nos.
- Voltou mesmo a tempo, Tottie - disse Clara. - Ainda agora pusemos
os chocolates na árvore, por isso está pronta para o toque final.
Henry foi ao seu gabinete e regressou com o antigo Pai Natal de papel
mâché que Tottie tão erradamente estragara com purpurinas e algodão
quando era pequena.
Ela aceitou-o e subiu as escadas até poder chegar ao cimo da árvore
e colocar o ornamento mesmo no topo.
- Viva! Que comecem os festejos natalícios! - exclamou Henry e todos
batemos palmas. Tottie fez uma vénia a brincar e desceu de novo.
- Pronto, vamos ligar as luzinhas e desligar as do corredor - disse
Clara. Lex mergulhou tudo em escuridão, à exceção da magia iluminada
da árvore alta, que parecia flutuar no ar como uma visão encantada de
um conto de fadas.
- Oh, que lindo! - suspirei. - As duas árvores são lindas, cada uma
à sua maneira.
- Quando eu era pequena, tínhamos as velas à moda antiga em candelabros
frisados que se prendiam às pontas dos ramos, mas só as acendíamos
durante um instante e o paizinho mantinha-se por perto com um balde
de areia e o sifão com água.
- Também tínhamos dessas - disse Clara. - A minha mãe morria de medo
de que a casa se incendiasse.
- Eu nem sequer punha luzes elétricas na árvore quando vivia aqui
sozinha - disse Tottie. - As primeiras eram um bocado duvidosas.
- Bem, agora são bastante seguras, sobretudo desde que renovámos a rede
elétrica da casa - disse Clara. - Aquelas tomadas e fichas deviam estar
num museu.
- Estavam no meu espaço por cima da garagem antes disto ter sido
remodelado - lembrou Den.
- Os criados e os motoristas não haviam de poder contar com muitos
confortos domésticos, nos anos mil novecentos e vinte e trinta -
comentou Clara.
- E também só tinham água fria, o’zacanas - disse Den.
- Diz-se sac... - começou Teddy, muito interessado, mas Tottie
apressou-se a interrompê-lo.
- Deixa estar, Teddy. É só mais uma daquelas palavras do Den que não
podes usar até que sejas maior do que ele.
- Ao ritmo a que cresce, não há de demorar - comentou Lex.
- A casa ficou muito mais luminosa e quente depois de a Clara e o Henry
a terem comprado - disse Tottie. - E as casas de banho, que delícia,
também! É engraçado como não se dá pela falta de coisas assim numa casa
onde sempre se viveu.
- Concordo. A Quinta fica lá nas Montanhas Negras e, quando eu era
pequena, no inverno fazia bastante frio - disse eu. - O único
aquecimento que tínhamos era de um fogão e de um par de salamandras
a lenha, mas isso entretanto mudou, sobretudo desde que o River se
rendeu à energia solar e instalou uma data de painéis.
- Estou desejoso de conhecer o seu avô quando ele vier para o Solstício,
vou querer saber de tudo sobre a Quinta - afirmou Henry.
- Sim, eu também - disse Lex num tom enigmático, dirigindo-me um olhar
que interpretei como querendo dizer que mal podia esperar porque isso
marcaria a data da minha partida iminente da Casa Vermelha e da sua
vida.
Teddy disse que achava que era uma maldade River não celebrar o Natal
como deveria ser.
- O tio Henry diz que nunca tiveste um Natal a sério!
- Celebrávamos o Solstício e depois tínhamos um encantador festim de
Yule - respondi-lhe. - Isso também era divertido.
- Mas o Pai Natal não te levava prendas, pois não?
- Não, mas trocávamos sempre presentes na primeira noite das
celebrações, por norma coisas feitas por nós.
- Eu acho que o Natal a sério parece muito mais divertido - insistiu
ele.
Lex voltou a acender as luzes e todos pestanejámos de novo no mundo
real. O corredor tinha um cheiro carregado e maravilhoso a pinheiro.
O trepidar de loiça prenunciou a chegada de Den com o inevitável
carrinho do chá.
- ‘Tá na hora de comer qualquer coisa, não ‘tá? - disse ele, levando
o carrinho para a sala à nossa frente antes de pôr mais lenha na lareira.
Eu deixei-me afundar num dos sofás, exausta por toda a atividade de
decoração, a caminhada longa de manhã e o torvelinho emocional que não
me deixara dormir na noite anterior.
- Pão de ló - disse Henry. - Tem andado atarefado, Den!
- Ná, não demora tempo nenhum a fazer.
- Eu acho que é um mago da cozinha - disse Clara e Den pareceu ficar-lhe
grato.
Teddy começou a contar a Lex o que estava na lista de Natal que ele
tinha enviado ao Pai Natal. Parecia ser uma lista tão extensa quanto
variada.
Depois a mãe, Zelda, telefonou e, tendo falado um pouco com Clara, esta
passou-lhe o telefone. Zelda devia ter-lhe perguntado o que queria para
o Natal, pois o menino recomeçou a recitar a lista desde o início, mas
ia a menos de meio quando Lex lhe tirou o telemóvel.
- Olá, Zelda - disse ele. - Acabámos de decorar as árvores, por isso
o Teddy está um bocadinho excitado.
Teddy fez-lhe uma careta, mas como tinha enfiado outra fatia de bolo
na cara, não podia protestar.
Lex escutou durante uns minutos e depois disse que transmitia a
informação a toda a gente e que a veria em breve.
- A mamã vem agora? - perguntou Teddy, que já tinha acabado a fatia.
- Vai trazer-me um pónei?
- Não e não - disse Lex. - Vai filmar um anúncio e depois tem uma audição,
mas logo a seguir vem para cá.
- Desde que venha mesmo... - respondeu Teddy. - Porque, quando está
numa pantomina, não vem.
- Virá, só espero que as estradas se mantenham abertas para ela - disse
Clara. - Façamos figas.
- Oh, tenho a certeza de que vai conseguir, de alguma maneira - disse
Henry. - É muito despachada.
Mas eu desconfiava que não traria o pónei de Teddy debaixo do braço.
- O telefonema dela fez-me lembrar, Meg - disse Clara de repente. -
O seu jovem telefonou hoje de manhã, quando saíram para o passeio desta
manhã.
- O quê? - exclamei, surpreendida. - Eu não tenho nenhum jovem! Nem
nenhum velho - acrescentei, com uma terrível suspeita a apoderar-se
de mim.
- Pois, lembro-me de me ter dito isso, mas foi essa a impressão que
ele tentou passar-me. Chamava-se Rollo qualquer coisa.
- Rollo Purvis - completei num tom resignado. - É um ex-namorado de
há muito, muito tempo.
Levantei a cabeça e deparei-me com Lex a fitar-me com as suas
sobrancelhas retas unidas naquela expressão estranhamente atraente que
fazia lembrar um pouco um falcão.
- Não andavas com ele quando estávamos na faculdade? É aquele poeta
que aparecia sempre nas festas dos estudantes.
- Sim. Depois acabámos... e reatámos as coisas depois. Mas finalmente
acabei tudo há mais de seis anos.
- Não é o que parece - disse ele.
- Tornou-se um pouco incómodo e gosta de me ligar de vez em quando para
desabafar toda a angústia existencial que o consome. Parece que há cada
vez mais gente a fazer isso - acrescentei num tom incisivo, ao que ele
me dirigiu um olhar sombrio.
- Poeta? O nome pareceu-me vagamente familiar - disse Henry.
- É, e também tem uma revista trimestral de poesia chamada Strimp!
- Oh, pois - disse Henry, sem grande entusiasmo. - Já sei quem é.
- Não é lá muito bom? - perguntou Tottie.
- Se os exemplos da sua obra que vi num exemplar da Strimp! que alguém
me enviou uma vez são representativos, não.
- Era o que eu achava - disse eu, satisfeita por ver o meu juízo de
valor confirmado. - Algumas coisas são bastante astutas, mas algo
frias. - Virei-me para Clara, para lhe pedir desculpa. - Lamento que
ele a tenha incomodado. Não lhe dei o seu número de telefone e não faço
ideia de como o terá conseguido. Espero que não se tenha feito convidado
para a visitar?
- Depressa percebi que era esse o verdadeiro objetivo do telefonema,
quando ele começou a dizer como adoraria passar por cá e vê-la em breve,
quando estivesse por cá, e como seria maravilhoso se o Henry pudesse
dispensar-lhe uns momentos para lhe conceder uma entrevista para
publicar na revista.
- Que lata! - exclamei. - Espero que o tenha mandado passear.
- Fui bastante educada, tendo em conta que me interrompeu enquanto
estava a trabalhar, e também não tinha a certeza de que fosse seu amigo
ou até namorado. Mas é claro que lhe disse que uma entrevista com o
Henry estava fora de questão.
- É bastante provável que apareça, mesmo assim, e tente persuadir-vos
a que o deixem entrar - avisei. - É que não só é insistente e insensível,
também tem uma noção exagerada da sua própria importância.
- Só me surpreende que a vossa relação tenha durado tanto, então -
comentou Lex com secura.
- Ele mudou muito com o passar dos anos... acontece - disse eu, fitando-o
sem rodeios.
Lex lançou-me outro dos seus olhares com o sobrolho franzido: aquele
era tão complexo que parecia tricotado.
- Então porque é que não cortaste todo o contacto com ele?
- Tentei, mas ele é tão persistente que não é fácil.
- Não se preocupe, querida, pode refugiar-se na pequena torre por cima
do seu quarto e lançar-lhe todos os epítetos ultrajantes que tenha a
dirigir-lhe, se quiser - sugeriu Clara. - Mas, se alguma vez decidir
que quer casar com um poeta, o meu conselho é que espere por um que
seja bom.
- Eu acho que vocês são completamente loucas - disse Lex, mas um sorriso
involuntário puxava-lhe as comissuras dos lábios.
Clara
Fui para Oxford, onde tanto o meu pai como a minha mãe tinham estudado,
ainda que a minha mãe tivesse sido consideravelmente prejudicada pelas
restrições então impostas em todos os aspetos da vida de uma estudante.
Mesmo quando cheguei, em 1959, continuava a haver muitas regras e
regulamentos que deveríamos acatar, mas que, na maioria, ignorávamos
ou arranjávamos maneira de contornar.
Instalei-me com gratidão na atmosfera estudiosa de Lady Margaret Hall,
pois muitas das minhas colegas estudavam para uma carreira futura, com
frequência focada nalgum tipo de ensino. Os meus interesses, porém,
concentravam-se na epigrafia, na arqueologia e nas línguas antigas,
e eu não tinha a menor vontade de ensinar o que quer que fosse a quem
quer que fosse.
Os resquícios de misoginia não iriam desviar-me do meu objetivo: defini
a minha rota, e quaisquer idiotices desse género espalhavam-se diante
de mim como as embarcações menores que eram.
É claro que era divertido explorar o novo ambiente e conhecer as outras
estudantes do Lady Margaret Hall. Porém, uma delas, uma rapariga
anglo-americana chamada Nessa Cassidy, teve aquilo a que costumávamos
chamar «um fraco» por mim. Sem ser estúpida de todo - o seu forte era
a literatura inglesa, sobretudo os poetas românticos -, também era
risonha, ameninada e tinha a cabeça cheia de ideias tolas sobre o amor
romântico.
Desencorajei-a firmemente e, para meu alívio, ela depressa reuniu um
grupo de amigas com interesses similares à sua volta, se bem que não
fosse possível livrar-me dela por completo...
Nessa era órfã e, como dizia a tudo e todos, uma herdeira, com guardiões
norte-americanos que lhe atribuíam a mesada generosa com a qual ela
comprava roupas artísticas e dispendiosas e oferecia lanches e outras
coisas que tais aos membros do seu círculo. Dado que era de estatura
pequena e já rechonchuda e curvilínea, eu achava que demasiados
daqueles repastos não tardariam a deixá-la redonda.
Em geral, era considerada muito bonita, com um lábio superior curto,
pele grossa e luzidia, cabelo de um louro-platinado e olhos de um
azul-claro invulgarmente esverdeado.
Eu tinha esquecido a maioria destes pormenores até há pouco tempo,
quando algo mos trouxe de novo à memória...
Mas falarei disso depois, pois agora tenho de prosseguir com algo
maravilhoso que me aconteceu na segunda semana em Oxford: vi-me frente
a frente com Henry Doome, na Cornmarket Street!
Eu tê-lo-ia reconhecido onde quer que fosse. Era uma versão mais alta
e musculada do rapaz que eu vira pela última vez em Starstone, com o
seu rosto elegante e ossudo, o nariz grego muito direito e uns olhos
luminosos, azuis-ciano. O vento revolvia-lhe o cabelo cor de linhaça
e ele parecia ter vestido as primeiras peças de roupa que lhe tivessem
vindo à mão naquela manhã.
Eu também não teria mudado muito: o mesmo emaranhado de caracóis escuros
e o nariz aquilino demasiado generoso.
- Clara, aí estás - disse ele, como se contasse encontrar-me naquela
manhã. - Continuas a debruçar-te sobre as runas?
- Passei para os hieróglifos e para a escrita cuneiforme, Henry -
repliquei. - E tu, continuas a rabiscar uma ou outra ode?
Sorrimo-nos e depois abraçámo-nos calorosamente, embora tais
demonstrações públicas de afeto entre estudantes fossem
desencorajadas.
E, a partir daquele momento, os anos que nos tinham dividido deixaram
de existir e as nossas vidas uniram-se novamente, de uma forma bastante
harmoniosa.
Frequentávamos faculdades diferentes, claro - o ensino ainda não era
misto, então - e os nossos estudos seguiam rotas diferentes, que por
vezes se sobrepunham, como no caso do grego antigo. Não obstante,
tornámo-nos tão inseparáveis quanto possível naquelas circunstâncias.
Que maravilhoso era ter um amigo com quem pudesse falar num pé
intelectual de igualdade e sem ter de estar constantemente a
explicar-me - tal como quando éramos crianças. Mas também éramos almas
gémeas, podendo rir juntos e partilhar sonhos para o futuro. Eu não
duvidava de que Henry um dia seria um poeta de renome, pois a sua obra
já começava a ser publicada. E ele estava certo de que eu um dia viria
a ser uma epigrafista eminente.
17
Comido
Pouco depois do lanche, Lex anunciou que teria de voltar à olaria, mas
Clara e Henry queriam que ele ficasse para um verdadeiro jantar de
domingo de rolo de frutos secos, com batatas assadas, molho de cebola
e tudo o mais.
- Detesto que percas uma boa manja - disse Tottie, como se tivesse
acabado de lhe encher um saco de aveia para o alimentar.
Ele não me parecia nada malnutrido. A sua estrutura alta e espadaúda
tinha acumulado o que eu desconfiava ser pura musculatura ao longo dos
anos passados desde que o vira pela última vez. Provavelmente de tanto
bater em pedaços gigantes de barro e de carregar jarrões enormes.
- Aos domingos costumamos jantar por volta da uma, em vez de fazermos
a refeição à noite - explicou-me Clara. - Mais tarde comemos uma tosta
ou algo simples. Mas, com a árvore e tudo, hoje é um domingo diferente.
- Também tenho pena de perder o jantar, Clara - disse Lex -, mas prometi
ao Al que voltava para o ajudar a tirar as coisas do forno. Temos uma
grande encomenda de urnas que vão para um casarão amanhã... um presente
de Natal do proprietário para a mulher. - De repente, sorriu e disse:
- Ele perguntou-me se fazíamos embrulhos, mas acho que estava a gozar.
- Se não estiver, espero que tenha um bom par de homens fortes para
o ajudar a tratar disso - disse Henry.
- Ele fazia questão de que chegassem amanhã, porque a mulher não vai
estar e ele assim pode escondê-las num anexo.
- Esperemos que sejam o que ela realmente quer para o Natal, então -
disse Clara. - Eu sei o que quero: mais um jarrão gigante e lindo para
o jardim.
- Ainda bem, já que é sempre isso que vos ofereço - replicou Lex. Quando
o seu rosto se descontraía, divertido, de repente parecia-se imenso
com o Lex mais jovem por quem eu me apaixonara à primeira vista, tanto
tempo antes... Primeiro amor, não do género perdurável.
Se bem que o meu segundo amor também não se provou assim tão duradouro.
- Acho que já lhe tinha dito que o Lex faz uns jarrões e umas urnas
enormes e espetaculares ao estilo antigo, não tinha? - perguntou-me
Clara. - Pelo menos, as formas são como as antigas, mas, quando se olha
com atenção para a decoração e os relevos, percebe-se que são muito
contemporâneas.
- Os que têm lapas ou corais incrustados parecem mesmo antigos,
arrastados do leito do mar - disse Henry. - Temos de a levar à
Terrapotter um dia destes, Meg. Tenho a certeza de que será interessante
para si.
Decerto seria e eu teria adorado visitar a Terrapotter... se Lex e Al
não estivessem lá, já para não falar da irmã mais nova de Lisa, ainda
que essa, ao menos, não devesse fazer ideia de quem eu era.
Como se me adivinhasse os pensamentos, Lex acrescentou, insincero:
- Sim, porque é que não vens, Meg? Eu e o Al íamos adorar mostrar-te
o espaço.
- Parece mesmo irresistível - respondi. Só que não.
Levantei-me.
- Bem, eu vou levar o retrato da Clara para o estúdio e observá-lo
durante algum tempo, por isso despeço-me agora, Lex.
Como desconfiava de que ele tinha inventado uma desculpa para regressar
mais cedo ao estúdio de maneira a deixar de estar na minha presença,
eu tinha esperança de que talvez o nosso próximo e último encontro fosse
na noite do Solstício, altura em que já teria também a companhia de
River para me dar força.
Mas não ia escapar a outro encontro antes de Lex ir embora, já que
primeiro Teddy o arrastou literalmente para o estúdio para que visse
o retrato de Clara.
- Não te importas, pois não, Meg? - perguntou-me Teddy num tom ansioso,
e eu não podia propriamente dizer «Sim, importo!», porque Lex já estava
dentro da porta, agarrado por uma mão pequena e obstinada.
- O Teddy insistiu para eu... - começou Lex, e depois interrompeu-se
abruptamente quando o seu olhar recaiu na pintura, que eu tinha colocado
no cavalete antigo. Seguiu-se um silêncio longo e carregado, como o
que se segue a uma avalancha.
O retrato ganhara forma rapidamente e o rosto de Clara já ressaltava
do rascunho, rodopiando rumo à tridimensionalidade a cada traço e
arabesco de tinta. Parecia estar internamente iluminado pela luz forte
do seu intelecto e da sua personalidade, em vez de exteriormente, pelo
ecrã do seu computador.
- Está bom, não está? - perguntei humildemente, pois é uma força alheia
a mim que faz a ligação entre os meus olhos e as minhas mãos quando
pinto, e eu, Meg Harkness, não passo do instrumento dessa força.
- Bom, não... está muito melhor do que isso - disse ele por fim. - De
facto, se não acabares por estragá-lo no final, pintando demasiado,
vai ficar espetacular!
Lá conseguiu desviar os olhos do retrato e fitar-me de uma nova
maneira... ou melhor, de uma maneira que eu conhecia antes de ter
começado a imaginar que me transformara nalguma espécie de Mata Hari
que o tentara com a maçã de infidelidade num momento de fraqueza sua.
Era um olhar não só de reconhecimento, mas de respeito que um artista
de igual estatura sente por outro.
- Eu sei sempre quando parar - respondi e a expressão dos seus olhos
verde-ágata tornou-se de novo indecifrável. Virando costas, foi-se
embora sem mais palavra.
Ele tinha muito jeito para aquilo. Se eu tentasse, provavelmente
tropeçaria, ficaria com o lenço preso na porta ou qualquer coisa do
género.
Teddy, com a expressão de alguém cuja protegida tivesse provado o seu
valor, exclamou com ligeireza:
- Até logo, Meg! - e desatou a correr atrás do seu ídolo para se despedir
dele.
Deixaram a porta entreaberta e Lass entrou, franzindo o nariz a farejar
os aromas de óleo de linhaça de terebintina, não os achando obviamente
tão deliciosos como eu.
Lembrei-me de que havia uns biscoitos, que tinham vindo com o café da
manhã num daqueles dias, e ofereci-lhos.
Ela aceitou-os delicadamente, um de cada vez, e comeu-os com apreço.
Devia estar com fome, pois, de repente, ouvimos Den a chamá-la:
- Lass? Comida!
Ela só demorou o tempo necessário para me dar uma lambidela rápida de
gratidão na mão e depois foi-se embora tão depressa como Lex.
A porta da cozinha bateu logo a seguir e o silêncio instalou-se.
Apesar de saber que todos continuavam na casa (sem contar com Lex) e
azafamados como abelhas nas suas células da colmeia, de súbito senti-me
sozinha, encolhida até ser do tamanho de uma boneca de porcelana
minúscula e estranhamente vestida numa casa de bonecas vitoriana e
gigantesca.
Revivi aquele momento em que Lex olhara para mim como um artista para
outro, reconhecendo um igual, pois a sua obra na faculdade era fabulosa
e ele estava destinado ao sucesso até ter desistido quando ia no segundo
ano do seu mestrado.
Estava satisfeita por o ter levado a perceber que eu não era apenas
um demónio bidimensional de sombras, projetado do passado, ainda que
não o tivesse chocado o suficiente para que se abrisse à ideia de escutar
a minha versão dos acontecimentos, a que também se poderia chamar A
Verdade.
Mas parte de mim também lamentava que a minha chegada o tivesse feito
regressar a uma altura da sua vida que, claramente, continuava a ser
muito dolorosa, mesmo que ele tivesse interpretado de forma
completamente errada o pequeno papel que eu tivera naquela tragédia.
O meu devaneio foi finalmente interrompido pela porta a abrir-se por
completo com um rangido, como se uma mão invisível a tivesse empurrado,
pois não estava ali ninguém. Depois o pequeno relógio de madeira que
estava numa das prateleiras, e que se mantivera completamente
silencioso até então, começou a tiquetaquear de repente e muito alto.
Esquisito.
Fechei a porta e depressa me perdi de novo no retrato. Era capaz de
ser a melhor coisa que eu alguma vez pintara...
Só saí do estúdio quando me chamaram para jantar. O relógio continuava
a tiquetaquear, marcando uma hora de um universo paralelo. Talvez
aquele onde viviam Lex e Al.
Não sabia se conseguiria sequer ver mais comida, mas, apesar de o jantar
ser servido cedo, pois no dia seguinte Teddy já iria para a escola,
fiquei com água na boca quando senti o cheiro delicioso do rolo de frutos
secos, das batatas assadas e da mistura de tubérculos de cultivo
caseiro, acompanhados por um jarro de molho de cebola.
Para entrada, tínhamos comido meloa às bolinhas amontoadas em velhas
tigelas pouco fundas e com molho de framboesa por cima.
Teddy começara a perguntar:
- Tia Clara, as meloas têm b... - mas Tottie pusera firmemente fim à
frase antes que ele pudesse realmente continuar.
Estávamos todos cansados e a conversa era desinteressante. A descrição
de Tottie sobre como cobria as cenouras com areia no inverno e tapava
a couve com túneis de politeno quase me deixou a dormir.
Henry perguntou-me se eu tinha gostado de decorar a árvore e
garanti-lhe, com toda a sinceridade, que tinha adorado.
Ele e Teddy pareciam ter entrado numa conspiração natalícia para
espremer até à última gota todos os aspetos festivos, desde o calendário
do Advento pendurado na cozinha, com todas as portas abertas até àquele
dia para libertar as figuras do presépio que estavam lá dentro (era
certo que comê-las parecia algo sacrílego), até ao dia em que poriam
musgo e hera frescos na árvore, bem como azevinho artificial.
- Artificial mas bom - disse Clara. - As bagas a sério são tão venenosas
que todos receamos que caiam e que aquela cadela tonta as coma.
- Houve um ano em que comeu uma tigela cheia de amendoins torrados com
casca, mas por sorte vomitou tudo na estufa - disse Tottie.
- Sorte a dobrar, porque o chão é de mosaico, por isso foi fácil limpar
- realçou Clara.
- Quer dizer, para mim foi fácil limpar - disse Den. Ainda estava com
o avental azul e branco às riscas, apesar de se ter juntado a nós para
jantar. As mangas enroladas da sua camisa de cambraia de ganga revelavam
ainda mais tatuagens nos seus braços musculados: uma era a cauda
pendente do que julguei que seria uma sereia, pois de outra maneira
teria de ser um peixe, e porque é que alguém teria um peixe tatuado
no braço?
- Sabe que eu teria limpado, se não tivesse sido o Den a encontrá-lo
primeiro - protestou Tottie.
- Qualquer um de nós o teria feito; não somos picuinhas - confirmou
Clara. - Isso depressa passa quando se trabalha em buracos em partes
remotas do Extremo Oriente, sem confortos modernos e pulgas por todo
o lado, não é, Henry?
- É bem verdade, se bem que por aqui ao jantar ninguém nos oferece um
prato com um delicioso olho de carneiro.
- Estou a ver-te, miúdo - disse Den numa voz arrastada que era uma
imitação passável da de Bogart, ao que todos nos rimos, incluindo Teddy,
que não poderia fazer ideia de quem era aquela voz.
Ajudei a levantar os pratos e a trazer a sobremesa, começando a sentir
que já vivia ali havia meses em vez de ter chegado apenas uns dias antes.
- Como vai a autobiografia, minha querida? - perguntou Henry, depois
de perseguir o último pedaço de strudel de maçã pelo prato com a colher,
pousando-a com um suspiro satisfeito. - Conseguiste avançar um pouco
enquanto saímos hoje de manhã?
- Oh, sim, já passei os anos desinteressantes no colégio interno e as
férias em Devon, e acabo de chegar à parte onde ingressei no Lady
Margaret Hall com um ano de antecedência.
- E depois descobriste que eu tinha sido aceite pela minha faculdade
quase dois anos mais cedo do que seria normal, pelo que íamos começar
os estudos universitários juntos - disse Henry.
- Bem, sempre fomos mais espertos que a maioria dos nossos pares - disse
Clara, sem falsas modéstias. - Isso provavelmente foi o que nos
aproximou ao crescermos em Starstone.
- Eu e a Clara fomos literalmente um contra o outro na nossa primeira
semana em Oxford e foi como se nunca nos tivéssemos separado - disse
Henry, num tom reminiscente.
Sorriram-se com afeto e invejei-lhes o casamento longo e feliz, algo
a que eu não parecia estar destinada.
- Talvez tenhas de me avivar a memória em relação aos anos de Oxford,
Henry. Confundo a maior parte das coisas: aulas e piqueniques,
palestras, conversas, ténis, andar de bicicleta pelo campo... nadar
no rio...
- Oxford não continuava a tentar segregar mulheres e homens, nessa
altura? - perguntei.
- Ainda restavam uns quantos regulamentos e regras arcaicos, mas já
estávamos em mil novecentos e cinquenta e nove quando fui para lá e
eles depois da guerra nunca conseguiram voltar a pôr as mulheres naquele
que achavam que era o seu devido lugar. Limitávamo-nos a fazer
discretamente o que queríamos fazer, sem grande alarido.
Eu decerto conseguia imaginar Clara a fazer o que queria!
Explicou-me que ela e Henry se tinham destacado tanto quando eram
pequenos que o pai dela, que era um grande académico, lhes dera lições
extras de latim, grego, história das civilizações antigas e
egiptologia, enquanto a mãe, uma linguista dotada, lhes ensinara
francês, italiano e alemão.
- É claro que na altura não nos apercebíamos de que éramos bastante
inteligentes. Só achávamos que as outras crianças que conhecíamos
(sobretudo o meu irmão, George) eram um pouco tacanhas - disse Henry.
- O George era tacanho - disse Clara. - Grande, bruto, egoísta, bonito
e completamente estúpido.
- Completamente, não, Clara! - exclamou Henry num tom suave,
voltando-se então para me explicar: - O George seguiu a tradição
familiar e foi para Sandhurst, para fazer a recruta de oficial. Saiu
não muito depois de ter casado.
- Ele gostava da ideia de ser um oficial fardado, mas achava-se mesmo
uma espécie de playboy - disse Clara num tom crítico. - Sempre que estava
de licença, por norma ia a Londres, mas, durante o nosso primeiro
semestre em Oxford, foi visitar o Henry.
Algo nessa memória em particular a levou a abanar a cabeça e suspirar.
- Teria sido melhor se não o tivesse feito.
Henry disse:
- Ele sempre arranjou sarilhos, porque as mulheres caíam por ele como
pinos de bólingue e ele nunca as tratava bem.
- Só as idiotas - replicou Clara com rispidez. - Hum, é impressionante
o que vamos atirando para o fundo da memória ao longo dos anos, não
é? A próxima parte das minhas memórias terá certamente de sofrer alguns
cortes se alguma vez decidir publicá-las.
Ela e Henry trocaram um olhar que eu não fui capaz de decifrar, um
momento partilhado do passado, calculei.
- Incidir luz nos cantos escuros da nossa vida faz parte de escrever
umas boas memórias - disse-lhe ele.
- Iss’é poético, isso - disse Den.
Teddy parecia estar a lutar contra o sono, com os olhos a fecharem-se
e a abrirem-se de repente outra vez. A qualquer momento Tottie daria
por isso e mandá-lo-ia para a cama.
- Sabes, sempre me senti um pouco culpado por ter herdado a parte do
dinheiro da minha mãe que lhe foi atribuído quando ela casou - disse
Henry. - Eu sei que ela fez isso porque o George, sendo o mais velho,
ficaria com Underhill, e ela achava que assim equilibrava as coisas.
Mas todos os meus investimentos tiveram retorno e acabei muito melhor
do que ele.
- Ele teria ficado ótimo se vivesse de acordo com as suas
possibilidades, mas quando se começa a gastar o capital que se tem,
é fácil cair no descontrolo - disse Clara. - E aquele velho amigo
pavoroso dele, o Piers Marten, só o encorajava. Estavam sempre a ir
para Monte Carlo, ou para a Riviera, e, mesmo quando estavam em casa,
passavam a maior parte do tempo nas corridas.
- Tens toda a razão, minha querida - concordou Henry.
- Eu tinha uma tia rica e generosa - disse-me Clara. - Deixou todo o
seu dinheiro a ser dividido entre mim e a minha irmã, a Bridget. Foi
assim que conseguimos comprar a Casa Vermelha e voltar para Starstone
Edge.
- E tudo resultou maravilhosamente bem - afirmou Tottie. - Felizes para
sempre! - Levantou-se. - Anda, Teddy, antes que adormeças na cadeira.
Está na hora de ir para a cama.
Os seus protestos não eram muito sentidos e deixou-se levar com a
promessa de que Henry lhe leria uma história quando ele estivesse
deitado.
Henry e Clara continuavam a relembrar os seus dias de estudantes em
Oxford quando passámos para a sala de estar e eu fiquei cada vez mais
ciente de que havia algum evento, ou mistério, no passado que
partilhavam do qual não falavam, como um elefante a andar em bicos de
pés pela sala.
Ou talvez até em redor da casa? Talvez tivesse sido isso a empurrar
a porta do estúdio e a pôr o velho relógio a funcionar?
Disse a Henry que gostaria de dar início ao seu retrato assim que
possível, ou pelo menos fazer uns quantos esboços preliminares.
- Gostaria de que posasse no estúdio... se não se importa... no estrado
e com a Lass sentada a seus pés.
- Ou, o que é mais provável, nos meus pés. Ela tem a mania de nos prender
ao lugar.
- O meu retrato parece ter ganhado forma tão depressa - comentou Clara
quando Henry subiu para ler mais um capítulo de Os Bebés da Água a Teddy,
enquanto Tottie tinha trazido café acabado de fazer. Den tinha razão:
o café dela era muito mau.
- O seu rosto só precisa de mais uma sessão, no máximo, e depois é
trabalhar um pouco mais as mãos - concordei. - Depois disso é só o fundo
e uns retoques finais.
- Bem, tinha-me dito que era rápida. Só não me tinha apercebido de que
era assim tão rápida!
- É tudo uma questão de estilo. Se eu estivesse a pintar um retrato
tradicional a óleo, fá-lo-ia lentamente, com várias camadas ao longo
do tempo, mas a minha técnica é mais impressionista. Foi por isso que
lhe disse que provavelmente conseguiria completar os dois retratos a
tempo do Solstício.
- Claro, mas também poderia dar-se algum tempo para completar o processo
e depois espero que desfrute do Natal connosco. Não há necessidade
alguma de que vá embora à pressa, pois não?
Mal sabia ela!
Depois sobressaltou-me, ao dizer num tom pensativo:
- Eu achava que a Meg e o Lex eram velhos amigos, mas não parecem ter
muito a dizer um ao outro... se bem que, claro está, ele seja muito
calado e intenso.
A última parte provavelmente devia-se a viver consumido por culpa, mas
ainda bem que ela não tinha ouvido a nossa conversa entre os abetos
noruegueses!
- Como ele estava um ano à minha frente na faculdade, não nos conhecíamos
lá muito bem - respondi, sendo que isso certamente parecia ter sido
verdade. - Mas posei para a Lisa para um busto de barro... ela tinha
muito jeito. E era tão amável, querida e divertida, para além de linda.
Parecia ter tudo. O que acontecera fora tão cruel...
Eu tinha posado para ela no meu primeiro semestre, quando ainda estava
na fase da paixoneta em que corava de cada vez que via Lex. Tenho a
certeza de que ela reparava; só não a incomodava, e porque haveria de
incomodar? Não era provável que ele olhasse sequer para quem quer que
fosse enquanto tivesse Lisa, e, de qualquer maneira, o que eu sentia
era um humilde primeiro amor, adorador de longe. Tinha-me passado bem
antes de conhecer Rollo.
- Sim, a Lisa era uma jovem encantadora e muito talentosa - concordou
Clara. - Foi uma verdadeira tragédia para os dois, se bem que, como
só tinham vinte e poucos anos quando casaram, por vezes pergunto-me
como as coisas teriam funcionado a longo prazo.
- Eu acho que a minha chegada súbita lhe trouxe todas as memórias de
volta - disse eu. - Sinto-me um bocado culpada por isso.
- Mas não podia evitá-lo, minha querida. Não se esqueça de que ele vê
o Alan e a irmã da Lisa, a Tara, quase todos os dias, pelo que não se
dá o caso de não haver sempre uma recordação constante.
Não, pensei, mas eu tinha desenterrado um pedaço diferente de memória
e uma camada extra e lamacenta de culpa.
Como já não aguentava os olhos abertos, fui para a cama cedo, sentindo
que subir as escadas se assemelhava um pouco a escalar o monte Cervino
e a desejar poder subir para o dorso da grande águia de madeira e ser
transportada para o meu quarto num abrir e fechar de asas.
18
Remexer as Brasas
Eu ainda estava furiosa com Rollo, pelo que, na segunda-feira de manhã,
telefonei-lhe do estúdio.
- Sou eu - disse-lhe abruptamente quando ele atendeu.
- Querida! - começou ele em pleno na sua voz mais melíflua.
- Não me venhas cá com «querida» depois de teres ligado para aqui e
tentado passar à Clara a ideia de termos uma relação, só para arranjares
maneira de te infiltrares e entrevistares o Henry! - atirei-lhe. - E
interrompeste a Clara enquanto ela estava a trabalhar.
- Mas eu tinha de fazer alguma coisa, porque tu não parecias ter vontade
nenhuma de preparar o terreno para mim.
- Não, claro que não queria preparar a porcaria do terreno! E como raio
é que conseguiste o número de telefone desta casa?
- Hoje em dia consegue-se qualquer número - disse ele num tom ambíguo.
- Tu não me respondias às mensagens, por isso, não havia outra coisa
a fazer. Quero dizer, esta entrevista ao Henry Doome é importante, Meg.
- Só para ti... e nos teus sonhos! Nem penses que vou deixar que me
uses para pores um pé que seja nesta casa.
- Oh, vá lá, Meg - lamuriou-se. - Um verdadeiro amigo já teria aplanado
o caminho, deixado tudo a postos para quando eu aparecesse.
- Um verdadeiro amigo não o teria sugerido, para começar. Tu usas as
pessoas, Rollo, e para mim, chega.
Ele não parecia entender, porque a sua réplica foi:
- Disseste à tal Clara que não temos uma relação?
- Clara Mayhem Doome, a mulher do Henry. E, sim, disse, mas de qualquer
maneira ela já tinha adivinhado o que tu querias.
- Acho que ainda posso aproveitar isso; ela há de pensar que tivemos
só um arrufo de namorados - sugeriu ele.
Eu estava prestes a pô-lo no seu lugar sem margem para mal-entendidos
quando ele acrescentou, com curiosidade:
- Como é o Henry Doome? Consta que é um eremita total.
Não sei o que me deu.
- Fecha-se no estúdio de manhã à noite e raramente fala com quem não
seja da família.
- Pensava que ias pintá-lo?
- Sim, mas tive de fazer um voto de silêncio enquanto trabalho, nunca
posso virar-lhe costas e só posso vestir-me de verde.
Seguiu-se uma pausa. Depois ele disse num tom inseguro:
- Estás a inventar isso?
- É claro que não. Ele é um bocado excêntrico. Quero dizer, não fala
com ninguém a menos que se vista de verde, pelo que foi uma sorte
extraordinária eu ter tingido o meu cabelo de esmeralda-escuro antes
de vir para aqui.
- Mas porquê verde?
- Oh, estava farta da cor que tinha e apeteceu-me mudar.
- Não, pergunto porque é que o Henry Doome tem uma fixação por essa
cor.
- Acho que deve ser por causa do Homem Verde - improvisei rapidamente.
- Qual homem verde?
- Sabes, o Homem Verde, aqueles bonecos do folclore tradicional que
se veem em batentes de catedrais, com folhas a despontar da boca.
Simbólico do crescimento, do renascimento, da primavera e essas coisas,
suponho.
Rollo abandonou o tema e avançou com confiança:
- O que se passa, Meg, é que mencionei ao meu editor norte-americano
que era capaz de conseguir um breve prefácio do Henry Doome para a minha
nova antologia e ele ficou muito interessado nessa ideia.
- Disparate teu, então, contares com o ovo no cu da galinha.
Ele ignorou o comentário.
- E, se conseguíssemos que o Henry também me concedesse uma breve
entrevista para a revista, isso aumentaria imenso os nossos
subscritores.
- O quê, era capaz de chegar aos cem?
- Ah, ah - riu ele friamente. - Nunca te deste conta da importância
da Strimp! na revelação de jovens poetas em ascensão, pois não?
- Na maior parte, parece ter coisas tuas e do Nigel, e tanto tu como
ele já passaram dos quarenta.
Tinham crescido e definhado, como um triste par de pães de ló.
- Eu não tenho quarenta anos! - declarou ele, indignado. - Somos da
mesma idade, Meg.
- Rollo, tens uns bons quatro anos mais do que eu. Não te esqueças de
que te conheci quando andava no segundo ano do curso de belas-artes
e tu por essa altura já tinhas terminado o mestrado em escrita criativa.
Ele não se dignou a responder a isso, tentando de novo a voz adocicada.
- Por favoooor, Meggie, tenta persuadir o Henry a receber-me.
Eu afastei o telefone por um momento e fitei-o como se me tivesse atacado
verbalmente. Depois encostei-o de novo à orelha e disparei:
- Não! E ninguém me chama Meggie.
- Estás a ser muito egoísta e irrazoável em relação a tudo isto. Estou
surpreendido contigo e profundamente magoado.
- Eu? Eu estou a ser egoísta e irrazoável?
- Olha, querida, eu vou a York daqui a uns dias, para participar num
grande evento de leitura de poesia, por isso posso facilmente ir até
aí a seguir, de regresso.
- Podes é ir dar uma volta ao bilhar grande, Rollo! E Starstone Edge
é uma aldeia remota nas charnecas, portanto, não vais convencer ninguém
de que estás só de passagem, a menos que chegues de casaco de pastor
e com um rebanho de ovelhas a seguir-te.
- Eu tenho a certeza de que acreditariam que eu fizesse um desvio só
para te ver, Meg. Levo-te a almoçar fora e depois, quando voltarmos,
eles têm de me convidar a entrar e depois eu posso...
- Eu acho que te enganaste na tua verdadeira vocação e devias escrever
contos de fadas em vez de poesia, Rollo - interrompi-o. - Estou aqui
numa situação profissional, não para ser teu cavalo de Troia.
- Égua - disse ele. Não percebi se me corrigia ou me insultava, zangado
pela minha falta de cooperação.
- Bem, Rollo, por fascinante que tenha sido andarmos atrás da cauda
um do outro num pequeno círculo conversacional, tenho de desligar.
- Mas, Meg, eu gostaria mesmo de...
- Está mais do que na hora de perceberes que já não me importa o que
gostarias mesmo, Rollo. Tudo isso acabou há seis anos, lembras-te?
Devia ter insistido numa rutura total nessa altura.
- Eu acho que ainda me culpas pelo acidente e por teres perdido o bebé
e que agora arranjaste a forma perfeita de te vingares - disse ele,
com um rancor maldoso do qual nunca o julgara capaz.
- Se achas isso, então nunca me conheceste de todo. Eu sempre me culpei
mais a mim do que a ti. Não deveria ter-te dado a notícia enquanto
conduzias, se bem que não esperava que o choque fosse tal que te fizesses
despistar. E eu vi o horror na tua cara e no hospital dei-me conta de
que tu só julgavas que querias assentar e começar família, mas, quando
a coisa era a sério, punhas-te a milhas. Fugias para os braços da tua
mãezinha, na verdade.
Ele começou a barafustar, mas eu cortei-lhe a palavra.
- Não serve de nada repisarmos tudo isto de novo ou pensarmos no
passado... e não há dúvida de que no meu futuro não há lugar para ti.
Já tinha decidido, quando saí de Londres, que precisávamos de cortar
relações e que não queria voltar a ver-te ou a saber de ti. Portanto,
aqui vai: cada um para seu lado. Tem um bom Natal com a tua mãezinha,
Rollo. Na verdade, desejo que tenhas uma boa vida. Só não te dês sequer
ao trabalho de me falar dela.
Desliguei enquanto ele continuava a balir do outro lado da linha. Sentia
uma espécie de catarse e de ter eliminado algo tóxico da minha vida,
mas as minhas mãos tremiam ligeiramente. Eu já conhecia todos os seus
defeitos: vaidade, egoísmo, infidelidade, mas julgava que gostava
tanto de mim quanto lhe era possível gostar de alguém. Agora, porém,
via que ele era tal e qual como uma daquelas orquídeas parasíticas
maravilhosamente lindas (ainda que ligeiramente exageradas). Esperava
ter-lhe cortado as raízes aéreas e que ele murchasse na minha vida.
Só então me dei conta de que a porta estava escancarada. Devia tê-la
deixado destrancada e Lass entrara, estando a olhar intensamente para
a gaveta de onde os biscoitos tinham saído.
- Estás sem sorte, Lass... já se acabaram - disse-lhe. Ela soltou um
suspiro pesado e seguiu-me para fora do estúdio, mas virou em direção
à maior probabilidade de comida na cozinha, em vez de ir também para
o escritório de Clara.
Clara estava recostada na sua cadeira, com as pernas compridas cruzadas
e os olhos fechados, em profundo pensamento, atirando o pisa-papéis
de pedra de uma mão para a outra, mas abriu os olhos quando me ouviu
fechar a porta.
- Era a minha querida a gritar, há pouco?
- Devia ser, ainda que não me tivesse apercebido de que estava a gritar.
Telefonei ao Rollo, para lhe dizer exatamente o que achava da sua
tentativa de tentar usar-me para chegar ao Henry.
- Deve sentir-se bastante melhor. Não há nada como deixar as coisas
claras.
- Tem razão, sinto! E espero que ele finalmente tenha percebido que
nunca mais quero voltar a saber dele.
- Ouvindo-a daqui, parecia bastante assertiva - assegurou-me ela, com
um sorriso à gato de Cheshire que lhe deixava todos os dentes à vista.
Eu tinha levado a tela comigo e, quando pousei o retrato no cavalete,
ela levantou-se e foi vê-lo.
- Demorou tão pouco tempo... apesar disso, aí está, a essência destilada
de Clara Mayhem Doome!
- Ainda bem que gosta. Só quero trabalhar um pouco mais as mãos, se
não se importa de segurar o pisa-papéis e não as mexer?
Fui buscar as tintas e quando regressei ela fez o que lhe pedira.
Enquanto trabalhava, dei por mim a contar-lhe um pouco mais sobre Rollo
e como nos tínhamos conhecido numa festa de estudantes.
- Ele era muito bonito... como uma mistura de Byron com Dylan Thomas.
- É difícil de imaginar - disse Clara. - Bem sei que Byron era bonito,
e devia ser magneticamente atraente para certas mulheres, mas eu sempre
achei que era um parvalhão.
Eu tinha de concordar com ela.
- Quando o conheci, o Rollo era capaz de ser muito querido e
encantador... e também infiel, segundo se revelou. Dei-lhe uma segunda
oportunidade e depois uma terceira, depois de ter tido um susto de saúde
que o tinha feito querer assentar e constituir família. - Suspirei.
- Ele até deu a volta à mãe. Sempre tinha tido medo de a contrariar,
porque ela era muito endinheirada e pagava-lhe o apartamento e o carro,
mas nunca gostou de mim.
- Custa-me acreditar nisso. - Clara parecia genuína e lisonjeiramente
atónita.
- Oh, ela não teria achado que qualquer rapariga fosse suficientemente
boa para o seu querido menino, mas entre a forma estranha como fui criada
e a adoção da minha mãe, os meus defeitos eram graves. Ela parecia achar
que não saber quem eram os verdadeiros avós era muito importante para
se ter filhos. Todos esses genes desconhecidos à espera de aparecer.
- Que maneira estranha de ver as coisas - disse Clara, fixando em mim
o seu olhar intenso. - Então a sua mãe foi adotada?
- Sim, ainda recém-nascida. Mas não foi uma solução feliz e ela fugiu
quando era adolescente... até que acabou na Quinta do River.
- Interessante - murmurou ela, calando-se enquanto eu acrescentava uns
últimos toques no fundo e recuava para examinar o retrato.
- Acho que está na altura de parar. Está pronto.
- Então vamos chamar toda a gente para o ver! - exclamou ela, pondo-se
de pé de um pulo e batendo palmas. - Que emocionante! E mal posso esperar
por ver o que fará com o Henry!
Eu também estava desejosa de o começar, mas antes teria de encontrar
uma loja de artes: tinha saído de casa tão à pressa que deixara ficar
lá a minha bisnaga de branco de chumbo. E a minha massa pão, que deveria
ter uma consistência ligeiramente elástica e esponjosa, já estava dura
e a esfarelar-se.
Quanto a Rollo, a nova versão de mim também estava endurecida, mas
decerto não ia esfarelar-se.
Ao almoço, fiquei a saber que havia uma boa loja de trabalhos manuais
em Great Mumming e, quando Henry soube que eu tencionava ir lá naquela
tarde, ofereceu-se para ser ele a levar-me.
- Vou às garrafeiras e trago mais umas garrafas de uísque e xerez.
- Se vão a Great Mumming, então depois podem trazer o Teddy da escola
- sugeriu Clara.
- Mas também posso ir eu na autocaravana e trazer o Teddy, se quiserem?
- ofereci-me.
- Não incomoda nada; o Jag precisa de dar uma voltinha - disse Henry.
- Vou só passear a Lass e depois podemos ir.
Den, que tinha estado junto à bancada a pôr uma cobertura nalgum tipo
de bolo enquanto assobiava baixinho entredentes, virou-se e disse que
ia connosco e conduzia.
- A Tottie acha qu’a gente vai ficar aqui presa p’la neve no Natal,
por isso quer encher o congelador e a despensa até rebentar, parece
um esquilo.
- Quem é que parece um esquilo? - perguntou Tottie, aparecendo nesse
momento com uma enfiada comprida de cebolas numa mão ligeiramente suja
de terra.
- Você - disse Den. - Dê-me lá a lista do que quer de Great Mummin,
qu’eu logo vejo o que consigo.
Henry e Den discutiram acerca de quem deveria levar o carro, mas Den
ganhou e, tendo terminado de pôr a cobertura no bolo, tapou-o com uma
grande proteção de vidro e levou-o para a despensa.
- O Den adora conduzir o Jag e eu não o tiro muito da garagem no inverno
- sussurrou-me Henry.
Tottie tinha pendurado as cebolas de um gancho numa prateleira de metal
bem alta por cima da mesa, da qual já pendia uma correnteza mais pequena
de alho e ramalhetes de ervas secas.
- Aquele parece um dos bolos de compota do Den, com cobertura de limão
- disse ela, num tom apreciativo. - Vocês deixaram-me alguma sopa?
Clara desapareceu no seu escritório depois do almoço e Henry saiu com
Lass. Tottie ofereceu-se para me mostrar a estufa e eu fui buscar o
iPad e o caderno de esboços ao estúdio e encontrei-me com ela lá.
Um cheiro quente, húmido e deliciosamente terroso envolveu-me enquanto
seguia Tottie pelos caminhos entre a folhagem lustrosa; depois de andar
de um lado para o outro durante algum tempo, apercebi-me de que todos
se encontravam no meio, sob uma espécie de cúpula, onde havia uma área
pavimentada com cadeiras de vime e uma mesa baixa.
- Às vezes o Henry e a Clara gostam de se sentar aqui. Adoram o calor,
se bem que também mantenho a humidade do ar, porque as minhas plantas
são dos trópicos, na maioria.
Mostrou-me orgulhosamente os seus protegidos cuidadosamente nutridos:
ananases, bananas, líchias, kumquats, limões e laranjas pequenas,
entre outros, incluindo um coqueiro no maior vaso que eu alguma vez
vira. A única coisa que me parecia faltar-lhe era um par de macacos
tagarelas e uns quantos papagaios garridos.
- Por favor, não mostre isto ao River quando ele vier de visita, porque
vai dar-lhe ideias! - roguei-lhe. - Não me parece que a energia solar
chegue para aquecer uma coisa deste tamanho para além de tudo o resto.
- Sai muito caro aquecer isto, é verdade, diz o Henry - reconheceu ela.
- Eu não podia pagá-lo quando estava aqui sozinha, mas a Clara e o Henry
queriam restaurar toda a casa à sua antiga glória, e divertimo-nos
imenso a planear o que teríamos aqui.
- Imagino... é como criar o vosso próprio cantinho do paraíso. O River
ia mesmo adorar. Ele consegue criar pêssegos e nectarinas de estufa,
e está sempre a tentar vinhas, apesar de o Oshan achar que estamos a
demasiada altitude para que valha a pena.
- Oh, não sei, é capaz de conseguir, com a vinha certa. Venha ver a
minha.
E seguiu por um pequeno caminho que julgo que ainda não tínhamos feito,
parando debaixo de uma copa folhosa.
- Uvas de mesa: temos muitas das pretas, mas as verdes dão menos frutos.
Por vezes também são um pouco azedas e ácidas.
Senti uma afinidade imediata pelas uvas azedas e ácidas: a minha doçura
fora esmagada pelos acontecimentos recentes.
Tinha tirado montes de fotos enquanto percorríamos o espaço e perguntei
então a Tottie se não se importava de posar para uma foto, e talvez
eu pudesse desenhá-la rapidamente?
- Só demoro uns dez minutos, no máximo - disse-lhe num tom persuasivo,
mas ela já estava com um ar lisonjeado e acedeu de imediato. Puxei uma
cadeira de vime e fi-la posar em frente de um dos ananases a crescer
numa cama elevada, esticando a mão como se fosse apanhar uma fruta quase
madura, se bem que, do ângulo que eu a via, o ananás parecesse estar
em cima da cabeça dela, com os picos curvados e serrados da folhagem
a formar uma coroa em volta.
Quando lhe mostrei o iPad, ela disse que parecia a Carmen Miranda e
que eu estava à vontade, por isso desenhei-a assim... e talvez, se
tivesse tempo, lhe perguntasse se também me deixava pintá-la...
19
Serpentes e Escadas
Quando voltei ao estúdio, fiz uma busca no Google por Carmen Miranda
e encontrei montes de imagens e gravações antigas de uma senhora de
aspeto exótico, por vezes a usar pouco mais do que muita fruta na cabeça.
Senti-me tentada a acrescentar um par de brincos de cerejas e uma banana
ou duas ao desenho de Tottie. E seria encantador se ela estivesse a
segurar algo como uma cesta... ou uma cornucópia a abarrotar de frutos
e outros vegetais.
Rollo deixara-me umas mensagens no telefone, que eu apaguei sem ouvir:
ia simplesmente continuar a apagá-lo da minha vida até que ele
desistisse.
Mas também tinha uma chamada perdida de Oshan, pelo que lhe liguei.
- O Pop quer saber o que levar aos anfitriões como agradecimento por
o terem convidado a passar aí o Solstício - disse ele.
Oshan era a única pessoa que não tratava River pelo nome, mas pelo termo
irreverente «Pop», coisa que fizera desde pequeno, quando um
norte-americano de visita lhe perguntara onde estava o seu pop. Na
altura, ambos tínhamos achado que aquilo era hilariante.
Pensei no que River poderia trazer.
- Nada de fruta e vegetais, porque a Tottie, que é uma das pessoas da
casa, é uma jardineira de mão cheia e tem isso tudo alinhado. Na verdade,
acaba de me mostrar a estufa, que é enorme e aquecida e está cheia de
coisas como bananas e ananases!
- Espero bem que isso não dê ideias ao Pop! - disse ele. - A energia
solar não vai dar para tanto.
- Foi exatamente o que eu pensei. Vamos simplesmente ter de esperar
que não.
- Mas de volta à questão da prenda: ele estava a pensar que talvez um
pouco do seu hidromel medicinal fosse boa ideia.
- A Tottie também tem abelhas e faz hidromel. Não digas ao River, mas
eu acho o dela muito mais saboroso, parece néctar dourado.
- Se calhar também o desvio da ideia do hidromel, então.
Dei a volta à cabeça, a pensar nas várias coisas que os artífices faziam
no celeiro ou vendiam na loja.
- Um desses grandes sacos de celofane com estrelas de gengibre que a
Maj vende no café, furadas para pendurar na árvore de Natal, seria
bem-vindo - sugeri. - Eles vivem o Natal muito intensamente e têm uma
árvore enorme no átrio.
- Okay, e ela este ano também está a vender uma espécie de bolo Dundee,
com montes de fruta cristalizada por cima.
- Perfeito. Eles realmente parecem comer muito bolo.
- Vou dizer ao Pop e ele depois pode resolver isso com a Maj - disse
Oshan. - Acho que são capazes de ir também um ou dois presentes de Yule
para ti com o Pop, não vás tu decidir não voltar para as celebrações.
- Eu tinha decidido que ia mesmo voltar, mas agora, de repente, já não
tenho tanta certeza - respondi lentamente, mais para mim mesma do que
para ele, dando-me conta de que as minhas emoções tinham sofrido uma
alteração. - Começo a sentir que isso seria fugir... E, para além disso,
não só estou a pintar mesmo bem aqui, como acho que fui contagiada pela
loucura do Natal e quero ter a experiência completa.
Ele não perguntou de que fugiria eu. Contudo, assim é Oshan. Se eu
quisesse contar-lhe, assim faria.
- Podes decidir finalmente quando o Pop estiver aí, não podes? - sugeriu
ele calmamente.
- É verdade, e, como as estradas de Starstone Edge muitas vezes ficam
bloqueadas pela neve nesta altura do ano, é capaz de nem sequer depender
de mim se vou embora ou não. Ou do River, pensando bem, isso se ele
conseguir chegar!
- Oh, imagino que consiga. Quero dizer, nós também estamos habituados
ao mau tempo aqui, por isso ele há de levar as correntes para a neve,
uma pá e tudo isso.
- É bem capaz de precisar, porque vai ter de seguir por uma estrada
de uma só faixa por cima das charnecas desde o vale anterior até aqui.
- Parece que entraste n’A Terra Que o Tempo Esqueceu - disse Oshan,
divertido. - Há dinossauros por aí?
- Tenho de reconhecer que o vale realmente dá um bocado essa impressão.
- Fiz uma pausa e depois acrescentei. - Vive aqui uma pessoa que andou
na minha faculdade de artes, se bem que estava um ano à minha frente,
pelo que não o conhecia assim tão bem.
- Se a neve vos deixar aí presos, é provável que fiques a conhecê-lo
bastante melhor - comentou Oshan.
- Ou é capaz de se transformar num desses policiais antigos e agradáveis
em que as personagens não podem sair de um velho casarão e há um
assassínio - repliquei amargamente. - Mas vive por estas bandas outra
pessoa que conhecemos os dois. Lembras-te da Moonflower?
- O quê, aquela rapariga irritante de cabelo comprido e castanho que
passou aqui uns anos? E os pais dela viviam num atrelado para cavalos
que tinha sido reconvertido?
- Sim, é ela. Está mais ou menos na mesma, mas casou com um homem que
tem uma loja na aldeia e têm uma bebé. Mas por aqui chamam-lhe só Flower.
- O mundo é mesmo pequeno - comentou ele, e depois acrescentou: - Está
aqui o Pop. Vou só dizer-lhe o que sugeriste como presente.
Ouvi uma conversa ao longe e depois Oshan regressou à linha.
- Ele diz que isso dos biscoitos e do bolo parece boa ideia e que vai
falar com a Maj. Também leva queijo de cabra.
Para ser sincera, nunca gostei lá muito de leite, queijo ou iogurte
de cabra, embora goste das cabras.
- Os meus mantos para a cerimónia do Solstício estão prontos e o Pop
vai levar os dele para usar na cerimónia aí, mesmo sendo só um
espectador.
- Boa ideia - aprovei. Não via porque não haveria de se vestir à altura
da circunstância naquele ano, já que gosta tanto. Envolvido em
mantos... o que me trouxe à memória uma vez que me levaram a um
restaurante fino de Londres, no qual o menu descrevia o pudim com
estando «envolvido num delicioso manto de chocolate» e fiquei bastante
desapontada por não chegar também com uma cauda de arminho e uma tiara.
Henry e Den discutiram acerca do melhor caminho a seguir até à vila
antes de decidirem ir pela passagem e voltar pelo outro lado.
O Jaguar de coleção era uma coisa grená brilhante belamente polida que
desceu pela passagem de uma forma imponente. A meio caminho, um Land
Rover antigo com três cães pastores apertados nas traseiras passou por
nós com um rugido. O condutor até tirou uma mão do volante para nos
acenar.
- É um agricultor da zona - explicou Henry. - Mas nem eles vêm por aqui
quando o tempo está mesmo mau.
- Eu disse qu’hoje ia ‘tar bom - replicou Den, dobrando a última curva
e emergindo na estrada mais larga e plana ao fundo.
Passámos por Gobelins e depois chegámos ao início da pequena vila
comercial onde Den abrandou, para eu poder ver a velha ferraria
entretanto renascida como Terrapotter. Havia uma grande placa verde
de um lado do edifício de tijolos comprido, baixo e de aspeto antigo,
mas não tive tempo de reparar em mais do que num arco central com
janelas. Se originalmente era uma ferraria, teriam tido de passar por
ali carroças e carros de mão para alguma espécie de pátio.
- Podemos parar aqui à volta, se tivermos tempo - sugeriu Henry, mas
eu esperava sinceramente que não o fizéssemos.
Havia um pequeno parque de estacionamento no centro da vila, perto do
obelisco estreito de granito gravado, que era um monumento de guerra,
e de um bebedouro de pedra. A loja de artes ficava do outro lado da
praça, pelo que combinámos encontrar-nos de novo no carro quando
tivéssemos feito as nossas compras.
A loja de artes era surpreendentemente grande e bem abastecida, tendo
até os óleos de boa qualidade que eu preferia. Depois encontrei uma
caixa de molduras de cartão para quadros ou fotografias e decidi comprar
várias. Poderia fazer esboços dos vários habitantes da Casa Vermelha
- humanos e não só - e assim teria uns bons presentes para deixar...
ou oferecer, se ainda lá estivesse no dia de Natal. Ainda não tinha
decidido isso, mas inclinava-me para o lado de ficar.
Nesse momento, reparei numa caixa completa de material artístico, com
tabuleiros desdobráveis, cheia de bisnagas de tinta, pastéis de óleo,
lápis... tudo o que um artista incipiente poderia querer. Era caro,
claro, mas, oh, como Teddy gostaria daquilo! Não consegui resistir.
Também vendiam rolos de papel de embrulho com garridos padrões
natalícios.
Tinha gastado uma pequena fortuna e decerto passara imenso tempo ali
dentro, mas não via nem sinal de os outros terem regressado para junto
do carro, pelo que fui a um cabeleireiro ali perto que me parecia moderno
e perguntei-lhes pela cor de cabelo que gostaria de ter, um tom de
rosa-velho claro e apagado que vira recentemente em duas mulheres. E
até o tinham disponível. Tratava-se de uma nova linha de produtos que,
asseguraram-me, era completamente desprovida de químicos
prejudiciais, pelo que, ainda que provavelmente não fosse tão amigo
do ambiente como o pigmento verde, pelo menos poderia durar um pouco
mais. Ofereceram-se para remover a cor verde já pálida do cabelo e
pintar-mo de seguida com o rosa, já que não estavam com muito movimento,
mas eu disse-lhes que não tinha tempo.
E depois, como parecia ser dia de ficar sem um tostão no bolso, entrei
na loja a seguir e experimentei um vestido comprido aos quadrados de
bombazina fina em tons apagados de pedras preciosas. Tinha um decote
algo acentuado que me favorecia as curvas que iam regressando
rapidamente e um corte similar aos antigos vestidos de montar: justo
até abaixo da cintura, onde tinha um folho peplum, caindo depois, longo
e pregueado, até aos tornozelos. Era como uma nova interpretação do
tipo de vestimentas da velha guarda hippie que Maj e alguns dos outros
residentes da Quinta preferiam. Provavelmente quereriam roubar-mo
quando o vissem.
Nesse expositor as roupas eram de produção local, de uma aldeia próxima,
referiu a vendedora enquanto dobrava o vestido em papel de seda antes
de o guardar num saco com o nome da loja: East Island8.
Eu ainda estava a ponderar esse nome quando ela acrescentou que a aldeia
se chamava Halfhidden9 e era a mais atormentada por fantasmas de todo
o Lancashire.
Achei engraçado e teria querido visitá-la, só que aquela não era
propriamente a altura do ano para ver as vistas.
Muito carregada, feliz mas falida, cambaleei para fora da loja e
dirigi-me ao carro, antes que encontrasse algo mais para comprar.
Den e Henry estavam a guardar as compras na mala do Jaguar.
- Aqui está, minha querida... na altura perfeita - disse Henry. - E
já vi que teve uma expedição de compras muito bem-sucedida!
Ele e Den conseguiram enfiar tudo no carro, mas um par de sacos teve
de ir atrás de um dos assentos. Não o que tinha a caixa de material
artístico, porque lhes tinha dito o que era e eles esconderam-no na
bagageira, para o caso de Teddy ficar curioso a caminho de casa e
espreitar para dentro dos sacos.
- Que gentileza sua! - exclamou Henry. - Acho que tintas também constam
da lista de Natal dele. Vai ficar encantado.
- Acabámos de encontrar o castelo qu’ele queria na loja de brinquedos,
não foi? - disse Den.
- Eu encomendei-o e o Den comprou uma família de dragões de plástico
para acompanhar.
- Primeiro tenho qu’os pintar - disse Den. - Pôr um bocado de prateado
nas escamas.
Henry subiu a manga e consultou um velho relógio de pulso bastante
gasto.
- Oh, boa, ainda temos tempo de dar um pulinho à Terrapotter a caminho
da escola do Teddy. O Lex há de dar-nos um café e a Meg de certeza que
estará interessada em ver a cerâmica.
Eu tinha esquecido que ele mencionara essa ideia antes e fiquei tão
espantada que quase disse que era alérgica a argila, mas por sorte
lembrei-me a tempo de que esse truque não resultara com as árvores de
Natal.
- Não está a ficar um pouco tarde? - sugeri em vez disso. - E tenho
a certeza de que devem andar demasiado ocupados para receber visitas
nesta altura do ano.
- Sobra-nos cerca de meia hora e a escola fica só a um ou dois minutos
daqui. O Lex não se vai importar, porque a encomenda que tinha para
a casa senhorial já seguiu e também despacharam a maior parte do stock
encomendado para o Natal há muito tempo. Na verdade, esta é uma altura
calma para eles.
Eu já me tinha sentado apertada entre o banco de criança de Teddy e
a imensidão de pacotes, e seguíamos em direção à estrada de Thorstane.
Resignei-me com o meu destino.
Henry continuava a falar.
- A mulher do Alan, a Tara, faz joias muito interessantes que vende
pela internet e também através de lojas, pelo que costuma trabalhar
até ao último instante possível. É quase como se não ouvisse as
badaladas dos sinos a darem as horas.
No entanto, eu tinha praticamente a certeza de ouvia badaladas quando
passámos pela arcada que atravessava a frente do edifício de tijolo
claro e parámos num átrio com pavimento de pedra, rodeados por uma
mescla de anexos.
- É um sítio velho e interessante, não é? - disse Henry. - A ferraria
original era aquele edifício grande à esquerda. Agora é a olaria, mas
ali ao fundo havia uma velha forja de tijolo... e depois algumas das
outras construções tiveram artífices como pedreiros a trabalhar lá ,
a certa altura. Teve uma vida variada, mas estava abandonada quando
ajudámos o Lex a comprá-la.
- Era um pardieiro, era o qu’era, e a casinha em frente estava em ruínas
- resumiu Den.
- Isso é um pouco exagerado - disse Henry quando saímos. Seguiu em frente
por uma pequena porta talhada na maior que ocupava a fachada da velha
ferraria. Tinha uma placa a dizer «Escritório», se bem que, entrando,
tudo o que se via era um cubículo desocupado à esquerda, com uma
secretária e um ecrã de computador.
Estávamos numa sala grande com o piso de pedra original, cheia com
variadíssimas formas de jarros enormes de terracota, a maioria amarrada
a paletes de madeira, prontos a serem entregues. Fez-me lembrar aquele
exército de terracota na China... mas, na verdade, quando os meus olhos
se ajustaram à penumbra, mais parecia uma estranha versão da caverna
de Ali Babá, só que ninguém saltava de uma lanterna mágica.
Uma porta lateral abriu-se e Lex apareceu de caneca na mão.
- Bem me parecia que tinha ouvido um carro, Henry. Pode-se sempre contar
consigo para aparecer quando acabo de fazer café!
- Então espero que tenhas feito para mais três, porque também trouxe
a Meg para que visse a olaria - disse-lhe Henry. Eu tinha-me deixado
ficar para trás até então, pelo que julgo que Lex não me tinha visto.
Uma sobrancelha escura arqueou-se.
- Estou a ver... de facto tinha dito que havia de a trazer cá um destes
dias. - Pelo seu tom, percebi que não esperava que eu alinhasse no plano.
- Bem, café não falta. Este é para o Al... ele está nas traseiras, a
fazer moldes por vazamento... mas sirvam-se enquanto eu lho levo.
Passámos para uma pequena divisão com um forno, uma mesa, um micro-ondas
e uma grande cafeteira de vidro em cima de uma chapa.
Den disse que serviria as chávenas e depois procurou um biscoito de
chocolate numa lata aberta, mas, quando os ofereceu a todos, eu recusei.
Achei que o mais provável era engasgar-me com eles. Quem me dera estar
noutro lugar - onde quer que fosse.
Havia ali um pequeno aquecedor elétrico e eu estava a aquecer as mãos
quando Lex voltou e pegou na sua própria caneca. Os seus olhos
verde-escuros observaram-me pensativamente por cima do rebordo da
caneca.
- Bom, já que cá estás, é melhor mostrar-te o espaço.
- Não temos tempo, na verdade - apressei-me a dizer. - Não queremos
atrasar-nos a ir buscar o Teddy.
- Oh, há tempo de sobra para uma volta rápida - disse ele e, para minha
surpresa, acrescentou: - Gostava de te mostrar o que estamos a fazer.
Ocorreu-me que parecia ter havido uma mudança pequena mas sísmica na
atitude de Lex em relação a mim desde a última vez que o tinha visto
no estúdio. Talvez tivesse ficado realmente tão impressionado com o
retrato de Clara que tivesse começado a voltar a ver quem eu era, a
pessoa que ele conhecera em tempos, em vez da versão alternativa que
fora construindo ao longo dos anos.
De facto, agora parecia bastante ávido por me mostrar o espaço. Henry
e Den decidiram ficar onde estavam e, ao fim de uns minutos apenas,
Lex tinha certamente esquecido por completo quem eu era, tão grande
era o seu entusiasmo por aquilo que fazia.
Mostrou-me os jarrões acabados e descreveu-me onde tinha aprendido a
fazer cada forma individual. A única coisa que tinham em comum era serem
todos de terracota e grandes, alguns enormes.
- Aprendi quase todo o meu ofício na Grécia - disse ele. - São precisos
entre doze e catorze anos de prática para se ser considerado um perito
a moldar os jarrões maiores, por isso, quando fundei a Terrapotter,
na verdade e para todos os efeitos, ainda era um principiante.
Muitos dos jarrões terminados estavam decorados com desenhos impressos
ou em alto-relevo, muitas vezes com subtileza: rostos, criaturas
marinhas, turbilhões de algas, corais...
Ele tinha pegado em algo tradicional e tornara-o único e seu, e eu estava
profundamente impressionada.
- Eu faço a maior parte dos desenhos e dos moldes para as decorações
- disse ele. - O Al ajuda-me a moldar os jarrões. São precisas duas
pessoas para os maiores, porque são feitos em duas ou três partes que
depois se unem.
- Isso parece complicado - comentei enquanto ele me levava para outra
área grande.
- É a parte mais divertida! - sorriu, com um laivo do antigo Lex. -
Temos de comprar a argila em grandes quantidades. Misturo três tipos,
num processo demorado de lavar e coar a sujidade e as impurezas, para
depois passar tudo pelo moinho de martelo umas quantas vezes antes de
estar pronta para usar.
Havia muita maquinaria envolvida, que, de momento, estava parada: supus
que a produção estivesse suspensa por causa do Natal.
- Vejo que precisas de quantidades tão grandes que não poderias cunhá-la
à mão, como fazem na faculdade - concordei.
- A mistura de argila também teve de ser por tentativa e erro até chegar
a uma que fosse a certa e não demasiado porosa, para a água não gelar
dentro dela e rachar os jarrões no inverno.
Vi as grandes rodas de oleiro e depois as prateleiras de jarrões a secar
na câmara por cima do forno, antes de serem cozidos.
A escadaria até lá acima era bastante íngreme e perguntei-me como seria
que levavam e traziam os jarrões, até que reparei num grande e velho
guindaste, semelhante a um daqueles antigos elevadores de cozinha.
- O calor sobe, por isso, quando o forno está a cozer, aqui em cima
fica quente. Ainda vamos cozer mais uma remessa antes de pararmos para
o Natal.
- Podem deixar a argila e tudo durante cerca de uma semana?
- Sim, se estiver nos tanques ou embrulhada em plástico para manter
a humidade - disse ele. - Daqui a bocado vamos encher o forno, o que
leva algum tempo. O Al criou um sistema ótimo de juntar vasos mais
pequenos moldados à mão que ocupam o espaço à volta dos vasos maiores
- elogiou ele. - Dá para os acrescentar em qualquer direção, ou para
os empilhar, e são muito populares em centros de jardinagem.
Pareciam uma ideia astuta, de facto, mas eu tinha a certeza de que Lex
era a verdadeira mente original por trás daquele projeto.
O cheiro das sacas e da argila húmidas agradava-me. Fazia-me regressar
à faculdade de belas-artes, onde, exceção feita à cena com Al, eu fora
bastante feliz.
- Por aí é a sala do forno - apontou Lex. - A Tara tem um forno pequeno
que coze a temperaturas muito altas, porque ela combina porcelana e
prata nas suas joias. O estúdio dela fica ao lado do escritório.
- Sim, o Henry falou-me dela - disse eu e, se não fosse irmã de Lisa,
eu teria interesse por ver o que fazia.
Por esta altura, eu tinha praticamente a certeza de que Lex esquecera
que eu era qualquer outra coisa que não outra artista que apreciaria
o que ele fazia. Então contou-me que, por vezes, quando as coisas
estavam mais calmas, fazia algumas esculturas aleatórias de cerâmica,
só pelo gozo, e que estas se vendiam bem numa galeria em Halfhidden.
- É gerida por um pintor que é mesmo bom e só tem lá obras de arte de
primeira categoria. Vem gente de longe para a visitar e paga bom
dinheiro pelas peças.
- Que estranho que menciones Halfhidden, porque ainda agora na aldeia
me falaram desse lugar. É assombrado, não é?
- Não há dúvida de que deram um grande destaque ao trilho assombrado
em redor e que o transformaram num ponto turístico. Há lá casas de chá
e esta galeria, para além de um espaço de recuperação arquitetónica...
já para não falar de uns antigos banhos romanos no bosque e do pub ali
perto chamado Crânio Gritante!
Ele sorriu outra vez e os anos desapareceram. Sempre tivera aquele ar
escuro e atraente de cigano, um laivo de irreverência, que não se
extinguira por completo com a mágoa e a culpa.
Dei por mim a rir.
- Agora é que tenho mesmo de ir espreitar esse lugar, se o tempo mo
permitir antes de me ir embora.
Isso, infelizmente, pareceu trazer-lhe à memória o presente e quem eu
era. O seu rosto recuperou a seriedade.
- Vejamos o que está o Al a fazer. Está cá e eu avisei-o que te ia mostrar
o espaço quando lhe levei o café.
- Não... - comecei, mas ele já tinha aberto a porta e ali estava Al
num banco, lançando-me um breve olhar.
Depois tornou a concentrar-se em verter cuidadosamente engobo para um
molde, dando-lhe palmadinhas para libertar quaisquer bolhas de ar antes
de o pôr de parte. Só então me fitou diretamente e a sua expressão não
era mais amistosa do que da última vez que o vira.
Ele era alto - se bem que não tanto quanto Lex -, de membros compridos
e cabelo de um tom vulgar de castanho e uns olhos cinzentos e duros.
- Há muito que não nos víamos, Al - disse-lhe.
- Quando o Lex me disse que ias ficar na Casa Vermelha, pensei que pelo
menos te manterias longe da olaria - respondeu ele.
- Al, não vamos por aí - disse Lex num tom cansado. - Esquece isso:
a Meg vai-se embora daqui a uns dias, quando tiver acabado os retratos,
e foi o Henry que fez questão de parar aqui hoje para ela poder dar
uma vista de olhos rápida.
- Quanto mais rápida, melhor - replicou Al. O tempo não parecia ter-lhe
reduzido a raiva. Eu sempre desconfiara de que ele próprio estava
apaixonado por Lisa e de que isso poderia ter algo a ver com a sua reação.
Começava a sentir-me zangada de novo quando uma rapariga magra e ruiva,
uma versão apagada e difusa de Lisa, entrou; devia ser Tara. A sua
expressão ao olhar para mim tornou evidente que estava a par do passado
- ou, pelo menos, da versão da realidade paralela.
- Então és tu a tal Meg Harkness! O Al acaba de me contar tudo a teu
respeito.
- E tu és a irmã mais nova da Lisa - disse eu, correspondendo-lhe ao
olhar hostil.
- Al, não devias mesmo ter... - começou Lex num tom zangado,
interrompendo-se quando Henry apareceu de súbito à porta, atrás de
Tara.
- Oh, aqui estão todos! Meg, minha querida, agora é melhor irmos embora,
caso contrário vamos atrasar-nos. Pode voltar noutra altura, pois tenho
a certeza de que tudo isto lhe parecerá fascinante.
- Estou tão encantada como um mangusto num ninho de cobras - disse eu,
seguindo-o porta fora, mas não julgo que me tenha ouvido.
Lex apanhou-me à porta e agarrou-me o braço, puxando-me para trás.
- Meg, eu não me tinha apercebido de que o Al tinha falado daquela noite
à Tara. Lamento que...
- Oh, fica-te pelo barro! - disparei, e depois, soltando-me, passei
pela portinhola para a tarde a escurecer.
É difícil amuar - ou até fervilhar - na companhia de um menino
empolgadíssimo de oito anos, ou entre um grupo animado de pessoas a
lanchar, quando elas, muito naturalmente, querem discutir o seu dia.
Quando finalmente me escapei, Teddy seguiu-me até ao estúdio, onde
terminou o desenho que tinha começado a fazer de mim com o cabelo verde.
Por sorte, tinha pintado o cabelo enquanto ainda estava mais verdejante
do que o atual cada vez mais ténue. Eu, pela minha parte, desenhei-o
a ele.
O jantar e o fluir da conversa ao longo da refeição aliviou um pouco
mais as tensões, mas a raiva continuava a borbulhar à superfície, como
lava derretida e, se alguma vez voltasse a ver-me a sós com Lex, Al
e Tara, tinha a certeza de que haveria de entrar dramaticamente em
erupção e de que os corrigiria a todos, sem margem para dúvidas.
Não que achasse que fossem acreditar em mim, mas a verdade deveria ser
exposta, isso tornara-se evidente para mim.
No dia seguinte, começaria o retrato de Henry. Sabia que poderia
completá-lo o suficiente para partir depois do Solstício com River,
mas agora não só não queria partir, como me convencera de que fugir
pareceria uma admissão de culpa e um ato de cobardia.
8 Ilha Oriental. (N. da T.)
9 Meio Escondida. (N. da T.)
Clara
A alegria do nosso reencontro naquele primeiro semestre de setembro
só foi ligeiramente afetada por uma visita antecipada do irmão mais
velho de Henry, George, que já era oficial do exército e estava
destacado nalgum sítio próximo de Oxford.
Henry trouxe-o a lanchar aos meus aposentos, onde nos era permitido
receber amigos do sexo masculino à tarde, porque obviamente nada de
natureza íntima poderia ocorrer antes da perigosa hora das sete.
George tornara-se grande, elegante, com um rosto corado e destemido,
e tinha os mesmos olhos azuis e cabelo louro de Henry. Parecia entediado
mesmo enquanto expressava educadamente ter muito gosto em rever-me.
Nessa deve ter avistado a chegada daquela personificação máscula das
suas fantasias românticas mais tresloucadas, pois nem cinco minutos
haviam passado quando se intrometeu com um pretexto qualquer. É claro
que ela e George se entenderam de imediato e começaram uma conversa
altamente sedutora, pelo que não havia como livrarmo-nos dela. De
facto, tornámo-nos um quarteto para o resto da sua licença, o que se
tornou também muito cansativo.
Eu fiquei satisfeita ao vê-lo pelas costas, mas Nessa estava cheia de
entusiasmo efusivo, tendo imaginado George como o cavaleiro perfeito
e gentil das lendas e dos poemas que ela tanto adorava.
Avisei-a para que não se perdesse de amores por ele, pois Henry
contara-me que ele já tinha tido vários casos, apesar de ter noiva havia
muito.
Nessa assegurou-me que eu me enganava muito quanto ao caráter de George
e que este já lhe falara do noivado.
- É só uma coisa de família a que ele está a tentar pôr fim sem magoar
a rapariga.
Isso parecia improvável, já que Henry também me dissera que o principal
atrativo da noiva de George era ser filha única de pais ricos e
extremosos, pelo que esperava que, assim que casassem, pudesse deixar
o exército e embarcar numa vida de prazer ocioso, o que parecia ser
a única ambição.
Eu desconfiava de que Nessa tinha ignorado o meu conselho e se mantinha
em contacto com George, podendo até talvez ter ido ao seu encontro desde
aquela primeira apresentação... mas, se assim fosse, esperava que a
atração depressa se dissipasse.
- Se bem que por esta altura ele já deve saber que ela é uma herdeira,
porque ela o diz a toda a gente. Até a ti to disse - comentei com Henry.
- Sim, mas também diz a toda a gente que só terá controlo sobre a sua
fortuna depois dos trinta, o que não há de tentá-lo a trocar a noiva
por ela, pois não?
Eu esperava que ele tivesse razão. Nessa poderia acabar de coração
partido, mas eu tinha-a avisado e não podia fazer mais.
A minha vida tornara-se tão cheia de interesse e prazer que depressa
me esqueci por completo de Nessa e George.
Eu e Henry tínhamos começado a fazer planos para as férias de Natal:
ele regressaria comigo ao vicariato para voltar a familiarizar-se com
os meus pais e depois eu viajaria para norte para passar o Ano Novo
em Underhill, a casa da família em Starstone Edge. Seria a primeira
vez que regressaria ali desde os meus oito anos, quando o reservatório
fora construído, e tinha sentimentos contraditórios. Conquanto
ansiasse por voltar ao local onde fora tão feliz, a aldeia propriamente
dita seria invisível, submersa.
O pai de Henry era gregário e eu faria parte de um grupo familiar que
incluiria a noiva de George e os pais dela.
Contudo, antes disso, em novembro, aconteceu algo perturbador.
Nessa tinha obtido permissão para se deslocar a Londres, supostamente
para ir ao dentista, mas, na verdade, para se instalar em casa da
madrinha, Lady Leamington, e participar numa grandiosa festa da alta
sociedade.
Quanto a mim, não estava muito interessada... até a ter entrevisto,
bem cedo na manhã da sua partida, a meter-se num carro com George.
Esperava sinceramente que ele estivesse apenas a levá-la até Londres,
mas, como Henry disse depois, não havia nada que pudéssemos fazer e
talvez ela somente lhe tivesse arranjado também um convite para aquela
fabulosa festa.
Nessa regressou com uma atitude invulgarmente silenciosa e subjugada,
e não demonstrou qualquer intenção de fazer de mim sua confidente, para
além de me descrever a festa espetacular e as pessoas famosas que tinha
conhecido. Não fez qualquer menção direta a George, mas, em vez disso,
lançou uns quantos comentários sombrios sobre os instintos animais e
a rusticidade dos homens, que não tinham almas românticas. Isto
levou-me a pensar que talvez George se tivesse atirado a ela de forma
mais forte pelo caminho até Londres, desapontando-a.
Nessa concentrou-se nos estudos com um interesse renovado e consolou-se
na companhia do seu grupinho. Eu já suspeitava de que ela preferia
mulheres e talvez agora também ela tivesse essa noção...
Passou o Natal em Londres com Lady Leamington e ao regressar parecia
estar sempre a deitar a mão a uma caixa de bombons, ou a comer bolos
com creme, pelo que rapidamente começou a parecer também ela um doce
redondo.
20
Resolução
Henry teve a gentileza de posar para mim pela primeira vez na manhã
seguinte e passei séculos a ajustar a luz, de maneira a que incidisse
no seu rosto ossudo e interessante sob aquele cabelo fino e prateado.
Também tinha de incidir no seu livro, pois estava a ler um velho policial
de capa mole de Agatha Christie.
- A Clara não os aprecia... diz que Agatha Christie é só enredo e nada
de personagem - contou-me -, mas eu leio-os de bom grado uma e outra
vez, apesar de saber o que acontece.
- Eu estou a ler o primeiro policial da Clara e estou mesmo a gostar
- disse-lhe eu. - Ela é muito mais sanguinolenta que Agatha Christie.
Lass, que tinha entrado com Henry e, sem que tal lhe fosse pedido, se
dispusera por cima dos pés dele como um tapete preto, cinzento e branco,
adormeceu de imediato.
- Perfeito - disse eu, dando um passo atrás. Tirei uma fotografia com
o iPad para ter aquela referência e depois decidi desenhar diretamente
na tela sem quaisquer esboços preliminares, passando o lápis preto e
suave até aquilo que eu queria mostrar encher o espaço. A seguir fitei
a tela durante muito tempo, julgo, pois Henry acabou por romper o
silêncio.
- Como é que isso vai? - perguntou. - Eu não quis falar antes, pois
parecia intensamente concentrada.
- O desenho avançou mesmo muito depressa. Se não se importa, vou só
fazer também um esboço rápido no meu caderno e depois já pode
descontrair.
Aquilo não tinha nada a ver com o retrato, mas iria para uma das molduras
que eu tinha comprado, como presente para Clara.
- Eu estou perfeitamente confortável, se não demorar muito, porque
gostaria de trabalhar um pouco mais antes do almoço.
- Cinco minutos - garanti-lhe, abrindo o caderno numa página limpa e
pousando-o no cavalete em vez da tela, que encostei à parede.
- Acho que o seu avô vai ficar surpreendido com a rapidez com que tem
trabalhado, Meg. Eu estou desejoso de conhecê-lo. Parece ser uma pessoa
mesmo muito interessante.
- É, e nunca lhe falta tema de conversa, o que eu acho que acontece
por ser tão naturalmente curioso acerca de tudo.
- Deve ter sido uma infância invulgar a sua, na Quinta. A Clara disse-me
que a sua mãe foi adotada e não sabia quem eram os pais biológicos.
- Sim, foi, mas não posso dizer que ela alguma vez tenha parecido
inquisitiva quanto a isso. Sempre foi uma pessoa que vive no presente
em vez de se prender ao passado - disse eu. - A adoção não foi um sucesso,
por isso ela acabou por fugir e acabou na Quinta. E foi aí que nasci
e fiquei.
- Uma família alternativa - sugeriu ele.
- A família perfeita. Eu sei quem é o meu pai e já o conheci (ele agora
vive em França), mas nunca houve um verdadeiro laço entre nós.
Suspirei e pousei o lápis.
- Mas gostava de saber o que aconteceu à minha mãe. O River está
absolutamente convencido de que ela continua viva.
- Tenho a certeza de que ele terá razão - disse Henry com amabilidade
e depois, ao ver que eu tinha acabado o esboço, inclinou-se para acordar
Lass. - Tenho os pés quentes, mas bastante dormentes.
Quando Henry voltou para o seu escritório para trabalhar, a manhã ia
bem avançada e lembrei-me de ir visitar Flower.
O céu tinha aquele tom ligeiramente ameaçador de chumbo e caía um
chuvisco ligeiro e contínuo, mas, apesar disso, decidi ir a pé. A casa
dela ficava apenas a dez minutos dali, não valia propriamente a pena
pegar na autocaravana para isso.
Flower, com um aspeto ainda mais molhado do que aquele que eu devia
ter depois da caminhada, deixou-me entrar na Preciousss. Ao abrir a
porta, foi como se um milhão de sinos tocassem, por causa do pano
comprido de elefantes com guizos nas trombas pendurado na parte de trás
da porta. A loja era estreita, mas prolongava-se muito, como uma caverna
de Aladino de espanta-espíritos, apanhadores de sonhos, montes de
lenços, cabides oscilatórios de roupas, quadros e cartazes, estantes,
prateleiras de dragões e outros artigos de Tolkien, réplicas da
Starstone, um cesto de sandálias bordadas de enfiar o dedo (o ideal
para o inverno em Starstone Edge), um mostrador com joias de prata e
pedras preciosas, enfiadas de colares com fio de couro, tabuleiros com
pulseiras da amizade, incenso em grão e varetas... Era uma verdadeira
versão New Age do tesouro contido no túmulo de Tutankhamon, mas sem
a múmia.
O ar estava saturado de sândalo, pachuli e talvez um laivo de erva.
Para além da erva (River é muito puritano em relação a essas coisas),
cheirava tal e qual como estar em casa.
- Acendi as luzes todas porque tinha a certeza de que ias querer dar
uma vista de olhos antes de passarmos para a cozinha e tomarmos café.
A Grace-Galadriel está na salinha com o Bilbo, esparramada no sofá.
Ela tinha razão: eu queria dar uma vista de olhos e era tudo demasiado
tentador. A bancada, uma ilha minúscula num mar de pequenos cestos com
artigos mais pequenos, depressa ficou amontoada com as minhas compras
e Flower até revelou ter papel de embrulho estrelado e fita-cola.
Eu já tinha comprado papel de embrulho em Great Mumming, mas podia
embrulhar os pequenos presentes que comprara para River em algo mais
celestial.
Havia selecionado também várias coisas para levar para a minha família
na Quinta, e Flower, animadíssima por tanto gasto, enfiou tudo em dois
enormes sacos de papel pardo. Depois desligou parcimoniosamente as
luzes da loja e levou-me até uma pequena cozinha, aquecida por uma
salamandra muito antiga e cheia de felinos, que me ignoraram
totalmente.
- Quantos gatos são? - perguntei, passando por eles até uma cadeira
de baloiço.
- Seis - respondeu Flower, enchendo uma chaleira velha e pondo-a sobre
uma chapa. - Tree, Leaf, Rainbow, Dandelion, Daisy e Sky.
Foi apontando para cada um à medida que dizia os seus nomes, mas só
um, Tree, reagiu. Lançou-lhe um olhar zangado e depois foi-se pôr
debaixo de uma cadeira. Tinha um dos caninos sobre o lábio, o que lhe
dava uma expressão algo malévola, pelo que fiquei satisfeita por ele
não ter escolhido a minha cadeira como refúgio.
Ela preparou café e Bilbo veio conversar connosco, trazendo a bebé,
que já acordara e me fitava com uns olhos enormes e pálidos.
Tinha quase um ano e eu desconfiava de que ia parecer-se com os dois
pais, o que era uma pena.
Bilbo era um homem baixo e atarracado com o cabelo a rarear à frente
e um rabo-de-cavalo fino, um nariz comprido e bolboso na ponta e uma
expressão lúgubre. Não obstante, era muito simpático e conversador,
queria saber tudo sobre o tempo que Flower passara na Quinta e o que
costumávamos fazer. Flower adorara os burros. Eu desconfiava que fora
por eles que chorara durante uma semana, quando a sua família se fora
embora.
Passado um pouco, ele regressou para a salinha, para se entreter no
computador com um jogo qualquer de O Senhor dos Anéis.
Flower disse-me:
- Ele também faz muita investigação sobre Tolkien... foi por isso que
arranjámos o computador... mas não temos telemóvel, porque essas coisas
fritam-nos o cérebro.
- Também já tinha ouvido dizer isso - respondi. - Eu tenho, mas
mantenho-o desligado na maior parte do tempo. E tenho um iPad, mas é
sobretudo para trabalhar.
- São só coisas - disse ela num tom vago, oferecendo-me o que restava
de uma lata de biscoitos de manteiga de amendoim. Bilbo tinha levado
uma grande mancheia quando fora para o seu covil.
Ela começou a falar de Lex, de quem parecia gostar, de uma forma um
pouco tonta.
- Vais vê-lo muito no Natal, porque ele fica sempre lá desde a cerimónia
do Solstício até ao ano novo - disse-me num tom ligeiramente invejoso.
- Eu já o conheço, mais ou menos; andava um ano à minha frente na
faculdade de belas-artes.
- Oh, então sabes que a mulher dele morreu? Foi uma tragédia terrível
e acho que lhe deu cabo da vida, porque ele nunca voltou a casar. Quero
dizer, saiu com uma ou duas mulheres, mas nada de sério.
Parecia um pouco desapontada com isso. Acho que preferiria que a vida
dele tivesse ficado totalmente desfeita.
- Os Doome tiveram uma ama para o Teddy até ele ir para a escola e ela
passava a vida a atirar-se ao Lex, mas eu via que ele não estava
realmente interessado nela, só era simpático.
- A sério? - encorajei-a. Lembrava-me de Clara me ter falado da ama,
mas era em relação a Mark, não?
- Flora, chama-se ela. É órfã e cresceu com a tia, Deirdre, que tem
uma pensão chamada Bella Vista, um pouco mais adiante.
- Oh, sim, lembro-me de passar por aí. A Clara diz que a Deirdre está
na Austrália, por isso a pensão não abre no inverno.
- Em Starstone Edge nada abre no inverno - disse Flower num tom
tristonho. - A Flora estudou puericultura e depois o seu primeiro
trabalho foi cuidar do Teddy, mas não vivia lá em casa; continuou em
casa da tia.
- Isso deve ter sido conveniente para todos - comentei.
- Era um bocado desconfortável para o Lex, quando visitava os velhotes
e ela não o deixava em paz, mas ela já saiu com todos os homens
descomprometidos num raio de quinze quilómetros e ao fim do segundo
encontro já está a planear o casamento - replicou de uma forma
surpreendentemente maliciosa.
- Isso deve afugentá-los - afirmei, apesar de já sentir uma certa pena
da tal Flora, mesmo sem a conhecer.
- A Clara arranjou-lhe uma boa família em Londres para ela cuidar das
crianças, mas, desde então, já mudou de emprego várias vezes. Entre
uns empregos e outros, fica em casa da tia e, da última vez que veio,
o Mark também estava em Underhill e ela pôs-lhe a vista em cima.
Bem, Clara tinha dito que ele tivera um caso com a ama.
- Calculo que já o conhecesse, não?
- Sim, isto é um sítio pequeno e ele vinha de visita com frequência,
porque a mãe dele voltou para Underhill depois de enviuvar para cuidar
do velho George Doome, o pai dela.
- E a Flora teve alguma sorte com o Mark? - perguntei. Chamem-me
metediça, mas tudo aquilo era muito interessante!
Ela refletiu na minha pergunta.
- Saíam muito no carro dele, e o Bilbo viu-os no pub umas quantas vezes.
Não me parecia que isso constituísse uma relação séria, mas arquivei
a informação para referência futura, ainda que desconfiasse que o
interesse lisonjeiro que Mark demonstrara em relação a mim se devesse
apenas a esperar que eu lhe desse conselhos gratuitos sobre os seus
quadros.
- Vai ser ótimo se passares cá o Natal, Meg - disse Flower, mudando
de assunto. - Eu e o Bilbo pomos uma árvore de Natal na salinha e vamos
dizer à Grace-Galadriel que o Pai Natal é um elfo sábio.
- Que amoroso - respondi.
- Os Doome têm sempre uma grande festa na manhã depois do Natal, lá
na Casa Vermelha. Convidam toda a gente, e nós também vamos. Uns comes
e bebes.
- Parece divertido - disse eu, após o que olhei para o relógio e me
levantei. - É tarde... é melhor voltar para o almoço.
- Podes ficar e comer qualquer coisa connosco. É sopa de lentilhas,
não custa nada abrir outra lata.
- Agradeço-te, mas é melhor ir andando. Seja como for, tenho de
trabalhar, não estou aqui de férias.
E também me parecia que a sopa caseira de Den saberia muito melhor do
que a de lata, já para não falar do pão fresco e de crosta crocante
que tinha visto Henry a tirar da máquina.
Grace-Galadriel tinha passado todo aquele tempo sentada alheada e
silenciosamente num mar de gatos, a roer uma rosca, mas nesse momento
começou a tombar lentamente para trás. Tive medo de que batesse no chão
de pedra para lá do tapete, mas, em vez disso, aterrou pesadamente num
gato cor de laranja. Este esgueirou-se enquanto Flower levantava a bebé
e foi-se embora com um ar ofendido, só frustrado por ter os restos da
rosca a sair-lhe da boca como um charuto mastigado de proporções
churchillianas.
À saída, peguei nos sacos de papel pardo cheios de compras. Os sacos
eram daqueles que ficam ensopados e se desintegram à chuva, e o tempo
lá fora parecia distinta e humidamente chuvoso. Teria de caminhar
depressa, caso contrário deixaria para trás um rasto de objetos
aleatórios.
- Passa por cá quando quiseres - instou-me Flower num tom hospitaleiro,
acenando-me com o braço da bebé. - Devo estar aqui. Não há muito mais
para onde ir nesta altura do ano.
Não me parecia que houvesse muitos sítios para ir em qualquer altura
do ano, mas no verão aquilo devia ser lindo, por isso, porque se haveria
de querer ir a algum outro lugar?
Tapei a cabeça com o capuz do anoraque e saí rapidamente para a chuvada,
mas mal tinha começado a andar quando um grande Ford Cherokee preto
e lustroso parou a meu lado. Lá dentro estava Mark, que baixou o vidro
e me ofereceu boleia.
Não parecia contar tostões no que dizia respeito a comprar um carro!
Grata, subi para o lugar do passageiro.
- Muito obrigada, Mark! Eu sei que são só uns minutos a caminhar, mas
estes sacos de papel provavelmente iam desfazer-se muito antes de eu
chegar lá.
- Esteve a fazer compras na loja da Flower?
- Acho que sou capaz de ter comprado muitas coisas - admiti. - É muito
New Age, não é assim tão diferente das coisas do centro de trabalhos
manuais lá em casa, embora muitas dessas coisas sejam feitas mesmo lá.
Cresci numa comuna, numa quinta - acrescentei, à laia de explicação.
- Sim, a minha mãe tinha-me dito. E o seu avô não está quase a vir cá
também, ou será que ela percebeu mal o que a Tottie lhe disse?
- Não, está certo, ainda que o River não seja o meu verdadeiro avô,
só o considero como tal. A Clara teve a gentileza de o convidar para
a cerimónia do Solstício, pelo que há de chegar a vinte e fica cá uma
ou duas noites.
Por essa altura, estávamos quase na Casa Vermelha, pelo que pedi a Mark
que me deixasse junto ao acesso.
- Não quero fazê-lo perder mais tempo.
- Na verdade, vou só a caminho de Great Mumming para ir comprar mais
tinta e lixa... e, se ainda não almoçou, quer vir comigo? Há lá um pub
com comida ótima.
- Agradeço, mas estão a contar comigo e eu já estou atrasada. E, na
verdade, ainda ontem fui a Great Mumming, porque precisava de alguns
materiais de arte.
Ele pareceu ficar desapontado, o que me deixou lisonjeada.
- Então porque não vem a Underhill amanhã? Adoraria mostrar-lhe o que
estou a fazer por lá. Venho buscá-la depois do almoço.
- Isso seria agradável, se convier aos planos que a Clara tenha, mas
eu posso ir até lá. Tenho aqui a minha autocaravana.
- Oh, não tem problema - disse ele. - Até amanhã!
Quando falei a Clara do convite, ela disse que ia telefonar a Sybil.
- Quando o Mark a trouxer de volta, ela pode vir também e lancham os
dois connosco. Aquele rapaz não pode passar o tempo todo a trabalhar.
- Que idade tem «o rapaz»?
Ela sorriu.
- Oh, imagino que já deva ter trinta e um, por aí, mas para mim há de
ser sempre um rapaz. Mas que diabo foi comprar? - acrescentou ela,
olhando para os sacos.
- Havia uma quantidade surpreendentemente boa de coisas na loja do Bilbo
e da Flower. Trouxe um livro de cozinha vegana para o Oshan... ele acha
que sabe cozinhar, mas, na verdade, não sabe... e havia um livro novo
sobre linhas de ley, que comprei para o River e... bem, comprei mais
umas coisitas. E neste saco trago duas túnicas, uma roxa e rosa e uma
azul-clara, com pregas e guizos.
E umas calças de odalisca, apesar de eu certamente não ser odalisca
nenhuma.
- Com o vestido novo que encontrei em Great Mumming, acho que nunca
tinha comprado tanta roupa nova de uma vez - disse eu. - Não sei o que
me deu.
- São todas muito bonitas, por isso, porque não? - perguntou Clara,
admirando as túnicas que eu tinha tirado dos sacos para lhe mostrar.
- Eu adoro roupa nova.
- Agora que recuperei algum peso, as minhas roupas antigas ficam-me
muito melhor.
- Agora está muito bem - assegurou-me ela.
- A minha mãe é pequena e roliça... ou era, da última vez que a vi -
disse eu. - O meu pai é do género alto e escorreito, por isso eu devo
ficar mais ou menos entre os dois.
Pela primeira vez, reparei que havia ruídos distantes a pairar sobre
nós, e, pensando bem, tinha visto uma carrinha lá fora quando Mark me
deixara.
- É terça-feira, por isso as Mary’s Pop-ins estão cá - disse ela.
- Mary’s Pop-ins?
- Um serviço de limpeza local, de Thorstane. Mandam uma equipa cá a
casa terça-feira sim, terça-feira não, para dar uma boa esfrega à casa
e, entre uma coisa e outra, a Olive Adcock dá-nos umas horas e muda
as camas e esse tipo de coisas. É muito prestável. Mas Den gosta de
tratar da cozinha; não deixa que mais ninguém a limpe.
Ela inclinou a cabeça, a escutar os sons no andar de cima.
- Daqui a uns minutos vão acabar lá em cima e passar para aqui, pelo
que vou dar um passeio com o Henry e, se quiser vir connosco, será
bem-vinda. A Tottie vai a Underhill para andar a cavalo com a Sybil.
Porém, eu disse que já tinha caminhado à chuva o suficiente naquele
dia.
Comi um almoço rápido e bebi uma chávena de café e depois fui para o
meu estúdio para emoldurar dois esboços - o de Tottie e o de Henry -
e, quando as empregadas de limpeza acabaram a sala de estar, fui para
o meu pequeno torreão, onde tinha guardado os presentes. Não me parecia
que Teddy fosse ali, mas já tinha embrulhado a sua caixa de material
de pintura só para jogar pelo seguro. Uma das compras do dia também
fora para ele: um pequeno dragão de bombazina cheio de feijões. Não
tinha conseguido resistir-lhe.
Decidi embrulhar tudo e fiquei com um belo monte de prendas quando
acabei, apesar de ter guardado as que eram para a Quinta no saco maior.
Depois sentei-me no cadeirão de tecido e li o policial de Clara... e,
enquanto a luz da tarde se desvanecia, cheguei ao fim.
Não estava nada à espera daquela reviravolta!
Lá em baixo, a casa brilhava, limpa e com o cheiro a verniz e alfazema
a competir com o da resina do pinheiro. Ouvi o martelar das teclas da
máquina de escrever atrás da porta de Henry, mas a de Clara estava aberta
e ela chamou-me.
- Entre, Meg! A Tottie foi buscar o Teddy e eu estou morta por contar
a alguém... veja!
Apontou para o ecrã, onde vários pedaços de uma tábua de argila gravada
tinham sido grosseiramente encaixados.
- Eureca! - exclamou ela. - E, como sei que a mesma inscrição também
se encontra numa laje de pedra de um templo, deverá ser um édito enviado
para toda a zona e não apenas uma proclamação.
Eu percebi os contornos gerais, ainda que não compreendesse ao certo
de que falava ela.
- Maravilhoso - congratulei-a, mas ela já se tinha sentado de novo ao
teclado.
- Os pedaços são de três museus diferentes e de dois colecionadores
- disse ela. - Tenho de lhes escrever a todos para que saibam...
Vendo que se tinha esquecido de que eu estava ali, voltei a sair em
bicos de pés e fechei a porta sem fazer barulho.
Depois do lanche, que assumira um ar de celebração quando Henry
conseguira arrancar Clara ao seu escritório, voltei para o estúdio e
telefonei para a Quinta.
River atendeu e disse que já tinha tudo a postos para visitar o seu
amigo Gregory Warlock, em Sticklepond, na segunda-feira, antes de vir
para a Casa Vermelha.
- Tenho a certeza de que te lembras de eu ter falado dele. Para além
de ter o museu de feitiçaria na aldeia, escreveu alguns livros sobre
locais sagrados antigos, e ainda alguns romances.
- Sim, lembro-me - concordei.
- Depois é uma viagem curta até à Casa Vermelha, partindo de
Sticklepond.
Contei-lhe tudo sobre a minha visita a Flower e ele depois perguntou-me
como estavam os retratos a avançar.
- O da Clara está completamente terminado, e ainda agora comecei o do
Henry. Espero que me deixem incluí-los na minha exposição de fevereiro.
Eu ainda não lhes havia pedido, mas tinha a certeza de que acederiam.
- Mal posso esperar por vê-los... e a ti, minha querida Meg - disse
ele, antes de me dar a costumeira bendição inspirada na Deusa e de
desligar.
Sem que tivesse tempo de desligar o telemóvel de novo, Fliss apanhou-me
e falei-lhe do comportamento de Rollo, contando-lhe que lhe tinha dito
que nunca mais queria vê-lo ou ter notícias dele.
- Eu disse-te que devias ter cortado todos os laços logo a seguir ao
acidente.
- Eu sei, e tinha vontade, mas ele parecia sentir-se tão culpado que
acabei por concordar que nos mantivéssemos amigos, só para mostrar que
não o culpava pelo que tinha acontecido. E é verdade que me visitou
várias vezes enquanto estive no hospital.
- Só para te impingir todos os poemas deprimentes que tinha escrito
acerca do que ele sentia.
- Sim, isso é verdade. E ele insistiu que me teria sustentado e ao bebé
se eu não tivesse abortado, mas isso na altura era fácil de dizer.
Mesmo agora, sentia uma pontada de angústia a encher-me o coração: a
perda do bebé era algo com que eu aprendera a viver, mas que nunca seria
capaz de esquecer.
- Esquece, agora já o eliminaste da tua vida, isso é que importa - disse
Fliss.
- Só espero que ele não apareça mesmo assim depois desse tal evento
que tem em York, pois acho que era capaz.
- Depois do que acabas de me contar que lhe disseste, era preciso ter
a pele rija como um rinoceronte para fazer isso - disse ela e a seguir
perguntou-me que mais tinha acontecido.
Descrevi-lhe a ida à Terrapotter e que Lex não se mostrara tão
antagónico desta vez, mas que Al e Tara tinham compensado.
- O Lex ficou lixado com o Al por ter contado à Tara o que aconteceu...
ou que ele imagina que aconteceu. E, até eu lhe ter dito, ele nem sabia
que o Al me tinha atacado daquela vez na faculdade, depois de a Lisa
morrer.
- Só que, como é óbvio, o Al não o teria feito se o Lex não lhe tivesse
falado daquela noite, não é? - ressalvou ela.
- Não, é verdade, se bem que o Al seria capaz de somar dois mais dois
e obter cinco sozinho, ao descobrir que o Lex estava comigo.
- E isso deixou-te ainda mais determinada a ir embora depois do
Solstício, não?
- Não, na verdade, não - confessei. - Estou a pintar mesmo bem aqui.
Para além disso, também me apaixonei pela ideia do Natal! E -
acrescentei num tom determinado -, não percebo porque não hei de ficar,
independentemente daquilo que o Lex pense de mim, porque não fiz nada
acerca do qual deva sentir-me culpada... pelo menos, não fiz muito.
- Nada - assegurou-me ela. - E acho que tens razão. Vai ser divertido!
As pessoas com quem estás parecem um bocado malucas... mas
interessantes.
- São. A Clara acabou de fazer uma grande descoberta com uma inscrição
cuneiforme numa tábua de argila.
- O que é isso, trocado em miúdos?
- É um dos primeiros tipos de escrita: parece um bocado como se um
pássaro tivesse caminhado sobre argila húmida.
- Como runas?
- Não, não tem nada a ver com runas - disse eu das profundezas do meu
novo e muito incipiente conhecimento sobre epigrafia.
- Fui convidada a visitar o proprietário da casa senhorial aqui da zona
amanhã - disse eu, mudando de assunto.
- E ele é jovem, solteiro e bonito?
- É as três coisas... mas tem menos uns cinco anos que eu.
- Oh, isso não é nada - disse ela com ligeireza.
- Também parece ser um casanova, portanto, se fosse a ti não ia já
procurar um presente de casamento, Fliss. Acho que ele só casaria com
alguém capaz de rebocar paredes ou que soubesse operar uma betoneira.
Contei-lhe o que Mark estava a fazer a Underhill e ela riu-se e disse
que também era capaz de começar a renovar uma casa em breve, a uma escala
mais modesta, porque a única forma de poderem comprar uma casa seria
saindo de Londres.
- Eu também já não tenho motivo para viver em Londres. Estar aqui fez-me
aperceber o quanto sinto a falta do campo.
- Só talvez não num sítio tão remoto? - sugeriu ela.
- Não, nem em qualquer sítio onde o Lex Mariner fosse meu vizinho -
concordei.
21
Natureza-Morta
Henry posou novamente para mim na manhã seguinte e comecei a pôr tinta
na tela. Durante algum tempo, o som da minha espátula a espalhar tinta
na superfície e depois, por vezes, a raspar a maior parte de novo era
a única coisa que se escutava na divisão.
Henry era um modelo perfeito, parecendo descontrair na pose; no
entanto, eu não tinha a certeza de que ele estivesse sempre a ler, pois
por vezes as páginas não eram viradas durante séculos. Talvez estivesse
a pensar antes no seu longo ciclo de poemas, que parecia estar a ficar
concluído.
Eu julgava que todos os poetas eram como Rollo e o seu círculo
ligeiramente pretensioso, ou como os mais terra-a-terra, mas também
mais divertidos, que por vezes ouvíamos em sessões abertas; todavia,
Henry era completamente diferente.
Tinha a mesma qualidade que eu e Lex reconhecíamos um no outro, sem
falsa modéstia, e isso era a genialidade naquilo que fazíamos. Não
podemos vangloriar-nos disso, pois somos meros veículos desse dom
maravilhoso que nos é outorgado.
Mark foi buscar-me depois do almoço naquela coisa enorme e preta, o
Cherokee. Na noite anterior nevara nos picos das montanhas e tudo
parecia coberto de açúcar e de um branco puro, como o enorme bolo de
Natal debaixo de uma cúpula de vidro na despensa da Casa Vermelha. Den
desenhara «Feliz Natal» com cobertura vermelha por cima e acrescentara
ainda uma rena minúscula, um rouxinol enorme e raminhos de azevinho
e visco de plástico. Tive uma súbita e louca visão dele na colina da
montanha com um saco de pasteleiro gigante a garatujar uma saudação
natalícia...
Mark estacionou no pátio em frente à porta de carvalho e seguiu à minha
frente.
- Mãe? - chamou, ao abrir a porta para o frio escuro do átrio, mas a
única resposta foi um ligeiro eco. Ou talvez eu tivesse apenas
imaginado. Lá acolhedor não era. - Deve estar no jardim, ou com os
cavalos ou assim, mas não deve demorar.
Se demorasse, pensei eu, o mais provável era que morresse de hipotermia,
se bem que eles parecessem ser de uma raça mais resistente. De facto,
já deveriam estar habituados àquilo.
- Primeiro vou mostrar-lhe os tais quadros - disse Mark, com o seu
sorriso atraente... provavelmente por querer o meu conselho de graça,
pensei com cinismo. Com o cabelo acobreado e mais para o comprido, o
nariz reto, os malares altos e o queixo pontiagudo, se usasse uma gola
de folhos pareceria um cavaleiro pintado por Van Dyck. - Depois faço-lhe
uma visita guiada e conto-lhe o que tenho planeado para este lugar.
Com relutância, despi o casaco, pois parecia uma descortesia insistir
em mantê-lo vestido. Depois subimos ao que ele chamava a Galeria Longa.
Era bastante longa, e as paredes tinham painéis de madeira escura até
meia altura, estando os quadros dispostos por cima.
O Stubbs não era. De facto, fiquei praticamente com a certeza de que
o Lely também não... mas a um canto escuro estava uma natureza-morta
pequena e muito suja, da escola holandesa, que me pareceu ser capaz
de ser promissora.
- Nunca tinha pensado que isso pudesse ter algum valor - comentou Mark,
quando apontei para ela.
- Acho que é bom, mas não dá para saber até que seja limpo... e refiro-me
a uma limpeza profissional, não a passar-lhe um pano com álcool -
apressei-me a acrescentar, pois percebi que era isso que lhe ia pela
cabeça. - Se o Mark tentasse fazê-lo, tirar-lhe-ia praticamente todo
o valor.
- Oh... certo - concordou ele contrariado, pelo que me convenci de que
evitara esse desastre mesmo a tempo.
- Tomei nota do número de uma conhecida minha que trabalha numa grande
leiloeira de Londres. E se a convidasse depois do Natal para ver o que
lhe parece? Eu desconfio de que aquela pequena natureza-morta valerá
mais do que todos os outros quadros juntos... mas, se fosse minha, acho
que não seria capaz de me desfazer dela.
- No entanto, se tiver valor suficiente para cobrir o resto do custo
das remodelações e manter-nos à tona até abrirmos o espaço, então a
minha mãe também ficará satisfeita. Ela não quer mesmo livrar-se de
nenhum dos quadros, mas acho que nunca prestou grande atenção a esse.
- Imagino que os visitantes gostarão de ver os retratos dos
antepassados. Serão mais uma atração. - Não ao nível dos leões do safari
de Longleat, talvez, mas algo para se ver. - Mas os copos d’água é que
serão o ganha-pão principal? - perguntei enquanto o seguia para fora
da galeria.
- Sim, e estou decidido a abrir o espaço para começar a recebê-los esta
primavera. Os quartos para arrendar talvez tenham de esperar um pouco
mais, à exceção de uma suíte que a noiva possa usar nesse dia.
Ele não demorou muito a mostrar-me o resto da casa, porque, embora fosse
consideravelmente maior do que a Casa Vermelha, Underhill não era uma
vasta casa senhorial.
Tivemos de passar por um percurso de obstáculos de escadotes, baldes
e rolos de papel para chegarmos ao quarto que seria a suíte nupcial.
Tinham aberto uma passagem na parede para uma casa de banho adjacente,
com espaço para uma porta, mas, tirando isso, o espaço estava vazio.
O papel de parede do quarto fora parcialmente arrancado e as zonas onde
se via o betume pareciam manchadas e a esfarelar-se.
- As divisões ao longo deste corredor sempre foram quartos de família,
mas vou construir um apartamento novo na ala oriental e criar um
conjunto de aposentos para o Art e o Gerry por cima da cozinha antiga.
Ocorreu-me que a minha mãe poderá ficar com a antiga sala da governanta,
lá em baixo, com o quarto ao lado.
- Sim, acho que ela falou disso - disse eu, compreendendo por que razão
tal ideia poderia não a encantar por completo, depois de ter sido a
castelã da casa.
- Quando os trabalhadores largaram as ferramentas, apercebi-me de que
teria de me concentrar primeiro na suíte nupcial.
Esperava que ele se livrasse do emaranhado de ferramentas e materiais
no patamar antes de a primeira noiva tropeçar - literalmente - por ali
abaixo, mas supus que assim fosse.
- É claro que a decoração avançaria mais depressa se eu tivesse alguma
ajuda - insinuou ele, mas eu não fui na sua conversa. Eu estava ali
para fazer o meu próprio trabalho, não para trabalhar para Mark a título
gracioso.
Descemos as escadas e fomos até à antiga cozinha, onde havia indícios
dos Gidney, mas nenhum sinal de vida. Mark disse que teriam ido para
o seu próprio chalé no terreno, já que ele e a mãe passariam o dia fora
até à hora do jantar.
- Esta cozinha não vai precisar de alterações, porque vamos ter outra,
industrial, por aqui... - Levou-me, passando ao lado de umas portas
fechadas que deveriam dar para uma despensa ou algo do género, e
chegámos a uma divisão grande com paredes e teto rebocados de fresco.
Em vários pontos, emaranhados de fios e cabos pendiam de buracos. -
Criámos este espaço a partir de duas divisões mais pequenas e, como
pode ver, abrimos uma porta para o celeiro. A canalização e a
eletricidade aqui já estão terminadas e uma firma especializada virá
para tratar das instalações no início de fevereiro.
Isso não seria barato e eu percebia porque é que ele queria obter algum
dinheiro com os quadros.
Mark abriu a porta nova que dava para a cavalariça e passou.
- Criámos esta pequena antessala para quando estivermos a levantar as
mesas e também para termos um lugar onde guardar os talheres, a loiça
e as toalhas. Depois haverá portas basculantes para a área do
copo-d’água propriamente dito.
Fez um gesto como que a empurrar umas portas invisíveis e a passar para
o espaço escuro à frente, ao que eu contive uma risada: parecia que
estava a nadar, de bruços.
Ele acendeu as luzes do celeiro, que me pareceu surpreendentemente
grande, com vigas lindíssimas, paredes caiadas e uma série de janelas
altas. Havia uma área grande envidraçada com uma porta central, por
onde em tempos deveriam entrar as carruagens.
Elogiei o chão de madeira escura polida.
- Achei que o pavimento original teria um ar demasiado frio, pelo que
mandei assentar este. Condiz com as vigas e unifica todo o espaço,
parece-me - disse ele, e eu concordei.
Ele virou costas, a avaliar o espaço.
- Vai haver uma grande mesa de serviço ao fundo, que também poderá ser
usada para bufetes, e depois mesas mais pequenas, que poderão ser unidas
conforme a configuração que se pretenda. Os atoalhados vão ser do melhor
damasco que existe, claro. Vai ser tudo para um mercado muito, muito
luxuoso.
- Já imagino como ficará - disse eu -, e, quando a cozinha estiver
equipada e os móveis tiverem chegado, não vai demorar muito a poder
inaugurar o espaço, pois não? Já fez imenso, em muito pouco tempo.
- Mas até lá ainda vou ter de acabar aquela suíte nupcial. E, se decidir
realizar cerimónias de casamento aqui também, o Grande Átrio também
precisará de ser remodelado.
Voltámos para lá e o espaço pareceu-me ainda mais escuro e gelado do
que nunca, nada nupcial a menos que se fosse um urso polar com tendências
românticas.
Mark tinha estado a falar comigo como se me conhecesse havia séculos
e quisesse conhecer-me bastante melhor. Mas, apesar de o achar atraente
e de ser lisonjeiro que se interessasse por mim, concluí que ele não
me seduzia minimamente. Provavelmente, pelo que me fora dito, ainda
bem!
Apercebi-me de que ele tinha passado os últimos minutos a falar e de
que, naquele instante, me fitava intensamente os olhos. Naquele
momento, dizia:
- Vou passar os invernos na minha casa em Itália. Adoraria que a
conhecesse. É...
Foi interrompido por uma porta a abrir-se e pelos latidos excitados
das duas cadelas salsicha que entraram a correr.
Pansy foi diretamente ter comigo, pondo-se a saltar contra as minhas
pernas, como se estivesse em cima de um trampolim, até que lhe peguei
ao colo. Então lambeu-me o queixo e remexeu-se, extasiada.
Sybil tinha-as seguido.
- Venha para a sala da manhã, Meg. Aqui está um gelo!
- Leve a Meg, mãe, que eu preparo o café - disse Mark. - Mas não tarda
temos de ir embora.
Na sala pequena e mais acolhedora, Sybil pôs outro toro de lenha sobre
as brasas fumegantes da lareira e depois, com um ar culpado, aumentou
um pouco a temperatura do radiador.
Enquanto esperávamos que Mark regressasse com o café, falámos dos
quadros e das renovações.
- O corredor dos quartos, sobretudo, está uma balbúrdia tão grande que
estou muito satisfeita por ir passar o Natal à Casa Vermelha. Só me
preocupa não ter obtido resposta do velho amigo do paizinho, o Piers
Marten, depois de lhe ter escrito a informá-lo de que não estaria por
cá este ano. Espero que ele não tenha de passar o Natal sozinho no seu
apartamento.
- É o melhor lugar para ele - disse Mark sem o menor tato, ao entrar
com um tabuleiro. - E tu sabes que ele tem família com quem pode ficar.
Só preferia vir para cá abusar, engolir comida boa e tentar acabar com
tudo o que haja na adega.
Sybil lançou-lhe um olhar nervoso e apaziguador e disse:
- Talvez a minha carta se tenha extraviado. É melhor telefonar-lhe e
assegurar-me de que a recebeu.
- Faz isso, sim - concordou Mark. - Não queremos que nos caia aqui em
cima.
Perguntei-me quão mau seria realmente aquele Piers Marten. Mark decerto
parecia não o apreciar de todo, ao passo que Sybil parecia ter um
fraquinho por ele, para ficar tão triste por o mandar embora.
Pusemo-nos a caminho da Casa Vermelha para tomar o chá e as cadelas
mantiveram-me quente no assento traseiro do carro, deitando-se em cima
dos meus joelhos.
- A Pansy afeiçoou-se tanto a si - comentou Sybil, virando-se para as
ver. A sua voz continha um laivo de especulação e, se eu não soubesse
quanto ela tencionava cobrar às pessoas que tinham desistido de comprar
a cadela, teria ficado muito tentada, ainda que isso me dificultasse
a vida, dado ter de viajar tanto por causa do meu trabalho.
Chegámos à Casa Vermelha quando Lex e Teddy saíam da carrinha de caixa
aberta, pelo que foi como um déjà vu, mas com público. Pelo menos desta
vez Lex não fez um ar chocado quando me viu, apenas sisudo, sério e
ligeiramente tenso.
Talvez por causa da minha despedida - «Fica-te pelo barro» - da última
vez que o vira? Era possível que não tivesse sido o meu melhor momento.
Não obstante, isso obviamente não o impedia de ficar para lanchar, pois
seguiu-nos para dentro de casa. Também tinha cumprimentado Mark num
tom amistoso. Calculei que fossem familiares, ainda que apenas por via
do casamento, e que se tivessem visto bastantes vezes ao longo dos anos.
Teddy correu logo escada acima para despir a farda da escola, enquanto
Henry, Clara e Tottie estavam já na sala de estar, confortavelmente
instalados nos sofás em frente à lareira.
Mark sentou-se a meu lado num dos sofás e passou um braço sobre o
espaldar, por trás da minha cabeça, no que me pareceu um gesto algo
possessivo... e começou a dizer-me de novo, em voz baixa, que eu ia
adorar um inverno italiano mais ameno.
- Imagino que sim, mas não tenho a menor intenção de ir lá nos próximos
tempos - respondi com firmeza. Depois dei por Lex, sentado num cadeirão
enorme ali perto, com as pernas compridas esticadas e a lançar-me um
olhar tão sardónico que comecei a corar... e ainda mais quando reparei
que todas as conversas na sala se tinham detido e todos os olhares
estavam fixos em nós.
O rubor estava a tornar-se ardente quando Pansy veio em meu auxílio.
Saltara para o meu colo quando me sentei e, nesse momento, inseriu-se
com ciúmes no pequeno espaço entre mim e Mark, tentando expulsá-lo dali.
- Pansy malvada - disse eu, sem a mínima convicção, e depois Den
proporcionou-nos outra distração, ao trazer chá e distribuir chávenas,
pires, bule, um prato coberto e bolo pela mesa de centro.
Teddy seguiu-o com uma pequena pilha de pratos de sobremesa e
guardanapos de papel.
- O prato tem pastéis de batata com manteiga - disse-nos. - Eu gosto,
mas pingam muito.
- E aqui’tá bolo de cenoura, já qu’a Tottie colhe tanta cenoura que
dava p’alimentar um estábulo cheio de cavalos - disse Den. - Agora vou
p’ó meu apartamento; deix’aqui a família feliz a lanchar.
Aquilo parecia ter sido dito sem a menor intenção sarcástica e ele
foi-se embora a assobiar a música «Happy Days Are Here Again».
- É mesmo um personagem - comentou Sybil.
O seu olhar regressou a mim e esperei que nem ela, nem qualquer um dos
outros tivesse ficado com a ideia errada a respeito de mim e de Mark.
Henry perguntou-me o que tinha achado de Underhill e dos planos de Mark
e eu disse-lhe que estava impressionada com o muito que ele já tinha
feito.
- Não há dúvida de que vai estar pronto a tempo de inaugurar na primavera
- disse Mark. - Mas preciso que tenha bom aspeto antes disso, para a
brochura e o website... por isso dava-me jeito alguma ajuda, sobretudo
para a decoração.
Ele já me tinha dado aquela deixa, pelo que pensei que desta feita se
dirigisse a Lex, o qual tampouco se voluntariou.
- A Meg acha que uma natureza-morta minúscula, de umas flores e uns
frutos, a que eu nunca tinha dado grande atenção, é capaz de valer mais
do que a maioria dos outros quadros todos juntos... não é esperta, ela?
- anunciou Sybil.
- Não sou nenhuma especialista - apressei-me a dizer. - Acho só que
é capaz de ser realmente valiosa, e que assim não teria de sacrificar
os seus retratos de família.
- Imagino que terá razão e não me parece que vamos sentir-lhe a falta
de todo - disse ela. - Percebo que temos de vender alguma coisa, com
os impostos da herança, as remodelações e...
- E o facto de o avô ter empatado o resto do dinheiro - terminou Mark,
ainda que, depois de ter encontrado a natureza-morta, o comentário já
não parecesse tão carregado.
- Estamos mesmo contentes por vires passar o jantar de Natal connosco,
Sybil - disse Clara.
- E o Mark no Dia de Natal, se bem que é claro que podes vir sempre
que quiseres, meu querido - convidou Henry.
- Isso depende - disse Mark, lançando-me um sorriso significativo. -
Disse que não sabia ao certo se ia embora ou não antes do Natal, Meg.
- Oh, vou mesmo ficar, se a Clara e o Henry ainda me quiserem - respondi
com ligeireza e um olhar que era uma luva branca atirada aos pés de
Lex.
- Viva! - exclamou Teddy. - A Meg é uma pessoa perferida!
- Preferida - corrigiu Tottie.
- Obrigada, Teddy. Sinto-me muito honrada por ser uma pessoa perferida.
- Acho que também poderia tornar-se uma das minhas pessoas perferidas
- disse Mark e apercebi-me que ele achava que eu tinha mudado os meus
planos por causa dele, o que era um bocado mal pensado.
Talvez Lex julgasse o mesmo, pois estava de novo a mirar-nos com o seu
olhar sardónico, mas Pansy não gostava da forma como Mark se inclinava
para mim, pelo que decidiu retomar o seu espernear, empurrando-o.
Mark pousou-a no chão.
- Às vezes torna-se um pouco incómoda.
- Oh, não. Eu acho que é só engraçada - repliquei e depois levantei-me,
peguei numa chávena de chá e no bolo de aspeto delicioso e sentei-me
antes ao lado de Clara.
Esta sorriu-me de orelha a orelha.
- Fico tão contente por se ter decidido a ficar, se bem que já soubesse
que assim seria. Vamos ter uma bela festa em família, com montes de
diversão!
Lex não parecia lembrar-se do que era diversão...
Uma nuvem ténue toldou por instantes o rosto de Sybil.
- Não posso esquecer-me de ligar ao Piers quando voltar. Ele não
respondeu à minha carta a informá-lo de que vou passar o Natal fora
e receio que não a tenha recebido.
- Deve ter recebido e estar só a amuar - atalhou Mark. - Mas é melhor
assegurares-te.
- Não se preocupe com o Piers, Syb - disse Tottie. - Se alguma vez houve
um homem capaz de cuidar de si mesmo, é ele. E tem família, pelo que
também não há motivo para se sentir responsável por ele.
- Não... - concordou Sybil, mas continuava com um ar aflito.
- Tia Sybil, queres ver o meu retrato da Meg com o cabelo verde? -
perguntou Teddy.
- Claro, adoraria vê-lo - respondeu ela de imediato, ao que ele foi
buscá-lo.
- Ele já é muito bom para a idade - comentei. - Tem uma noção muito
forte da cor e das formas.
- O seu cabelo já só tem um laivo muito ténue de verde, Meg - comentou
Tottie. - Deve ser naturalmente muito claro?
- Sim, é tão louro que é quase branco - confirmei. - O da minha mãe
é igual.
- Vai pintar o cabelo de verde outra vez, minha querida? - quis saber
Henry. - O verde-escuro como esmeralda fazia lembrar uma ninfa de
madeira, e ficava-lhe bem.
Quanto a isso, eu não tinha muita certeza, mas agradeci-lhe de qualquer
forma.
- Não, da próxima vou escolher uma cor completamente diferente.
- O teu cabelo parecia ouro branco, da primeira vez que te vi...
louro-platinado, acho que é o que lhe chamam - disse Lex,
inesperadamente, e depois explicou aos restantes: - Ela saiu do meio
das sombras num corredor escuro na faculdade de belas-artes... cabelo
branco, rosto pálido, roupas escuras. Por um segundo, assustei-me
bastante, achei que era um fantasma.
- Bem, tu também me assustaste, com aquele casaco preto e comprido a
adejar como as asas de um pássaro enorme e escuro a abater-se sobre
mim - retorqui, e fitámo-nos durante um longo momento. Acho que ambos
nos víamos como éramos naquele dia: jovens e com o mundo à nossa frente.
Nessa noite, lavei o cabelo duas vezes e, quando acabei, estava de novo
em modo Fantasma Prateado.
Mas não durante muito tempo: em breve seria uma visão cor-de-rosa.
Clara
À medida que o novo semestre avançava para o início da primavera, fui-me
instalando cada vez mais profundamente tanto nos meus estudos como na
minha vida social, a qual, claro está, girava em torno de Henry.
Não tinha nem tempo nem vontade de prestar grande atenção a Nessa, caso
contrário julgo que teria reparado muito antes que algo estava mal.
No entanto, no dia em que ela entrou no meu quarto, fechou a porta e
desatou a chorar, adivinhei logo - acertadamente - que estava grávida.
Ela própria tinha estado a recusar-se a acreditar nisso, mas tal já
não era possível. Não sei porque me escolheu como sua confidente, a
menos que tenha sido por o pai do seu filho - George, claro está - ser
irmão de Henry.
Lá me contou toda a triste história da fatídica viagem a Londres que
fizera no outono: George levara-a de facto e eles tinham planeado passar
algumas horas juntos antes de ela ir para casa de Lady Leamington. Ele
tinha pedido emprestado o apartamento de um amigo, por onde tinham
passado primeiro para deixar a mala dela... ou assim pensava ela.
Decerto não esperava que ele se comportasse daquela maneira.
- Como um animal selvagem! - soluçou ela. - E depois disse que não sabia
porque é que eu estava tão triste, já que queria casar comigo! E depois
de darmos o nó e eu ter o controlo do meu dinheiro, poderíamos ir a
qualquer lado e fazer o que quiséssemos...
- Foi então que lhe disseste que não poderias tocar no capital até teres
trinta anos? - sugeri.
Ela voltou a estremecer.
- Mudou de um instante para o outro quando soube! Eu achava que ele
me amava, mas não, só queria o dinheiro. - Endireitou-se, recuperando
um laivo de espinha. - Mas depois da maneira como se tinha aproveitado
de mim, eu não teria casado com ele nem que fosse o último homem na
Terra! - Depois desfez-se em lágrimas de novo e carpiu: - Não sei o
que fazer!
- O George sabe?
Ela fitou-me, horrorizada.
- Não! Nunca mais quero voltar a vê-lo ou a ter notícias dele!
- Talvez não, mas dadas as circunstâncias... - comecei, e depois
estaquei, ao dar-me conta de uma complicação. - Nessa, preciso de te
contar uma coisa. O Henry foi a casa este fim de semana, porque o George
vai casar. Na verdade, por esta altura já deve estar casado.
Guardei silêncio acerca das nossas suspeitas sobre a precocidade do
casamento.
Nessa fitou-me e depois desatou a rir de uma maneira que se aproximava
da histeria, até que lhe atirei com um copo de água fria para a cara.
Depois ela limitou-se a ficar quieta, pálida e bastante molhada.
Entretanto, eu contara os meses.
- O bebé deve nascer nas férias de verão, por isso se fosse possível
guardar segredo até lá... - pensei em voz alta. - Mas não deve ser.
Nessa recompôs-se.
- Agora vejo que a única pessoa que poderá ajudar-me é a minha madrinha.
Ela saberá o que fazer.
Ela parecia muito convicta de que, ainda que ficasse chocada, Lady
Leamington seria suficientemente vivida para poder aconselhá-la e,
refletindo, concluí que deveria ter razão.
Obrigou-me a jurar segredo, o que fiz, sem contar com Henry: éramos
demasiado chegados para escondermos coisas um do outro e, fosse como
fosse, tratando-se da família dele, ele devia saber.
Henry ficou tão chocado, zangado e revoltado com o comportamento de
George como eu, mas não havia nada a fazer, pois o seu irmão e a noiva
já estavam em lua de mel e, para além disso, estávamos obrigados a
guardar segredo, devido à minha promessa.
Nas férias da Páscoa, Nessa foi a Londres, a fim de confessar tudo a
Lady Leamington, a quem ocorreu uma solução inovadora para o problema.
- Ela disse que eu devo conseguir disfarçar a gravidez até ao final
do semestre, se almofadar tanto o peito quanto a barriga à medida que
esta cresce. As pessoas vão só julgar que engordei muito... e é verdade
que tenho aumentado de peso.
- Isso vai funcionar? - perguntei, cética.
- Funcionou com uma amiga dela, por isso não vejo porque não. Assim
posso acabar o primeiro ano e depois vou para uma clínica privada para
ter o bebé. - Estremeceu. - Vai ser adotado de imediato, claro.
- És capaz de mudar de ideias quando o vires - sugeri.
- Não quero vê-lo, só quero livrar-me dele. E assim que tiver
recuperado, vou voltar para a América e acabar o meu curso lá.
Não lhe disse nada mais, pois ela parecia ter tudo planeado: caso
encerrado. Havia uma nova faceta de Nessa, mais dura, e ela continuava
decidida a que George nunca soubesse de nada.
- Vou começar do zero na América e isto vai parecer só um sonho mau
- disse ela, acrescentando depois, determinada: - Mas para mim
acabaram-se os homens e a maternidade!
Realmente, para alguém que costumava parecer um doce branco e
cor-de-rosa polvilhado de açúcar, a sua resolução ao dizer aquilo era
incrível!
22
A Imagem
Tive mais uma boa sessão de pintura com Henry na manhã seguinte,
empolgante e intensa. As pinceladas, raspas e gotas de tinta
colocavam-se a si mesmas como que por alguma alquimia mental, e eu sabia
que, quando finalmente me afastasse da tela, formariam um todo.
A soma era definitivamente mais do que as partes, pois o rosto despojado
e elegante de Henry começava a ganhar forma: o nariz grego e os malares
altos, tão semelhantes aos de Mark, a sua testa ossuda e o cabelo
grisalho e fino... o azul vivo dos seus olhos no seu ninho de rugas
de sol e riso e aqueles lábios retos, com comissuras curvadas e
bem-humoradas.
Ele tinha o policial na mão, mas, naquele dia, a sua mente parecia
firmemente ancorada na sua obra, o ciclo poético épico do tamanho de
um romance acerca da inundação do vale. Enquanto eu pintava, ele
falou-me um pouco disso.
- A identidade forte do lugar permaneceu durante muito tempo depois
de a aldeia ter desaparecido sob as águas. Na verdade, ainda existe
- disse ele. - A minha infância dourada com a Clara não foi levada pela
corrente. Perdura e chamou sempre por mim ao longo dos anos que se
seguiram. A Clara sentia o mesmo.
- Compreendo, porque, assim que vi o vale, até eu me senti ligada a
ele. O River diria que era magia antiga e as linhas de ley a chamar
por mim.
Henry lançou-me um olhar curioso.
- Também o sentiu? Que interessante - murmurou ele e depois acrescentou:
- Eu queria demonstrar o efeito da inundação do vale, não apenas sobre
os habitantes humanos, mas a partir do ponto de vista das criaturas
deslocadas ou afogadas. As árvores, as plantas, os peixes e os
insetos... até os pássaros. O tordo que fazia o ninho todos os anos
num regador velho pendurado na parede do celeiro da estalagem, a raposa
que costumava esconder-se na estufa do vicariato quando era época da
caça, e os texugos na mata depois da ponte curva, que faziam a sua vida
depois do crepúsculo, enquanto nós dormíamos.
A sua voz, baixa mas maravilhosamente ressonante, continuava:
- Os sinos silenciados, levados para a igreja grande e feia de
Thorstane, e a antiga pedra pré-cristã gravada que estava no pátio da
igreja e inspirou a Clara a estudar epigrafia, entretanto instalada
na propriedade de Underhill. Muito foi mudado de sítio, mas não podemos
levar connosco os mortos, nem o peso do tempo que ancora um lugar.
Ele deteve-se e pareceu regressar de algum lugar num tempo muito remoto.
- Parece maravilhoso e mal posso esperar por lê-lo - disse-lhe com
sinceridade.
- Está quase terminado... e a Clara também já está quase a terminar
o seu último policial, ainda que as memórias não. Desconfio -
acrescentou ele, fitando-me com um sorriso - que estas vão acabar com
revelações. Ainda bem que ela não tenciona publicá-las.
- Acha que as memórias da Clara poderiam chegar a ter vários volumes,
como as de Dodie Smith?
- Provavelmente só dois. Acho que ela está prestes a alcançar um momento
de resolução, o que seria um bom sítio para terminar o primeiro volume.
Alguma grande descoberta, talvez, que coroaria de glória acrescida o
trabalho de Clara no mundo da epigrafia?
- Se puder não falar durante uns minutos enquanto eu pinto os seus lábios
- sugeri -, acho que podemos dar o dia por terminado.
E o rosto, pelo menos, estava quase no ponto em que alguém deveria
tirar-me a espátula da mão.
Ao almoço, Henry disse-me que Lex e Al chegariam pelas duas da tarde
para entregar o enorme vaso de jardim que era a prenda anual de Natal
de Lex.
- Se bem que, claro, Tottie decide onde é que fica e o que se planta
nele, pelo que acaba por ser uma prenda para os três. Desta vez sabemos
que será idêntico ao que temos no meio do jardim da direita em frente
ao terraço, para ficarem a condizer.
- Eu havia reparado que só um deles tinha um vaso central - respondi,
enquanto o abençoava mentalmente pelo aviso, pois, assim que tomei o
meu café, peguei no livro que estava a ler (o segundo da série de Clara)
e subi para a minha salinha na torre.
Se houvesse um alçapão, tê-lo-ia fechado atrás de mim.
Ouvi Lex e Al a chegar e espreitei pela pequena janela estreita, mesmo
a tempo de ver a carrinha de caixa aberta, com uma enorme forma de
terracota amarrada na parte de trás, a contornar a casa e desaparecer.
Só desci depois de a carrinha se afastar. Infelizmente, não me apercebi
de que era apenas Al a partir até sair pela porta do jardim para o terraço
e me deparar com Lex e Tottie.
- Pensava que te tinhas ido embora! - exclamei.
- Não, lamento desapontar-te.
Os seus olhos escuros eram indecifráveis.
- Não estou desapontada, apenas surpreendida - repliquei com dignidade.
- Vou buscar os sacos de adubo para a Tottie e ajudá-la a plantar a
árvore no vaso novo - disse ele.
- Que tipo de árvore vai ser?
- É um buxo como o outro - disse Tottie. - O Henry queria que
condissessem, mas detesta ângulos, por isso decidimo-nos por buxos em
espiral.
Saíram pela lateral da garagem até uma velha estufa e regressaram uns
minutos depois com Lex a arrastar um grande carrinho de mão de madeira
cheio de sacos de adubo.
Tottie seguia-o, carregando uma árvore de tamanho considerável num vaso
de plástico.
- Demoram séculos a crescer, os buxos, por isso mais vale comprar o
maior possível para se ter logo algum efeito - disse ela.
O vaso precisou de dois sacos de terra adubada para ficar cheio e com
as raízes firmemente pressionadas.
Tottie levou o carrinho de mão vazio e eu e Lex recuámos para o terraço
a fim de admirar o efeito.
Lex surpreendeu-me quando, de repente, me pediu desculpa pela forma
como Al e Tara se tinham comportado na olaria.
- Ainda não tinha tido oportunidade de to dizer, mas o Al não devia
ter falado contigo daquela maneira... e não devia mesmo ter dito nada
à Tara acerca do que aconteceu.
Encolhi os ombros.
- Não me interessa o que eles pensam e, quando me for embora depois
do Natal, nunca mais terei de voltar a vê-los.
- Isso eu não sei. Pareceste-me muito à vontade com o Mark, ontem -
comentou ele num tom acutilante.
- Não sejas tolo. Mal o conheço e ele é vários anos mais novo que eu
- repliquei com rispidez. - O que ele quer é aconselhamento gratuito
e trabalho não remunerado, se conseguir quem lhos dê.
Lex esboçou um sorriso bastante inesperado, com um efeito devastador.
- Oh, eu não menosprezaria os teus encantos - disse ele.
Eu estava simplesmente a fitá-lo com um ar atónito, sem saber se ele
estaria a ser sarcástico, quando Tottie se juntou de novo a nós, a
sacudir terra das mãos.
- Ficou bem, não ficou? - perguntou-nos, a observar o jardim em laço
com um ar crítico.
- Encantador - disse eu. O intricado dos jardins gémeos em laço de um
lado e do outro do caminho comprido de gravilha estava realmente bonito,
parecia saído de um livro ilustrado.
- O Al hoje pareceu-me um bocado calado, e não quis ficar para o lanche
- disse Clara quando entrámos na casa. - Vocês não se desentenderam,
pois não, Lex?
- Tivemos uma ligeira diferença de opiniões, mas há de passar-lhe -
respondeu Lex com concisão.
- O Henry deve estar quase a voltar com o Teddy.
- Já é assim tão tarde? - exclamei. Devíamos ter passado séculos no
jardim. Não admirava que me sentisse enregelada!
Teddy ficou entusiasmado por voltar a ver Lex - mas a verdade era que,
com o Natal a aproximar-se a cada dia, Teddy andava entusiasmado, ponto
final.
- Amanhã é o último dia de aulas - disse-lhe. - O Pai Natal vai lá e
depois temos a peça da escola. Vais assistir, tio Lex, não vais? A Meg
vai, e o resto da família também.
Era a primeira vez que ouvia dizer que se esperava que eu fosse, ainda
que, claro, eu soubesse tudo acerca da peça de Natal, reescrita por
Miss Aurora, ao que parecia, para ser mais feminista.
- Tenho a certeza de que devem impor um limite de espectadores -
apressei-me a dizer.
- Na verdade, espaço não falta, porque o auditório era o antigo salão
de baile, na lateral da casa. Tem um maravilhoso chão de madeira -
acrescentou Henry, como se isso pudesse ser um grande incentivo.
- As cadeiras são terrivelmente desconfortáveis, de plástico, daquele
género que dá para empilhar, mas as peças são sempre curtas e os
refrescos são bons. Mas não deixem que o Teddy vos obrigue a ir, se
não quiserem, e isto vale para os dois - disse Clara.
- Mas é claro que a Meg e o tio Lex querem ir! - indignou-se Teddy,
com um ar profundamente magoado, pelo que tivemos de lhe assegurar de
imediato que sim, queríamos.
- Amanhã vou levar a Meg a almoçar ao Lúcio de Duas Cabeças, Lex -
informou-o Henry, o que também era novidade para mim, apesar de me
recordar de ele ter dito que seria bom fazer isso numa sexta-feira.
- Porque é que não vens, se não tiveres muito que preparar antes do
Solstício?
- Eu acho que é uma maldade irem enquanto eu estou na escola - protestou
Teddy.
- Mas em vez disso vais ver o Pai Natal, e depois noutra altura podemos
voltar lá todos.
Lex respondeu que sim, iria connosco ao pub.
- Tenho de comer, afinal, e, se vou à peça de Natal, também já não vou
ter tempo para trabalhar à tarde, pois não?
O nariz de Lass aproximava-se lentamente do prato de sanduíches de pasta
de anchovas e eu afastei-o mais. Ela lançou-me um olhar profundamente
reprovador.
- Está quase na tua hora de jantar - disse-lhe eu.
- O que é que o Den está a fazer? - quis saber Henry.
- Mais empadas, como se o congelador não estivesse já a abarrotar -
replicou Clara -, mas também fez bolachas recheadas.
- Mnham - disse Henry. - Empadas nunca são a mais.
Ao entrarmos, Tottie tinha desaparecido para ir lavar as mãos cheias
de terra; apareceu então, ainda a usar as calças de bombazina
ligeiramente sujas e as meias caneladas cinzentas.
- Estou faminta - disse ela, enchendo um prato de sanduíches.
Clara serviu-lhe chá.
- Vamos todos almoçar ao pub amanhã, Tottie.
- Ótimo! - exclamou ela, ao que eu vi a sua versão jovem, ossuda e feliz,
que provavelmente jogava ténis em Underhill e hóquei na escola,
conquanto agora os seus entusiasmos se haviam voltado para os cavalos,
as abelhas e a jardinagem.
Mais tarde, Den levou Lex a casa e Teddy e Henry foram para o escritório
deste para abrirem uma caixa de bolas: o sortido de decorações
natalícias do leilão chegara finalmente.
Clara tinha-se recolhido também para trabalhar, mas Tottie permaneceu
sentada junto à lareira, a ler uma revista de jardinagem, e eu
enrosquei-me num cadeirão confortável com o segundo policial de Clara.
Contudo, depois de Teddy ter regressado à sala umas seis vezes para
nos mostrar algum tesouro acabado de chegar, ambas desistimos e fomos
também assistir à diversão.
Na manhã seguinte, pintei as mãos sensíveis e de dedos longos de Henry
e comecei a pintar Lass, que se deitava sempre a seus pés no estrado
sem que fosse necessário pedir-lho, na posição certa.
Clara entrou pouco depois para espreitar o quadro.
- Tão diferente do meu retrato... e, apesar disso, continua a ser
distintamente uma obra sua - comentou, ao examiná-lo. - O Henry é um
Doome típico: nariz reto, malares altos e cabelo louro.
- Bem, foi louro: agora é branco - disse ele.
- O George era a versão maior, mais bruta e brilhante do Henry - disse-me
Clara. - Cabelo louro como bronze, olhos azuis ligeiramente salientes,
alto, robusto, tonto.
- É um bom resumo - concordou Henry. - Ele tinha pena de mim por ser
tão enfezado.
- Ah! - riu-se Clara.
Henry levantou-se, colocou-se a seu lado e, juntos, escrutinaram o
retrato, até que, como um só, se viraram e me miraram intensamente.
- Passa-se alguma coisa? - perguntei, ansiosa.
- Nada. Estamos apenas maravilhados com a sua genialidade, minha
querida - assegurou-me Henry.
- Tenho a certeza de que poderia terminá-lo amanhã, se pudesse posar
uma última vez, Henry?
- Não tenho a certeza de que tenhamos tempo para isso amanhã. É capaz
de ter de ser na manhã de domingo.
- Porquê, o que é que acontece amanhã? - perguntei.
- Levamos sempre o Teddy ao velho Moinho dos Amigos, perto de Great
Mumming, para ver o Pai Natal e escolher a nossa caixa de crackers de
Natal10. É o que sempre fizeram lá. Mas agora a confeção dos crackers
ocupa apenas uma parte do moinho e o resto é um pequeno museu e umas
lojinhas interessantes, incluindo a de coisas natalícias, de que lhe
tinha falado.
- Oh, sim, já me lembro.
- Há lá um café muito bom de comida saudável, por isso almoçamos sempre
por lá. Eu, a Clara e o Lex costumamos levá-lo, mas este ano ele gostava
que a Meg também fosse - disse Henry.
- Ele afeiçoou-se mesmo a si - comentou Clara.
- O Lex leva o Teddy a ver o Pai Natal, o que nos dá tempo para
acrescentarmos algumas coisas de última hora à sua meia de Natal -
explicou Henry. - Depois encontramo-nos no café.
- Mas eu tenho a certeza de que o Teddy não precisa mesmo de que eu
também vá. Eu...
- Descontraia, minha querida. Já quase terminou o segundo retrato,
merece um dia de folga - instou Clara. - Estamos mesmo satisfeitos por
não ir embora logo a seguir ao Solstício.
Teddy parecia querer incluir-me em tudo, apesar de eu ter a certeza
de que Lex não o desejaria... Mas, por outro lado, a velha fábrica
realmente parecia um sítio divertido para se visitar.
Lá nos encolhemos todos para cabermos no Range Rover e partimos para
o Lúcio de Duas Cabeças, com Den ao volante. Clara levaria o jipe quando
saíssemos do pub para a escola, para que Den pudesse beber uma ou duas
cervejas Old Brown Ale da Gilliflower.
Apesar de a cervejaria ter sido vendida havia anos, o nome da família
de Tottie ainda perdurava.
Tratava-se de um pub muito antigo com extensões modernas: uma área de
jantar com teto de vidro fora acrescentada de um lado, enquanto do outro
havia uma ala de quartos de motel. A parte antiga era bastante sombria,
mas nós passámos por ela para vermos o famoso lúcio mutante,
orgulhosamente exposto pelo senhorio, Fred Golightly.
Estava num mostruário na sala privada, com uma luz por cima para
iluminar a criatura, que tinha uma expressão gravemente zangada tanto
numa cara como na outra.
- Farto até às guelras - comentei.
- Tem um ar um bocado chateado, tem - concordou a voz grave de Lex mesmo
atrás de mim, fazendo-me saltar.
- Já chegaste, Lex! - exclamou Clara. - Vamos, vamos lá almoçar. Estou
esfomeada!
Den ia comer o seu almoço (provavelmente não vegetariano) com o senhorio
e depois juntar-se-ia a nós para o café, mas o resto da comitiva seguiu
Clara, que abriu caminho para a zona grande e luminosa das refeições,
equipada com cadeiras de verga e mesas com tampo de vidro,
cuidadosamente decorada com palmeiras artificiais em grandes vasos de
plástico e murais de camelos a avançar por desertos. Não seria de
esperar encontrar muitos por aquelas bandas.
Observei criticamente o camelo mais próximo enquanto me sentava.
- Acho que podiam mudar o nome do pub para o Camelo de Duas Cabeças.
- Faz-me lembrar o cavalo naquele quadro da Escola de Stubbs que está
em Underhill - comentou Lex, sentando-se na cadeira ao meu lado.
- Já o viste?
- O Mark fez questão que eu fosse vê-lo aqui há umas semanas, por mais
que eu lhe dissesse que a minha especialidade é a cerâmica, não a
pintura. Mas até eu consegui ver que provavelmente não é sequer da
Escola, quanto mais do mestre.
- Acho que ele já aceitou isso - disse eu, enquanto pensava que Lex
parecia bastante mais descontraído naquele dia e, se não amigável, pelo
menos não abertamente hostil.
- Sobretudo porque lhe encontraste uma coisa que provavelmente será
bastante mais valiosa e da qual a Sybil não se importará de abrir mão.
Consultámos os menus e depois todos escolhemos o mesmo: empadão de
peixe, seguido de crème brûlée. Reparei que Lex tratava a empregada
loura e bonita por Susie e que ela tinha dificuldade em desviar os olhos
dele.
- Parece uma saída anual de pescetarianos - comentou Tottie,
servindo-se. - Todos aproveitamos a oportunidade de comer um pouco de
peixe quando saímos, ainda que em casa também o façamos de vez em quando.
- O Lex adotou os nossos hábitos ao passar tempo connosco ao longo dos
anos - disse Henry.
- Mas a Zelda é uma carnívora - ressalvou Lex, ao que me perguntei como
seria aquela irmã mais nova desconhecida, a mãe de Teddy.
- Eu não acho mesmo que devesse comer peixe - disse Henry -, mas parece
que não consigo livrar-me do hábito por completo.
- Eu consigo comer qualquer coisa pescada, desde que não venha com
cabeça - declarou Clara.
- Ou com duas cabeças, se fosse o lúcio mutante - brincou Lex.
- Não vamos por aí - disse eu -, senão ainda perdemos o apetite.
- É verdade - concordou Clara. - E ainda bem que pudeste juntar-te a
nós hoje, Lex.
- Talvez devessem ter convidado o Mark também - sugeriu Lex. - A Meg
parece ter-lhe amaciado o mau feitio de uma maneira infinita.
Virei-me e fitei-o com desconfiança, enquanto ele me devolvia um olhar
brando.
- Queres dizer por lhe ter encontrado aquela natureza-morta?
- Isso deve ter ajudado, porque ele no outro dia quase estava uma
simpatia. Não há dúvida de que algo, ou alguém, o amaciou.
- Eu acho que ele se afeiçoou à Meg... e quem poderia julgá-lo por isso?
- comentou Henry com uma piscadela de olho, ao que eu corei.
- Não é nada disso. Ficou só encantado por eu achar que a natureza-morta
vai financiar o resto das remodelações.
- O que achaste realmente dos planos dele? - perguntou Lex.
- Não sou especialista, mas acho que, se conseguir persuadir as pessoas
de que vale a pena vir a Underhill para um copo-d’água muito luxuoso,
é capaz de ter sucesso.
- Não há dúvida de que vai ter de cobrar uma batelada de dinheiro para
conseguir dinheiro suficiente entre a primavera e o início do outono
- disse Lex.
- E esta ideia de transformar Underhill numa espécie de pequeno hotel
rural? - perguntou Tottie num tom duvidoso.
- Acho que é mais para poder receber parte da comitiva do casamento,
em vez de abrir ao público em geral - sugeriu Clara.
- Eu não sei se valeria a pena, na verdade, e daria muito mais trabalho
- comentei.
- Concordo - disse Henry. - Seria melhor concentrar-se nos copos-d’água
e mais tarde, talvez, em celebrar também casamentos no local.
- Seja como for, é tudo um grande transtorno. A Sybil, coitada, vai
agradecer passar o Natal connosco. Eu reparei que continua preocupada
com aquele velho réprobo horroroso, o Piers Marten - disse Clara. -
Mas se ele passar o Natal sozinho, há de ser por sua própria escolha.
- Achas que pode haver ali alguma espécie de romance de outono/inverno?
- perguntou Henry.
- Não me parece provável, não - respondeu Clara. - Quero dizer, ela
chama-lhe «tio Piers» e ele é da idade que o George teria... e não é
um homem nem muito simpático, nem muito atraente.
- Eu tenho a certeza de que ela só tem pena do velhote - concluiu Tottie,
enquanto tirava a última colherada de espuma da sua chávena de
cappuccino.
Den tinha chegado com o café e, como todos estávamos cheios, ia comendo
os bombons de chocolate e menta que o acompanhavam.
- Eu acho que a Sybil tinha esperança de que eu sugerisse que o Piers
se juntasse a nós para o Natal na Casa Vermelha, mas prefiro mesmo não
o fazer - disse Clara.
- E com razão - disse Tottie. - Esse homem é uma sarna. Tentou meter-se
comigo depois de eu ter herdado a Casa Vermelha, até descobrir que não
havia dinheiro à mistura. Então pôs-se a andar.
- A sério? - exclamou Clara. - Não fazia ideia!
- Deve ter visto que você nã sabe cozinhar - atalhou Den.
- Sei sim! Algumas coisas, pelo menos.
- Um homem não pode viver de compota e picles, mesmo com algum mel a
acompanhar.
Tottie parecia prestes a abespinhar-se, mas Henry apressou-se a
acrescentar que estava na altura de irmos para chegarmos a Gobelins
a tempo da peça de Natal.
Na escola, seguimos uma fila de pais para o que fora outrora um salão
de baile de tamanho considerável. As cortinas compridas das janelas
estavam corridas e fileiras de cadeiras tinham sido colocadas em frente
a um palco elevado, com escadas de um lado e do outro.
Miss Aurora, uma mulher imponentemente alta e de voz grave, deu-nos
as boas-vindas com brevidade e depois abriu as cortinas, revelando Miss
Dawn a baixar um cenário que fora pintado por alguém com pouca
competência artística, mas muito entusiasmo.
Representava uma divisão com uma janela. Uma Maria pequena e truculenta
estava sentada numa cadeira em frente e começou a falar com o Arcanjo
da Anunciação, o qual não se via, sendo apenas uma voz rouca que se
ouvia vinda de cima. Primeiro ela mandou-o ir dar uma volta, até
finalmente se deixar convencer de que aquilo que ele propunha era uma
boa ideia.
Depois disso, ela pegou na cadeira e foi-se embora e, na cena seguinte,
aparecia a caminho de Belém, bem almofadada e a dizer que não gostava
muito de andar de burro no estado em que se encontrava.
Desconfiei que, quando crescesse, a menina viria a ser uma atriz de
sucesso, ou uma feminista de sucesso... talvez as duas coisas.
Fizeram descer outro cenário sarapintado de um estábulo aberto e Maria
ordenou autoritariamente a José que varresse a lama mas deixasse o
burro, a vaca e a ovelha para o espaço continuar quente. Naquela altura,
o palco estava bastante cheio de gente.
Maria passou para trás de um grupo de burros e depois voltou e deitou
um bebé numa manjedoura que se parecia estranhamente com um
porta-revistas de vime.
- Bom, então aqui estamos - disse ela. - Venham, todos vocês, e
espreitem.
Os pastores, vários anjos e os Três Reis Magos juntaram-se de uma só
vez no palco, tanto que tive receio de que a ovelha caísse.
- Ainda bem que não chegaram cedo, porque ninguém quer uma data de
desconhecidos à volta quando está a dar à luz - disse Maria aos Três
Reis Magos, erguendo a voz para competir com a cacofonia de mus, bés
e outros berros dos animais. Por esta altura, a maioria das crianças
estava com calor dentro dos fatos, de rostos afogueados e
excitadíssimos.
Um anjo tinha uma asa a cair e outro - Teddy - atirava o halo como se
fosse um disco pela sala, tentando acertar numa pequena palmeira de
papel mâché.
- Calem-se - ordenou Maria a todos num tom severo, e depois avançou
para a frente do palco, anunciando bruscamente: - Vamos cantar e depois
acabou-se.
Dispuseram-se em filas irregulares e cantaram uma versão emocionante
de «Jesus Christ, Superstar» antes de abandonarem o palco ao som de
aplausos ruidosos.
- Oh, foi fantástico! - exclamei, enquanto nos levantávamos, gratos,
das cadeiras que nos entorpeciam os traseiros, encaminhando-nos para
a zona das bebidas ao fundo da sala.
Lex olhou para mim com o seu sorriso de flecha.
- A Maria foi mesmo o centro das atenções, não foi?
- Ora, naturalmente - respondeu Clara, que o ouvira.
O bufete era exatamente como Tottie descrevera a caminho dali. Havia
um ponche sem álcool, sanduíches de todos os géneros e um grande bolo
de chocolate fundente, para além de pratos com musses, merengues e
vol-au-vents recheados, segundo Den, que os comia encantado, com pasta
de cogumelos ou canja de galinha.
- Posso fazer p’ós petiscos do dia a seguir ao Natal, não? - disse ele.
- Mas só os de cogumelos.
As crianças voltaram, já a usar as suas próprias roupas, ainda que um
burro continuasse com orelhas e Maria viesse com um halo enfiado
firmemente sobre o pano azul que lhe cobria a cabeça.
Depois de termos elogiado a atuação de Teddy até que ficasse satisfeito,
ele contou-nos da visita do Pai Natal à escola nessa manhã.
- Vou vê-lo outra vez amanhã, na fábrica de crackers - acrescentou.
- O Henry e a Clara levam-me, mas tu e o tio Lex também vêm, não vêm
Meg? A fábrica de crackers é mágica.
- Tenho a certeza de que vai gostar de a ver, Meg - disse Henry, ao
que eu respondi que de facto parecia ser divertido.
- O Lex vai ter connosco ao parque de estacionamento - disse Clara,
e esse comentário privou-me da cereja no cimo do bolo da expetativa.
- Fantástico - disse eu e, ao virar-me, deparei-me com ele mesmo atrás
de mim. Dirigiu-me mais um dos seus olhares inflexíveis daqueles seus
olhos escuros de musgo e ágata sob umas sobrancelhas negras, sem que
eu soubesse o que fizera para o merecer.
Ele tinha vindo dizer que se ia embora e nós não tardámos a fazer o
mesmo, todos apinhados no Range Rover.
Clara ia ao volante - pela rota panorâmica, em vez de pela passagem,
agradou-me notar - e, quando finalmente esmagámos a gravilha do acesso
à Casa Vermelha, Henry exclamou, com um suspiro feliz, como se
tivéssemos passado um ano fora:
- Que maravilha voltar a casa!
10 Christmas cracker, tradição natalícia inglesa constituída por um
cilindro de papelão que ao ser aberto faz estourar uma pequena bomba
que dentro contém um brinde, uma bolacha e um chapéu de papel para a
criança usar durante o jantar de Natal. (N. da T.)
23
Presente
No dia seguinte, Henry levou-nos ao moinho no Jaguar, seguindo pela
Passagem Sinistra, o que foi complicado porque nos deparámos com uma
carrinha de entregas a subir, ocupando o meio da estrada.
Depois de Great Mumming fomos por uma estrada estreita que serpenteava
pelo campo entre sebes altas e escuras de espinheiros, até finalmente
virarmos para uns portões abertos de ferro forjado, entre postes de
pedra. Ao lado, uma grande placa dizia:
BEM-VINDO AO MOINHO DOS AMIGOS
A CASA DOS CRACKERS MÁGICOS DE MARWOOD
- Chegámos - disse Henry animadamente, seguindo por uma fina estrada
alcatroada ao longo de uma eira com chalés, até onde se encontrava o
moinho, junto a um riacho. O vale era estreito e a vegetação acercava-se
das traseiras do moinho, mas do outro lado do riacho o terreno abria-se
um pouco e havia ali uma velha casa sobre um relvado viçoso rodeado
por um fosso com patos. Parecia muito improvável.
- Bonito, não é? - perguntou Clara, enquanto entrávamos num parque de
estacionamento com chão de gravilha e parávamos ao lado da carrinha
de caixa aberta de Lex. - Consta do Domesday Book e ainda pertence à
família Marwood. Nós conhecemos a Mercy Marwood porque o sobrinho dela,
o Randall, andou na escola com o Lex, apesar de ser um pouco mais velho.
- É encantador, mas muito inesperado - disse eu; o mesmo não diria de
Lex, que acabava de sair e estava a vestir um blusão de cabedal velho
e coçado com umas calças de ganga pretas ligeiramente manchadas de
argila.
- Ah, chegaram - cumprimentou-nos ele como se estivesse à nossa espera
havia horas, coisa que evidentemente não era verdade, já que o capô
da sua carrinha ainda estava a fumegar ligeiramente no ar frio.
- Tens as calças todas sujas de argila, querido - comentou Clara.
Ele olhou para baixo e resmungou.
- Ainda hoje de manhã estavam limpas... mas depois passei uns minutos
na oficina.
- Também não faz diferença - declarou Henry. - Metade dos artífices
das oficinas do moinho anda por aí coberta de tinta, argila ou qualquer
outra coisa.
Teddy, libertado do banco de criança do carro, dava pulinhos
impacientes, enquanto o vento lhe despenteava a melena de caracóis
pretos, tão parecidos com os de Lex.
- Vamos, tio Lex... vamos, Meg! - instava-nos, agarrando-nos as mãos,
e encaminhámo-nos para a entrada do moinho com o Teddy entre nós, o
retrato de uma saída feliz em família, com Clara e Henry atrás de nós.
Uma grande árvore de Natal tremeluzia no átrio e aromatizava o ar, mas
eu mal tive tempo de agarrar um folheto sobre as atrações de uma pilha
que estava em cima de uma mesa antes de Teddy me arrastar pelas portas
duplas ao fundo, altamente empolgado.
- Calma, Teddy - avisou-o Henry. - Primeiro queremos mostrar à Meg onde
se fazem os crackers e o museu. Depois podes ir ver o Pai Natal.
- Os funcionários não trabalham ao fim de semana, mas, em vez disso,
há demonstrações - informou-me Clara.
Vi que o interior espaçoso do moinho tinha sido dividido por uma parede
de vidro pela qual era possível ver os crackers a serem feitos, enquanto
à direita estavam as montras da loja de artigos natalícios e a lateral
de uma cabana que dizia «Gruta do Pai Natal», que mais parecia um
barracão de jardim.
Por cima de nós, num terraço a que se chegava por umas escadas de metal,
ficava o café.
Ainda era bastante cedo, mas o lugar já estava azafamado. Ao fundo
ouvia-se alguma espécie de música eletrónica... ou som eletrónico,
fosse como fosse, pois conjurava o vento a assobiar entre árvores
nevadas, pingentes de gelo a tinir, sinos de trenós a tilintar... estava
muito bem feito e era um grande avanço em relação às músicas pop de
Natal que costumavam passar a todo o volume nas lojas naquela altura
do ano.
Juntámo-nos a um grupo em frente a uma das montras e observámos uma
negra esguia e elegante de cabelo grisalho e um homem alto e idoso de
cabelo improvavelmente escuro, com risco ao meio e colado à cabeça a
construírem crackers grandes e com decorações intricadas. Não me parece
que pudesse ser tão fácil como eles davam a entender.
Era bastante hipnotizante, observar os dedos a reunir agilmente os
vários componentes: centro de cartão, as tiras de cartão explosivo,
piada, chapéu e um pequeno brinde, embrulhando tudo muito
profissionalmente em papel e prata com um padrão antes de amarrar as
pontas com uma fita.
Havia um painel informativo junto à montra, mas Teddy estava demasiado
impaciente para me deixar demorar. Em vez disso, dirigiu-se para as
traseiras da sala, onde uma placa indicava o museu.
Também aí tudo parecia fascinante, com a história do moinho, do fabrico
dos crackers e da própria família Marwood, que parecia ser quaker e,
à semelhança de muitos dos primeiros Amigos proprietários de fábricas,
benevolente e atenciosa quanto ao pessoal empregado.
- Vejam só estas caixas antigas de crackers nos expositores! - exclamei,
fascinada. - Adoro esta caixa do jardim zoológico. Acha que é dos anos
mil novecentos e sessenta? - perguntei a Henry.
- É provável, a avaliar pelas roupas que as crianças estão a usar na
frente da caixa - concordou ele.
- Vamos ter de a trazer cá noutro dia, querida, para que possa ver as
coisas com mais calma - prometeu Clara. - Depois do Natal, quando
reabrirem.
- Isso vai ser no Ano Novo... se ainda estiveres por cá, claro - disse
Lex.
- Esperamos que esteja - desejou Henry. - Vamos. O Teddy acaba de entrar
na loja de Natal.
- A entrada para a Gruta do Pai Natal é mesmo ao lado - explicou-me
Lex enquanto avançávamos por entre fileiras de bolas reluzentes, um
arco-íris de fitas metálicas, grinaldas de luzinhas e grandes pilhas
dos vários tipos de crackers de Marwood. - Sou sempre eu que o levo
e o mantenho ocupado enquanto a Clara e o Henry procuram coisas para
lhe encher a meia.
Teddy reapareceu por trás de um urso polar de arame iluminado e,
dando-nos novamente as mãos aos dois, puxou-nos na direção da porta
em arco com a placa a dizer «Entrada para a Gruta do Pai Natal».
- Parece que vão os dois - disse Clara, divertida. - Até logo.
Havia uma fila de crianças excitadas que se alongava desde a entrada,
por uma cena de abetos iluminados e outras luzinhas e por uma pequena
ponte de madeira que levava à porta do chalé do Pai Natal. Ao avançarmos
o suficiente, e quando a cortina da porta era afastada para deixar
entrar a criança seguinte, já víamos o próprio homem, sentado numa
grande cadeira junto a uma lareira artificial acesa e a reluzir.
As crianças e os pais eram recebidos à porta por um elfo adolescente
alto e vestido de verde, de cara escura e séria, óculos de armação de
massa e um sorriso muito querido.
As crianças deviam sair pelo outro lado, pois não voltámos a ver nenhuma
delas. Provavelmente, essa saída dava diretamente para a loja de novo,
pensei eu enquanto avançávamos pela ponte, parando junto a um cercado
com renas grandes.
A mais próxima emitiu subitamente um ruído mecânico e, mexendo a cabeça
para cima e para baixo, disse alegremente:
- Olá, chamo-me Rudolfo!
- Olá, Rudolfo - disse Teddy, fitando-o com um ar desconfiado, mas
aquela parecia ser a totalidade do repertório da rena, que se calou
até a ouvirmos repetir exatamente o mesmo dez minutos depois, quando
finalmente chegámos à porta.
- Está preparado para o próximo, Nicolau? - perguntou o elfo à porta,
virando-se para espreitar para trás por um espacinho entre as cortinas.
- É o verdadeiro nome do Pai Natal... São Nicolau - sussurrou Teddy.
- O tio Henry contou-me.
- Manda entrar! - respondeu uma voz aguda e aflautada.
A gruta estava escura, mas distinguíamos o Pai Natal pela luz da lareira
e umas quantas lanternas foscas. Era um homem minúsculo e de ar
velhíssimo, com o seu próprio cabelo branco-prateado e uma longa barba.
Tinha estado a beber uma refrescante chávena de chá, mas passou a
chávena vazia a outro elfo e perguntou:
- Oh, oh, oh, e quem é que temos aqui?
Teddy aproximou-se dele.
- Chamo-me Teddy Mariner e tenho oito anos. - Depois franziu o rosto
e acrescentou num tom desconfiado: - És muito pequeno e velho, e estás
muito diferente de quando foste à minha escola ontem.
- Valha-me Deus, será que voltei a mudar de tamanho? - exclamou o Pai
Natal, com uma rapidez digna de elogio. - Quando passo tempo longe da
Lapónia, nunca sei como é que vou acordar. Amanhã até posso ser alto
e negro.
- Também mudas de cor? - perguntou Teddy, impressionado e de olhos
esbugalhados.
- Sim, é um dos meus poderes mágicos.
- Eu acho que agora estás bem, apesar de seres mais pequeno do que os
teus elfos - disse-lhe Teddy.
- Obrigado. Então se calhar por hoje fico assim.
- Posso pedir-te uma coisa, Pai Natal?
- Força - disse o Pai Natal, com atenção.
- Achas que a minha mamã me traz um pónei quando vier passar o Natal
connosco? Eu pus isso no cimo da lista que te mandei.
O Pai Natal comprimiu os lábios e refletiu.
- Como é que ela vai viajar? De carro ou de comboio?
- De comboio, porque não sabe conduzir.
- Que pena - disse o Pai Natal, a abanar a cabeça. - Não deixam entrar
póneis nos comboios. Acho que ela vai ter de te trazer outra das coisas
da tua lista. Lembras-me de mais coisas que lá puseste?
- Um castelo e uns dragões para viverem lá. Uma picareta e uns óculos
de proteção a sério, de geólogo... e todos os livros da Narnia, numa
caixa. Vi-os na loja de Great Mumming e lá têm um jogo de piratas com
uma arca do tesouro feita de madeira e cheia de moedas de ouro. - Fez
uma pausa. - Se recebesse o pónei, ia precisar de um novo chapéu de
montar, porque o velho já me está pequeno... oh, e gostava de umas tintas
a sério como os artistas têm, porque já sou demasiado crescido para
guaches e, seja como for, escorrem para todo o lado. Se calhar quando
for crescido vou ser artista, como a Meg. - Apontou para mim, que estava
na penumbra ao lado de Lex. - Ia ser jóquei mas o Lex diz que vou ser
demasiado grande para isso, como ele.
- Desconfio que ele deve ter razão, pois tens oito anos e és quase da
minha altura...
- Mas tu não és muito alto para um adulto, pois não?
- Não, isso é verdade: acho que viver acima do Círculo Ártico deve ter-me
atrofiado o crescimento.
- Mas todos os teus elfos são muito grandes... eles não vivem lá também?
Teddy olhou para a ajudante mais próxima, que era uma jovem alta e pálida
que me fazia lembrar um ruibarbo e que tinha orelhas pontiagudas presas
ao gorro verde. Depois inclinou-se e sussurrou:
- Eu sei que aquela senhora está só a fingir que é um elfo, porque costuma
trabalhar na Loja do Natal, mas o que está à porta é a sério.
- De vez em quando preciso de ter substitutos que me ajudem - sussurrou
o Pai Natal em resposta, num tom sério. - A maioria dos elfos a sério
ainda está ocupada a fazer os últimos presentes que vão no trenó.
- Mas tu só trazes os presentes que vão para as meias de Natal, não
é?
Eu começava a sentir que, independentemente de quanto pagassem ao Pai
Natal, não era o suficiente. Perguntei-me se seria submetido àquele
tipo de interrogatório por muitas crianças. Não admirava que a fila
avançasse tão devagar!
- Tens razão, levo presentes suficientes para encher as meias, talvez
um ou outro para as crianças de famílias demasiado pobres para comprarem
presentes - respondeu.
Teddy suspirou.
- Acho que pedir o pónei foi um exagero. São muito caros.
A ajudante alta e pálida começava a dar sinais de inquietude, pelo que
claramente já tínhamos usado o nosso tempo... e um pouco mais.
- Despede-te do Pai Natal, Teddy - disse-lhe Lex. - Há muitas outras
crianças à espera para o verem também.
Teddy, que tinha estado descontraidamente apoiado no ombro coberto de
veludo vermelho do Pai Natal enquanto conversavam, endireitou-se com
relutância.
- Aposto que também vão ficar surpreendidas ao ver que ele é tão pequeno.
Adeus, Pai Natal, até para o ano!
O Pai Natal levou a mão a um saco de serapilheira e tirou de lá um
embrulho num tom garrido.
- Toma lá um pequeno presente para a viagem.
Até as luzes subtis da Loja de Natal me pareceram ofuscantes quando
saímos por outra cortina, obrigando-me a pestanejar.
- Venham, está na hora do almoço - disse Lex.
Henry e Clara estavam à nossa espera numa mesa do café lá em cima, com
sacos de compras ao lado das suas cadeiras.
Teddy contou-lhes tudo acerca do Pai Natal e das suas incríveis
capacidades de mudar de tamanho e de cor. Depois desembrulhou o seu
presente, que era um grande ovo prateado, dentro do qual estava um
dragão de plástico dourado e roxo, com asas que se mexiam para cima
e para baixo.
- Ele sabe mesmo o que eu quero, por isso deve ler as listas todas -
disse Teddy, impressionado. - Acham que isto quer dizer que também vou
receber o castelo?
- Não sei - disse Lex. - Vais ter de esperar para ver.
Pedimos o menu especial para crianças para Teddy, que vinha dentro de
uma caixa de cartão com um padrão de renas. Os restantes comemos apenas
tostas de queijo e tomate em fatias grossas de pão integral. Deviam
ter uma supertosteira e, a seguir, fiquei com a sensação de ter
consumido a minha quota de fibra da semana.
Depois, Henry e Clara levaram Teddy a escolher outra bola de vidro para
a árvore e uma caixa de crackers, enquanto eu e Lex tomávamos um segundo
café em paz antes de irmos espreitar a galeria do artesanato e as
oficinas.
A empregada que nos trouxe o café cumprimentou Lex num tom familiar
e lançou-me um olhar assassino.
- Mais uma ex-namorada? - sugeri num tom melífluo, para me vingar das
bocas sobre Mark. - Como a empregada do pub?
Ele encolheu os ombros e disse apenas:
- Às vezes sinto-me sozinho.
- Pois, também já ouvi falar da ama do Teddy... Flora, não era?
Ele pareceu espantar-se e depois ficou com um ar embaraçado.
- Oh, isso não passou de um mal-entendido. A Flora tinha uns dezassete
anos quando veio viver com a Deirdre aqui em Starstone Edge e eu
andava... bom, nessa altura andava ocupado. Ela era mais ou menos da
idade da minha irmã mais nova, por isso depois, quando passou a ser
ama do Teddy, eu continuei a vê-la assim. - Calou-se por uns momentos,
meditabundo. - Estava sempre a pedir-me que fizesse coisas, como
levá-la a Great Mumming ou a dar uma volta de carro para praticar a
condução antes do seu exame... e eu acedi, uma ou duas vezes. Foi só
isso: qualquer outra coisa não passou de imaginação dela.
Bem, ele havia de saber como isso era, pensei eu.
- Mas já deixei de convidar quem quer que seja para sair, porque todas
querem um compromisso maior do que aquele de que eu sou capaz. Não me
parece que seja justo para elas.
Imagino que, depois de se perder o amor da nossa vida em circunstâncias
trágicas, seja difícil conformarmo-nos com uma segunda escolha, mesmo
passado tanto tempo... sobretudo sentindo ainda um grande peso de culpa
pela falecida mulher.
- E tu? - perguntou-me ele de repente. - Andas com alguém? Quero dizer,
para além do Mark.
- Olha - ripostei entre dentes cerrados -, deixa de me irritar com essa
história do Mark! Ainda agora o conheci e não tenho o mínimo interesse
romântico por ele. Okay?
- Okay - concordou ele. - Mas não tenho a certeza de que ele tenha a
mesma atitude em relação a ti.
- Então é bom que aprenda a ter - disse-lhe eu. - E não, não ando com
ninguém.
Depois achei que a minha resposta poderia dar-lhe a impressão de que
isso acontecia por ninguém estar interessado, em vez de ser a escolha
que realmente era, pelo que lhe disse:
- Fiquei noiva do Rollo Purvis há seis anos. Isso poderia ter acontecido
antes, só que a mãe dele não gostava mesmo nada de mim e era ela que
lhe pagava a renda, o carro e tudo.
- Não resultou?
- Não, mas não foi por causa da mãe. Ele pediu-me em casamento
imediatamente antes de ir para o seu retiro anual de escrita criativa
nos Estados Unidos, mas depois aconteceu uma coisa a seguir a ele voltar
e... eu rompi o noivado.
Ele não me perguntou o que tinha acontecido. Talvez pudesse ver na minha
cara que não era algo de que eu quisesse falar.
- Mas ele ainda anda por aí, não anda? A Clara mencionou que ele tinha
telefonado lá para casa.
- Mantivemo-nos em contacto, mas apenas como amigos... foi ideia
dele... Mas já não, desde que tentou usar-me para chegar ao Henry!
- Então, se não andas com ninguém desde que o teu noivado terminou,
o que queres da vida?
Ele parecia genuinamente curioso, pelo que lhe disse:
- Gostava de ter um pequeno chalé no campo. Todos os meus amigos casaram
e têm família, e alguns já saíram de Londres. A Fliss foi a última...
lembras-te da Fliss? Alta, de cabelo cor de areia e sardas, a estudar
design gráfico?
Ele assentiu com a cabeça.
- Partilhámos casa durante séculos, mas ela acabou de casar e
apercebi-me de que já não há nada que me prenda a Londres.
- Mas não é mais fácil obteres encomendas se estiveres em Londres?
- Já não, e também tenho contactos lá: há uma galeria que expõe obras
minhas. Seja como for, consto do website da Sociedade Real de
Retratistas e é por aí que me chegam a maioria das encomendas. Foi onde
a Clara me encontrou, depois de ver o retrato que fiz de uma amiga dela.
- Uma das estranhas coincidências da vida - disse ele, ligeiramente
sardónico. - De todos os pintores que devem estar nesse website, ela
foi escolher-te a ti.
Fitou-me por um momento, a franzir o sobrolho como se tentasse
decifrar-me de novo, e depois levantou-se.
- Anda, vamos dar uma vista de olhos rápida pelo resto.
Podia-se aceder à galeria e à loja de artesanato por uma porta naquele
piso, mas não me foi permitido demorar quer numa, quer noutra, apesar
de alguns dos quadros parecerem excelentes e de haver vários quadros
incríveis de papel recortado, um ou dois literalmente a saltar das
molduras.
- São feitos pela Tabby, a mulher do Randall Hesketh, que gere o moinho.
Ela tem uma oficina lá em baixo. Mas hoje não vamos ter tempo de os
ver com atenção, porque os outros já devem estar quase prontos para
ir embora.
- Adoraria voltar e ver as coisas com mais calma, mas acho que não vou
ficar por cá tempo suficiente para isso - comentei, seguindo-o a
contragosto e descendo as escadas. Havia oficinas variadas no piso
térreo: joalheiros, oleiros, peleiros, pintores... A última a que
chegámos foi a de Tabby, a mulher de Randall. As oficinas tinham portas
de estábulo, calculei que assim quem trabalhava lá dentro podia abrir
a parte de cima conforme quisesse ser visto ou não. A de Tabby estava
aberta e, ao fundo do estúdio, de costas viradas para nós, encontrava-se
uma mulher alta e esguia, de cabelo comprido e castanho-escuro,
concentrada e debruçada sobre algo na mesa à sua frente.
Havia quadros de papel recortado pendurados nas paredes, materiais
empilhados e enrolados por todo o lado e pedaços de papéis ocupavam
o chão à volta dos pés dela. Estava tão absorta que nem me parecia que
desse por alguém a espreitar.
- Não vamos incomodá-la - disse Lex em voz baixa, afastando-se. - De
vez em quando encontro-me no pub de Little Mumming com a Tabby e o
Randall, e também com o Jude Martland e a mulher, a Holly, outros amigos
que vivem perto. Mas ultimamente não, porque a Tabby e o Randall tiveram
um bebé há uns meses e a Holly já vai no terceiro, portanto, os meus
amigos andam a procriar como loucos, tal como os teus.
- É da idade - disse eu, distraidamente. - Chegamos a meio da casa dos
trinta e apercebemo-nos de que, se queremos filhos, precisamos mesmo
de avançar.
Ele dirigiu-me um olhar indecifrável, mas não disse nada. Quando
passámos pelas portas basculantes e regressámos ao moinho, vimos Clara
e Henry à nossa espera. Teddy estava a assistir a outra demonstração
de crackers e levámo-lo connosco ao sair.
- Vi a Mercy na loja - disse Clara a Lex. - Tinha o bebé da Tabby...
que coisinha mais fofa.
- Nós vimos a Tabby na oficina, mas não a incomodámos - respondeu ele.
Regressámos todos ao carro e Lex à sua carrinha de caixa aberta.
Seguimo-lo estrada abaixo, mas tivemos de esperar que um ciclista
passasse e, quando arrancámos, ele já tinha desaparecido.
- Eu disse-lhe que os Martland viviam em Little Mumming, não disse?
- perguntou Henry, virando para a aldeia. - Todos os anos, na Noite
de Natal, celebram uma cerimónia especial no relvado, mas não encorajam
forasteiros a ir, pelo que nunca fui. Nós também não quereríamos que
nos invadissem os nossos rituais do Solstício, afinal.
- Grande probabilidade de isso acontecer, quando às vezes o tempo está
tão mau que nem o Fred do pub consegue participar e não há mais do que
uma mancheia de pessoas - comentou Clara.
- Antes do reservatório, qualquer pessoa da aldeia capaz de subir a
colina ia - disse Henry. - Havia uma procissão à luz de archotes. Claro
que primeiro alguém subia para atear a fogueira e as tochas à volta
da pedra.
- Hoje em dia, alguém costuma usar a moto-quatro de Underhill - disse
Clara. - E o Velho Inverno vai também para entrar na caverna antes de
o resto de nós chegar.
Teddy estava arrasado pela excitação e ia meio a dormir ao meu lado,
de dragão de plástico na mão.
Seguimos pelo caminho mais longo para regressar a casa, mas Lex devia
ter-se arriscado pela passagem, pois chegara primeiro. Eu não fazia
ideia de que ele fosse voltar e partira do princípio de que iria
diretamente para a Terrapotter.
- O Lex despachou-se! Ele ia fazer uma paragem para nos trazer o azevinho
- disse Clara, surpreendida. - Espero que não se tenha esquecido.
Contudo, encontrámo-lo no átrio, ao lado de um monte de azevinho -
carregado de bagas vermelhas - e de outro de hera emaranhada, que Tottie
e Sybil tinham apanhado nessa manhã na propriedade de Underhill depois
da sua cavalgada.
Den já tinha passeado Lass, pelo que Henry foi diretamente para o seu
escritório. Clara disse que delegava a colocação das plantas em mim,
Lex e Tottie.
- Bem, foi para isso que voltei, afinal - disse Lex, e foi buscar o
escadote.
Teddy foi assistir a um DVD na sala da manhã e eu desconfiava que
acabaria por adormecer ao som das cantorias da Disney.
Usando arame de florista, Lex entrelaçou hera e azevinho em torno de
um grande lustre redondo de madeira no átrio, enquanto eu e Tottie
decorávamos os lintéis das lareiras e enfiávamos raminhos verdes por
todo o lado, até a casa ficar com um ar mais festivo do que antes.
Teddy, corado de sono, apareceu precisamente quando acabámos e em
seguida Den saiu da cozinha com o carrinho do chá. Ao som da loiça a
tilintar, ou talvez devido ao cheiro de pastéis quentes e barrados com
manteiga, as portas de Clara e Henry também se abriram, e, por uns
momentos, o átrio transformou-se numa daquelas casinhas meteorológicas
de madeira, só que com vários ocupantes a surgir nas portas.
Lex disse que a sua intenção era voltar para casa antes do lanche, mas
não conseguiu resistir aos pastéis. Depois pediu para ver o retrato
de Henry.
Ficou em frente ao quadro no mais completo silêncio durante séculos,
antes de me dirigir mais um dos seus olhares demorados e intrigados.
- Tinha-me esquecido de como és uma boa artista até ter visto o retrato
da Clara, e este vai ficar igualmente fantástico. Sempre levaste o teu
trabalho muito a sério, mesmo quando éramos estudantes.
- Tu também - recordei-o eu. Isso fora algo que tínhamos em comum e,
com frequência, fazíamos parte do pequeno grupo de alunos que
continuavam a trabalhar até altas horas, quando o zelador nos mandava
embora. Esse impulso criativo criara um laço entre nós.
Eu via que ele estava a lembrar-se disso e a ter dificuldade em enquadrar
isso com a pessoa que me julgara ser durante todos aqueles anos.
Fitou-me, franzindo o sobrolho por uns momentos, e depois virou-se e
foi-se embora sem mais palavra.
Quanto a mim, sentia-me demasiado cansada para me instalar a fazer o
que quer que fosse, pelo que me limitei a enviar uma longa mensagem
de correio eletrónico a Fliss, falando-lhe do moinho, das provocações
de Lex acerca de Mark e, por fim, do que dissera ao ver o retrato de
Henry...
Estava tudo um bocado confuso, mas mesmo assim mandei-o.
Ao jantar, Clara disse que, enquanto enfeitávamos a casa com as plantas,
ela avançara um pouco mais nas suas memórias e que a parte a que chegara
agora a fizera chegar a umas quantas conclusões interessantes. Aquilo
parecia misterioso, sobretudo quando acrescentou enigmaticamente que
havia presentes de todas as maneiras e feitios e que todos eram
bem-vindos. Acho que a sua mente devia estar concentrada nalguma outra
coisa.
Depois de Teddy ter ido para a cama, todos os seus presentes foram
levados para a sala de estar e tivemos uma maratona de embrulhos, antes
de os escondermos no grande armário debaixo das escadas, a postos para
serem colocados à volta da árvore na véspera de Natal.
O meu amontoado de presentes continuava escondido no torreão, mas dei
a Clara o dragãozinho com enchimento de feijões que tinha comprado na
Preciousss para a meia de Natal de Teddy, e ela disse que o dragão
poderia guardar as moedas de ouro no fundo até chegar finalmente a
véspera de Natal.
Clara
O plano de Lady Leamington revelou-se bom. Muitas pessoas comentaram
que Nessa estava a engordar muito, mas ninguém parecia adivinhar a
verdade.
Não vimos qualquer motivo para dizer a Nessa que as nossas suspeitas
eram corretas e que a mulher de George, Barbara, esperava um bebé pouco
depois da data prevista para o nascimento do dela.
Tínhamos planos para aquelas férias de verão. Henry tencionava
aventurar-se pelas partes mais remotas da Grécia, enquanto eu tinha
aberto caminho para um lugar de escavações arqueológicas na Turquia,
após o que viajaríamos juntos até ao início do semestre seguinte, em
setembro.
Por aquela altura, Nessa estava a tornar-se uma feminista bastante
militante, o que era uma mudança agradável em relação à sua anterior
imbecilidade romântica, e estava desejosa de completar o curso na
América. Antes disso, claro, Lady Leamington fê-la ausentar-se no final
do semestre, e mesmo a tempo: pouco depois, o bebé nasceu muito
prematuro e por cesariana.
Antes de partir para a Turquia, visitei Nessa na elegante maternidade
privada em que se encontrava.
Fiquei satisfeita quando a enfermeira que me levou ao seu quarto me
disse que, apesar de ter nascido tão antes de tempo, a menina tinha
uns bons dois quilos e meio e estava bem. Pálida e abatida, Nessa
disse-me que não a vira, nem queria ver.
- Vou recuperar em casa da minha madrinha e vamos dizer a toda a gente
que fui operada ao apêndice.
- Um apêndice saudável de dois quilos e meio - comentei com ironia,
mas ela nunca tinha tido grande sentido de humor e o comentário
passou-lhe despercebido.
- Acho que nunca mais vou voltar a Inglaterra... e, a partir de agora,
vou concentrar-me na minha carreira - disse ela, antes de desatar a
falar sobre como os homens enganavam as mulheres com a noção do romance
para as dominar e controlar, e muito mais desse género. Quando me
levantei para me ir embora, ela, de olhos lacrimejantes, implorou-me
que mantivéssemos o contacto.
De saída, pedi para ver a bebé, que dormia numa sala branca e clínica
com muitos outros recém-nascidos, todos eles muito semelhantes.
Lady Leamington tratara de organizar uma adoção privada: o seu
motorista e a mulher não tinham filhos, e eu esperava que isso corresse
bem...
Nessa escreveu-me várias cartas entusiasmadas, glorificando a sua nova
vida, mas essas missivas foram lentamente escasseando, até que, por
fim, deixaram de chegar. Tardaria muito mais, contudo, a que eu e Henry
deixássemos de nos perguntar como e onde estaria a bebé...
Ter conhecimento do comportamento infame de George (já para não falar
de vários outros episódios desagradáveis dos quais viemos a saber
depois) afetaria a nossa relação com ele para o resto das nossas vidas.
Ele, claro, não fazia ideia de que estávamos a par do que acontecera
com Nessa e, por sua vez, tampouco sabia da gravidez dela. Não houve
qualquer rutura clara: gostávamos da mulher dele, Barbara, e da filha
de ambos, Sybil, mas privávamos o menos possível com ele.
24
Um Lúcio
Den levou Tottie à igreja no domingo de manhã e Teddy foi com eles -
não à igreja, mas ao pub com Den, para ir brincar com o neto de Fred
Golightly.
Clara estava a trabalhar e eu e Henry fomos para o estúdio, para aquilo
que eu achava que poderia ser a nossa última sessão. Ainda faltavam
uns dias para a chegada de River, pelo que eu teria acabado os dois
retratos com bastante tempo de folga, caso continuasse a pretender
partir com ele.
A quietude instalou-se na casa à nossa volta, sem contar com o ressonar
reverberante de Lass ao adormecer aos pés de Henry e com o tiquetaquear
do relógio renascido na estante. Alguém tinha acertado as horas e devia
dar-lhe corda, mas não era eu.
Clara estava a dedicar-se às suas memórias e, como continuava a escrever
acerca dos seus tempos de Oxford, por vezes entrava no estúdio para
fazer alguma pergunta a Henry.
Eu tinha acabado os últimos retoques em Lass e estava a contemplar fazer
uns pequenos ajustes no fundo quando Clara regressou pela terceira vez
e disse que, se tivéssemos concluído a sessão, gostaria que ambos
fôssemos ao seu escritório para nos mostrar uma coisa.
Eu pensei que ela devia ter passado para o seu computador de trabalho
e conseguido decifrar outra inscrição - feito uma «junta», como ela
lhe chamava - ou algo do género, mas, quando limpei as coisas e segui
Henry até ao escritório dela, só o ecrã do portátil estava a brilhar.
- Encontrei uma fotografia de uma das raparigas do meu primeiro ano
na Universidade de Oxford e gostaria de lha mostrar, Meg - disse Clara.
- Chamava-se Nessa Cassidy.
Ela dirigiu a Henry um olhar que eu não consegui interpretar e depois
mostrou-me um retrato de uma mulher rechonchuda, com vinte e muitos
anos, ou talvez trinta e poucos, cabelo muito claro, um nariz
ligeiramente empinado, um lábio superior curto como o de um bebé e uma
expressão militante que não condizia com todo aquele ar bonitinho.
- Nessa Cassidy? Acho que ouvi falar dela - disse eu. - Não foi uma
escritora lésbica e feminista norte-americana proeminente, há muito
tempo? Havia um livro...
- É isso mesmo - disse Clara -, bem antes do seu tempo, claro. Voltou
para os Estados Unidos para completar os estudos, depois de concluir
o primeiro ano em Oxford, e teve um grande sucesso com o livro que
escreveu, O Beijo da Borboleta. Mas morreu tragicamente jovem, num
acidente de viação.
Examinei-a com mais atenção e franzi o sobrolho.
- Ela parece-me... algo familiar. Mas imagino que já tivesse visto essa
fotografia nalgum lugar.
- É uma fotografia antiga, mas eu e o Henry lembramo-nos muito bem dela.
De facto, estas memórias têm regressado desde que comecei a escrever
essa parte da minha autobiografia.
- Lembra-se de quando chegou e lhe dissemos que nos fazia lembrar
alguém? - perguntou Henry. - Teve esperança de que pudesse ser a sua
mãe.
Assenti com a cabeça, intrigada.
- Nós não tínhamos conhecido a sua mãe, mas apercebemo-nos depois que
era com a Nessa Cassidy que se parecia. Não se percebe nesta foto, mas
ela tinha os seus olhos invulgares azul-esverdeados, cabelo
louro-platinado e pele pálida.
- A sério? - Olhei de novo, com mais interesse. - É difícil distinguir
os traços nesta foto, mas, para além da cor, não se parece muito comigo,
pois não? - Fiz uma pausa e depois acrescentei lentamente: - Mas
parece-se um pouco com a minha mãe!
Virei-me para olhar para os dois e Henry dirigiu-me um sorriso
encorajador, como se eu fosse uma criança a tentar montar um puzzle.
- O que se passa, querida - disse Clara -, é que pensamos que é capaz
de haver uma ligação entre a sua mãe e a Nessa.
- Que tipo de ligação? - perguntei, embora a minha mente já tivesse
começado a unir as peças, à semelhança do que Clara fazia com as suas
juntas no computador.
- A Nessa teve uma filha ilegítima antes de voltar para os Estados
Unidos, e tudo foi mantido em segredo. Achamos que a menina poderá ter
sido a sua mãe.
- Mas só porque a cor do meu cabelo e dos meus olhos vos recorda essa
pessoa, isso não quer necessariamente dizer que haja uma ligação -
protestei.
- É um pouco mais do que isso, e a Meg acaba de dizer que a sua mãe
se parecia com a Nessa - disse Henry. - Mas vamos para a sala para
falarmos disto mais à vontade. Os outros ainda vão demorar bastante
a chegar e temos muito para lhe contar.
Depois de nos instalarmos à volta da lareira, Henry disse:
- Receio bem que tudo isto vá ser um choque para si, embora esperemos
que seja um choque bom. Nós tivemos tempo para nos habituarmos à ideia,
pois já desconfiamos de que seja neta da Nessa há uns dias, sobretudo
depois de nos ter dito que a sua mãe foi adotada e que tinha a mesma
cor invulgar de cabelo e de olhos que a Meg.
- Mas isso não pode ser algo exclusivo de nós, e o facto de a minha
mãe ter sido adotada também pode ser apenas uma coincidência -
ressalvei.
- Nunca conhecemos ninguém que se parecesse com a Nessa até lhe termos
posto a vista em cima - afirmou Henry.
- Deixe-me falar-lhe da Nessa, Meg - disse Clara, e descreveu o seu
primeiro semestre em Oxford e ter conhecido a jovem anglo-americana
no quarto ao lado do dela.
- A Nessa era pequena (aquilo a que chamavam na altura uma Vénus de
Bolso) e a maior parte das pessoas achava-a muito bonita. Levava os
estudos a sério e ambicionava dedicar-se ao jornalismo, mas noutros
campos podia ser muito tola e dizia muitos disparates românticos acerca
dos homens e do amor. Mas tinha paixonetas por raparigas, incluindo
eu própria, por isso desconfiei de que era lésbica bem antes de ela
o saber.
- Eu acho que, no fundo, ela saberia, mas não queria pensar nisso, por
desejar conformar-se à norma. Estávamos em mil novecentos e cinquenta
e nove, afinal - atalhou Henry.
- É bem verdade, meu querido - disse Clara. - A Nessa falava que se
fartava de procurar o seu perfeito e romântico cavaleiro andante e
depois, infelizmente, convenceu-se de que o tinha encontrado... e ele
aproveitou-se dela.
- Mas casou-se com outra pessoa antes de ela se ter sequer apercebido
de que estava grávida - terminou Henry.
- Tudo isso é muito triste - disse eu, ainda nada convencida de que
houvera alguma ligação -, mas não acho mesmo...
Clara assumiu o seu papel de rolo compressor humano e continuou como
se eu não tivesse falado.
- Não nos esqueçamos de que ainda nem tínhamos chegado aos anos
sessenta, por essa altura, e a gravidez já ia bem avançada antes de
ela perceber o que estava a acontecer. Eu julgava que ela tinha só
engordado muito. Mas, fosse como fosse, ela contou-me o que se passava
e depois decidiu contar à madrinha, que vivia em Londres e foi quem
a ajudou a esconder a coisa.
- Mas certamente teve de deixar a universidade quando se começou a notar
a barriga? - perguntei, interessada apesar de continuar incrédula.
- Ela conseguiu disfarçar até ao final do semestre. Depois a bebé nasceu
prematura, por cesariana, e foi logo adotada - disse Henry.
- Que terrível para ela - disse eu, compadecida. - Passar por tudo isso
e depois ter de abrir mão da bebé.
Eles voltaram a entreolhar-se, como gémeos a partilharem um pensamento.
- Ela queria voltar para a América e deixar tudo para trás - replicou
Clara. - Coisa que fez, e acabámos por perder o contacto.
- Continuo a não sentir que isso tenha qualquer ligação a mim - insisti.
- Qualquer pessoa poderia ter olhos e cabelo da cor do meu e da minha
mãe, e lá por essa Nessa ter tido uma filha e a minha mãe ter sido
adotada...
- Há um pouco mais a acrescentar, minha querida - observou Henry. -
E não deixa a minha família muito bem-vista.
Mas que diabo viria a seguir?
- Quando eu e o Henry a vimos sentada no sofá com o Mark no outro dia,
a semelhança dos vossos perfis tornou-se demasiado impressionante para
passar despercebida. Confirmou o que já suspeitávamos.
Fitei-os, atónita.
- Mas... eu não me pareço nada com o Mark! E o que é que ele tem a ver
com isto?
- No tom de pele e de cabelo, não têm nada a ver, mas os malares altos,
o nariz reto e o queixo angular são iguaizinhos - explicou Clara. -
Também se parece um pouco com o Henry. É uma característica da família
Doome.
- O que não é surpreendente, já que somos todos parentes - disse Henry.
- Receio bem que o homem que seduziu a Nessa fosse o meu irmão mais
velho, o George... avô do Mark. Ele visitou-me pouco depois de eu entrar
para Oxford e, infelizmente, nessa altura conheceu a Nessa.
- Ela era mesmo muito bonita, para quem apreciasse o seu género -
comentou Clara num tom desapegado.
- Não há dúvida de que ela era do género que George apreciava - continuou
Henry com secura -, e ele tinha sempre de ter o que queria, custasse
o que custasse.
- Tínhamos começado a instalar-nos e a desfrutar da vida universitária
e de estarmos juntos de novo - disse Clara. - Eu estava simplesmente
contente por a Nessa não nos seguir para toda a parte, como fazia ao
início. - Ponderou no passado e depois encolheu os ombros. - Éramos
muito jovens e estávamos concentrados em nós mesmos, suponho. A Nessa
foi passar o fim de semana a Londres, com o pretexto de ir visitar a
madrinha... mas eu tinha-a entrevisto a entrar num carro com George.
- Pois, isso sobressaltou-nos um pouco - disse Henry. - Suspeitávamos
de que se tinham mantido em contacto, mas esperávamos que a coisa
esmorecesse, porque ele estava noivo de uma herdeira. O meu irmão sempre
adorou dinheiro, desde que não tivesse de trabalhar para o ganhar.
- A Nessa era órfã e um dia viria a herdar uma fortuna, também - disse
Clara -, mas, nessa altura, os tutores dela davam-lhe uma mesada, que
era bem generosa.
O meu cérebro já estava a mil, tentando assimilar tudo aquilo.
- Então... acham mesmo que o George Doome era meu avô?
Clara assentiu com a cabeça.
- A Nessa disse-me que tinha combinado passar o dia com ele em Londres
antes de ir para casa da madrinha, mas antes disso foram a um apartamento
que ele tinha pedido emprestado a um amigo e foi aí que ele a seduziu...
se bem que, pelo que ela me contou, esse termo seja demasiado moderado
para descrever o que aconteceu. O que é certo é que destroçou quaisquer
ilusões que ela tivesse acerca do romance e que finalmente a fez
reconhecer a sua verdadeira sexualidade.
- Coitada! Sinto tanta vergonha do George - comentou Henry.
- Ele sabia que a Nessa era uma herdeira e depois disse-lhe que não
sabia porque é que ela estava tão perturbada, já que ele ia casar com
ela - continuou Clara. - É claro que julgava que poderia deitar a mão
ao capital dela assim que casassem, não que teria de esperar até ela
fazer trinta anos, pelo que, quando isso veio à tona na grande cena
depois, ele foi mesmo mesquinho.
- Portou-se muito mal. Custou-nos muito perdoá-lo, se bem que, claro
está, ele nunca se tenha apercebido de que sabíamos o que tinha
acontecido... e também nunca chegou a saber da bebé - disse Henry.
- A Nessa foi taxativa: ninguém deveria contar-lhe - concordou Clara.
- E ele tinha engravidado a noiva pouco depois da Nessa, pelo que também
não parecia valer muito a pena contar-lhe.
Ela suspirou.
- Nessa altura as piores coisas eram simplesmente silenciadas. A Nessa
só queria ir embora e esquecer tudo. Não estava de todo interessada
na bebé e, depois de a adoção ficar concluída e de ela ir para a América,
a história pareceu acabar.
- Ainda bem que a mulher do George, a Barbara, nunca soube o que
aconteceu - disse Henry. - Era uma mulher amorosa que aturou muito ao
George ao longo dos anos, mas isso tê-la-ia mesmo magoado.
Por aquela altura, eu estava tão aturdida e confusa com tudo aquilo
que nem conseguia falar. Henry serviu-me um copo do hidromel de Tottie
e um uísque com água mineral para si e para Clara.
Quando finalmente recuperei a voz, disse:
- Continua a custar-me acreditar que a minha mãe possa ser a bebé da
Nessa. Não há qualquer prova concreta, pois não? Isto não é tudo uma
conjetura?
Contudo, mesmo enquanto falava, ia examinando as feições de Henry a
uma nova luz e a reparar em semelhanças com as minhas, embora o seu
rosto tivesse um ar mais ossudo e intelectual.
- Estamos bastante seguros do que dizemos, e um teste de ADN dar-nos-ia
provas concretas, se alguém as quisesse - respondeu Clara.
- Nós sentimo-la como parte da família assim que entrou cá em casa -
admitiu Henry. - Não sentiu o mesmo?
- Acho que sim - concordei, se bem que também ficara tão atónita ao
deparar-me com Lex à entrada que, na altura, não me atingira com tanta
força.
- Sempre nos perguntámos o que teria acontecido à bebé e esperávamos
que levasse uma vida feliz - disse Henry. Depois ele e Clara
informaram-me um pouco mais sobre o seguimento da vida e da carreira
de Nessa, com o sucesso precoce do seu livro feminista e o escândalo
de ela viver com uma amante quando ainda não se falava publicamente
de coisas desse género.
- Embora aquilo que aconteceu à Nessa tenha sido uma experiência
terrível, a verdade é que pareceu introduzir uma espinha dorsal de aço
em todo aquele manjar branco - disse Clara. - Dá para ver, pela foto
que lhe mostrei, que ela parecia uma Fada do Açúcar obesa e com atitude.
- A minha mãe parece uma Fada do Açúcar obesa sem atitude - disse eu.
- Mas vagueia como lanugem de cardo, para onde quer que a brisa a leve.
Ainda que, daquela vez, a brisa parecesse tê-la levado para longe de
tudo e todos.
- Temos de contar à Sybil que tem uma meia-irmã e uma sobrinha - aventou
Clara.
- Temos de contar a quem quer que seja? - protestei. - Quero dizer,
fico encantada, se for verdade, mas não vejo para que havemos de agitar
as águas ao fim de tanto tempo.
- É claro que temos. Nós temos praticamente a certeza disto e a Meg
tem de ser incluída na família, por mais tardia que seja a sua inclusão
- afirmou Clara.
- Sim, estamos muito felizes por a termos encontrado e não queremos
voltar a perdê-la! - concordou Henry. - Mas porque é que não
encomendamos os testes de ADN pela internet, para a deixar descansada?
Isso poderá revelar outros parentescos interessantes, também, o que
talvez seja divertido.
- Isso é verdade - declarou Clara. - É capaz de te inspirar a escrever
um pouco sobre a história da família, Henry!
Eu tinha estado a calcular mentalmente possíveis parentescos e era
complicado.
- Então... se isto for verdade, então o Henry é... meu tio-avô? A Sybil
é minha tia e o Mark... meu primo?
- Isso mesmo, por isso ganhou uma data de familiares de uma assentada!
- exclamou Henry.
- Mas contar à Sybil decerto irá perturbá-la sem que haja motivo para
isso...
- Ela já deve saber como era o pai. Ele e aquele velho réprobo do Piers
Marten eram farinha do mesmo saco, no que dizia respeito a mulheres
e jogo - disse Henry. - Não faltavam histórias reprováveis a circular
acerca deles de quando eram mais novos.
- A Sybil sempre conseguiu fechar os olhos a qualquer coisa que não
lhe agradasse - observou Clara. - E claro que, depois de ter casado...
com o Edmund Whitcliffe, um pastor metodista muito simpático e muito
mais velho do que ela, Meg... não viu muito o pai, porque o marido não
gostava dele.
Isso não me surpreendia: não me parecia que eu tivesse gostado dele.
Preferia de longe ter River como meu avô.
- Acho que deveríamos dar a notícia a Sybil e a Mark amanhã - sugeriu
Henry, para meu horror.
- E talvez devêssemos contar ao Lex ao mesmo tempo - sugeriu Clara.
- Eu sei que não tem qualquer parentesco consigo, exceto pelo meu
casamento, Meg, mas terá de ficar a saber e assim evitamos ter de
explicar tudo outra vez.
Lex! Entre todas aquelas revelações, eu não tinha pensado em como ele
reagiria à notícia! Não esperava propriamente que me acolhesse
calorosamente no círculo familiar, sobretudo passando a haver uma boa
hipótese de nunca vir a livrar-se de mim.
- Eu acho que estão a precipitar-se um pouco - disse eu. - Devíamos
ao menos esperar até termos a certeza.
- Nós temos a certeza, e um teste de ADN há de demorar, sobretudo agora,
tão perto do Natal - disse Clara. - Mas tenho estado a pensar, e
ocorre-me que talvez a sua mãe tivesse alguns documentos da adoção,
ou talvez até a certidão de nascimento, tendo em conta que foi uma adoção
oficiosa? Ela alguma vez mencionou ter algo do género?
- Uma vez disse-me que tinha levado a certidão de nascimento quando
fugiu, pois achava que era capaz de precisar dela quando quisesse tirar
o passaporte. Deve estar na arca de lata onde ela guardava coisas na
Quinta.
- Muito bem, nesse caso, poderemos encontrar lá alguma informação que
confirme quem era a mãe dela - sugeriu Clara.
Levantei-me, instigada por uma necessidade súbita de ter a certeza.
- Vou ligar ao River e ver se ele pode ir procurar.
Por sorte, consegui logo que me atendesse e ele respondeu que ia mandar
Oshan ao sótão ver da arca e que depois me telefonaria... coisa que
fez.
E o nome da mãe na certidão de nascimento era Vanessa Cassidy; pai
incógnito.
De repente, tudo parecia muito real. Ainda com o telefone numa mão algo
trémula, transmiti essa informação e, depois, a pedido de Henry, sugeri
a River que trouxesse a certidão de nascimento e quaisquer outros
documentos quando viesse ter connosco.
Tipicamente, River não me perguntara por que razão eu estava
interessada; não obstante, contei-lhe.
- Obrigada por teres encontrado a certidão, River. Isso quer dizer que
agora sei quem eram os pais biológicos da minha mãe e também que sou
da família dos Doome - concluí.
- Karma - disse ele, placidamente. - Os caminhos da Deusa são
misteriosos.
Depois acrescentou que partiria bem cedo na manhã seguinte para
Sticklepond e que passaria a noite em casa do amigo Gregory Warlock,
conforme planeado, chegando a Starstone Edge na tarde de terça-feira.
- Mas que agradável - exclamou Clara quando desliguei, passando-me
outro copo de hidromel. - Um brinde ao membro mais recente da família!
Dei por mim a brindar com eles, ao mesmo tempo que me sentia presa no
sonho mais louco de sempre.
Não tínhamos ouvido os outros a voltar, mas nesse momento a porta
abriu-se e Tottie perguntou:
- Já estão a emborcar?
- É uma pequena celebração... depois partilhamos consigo e com o Den
- prometeu Henry ao mesmo tempo que Teddy entrava, a brandir um pacote
comprido e embrulhado em papel de alumínio, que parecia uma espada algo
desgastada.
- Olha, tio Henry! O Fred deu-nos um lúcio que tinha no congelador e
o Den diz que vai prepará-lo para o Ano Novo!
- Espero que só tenha uma cabeça, então - respondeu Henry num tom sério.
- Eu verifiquei - garantiu Teddy, igualmente sério, e depois Den entrou
e levou o peixe para que não se descongelasse antes de tempo.
- Os lúcios são carnívoros - disse Clara. - Queremos comer um peixe
que come outros peixes?
- Bem-visto, minha querida - disse Henry. - Mas, se comemos peixe de
todo, suponho que não faça grande diferença.
- Eu nunca tinha ouvido falar de alguém que comesse lúcio - disse eu.
Den voltou a tempo de ouvir o meu comentário e afirmou que tinha uma
receita antiga para aquele peixe que gostava de experimentar.
Teddy perguntou se podia ver televisão na sala da manhã até o almoço
estar pronto e foi para lá, com Lass a fazer-lhe companhia. Assim que
deixou de poder ouvir-nos, Clara disse a Den e Tottie:
- Tenho uma coisa para vos contar! - E explicou-lhes o que tinham
descoberto acerca de mim.
- Não m’espanta, pois não? - disse Den.
- Que maravilhoso - exclamou Tottie num tom caloroso. - Quero dizer,
que triste que a sua mãe tenha sido adotada, mas temos um final feliz,
que é tê-la encontrado agora!
- Decidimos guardar silêncio até contarmos à Sybil, amanhã, e ao Mark
e ao Lex ao mesmo tempo - explicou Clara. - Mais logo apresentamos uma
versão simples ao Teddy.
- Ele vai ficar encantado - disse Henry, mas eu achava que o resto da
minha nova família era capaz de não ficar tão contente com a ideia...
- No outro dia ocorreu-me que a Meg e o Mark eram parecidíssimos - disse
Tottie. - Só que um era claro como a lua e o outro escuro como a terra,
por assim dizer. Mas era impossível não dar por isso - concluiu, antes
de procurar o avental de uma coleção enfiada por baixo da almofada de
um sofá, saindo com Den para o ajudar a preparar o almoço.
Senti-me bastante aturdida durante o resto do dia à medida que ia
assimilando tudo o que descobrira. Como verifiquei que não conseguia
ficar quieta e trabalhar, saí com Henry quando ele foi passear Lass.
Ao regressar, tive vontade de assinalar a situação de alguma maneira,
ainda que não soubesse bem como, pelo que fui direta ao piso de cima
e pintei o cabelo com a tinta de um tom de rosa-velho que comprara em
Great Mumming.
- Co’a breca! - exclamou Den, parecendo fugido do filme da Mary Poppins,
quando me viu descer as escadas. Depois abriu a porta da sala de estar
e anunciou: - Vejam lá se não é o lírio de Saron, não?
Depois da surpresa inicial, toda a gente pareceu gostar da mudança,
e Teddy disse que ia fazer outro retrato meu.
Clara explicou-lhe que tínhamos acabado de descobrir que eu fazia parte
da família Doome e depois fê-lo jurar segredo até toda a gente ficar
a saber, no dia seguinte.
- Também não há ninguém a quem eu pudesse contar - comentou Teddy.
- Bem, no caso de recebermos alguma visita ou telefonema, não fales
disso - disse-lhe Tottie.
- A mamã sabe?
- Ainda não - respondeu Clara. - Amanhã também lhe ligamos para lhe
contar.
De repente, Teddy teve uma ideia.
- Se a Meg é sobrinha do tio Henry...
- Sobrinha-neta - corrigiu Clara.
- Então... isso faz com que seja minha tia?
- Mais uma prima - disse Henry. - Por afinidade.
- Boa! - exclamou Teddy.
Telefonei a Fliss antes do jantar e dei-lhe a notícia portentosa. Ela
ficou muito entusiasmada, muito mais do que eu que, de facto, continuava
num estado de choque incrédulo.
- É como uma comédia romântica, não é, e tu és a heroína! A herdeira
perdida!
- Só que não era uma herdeira perdida, só uma parente ilegítima... e
o único candidato ao papel de herói romântico, para além do Mark, que
afinal é meu primo direito, é o Lex, que me odeia.
- Mas olha que num filme isso acabava bem, Meg.
- Sim, mas isto não é um filme e amanhã o mais provável é que pareça
um filme de terror, porque a Clara tratou de que o Lex esteja presente
amanhã de manhã quando contar a novidade à Sybil e ao Mark. Estou
apavorada, porque não acho que nenhum deles vá ficar tão encantado como
ela pensa que vão ficar... porque haveriam de gostar da ideia?
- Porque não haveriam de gostar? - contrapôs Fliss. - Quero dizer, o
Henry e a Clara estão encantados, não estão?
- Bem, sim, mas eles não foram apanhados de surpresa e os outros vão
ser. E não me parece que o Lex vá gostar nada da ideia, porque tenho
a certeza de que anda a contar os dias para me ver pelas costas para
sempre.
- Mas, agora que sabes que fazes parte da família, vais finalmente ter
de lhe dizer a verdade sobre o que aconteceu, não? - ressalvou ela.
- Não vejo porquê - respondi com teimosia. - Ele e o Al que pensem as
estupidezes que queiram acerca de mim! Também o mais provável era que
não acreditassem em mim.
- Tu sabes que tenho razão e que ele teria de acreditar em ti - insistiu
ela. - Liga-me amanhã e conta-me o próximo capítulo emocionante. Eu
vou estar aqui a morrer de tédio, porque o Cal só volta da viagem de
negócios na véspera de Natal.
- Não imagino que a poeira tenha assentado ainda por essa altura. Se
calhar acordo amanhã e descubro que sonhei tudo.
- Não, eu sou a tua ligação à realidade - disse ela.
Procurei Nessa Cassidy no Google e passei imenso tempo a olhar para
fotografias antigas online. Era inegável que, exceção feita à expressão
militante, era igualzinha à minha mãe.
25
Em Termos Familiares
Escusado será dizer que não dormi bem naquela noite, com tudo o que
dava voltas sem parar na minha cabeça, e a pensar na cena na manhã
seguinte, quando Clara e Henry contassem a Mark, Sybil e Lex o que tinham
descoberto.
Todos descemos muito cedo para o pequeno-almoço e Clara delineou os
seus planos: ela e Henry dariam a notícia a Sybil, Mark e Lex. Eu
continuava sem perceber porque haveriam de incluir Lex naquela fase,
mas as minhas objeções foram rejeitadas.
- Mais vale contarmos a todos de uma vez - disse ela. - Depois a Meg
pode entrar com a Tottie e o Den para fazermos uma pequena celebração,
todos juntos - acrescentou, muito à vontade. Eu desconfiava de que a
cena não seria tão acolhedora como ela a imaginava.
- Eu não - esquivou-se Den. - Eu não quero meter-me nessa reunião de
família ‘té a poeir’assentar, pois não?
- Não vai haver poeira nenhuma, e o Den faz parte da família - disse
Clara -, tal como a Tottie.
- Posso trazer o café quando me fizer sinal e ver com’é qu’a coisa vai
- concedeu ele.
- Então e eu? - quis saber Teddy.
- Podes entrar na sala de estar com a Tottie e a Meg - sugeriu Henry.
- Pronto, está tudo decidido - concluiu Clara. - Agora está na hora
de trabalhar um pouco antes que todos cheguem.
Ela e Henry foram para os seus respetivos escritórios e eu e o Teddy
fomos para o estúdio. Claro que eu continuava a não conseguir
concentrar-me no que quer que fosse, pelo que não sabia bem o que fazer.
Como iria Sybil - minha tia (ou meia-tia? E seria metade de uma tia
melhor do que não ter tia nenhuma?) - reagir à notícia? Ela devia ser
apenas uns meses mais nova que a minha mãe... e Mark, que se revelava
ser meu primo - seria que a sua atitude em relação a mim mudaria?
Por acaso, isso era capaz de ser uma coisa boa.
E depois havia Lex... Ocorreu-me uma ideia: iria ele pensar que eu já
sabia da ligação? Depois apercebi-me de que isso era um disparate, pois
como poderia eu saber? Sem tudo o que Clara e Henry sabiam da história,
eu nunca poderia ter descoberto.
Teddy começou a pintar-me de novo, desta vez com o cabelo cor-de-rosa,
enquanto eu mexia no iPad para ver se tinha mensagens de correio
eletrónico, mensagens ou chamadas perdidas.
Decerto esperava ter perdido o que quer que Rollo pudesse ter-me
enviado, mas, para minha surpresa, o fluxo de comunicação da sua parte
morrera por completo. Talvez o casmurro finalmente tivesse percebido
a mensagem e não estivesse apenas demasiado ocupado no seu evento em
York para me assediar.
Depois ocorreu-me um cenário ainda melhor: era possível que o evento
já tivesse chegado ao fim e, aceitando que não havia a mínima
possibilidade de eu alinhar nos seus planos, talvez Rollo já rumasse
a sul, como um pombo-correio brilhante e amuado.
Lex, Mark e Sybil tinham sido convidados para as dez da manhã e eu fui
para a minha salinha no torreão pouco antes para assistir à chegada
deles a partir da janela estreita: primeiro Mark e a mãe naquele monstro
grande e preto com tração às quatro rodas, e depois a familiar carrinha
de caixa aberta branca e surrada de Lex.
Dei-lhes um quarto de hora para se instalarem e depois, pé ante pé,
voltei de novo para o meu estúdio. Ouvia vozes vindas da sala, apesar
de a porta estar fechada.
Também me chegavam vozes provenientes da cozinha, incluindo a de Teddy,
pelo que me sentia como se estivesse sozinha numa espécie de limbo no
meu estúdio. Só eu e o velho relógio a tiquetaquear como uma
bomba-relógio.
O último retrato que Teddy fizera de mim ainda estava ali, afixado ao
seu pequeno cavalete, e era surpreendentemente bom, tendo em conta a
sua idade. Ele ia adorar a caixa de artista que eu lhe tinha comprado.
Coloquei os meus retratos de Henry e Clara em cavaletes adjacentes e
contemplei-os. Claro que não voltaria a tocar no de Clara, mas concluí
que o de Henry ainda precisava de um ou outro pequeno ajuste. Talvez
no dia seguinte...
De repente, a porta abriu-se, o que me assustou, e Tottie apareceu,
chamando-me:
- Venha! É para entrarmos agora, Meg.
Quando entrámos na sala, foi como se todos os olhares se fixassem em
mim e, nesse breve instante, reconheci algumas expressões que estavam
bem longe de serem alegres.
O rosto de Sybil parecia simultaneamente chocado e horrorizado, como
se ela tivesse chegado ao clímax de um filme de terror (talvez parte
do horror se devesse ao meu cabelo cor-de-rosa). O olhar de Mark era
duro e zangado, e Lex fitava-me daquela forma sombriamente introspetiva
que era tão difícil de interpretar. Se a nossa relação começara sequer
a melhorar um pouco, agora tínhamos voltado à estaca zero.
Nenhum deles ia acolher-me com umas boas-vindas arrebatadas, isso era
certo.
- Venha e sente-se aqui, Meg, entre mim e a Clara - disse Henry, dando
uma palmadinha no assento a seu lado. Tottie sentou-se à minha frente,
ao lado de Sybil, que continuava a fitar-me como se eu tivesse duas
cabeças, como o lúcio mutante.
- Bom, então aqui está a tua nova sobrinha, Sybil! - disse Henry.
- Eu... suponho que seja, se aquilo que diz é verdade, Henry - respondeu
ela com relutância, afastando por fim o olhar de mim. - Mas toda esta
história me parece tão incrível que, lamento, mas não consigo
acreditar. Quero dizer, eu sei que têm a certeza de quem é a avó da
Meg, mas não há qualquer prova de que o paizinho... - Sem acabar a frase,
calou-se.
- Acho que já ouvimos o suficiente para saber que só pode ser verdade,
mãe - disse Mark. - Quero dizer, agora que sei, até eu vejo que a Meg
tem as feições da família.
A sua expressão endurecida deu lugar a um sorriso retorcido.
- Então somos primos direitos, Meg.
- Mas com avós diferentes - disse Sybil. - E é claro que a mãe da Meg
era ilegítima.
- Lamento se tudo isto foi um choque para si - pedi-lhe desculpa. -
Eu também fiquei estupefacta, não fazia a mínima ideia.
- Para além do ângulo pouco edificante que revela sobre o meu irmão,
tenho a certeza de que todos estamos encantados por acolher a Meg na
família - disse Henry, e tanto ele como Clara me dirigiram sorrisos
calorosos.
Então Clara deu-me uma palmadinha como se eu fosse um cão nervoso.
- Eu e o Henry sempre soubemos do caso entre a Nessa e o George e da
bebé, por isso, quando a Meg chegou, para nós tudo fez sentido
rapidamente.
Sybil disse:
- Então deve ser verdade... e imagino que o paizinho tenha sido um pouco
estroina e irrefletido quando era jovem, mas é claro que foi um marido
maravilhoso para a mãezinha.
O comentário mereceu um silêncio curto e respeitoso, ainda que
incrédulo, interrompido por Tottie que disse:
- Tratava-a razoavelmente quando estava em casa, mas também não passava
lá muito tempo em Underhill, até aos últimos anos, pois não? E até eu
ouvi rumores sobre aquilo em que ele e aquele Piers Marten se metiam
quando estavam no estrangeiro!
- O Piers! - exclamou de súbito Sybil, endireitando-se ao máximo e
arregalando os olhos. - Mas o que irá ele pensar quando souber disto?
- Porque haveria de importar o que ele pensa? - perguntou Clara. - Se
calhar até já sabe. Afinal, era o amigo mais antigo do George e eles
foram praticamente inseparáveis durante toda a vida.
- Oh, não, se o paizinho não sabia da bebé, o Piers também não haveria
de saber.
- Lá isso é verdade - disse Tottie. - Mas é capaz de saber do caso.
O esgar zangado de Mark tinha regressado em grande.
- Meg, espero que a sua mãe não julgue que tem algum direito à
propriedade, quando descobrir que somos parentes.
Fitei-o, atónita.
- Não a vejo há anos, mas, a menos que entretanto tenha sido submetida
a um transplante de personalidade, isso nunca lhe passaria pela cabeça!
Nunca se interessou por quem pudessem ser os seus pais biológicos e
é a pessoa menos materialista que conheço. - Correspondi-lhe ao olhar
zangado e desconfiado sem vacilar. - Posso garantir que ela nunca
alegará qualquer direito à propriedade, mesmo que pudesse fazê-lo...
e eu tampouco.
- É claro que não, minha querida - disse Clara, e Lass, sentindo
aparentemente alguma da tensão da sala dirigida a mim, veio enfiar o
focinho molhado na minha mão.
- Fico satisfeita ao descobrir que tenho tantos parentes, mas não
preciso de nada de vocês, porque já tenho uma família na Quinta, para
além de uma profissão.
A nuvem negra sobre o olhar de Mark dissipou-se lentamente e ele
levantou-se da cadeira, aproximou-se e deu-me um beijo em cada face.
- Desculpe, foi uma parvoíce da minha parte - disse. - Já devia
conhecê-la suficientemente bem para ter chegado a essa conclusão
sozinho.
Sybil, reanimada, dirigiu-me um sorriso ténue.
- Acho que temos de lhe dar as boas-vindas à família - disse ela, ainda
que eu visse que continuava a parecer-se um pouco como um coelho em
risco de ser atropelado. Devia ter passado a vida inteira a fechar os
olhos e os ouvidos para não saber o que o seu querido paizinho realmente
era.
- Assim mesmo! - encorajou Tottie.
Eu tinha esquecido que Lex estava presente, já que ele se encontrava
ligeiramente atrás de mim, na penumbra, mas então Clara perguntou:
- E tu que pensas de tudo isto, Lex? Estás muito calado.
- Foi uma surpresa, claro - disse ele com a sua voz profunda. - Mas,
na verdade, não tem nada a ver comigo, pois não? A Meg não é familiar
minha.
- É, por afinidade, e agora faz definitivamente parte da família -
replicou Henry.
- É mais ou menos minha prima - comentou Teddy, empoleirado no banco
de sela de camelo. - Eu estou contente! Tio Henry, a Meg pode viver
aqui connosco para sempre?
- Claro, se quisesse, mas ela tem a sua própria vida, sabes. Mas espero
que trate sempre a Casa Vermelha como sua segunda casa e que venha cá
sempre que queira.
- Obrigada - disse eu, profundamente comovida.
- É melhor dar-te as boas-vindas à tribo, então, já que, claramente,
já não vou poder livrar-me de ti - ripostou Lex com secura, decerto
interpretada por todos como uma brincadeira.
Den entrou com o carrinho carregado de café e scones quentes com queijo.
Vinha a assobiar «Happy Days Are Here Again» entredentes.
- Tudo tratado? O cordeiro sacrificial já foi acolhido p’la família?
- Muito bíblico, Den - disse Clara.
- Eu fui salvo uma vez, não fui? Mas não pegou.
A conversa começou a passar lentamente para assuntos mais corriqueiros
e deixei-a fluir à minha volta enquanto bebericava o café.
Não fazia qualquer sentido ser parente de Mark ou Sybil... e Mark
reagira à notícia com azedume, mas, ao perceber que a sua herança não
corria risco, mostrara-se bastante querido.
Quanto a Clara e Henry, eu sentia uma grande estima por eles desde que
chegara; eles davam-me a sensação de serem a minha família, e de a Casa
Vermelha ser a minha casa, ao contrário de Underhill e dos seus
habitantes.
Sybil, que entretanto ficara claramente a pensar em que gesto gracioso
seria necessário, interrompeu-me o devaneio:
- Um dia tem de vir a Underhill, Meg, e eu conto-lhe um pouco da história
da família e do seu avô.
Eu já ouvira que chegasse acerca de George e Mark já me tinha feito
a visita guiada pela casa, mostrando-me os antepassados, mas sorri-lhe
e disse-lhe:
- Isso seria encantador, mas o que eu gostava mesmo de ver era a antiga
pedra gravada de que a Clara me falou. Foi transferida para o terreno
de Underhill quando inundaram o vale, não foi?
- Sim, e tem de a ver - concordou Clara. - Foi o que me despertou o
interesse por antigas línguas escritas. Tem duas versões diferentes
do alfabeto rúnico, sendo uma delas mais antiga, com apenas dezasseis
letras.
- Teremos todo o tempo do mundo para conhecer a Meg e mostrar-lhe os
marcos e a história importante do vale - declarou Henry. - E que grande
reunião familiar alegre teremos para o jantar de Natal deste ano!
Pareceu-me que isso pecava um pouco por otimismo, dadas as
circunstâncias. Infelizmente, também recordou algo a Mark.
Virando-se para a mãe, disse:
- Espero que finalmente tenhas conseguido falar com o Piers para que
ele não apareça para o Natal, mãe?
Esta parecia nervosa.
- Ele não tem atendido, mas deixei-lhe várias mensagens a explicar,
para o caso de não ter recebido a minha carta, e ainda lhe enviei outra.
Espero bem que não esteja doente nem nada do género.
- O mais provável é que esteja a amuar - concluiu Mark.
Lex, que tornara a remeter-se ao silêncio, disse que tinha de voltar
para o trabalho, ainda que isso seguramente fosse apenas uma desculpa.
Eu sabia que a olaria estava a meio-gás, preparando-se para as férias
de Natal.
Clara insistiu com Sybil e Mark para que ficassem para o almoço, mas
Sybil disse que precisava de ir cavalgar nas charnecas e pensar nas
coisas.
- É claro que fico muito satisfeita por saber de si, Meg, é só que foi
tudo muito perturbador, nada mais.
- Com certeza - respondi. - Eu compreendo, porque senti exatamente o
mesmo quando descobri.
Tottie disse que iria com Sybil, já que, se a previsão meteorológica
não se enganava, eram capazes de não poder andar a cavalo durante uns
dias. Sybil não apresentou objeções, pelo que calculei que fosse falar
de tudo com a amiga, tal como eu fizera com Fliss, e que em seguida
se sentiria muito melhor.
Den levou as coisas para a cozinha, com Teddy a ajudar... ou a empatar,
já que insistia em empurrar o carrinho, que tinha rodas do género que
iam em todas as direções ao mesmo tempo.
- Não correu assim tão mal - comentou Henry depois de os outros irem
embora. - Eu sabia que ia ser um choque para a pobre Sybil, mas o Mark
aceitou-o bastante bem, na verdade.
- Sim, depois de ter a certeza de que a Meg e a mãe não iam tentar
ficar-lhe com nada da propriedade! - Clara fez o seu sorriso grande
e cheio de dentes. - Quando lhes contámos quem era, Meg, o Lex disse
que sempre tinha achado que havia algo familiar em si, e que agora
percebia que era um toque dos Doome.
Isso parecia bater certo.
Depois do almoço, fui para o meu quarto para ficar sozinha durante algum
tempo e também para embrulhar os últimos dos pequenos esboços que andara
a desenhar sub-repticiamente para oferecer, emoldurados nos cartões
que comprara em Great Mumming.
De vez em quando espreitava pela janela do torreão e o céu parecia estar
a ficar de chumbo, prometendo neve.
Telefonei a Fliss quando acabei de embrulhar os presentes e relatei-lhe
o último capítulo daquilo que parecia estar a transformar-se mais numa
saga do que numa comédia romântica.
- Agora só falta que a mãe apareça à porta e revele como é excêntrica
e inconvencional - concluí, suspirando. - Quem me dera que
reaparecesse.
- Tenho a certeza de que ela está bem. Quero dizer, é o que o River
acha, não é?
Fliss gostava de River, e parecia tê-lo em conta de algo entre um
adivinho e um oráculo.
- Sim - concordei, mais positiva. - Ele tem a certeza de que ela está
viva e de que há de dar à costa um dia destes.
- Encontrei uma casa encantadora na internet - disse-me Fliss então.
- O Cal demoraria muito a chegar ao trabalho quando tivesse de ir ao
emprego, mas a verdade é que ele viaja imenso e também pode trabalhar
a partir de casa.
- Então e o teu emprego? - perguntei.
- Teria de me despedir e talvez ser professora substituta durante algum
tempo, mas o objetivo de nos mudarmos é encontrar um sítio mais barato
no campo, onde possamos constituir família. Os anos já pesam, por isso
não há tempo a perder.
- Não, suponho que não - respondi, com a familiar pontada de dor. A
maternidade não seria para mim, ainda que provavelmente fosse
divertir-me imenso a ser a tia louca que aparecia de vez em quando com
presentes. - O River chega amanhã à tarde - disse eu, mudando de assunto.
- Ele só sabe que tenho um parentesco com os Doome, portanto vou poder
contar-lhe a história toda. Decidi que também lhe vou contar tudo sobre
a noite com o Lex e o desentendimento que se seguiu. Já para não falar
da forma como o Lex e o Al se comportaram desde que aqui cheguei.
- Isso é ótima ideia! Ele há de dar-te perspetiva sobre tudo isso e
dizer-te o que fazer... mas eu acho que vai dizer exatamente o que eu
digo: que tens de insistir para que o Lex ouça o que se passou ao certo!
- Tenho a impressão de que tens razão - concordei. - Sabes que tentei
contar-lhe uma vez, mas ele limitou-se a ir-se embora. Sou capaz de
ter de o amarrar e de lhe pôr uma mordaça para que me ouça.
- Eu acho que tens andado a ler os romances errados, Meg.
- Não, só policiais, e, felizmente, pelo menos até à data, ainda não
tive impulsos homicidas.
De rosto reluzente Tottie regressou da sua cavalgada com Sybil.
- Está a ficar mais frio e está a começar a gelar. Já há gelo nas poças.
- A Sybil aceitou isto da Meg? - perguntou Clara. - Não me tinha ocorrido
que ela e Mark pudessem recear que Meg e a mãe pudessem reclamar dinheiro
da propriedade. A Sybil sempre esteve preparada para lutar com unhas
e dentes para que Underhill fosse para o Mark.
- Ela estava um pouco calada, mas é muito para assimilar de uma só vez
- respondeu Tottie. - Quando voltámos, ela tentou novamente ligar ao
Piers Marten, mas ninguém atendeu.
- Talvez ele tenha recebido a primeira carta e já tenha ido para casa
de familiares? - sugeri.
- Sim, é capaz de ter ido para casa de um dos filhos - disse Clara.
- Ele tratava muito mal a mulher e o divórcio foi uma coisa feia quando
eles ainda eram pequenos; não obstante, parecem dispostos a recebê-lo,
por uma questão de dever. Se não fosse um homem tão horrível, eu tê-lo-ia
convidado a passar o Natal connosco - continuou. - Mas não o quero mesmo
debaixo do meu telhado, seria uma praga.
Tenho de confessar que Piers Marten me parecia fascinantemente
terrível... mas o fascínio não era tão grande que me fizesse querer
conhecê-lo.
26
Bagagem Abandonada
Acordei na manhã seguinte num mundo branco de sons abafados e, ao
espreitar pela janela, ainda via grandes flocos de neve a girar
lentamente para baixo, como vagens de sicómoros.
Estava muito bonito, mas ocorreu-me que as estradas molhadas teriam
congelado na noite anterior e que a camada de neve por cima as tornaria
perigosas.
River deveria vir de carro desde Sticklepond naquele dia. Esperava que
chegasse bem.
Tottie estava na cozinha, a acabar com um ovo escalfado, e contou-me
que os agricultores locais já tinham saído para limpar as vias.
- Têm um contrato com o município para o fazer, mas, na verdade, precisam
de dar prioridade à estrada ao longo do vale e até às charnecas, se
possível, mantendo-a transitável para chegarem aos animais.
Empurrou a cafeteira na minha direção e acrescentou:
- A Clara e o Henry estão a trabalhar e hoje de manhã o Teddy vai
ajudar-me na estufa. É melhor ir arrancá-lo à sala da manhã.
Não perguntei onde estava Den: este parecia ir e vir conforme lhe
apetecia, sem horas fixas para além das envolvidas no fornecimento de
uma torrente interminável de boa comida.
Fui até ao estúdio e coloquei o iPad, revelando a foto que tinha tirado,
ao lado do retrato de Henry no cavalete, para poder comparar as duas
imagens.
A cabeça e as mãos... nada a acrescentar. Nem a Lass, um tapete felpudo
sobre os seus pés...
Mas a forma como as velhas cores de pedras preciosas do tapete persa
sobre o estrado se fundiam com a escuridão atrás de Henry... sim, isso
precisava apenas de um pouco mais.
Quando terminei, a manhã ia avançada e o dia estava mais luminoso.
Ouvira a neve a deslizar do telhado, pelo que deveria estar a derreter.
Limpei a espátula e passei para a sala de estar, onde encontrei Clara
e Teddy a completar um puzzle num tabuleiro sobre a mesa de centro.
Teddy levantou a cabeça.
- Acho que não vou querer ser jardineiro quando for grande - disse-me
num tom sério. - A Tottie fez-me limpar centenas de folhas, que já
estavam brilhantes.
- Eu acho que és capaz de vir a ser artista - disse eu, avançando até
à janela saliente e espreitando para lá da árvore de Natal. Via partes
da estrada ao longo do vale e todas pareciam escuras e molhadas, com
contornos irregulares e brancos.
A estrada até Thorstane, no seu ponto mais alto sobre as charnecas,
ainda não devia ter derretido, mas, independentemente do estado em que
se encontrasse, definitivamente não obstara à chegada de River, pois,
nesse mesmíssimo momento, o conhecido, antiquíssimo e coçado Land Rover
apareceu a subir pelo acesso.
- Aí vem o River. Chegou cedo! - exclamei.
- Oh, que bom - disse Clara, que encaixava peças do puzzle duas vezes
mais depressa do que Teddy. Calculo que fosse por encontrar todas
aquelas juntas em fragmentos de cerâmica e pedra.
Uma pequena figura, envolvida num manto escuro de lã e a usar umas botas
pretas largas e um gorro tricotado às riscas com as cores do arco-íris
e uma ponta comprida que acabava numa borla sobre um ombro, saiu do
jipe.
Dirigi-me ao alpendre, em busca das minhas galochas, mas Den, com o
seu sexto sentido para visitantes, chegou primeiro à porta.
- É o avô da Meg? - perguntou-lhe.
- Sim, sou o River. - Ofereceu a Den um dos seus sorrisos particularmente
afáveis.
- Então vá entrando qu’eu levo-lh’as coisas, nã levo?
- É muita amabilidade sua, e realmente estou um pouco enregelado. Tudo
o que está no assento de trás é para ir para dentro - acrescentou, após
o que me viu.
- Meg, minha querida! - Subiu os degraus e abraçou-me carinhosamente,
ao que eu correspondi, apercebendo-me de quão satisfeita estava por
ter a sua presença familiar e tranquilizadora comigo. - Estás com muito
melhor aspeto! O ar das charnecas do Lancashire deve fazer-te bem. E
esse cabelo cor-de-rosa também te favorece... uma cor luminosa e
esperançosa.
Bem, diz-se que a esperança é a última a morrer, e, até a pneumonia
me deitar abaixo, eu sempre tinha sido uma pessoa do género de ver o
copo meio-cheio.
- Oh, é tão bom ver-te! - exclamei. - Mas vem para a sala, vou
apresentar-te toda a gente.
Alertado pelo barulho da chegada, Henry tinha saído do seu escritório.
Lass passou por ele e foi até ao átrio para inspecionar as pernas de
River enquanto este despia o manto e tirava o gorro.
Sem esses atavios, revelou-se à família reunida em toda a sua glória
com um capote acolchoado de brocado esverdeado, usado sobre uma túnica
preta e comprida. Tinha o cabelo branco solto pelas costas, mas a barba
cuidadosamente entrançada. No lóbulo de uma orelha, uma pequena estrela
de prata luzia.
Teddy fitou-o com admiração.
- És um elfo? - perguntou, passado um instante. - Ou talvez... um
feiticeiro?
- Nem uma coisa, nem outra - respondeu River. - Se bem que seja normal
que penses isso. Sou o avô em espírito de Meg.
Até parecia que eu o tinha engarrafado em vodca.
- Eu estava com receio de que a estrada sobre as charnecas estivesse
demasiado má para conseguires passar - disse-lhe eu.
- Fiz-me cedo ao caminho e tinha as correntes de neve, se bem que não
precisei delas. O meu amigo de Sticklepond aconselhou-me a vir pela
estrada de Thorstane, em vez de usar a passagem, e só foi complicado
no ponto mais alto.
Então lembrei-me das regras da etiqueta e apresentei-o a todos, ao que
ele foi distribuindo apertos de mão como uma pessoa normal, coisa que
certamente não é, mas também se poderia dizer o mesmo acerca de qualquer
um dos habitantes da Casa Vermelha.
- Imagino que já esteja bem habituado a conduzir com más condições
atmosféricas, se vive nas Montanhas Negras - comentou Henry.
- Os invernos podem ser um pouco rigorosos - concordou River -, mas
a Quinta propriamente dita não está tão acima do nível do mar como vocês
estão aqui.
Clara insistiu que ele ocupasse a cadeira mais próxima da lareira,
apesar de toda a sala estar tão quente que ele provavelmente
descongelaria de imediato.
Den ia trazendo uma série de objetos do Land Rover. Parecia uma versão
frugal de um desses concursos televisivos em que as coisas vão passando
numa passadeira rolante e em que se pode ficar com tudo aquilo de que
nos lembremos depois.
A uma mala de viagem coçada, amarrada com cordel, seguiu-se uma grande
mochila coberta de autocolantes de Air India e vários embrulhos de
formatos estranhos, alguns dos quais River foi buscar e entregou
aleatoriamente a Clara e a Henry.
- Uma lembrança da Quinta - disse ele.
Continham o bolo, queijos de cabra e várias outras iguarias que Maj
tinha embrulhado para ele trazer. O saco de celofane de estrelas de
gengibre já furadas e com laços finos foi um grande sucesso junto de
Teddy, que queria pendurá-las na árvore do átrio naquele preciso
momento.
- Depois do almoço - prometeu-lhe Clara. - O átrio agora está cheio
de bagagens.
Ouvimos a porta interna do alpendre a fechar-se e Den surgiu com uma
pequena arca de lata pintada de castanho.
- É tudo, não é? - perguntou, parando à entrada.
- Muito obrigado - agradeceu River. - Queres a arca aqui, Meg?
- É da mãe, a que estava no sótão!
- Sim, achei que mais valia trazer tudo. Por sorte, a certidão de
nascimento estava logo em cima, mas talvez descubras outros documentos
relevantes mais para o fundo.
- Boa ideia - aprovou Clara. - Mas não há pressa de ver isso, Meg. Já
sabemos que o nome da Nessa constava da certidão de nascimento.
Assim, a arca foi levada para o meu quarto, juntamente com um grande
saco de serapilheira cheio de coisas embrulhadas em papel pardo, que
pareciam ser prendas da minha família na Quinta.
A bagagem de River foi depositada no seu quarto, depois de separada
de todas as coisas comestíveis, que Den levou para a cozinha.
- A Tottie está a perder tudo isto - lamentou Teddy, como se o circo
tivesse chegado à vila.
- Provavelmente ainda estará no jardim ou na estufa e não deu pelo tempo
a passar - sugeriu Henry.
- Eu vou buscá-la - anunciou Teddy, encaminhando-se para a porta.
- Veste o casaco se fores lá fora - lembrou-o Clara enquanto ele
desaparecia, com Lass a segui-lo, como se tivesse o dever de vigiar
o membro mais pequeno da família.
River, já aquecido, despiu o capote acolchoado. A bainha da túnica que
trazia por baixo estava decorada com hieróglifos em vez de runas. Ainda
tinha as calças enfiadas nas botas pretas, compridas e pontiagudas,
que descalçou então, revelando umas meias de lã gaélica tricotadas à
mão.
- Há alguma coisa no meu saco da Quinta que precise de ir para o
frigorífico? - perguntei-lhe, pois podia conter praticamente qualquer
coisa.
- Não, nada perecível - assegurou-me ele. - Foi só que, depois de
percebermos que não ias voltar para o Banquete, a Família decidiu
enviar-te alguns presentes de Yule. E os presentes que nos enviaste
da Empresa Verde & Amigável chegaram. O Oshan já preparou tudo para
distribuir depois do Solstício.
- Encomendei-os à pressa, mas consegui alguma coisa amiga do ambiente
para toda a gente, pelo que espero que gostem - disse eu. A maioria
das pessoas ia receber conjuntos de lápis feitos de galhos e escovas
de dentes de bambu, que não eram lá muito empolgantes. - Tive uns cinco
minutos para fazer tudo antes de deixar Londres.
- A culpa disso foi minha, mas veja-se só como tudo tem resultado! -
exclamou Clara. - Bom, vamos almoçar e depois, River, a Meg pode
mostrar-lhe o seu quarto para que possa desfazer as malas e instalar-se.
Tottie apareceu vinda do jardim quando chegámos ao átrio. Foi
apresentada e ofereceu a River uma mão bem suja de terra, que ele apertou
sem hesitar. Ela trazia o cesto cheio de cenouras compridas e
pontiagudas que me faziam lembrar o gorro de River.
- Muito gosto em conhecê-lo - disse ela com desenvoltura, acrescentando
em seguida para o resto do grupo: - O Teddy já aí vem. Quis só ir ver
se o ananás na estufa já cresceu o suficiente para o comermos.
- Um ananás? Eu gostaria de o ver - disse River, interessado.
- A Tottie tem todo o género de frutos exóticos e plantas na estufa
- disse-lhe, resignada. Obviamente não ia conseguir guardar segredo
sobre a sua existência. - Tem tanto jeito para a jardinagem que é
praticamente uma planta honorária.
- A Meg contou-me o que produzem na Quinta. Devemos estar os dois a
cultivar mais ou menos à mesma altitude, por isso podemos comparar notas
- disse Tottie. - E julgo que ambos criamos abelhas, não é verdade?
Pela forma como River se enquadrava de imediato no grupo, seria de
pensar que homens estranhamente vestidos como elfos, de cabelo grisalho
comprido e barbas entrançadas, chegavam todos os dias para se instalar
na Casa Vermelha... se bem que, claro está, Clara já o conhecesse. E
ele tinha a belíssima capacidade de se sentir em casa onde quer que
estivesse, fosse qual fosse a companhia.
Comeu duas tigelas de sopa de cogumelos, acompanhadas por grandes
pedaços de pão integral - não sei onde lhe cabia tudo aquilo. Em seguida,
encetaram uma das rodas de queijo que ele tinha trazido e que, para
minha sorte, não era de cabra. Deviam ter feito alguma troca com um
dos agricultores vizinhos.
Enquanto comíamos, contámos-lhe toda a história do breve e
desafortunado romance entre Nessa e George, se é que se lhe podia chamar
isso, do qual resultara a bebé que viria a ser a minha mãe.
- Então agora tens duas casas e duas famílias - disse ele. - Que fortuito
ter escolhido a Meg para pintar o seu retrato. Deve ter sido obra da
Deusa.
Depois falou muito sobre os mistérios do karma e da predestinação e
por aí afora, mas eu não prestei grande atenção. Já me sentia
maravilhada pela linha fina como um filamento que entreligava as nossas
vidas e nos unia.
Voltei à terra quando começaram a falar do Solstício.
- Eu estou mesmo desejoso de assistir à cerimónia amanhã à noite - disse
River. - Trouxe os meus próprios mantos, pois achei que poderia usá-los
e contribuir para o ambiente da ocasião, se ninguém tiver objeções.
Os mantos de River são feitos de uma espécie de lamê prateado com
aplicações de símbolos nas costas e à volta da bainha. Decerto
contribuiriam para o ambiente de qualquer ocasião.
- Se os usares, tens de vestir várias camadas de roupas por baixo para
te manteres quente, como fazes em casa - avisei-o com firmeza.
- Não se preocupe, todos nos protegemos bem antes da cerimónia -
garantiu-me Henry. - Também tive uma ideia: gostaria de participar na
cerimónia propriamente dita, River? É que perdemos o nosso Velho
Inverno e teve de ser o meu sobrinho, o Lex, a assumir esse papel no
ano passado. Ele é demasiado alto para o fato e eu sei que preferiria
de longe assistir em vez de participar.
Clara sugeriu que, se River assumisse o papel, deveria usar os seus
próprios mantos, mas com a coroa de azevinho do Velho Inverno.
É claro que ele ficou encantado com a ideia e Henry prometeu que depois
lhe explicaria todo o procedimento e a parte que lhe competiria.
Levei River até ao seu quarto e, enquanto subíamos as escadas, ele
admirou a árvore e todas as bolas:
- O cheiro a pinho é muito revigorante - disse ele, inspirando
profundamente pelo pequeno nariz patrício.
O quarto de River dava para o jardim das traseiras e ocorreu-me que,
quando Lex e Sybil chegassem, a casa ficaria bem cheia. Não se esperavam
outras visitas, pelo que poderíamos erguer uma ponte levadiça virtual
e dar início às celebrações.
Enquanto tirava das malas e guardava os vários e estranhos trajes e
pares de calçado de River, pacotes de raminhos, saquetas de pós herbais,
cristais e outros acessórios vitais para uma viagem, ele ficou sentado
na cama, de pernas cruzadas, e escutou toda a triste história da noite
em que Lex fora comigo para o meu apartamento e do que acontecera -
ou não acontecera - depois disso. Também lhe contei da cena posterior,
quando o seu amigo Al me encurralara na faculdade e me bombardeara com
acusações vis, sem me dar uma oportunidade de me defender.
Era mais fácil contar-lhe tudo enquanto me ia mexendo pelo quarto, de
costas para ele, embrenhada a guardar coisas, mas no final virei-me
e fitei-lhe os olhos calmos, de um profundo azul-celeste e
estranhamente inocentes.
- Compreendo - disse ele. - Partiram do princípio de que acontecera
o pior, apesar de tu teres dado o teu melhor, e depois não te deixaram
explicar.
- Eu acho que devia ter um ar um pouco culpado quando o Al me encurralou,
porque houve um momento nessa noite em que me senti tentada... -
confessei, pondo todas as cartas na mesa. - Eu achava que o Lex estava
completamente KO, mas acordou o suficiente para me beijar. Foi só uma
fração de segundo até me aperceber do que estava a fazer e me afastar,
e depois ele voltou a perder os sentidos.
- Eu acho que podes ficar com a consciência completamente tranquila,
Meg - disse ele. - Quanto ao resto, se ele não se lembrava por completo
do que acontecera nessa noite, era contigo que deveria ter falado, não
com o amigo.
- Sim, isso foi o que pensei. Em vez disso, deixou que toda esta culpa
desnecessária o assolasse durante anos.
- Portanto, é claro que não havia de ficar satisfeito ao ver-te aparecer
subitamente na Casa Vermelha.
Aquele era o eufemismo do ano.
- Ficou com um ar zangadíssimo e horrorizado! Ao longo dos anos, deve
ter criado uma imagem mental minha que não tem mesmo nada a ver comigo.
Agora que se defrontou com a realidade, vejo que lhe custa cada vez
mais conciliar as duas.
- Pois deve custar! - respondeu River. - Como dizes que o conhecias
antes dos acontecimentos dessa noite, ele devia ter compreendido que
não agirias da forma como ele te acusava.
- Eu acho que servi só para acrescentar mais uma camada a toda a culpa
que ele sentia em relação à Lisa - disse eu. - Quero dizer, nessa noite
no bar, ele contou-me que tinham casado para ele ter o direito de
insistir para que ela não recebesse quimioterapia, coisa que ela não
desejava, ao passo que os pais faziam questão de que seguisse por essa
via. Não havia grande probabilidade de esse tratamento resultar no caso
dela, mas quando o seu estado se agravou tão depressa e ela teve de
ser internada, ele convenceu-se de que ela provavelmente teria
sobrevivido se tivesse recebido quimioterapia. Mais culpa.
- É um fardo pesado para suportar - comentou River, compadecido. - Mas
ele tomou a decisão certa, ao deixá-la escolher.
- Os pais dela não eram dessa opinião e estavam com ela no hospital
na noite em que o Lex foi para o meu apartamento. Depois não conseguiam
entrar em contacto com ele quando ela piorou subitamente... foi preciso
o Al ir à procura dele, pô-lo sóbrio e levá-lo até lá.
River pensou em tudo aquilo.
- Então o Lex há de sentir-se culpado por não ter estado presente quando
era preciso, para além daquilo que acha que vocês fizeram?
- Mas eu não tinha noção de nada disso, no dia em que ele foi à faculdade
depois de tudo ter acabado. Quando ele virou costas e se foi embora
assim que me viu, achei que talvez fosse por me ter confessado tudo
no bar e por se sentir envergonhado. Muitas vezes as pessoas evitam-nos
depois de nos contarem algo tão íntimo.
- Isso é bem verdade - concordou ele.
- Só quando o Al me atacou depois é que percebi que o Lex tinha uma
ideia completamente errada acerca do que tínhamos feito no meu
apartamento. Foi horrível.
- Quem me dera ter sabido isso na altura, pois teria ido a Londres,
procurado esses jovens e feito com que percebessem a verdade.
Eu tinha a certeza de que o teria feito, mas teriam eles acreditado
nele?
- A única pessoa que sempre soube tudo é a Fliss. Foi ela que insistiu
para que te contasse agora.
- Muito sensata - aprovou ele. - Ela tem sido uma boa amiga para ti.
- Ela disse que saberias o que fazer... Oh, e há mais uma coisa que
não te contei - acrescentei, ao lembrar-me. - Agora o Al é sócio do
Lex numa olaria aqui perto e casou com a irmã mais nova da Lisa! O Henry
levou-me à olaria aqui há uns dias e tornou-se evidente que o Al tinha
contado tudo à mulher, a Tara.
River abanou a cabeça.
- O Al parece ser uma pessoa impulsiva e irrefletida, com falta de
empatia.
- Sim, se bem que eu acho que, à sua maneira, julga que está apenas
a ser um bom amigo para o Lex; e o Lex pediu-me desculpa pela forma
como o Al e a Tara falaram comigo.
- Qual é a atitude do Lex em relação à notícia de que agora fazes parte
da família?
- Ele ficou muito calado, pelo que não tenho a certeza. Mas pouco tempo
depois de eu ter chegado, disse-me que me tinha perdoado pelo passado,
o que é muito generoso, tendo em conta que não fiz nada.
- Ao menos foi bem-intencionado - respondeu River.
- Eu tentei contar-lhe a verdade, mas ele disse que não queria remexer
no passado e foi-se embora. Isso deixou-me zangada e determinada a
passar o Natal na Casa Vermelha em vez de deixar que ele me afugentasse.
- Tudo isso é muito natural, Meg, mas chegou a altura de este
mal-entendido ser esclarecido para que as velhas feridas possam sarar
e para que ambos possam acolher um futuro mais risonho.
- Queres dizer que tenho de lhe contar tudo, quer ele queira ouvir,
quer não?
- Sim, e sinto que, se o fizeres antes da meia-noite do Solstício de
Inverno, seria particularmente fortuito.
- Mas isso é já amanhã! Não me dá muito tempo para o apanhar sozinho
durante tempo suficiente.
- Há de surgir uma forma - replicou ele, seguro de si.
- Na verdade, ele fica aqui na casa a partir de amanhã e até ao Ano
Novo. - Suspirei. - Eu sabia que me dirias para esclarecer tudo com
ele, na verdade, por isso quanto mais depressa, melhor, suponho.
River assentiu com a cabeça.
- Acho que a tua aura não recuperará até o teres feito.
- Mas e se ele não me der ouvidos ou não acreditar em mim?
- Ele tem de acreditar na verdade. E, se for necessário, eu também
falarei com o jovem.
Gostaria de ser uma mosca na parede para ouvir essa conversa.
Deixei-o a dispor os seus vários cristais e outras coisas em cima de
uma cómoda e fui para o meu quarto, onde abri a arca de lata da minha
mãe.
Fui envolvida de imediato por uma onda de pachuli e sândalo, que me
inundou de memórias da minha mãe roliça, bonita e instável como uma
pequena borboleta, que entrava e saía da minha vida...
Onde estaria ela agora?
Clara
Os anos seguintes em Oxford foram felizes e, embora Henry tivesse
partido nas suas viagens de trota-mundos depois de acabar o curso,
enquanto eu continuava os estudos, reunir-nos-íamos sempre que
possível.
A sua poesia era publicada com uma frequência cada vez maior, conquanto
eu já começara a firmar o meu nome como uma «unidora» de peças
fragmentárias de epigrafia. Ou se tem olho para estas coisas, ou não,
e eu tinha, juntamente com uma memória quase fotográfica de onde vira
outras peças que poderiam corresponder à mesma inscrição.
A minha tese de doutoramento acabaria por se transformar no meu primeiro
livro de não ficção... mas estou mais uma vez a adiantar-me e devo recuar
um pouco.
Mesmo quando prosseguíamos as nossas carreiras em diferentes partes
do mundo, as comunicações entre nós não cessavam, pelo que, sempre que
nos encontrávamos, não havia praticamente nada por revelar.
Henry aparecia com frequência quando eu estava embrenhada numa
escavação, pelo que não me surpreendeu quando, certo dia, ao olhar para
cima da trincheira onde me encontrava - de novo na Turquia, por acaso
- o vi ali à beira.
Estava vestido de linho branco amarrotado e usava um chapéu de palha
de aba larga e um pouco esfarrapada, a proteger-lhe o rosto familiar
e muito querido do sol abrasador.
- Olá, Henry - disse eu, levantando-me como se só se tivessem passado
quatro minutos e não quatro meses desde a última vez que nos víramos.
Eu tinha nas mãos um pedaço de uma tabuinha de terracota inscrita com
carateres cuneiformes... com algumas variações interessantes.
Desconfiava de que seria uma forma mais antiga.
- Este fragmento é fascinante. Esperava encontrar mais umas quantas
peças, mas não tive sorte.
Ele estendeu a mão para me ajudar a sair e depois beijou-me com ternura,
sob o olhar curioso dos trabalhadores e dos meus colegas.
- Eu não estava a contar contigo, pois não? - perguntei-lhe.
- Não, só que de repente senti que já tinha viajado o suficiente para
uma vida e que queria ir para casa... para algum sítio chuvoso, fresco
e provavelmente cinzento. E achei que seria boa ideia passar por aqui
a caminho com um pedido.
- Que pedido? - perguntei distraidamente, pousando o pedaço de
terracota num tabuleiro e sacudindo a poeira das calças de algodão.
- De casamento. Se já não vou passar o tempo todo a viajar, posso ser
a tua base em Londres.
O seu sorriso tímido e muito amoroso surgiu e eu exclamei:
- Não sei porque é que não pensámos nisso antes, Henry! Quero dizer,
não só nos amamos como isso certamente tornaria a vida mais fácil.
- Fico muito contente - disse ele, e voltou a beijar-me, coisa que eu
retribuí com entusiasmo, com ou sem audiência.
Quando finalmente nos afastámos, ele tirou do bolso um anel embrulhado
em papel de seda e ofereceu-mo.
- Gostas deste solitário de cornalina que escolhi ou preferes procurar
outra coisa?
Mas o antigo e lindo anel de cornalina gravada selou realmente a nossa
união, pois casámos assim que tivemos oportunidade.
Juntei os nossos apelidos e tornei-me Clara Mayhem Doome, uma
combinação que parece ter causado diversão a muitas pessoas.
27
O Comum dos Mortais
A certidão de nascimento, num velho envelope castanho, tinha sido
devolvida ao cimo da pilha. Para além do nome da mãe, pouca informação
dava.
Por baixo estava um velho passaporte expirado, no qual a minha mãe
parecia incrivelmente jovem... e bem mais magra do que da última vez
que eu a vira, quando já ia mais para o roliço do que para o curvilíneo.
Para além disso, a arca só continha um arco-íris de roupas abandonadas
em sedas e algodões finos da Índia... e todos os presentes que eu lhe
fazia em criança, quando ela nos fazia uma das suas visitas passageiras
à Quinta.
Ela sempre expressara grande encanto ao receber aquelas oferendas -
e pelo menos guardara-as -, mas, a dada altura da nossa relação, eu
tinha começado a sentir que era eu a mãe e ela a criatura instável e
irresponsável.
Enquanto eu estava no piso de cima, as funcionárias da Mary Pop-ins
tinham chegado para fazer uma limpeza rápida à casa. Clara tinha-me
dito que vinham de quinze em quinze dias, pelo que deviam ter ido naquele
dia para compensar o da semana do Natal.
Passaram por mim pelas escadas quando desci, equipadas como os
Caça-Fantasmas e preparadas, como dizia Clara, para darem conta da casa
inteira com a rapidez de um relâmpago.
- Mas o estúdio não - disse eu, ansiosa. - Podem não limpar o estúdio,
desta vez? Há tanta tinta molhada e pegajosa por ali!
- Claro, querida, eu digo-lhes quando elas descerem. Nessa altura
teremos de mudar de sítio, para que possam limpar o resto da casa, mas
como o Den trata sempre da cozinha, podemos esconder-nos lá, se for
necessário.
Henry e River pareciam estar a dar-se às mil maravilhas e levaram Lass
a dar um passeio, apesar de ela se esforçar ao máximo para lhes dizer
que ficaria perfeitamente satisfeita se naquele dia não passeasse e
ficasse ali no quentinho.
Eu tinha descido com a certidão de nascimento e Clara digitalizou-a
para os registos da família, para que eu pudesse devolver o original
à arca. River levá-la-ia de volta para a Quinta, onde ficaria à espera
de que a minha mãe regressasse.
O som de aspiradores e vozes no piso de cima continuou, pelo que fui
ao estúdio e passei uma vista de olhos pela minha galeria de
fotografias, a pensar no quanto gostaria de pintar Tottie ao estilo
de Carmen Miranda, e Den com as mangas arregaçadas a mostrar um conjunto
vívido de tatuagens enquanto cortava vegetais à mesa da cozinha. Se
Tottie posasse para mim algumas vezes, eu poderia começar antes do
Natal.
Tinha dito a Henry que ainda não estava satisfeita com a forma como
as sombras se fundiam à sua volta no retrato e que seria útil se ele
posasse novamente durante algum tempo quando voltassem. Quando isso
aconteceu, River acompanhou-o para que, ao que parecia, pudessem
prosseguir uma discussão sobre um aspeto qualquer da construção poética
que estaria bem além das minhas capacidades mesmo que não estivesse
concentrada na pintura.
As vozes deles iam flutuando no ar, tal como o ressonar de Lass.
- Pronto, agora está bem - acabei por dizer, ao que ambos foram admirar
o retrato.
- Realmente, capturaste a essência do Henry... é uma espécie de magia
- disse River.
- Ela fez o mesmo com a Clara.
Henry indicou o retrato dela, que eu tinha poisado no lintel da lareira,
bem acima do alcance de pelos de cão. Mas a superfície já estava bastante
seca ao toque, pelo que o tirei de lá, colocando-o no outro cavalete.
Achei engraçado que ambos dessem uns passos atrás, de mãos entrelaçadas
atrás das costas e cabeça inclinada de lado em jeito de consideração,
como uma paródia de críticos de arte.
- A ideia é pendurá-los na sala de estar, um de cada lado da lareira
- disse Henry.
- Espero que o Henry e a Clara me deixem expô-los primeiro na minha
exposição individual em Londres, em fevereiro - pedi-lhe.
- Com todo o gosto, e, embora hoje em dia raramente vá a Londres, abrirei
uma exceção para si.
- Obrigada, seria encantador se viessem, e o River também vai, não vais?
- Não o perderia por nada deste mundo. Sou capaz de alugar uma camioneta
e levar alguns membros da Família comigo.
- Isso havia de animar as coisas - disse eu. - Só não parem num pub
pelo caminho para almoçar.
Abrimos a porta para verificar o progresso das Mary’s Poppins e
constatámos que tinham acabado os escritórios de Henry e Clara, bem
como o refúgio de Tottie na biblioteca, estando naquele momento na sala
de estar. Assim sendo, Henry levou River para lhe mostrar a sua coleção
de ornamentos de Natal.
Chamaram Teddy para os ajudar e eu fui à procura de Tottie, que estava
na cozinha. Quando lhe expliquei que queria pintar o seu retrato - e
na estufa, onde a tinha desenhado - ela fitou-me durante um longo
momento.
- Acho que poderia fazer isso - acabou por dizer com uma relutância
aparente, embora eu percebesse que, secretamente, ela estava desejosa
de que a pintasse! - Prometi ao River que lhe mostrava as galinhas,
as colmeias e o jardim depois do pequeno-almoço, amanhã... não que haja
muito para ver nesta altura do ano... e que depois o levava à estufa.
Talvez a Meg pudesse começar depois disso, antes do almoço?
- Perfeito! Vou deixar tudo a postos lá - concordei. - Também gostaria
que segurasse alguma espécie de cesto de fruta e legumes, será que tem
alguma coisa do género? Imaginei uma cornucópia, mas duvido que tenha
uma dessas!
- Tenho um recipiente grande de vime, em forma de cone, que é capaz
de servir. Sobrou de quando fiz uns arranjos de flores secas.
- Parece perfeito!
- Vou procurá-lo para si. Está nalgum sítio da biblioteca.
As funcionárias da limpeza foram embora, deixando o cheiro de
limpa-móveis a concorrer com o do abeto norueguês. A casa ficou então
à espera do Natal, para o qual já só faltavam uns dias.
Ao longo dessa tarde e da noite, River pareceu interagir com todos os
membros da casa, desde Clara, que o levou ao seu escritório depois do
lanche para lhe mostrar um fragmento de uma inscrição interessante,
a Den, com quem falou de automóveis e de culinária na cozinha. Depois
até o encontrei a dar grandes gargalhadas em frente à televisão,
assistindo a um programa infantil com Teddy.
Passar harmoniosamente de visita para membro da família é o seu poder
mágico secreto...
Depois do jantar, as cortinas da sala de jantar foram corridas e a lenha
a crepitar na lareira dava-lhe um ar acolhedor. As luzinhas da árvore
na janela saliente tremeluziam, como pequenos pirilampos a refletir
as estranhas formas dos ornamentos antigos, fazendo-os brilhar.
Henry abriu uma das cortinas e espreitou lá para fora.
- Reparei que o barómetro do átrio estava a descer rapidamente quando
entrámos, portanto as estradas vão voltar a gelar durante a noite.
Espero que não neve mais, caso contrário será difícil conduzir amanhã.
- Talvez a temperatura volte a subir durante o dia - alvitrou Clara.
- Mas vou ficar mais satisfeita depois de o Lex chegar amanhã, são e
salvo. - Depois explicou a River: - O meu sobrinho, o Lex, passa sempre
o Natal connosco. É um ceramista muito talentoso.
- Sim, a Meg falou-me muito dele - disse River. - Mal posso esperar
por conhecê-lo.
- Esperemos que as condições não sejam demasiado más amanhã para a
cerimónia do Solstício - comentou Henry. - Já o celebrámos apesar de
estar a nevar, mas eu já não tenho idade para abrir caminho entre montes
de neve.
- Nenhum de nós tem - corroborou Tottie. - Mas, se for como hoje, os
agricultores hão de conseguir espalhar gravilha daqui até Underhill.
- Não custa tanto, depois de se subir a ladeira - disse Clara. - A
fogueira mantém o público quente e a cerimónia propriamente dita é
curta, pelo que os participantes não demoram a descer de novo.
- Receio bem que o Velho Inverno tenha de subir com quem quer que vá
atear a fogueira e as tochas, para poder entrar na caverna antes de
o público chegar - explicou Henry a River. - Mas, se o trilho pela colina
estiver suficientemente desimpedido, dá para chegar de moto-quatro
quase até ao cume.
- Isso vai ser uma experiência interessante - respondeu River. - E a
Tottie disse-me que todos os participantes se reúnem antes em
Underhill, onde guardam as roupas, para se prepararem.
- Sim, sempre foram guardadas num armário grande junto ao estábulo;
depois são levadas para a casa a tempo de estarem a postos para a
cerimónia.
- Ainda bem que o Mark mudou de ideias quanto a participar na cerimónia
e receber a Congregação como de costume - disse Clara. - A Sybil ficou
tão satisfeita.
- A Congregação? - quis saber River.
- Toda a gente volta para Underhill para tomar um hot toddy e comer
bolo de melaço... é isso a Congregação - explicou Clara. - Antigamente,
antes de Starstone ficar inundada, iam tantas pessoas que, para além
do átrio, o pátio também ficava cheio.
- Surpreende-me que o Mark tenha acedido a organizar a Congregação este
ano, tendo em conta a mentalidade económica com que anda - disse Henry.
- Acabou por ceder. - Tottie sorriu. - Mistress Gidney limitou-se a
fazer como de costume e a preparar o bolo enorme (é como um bolo gigante
e pegajoso de aveia e gengibre, River) e o Gidney encomendou os
ingredientes para o hot toddy.
- E como este ano o Mark vai representar o seu papel na cerimónia, tu
vais poder ser um espectador - disse Clara ao marido. - E se o Fred
conseguir sair do pub e chegar lá, o Lex também o conseguirá.
- É uma pena que a Zelda não chegue a tempo. Nem me lembro da última
vez em que assistiu à cerimónia - disse Tottie.
- Há muitos anos que não vem - confirmou Clara. - Ou chega demasiado
tarde, ou nem sequer vem, por ter algum papel numa pantomina.
Teddy, que tinha estado concentrado a completar outra pintura no seu
livro mágico, ergueu o rosto, preocupado.
- E se nevar muito e a mamã não conseguir chegar a tempo do Natal?
- Na quinta-feira a neve já deve ter derretido - respondi.
- Tenho a certeza de que vai conseguir, nem que tenha de esquiar desde
Thorstane - assegurou-lhe Henry, e depois, como se a tivéssemos
conjurado, Zelda telefonou para falar com o filho.
- Com certeza - disse Clara, que tinha atendido. - Vou passar-lhe o
telefone. Nevou um pouco, por isso ele está algo ansioso, receia que
não consigas chegar na quinta-feira.
Zelda deve tê-lo tranquilizado, pois Teddy descontraiu ao fim de uns
momentos a ouvi-la e passou então para o tema que mais lhe ocupava os
pensamentos naquele momento: o que receberia pelo Natal.
- O Pai Natal explicou-me que, como deves vir de comboio, não te
deixariam trazer-me um pónei, por isso talvez me tragas outra coisa,
como um dragão?
Íamos ouvindo sons ténues do outro lado da linha, até que Teddy disse:
- Está bem. Boa noite, mamã - e desligou.
- A mamã diz que tenho de esperar para ver o que me traz - disse ele,
antes de acrescentar, carrancudo: - Isto do Natal implica demasiada
espera.
Todos nos rimos e Tottie disse-lhe:
- Bem, de outra maneira não seria surpresa, pois não?
- Gostas de dragões? - perguntou-lhe River.
- Sim, e sei montes de histórias acerca deles - respondeu Teddy com
entusiasmo. - O Bilbo contou-me uma boa e há outra no meu livro sobre
um dragão que comeu quatro cavaleiros ao pequeno-almoço. Mas eu cá não
gosto da história de São Jorge e o Dragão, porque ele mata o pobre
dragão.
- Percebo - disse-lhe River. - A Meg falou-me do Bilbo e eu conheço
a mulher dele, a Moonflower. Mas há anos que não a vejo, por isso espero
poder reencontrá-la.
- Se fores à loja deles, que se chama Preciousss, a Flower vai vender-te
alguma coisa. É determinada como tudo - avisei-o.
- Preciousss... e Bilbo? Será que deteto um ligeiro interesse por
Tolkien?
- Pode dizer-se que sim - respondeu Henry com ironia. - Também chamaram
Grace-Galadriel à bebé.
- Que bonito - aprovou River.
Teddy bocejou imenso.
- Está na hora da cama... é muito tarde, Teddy - disse Tottie,
levantando-se. - Vá, vamos lá preparar-te.
- Podes ir ler-me uma história, tio Henry? - perguntou ele.
- Vou quando a Tottie me chamar - prometeu ele.
Depois de eles terem subido, Clara explicou a River quem era Zelda.
- A mãe do Teddy é irmã do Lex e minha sobrinha. São filhos da minha
irmã Bridget, que agora vive com o marido na Nova Zelândia. Ela é muito
mais nova do que eu, motivo pelo qual o Lex, a Zelda e o sobrinho-neto
do Henry são todos mais ou menos da mesma idade.
- E a Meg também - disse Henry, a sorrir-me. - Mais uma sobrinha-neta.
- A Zelda é atriz, pelo que para ela é mais conveniente ter o Teddy
aqui, e para ele é melhor estar instalado num só lugar - continuou Clara.
- Ela adora-o, mas não sei se estará feita para cuidar de um filho todos
os dias.
- Faz lembrar a minha mãe - comentei. - Gostam de nós e querem saber
que estamos em segurança, mas fora da vista, fora do coração!
Tottie chamou Henry e este foi ler a história a Teddy, que estava tão
ensonado que provavelmente teria adormecido numa questão de poucos
momentos.
No entanto, nenhum de nós ficou acordado até tarde nessa noite: todos
estávamos cansados.
- A sério, és mesmo um homem do Renascimento e sabes alguma coisa acerca
de tudo, River - disse-lhe ao desejar-lhe uma boa-noite. Ele tinha
subido com um copo de vidro com algum chá herbal que gostava de beber
antes de se deitar. Cheirava a feno velho com especiarias terrosas,
e provavelmente era isso mesmo.
Quando espreitei pela janela do quarto na manhã seguinte, o céu ainda
estava de um cinzento carregado e liláceo, e por baixo havia uma camada
nova de neve. Mas depois o primeiro laivo pálido de rosa-dourado
apareceu atrás das colinas mais afastadas e achei que talvez viesse
a ser mais um dia como o anterior, com o sol a acabar a derreter a neve
e o gelo das estradas.
Isso seria bom para a cerimónia do Solstício... e eu tinha prometido
a River que falaria com Lex naquele dia, se o apanhasse sozinho durante
tempo suficiente. Esperava que sim, pois, agora que me decidira a
contar-lhe, queria despachar isso.
Pensar no que diria ao certo e em como ele reagiria fez-me descer
atrasada para o pequeno-almoço, mas encontrei toda a gente ainda
sentada à volta da mesa da cozinha, com o ar carregado dos odores
misturados de pão e café acabados de fazer.
- Julgávamos que ias ficar na cama para sempre, como a Bela Adormecida
- disse Teddy, a apontar para mim com a colher dos cereais, como uma
varinha de condão utilitária e a pingar um pouco.
- Tu é que julgaste isso - replicou Tottie. - O resto de nós também
não se levantou assim tão cedo.
- Eu achei que se a Meg ainda estivesse a dormir quando o Lex chegasse,
ele poderia ser o Príncipe Encantado e dar-lhe um beijo para a acordar
- disse Teddy, ao que me senti corar.
- Lamento, mas estava só a olhar pela janela e a sonhar acordada.
Den cortou-me umas fatias do pão ainda quente, que tinha sementes de
girassol por cima, e Tottie passou-me o mel.
Eles tinham estado a falar do tempo quando eu entrei e, como eu, achavam
que mais tarde o gelo e a neve iriam derreter.
- Depois de o Sol se pôr outra vez, vai fazer muito frio durante a
cerimónia, mas vamos começar assim que esteja escuro, o que, dado que
é o dia mais curto do ano, vai ser a meio da tarde. Vamos voltar para
Underhill e festejar antes de as estradas começarem a gelar.
- Eu telefonei ao Lex para lhe dizer que o River representará o papel
do Velho Inverno - disse Henry. - A menos que o Fred não possa vir,
este ano ele pode limitar-se a assistir.
- O Fred é o Espantalho, com feixes de palha amarrados à sua volta -
explicou Tottie. - Originalmente era milho, mas as espigas foram
desaparecendo ao longo dos anos.
- Interessante - comentou River. - Quais são as outras personagens?
- O Mark vai ser o Homem Verde, com uma máscara de folhas, o Bilbo tem
hastes presas a um capuz de cabedal, a Tottie usa uma máscara de pássaro
e o Len, que é o jardineiro e moço de estrebaria de Underhill, tem um
capuz com cornos de carneiro. Tenho a certeza de que tudo isso tem a
ver com garantir a fertilidade, comida em abundância e esse tipo de
coisas, depois do nascimento do Ano Novo.
River assentiu com a cabeça.
- Tenho a certeza de que tens razão, e nós fazemos algo similar na
Quinta, se bem que, quando dei início à tradição, peguei em elementos
de vários rituais antigos para acrescentar ao meu.
- Ter comida suficiente era o mais importante quando os nossos
antepassados começaram a celebrar este rito: animais, colheitas e caça
- concordou Clara. - E a expulsão simbólica do Velho Inverno para dar
lugar à primavera.
- A máscara de pássaro da Tottie é a minha preferida - disse Teddy.
- Gostaria de usar essa quando for crescido.
- Podes, porque por essa altura já não devo estar por cá - disse Tottie.
- Vou observar-me do outro lado.
- Eu e a Clara lembramo-nos das cerimónias da nossa infância em
Starstone - disse Henry. - Toda a aldeia costumava ir em procissão até
lá acima com archotes, e era maravilhosamente emocionante: a noite
escura, o céu e a estrela brilhante sobre a pedra, a fogueira a crepitar
e as figuras estranhas que se moviam em torno da Starstone.
- Continua a ser emocionante - disse Clara -, sobretudo quando o Velho
Inverno surge subitamente da caverna. Apesar de eu saber o que vai
acontecer, é um alvoroço quando ele emerge e anda por ali a declamar
as suas falas.
- Espero fazer jus ao papel - disse River. - O Henry vai ajudar-me a
decorar as falas depois.
- Eu era bebé quando o reservatório submergiu o vale - disse Tottie,
num tom pesaroso. - Só me lembro da cerimónia depois, quando já não
havia tanta gente a assistir. Ainda assim, é mesmo mágica. Apesar de
saber quem eram os participantes, eles assumiam as suas personagens
durante a cerimónia. E agora faço parte dela!
Depois do pequeno-almoço, Clara e Henry foram trabalhar e eu pedi Lass
emprestada, levando-a para o estúdio. Também levava uns biscoitos, para
ter toda a sua atenção.
Quando acabei - era mais um pequeno esboço que desejava oferecer -,
levei o cavalete e o material de pintura para a estufa, colocando-os
onde tinha desenhado Tottie.
Estava um cesto de vime grande e cónico em cima da mesa, já cheio de
fruta, folhas lustrosas de citrinos e a rama leve de cenouras: a
cornucópia perfeita!
Já tinha tudo a postos, mas via que Tottie e River continuavam a passear
pelo jardim como se estivéssemos em pleno verão e não fosse um dia gelado
e a nevar, pelo que fui à cozinha buscar uma chávena de café.
Deparei-me com Teddy e Den, muito misteriosos quanto a uma surpresa
que estavam a preparar...
Tottie estava na estufa quando voltei e colocou-se na sua pose. Por
entre um espaço na folhagem víamos River, envolto no seu manto largo,
no meio de um dos jardins em laço junto a um dos buxos, com os braços
erguidos para o céu. Estava de costas voltadas para nós e, exceção feita
ao gorro pontiagudo às riscas coloridas, tinha um aspeto bastante
impressionante.
- O que é que ele está a fazer? - perguntou Tottie.
- A invocar qualquer coisa, imagino.
Quiçá um bom desfecho para a conversa que eu esperava - e receava -
ter com Lex?
Quando acabámos a sessão e fomos procurar algo que comer, River estava
de novo na cozinha, a escrever uma receita para partilhar com Den.
Teddy exibiu orgulhosamente a surpresa que tinha preparado com Den -
cupcakes decorados com pais natais e bonecos de neve comestíveis - e
todos tivemos direito a um.
Henry entrou e sugeriu a River que levassem Lass e fossem até Underhill
para ver os fatos, e pelo caminho poderia ensinar-lhe as suas falas.
- E se calhar de regresso eu poderia passar pela Preciousss, para ver
a Moonflower - disse River. - E tu, Meg? Apetece-te um pouco de ar
fresco?
- Não, obrigada, vou voltar mais um bocadinho para a estufa - disse
eu, e assim fiz, trabalhando na floresta tropical de folhagem no fundo
do retrato de Tottie.
Já tinha feito o esboço da cabeça: ela tinha um rosto roliço e redondo
que parecia um pouco afundado no meio, à volta do nariz, como um bolo
ligeiramente achatado.
Depois fui para o meu torreão e li outro dos livros de Clara, nos quais
estava a ficar viciada. De facto, embrenhei-me de tal maneira na leitura
que nem dei pela chegada de Lex. Quando Teddy me foi chamar e desci
para a sala, fiquei surpreendida ao vê-lo ali, sentado ao lado de River
num dos sofás, profundamente concentrado no que quer que estivessem
a discutir.
Foi servido um lanche cedo e bastante substancial, já que a cerimónia
atrasaria imenso o jantar.
Havia uma camada extra de expetativa na sala, que se acrescentava à
que já era suscitada pela contagem decrescente para o Natal.
Depressa começou a escurecer e chegou a hora de a comitiva avançada
de participantes, Tottie e River, partirem para Underhill. Lex iria
levá-los de carrinha e depois subiria na moto-quatro para atear a
fogueira e as tochas, levando River, no seu traje de Velho Inverno.
Assegurei-me de que River tinha várias camadas de roupas quentes por
baixo do lamê prateado antes de o deixar sair para o frio: por vezes
era descuidado com essas coisas e já não ia para novo.
28
De Cabeça
Depois de a comitiva avançada ter partido, os restantes começámos a
equipar-nos para o frio, antes de entrarmos no Range Rover de Clara,
onde ficámos um pouco apertados; de regresso teríamos também a carrinha
de caixa aberta de Lex.
Já estavam alguns veículos estacionados ao longo da estrada no sopé
da colina e algumas pessoas tinham-se reunido, preparadas para a
subida. De facto, o número de habitantes de Starstone Edge que eu ainda
não conhecera surpreendeu-me; calculei que alguns fossem das quintas
e dos chalés em redor.
Quando saímos do carro para nos juntarmos a essas pessoas, de súbito
uma fogueira acendeu-se no cimo da colina, mesmo por baixo da Pedra,
provocando aplausos e vivas. Pouco depois, a própria Pedra estava
rodeada pelo fogo.
- Está a ver lá em cima, Meg? Os participantes estão quase no parapeito
- disse Clara, a apontar, ao que eu reparei na linha oscilante de
archotes a subir a colina.
Sybil, de blusão acolchoado azul-escuro e calças de esqui,
materializou-se vinda da escuridão do acesso de Underhill.
- Vamos, é melhor irmos andando - instou-nos, ao que seguimos a
correnteza de gente que subia lentamente pelo caminho, que felizmente
não tinha neve, apesar de haver grandes montes de neve na ladeira.
O caminho era largo e ziguezagueava de um lado para o outro, pelo que
nunca se tornava demasiado íngreme. Dei por mim ao lado de Flower e
Bilbo, que tinha a bebé dentro do seu casaco acolchoado. Não se via
nada da menina, à exceção de um gorro de lã e de um pouco da bochecha
e do nariz. Para além de Teddy, que caminhava mais à frente com Clara
e Henry, eu não via crianças por ali.
O caminho alargava-se mesmo por baixo do planalto, onde Lex estava
espera, junto à moto-quatro, para dar as chaves a Sybil.
- A Sybil vai querer descer primeiro, para garantir que tudo está a
postos para a Congregação - explicou Henry.
- Teddy, estou a contar contigo para me fazeres chegar ao cimo da colina
- disse-lhe Clara, enquanto ele lhe puxava a mão com impaciência.
- Vamos, todos. Vão começar não tarda! - instou-nos Henry.
Reunimo-nos em volta da fogueira no parapeito debaixo da Pedra,
abrigados do vento por um semicírculo de afloramentos rochosos, um dos
quais continha a fissura profunda em que River estava escondido. Henry
avisou-me para que não ultrapassasse os rochedos pintados de branco
que rodeavam o outro lado, pois havia um precipício bem alto ali.
- Silêncio! - gritou alguém, após o que um ligeiro batucar a acompanhar
um cântico nos chamou a atenção para cima, onde as estranhas formas
dos participantes tinham começado a rodear a Starstone.
As chamas das tochas pareciam saltar, volutear e gesticular com as
figuras, e partes de palavras, transportadas pela brisa, voavam até
nós. Soavam a uma algaravia sem sentido, e lembrei-me de que Tottie
dissera que eram isso mesmo.
O ritmo foi aumentando e as figuras corrupiaram, gesticularam e bateram
com os pés cada vez mais depressa, até tudo chegar a um clímax com um
súbito grito portentoso!
No silêncio que se seguiu, o público voltou-se como um só e espalhou-se
à volta da fogueira, todos com a atenção na face rochosa ao fundo do
planalto, onde o Velho Inverno tinha surgido, fantasmagórico e
impressionante em prata reluzente, como se coberto de geada. Usava uma
coroa dourada de azevinho sobre o longo cabelo branco e levava um bastão
alto com hera em redor. Ao alcançar a luz da fogueira, os seus olhos
brilharam com um azul quase sobrenatural.
Para alguém do tamanho de um elfo, teve uma entrada em cena muito
impressionante, até para mim, que já o tinha visto muitas vezes a
envergar aqueles mantos, ainda que não com a coroa de azevinho.
Provavelmente iria incorporar isso nos seus próprios ritos do ano
seguinte.
- Eu sou o Velho Inverno e aqui estou para ficar. Nenhuma magia vossa
servirá para me afugentar - entoou ele, contornando a fogueira e parando
de vez em quando para brandir o bastão em frente aos espectadores, que
recuavam, fingindo-se assustados.
Depois o público afastou-se, abrindo caminho para que os outros
participantes avançassem, um por um, até todos estarem juntos,
enfrentando a figura isolada do Velho Inverno.
Com os mantos, máscaras, tabardos de couro e bizarros acessórios para
a cabeça, aquilo parecia uma versão de heavy metal do West Side Story.
Então o Homem Verde, facilmente reconhecível pelas folhas de carvalho
que despontavam da boca da sua máscara (e, até àquele momento, eu
tinha-me esquecido de que era Mark), avançou e proclamou bem alto que
o tempo do Velho Inverno chegara ao fim e que ele deveria ir-se embora.
Algo devia ter sido atirado para a fogueira, porque, súbita e
efetivamente, as labaredas deflagraram num arco-íris de cores, antes
de esmorecerem de novo e, quando os nossos olhos se reajustaram à luz,
o Velho Inverno tinha desaparecido.
O efeito foi poderoso e mereceu aplausos, mas ainda não tinha acabado.
O Homem Verde e os outros ocuparam lugares em volta da fogueira e, à
vez, recitaram mais um ou dois versos, ainda que eu não conseguisse
destrinçar-lhes grande sentido. Presumo que fosse como um jogo de
telefone estragado e que mudasse um pouco de cada vez que passava de
uma geração para a seguinte.
A fogueira estava a começar a apagar-se, mas ainda havia luz suficiente
para distinguir os toucados com hastes ou cornos, uma espécie de
Espantalho e a máscara assustadora de falcão que devia ocultar Tottie.
Aquilo daria um filme tão surreal! Recuei para a escuridão atrás de
todos os outros para assimilar tudo aquilo, sobretudo a forma como
aquelas máscaras pareciam contorcer-se e ganhar vida à luz trémula da
fogueira...
Depois, de repente, lembrei-me do conselho de Henry para me manter
dentro dos limites dos rochedos pintados de branco e virei-me para ver
se estava perto.
Estava, e para lá deles a densidade escura e opaca do céu parecia
fundir-se com o vazio.
- A estrela! - gritou alguém atrás de mim, ao que olhei para cima a
tempo de ver um alfinete brilhante como um diamante que surgiu
brevemente entre as nuvens carregadas por cima da Pedra.
Nos últimos minutos, o vento tinha estado a mudar de direção e a aumentar
de intensidade, soprando e girando à minha volta. Então, de súbito,
chicoteou-me as costas, desequilibrando-me... e fê-lo de novo, mas
desta vez foi um golpe forte que me fez cambalear para a frente entre
os rochedos brancos. Um pé desceu pelo vazio de fazer parar o coração...
e então retorci-me desesperadamente, agarrando-me a um arbusto próximo
para me salvar. Os espinhos afiados da urze feriam-me as mãos, mas não
me podia soltar.
- Socorro! - gritei. - Socorro! - Mas o vento levava a minha voz.
Então, milagrosamente, uma forma escura debruçou-se por cima de mim
e fui agarrada com força e puxada até ficar a salvo.
- Oh, meu Deus, Meg, achei que ias cair antes de conseguir alcançar-te
- disse a voz de Lex. Parecia abalado, e agarrei-me a ele. - Que raio
estavas a fazer? - exigiu ele saber, segurando-me os braços para me
manter de pé quando os meus joelhos ameaçavam ceder. - Não sabias que
os rochedos estavam pintados de branco por alguma razão?
- Eu... sim - gaguejei, começando a tremer.
- Uma rajada de vento atingiu-me e depois fui empurrada para lá da beira
- balbuciei, mal acreditando no que estava a dizer. - Só consegui
agarrar-me ao arbusto a tempo e...
- Queres dizer que o vento quase te atirou do penhasco abaixo? -
perguntou ele num tom ríspido.
- Não, alguém me empurrou. Senti mãos... um empurrão no fundo das
costas.
Mesmo enquanto o dizia, parecia improvável e, apesar de não ver o rosto
de Lex, ouvia o ceticismo na sua voz.
- Quando te vi, não havia ninguém por perto, e a maioria das pessoas
já tinha começado a ir embora. Foi uma sorte eu reparar que te tinhas
afastado da fogueira e começar a ver onde te terias metido.
Decerto não havia ninguém por perto agora e as últimas pessoas
encaminhavam-se para a descida - uma descida longa, não a rota acentuada
e fatal que eu inadvertidamente quase tomara. Ali só estava Lex... e
ele salvara-me.
Tremi de novo da cabeça aos pés e ele disse, num tom um pouco mais
delicado:
- Agora estás a salvo, independentemente do que tenha acontecido.
Recompus-me um pouco e disse, incerta:
- Devo ter imaginado, só pode ter sido outra rajada forte, afinal. Quero
dizer, quem quereria empurrar-me pelo penhasco abaixo?
- Ninguém que me ocorra. Desconfio de que todos estes rituais e magias
antigas te tenham deixado a imaginação em alta.
Apercebi-me de que estava a agarrar-lhe as lapelas do casaco e soltei-o.
- És capaz de ter razão - concordei.
Tinha de ter, mesmo que eu ainda sentisse aquelas mãos no fundo das
costas, a empurrar-me com força...
- Anda - disse ele, dando-me o braço e levando-me para o caminho. -
Já quase todos se foram embora.
Ele tinha razão. Alguém extinguira os archotes à volta da Pedra e
reduzira a fogueira a brasas foscas. A temperatura também parecia ter
descido rapidamente à medida que o vento aumentava, e agora um borriço
de neve dura e cristalina acertava-me nas faces e deixava-me com
lágrimas nos olhos.
Enquanto começávamos a descer ouvimos um ruído forte e Lex disse:
- Devem ser a Tottie e a Sybil na moto-quatro. Iam à frente para garantir
que estava tudo a postos para a Congregação.
Isso devia ser uma visão e tanto, Tottie de cabeça de pássaro e Sybil
a acelerar pela noite adentro.
- Ela ainda tem a cabeça posta? - perguntei.
Lex lançou-me um olhar estranho.
- Tomaste alguma coisa?
- Oh, não sejas estúpido - disparei, com a zanga a dissipar parte do
choque que perdurava. - Nem sequer bebo muito, quanto mais qualquer
outra coisa! Só tive uma visão da Tottie a conduzir a moto-quatro com
aquela máscara ainda posta, nada mais.
- Isso seria bastante esquisito - reconheceu ele. - Mas calculo que
a tenha tirado e que seja a Sybil a conduzir.
Juntámo-nos aos últimos espectadores que desciam pela ladeira e River,
ainda uma sinfonia espetral e prateada, caminhou ao nosso lado. Tinha
a máscara de pássaro de Tottie debaixo do braço, o que respondia à minha
pergunta.
River pareceu dar por alguma tensão entre nós, ou talvez tenha sido
pela forma como Lex ainda me agarrava o braço, como um guarda prisional.
- Estás bem, Meg?
Livrei-me de Lex e dei antes o braço a River.
- Estou. Só tropecei perto da beira do planalto e por pouco não caí
pelo desfiladeiro. Foi um choque e tanto.
- Ela acha que alguém a empurrou - disse Lex num tom sardónico.
- Não, na verdade não acho, só tive essa sensação, mas deve ter sido
uma rajada de vento, que já me apanhou desequilibrada - ripostei. -
Agora estou só com frio. Vamos, River, desçamos juntos.
Lex avançou à nossa frente, mas, quando chegámos ao fundo, ele estava
à espera junto à carrinha e insistiu em levar-nos até à casa. Mal valia
a pena a boleia, na verdade, pois Underhill, ocultada por uma curva
da estrada ladeada por árvores, na verdade ficava a pouco mais de uns
duzentos metros de distância.
Havia mais alguns carros estacionados no pátio, incluindo o de Clara.
A grande porta da casa, iluminada por candeeiros gémeos de dimensões
gigantes, estava aberta para o corredor que dava para o átrio. Faixas
de luz amarela incidiam sobre os degraus e o empedrado salpicado de
neve.
Quando Lex desligou o motor, dava para ouvir o sussurro de flocos de
neve cristalinos a cair no para-brisas.
- Agora vamos à Congregação - disse River, ajustando a sua coroa de
azevinho e alinhando os longos mantos antes de sair. - Anda, Meg.
Nesse momento, eu teria preferido simplesmente ir para casa, pois não
só recomeçara a tremer como também me sentia como se me tivesse
arrastado por um arbusto espinhoso, coisa que, de facto, acontecera.
Começavam a doer-me as partes do corpo que tinham aterrado com força
ao cair e as minhas mãos pareciam figos-da-índia, cheios de picos.
No entanto, como River já tinha saído da carrinha e estava à minha
espera, não havia nada a fazer. Deu-me um aperto encorajador no braço.
- Vamos ver se alguém está com um ar comprometido - sugeriu, como se
aquilo fosse alguma espécie de jogo de mistério. Lex dirigiu-lhe um
dos seus olhares sardónicos e avançou à nossa frente.
O átrio, que eu até então tinha considerado um espaço frio, gélido e
cheio de eco, apresentava agora uma faceta completamente diferente.
Resplandecia e um enorme fogo ardia na lareira imensa. O espaço estava
tão quente que suspeitei que alguém - provavelmente Sybil - ligara o
aquecimento no máximo.
Também deveria ter sido ela a decorar a divisão com grinaldas de hera,
azevinho e visco.
Havia vários grupos por ali, alguns à volta de uma mesa comprida assente
em cavaletes que tinha uma taça de ponche em cada ponta e, no meio,
um gigante bolo escuro, do qual já faltava uma grande porção.
Os participantes tinham despido os fatos e deixado as cabeças, os mantos
e os tabardos debaixo da mesa, mas a maioria das pessoas estava a tirar
camadas de roupa.
Quanto a mim, despi o anoraque e tentei alisar o cabelo, mas isso
fazia-me doer as mãos. Reparei que uma ou duas das pessoas mais próximas
de mim estavam a fitar-me, pelo que devia ter um ar um pouco
desalinhado... ou talvez fosse apenas por causa do cabelo cor-de-rosa?
A maior parte, porém, estava tão ocupada a comer, beber e conversar
que nem sequer dera pela nossa chegada e os que tinham dado não tinham
um ar particularmente culpado. Era só um grupo de gente comum a
divertir-se, eu não conhecia quase ninguém e comecei a sentir-me um
pouco idiota, desejando não ter contado a Lex que achava que me tinham
empurrado.
Estava justamente a pensar se deveria tentar encontrar uma casa de banho
para me refrescar um pouco quando uma pequena forma branca e preta se
contorceu pela floresta de pernas e desatou a saltar a meus pés e a
ladrar, extasiada.
- Pansy! - Peguei-lhe ao colo e segurei-a bem enquanto ela me lambia
o queixo com todo o entusiasmo.
Lex apareceu com três copos a fumegar, daqueles que têm um suporte
metálico com pegas, e entregou-me um e outro a River. Meti Pansy debaixo
de um braço e dei um golinho cauteloso.
- Hot toddy... estás com ar de quem precisa - disse ele.
Era um gesto inesperadamente amável e eu tomei mais um golinho. Tinha
um sabor apimentado e a laranja e... algo mais.
- Tem álcool?
- Sim, mas não muito, por isso pedi ao Gidney que juntasse um pouco
de brande ao teu.
- Eu não gosto de brande!
- É para te refazeres do choque, e também não vais sentir grande sabor
para além das especiarias e do limão.
River, de bebida na mão, sorriu-nos e depois afastou-se para ir falar
com alguém. Tinha despido os mantos e uma ou duas camadas de roupa,
mas não tirara a coroa de visco. Até que ficava bem com a túnica negra
com runas douradas bordadas, que agora se revelava em toda a sua glória.
A beber o toddy, o calor começou a espalhar-se por dentro de mim,
derretendo o nó de frio e choque. Pansy remexeu-se e eu pousei-a no
chão, mas ela manteve-se perto de mim, a fitar-me com uns olhos escuros
e confiantes.
Toda a gente tagarelava alegremente, comia bolo e bebia - tratava-se
de uma comunidade pequena, onde todos se conheciam - e eu senti-me
estranhamente alheia a tudo aquilo, como se o observasse por uma janela.
Aquilo no cimo da colina fora um mundo completamente diferente, o que
provavelmente justificava que a minha imaginação se tivesse
descontrolado. Lex devia ter razão.
Mark, com um ar quase cordial, agora que se vira obrigado a ser
hospitaleiro, viu-me por fim e aproximou-se.
- Meg, aí está - disse-me avidamente. - Estava à sua procura e... -
Interrompeu-se ao dar pelo meu estado e depois perguntou, preocupado:
- Teve algum acidente, Meg? Parece que tem uma nódoa negra na cara e...
- Acho que deve ser lama e não uma nódoa negra - respondi, tocando ao
de leve na cara. - Realmente caí na colina, mas estou bem.
- A Meg quase caiu do planalto depois da cerimónia e acha que alguém
a empurrou - disse Lex, ao que olhei para ele, zangada.
- Não acho nada. Foi só o vento que me atingiu e desequilibrou.
Mark lançou-me um olhar inexpressivo.
- Porque é que alguém haveria de querer empurrá-la?
Corei, sentindo-me tonta.
- Por nada. Não ligue ao Lex! Eu não devia ter-me aproximado tanto da
beira e tive a sorte de o Lex me ter visto e puxado para cima.
- Não estava a usar luvas? - perguntou Mark, reparando nas minhas pobres
mãos todas arranhadas.
- Tirei-as para procurar um lenço. O vento estava a deixar-me com
lágrimas nos olhos.
- É uma queda e tanto dali, por isso teve sorte - disse ele, parecendo
tão preocupado que me comovi.
Acabei o copo e, de repente, senti-me muito melhor.
- Toma, também podes beber o meu - disse Lex, trocando o meu copo vazio
pelo seu, ainda intacto. - Vou buscar outro.
Mark passou um braço à volta dos meus ombros - num gesto de primo e
não romântico, esperava eu - e, num tom ansioso, disse:
- Meg, tem de vir comigo e deixar-me passar-lhe antissético nas mãos.
E esse arranhão na cara também precisa de ser limpo.
- Oh, eu estou bem - disse-lhe, sorrindo e sentindo-me acalentada pela
sua preocupação. - Acho que não tardaremos a voltar para a Casa Vermelha
e depois trato disso.
- Eu levava-a já, mas como anfitrião...
- Eu posso levar a Meg quando ela quiser - interrompeu Lex com concisão.
Preparava-me para negar qualquer desejo de deixar a Congregação antes
dos outros quando uma pequena voz doce junto ao meu cotovelo exclamou:
- Lex, aí estás tu! E Mark, querido... andava à vossa procura.
Uma mulher pequena com cerca de trinta anos, de grandes olhos castanhos
e caracóis finos da mesma cor, encontrava-se a bater as pestanas longas
aos dois homens, como se comunicasse com eles por código morse.
Qualquer que fosse a mensagem, não foi compreendida, pois Lex
limitou-se a acenar-lhe descontraidamente com a cabeça e a saudação
de Mark foi tudo menos entusiasta.
- Olá, Flora.
Então era aquela a antiga ama de Teddy.
Ignorando-me, ela estava completamente concentrada em Mark, que
entretanto retirara o braço dos meus ombros e dissera, num tom algo
envergonhado:
- Não sabia que tinhas voltado, Flora.
- A Clara não te disse? O meu último emprego simplesmente não resultou
porque o marido não conseguia manter-se longe de mim, dissesse eu o
que dissesse, e a mulher estava a ficar ciumenta. Entreguei-lhe o meu
pedido de demissão e vim para casa.
- É verdade, ela falou disso no outro dia mas eu tinha-me esquecido
- disse ele, sem tato. - Lamento que tenhas ficado sem emprego.
- Oh, bem, ao menos assim podemos ver-nos durante as férias, enquanto
eu procuro outra colocação. Tive tantas saudades tuas, Mark.
Dirigiu-lhe um sorriso especial e íntimo e a intensidade na sua voz
era impossível de ignorar.
Mark começou a parecer ligeiramente acossado, embora eu me lembrasse
de ter ouvido que ele tinha andado com ela numa visita anterior. Tudo
indicava que ela queria reatar as coisas.
- Eu vou andar mesmo ocupado com as remodelações, incluindo durante
o Natal - apressou-se ele a dizer.
- Foi o que ouvi dizer, e estou morta por ver o que tens andado a fazer
- disse ela, sem se dissuadir. - Eu podia ajudar-te enquanto cá estou,
se quiseres?
Mark ia parecendo cada vez mais desconfortável e não parava de me lançar
olhares, enquanto Flora continuava a fingir que eu não existia.
Mas Lex era imune às suas táticas e apresentou-nos.
- Meg, esta é a antiga ama do Teddy, a Flora Johnson. Flora, apresento-te
a Meg Harkness.
A contragosto, ela virou-se.
- Oh, sim, a retratista. Já sei tudo a seu respeito, porque trouxe comigo
uma pessoa que você conhece muito bem.
Uma terrível suspeita já começava a formar-se na minha mente quando,
com um efeito similar à da abertura do mar Vermelho, ela apontou e um
caminho até à lareira revelou, encurvada numa cadeira, uma figura tão
familiar quanto indesejada.
- É alguém que eu também reconheço - disse Lex. - Rollo Purvis.
- Oh? - Ela parecia surpreendida. - É o namorado da Meg.
- Não, não é! - disparei. - Já nem sequer é meu amigo, é apenas alguém
a tentar aproveitar-se do facto de me conhecer para falar com o Henry.
- Ele disse que o tem ignorado desde que veio pintar o retrato de Clara
e que achava que talvez tivesse conhecido outra pessoa.
O seu olhar límpido observou-me, magoada e desalinhada, e depois as
suas sobrancelhas ergueram-se e ela olhou primeiro para Lex e depois
para Mark, como se os incitasse a considerar tal ideia tão ridícula
quanto lhe parecia a ela.
- O Rollo só queria vê-la - disse ela. - Por isso lembrou-se de lhe
fazer uma surpresa.
- Não há dúvida de que me surpreende que ele seja suficientemente
estúpido para atravessar os montes Peninos no meio do inverno no seu
descapotável desportivo - repliquei com azedume.
- Ele hospedou-se no Lúcio de Duas Cabeças ontem à noite, mas hoje de
manhã o carro não pegava e rebocaram-no para a oficina - disse ela.
- Foi por isso que lhe ofereci boleia.
- Espero que lhe dê uma boleia de volta também, e depressa - disse-lhe
eu. E depois marchei pelo salão até Rollo e parafraseei a minha citação
preferida de um filme.
- De todas as casas senhoriais no mundo, tinhas de escolher esta?
- Casablanca - disse Clara, que estava junto à lareira com uma bota
sobre o guarda-fogo. - A Flora encontrou-o no pub, Meg, e trouxe-o.
Ofereceu-se para o hospedar durante esta noite.
- Acabo de saber do teu carro, Rollo. És mesmo imbecil, para o trazeres
para atravessar os montes Peninos. Não viste o boletim meteorológico?
Os outros tinham-me seguido e Flora comentou:
- Foi uma sorte eu ter parado em Thorstane a caminho de casa, para
comprar alguns mantimentos, e que depois tivesse decidido parar no pub
para almoçar. O pobre carro do Rollo estava mesmo a ser rebocado quando
cheguei.
- Já era tarde quando cheguei a Thorstane, ontem, por isso, quando vi
que o pub tinha uma placa a dizer «motel», entrei - disse Rollo.
- Começámos a conversar - explicou Flora -, e claro que, assim que soube
para onde ele queria ir, ofereci-lhe boleia.
- Claro que sim, querida - replicou Clara com ironia.
- A viagem desde York demorou mais horas do que eu esperava - disse
Rollo, olhando para mim como se esperasse compaixão. Não obtendo
qualquer reação, acrescentou, indignado: - Se alguma vez visses o
telemóvel, Meg, terias sabido da minha viagem infernal e terias ido
buscar-me ao motel.
- Deves estar a sonhar - respondi, mas ele estava absorto nos horrores
recordados da viagem.
- Por causa da neve, fiquei parado durante horas na autoestrada e
enregelei por completo. Tu sabes que tenho um peito fraco e a mãezinha
ficou fora de si ontem à noite quando lhe liguei e lhe contei.
Ele estremeceu pateticamente no seu casaco que recordava vagamente
Byron, sobre uma camisola fina de caxemira, e depois espirrou.
River apareceu vindo do nada, como de costume, com os olhos luminosos
e profundos a refulgir sob a coroa de visco, e citou:
- «Tive uma febre atroz».
- Eu não tenho febre - ripostou Rollo. - E não esperava encontrá-lo
aqui!
- Brief Lives, de John Aubrey - disse Clara, encantada. - A minha frase
preferida dele é a que diz assim: «Ciática; ele curou-a, fervendo as
nádegas.»
Sorriram um ao outro, o que pareceu irritar Rollo ainda mais. Nunca
se afeiçoara a River, nas poucas ocasiões em que se tinham encontrado.
- A Clara teve a amabilidade de me convidar para o Solstício - disse-lhe
River. - Fiz de Velho Inverno... tu não assististe à cerimónia?
- Não, já era tarde quando chegámos a casa da tia da Flora e, como parece
que apanhei um resfriado, só a esperança de conhecer o grande Henry
Doome me fez sair esta noite.
Utilizou o olhar lânguido por baixo das pestanas longas que considerava
ser irresistível para as mulheres. Era a versão masculina da técnica
de Flora, o que me pareceu cómico.
- Eu duvido que o sentimento seja mútuo - disse Clara, para lhe esmagar
a esperança. - E, se está a chocar uma constipação, prefiro mesmo que
não se aproxime dele, porque é capaz de o deixar doente.
- Não é uma constipação, é um resfriado - disse Rollo. - O meu quarto
no pub também não era lá muito quente, embora a comida fosse boa e...
- Interrompeu-se e olhou para o outro lado da sala. - Aquele não é o
dono do pub, ali ao pé da mesa?
- Sim, o Fred tem um papel na cerimónia do Solstício. Se falar com ele,
é provável que o leve de volta esta noite, e depois pode ir diretamente
para casa amanhã, quando a oficina tiver arranjado o seu carro - foi
a sugestão sensata de Clara. - Calculo que vá partir em breve, antes
que a estrada sobre as charnecas fique coberta de gelo.
- Oh, eu não conseguiria enfrentar aquele quarto gelado esta noite -
protestou Rollo num tom abatido, ao mesmo tempo que tinha um calafrio.
- Sinto-me tão doente.
- Não tens de o enfrentar - garantiu-lhe Flora. - Podes ficar na pensão
esta noite e amanhã de manhã já deves sentir-te muito melhor.
Rollo dirigiu-lhe um olhar grato.
- És muito bondosa.
Flora lançou-me um olhar triunfante, como se me tivesse passado a perna.
Claramente, Rollo convencera-a de que tínhamos alguma espécie de
relação.
- Não te importas, pois não, Mark? - disse ela, virando-se para ele
e apanhando-o de surpresa.
- O quê? - Ele sobressaltou-se. - Não, porque é que havia de me importar?
Depois o seu olhar recaiu sobre a sua mãe e ele chamou-a.
- Mãe - disse ele, passando novamente o braço à minha volta e fazendo-me
avançar -, a Meg caiu na colina. Quase foi pelo penhasco abaixo perto
da fogueira. Tem as mãos e a cara um pouco arranhadas, era bom
desinfetá-las.
- Oh, coitadinha! - exclamou Sybil, compadecida. - Ninguém a avisou
para se manter afastada da beira?
Sem esperar por resposta, acrescentou firmemente, com os instintos
maternais claramente espicaçados pelo meu estado:
- Venha lá comigo para tratarmos disso.
Foi de bom grado que a acompanhei. Não só as minhas mãos ardiam
terrivelmente, como, por essa altura, eu estava desesperada por me
afastar de Rollo.
29
Espinhoso
Sybil limpou-me o rosto e depois retirou competentemente vários
espinhos das minhas mãos. Aposto que era bem hábil com um limpa-cascos.
- É muito amável, obrigada - disse-lhe com gratidão quando ela acabou.
- As minhas mãos já estão muito melhor!
- Ainda bem, e o arranhão na cara mal se nota, se bem que é capaz de
ter uma nódoa negra aí amanhã.
- Não faz mal, acho que tive muita sorte.
- Mas como é que caiu? - perguntou-me ela com curiosidade. - Ninguém
tinha removido as pedras brancas que marcam a beira, pois não?
- Não, mas eu estava muito perto delas e uma rajada súbita de vento
desequilibrou-me. Só consegui agarrar-me àquela urze enquanto caía!
- Estremeci, a recordar o momento. - O Lex viu-me e puxou-me.
- Ainda bem que o fez - disse ela. - Eu sei que só está cá há pouco
tempo, mas tenho a certeza de que toda a gente da Casa Vermelha já se
afeiçoou a si... e o Mark também, sem dúvida!
Fez uma pausa, continuando a arrumar a tesoura e os pensos na caixa
de primeiros-socorros.
- Eu... posso não lhe ter dado as boas-vindas mais calorosas à família,
Meg, mas a sua existência foi uma surpresa para mim e... bem, demorei
algum tempo a aceitar tudo isso.
- Não tem problema. Eu também precisei de algum tempo para me habituar
à ideia - assegurei-lhe.
- É claro que ao início, como o Mark, receei que pudesse reclamar parte
da propriedade, o que tornaria as coisas muito difíceis para ele.
- Eu compreendo, mas, mesmo que isso fosse possível, não quero nada
mais do que saber que faço parte da família. A minha mãe sentiria
exatamente o mesmo.
- Obrigada - disse ela, e depois acrescentou a sorrir: - A Meg e o Mark
entenderam-se logo, não foi? E tenho a certeza de que em breve ganhará
apego a Underhill. - Dirigiu-me um olhar que eu não percebi bem. - O
Mark disse-me que tinha ficado muito interessada nos planos dele.
- É uma casa antiga encantadora - respondi. Na verdade, os excessos
góticos da Casa Vermelha iam mais ao encontro do meu gosto.
- O Mark gosta muito de si... deu para ver isso esta noite... e não
tem realmente importância que sejam primos, afinal - disse ela, mais
para si mesma do que para mim, evidentemente seguindo algum raciocínio
interno. - Seria perfeito!
Já não havia como não entender a direção que os seus comentários haviam
tomado, pelo que lhe disse com firmeza:
- Tenho a certeza de que sermos primos nos tornará ainda melhores
amigos.
Mesmo que Mark fizesse o meu género, coisa que não fazia, tinha alguns
pontos a desfavor, como ser vários anos mais novo do que eu e parecer
ter questões por resolver de relações anteriores. Eu já tinha um
casanova na minha vida e não andava à procura de um substituto.
- Estou desejosa de a conhecer melhor durante o Natal - disse Sybil.
- Será bom sair daqui.
- Isso faz-me lembrar - disse eu - que o Mark é capaz de ter uma
assistente durante as férias, porque a Flora acabou de se oferecer para
o ajudar a decorar enquanto está por cá.
A expressão de Sybil, que tinha estado pensativa, tornou-se sombria.
- Espero que ele tenha recusado. Sob aquela farsa doce e fofa de
«coitadinha de mim», aquilo é uma devoradora de homens! Acossou o pobre
Lex quando era ama do Teddy e depois, da última vez que veio a casa
entre um emprego e outro e por acaso o Mark também estava por cá, a
tratar da herança depois da legitimação do testamento, não o deixava
em paz. Só porque ele sentia pena dela e a levou a jantar fora algumas
vezes, ela parece estar convencida de que tinham uma relação.
Eu achava que tinha havido um pouco mais entre eles do que isso, mesmo
que não fosse nada sério, da parte de Mark. Talvez ele devesse ter
deixado isso mais claro desde o início.
- Bem, é melhor voltarmos - disse ela e, quando chegámos ao átrio,
tornou-se evidente que nos tínhamos demorado mais do que eu julgava,
pois montes de pessoas já tinham partido e o resto estava a vestir de
novo os anoraques e sobretudos e a enrolar cachecóis à volta do pescoço.
Lex encontrava-se encostado ao fundo da escadaria e parecia estar à
minha espera, mas eu não via nem sinal dos outros.
- Aí estás, finalmente - disse ele, endireitando-se. - O Den levou todos
os outros para casa, exceto a Tottie, que vai a pé pelos campos com
o Len Snowball, para o ajudar a reunir os cavalos.
- Que atencioso da querida Tottie - comentou Sybil. - Prevê-se um forte
nevão para esta noite, por isso pedi ao Len que os trouxesse para os
estábulos.
Depois pediu licença e foi acelerar a partida dos restantes convidados.
Lex fitou-me.
- O Mark ofereceu-se para te levar a casa mais tarde, mas eu disse-lhe
que esperava por ti.
De repente, apercebi-me de que aquela seria a oportunidade perfeita
para ter a tal conversa privada com Lex que prometera a River, mesmo
que isso fosse a última coisa que me apetecesse fazer naquele momento.
Também tinha a mente um pouco turva, o que deveria ser por causa do
shot generoso de brande na minha bebida. Não estou habituada a bebidas
espirituosas.
- Foi amável da tua parte esperares por mim - respondi-lhe num tom
formal.
- Nem por isso. Achei que estava na altura de termos uma pequena
conversa.
Fitei-o, surpreendida.
- Tens razão, e eu ia sugerir-te que parássemos algures a caminho de
casa para aclararmos as coisas.
- O River disse-me que eu tinha a mente fechada e precisava de abrir
a porta e dar-te ouvidos.
- Isso dá a impressão de que tenho estado a gritar contigo pela fechadura
- repliquei, ao que o fantasma de um sorriso lhe aflorou os lábios.
- Bem, aqui está a tua oportunidade de gritares comigo cara a cara.
Depois de recuperar o casaco da pilha desmanchada debaixo da mesa e
de o vestir, juntei-me a Lex e Mark, que estavam perto da porta.
Mark dirigiu-me um sorriso caloroso.
- Estou a ver que a minha mãe tratou de si. Está com muito melhor aspeto.
- É incrível a diferença que fez lavar a lama da cara e pentear-me -
concordei. - Estou bem, a sério, são só uns arranhões e nódoas negras.
- É melhor irmos andando - disse Lex. - Ainda está a nevar?
- Sim, mas aquele vento súbito amainou tão depressa como apareceu.
O olhar de Mark fixou-se algures atrás de mim e, ao virar-me, vi Flora
com Rollo, mal o reconhecendo, já que estava embrulhado num impermeável
velho que o cobria do pescoço aos pés. Estava nesse momento a puxar
o capuz largo para a cabeça para completar a imitação de um monge louco
e evitou olhar para mim, agradecendo apenas a Mark ter-lhe emprestado
aquele casaco.
- Não tem problema. É um impermeável antigo do meu avô que mantemos
nas traseiras para emprestar a quem precise, por isso não tem de se
apressar a devolvê-lo.
- Eu trago-o quando vier cá amanhã à tarde, depois de levar o Rollo
a Thorstane, Mark - disse Flora num tom animado. - Temos tanta conversa
para pôr em dia e quero saber tudo acerca das remodelações. -
Dirigiu-lhe um sorriso cativante, com o rosto emoldurado por pelo
artificial branco como a neve.
- Receio bem que vá andar demasiado ocupado para receber visitas -
respondeu ele, com mais pressa do que tato. - Amanhã a minha mãe vai
para a Casa Vermelha para passar lá o Natal, pelo que poderei avançar
com o trabalho aqui.
- A sério? Mas não vais querer passar o Natal sozinho, seguramente?
- perguntou ela, arregalando os seus grandes olhos. - E, seja como for,
eu não sou uma visita, pois não? Também posso ajudar-te.
Mark podia ter agido mal, mas ela agora começava a fazer-me lembrar
uma fada pequena, bonita, mas predadora, com dentes vermelhos e unhas
afiadas. Do tipo sombrio que se encontrava nalgumas histórias antigas,
como as dos irmãos Grimm.
Rollo tinha-se colocado a meu lado sem que eu desse por isso e disse-me
então numa voz baixa:
- Meg, já que fiz esta viagem toda e apanhei um resfriado, certamente
vai deixar-me ir visitar-te amanhã de manhã, antes de me ir embora?
- Bom, como hei de dizer isto de uma forma delicada, Rollo? - ponderei
em voz alta. - Não!
- Você é terrivelmente difícil, não é? - comentou Flora, fitando-me
com um ar triste e com a cabeça inclinada para o lado, como um pássaro.
Um pequeno abutre, talvez. Ou talvez um busardo, a descrever círculos
no ar sobre uma nova presa. - Coitado do Rollo!
- Qual coitado! - disparei. - E se fosse a mim que ele queria ver, está
mesmo à minha frente agora, não está?
Rollo lançou-me um olhar zangado na sua melhor imitação de Byron, que,
sob o capuz e com um nariz rosado e olhos lacrimejantes, não lhe saiu
lá muito bem.
- Ao que parece, a previsão do tempo é de um nevão forte para esta noite,
por isso o melhor é voltares já para o motel, enquanto podes - avisei-o.
- Oh, não vai ser assim tão mau... e não se preocupe, que eu tomo conta
dele - disse-me Flora.
Apostava que sim.
Depois virou toda a sua voltagem para Lex, sorriso e pestanas a
agitar-se ao máximo: obviamente, não era capaz de estar próxima de
qualquer homem bem-apessoado sem dar o seu melhor.
- Oh, Lex, podes dizer à Clara que em breve vou lá dar um pulo para
ver o Teddy? - arrulhou ela, acrescentando então para mim: - Ele
adora-me. Eu fui ama dele, sabe. Vi-o há bocado, mas ele não deve ter
dado por mim, caso contrário teria vindo dizer-me olá.
- Deu, deu, mas o Fred estava a ensinar-lhe o truque do lenço que
desaparece com a fita da Clara - disse Lex. - Isso era muito mais
interessante.
- Oh, obrigada - replicou ela, a fazer beicinho.
- Vou só despedir-me da Sybil e depois podemos ir - disse eu rapidamente
a Lex, fazendo em seguida isso mesmo.
Também teria gostado de me despedir de Pansy, mas Mark tinha fechado
as cadelas na sala da manhã.
Fomos os últimos a sair e os Gidney já estavam a levantar a mesa. A
travessa que contivera o enorme bolo de melaço estava vazia, à exceção
das migalhas espalhadas.
Rollo e Flora tinham ido embora e eu achava que, se ela tivesse algum
juízo, o levaria diretamente para o pub e o deixaria aí.
Antes de me ir embora, Mark tinha-me surpreendido ao beijar-me de uma
forma muito pouco adequada a um primo debaixo de uma grinalda de visco
e, quando ocupei o lugar do passageiro na carrinha de caixa aberta ao
lado de Lex, este disse:
- Talvez preferisses que fosse o Mark a levar-te a casa? Ele parece
ter recuperado daquele ligeiro choque ao saber que eram parentes e
desconfiar que querias ficar-lhe com o dinheiro, não parece?
- Não, não prefiro, e o que te disse no moinho é a verdade: não estou
interessada nele e tenho a certeza de que ele tampouco está seriamente
interessado em mim.
Mas gostava dele, e tinha sido amável naquela noite. Quando o conhecera,
achara que tratava mal Sybil, mas entretanto apercebera-me de que o
que o motivava era a sua paixão por Underhill e de que isso o levava
a fazer tudo o que fosse preciso para manter a propriedade.
- Tenho a certeza de que ele gostaria de que o ajudasses a decorar o
espaço - sugeriu Lex.
- Vai ter de se contentar com a ajuda da Flora. Eu sou uma retratista,
não uma companheira de decorações.
O lugar da frente era um banco comprido e eu mantive um bom espaço entre
nós, esperando que o aquecimento não tardasse a funcionar, enquanto
Lex descia pelo acesso.
Em frente aos faróis, a neve rodopiava em flocos bastante grandes e
planos que assentavam no chão.
- Começa a parecer que o boletim meteorológico acertou: queda intensa
de neve para esta noite sobre as charnecas - disse Lex. - Por isso,
se a Flora não quiser ter de aturar o Rollo mais do que uma noite, espero
que já vá a caminho do pub.
- Foi o que pensei. Continuo furiosa com ele por ter aparecido aqui,
porque já lhe tinha dito que nunca mais queria vê-lo ou ter notícias
dele depois de ele ter telefonado à Clara.
- Acho que ele não entendeu a mensagem, e parece que tem estado a contar
à Flora uma história acerca de estar numa relação contigo.
Isso era óbvio, mas eu agora perguntava-me se o seu instinto de
sobrevivência não teria entrado em ação ao conhecer Flora no pub,
avisando-o de que o melhor era dizer-lhe que estava envolvido com
alguém?
Enquanto avançávamos pela aldeia, o único sinal de vida eram umas
quantas janelas iluminadas, incluindo as da Preciousss.
- Podemos parar um bocado junto ao Club de Vela, debaixo dos pinheiros,
onde é abrigado - disse Lex, virando por um trilho que percorria os
bosques até estacionar de frente para o reservatório cintilante, ao
lado da silhueta escura de um edifício, e apagar as luzes.
Aquilo parecia o início de um policial... mas talvez já tivéssemos tido
o primeiro ato? Enquanto íamos para ali, eu deixara a mente regressar
àquele momento pavoroso em que quase caíra e, por mais irracional que
pudesse ser, tinha a certeza de que não imaginara o forte empurrão de
duas mãos no fundo das minhas costas.
Lex ligou a luz do habitáculo, que emitia um brilho fosco, e virou-se
para mim. Pareceu pressentir o que eu estava a pensar, o que era
desconcertante.
- Continuas a achar que alguém tentou empurrar-te da colina abaixo?
Dei-lhe uma resposta indireta.
- Não vejo por que raio alguém haveria de o fazer, a menos que tenham
algum engraçadinho de serviço por aqui.
- Não, e não teria graça nenhuma se tivesses caído mesmo.
Estremeci.
- Então só pode ter sido um acidente. E, seja como for - disse eu,
ganhando coragem -, não era disso que eu te queria falar. O River disse
que estava na altura de te contar exatamente o que aconteceu entre nós
na noite em que foste ao meu apartamento. Não que eu não tenha já tentado
- acrescentei com azedume.
- Mas eu já sei o que aconteceu... ou o suficiente do que aconteceu.
De que é que serve remexer no passado agora?
- Mas é que não sabes, a questão é essa - disse-lhe num tom insistente.
- Só julgas que sabes. Tu e o Al criaram uma imagem completa a partir
de algumas peças e sem me pedir a minha versão.
Ele suspirou, passando uma mão pelo cabelo já emaranhado, com uma
expressão carregada no rosto bonito e sombrio de falcão à luz ténue.
- Olha, tanto tu como eu bebemos muito nessa noite, Meg, e eu já te
disse que não te culpo pelo que aconteceu, mas a mim mesmo, por me ter
embebedado tanto que não sabia o que fazia.
- Não tens nada de que me culpar, por mais magnânimo que isso possa
ser da tua parte - ripostei sarcasticamente, mas ele estava preso ao
passado e a afogar-se num mar de culpa antiga.
- Se o Al não tivesse conseguido encontrar-me, eu poderia ter chegado
tarde de mais para ver a Lisa. Nem suporto pensar nisso!
- Sim, eu sei - respondi, num tom um pouco mais brando. - Mas andavas
sob grande pressão havia semanas e não tinhas forma de saber que ela
precisaria de ti naquela noite. Agora se calhar já podias parar de te
espojar na culpa por uns minutos e limitar-te a ouvir-me.
Estava a ser dura, mas a mensagem passou, pois ele concordou num tom
tenso:
- Obviamente estás determinada a repisar tudo isso, portanto, vamos
lá despachar a coisa.
- Não sei quanto te lembras do início dessa noite em que nos encontrámos
no bar - disse-lhe eu. - Quando entrei com um grupo de amigos meus,
tu e o Al já lá estavam e insistiram para que nos juntássemos a vocês.
Já tinham bebido bastante por essa altura.
- Eu estava a tentar esquecer o que estava a acontecer por umas horas.
- Esfregou a testa, como se a memória o magoasse. - A Lisa vira-se
finalmente obrigada a ir para os cuidados paliativos e os pais dela
tinham chegado nesse dia para estar com ela... por isso, em vez de me
deixar ir para casa sozinho, o Al levou-me a beber um copo.
- Que se transformou em vários copos - disse eu. - Eu também tinha bebido
uns quantos, mas depois passei para café quando os outros se foram
embora e nós ficámos ali, a conversar.
- O Al trabalhava como porteiro noturno de um hotel, por isso também
teve de ir embora. Lembro-me dessa parte... e depois de todos se terem
ido embora, tu contaste-me que o teu namorado acabava de te dar com
os pés por email... era o Rollo?
Assenti com a cabeça.
- Sim, pela primeira vez, que não seria a última. Fui louca quando lhe
dei uma segunda oportunidade. - E depois uma terceira e última.
- As coisas começam a ficar pouco nítidas a partir daí - admitiu Lex.
- Acho... acho que te falei da Lisa.
- Desabafaste tudo o que tinhas a dizer sobre esse assunto - respondi
com franqueza. - Contaste-me que tinhas apoiado a decisão dela de não
se submeter a quimioterapia, contra a vontade dos pais, porque a
possibilidade de resultar era exígua e ela queria aproveitar o que lhe
restasse da vida. E falaste-me da culpa que sentias em relação a isso,
depois de ela ter piorado tão depressa.
- Pus mesmo a alma a nu, não foi? - comentou ele com secura. - Sabia
que tínhamos falado um bocado, mas não tinha noção do quanto te tinha
contado.
- Eu julgava que tinha sido por isso que me viraste costas da vez
seguinte que te vi... por te sentires envergonhado por me teres contado
tantas coisas pessoais.
- Não, não foi por isso. Nem me lembrava do que tinha dito.
- Agora sei isso, mas só depois de o Al me ter insultado como um louco
nesse mesmo dia é que me apercebi da verdade... e do que vocês os dois
pensavam de mim!
- Ele não devia ter-se autoincumbido de dizer o que quer que fosse,
e eu já lhe disse isso. Mas tem sido um bom amigo ao longo de todo este
tempo. - Fez uma pausa. - Então, lembro-me de estar no bar contigo,
mas não sei como é que acabei no teu apartamento.
- Tu tinhas continuado a beber, mas, como estavas a falar perfeitamente
bem, não me apercebi de como estavas bêbado até termos saído. Quando
chegámos à rua, chovia a cântaros e o ar frio deu cabo de ti: eu mal
conseguia manter-te de pé. Fomos os últimos a sair do pub e eles fecharam
a porta atrás de nós, caso contrário eu teria pedido um táxi para te
levar a casa.
Ele estava a fitar-me intensamente, embora eu não conseguisse ver-lhe
a expressão suficientemente bem para a decifrar.
- Eu vivia na esquina dessa rua, pelo que achei que o melhor a fazer
era levar-te até lá, servir-te café e chamar um táxi.
- Muito prática - comentou ele com ironia. - O que é que correu mal?
- A custo, consegui levar-te até lá: ficámos os dois ensopados. Pendurei
o teu casaco a pingar e tu foste à casa de banho enquanto eu ligava
a chaleira.
- Não me lembro de nada disso - disse ele, inexpressivo. - A primeira
coisa de que me lembro do teu apartamento é de... estar na cama contigo.
- Tu não estavas na cama comigo - repliquei, determinada. - Eu tinha-me
metido na cama porque estava gelada... nunca vivi num apartamento tão
frio e húmido como aquele... mas tu estavas deitado por cima das roupas,
tapado com uma colcha.
- Mas eu lembro-me...
- A ideia era deixares-me contar-te o que aconteceu - interrompi-o.
- Depois de chegarmos ao apartamento e de eu ligar a chaleira, não havia
sinal de ti... e encontrei-te caído na minha cama. Era ao lado da casa
de banho, pelo que acho que deves ter tropeçado e adormecido.
Desta vez, ele nada disse, pelo que continuei.
- Tentei acordar-te, mas não consegui, pelo que, ao fim de algum tempo,
achei que o melhor era deixar-te dormir e ver se a bebedeira te passava.
Tirei-te as botas e tapei-te com uma colcha extra que tinha. Depois,
porque estava molhada e gelada, preparei-me para me deitar e meti-me
na cama. Deixei a luz da mesa de cabeceira acesa, não fosses tu acordar
e não saber onde estavas.
- Sim... - disse ele devagar. - Havia uma luz acesa, porque eu lembro-me
de te ver na cama ao meu lado... e de te beijar.
- Voltaste à tona por instantes e beijaste-me logo a seguir a eu me
ter deitado, mas acho que não sabias bem o que estavas a fazer e tornaste
a desmaiar logo a seguir.
Ele estava com o sobrolho fortemente franzido, com as sobrancelhas
unidas.
- Estás a tentar dizer-me que não fomos para a cama? Que não...
- Não estou a tentar dizer-te... é a verdade! Para além desse único
beijo, tudo o que fizemos foi dormir, pelo que, se te lembras de mais
alguma coisa, isso só aconteceu na tua cabeça.
- Mas como é que posso saber que isso foi mesmo o que aconteceu e que
não estás a dizer isso só para me fazer sentir melhor?
- Porque eu nunca tive um caso de uma noite na vida. Não sou desse género
de pessoa - rosnei-lhe. - Olha, nessa noite o Rollo tinha-me partido
o coração, portanto, o que é que te leva a pensar que eu teria saltado
logo para a cama contigo?
- Mas... eu sei que tiveste uma paixoneta por mim, porque o Al costumava
gozar por tu corares sempre que falávamos.
- Fico satisfeita por vos ter proporcionado material de diversão -
repliquei friamente. - E, sim, tive uma paixoneta por ti... no meu
primeiro semestre! Depois de ter conhecido a Lisa, passou-me, porque
ela era querida e encantadora e vocês ficavam perfeitos juntos.
- Ela era uma num milhão e eu não a merecia - disse ele, ainda de sobrolho
franzido como se tentasse encaixar as peças do passado. - Quando contei
ao Al aquilo de que me lembrava, ele disse que sempre tinhas gostado
de mim e que tinhas aproveitado a oportunidade quando eu estava bêbado
para...
- Te arrastar para o meu antro e levar-te por maus caminhos? - terminei
eu, sarcástica. - O Al é louco! - acrescentei com convicção.
Decidi revelar-lhe o ponto mais decisivo.
- O que tu não sabes, Lex, é que tenho uma testemunha que confirma aquilo
que estou a dizer-te. Estava outra pessoa no apartamento nessa noite.
Seguiu-se um silêncio. Depois, ele disse:
- Mas eu não me lembro de mais ninguém.
- Não, mas também pareces ter apenas uma seleção de pequenas memórias
distorcidas do que aconteceu, não é assim? Mas a Fliss estava lá.
- A Fliss? Queres dizer a Fliss da faculdade?
- Sim, essa. Ficou no apartamento nessa noite, porque estava com gripe.
- Queres dizer que ela esteve lá o tempo todo? - Ele parecia incrédulo.
- Mas, mesmo que isso seja verdade, ela devia estar no seu quarto, se
estava doente.
- O pior já tinha passado, por essa altura, estava só fraca. Saiu para
ver o que se passava quando chegámos e, depois de te ter encontrado
perdido na minha cama, discutimos o que havíamos de fazer. Acabámos
por concluir que ficarias bem desde que dormisses, por isso ela foi
buscar uma colcha e tapámos-te. Eu e a Fliss bebemos chocolate quente
e depois eu meti-me na minha cama e ela voltou para a dela. Mas, pouco
tempo depois, ela apareceu outra vez, com o teu telemóvel na mão. Estava
há séculos a tocar no bolso do teu casaco e ela tinha-o ouvido porque
dormia no quarto ao lado da sala.
Ele continuava calado, pelo que prossegui:
- Quando ela foi ao quarto, eu estava a dormir na cama e tu continuavas
adormecido debaixo da colcha, como ela te tinha deixado. Deu-me o
telemóvel e quando atendi era o Al, à tua procura.
Por fim, Lex reagiu.
- Os pais da Lisa ligaram-lhe quando não conseguiram contactar-me...
e lembro-me de ele me ter ido buscar. Eu ainda estava molhado...
- Não, estavas molhado porque te tínhamos atirado água gelada para a
cara a tentar acordar-te - disse eu. - O som do teu telemóvel pareceu
despertar-te um pouco, também, e, depois da água gelada e de umas
canecas de café, quando ele chegou estavas quase coerente.
- Mas o Al também não viu mais ninguém no apartamento, caso contrário
teria dito alguma coisa. Só te viu a ti, de camisa de dormir.
- Por essa altura a Fliss já tinha voltado para o seu quarto; não se
sentia em condições de ver quem quer que fosse.
Seguiu-se outro silêncio prolongado e eu não fazia ideia do que ele
estaria a pensar, até que acabou por dizer lentamente:
- Já não sei o que é verdade e o que não é, mas, depois de teres aparecido
na Casa Vermelha, tem sido difícil fazer coincidir o que tenho pensado
de ti com a realidade. Agora... não sei em que acreditar.
Peguei no telemóvel e marquei o número de Fliss, rezando para que ela
atendesse. Ainda era cedo, apesar de estar tão escuro.
- Fliss! Desculpa incomodar-te, mas preciso da tua ajuda.
- Meg? Estás com a voz tremida... o que se passa?
- Caí há bocado, mas estou bem, e agora estou num carro com o Lex e
acabei de lhe contar a verdade acerca do que aconteceu no apartamento
naquela noite. Só que parece que ele não acredita que tu também estavas
lá.
- Passa-lhe o telefone que eu faço-o acreditar! - declarou ela num tom
beligerante, e eu assim fiz.
A conversa que se seguiu foi praticamente unilateral - provinha de
Fliss.
A expressão dele não se alterou à medida que a escutava, mas, quando
finalmente falou, disse:
- Sim, okay, acredito em ti e concordo que foi uma estupidez não ter
falado com a Meg depois.
Depois agradeceu-lhe e devolveu-me o telemóvel.
- A verdade vem sempre ao de cima - disse Fliss alegremente. - Só demorou
uma data de tempo.
- Antes tarde do que nunca - concordei. - Obrigada, Fliss.
- Não tens de quê e, se o Al e a mulher não pedirem desculpa, podes
passar-mos que eu também os ponho na ordem.
Havia anos que ela tinha vontade de dizer das boas a Al, desde que eu
lhe contara o que ele me dissera. Talvez devesse tê-la deixado?
- Espero que isso não seja necessário. De facto, espero nunca mais ter
de voltar a vê-los.
- Nesse caso, se estás bem, podemos falar de novo amanhã? - sugeriu
ela. - Vou regressar à minha celebração virtuosa sem álcool.
- Sem álcool? Porquê? - perguntei eu, mas acho que soube a resposta
antes de ela a anunciar.
- Porque estou grávida!
Fiz todos os sons certos, mas de repente sentia-me como se fosse a última
mulher sem filhos do mundo. Ela deve ter percebido, pois acrescentou:
- Desculpa, esqueci-me e...
- Não, não peças desculpa, fico muito feliz por ti - garanti-lhe. -
Ter perdido o meu bebé não faz com que não queira ouvir as boas notícias
da minha amiga. Serei a tia Meg.
Quando desliguei, Lex falou numa voz alterada:
- Meg, parece que passei todo este tempo enganado a teu respeito, e
não pude deixar de ouvir o que tu acabaste de dizer. Perdeste um bebé,
não foi? Lamento muito.
- Tive um aborto espontâneo na sequência de um acidente. Cometi o erro
de dizer ao Rollo que estava grávida enquanto ele conduzia e ele perdeu
o controlo do carro. Como supostamente íamos desafiar a mãe dele e casar
finalmente, nunca me passou pela cabeça que ele ficasse tão
horrorizado.
Lembrei-me da expressão no rosto dele imediatamente antes de ter
perdido o controlo do carro e estremeci...
- Porque é que a mãe dele não queria que ele casasse contigo?
- Não achava que eu fosse suficientemente boa para o seu querido filho,
sobretudo depois de ter sabido que a minha mãe tinha sido adotada;
tantos genes desconhecidos e aleatórios que podiam calhar nos seus
netos.
- Bem, já não são desconhecidos - ressalvou ele.
- Não, mas agora é tarde de mais.
- Talvez com o Rollo, mas não com outra pessoa.
- Não - respondi, determinada. - Vou divertir-me a ser tia dos filhos
dos meus amigos. Isso será suficiente.
Seguiu-se um longo silêncio, que Lex acabou por interromper.
- Não sei como começar a pedir desculpa por todas as coisas que pensei
acerca de ti e que te disse, desde que vieste para cá. Ainda me sinto
culpado pelo passado e pela Lisa, mas pelo menos nada disso te envolveu.
Decidi apaziguar a minha consciência de uma vez por todas. Foi preciso
um esforço e tanto.
- Há uma coisa a pesar-me acerca dessa noite no apartamento - confessei.
- Porque, quando me beijaste, ao início eu correspondi-te. Mas depois
apercebi-me do que estava a fazer e tu voltaste a perder os sentidos.
Fiquei surpreendida por te lembrares disso.
Os lábios dele retorceram-se.
- Oh, lembrava-me bem, e também que sabia que era a ti que estava a
beijar. E queria beijar-te. Isso fazia parte da culpa.
- É verdade que disseste o meu nome antes de voltares a desmaiar -
reconheci. - Nunca disse isso à Fliss.
- Se estamos a ser completamente sinceros um com o outro, houve uma
coisa que não partilhei contigo nessa noite no bar e que desde então
me tem consumido muito: eu já não estava apaixonado pela Lisa e andava
a tentar arranjar maneira de lhe dizer antes de ela ter adoecido.
Fitei-o, estupefacta.
- Mas vocês sempre pareceram um par perfeito!
- Apaixonámo-nos na escola secundária e estávamos juntos desde então.
Mas o primeiro amor nem sempre dura, pois não?
- Não, isso é verdade - disse eu, a recordar aquelas primeiras semanas
em que tivera uma paixoneta fortíssima por ele.
- Eu podia já não estar apaixonado pela Lisa, mas amava-a: ela era doce,
bondosa e linda.
- Era genuinamente a melhor pessoa que eu alguma vez conheci. Toda a
gente a adorava - concordei.
- Decidi finalmente que teria de tentar acabar a relação mesmo antes
de ela ter recebido o diagnóstico. Acho que um dia em que te vi com
o Rollo foi o que me fez decidir... tive ciúmes.
- O quê, de mim? - exclamei, incrédula. Mesmo quando estava perdida
de amores por ele, sempre o tinha achado bem fora do meu alcance.
Ainda me sentia estupefacta quando ele disse:
- Sim, de ti. - Esboçou de novo aquele sorriso contorcido. - Houve uma
ligação qualquer entre nós desde que te vi naquele corredor escuro.
Eu tinha achado que essa sensação era exclusivamente minha! Mas ele
também parecia apreciar a minha companhia... até àquela noite fatídica.
- É claro que, depois de a Lisa ser diagnosticada, tive de ficar com
ela. Continuava a adorá-la e dei o meu melhor.
- Não há dúvida disso - assegurei-lhe.
- Perto do fim, ela disse que esperava que eu pudesse seguir em frente
e ter uma boa vida com outra pessoa. Queria que só me lembrasse dos
bons momentos, se pensasse nela.
Fiquei com os olhos marejados; aquilo era tão típico dela.
- Mas tu não fizeste isso, Lex, pois não?
- Não, porque tenho andado demasiado mergulhado na pena de mim mesmo
e na culpa. E a tornar-te parte disso também.
- Não te julgues com demasiada severidade, Lex - disse eu, estendendo
a mão e pousando-a sobre a sua. - Agora vais poder deixar tudo isso
no passado, não vais? O River tinha razão: pôr tudo em pratos limpos
desanuviou o ambiente. O passado pode formar-nos, mas não temos de o
reviver constantemente.
- Isso parece mesmo o River a falar! E, sim, libertou-me: sinto que
me saiu um peso de cima, mas acho que ambos precisamos de algum tempo
para nos reajustarmos ao novo status quo.
A sua mão virou-se debaixo da minha e encerrou-a, forte e quente.
- Podemos ser amigos? - perguntou.
- Sim, para além de parentes - confirmei. - Ainda que, como estás farto
de dizer, só por afinidade, e isso não conta. Ainda por cima, sem dar
o nó!
- Que expressão mais antiquada! - exclamou ele, com a seriedade a dar
lugar à diversão. Puxou-me para si e beijou-me nos lábios tão leve e
rapidamente que pôde dar à chave antes de eu ter assimilado o que ele
acabava de fazer.
- Já me tinha esquecido de como és inesperada e divertida - disse ele
e, enquanto eu considerava o comentário (e o beijo), ele fez
marcha-atrás e começou a avançar pelo trilho escuro. A estrela tinha-se
movido e agora pairava sobre a curva para a estrada, como se esperasse
por nós.
Devia ser um sinal; porém, eu não fazia ideia do que sinalizaria. E,
vendo bem as coisas, havia pelo menos meia hora que já não pensava na
minha quase queda de Ícaro pelo precipício abaixo.
Clara
A vida de casados inaugurou uma nova fase na nossa relação.
A mãe de Henry tinha-lhe deixado o dinheiro que lhe fora atribuído,
já que George herdaria a propriedade de Underhill, uma disposição que
deveria ter parecido eminentemente justa, na altura.
Henry confiara o seu legado a um velho amigo da escola, para que o
investisse. Não fora confiança mal aplicada e pudemos então comprar
um apartamento minúsculo perto do Museu Britânico, onde eu agora
trabalhava. Até tínhamos quem nos ajudasse na casa, sob a forma do nosso
bom amigo Den, que se ligara a Henry durante uma das suas viagens à
Grécia.
Tendo absorvido do mundo exterior tudo o que precisava, Henry começou
a concentrar-se mais no passado; sentia o apelo contínuo de Starstone
Edge - de facto, esta iria sempre exercer uma atração magnética sobre
nós os dois.
Quanto a mim, consolidei o meu estatuto profissional e escrevi ensaios,
artigos e livros, sendo a minha opinião frequentemente requisitada por
museus, galerias, colecionadores privados e escavações arqueológicas.
Também tinha outra coisa a manter-me ocupada. No primeiro ano do nosso
casamento, tinha escrito, só por prazer, um policial, em que a heroína
era uma epigrafista não muito diferente de mim mesma. Encontrara uma
editora e as sequelas anuais que fui publicando foram criando um grupo
surpreendente de seguidores.
Enquanto o pai ainda era vivo, Henry dividia a maior parte do tempo
entre o apartamento e Underhill, embora evitasse a propriedade quando
George a visitava, na medida do possível.
A primeira coletânea de poesia de Henry fora alvo de críticas
maravilhosas e grandes elogios, e ele embarcava então na segunda. A
sua reputação como poeta ia crescendo, apesar de recusar participar
em quaisquer eventos públicos, para além de programas de rádio em que
lia as suas próprias palavras.
Tínhamos muitos amigos em Londres e os anos que passámos aí foram
extremamente felizes.
À medida que as nossas carreiras avançavam, sabíamos pela comunicação
social que o mesmo acontecia à de Nessa Cassidy, nos Estados Unidos.
Adotou uma forma militante de feminismo, vivia abertamente com uma
amante, Suzanne Dell (também ela escritora), e o seu livro, O Beijo
da Borboleta: Uma História da Supressão do Amor Feminino, tornou-se
um enorme sucesso.
Isso trazia-nos de novo o passado e fazia-nos pensar naquela menina
algures no mundo, que nós nunca viríamos a conhecer. Mas estávamos
satisfeitos por Nessa parecer ter encontrado o amor e construído uma
carreira própria. O livro estava bem escrito, apesar de eu ficar com
a impressão de que ela muitas vezes recorria à conjetura e não aos
factos, para lidar com o passado. Contudo, os mortos não poderiam
processá-la, claro está.
O pai de Henry faleceu subitamente e George herdou a propriedade de
Underhill, o que dificultou as visitas. Não era que não fôssemos
bem-vindos, mas não apreciávamos a companhia de George e dos seus
amigalhaços, sobretudo um deles, Piers Marten, que parecia encorajá-lo
a beber e jogar excessivamente. Também não precisava de grande
encorajamento. E chegavam-nos algumas histórias desagradáveis acerca
daquilo a que o par se dedicava no estrangeiro...
Já viúvo, George passava muito tempo na Riviera ou em Monte Carlo, onde
o dinheiro lhe corria por entre os dedos como areia.
Ele achava-se especialista em investimentos e, apesar de Henry o
aconselhar a que deixasse que fosse o seu próprio corretor a tratar
disso, de nada servia.
30
Advento
Com tudo o que tinha acontecido - mais do que suficiente não só para
me deixar a cabeça a andar à roda, mas a girar por completo como algo
saído de O Exorcista -, não esperava dormir bem nessa noite. Mas devia
estar exausta por todo o torvelinho emocional, porque adormeci assim
que encostei a cabeça à almofada e, quando abri os olhos, era de manhã
cedo.
Ali fiquei, a baralhar mentalmente os acontecimentos do dia anterior
como se fossem um baralho de cartas e a escolher umas quantas ao acaso.
Teria eu caído ou sido empurrada?
A cerimónia tinha sido uma experiência estranhamente surreal, como se
todos tivéssemos atravessado um portal para um passado mais sombrio
e misterioso, onde qualquer coisa pudesse acontecer. Mas, a menos que
os habitantes da aldeia abrigassem um maníaco homicida entre eles (algo
pelo qual provavelmente já teriam dado por aquela altura), a minha
imaginação deveria ter estado em alta.
A aparição indesejada de Rollo enquanto eu ainda me encontrava em estado
de choque só viera acrescentar mais um elemento de irrealidade. E depois
havia as questões por resolver da relação de Flora com Mark e o que
parecia ser o renovar de um interesse por mim nada adequado a um primo...
Também Sybil não fora nada discreta nas suas insinuações de que esperava
que eu e Mark tivéssemos futuro juntos... Talvez sentisse que, se
casássemos, isso daria legitimidade ao meu lugar na família?
Contudo, a vida real tem a tendência de não se apresentar com lindos
laços feitos de fitas de cetim com pontas em forma de cauda de andorinha
e, infelizmente para os planos dela, Mark não me interessava de todo.
Eu sei quem te interessa... sempre te interessou, sussurrou um pequeno
demónio na minha cabeça, a quem eu disse que se calasse e fosse embora,
porque a vida já era suficientemente complicada.
Ainda que duvidasse disso, esperava que Flora tivesse tido o bom senso
de devolver Rollo ao pub na noite anterior, porque a manhã tinha um
certo silêncio imóvel e pesado que me dizia, mesmo antes de me ter
levantado da cama e espreitado, que o mundo estava coberto de neve
espessa e branca.
Meti-me de novo na cama, aninhei-me debaixo das cobertas e, desta feita,
permiti-me pensar em Lex e na noite anterior.
River estivera certo: obrigar Lex a olhar para a altura mais dolorosa
da sua vida e reavaliar o meu papel fora catártico. Afinal, como River
dizia com frequência, as feridas nunca cicatrizavam até serem limpas.
Mas aquilo que a minha mente realmente tinha andado a evitar era a
revelação bombástica de Lex ter em tempos sentido algo por mim; até
tivera ciúmes da minha relação com Rollo! E, naquela noite no
apartamento, quisera beijar-me, já que o álcool lhe dissipara as
inibições.
E eu decerto quisera beijá-lo também até recuperar o juízo.
Parecia haver todo um mundo de coisas que poderiam ter sido como num
desses filmes com várias realidades paralelas e alternativas.
No entanto, tudo isso acontecera muito tempo antes e agora ambos
estávamos mais velhos, mais sensatos e, ao que parecia, destinados a
sermos amigos.
Eu esperava que Lex já pudesse livrar-se dos grilhões da culpa. O
fantasma de Lisa, belo e triste, estaria sempre presente, mas ela não
quereria que a sua morte lhe atormentasse a vida.
O beijo breve de Lex antes de me trazer a casa na noite anterior quisera
marcar o fim das hostilidades e o início de uma nova relação... de algum
género.
Quanto mais prima... Mark parecia mesmo convencido disso! Eu teria de
lhe desfazer as ilusões o quanto antes, não fosse Sybil publicar os
banhos e Flora decidir que eu era sua rival amorosa.
Desci um pouco mais sob o edredão quente e recordei a cena quando eu
e Lex chegáramos à Casa Vermelha na noite anterior. Parecera-me
estranho que ninguém nos tivesse perguntado o que nos fizera demorar
tanto.
- Oh, aí estão vocês - dissera Clara num tom casual, com um sorriso
radiante. - Mesmo a tempo de um jantar tardio ou de uma ceia. O Den
e a Tottie estão só a dar os últimos retoques no que quer que seja que
vamos comer.
- Tarte de queijo e cebola, com uma salada de inverno e couve-roxa -
disse River. - Crumble de amoras e creme.
- Comida farta e boa para aquecer - aprovou Clara.
- Está a começar a nevar em força - disse-lhes Lex. - Ainda bem que
não nevou assim antes, senão teria sido complicado chegar à Pedra para
a cerimónia.
- Nunca se adiou uma cerimónia, mesmo que apenas os participantes
chegassem lá ao cimo - disse Henry, acrescentando em seguida para River:
- Temo que talvez não possa partir de manhã, mas sinta-se à vontade
para ficar durante todo o tempo que desejar.
River agradeceu-lhe e respondeu que isso estava nas mãos da Deusa e
que esperaria para ver como ela orientava as coisas. Imaginei-a como
uma espécie de Polícia Sinaleira celestial.
Ansioso, Teddy perguntou:
- E a mamã vai conseguir chegar amanhã?
- Sim - garantiu-lhe Lex -, nem que eu tenha de pedir os esquis
emprestados ao tio Henry e trazê-la para cá às cavalitas.
Teddy tinha achado muita graça a isso e manteve-se bastante conversador
e animado durante o jantar, até a excitação do dia começar a pesar-lhe
e, se não fosse Tottie tê-lo apanhado mesmo a tempo, ele teria caído
de cara na sobremesa, completamente adormecido.
Eu tinha-me sentido um pouco atrapalhada com Lex - OK, muito atrapalhada
- e tentara evitar olhar na direção dele, mas, em uma ou duas ocasiões
em que lhe dirigira um relance, dera por ele a sorrir-me com uma
amabilidade que me parecia mais insuportável do que a animosidade que
existira antes.
Isso, porém, não me impedira de comer como se tivesse passado um mês
esfomeada. Deve ser esse o efeito de uma experiência de quase morte
seguida de muita conversa íntima e reveladora.
Toda a gente parecia saber que eu caíra, mas ninguém referiu que pudesse
ter sido outra coisa que não um acidente.
Eu não podia ficar ali deitada para sempre e o dia começava a raiar,
pelo que tomei duche, descobrindo mais uns quantos altos e hematomas
num dos lados do corpo, mas já mal se via o arranhão fino na cara ou
a nódoa negra que o rodeava, e as minhas mãos já estavam apenas um pouco
rosadas e inchadas da urze, graças aos cuidados de Sybil.
Quando cheguei ao fundo das escadas, dando uma palmadinha à águia de
madeira com que já me familiarizara, Henry e Lex entraram, a bater com
os pés no chão para sacudir a neve.
- Ainda está a nevar? - perguntei a Henry, evitando o olhar de Lex,
pois sentia-me ainda mais tímida naquela manhã do que na noite anterior,
tendo tido tempo para pensar sobre tudo.
- Nevou muito durante a noite, mas agora parou e o sol está a tentar
aparecer.
- Alguns dos agricultores têm estado a deitar gravilha na estrada que
atravessa a aldeia, por isso está transitável até Underhill - disse
Lex. - Mas a neve vai ficando cada vez mais profunda à medida que se
sobe em direção às charnecas, por isso eles vão ver se derrete um pouco
durante a manhã para depois tentarem usar o limpa-neves.
- Sim - confirmou Henry -, mesmo que não consigam chegar até Thorstane,
ainda precisarão de levar ração para as ovelhas, seja como for.
Eles já tinham tomado o pequeno-almoço, mas eu encontrei a maioria dos
outros ainda na cozinha e pedi desculpa por chegar tarde.
- Nem sequer estava a dormir, fiquei só ali deitada, demasiado aninhada
para me levantar.
- Não faz mal, todas as nossas rotinas habituais estão a dissolver-se
lentamente no espírito de Natal - disse Clara. - A Tottie só agora foi
soltar as galinhas.
- Se tivéssemos um lago, podíamos ter um pato - sugeriu Teddy.
- Como é que faz um pato nesta altura do ano? - perguntou Clara.
- Quá-quase Natal - respondeu Den, deitando chá em folhas para o bule
com uma mão generosa. - Essa escapou-se lá da Idade Média, não foi?
Eu pus duas fatias de pão integral na torradeira enquanto Clara me
servia uma caneca de café e a empurrava na minha direção.
- A Flora ligou de manhã cedo para ver se sabíamos como estavam as
estradas - disse ela. - Eu disse-lhe que a estrada para Thorstane estava
bloqueada, mas que talvez a desimpedissem mais tarde.
- Então ela não levou o Rollo até ao pub ontem à noite? - perguntei.
- Não, continua na pensão e ela diz que o resfriado dele piorou imenso,
por isso agora está de cama.
- Ele é tão hipocondríaco que, se realmente ficar doente, vai entrar
em pânico, sem a mãezinha para lhe dar a mão. Vai ser um paciente
infernal e obrigar a Flora a fazer tudo e mais alguma coisa.
- Oh, a Flora só faz aquilo que quer - disse Tottie, que entrara na
cozinha a tempo de me ouvir. - As galinhas nem queriam sair -
acrescentou.
- Olha que surpresa. Até uma galinha sabe que com este tempo nã é p’a
se estar na rua - comentou Den, abrindo uma lata de bolachas digestivas
e mergulhando uma na sua caneca de chá, que era de um tom escuro e forte
de mogno. Metade da bolacha caiu na caneca e desapareceu.
- C’um catano - disse ele.
Teddy, que estava a pegar nos últimos pedacinhos de cereais da tigela
com os dedos, levantou a cabeça e perguntou num tom pensativo:
- Catano é uma das palavras especiais do Den que só posso usar quando
for crescido, não é?
Tottie confirmou que assim era.
- Mas a Sybil também disse isso, quando aquele pónei Shetland que ela
pediu emprestado para mim nas férias do verão lhe mordeu o rabo.
- Não me surpreende - retorquiu Clara. - Vamos buscar a Sybil e as
cadelas logo a seguir a almoçarmos cedo e trazemo-las para passarem
o Natal aqui. Vai ser divertido, não vai? O Lex leva-nos no meu carro
com as correntes de neve, se forem necessárias.
- Eu já devia estar a caminho de casa - declarou River. A sua túnica
nesse dia era do azul profundo e límpido dos seus olhos e eu já
reconhecia os símbolos na bainha como sendo cuneiformes. - Talvez a
estrada abra mais logo.
- Duvido, e não me parece que deva tentar hoje. Fique, pelo menos até
amanhã - instou-o Clara. - Gostamos de o ter por cá.
- É muita bondade sua - agradeceu ele, com um dos seus sorrisos calorosos
e serenos. - Eu estou a gostar imenso de estar cá.
Lex veio informar que Henry tinha regressado ao seu escritório, porque
estar tão próximo de completar a sua obra épica era demasiado tentador
para que lhe resistisse, mesmo no Natal. Depois perguntou o que cada
um de nós tencionava fazer no que restava da manhã.
- Eu vou continuar com as minhas memórias - disse Clara. - Sinto
basicamente o mesmo que o Henry: não consigo deixá-las paradas durante
muito tempo. Mas agora que sei o que aconteceu à bebé de Nessa, terei
de resistir ao impulso de me adiantar na narrativa.
Tottie disse:
- A Olive era para vir cá e fazer a cama no quarto da Sybil e dar uma
passagem pelas casas de banho, mas com este tempo...
- Deve ser ela agora... ou o maldito Abominável Homem das Neves - disse
Den.
Lex sugeriu que nós e Teddy limpássemos a neve dos degraus da frente
da casa, mas primeiro Teddy insistiu que fizéssemos um boneco de neve
e Den arranjou-lhe uma cenoura e uns pedaços de lenha estorricada das
brasas da lareira da sala para fazer de nariz e olhos.
Depois disso, eu e Lex começámos a tirar a neve dos degraus, enquanto
Teddy dava a volta à casa para ajudar Den a limpar o caminho até à
garagem.
Não falámos, mas o silêncio estava prenhe de palavras por dizer,
provavelmente numa das línguas arcaicas de Clara, porque eu não fazia
ideia do que seriam.
- Pronto, já está - disse Lex por fim, enquanto espalhava gravilha nos
degraus desimpedidos. Sorriu-me de uma forma hesitante que me comoveu,
pelo que lhe correspondi calorosamente.
O vento frio tinha-lhe dado alguma cor às faces e emaranhara-lhe a
melena de caracóis escuros. Desconfio que, no meu caso, me tenha dado
apenas um nariz cor de cereja.
- Agora vamos ajudar os outros? - sugeri.
- Okay - concordou ele, pondo a pá ao ombro e dirigindo-se para a esquina
da casa... mas, de súbito, ver aquelas costas largas foi demasiado
tentador. Agarrei numa mancheia de neve e atirei-lha, com força.
Desfez-se mesmo no alvo.
Ele virou-se devagar, fitou-me com uma expressão séria que me deixou
nervosa e depois largou a pá, agarrou numa mancheia de neve e atirou-ma
também.
Seguiu-se uma batalha até que reconheci a derrota correndo para o lado
da casa, ainda que avançar pela neve requeresse algum esforço e Lex
me tivesse atingido com uma última bola de neve.
River, embrulhado em várias camadas de roupa e com o gorro colorido
de duende a tapar-lhe firmemente as pequenas orelhas pontiagudas,
estava a passar gravilha sobre a parte do caminho já desimpedida em
frente à porta da cozinha, enquanto Henry entretanto se juntara à festa
e estava a ajudar Teddy e Den a limpar a neve do resto do caminho.
- É bom ouvir risos - disse River, sorrindo-nos. - Meg, telefonei ao
Oshan antes de sair, para o avisar que não me esperasse para já, e depois
fui até à horta para falar com as abelhas e as galinhas.
- As abelhas estão todas a dormir. A Tottie disse-me - explicou Teddy,
apoiando-se numa pá vermelha de criança.
- As abelhas são capazes de absorver palavras mesmo enquanto dormem
- garantiu-lhe River.
- E as galinhas disseram algo interessante? - perguntei, ao que ele
esboçou um sorriso matreiro.
- Disseram que estavam contentes por viverem numa casa de gente
vegetariana.
- Sem contar c’o peixe - ressalvou Den. - Bom, vamos lá acabar com isto,
antes qu’eu morra de frio.
A luta de bolas de neve parecia ter quebrado o gelo entre mim e Lex.
Embora continuássemos a não falar muito um com o outro, pelo menos agora
o silêncio era confortável.
Aquecemo-nos com sopa quente e depois, quando Lex se preparava para
levar Henry e Clara a Underhill, de onde trariam Sybil, ouvimos o som
de um trator e vimo-lo a avançar lentamente diante da Casa Vermelha,
subindo rumo às charnecas.
Estava um Land Rover estacionado ao fundo do acesso, com fardos de feno
e dois Border collies animados nas traseiras, e Den foi ver o que se
passava. Informou-nos que Billy estava à espera para ver até onde
conseguia subir o trator.
- É o Billy Banks, da Quinta das Bagas - disse-me Henry, sorrindo em
seguida. - Não lhe faltam aliterações!
- O Pete é que vai no trator e há de subir o mais que possa, não? -
disse Den. - O Billy segue-o e larg’algum feno pás ovelhas.
- Acham que o Pete vai conseguir chegar lá acima? - perguntou Clara.
- A Zelda vai apanhar um táxi da estação logo à tarde e espero que possa
passar.
- Eu disse-lhes da Zelda - confirmou Den. - Vão fazer o que puderem.
- Sendo a Zelda, provavelmente dá às pestanas e alguém a acarta por
cima dos montes de neve - comentou Lex com cinismo. - Acho que é melhor
irmos buscar a Sybil agora, enquanto a estrada pela aldeia está bem
cheia de gravilha, não acham?
Depois de eles irem embora, Tottie acedeu a posar para o seu retrato
durante cerca de uma hora na estufa.
Den tinha desaparecido, provavelmente para o seu apartamento, e River
disse que ele e Teddy iam construir uma colagem de Natal para enfeitar
o átrio.
Na estufa, Tottie assumiu a sua pose e depois ficou perdida em
pensamentos, com uma expressão deleitada.
Passado algum tempo, parei - já estava a dar cor ao rosto - e
perguntei-lhe em que estava a pensar.
- Bolbos primaveris - foi a sua resposta simples.
Pedi-lhe que mantivesse a pose durante mais uns minutos enquanto
esboçava rapidamente a fruta e os vegetais que se derramavam de uma
das pontas da cornucópia, para poderem ser devolvidos à cozinha. Depois
acrescentaria os pormenores, a partir das fotografias que tinha tirado.
Teddy apareceu numa curva do caminho e parou debaixo da sombra frondosa
de uma tamareira.
- Já se passaram séculos. Acabámos o nosso quadro e já o pusemos na
parede. Não querem ver?
- É claro que queremos - assegurei-lhe. - Deixa-me só arrumar aqui as
coisas que vamos já.
Admirámos devidamente um panorama que continha uma data de dragões em
redor da Starstone, enquanto estrelas de papel de alumínio pontilhavam
o céu.
- E agora onde é que está o River? - perguntei.
- Está na cozinha com o Den, a cozinhar - disse ele e, quando fomos
preparar café, encontrámos um bolo de sementes de alcaravia a arrefecer
numa grelha. Era um dos favoritos de River e ele tinha pedido a Oshan
que enviasse a receita por email.
Eu e Tottie levámos o café para a sala de estar e ela usou um fósforo
para acender a lareira preparada, que não tardou a aquecer-nos. Teddy
tinha-nos seguido e aberto o seu livro mágico de pintar com água sobre
a mesa de centro, mas mal tinha mergulhado o pincel no copinho com água
quando ouvimos rodas a esmagar a gravilha do acesso e uma buzina a
apitar.
- Já devem ter voltado com a Sybil - disse eu, aproximando-me da janela
para ver. Porém, em vez do carro de Clara, vi que o Land Rover do
agricultor estava a estacionar, com os dois Border collies já
conhecidos aos saltos na caixa aberta. Desta feita, sem feno.
Tottie espreitou por cima do meu ombro enquanto o condutor saía e nos
acenava, apontando para o habitáculo.
- É outra vez o Billy Banks, e acho que é capaz de ter trazido a Zelda!
- Mamã? - exclamou Teddy, desejoso de a ver, e chegou antes de nós à
porta da rua.
Billy tinha-se apressado a contornar o veículo até ao lado do passageiro
e estava a ajudar carinhosamente uma mulher pequena num casaco
comprido, cor-de-rosa e acolchoado e com um gorro russo ridiculamente
enorme de pelo falso, bem enfiado sobre um rosto animado e bonito, de
olhos escuros e nariz arrebitado.
Eu não precisava de ouvir o grito de «Mamã!» de Teddy para saber quem
era.
Tottie pousou-lhe uma mão no ombro a tempo de o impedir de desatar a
correr porta fora de pantufas.
- Querido! - exclamou Zelda, com os lábios vermelhos a curvarem-se num
sorriso caloroso, à medida que praticamente nadava na nossa direção,
de braços esticados. Percebia-se que era uma atriz.
Atrás dela, uma figura emergia mais devagar: um homem alto e idoso,
de cabelo branco, a usar um sobretudo antiquado de lã grossa e um
cachecol da Burberry. Ele virou-se e observou-nos com uns olhos azuis
como gelo.
- Achávamos que ia conseguir, fosse lá como fosse, Zelda - disse Den,
aproximando-se da reunião entre mãe e filho. Tinha trocado o
fato-macaco de linho castanho por um velho casaco de lã e tinha galochas
nos pés.
Depois deu pelo passageiro extra e exclamou, desagradado:
- Valha-me Deus! Agora tens um serviço de táxis, Billy?
- Pois, é o que parece - foi a resposta lacónica. - Sempre dá para variar
de andar a acartar ovelhas doentes.
E sorriu, com vários dentes em falta, a Zelda.
- Foi tão amável... o Billy e o Pete são uns anjos! - exclamou ela.
- Não custou nada - disse ele e depois explicou-nos: - O táxi conseguiu
chegar ao pub. Depois, quando o limpa-neves subiu por esse lado, o Fred
ia atrás com o Land Rover... e a carrinha dos correios ia atrás. Mas
no cume a neve está demasiado profunda para limpar, por isso passaram
o Pete para este lado e lá conseguimos fazê-los passar. - Sorriu de
novo, bem-humorado. - Deu um bocado de trabalho, com os ventos e o
velhote, e ainda por cima com bagagem.
O «velhote» não parecia lá muito satisfeito por ser descrito assim.
- Há malas nas traseiras? Eu ajudo a tirá-las, então não? - disse Den.
Teddy e a mãe tinham desaparecido no interior da casa, mas eu e Tottie
continuávamos a bloquear a entrada e o idoso lançou-nos um olhar frígido
debaixo das suas sobrancelhas brancas e irritadas e disparou:
- Então, Charlotte, vais deixar-me entrar antes que eu morra de
hipotermia?
A avaliar pela expressão de Tottie, isso parecia-lhe ser uma boa
hipótese, mas, a contragosto, afastou-se, ao que ele passou por nós
e entrou no átrio.
Seguimo-lo e Tottie exigiu saber:
- O que é que está aqui a fazer, Piers? Ninguém estava a contar consigo.
Então aquele seria o Piers Marten por causa do qual Sybil estivera tão
angustiada, e que, pelo que todos os outros tinham dito acerca dele,
não parecia ser a personagem mais agradável.
- Então deviam estar - dizia ele. - Eu sabia que a Sybil quereria que
eu viesse passar o Natal com ela, independentemente dos planos que
aquela sua cria tivesse. Ele nunca gostou de mim, por isso achei que
estava só a usá-la para me manter ao largo, até a Zelda me ter contado
que a Sybil vai passar o Natal aqui.
- Vai, porque o Mark anda a fazer grandes remodelações na casa durante
o Natal. Eu sei que ela tem tentado telefonar-lhe e lhe tem deixado
mensagens a explicar isso mesmo - replicou Tottie. - Os outros foram
buscá-la. Não devem demorar a chegar.
- Só vi a primeira carta e depois mudei-me para o meu clube, porque
a caldeira do meu aquecimento central se avariou. Ninguém parecia
querer arranjá-la antes do Natal.
Virou-se e dirigiu-me o que obviamente julgava ser um sorriso
encantador, ainda que não lhe aquecesse o olhar.
- A Zelda também me falou da sua prima recém-descoberta. Deve ser a
Meg. Piers Marten.
- Sim, tinha percebido, porque também tenho ouvido falar de si - disse
eu, apertando a mão que me estendia, envolvida em couro
desagradavelmente pegajoso e fino.
- Não consigo perceber porque é que veio, se recebeu a carta da Sybil
a dizer-lhe que não viesse e depois de a Zelda lhe ter dito porquê -
declarou Tottie. - Devia ter dado meia-volta e regressado ao seu clube.
Mas talvez o Billy não se importe de o deixar em Underhill a caminho
de casa... ele passa mesmo por lá.
- Estou demasiado enregelado para ir onde quer que seja e, se a Sybil
vai ficar aqui, para que iria para Underhill? O Mark não há de estar
desejoso de me ver por lá.
De repente, lembrei-me de Clara a dizer que ela não o quereria debaixo
do seu telhado, pelo que também não esperava que o acolhesse de braços
abertos quando chegasse.
- Não pode estar gelado, Piers, porque o carro do Billy estava bem
quentinho - disse Zelda. Tinha tirado o casaco acolchoado e o gorro
enorme e, tendo abraçado Teddy e feito festas a Lass, levantou a cabeça
e acrescentou: - Eu disse-lhe que o melhor era voltar para Londres no
comboio seguinte, mas o Piers fez questão de vir.
- Passo sempre o Natal em Underhill - replicou ele. - Há anos que é
assim.
- Não, não passa. Às vezes fica no seu clube ou com os seus filhos -
corrigiu-o Tottie.
Den e Billy já tinham trazido a bagagem e Zelda disse a Teddy que não
devia olhar para o saco grande de onde saíam alguns embrulhos.
- E nada de os apalpar a ver se consegues descobrir o que são.
- São todos para mim? - perguntou ele, com os olhos a brilhar.
- Vais ter de esperar para ver, não vais, querido?
Uma pequena figura emergiu do corredor da cozinha, aparentemente
transportada por um zéfiro de ar deliciosamente perfumado com anis.
River estava a usar um dos enormes aventais às riscas brancas e azuis
sobre a túnica e as calças, que o envolvia da cabeça aos pés. Uma mancha
favorecedora de farinha marcava-lhe uma face e ele tinha amarrado à
cabeça um pano de cozinha aos quadrados vermelhos e brancos para segurar
o cabelo longo e grisalho.
- Que saudações da Deusa a abençoem - disse ele a Zelda, que lhe dirigiu
um sorriso encantador. Ele focou então o seu límpido olhar azul em Piers
e acrescentou generosamente, tendo em conta a mirada afrontada que o
outro lhe lançava: - E a si também.
- Isto sempre foi um manicómio - resmoneou Piers, atirando o casaco
e o lenço para cima de uma cadeira.
Billy tinha na mão uma grande saca de pano, que era a última coisa que
tinha trazido.
- Isto é correspondência para Starstone. Eu disse ao carteiro que a
deixava aqui e levava o que quer que fosse para as quintas.
- ‘Tá bem - disse Den. - Eu separo-o e depois amanhã alguém pode ir
lá abaixo e distribuí-lo - depois acrescentou: - Mas ficas pa’um copo,
ou talvez uma tigela de sopa pa t’aqueceres, não, Billy?
- Não, obrigado. É melhor ir andando. - Billy apontou para Piers com
um polegar. - Então e ele?
- Não sei... - suspirou Tottie. - Acho que o melhor é deixá-lo aqui
e depois logo vemos o que dizem a Clara e o Henry quando voltarem. Vamos
ter de fazer qualquer coisa com ele.
- Eu cá aceitava essa sopa, e talvez um copito de brande - disse Piers
num tom autocrático.
- O único brande que deve receber nesta casa é a gota qu’eu ponho no
pudim de Natal - disse Den. - Eu levo-lh’as coisas pó quarto, Zelda.
Ela protestou e disse que ela própria as levaria, mas ele insistiu,
pelo que todos os outros fomos para a cozinha e tomámos café com empadas,
enquanto Zelda e Piers comiam uma sopa. Lass, depois de expressar o
seu contentamento por rever Zelda, parecia compelida a manter-se atenta
a Piers, embora eu não soubesse ao certo o que o acharia capaz de fazer.
- O rafeiro não tira os olhos de mim - comentou ele.
- Não é rafeiro nenhum, é uma cocker spaniel - respondeu Teddy,
surpreendido. - Não sabias?
- A Lass deve desconfiar que você vai roubar as pratas da família -
sugeriu Tottie.
- Temos pratas? - perguntou Teddy. - Estão nalguma caixa, como um
tesouro?
- Não, só um conjunto de talheres de peixe algures no sótão - disse
ela. - Oh, e aquela base de prata para o vinho, que está na sala de
jantar.
Piers animou-se.
- Eu não dizia que não a um pingo de qualquer coisa, mas de preferência
uísque.
Ninguém fez caso dele e, passado algum tempo, ele tirou um pequeno
cantil do bolso, agitou-o e depois virou-o sobre o café até caírem umas
quantas gotinhas lentas.
- Aqueles bolos têm um cheiro divinal - comentou Zelda.
- Pode comer ao lanche - disse-lhe Den. - São bolos de sementes. O River
passou-me a receita.
- E você é...? - quis saber Piers, olhando para River com maus modos.
- É uma espécie de avô da Meg, contou-me o Teddy - disse Zelda, sorrindo
a River. - Como a Meg se tornou minha prima, o River deve ser uma espécie
de meu tio-avô!
- Acho que sou só uma parente afastada, por afinidade - disse eu. -
É tudo um bocado complicado de definir.
- Espécie de avô da Meg? Estou cada vez mais curioso! - exclamou Piers,
de olhos postos em River.
- Vim para o Solstício, mas a neve está a atrasar-me a partida.
- Bem, a si ninguém o quer ver p’las costas, pois não? - comentou Den,
com um olhar incisivo para Piers. Ao início até tinha sentido pena deste
pela forma fria como fora recebido, mas, realmente, a sua atitude não
o favorecia nada!
- Será que hoje alguém ainda vai querer lanchar, depois da sopa e de
todas estas empadas? - perguntou Tottie.
- A Clara, p’a começar - disse Den. - E eles devem estar aí a chegar...
‘tá a ficar escuro.
Olhando para o relógio da cozinha, fiquei surpreendida ao ver que a
tarde já ia quase a meio e que o céu que se via pelas janelas parecia
estar a pensar deixar cair a dose seguinte de neve.
- Voltemos para a sala de estar e esperemos lá - sugeriu Tottie, mas
River disse que primeiro ia ajudar Den a arrumar a cozinha e que depois
iam fazer um laço de beijos.
Sempre tínhamos tido um na Quinta, pelo que ele obviamente o considerava
uma parte vital das celebrações.
Os pertences de Piers continuavam amontoados perto da porta da rua:
Den devia ter mesmo esperança de que a sua partida estivesse iminente.
Piers parecia muito impopular, e eu tampouco podia dizer que tivesse
engraçado com ele. Nesse momento, assenhoreou-se de uma ponta do sofá
mais próximo da lareira e, recostando-se, fechou os olhos.
- Que dia mais longo, frio e cansativo... - murmurou histrionicamente.
Tottie acendeu as luzes da árvore de Natal e foi fechar as cortinas
por trás.
- Ali está o carro; os outros já voltaram - disse ela, espreitando para
a escuridão.
- Vão ficar tão surpreendidos ao ver que a mamã conseguiu chegar apesar
da neve! - exclamou Teddy.
- Vão ficar ainda mais surpreendidos ao ver que o Piers também - comentou
Zelda com secura.
31
Bagagem
- Olá a todos! - exclamou Henry animadamente ao entrar na sala. - Zelda,
minha querida! Que contente fico por teres conseguido chegar.
- Olá, Henry - disse ela, levantando-se para o beijar com ternura e
em seguida abraçar Clara, que o seguira.
- O Lex foi levar as malas da Sybil para o quarto dela e já descem os
dois - disse Clara. - E, vejam, aqui está o Mark! Veio lanchar connosco,
não é maravilhoso?
- Bem, na verdade - disse ele -, eu vim perguntar à Meg se...
Mas eu estava fadada a nunca vir a saber o que ele ia perguntar-me,
pois nesse momento o seu olhar recaiu sobre Zelda, que voltara a
sentar-se numa das extremidades dos bancos à janela junto à árvore de
Natal, ficando ambos de olhos fixos um no outro. Parecia que nenhum
deles conseguiria desviar o olhar. Era como se não houvesse mais ninguém
na sala - ou mesmo no mundo - à exceção deles.
Parecia que todos os momentos clássicos das comédias românticas se
condensavam num só e dei por mim a sorrir. Quero dizer, eles já deviam
conhecer-se, mas, naquele momento, fitavam os olhos um do outro como
se tivessem sido atingidos de supetão por um raio.
Os latidos agudos das cadelinhas que corriam em frente de Sybil
finalmente interromperam o feitiço e Zelda e Mark pestanejaram,
estonteados, e em seguida desviaram o olhar.
Pansy lançou-se e atirou-se para o meu colo, enquanto Wisty e Lass se
cumprimentavam de uma forma mais adequada às matronas que já eram.
Os latidos também tinham despertado Piers, que estivera a ressonar no
seu canto do sofá, ocultado pela figura angular de Tottie, na outra
ponta.
- O quê? - resmungou ele, endireitando-se e lançando um olhar
tresloucado à sua volta. - Eu não estava a dormir.
- Estavas, sim - contrapôs Teddy, sentado no sofá, absorto em lançar
uns carrinhos por uma espécie qualquer de pista em espiral para
veículos.
- Oh, meu Deus, o que é que você está aqui a fazer? - exclamou Mark,
com o sobrolho carregado. Virando-se para Sybil, acrescentou num tom
acusatório. - Mãe, o Piers está aqui. Pensava que lhe tinhas dito que
não o podíamos receber?
- Isso poderia ter sido dito de uma maneira muito melhor - disse Henry
num tom crítico. - Parece que ele é alguma encomenda.
Sybil empalideceu.
- Mas... eu disse-lhe que era impossível que visitasse Underhill este
ano! Escrevi-lhe duas vezes e deixei-lhe várias mensagens no telefone.
- Ah, querida Sybil! - exclamou Piers, pondo-se de pé e aproximando-se
dela para a beijar nas duas faces. - Um pequeno mal-entendido e algumas
mensagens perdidas, mas agora estou aqui e tenho a certeza de que tudo
poderá arranjar-se. Que encantador ver-te de novo.
Ela parecia completamente distraída.
- É claro que fico satisfeita por vê-lo, tio Piers, só não contava
consigo. Não recebeu as minhas mensagens?
- Ele só recebeu a primeira carta e achou que era o Mark que não queria
que ele viesse - explicou Zelda.
- Lá isso é certo - disse Mark.
- A minha caldeira estragou-se... tive de me mudar para o meu clube
até estar na altura de vir para cá - explicou Piers de forma sucinta.
- Eu vou andar demasiado ocupado a preparar a casa para poder receber
hóspedes, mesmo que fossem bem-vindos - disse Mark.
- A Clara falou-me dos teus planos para transformar o espaço num local
para copos-d’água e isso parece uma ideia mesmo divertida - disse Zelda
a Mark com entusiasmo.
Antes que ele pudesse responder-lhe, Piers declarou num tom indignado:
- Mas eu sou um velho amigo da família!
- Era amigo do meu avô - corrigiu Mark rispidamente.
- Vais ter de pôr este rapaz na linha, Sybil - disse Piers, virando-se
para ela. - Os modos dele deixam muito a desejar. Mas sei que tu ficas
sempre agradada por me ver.
- Eu... claro - gaguejou Sybil. - É só que... bem, não faço ideia do
que vamos fazer...
- A Zelda teve a gentileza de me pôr a par de todos os acontecimentos
recentes... sobretudo as notícias acerca da Meg. Deves estar encantado
por teres uma prima há muito perdida, Mark? E que surpresa maravilhosa
para ti também, Sybil, descobrires uma sobrinha nova... e talvez uma
meia-irmã, se bem entendi, se a mãe da Meg alguma vez se deixar
encontrar?
Dito assim, parecia que a minha mãe andava a brincar às escondidas.
- Sim, estamos, ainda que tenha sido um certo choque ao início saber
que o paizinho... - começou, mas logo se interrompeu, antes de se
recompor com um esforço evidente e de dizer com dignidade: -
Naturalmente, todos estamos encantados por acolher a Meg na família.
É uma querida.
- Tenho a certeza de que estão. E calculo que a Meg em breve vá mudar-se
para Underhill?
- Não, porque haveria de o fazer? - perguntei, surpreendida. - É ótimo
descobrir que tenho familiares, mas Underhill não é a minha casa.
- Seja como for, Underhill não tardará a ser uma empresa e não uma casa
de família - disse Mark, dirigindo-me um olhar que, com algum gozo,
reparei que já não continha qualquer centelha do seu interesse
anterior. - Mas a Meg estará à vontade para se instalar connosco sempre
que quiser.
- Bem dito - aplaudiu Henry.
- Isso é muita amabilidade sua, Mark - disse-lhe, grata.
- Mas Underhill é uma linda casa antiga e precisa de ser tanto um lar
como um negócio - protestou Zelda. - Poderia ser as duas coisas, não
poderia, Mark? Quero dizer, não vais transformá-la também num hotel,
pois não?
- Eu acho que os planos do Mark para a casa poderão ser discutidos noutra
altura, querida - disse-lhe Clara. - E esperamos que a Meg veja a Casa
Vermelha como a sua segunda casa, um lugar onde será sempre bem-vinda,
tal como tu e o Lex. - Olhou para trás, para a porta que se abria nesse
instante. - E, por falar no Lex, ei-lo. Já ouviste a Zelda, que está
aqui, Lex? - Apontou para Piers. - E um artigo inesperado no que toca
a bagagens.
Ele ficou à porta e observou a cena uma expressão ligeiramente sardónica
nos seus olhos escuros.
- O Den pôs-me ao corrente. Ele e o River já vêm com o lanche.
- Que bom, parece que o almoço já foi há uma eternidade - disse Clara.
- E finalmente vamos poder comer o bolo de sementes que fizeram de manhã
- disse Tottie. - O cheiro está a provocar-me desde que o tiraram do
forno.
- Eu não gosto de bolos de sementes, por isso espero que tenham algo
mais para oferecer - disse Piers.
Ninguém lhe deu resposta. Mark tinha gravitado para o lado de Zelda,
como que atraído por um íman, e agora estavam sentados juntos no assento
da janela, a falar em voz baixa, a cabeça acobreada e os caracóis
escuros, tão semelhantes aos de Lex, muito próximos.
Sybil fitou-os com uma expressão algo intrigada e depois olhou para
mim e eu sorri-lhe. Ela teria de reajustar um pouco as suas noções
românticas se eu interpretara bem os sinais e Mark finalmente
encontrara o seu par.
- Sybil - chamou-a Piers, reclamando a sua atenção -, precisamos de
conversar em privado. Temos tanto de que falar!
Mark ouviu e levantou a cabeça.
- Não vão ter tempo; é melhor que regresse a Thorstane antes que volte
a nevar. O Lex ou o Den levam-no até o mais próximo possível do cume
(eu próprio o faria, se tivesse trazido o jipe) e podemos ligar ao Fred
Golightly e pedir-lhe que o vá buscar ao outro lado e lhe dê um quarto
para esta noite.
Piers parecia horrorizado.
- Mas tivemos de atravessar montes de neve a pé... e eu estou demasiado
velho para repetir esse género de aventura.
- Eu e a Clara somos apenas uns anos mais jovens, pelo que não está
propriamente a caminho da última morada - disse Henry.
- É mas é um exagerado, Piers, porque na verdade o Pete e o Billy
levaram-no de cadeirinha pelas partes piores. Eu é que caí naquele monte
de neve e tiveram de me arrancar dali! - Zelda soltou uma gargalhada
contagiosa. - Devia parecer um boneco de neve!
Mark, que tinha recomeçado a mirar Piers com o sobrolho franzido,
sorriu-lhe.
- Agora já está demasiado escuro para tentarmos fazer a viagem de
regresso, seja como for - disse Lex. - E a temperatura está a descer,
por isso não seria boa ideia.
- Bem, Piers, se não pode voltar esta noite, o que havemos de fazer
consigo? - perguntou Clara. - Talvez deva perguntar a Mark, com muitos
bons modos, se ele o hospeda até a estrada ficar desimpedida.
- Preferia mesmo não o fazer - respondeu Mark com concisão. - E ele
também não ficaria confortável, com o lugar todo virado do avesso. Mas
tive uma ideia: a Flora podia receber outro hóspede na pensão.
- Uma pensão? Mas certamente não estará aberta, nesta altura do ano!
- interveio Piers.
- Não, e a Deirdre está a passar o inverno na Austrália, como de costume
- disse Henry. - Mas a sobrinha dela, a Flora, que calculo que terá
conhecido quando era ama do Teddy, está lá e já recebeu um visitante
aqui encalhado.
- Ele também apareceu sem ser convidado, e vai ficar lá até amanhã,
pelo menos - disse Clara. - A Flora poderá recebê-lo, desde que pague
a pernoita.
Piers apelou a Henry.
- Henry, somos amigos há anos... não pode realmente querer expulsar-me
da casa!
- Você era amigo do George, nunca meu - esclareceu Henry. - E é claro
que não estou a propor atirá-lo para a neve, como se isto fosse um
melodrama vitoriano, apenas queremos encontrar-lhe uma acomodação
alternativa.
- Não percebo porque é que não posso ficar aqui - insistiu Piers,
tornando a sentar-se confortavelmente no sofá. - Tenho a certeza de
que terão um quarto para mim, numa casa deste tamanho.
- Não, na verdade todos os quartos estão ocupados pelos hóspedes
convidados - disse Clara.
- Então um par dos mais jovens não deve importar-se de partilhar, para
arranjar espaço para mim - sugeriu ele.
- Talvez eles não se importassem, mas eu sim - replicou Clara. - Atribuí
os quartos aos respetivos ocupantes e pronto.
Ela parecia totalmente inflexível, e River, que tinha acabado de entrar
discretamente nesse momento, atalhou, como quem pede desculpa:
- Receio bem que também tenham de me dar guarida durante mais um dia
ou dois, ainda que tenha a certeza de que a Moonflower e o Bilbo não
se importariam de...
- Oh, não queremos que vá de todo! - exclamou Henry.
- Não, sinta-se à vontade para ficar durante o tempo que quiser -
acrescentou Clara, e Piers lançou um olhar zangado a River.
Timidamente, Sybil gaguejou:
- Eu... suponho que se pudesse arranjar uma cama para mim noutro lugar,
tio Piers. Talvez a Tottie não se importasse se eu...
- Então, eu achava que já tínhamos deixado isso do «tio», porque hoje
em dia temos uma relação muito diferente, não temos? - disse-lhe Piers
num tom nada avuncular, e ela mirou-o nervosamente, a pestanejar.
- A Sybil não vai ceder-lhe o quarto, nem pensar, Piers. Eu não vou
alterar quaisquer dos planos já feitos segundo a sua conveniência...
se bem que, se não conseguirmos encontrar uma alternativa, terá de ser
um catre na biblioteca.
- Um catre? Não pode estar a falar a sério! - Piers virou-se para apelar
a Mark. - Meu caro rapaz...
- De momento, o Mark anda a poupar no aquecimento central, mas acho
que não tardaria a aquecer, se o ajudasse a arrancar o papel de parede
ou algo do género - sugeriu Henry com um sorriso delicado.
- Receio bem que a minha saúde não o permitiria - replicou Piers,
horrorizado.
- Talvez seja melhor telefonar à Flora, então, para ver se ela pode
acomodá-lo... por um preço especial de Natal, com certeza - declarou
Clara.
- É a melhor ideia - concordou Tottie. - Assim ficará quente e bem
alimentado até poder ir-se embora e, com alguma sorte, até pode ser
que a estrada fique suficientemente desimpedida para ir para casa
amanhã.
- Mas não quererão que um velho passe o Natal sozinho? - perguntou ele
num tom patético.
- Tem dois filhos adultos e vários netos - lembrou Henry.
- Eles não me querem realmente. A mãe envenenou-lhes a cabeça contra
mim há anos, depois do divórcio.
- Então poderá passar um Natal muito aconchegante lá no clube, com os
seus velhos companheiros de armas, não é verdade?
Den entrou com o carrinho carregado de loiça, bule e fatias cortadas
de bolo de sementes.
Teddy parou de fazer sons de motores e choques com os seus carrinhos
de brincar e saiu de detrás de um dos sofás, a gatinhar.
- ‘Ind’áqui ‘tá, então? - lançou Den a Piers enquanto colocava o bule
em frente a Clara.
- Como pode ver - disse Piers num tom magnânimo. - E gostaria de comer
outra coisa que não fosse esse bolo.
- Azareco, qu’eu cá não faço menus individuais - replicou Den.
Ouvi Zelda a rir e também tive de conter uma gargalhada.
Lex levantou-se e, em silêncio, passou a caixa dos biscoitos a Piers,
que a aceitou sem agradecer.
- Posso dizer «azare...» - começou Teddy.
- Não, não podes - apressou-se Tottie a dizer-lhe.
- Oh. - Parecia desiludido, mas começou a comer uma fatia de bolo. -
Se este bolo tem sementes, vão crescer-me plantas na barriga.
- Não, não é um habitat favorável à germinação - respondeu River, que
se tinha sentado numa pequena cadeira baixa e acolchoada que poderia
ter sido feita para si.
- É uma ideia interessante - comentou Henry.
Sybil estava sentada no canto de um sofá, tão longe quanto poderia ficar
de Piers, mas parecia ligeiramente reanimada pelo chá. Era estranho,
pensei, que, apesar de ter estado tão ansiosa por ele antes da sua
chegada, agora que ele ali estava ela parecesse mais nervosa na sua
presença do que tranquilizada.
Mark e Zelda pegaram nos seus pratos e chávenas e regressaram para o
lugar da janela, prosseguindo a sua conversa em vozes intimamente
baixas, ao que Sybil lhes lançou outro olhar intrigado.
Dei por Lex voltado para mim de sobrolho franzido e, quando levei a
minha chávena e o meu prato para um cadeirão um pouco afastado do círculo
da lareira, ele seguiu-me e sentou-se a meu lado.
- O Mark parece surpreendentemente feliz por voltar a ver a minha irmã,
não parece? - comentou com secura. - Eles tiveram um namorico há anos,
antes de a Zelda ir estudar representação, mas desde então não se têm
visto muito.
- Quando não vemos uma pessoa há muito tempo, pode parecer que a vemos
pela primeira vez - disse eu.
Ele fitou-me com um ar mais sério e respondeu:
- Isso realmente foi o que aconteceu quando tornei a ver-te. - Depois
observou-me atentamente. - Pensava que o Mark gostava de ti. Pelo que
a Sybil me disse em Underhill, parece que esperas um anúncio de noivado
a qualquer momento!
Dei por mim a corar.
- A Sybil está bem enganada.
- Bem, tu não paras de me dizer que não estás interessada no Mark, mas,
quando ele anunciou subitamente que voltava connosco, fiquei na dúvida.
Ele disse que queria pedir-te conselhos sobre cores de tinta.
- Agora deve estar a pedi-los à Zelda - disse eu. - Olha, eu sei que
ele estava um bocado fixado em mim, mas fico mais do que satisfeita
por ter virado a atenção para a Zelda. Tenho a certeza de que a Sybil
pensou apenas que, se eu e o Mark casássemos, isso... deixaria tudo
bem resolvido.
- Acho que tens razão e fico contente por não estares de coração partido.
- Não, mas há alguém por quem tenho um fraquinho - reconheci.
Tinha pousado Pansy enquanto tomava chá e ela fora juntar-se às outras
duas cadelas, que se haviam colocado estrategicamente perto da mesa
de centro.
- Vou perguntar à Sybil se me vende a Pansy, desde que possa pagar-lhe
no Ano Novo.
- Lamento, mas ela disse-me há pouco que aceitou uma oferta pela
cadelinha - disse Lex, pondo-me fim às esperanças.
- Oh, quem me dera não ter esperado! - exclamei com tristeza. - Não
me apercebi da rapidez com que me apeguei a ela.
- E vice-versa. Ela vem logo ter contigo assim que te vê.
- Espero que as pessoas que vão comprá-la sejam boas - suspirei. - Oh,
bem, não estava nas cartas. Terei de desfrutar apenas de brincar com
ela durante o Natal.
Mark tinha-se afastado a custo de Zelda para ir buscar outra fatia de
bolo. Parecia um pouco mais brando: a comida parecia adoçar-lhe o
feitio... a menos que fosse o amor.
Esperava que desta vez fosse amor, pois eu gostara de imediato de Zelda.
- É melhor voltar para Underhill - anunciou, mas recusou a oferta de
Lex para o levar.
- Não, não é preciso, a caminhada vai fazer-me bem.
- Se a estrada de Starstone Edge estiver desimpedida amanhã, talvez
eu pudesse ir lá ver o que estás a fazer com o lugar? - sugeriu Zelda.
- Adoraria ir e posso ajudar, se quiseres?
- Isso seria ótimo - assegurou-lhe ele num tom caloroso. - E se fosses
lá passar o dia?
- Assim farei - prometeu ela.
- Eu e a Meg também poderíamos dar uma mãozinha por umas horas durante
a manhã - ofereceu Lex, sem me consultar.
- Todos os pares de mãos são bem-vindos - respondeu Mark.
- Vejamos como está o tempo amanhã - sugeriu Clara - e depois todos
poderemos fazer planos em conformidade.
- A Flora não ia a Underhill hoje à tarde? Tenho a certeza de que ela
disse isso na Congregação - perguntou Lex.
Mark ficou com um ar um pouco encavacado.
- Sim, fazia tenção de ir, mas hoje de manhã ligou-me a dizer que o
hóspede não podia sair. E ela tem um Mini, que não está preparado para
estas condições de estrada.
- A Flora apiedou-se de um jovem bastante persistente que quer
entrevistar o Henry - explicou Clara a Zelda. - Foi namorado da Meg,
há anos.
- Todos cometemos erros - disse-me Lex num tom sério, ao que lhe lancei
um olhar.
- Se a Flora tem mesmo de ficar com ele até desimpedirem a estrada,
mais vale que receba o Piers também - reiterou Tottie.
- Eu acho que ninguém vai chegar a Thorstane amanhã se esta noite voltar
a nevar e depois a neve endurecer com o frio - comentou Lex.
- Nesse caso, talvez tenham de me aguentar durante o Natal, afinal -
disse Piers. - Tenho a certeza de que, com alguma boa vontade e
flexibilidade...
- Vou ligar à Flora - interrompeu-o Clara num tom decidido,
levantando-se. Nesse mesmo instante, o batente da porta soou
pesadamente. - E agora que raio será? - resmungou ela.
Lex foi afastar a cortina e espreitar.
- Acho que é a mulher do momento: a Flora.
32
Outros Destinados
A batida era claramente um gesto simbólico, pois a porta interior do
átrio abriu-se e uma voz ligeira chamou:
- Olá-á!
- Estamos na sala de estar, Flora - respondeu Clara e, pouco depois,
tendo-se livrado das botas e do casaco, ela entrava como alguém certo
de ser bem-vindo.
Com os caracóis castanhos frisados pela humidade, os olhos também
castanhos a brilhar e as faces rosadas do frio, ela estava muito bonita,
fazendo lembrar ligeiramente um macaquinho.
- Olá a todos! - disse ela, olhando em redor. - Zelda, então sempre
chegaste? Oh, e Mark, não estava à espera de te encontrar aqui.
Ela dirigiu-lhe um sorriso muito especial e ele remexeu-se, pouco à
vontade, no assento da janela, mas não se levantou.
- Vim com a minha mãe, mas estou mesmo quase a voltar.
- Estou muito satisfeita por teres vindo, Mark, porque foi maravilhoso
voltar a ver-te - disse Zelda, virando-se para lhe mostrar um sorriso
estonteante, enquanto ele lhe dirigia um olhar apaixonado.
Os olhos de Flora estreitaram-se e ela mirou o par no assento da janela
e depois o lugar onde eu estava sentada, evidentemente intrigada e sem
saber quem era a sua principal rival. E eu não podia julgá-la, já que
Mark parecia mudar de direção como um cata-vento. Primeiro tinha sido
Flora, depois eu, e agora só tinha olhos para Zelda.
Apercebi-me de que Lex estava agora tão perto de mim, atrás da minha
cadeira, que poderíamos ter posado para um daqueles retratos de
patriarca e mulher da era vitoriana, o que não deveria ajudar a pobre
Flora a perceber toda a cena.
Estupefacta, fez um sorriso rasgado para todo o grupo e, com uma mudança
súbita de estratégia, comentou num tom reprovador:
- Teddy, querido! Não tens um beijo para a tua antiga ama?
Com bastante relutância, Teddy levantou-se e deixou-a abraçá-lo, após
o que se soltou educadamente e voltou a sentar-se no chão ao lado da
cadeira de River, onde tinham estado a estudar um grande livro sobre
dragões.
- Não nos ocorreu que alguém pudesse visitar-nos hoje, Flora, mas para
cada momento há uma mulher - disse Lex.
- Tive só de sair para apanhar um pouco de ar fresco, porque passei
o dia todo enfiada em casa a cuidar do coitado do Rollo, que está mesmo
com um resfriado sério. Achei que a Meg poderia querer saber como estava
o namorado.
Disse aquilo com um severo relance na minha direção, mas, se a sua
sugestão era para atingir Mark, falhara o alvo por completo, já que
ele não ouvira nem uma palavra do que ela tinha dito.
- Acho que já concluímos que o Rollo não é namorado da Meg, nem
companheiro, ou seja lá como é que hoje em dia se diz, Flora - atalhou
Clara. - Por isso, se foi isso que ele te disse, está a tentar passar-te
a perna.
- Oh, desculpem! Devia ter dito ex-namorado - corrigiu ela
apressadamente. - E parece ter havido um pequeno mal-entendido, porque
ele só queria passar por cá e ver a Meg enquanto estava por perto. Claro
que, sendo poeta, também adoraria poder prestar a sua homenagem ao
Henry.
- Que a preste por email, então - disse Henry.
- Sim, certamente não queremos o germe da constipação dele a invadir-nos
a Casa Vermelha - concordou Clara.
- Como a Maria Tifoide - sugeriu Tottie e, ao ver a expressão perdida
de Flora, explicou melhor: - Era uma portadora de tifo, infetou dezenas
de pessoas!
- O Rollo não tem febre tifoide! - exclamou Flora. - É só um resfriado,
nada contagioso, se bem que eu estava com medo que piorasse para
pneumonia. Mas já começou a melhorar.
- Eu acabei de recuperar de uma pneumonia. Foi uma coisa viral - disse
eu. - Mas fico satisfeita por ele se sentir melhor e espero que a mãe
dele não esteja a ligar-lhe vinte vezes por hora.
- Naturalmente, ela está muito preocupada com o filho, pobre senhora
- disse Flora.
- Bem, Flora, seja qual for o motivo que te trouxe cá, a tua chegada
é muito oportuna- disse-lhe Clara.
- De facto, estávamos mesmo a falar de ti - acrescentou Tottie.
- Coisas boas, espero? - disse Flora, como se não pudessem ser outras.
- Espero que sejam boas para todos nós - disse Clara. - Temos uma
proposta a fazer-te. Mas vem sentar-te aqui, perto da lareira, entre
mim e a Sybil, e aquece-te. Já conheceste o River e a Meg na Congregação,
não foi? E aqui está o Piers Marten, que certamente já tinhas visto
noutras ocasiões.
Até então, Flora não deveria ter dado pela sua presença, pois ele estava
algo obscurecido por Tottie, que nesse momento se recostou.
- Claro, mas não nos víamos há anos - disse Flora, apertando-lhe a mão.
- Como está?
- Exausto e, ao que parece, indesejado - murmurou ele com um sofrimento
patentemente falso, antes de acrescentar corajosamente: - Mas sou um
velho soldado, sabe: seguirei em frente.
- Mas não vai conseguir seguir até Thorstane até a estrada descongelar
o suficiente, o que é a raiz do problema - referiu Tottie, ao que Flora
fez um ar intrigado.
Henry explicou:
- A Sybil disse ao Piers que não viesse neste Natal por causa das
remodelações do Mark, e é também por isso que ela vai passá-lo connosco.
Mas ele ignorou a carta dela e apareceu hoje à tarde com a Zelda.
- Tudo não passou de um mal-entendido - disse Piers. - Mas agora já
cá estou e...
Clara ignorou-o e continuou no seu jeito de rolo compressor humano:
- O que se passa, Flora, é que temos a casa cheia e o Mark não pode
receber o Piers. Ele disse aos Gidney que tirassem uns dias pelo Natal,
já que pode tratar de si mesmo enquanto trabalha na casa, e eles estão
desejosos de umas férias.
- E o mais provável era que o Piers congelasse, porque eu não vou ligar
o aquecimento até a minha mãe voltar - disse Mark, juntando-se à
discussão. Do lugar onde me encontrava, via que ele e Zelda estavam
de mãos dadas, o que era um avanço mesmo muito rápido.
- Realmente, Mark, tornaste-te muito duro! - exclamou Piers com
tristeza. - Quando eras pequeno, eu não era como um tio para ti?
- Não - respondeu Mark. - Apavorava-me que ficasse em Underhill quando
nós lá estávamos. Gozava comigo por eu detestar caçar e matar coisas.
Depois, mais tarde, disse ao meu avô que eu tinha de tirar um curso
de gestão hoteleira porque não tinha inteligência para mais!
Piers parecia espantado, mas, antes que pudesse falar, os instintos
maternais de Sybil levaram-na a dizer:
- É bem verdade, Piers! Eu própria o ouvi várias vezes.
- Sybil, não podes acreditar que eu não fosse afeiçoado ao rapaz. Estava
apenas a brincar - disse ele. - Sabes que faria qualquer coisa ao meu
alcance para proteger os interesses dele.
Ela fitou-lhe os olhos por um instante, empalideceu e desviou o olhar,
incomodada.
- Claro... quero dizer, é só que não era muito amável com ele e...
- Esqueçam lá o passado - atalhou Clara. - Regressemos ao problema em
mãos: a estrada está bloqueada e é capaz de ficar assim durante pelo
menos uns dias. Já tens um visitante à espera de poder partir, Flora,
por isso pensámos que talvez pudesses receber o Piers também?
- Mas a pensão não está aberta - disse ela, apanhada de surpresa pela
sugestão. - Quero dizer, contactei a minha tia e disse-lhe que tinha
vindo para casa e tinha um amigo comigo, claro... e eu e o Rollo já
nos tornámos tão bons amigos - acrescentou ela, com mais um olhar
incisivo na minha direção, a ver o que isso me fazia sentir.
- Que agradável - disse eu num tom simpático. - Ele consegue ser muito
boa companhia, quando quer.
- É claro que a minha tia ficou muito contente ao saber que eu tinha
um amigo comigo, mas que o Piers estivesse lá também...
- Pagaria a pernoita, com certeza - disse Tottie. - E imagino que a
Deirdre quereria que cobrasses o dobro ou o triplo da taxa no Natal,
com pensão completa.
- Quereria, sem dúvida - concordou Flora. - Mas ainda que eu tenha
ajudado muitas vezes na pensão, nunca a geri eu mesma.
- Calculo que a Deirdre não vá opor-se a que recebas o Piers, desde
que ele pague. E, realmente, tanto faz cuidares de dois hóspedes como
de um - argumentou Clara muito razoavelmente.
- Tenho a certeza de que não vais querer cobrar-me mais do que a taxa
habitual, minha querida, estando eu tão lamentavelmente preso aqui -
disse Piers, começando a dirigir a Flora o seu melhor sorriso de velho
soldado corajoso.
- Não conhece a Deirdre - juntou Tottie. - É uma mulher de negócios
até ao âmago.
- E você não há de estar na penúria, se pode dar-se ao luxo de ser membro
do Clube In & Out - disse-lhe Clara.
- Ficaríamos muito gratos se pudesses receber o Piers, minha querida
- disse Henry, com o seu sorriso encantador.
Flora vacilou.
- Bem, teria de tentar entrar em contacto outra vez com a minha tia
e obter a sua autorização, se bem que, dadas as circunstâncias, calcule
que vá concordar. Mas a Tottie tem razão e ela esperaria que eu lhe
cobrasse mais, Piers. E ela insiste sempre em registar as informações
dos cartões de crédito dos hóspedes quando eles chegam - acrescentou
com firmeza.
Ela parecia ser feita da mesma massa que os outros e havia mais do que
uma alusão à mão de ferro dentro da luva de veludo.
- Mas não, certamente, no meu caso? - protestou Piers. - Trata-se de
uma despesa inesperada, por isso não sei se... Mas também - acrescentou,
animando-se -, tenho a certeza de que a Sybil poderia saldar a minha
conta e eu depois logo lhe pagaria.
- Como a mãe ultimamente parece andar sempre nas lonas, eu não
aconselharia essa via, Flora - disse-lhe Mark.
- Não, teria de ser o seu cartão de crédito, caso contrário a minha
tia ia ficar mesmo zangada - disse Flora a Piers.
- Então, se a Deirdre estiver de acordo, podes recebê-lo, Flora? -
perguntou Henry.
- Acho que sim. Vou voltar e ver se a apanho e depois preparo um quarto
para ele.
- Maravilhoso! E diz-nos se conseguires falar com ela. Podemos dar de
jantar ao Piers e levá-lo à pensão depois disso - sugeriu Clara. - Ajuda?
- Sim, ainda que não sei bem como é que vou servir comida aos dois se
acabarem por passar lá o Natal. Só comprei provisões para mim, e temos
o congelador cheio, mas é provável que os frescos se acabem bem
depressa. E depois há o Natal propriamente dito...
Clara suspirou.
- Percebo, querida, mas provavelmente nós poderemos ceder-vos qualquer
coisa que vos falte. E, se os teus hóspedes ainda estiverem cá então,
poderão vir todos jantar à Casa Vermelha no dia de Natal.
- Que encantador! Isso é muita amabilidade sua - disse Flora.
- E mais vale que os tragas também à festa de comes e bebes do dia
seguinte - acrescentou Clara com generosidade.
- Mas avisa esse Rollo que não vai fazer-me nenhuma entrevista, nem
tomar notas, nem escrever acerca de nós quando chegar a casa, senão
vai arrepender-se - acrescentou Henry. - Não me falta influência no
mundo da poesia.
- Tenho a certeza de que isso nem lhe passaria pela cabeça! Ele há de
ficar encantado só de o conhecer - assegurou-lhe ela.
- Mas se esse resfriado se transformar em constipação, ele que fique
de cama que nós mandamos-lhe o jantar - decretou Clara.
- Não acho que isso vá acontecer. Esta tarde começou mesmo a melhorar.
- Bom, porque eu também não quero constipar-me - disse Piers. -
Sobretudo se vou pagar caro pelo privilégio de me instalar no seu
estabelecimento.
A dada altura, River devia ter saído discretamente, pois regressou
nesse momento com mais chá e uma chávena limpa para Flora, pela qual
ela lhe agradeceu com doçura. Parecia capaz de emitir um feixe luminoso
de encanto sem o mínimo esforço, mas este por vezes apagava-se de novo
muito rapidamente.
Parecendo que o problema premente de Piers se resolvera, o ambiente
na sala aligeirou-se, embora Sybil continuasse calada e com um ar
ansioso, ao passo que Piers parecia tentar chamar-lhe a atenção. Talvez
quisesse compaixão e achasse que ela era a única pessoa presente que
poderia oferecer-lha.
Mark foi colocar a sua chávena e a de Zelda no carrinho e Flora deu
uma palmadinha no lugar vazio a seu lado.
- Vem falar comigo, Mark! Mal consegui trocar duas palavras contigo
na Congregação.
- Lamento, mas estou mesmo quase a ter de ir embora - respondeu com
determinação.
Ela fez um beicinho charmoso e apelou a Sybil:
- Ele é tão rezingão, não é? Seria de pensar que não ficou satisfeito
ao ver-me de novo... e com tanto que nos divertimos da última vez que
vim a casa!
Sybil respondeu com um sorriso frio que mal lhe aflorou aos lábios,
mas Mark corou.
Zelda, porém, estava a fitar Flora com um ar pensativo. Depois
perguntou-lhe:
- Quanto tempo vais ficar em Starstone Edge, Flora?
- Até encontrar uma nova colocação, suponho... a menos que surja alguma
coisa melhor.
Não havia como não perceber a insinuação daquele comentário ou a quem
era dirigido, embora Mark evitasse o olhar dela.
- Imagino que tu tenhas de regressar a Londres logo a seguir ao Natal,
Zelda? - perguntou Flora com um sorriso luminoso.
- Oh, não, desta vez não há pressa para voltar. De facto, tenho andado
a pensar no meu futuro, agora que já fiz trinta anos.
- Não pareces ter trinta, pobre velhinha - comentou Lex, ao que ela
lhe fez uma careta.
- Eu não acho que pareças velhinha, mamã - disse Teddy, distraído do
seu livro de dragões.
- Obrigada, querido, és muito fofo.
- Trinta não é nada. Ainda tens tanto por viver - afirmou Henry.
- Mas é um marco importante para uma atriz e, convenhamos, a minha
carreira nunca arrancou realmente. Este ano nem sequer fui selecionada
para participar numa pantomina.
- Mas tu detestavas passar o Natal a atuar - recordou-a Clara.
- É um bocado miserável, mas desta vez nem sequer me perguntaram. E
aquele anúncio que acabei de gravar era de papel higiénico... não foi
propriamente o pináculo da minha carreira.
- Mas o rolo era suave e forte e muito comprido? - perguntou Lex, e
ela atirou-lhe uma almofada, que ele apanhou sem dificuldade.
- Então e o que farias em vez de representar, querida? - perguntou-lhe
Clara.
- Não sei. Vou ter de pensar nisso. - Ela sorriu. - Se bem que tive
um indício de uma ideia há uns minutos!
- És sempre bem-vinda e podes mudar-te para aqui enquanto decides -
disse Henry, ao que Clara concordou.
- Vai ser divertido, mamã - disse Teddy. Porém, como ele antes nos tinha
dito que Zelda descrevera Starstone como «a ponta mais afastada de
nenhures», eu não estava mesmo a ver isso a acontecer.
Zelda também parecia sentir a necessidade de o explicar.
- Eu gosto de diversão, de conhecer pessoas novas e de viajar, mas é
claro que também adoro estar aqui. Por isso, vou precisar de uma forma
de combinar as duas coisas.
- Se descobrires como é que podes ter tudo, todos gostaremos de saber
como se faz - replicou Tottie com secura.
- A ideia que tive surgiu-me enquanto falava com o Mark acerca dos seus
planos para Underhill. Fiquei a pensar se ele poderia dar-me um emprego
quando o seu negócio de local de copos-d’água estiver a funcionar.
Ele sorriu-lhe e disse-lhe:
- Até podia ser! Podemos falar disso amanhã, quando lá fores.
- Oh, amanhã vais a Underhill? - intrometeu-se Flora com ciúmes. - Se
calhar podias apanhar-me pelo caminho. Prometeste mostrar-me o que tens
estado a fazer e todos os teus planos, Mark.
- Prometi? - perguntou ele, desviando o olhar de Zelda a custo, com
um ar acossado.
- Na verdade, eu e a Meg também vamos a Underhill com a Zelda de manhã
- disse Lex. - Mas é para ajudar no trabalho por umas horas, não é só
para ir ver como estão as coisas.
- Eu também poderia ajudar - disse Flora num tom ávido. - Sou capaz
de não me demorar muito, por causa dos meus hóspedes, mas posso sempre
voltar a pé. O meu velho Mini não serve mesmo na neve.
Não havia como dissuadi-la. Quando Mark disse que tinha mesmo de
regressar, ela afirmou que mais valia voltar com ele, porque precisava
de tempo para preparar as coisas para o seu hóspede inesperado.
- Pobre Mark! - exclamou Clara num tom sombrio quando eles saíram
juntos.
- Foi ele que provocou isto - ressalvou Tottie, sendo justa.
- Eu tinha-me esquecido de como é uma devoradora de homens debaixo
daquele exterior bonitinho e inofensivo - disse Zelda.
- É só um pouco intensa - retorquiu Clara com benevolência. - Tende
a pensar que ir tomar um copo com um homem quer dizer que se está
praticamente prometida em casamento, e eu receio que o Mark a tenha
encorajado um pouco da última vez que ela veio a casa.
- Eu sempre a achei uma jovem muito simpática - declarou Piers. - Não
percebo o que é que vocês têm contra ela.
- Não temos nada contra ela - disse Clara. - Também foi uma ama muito
competente, e arranjei-lhe um lugar muito bom em Londres quando o Teddy
deixou de precisar dela.
Mas Sybil estava com um ar alarmado.
- Eu não a quero mesmo para nora - declarou. - E, seja como for, eu
julgava... - interrompeu-se, com o olhar estupefacto a recair sobre
mim.
- No fim tudo há de resolver-se, não te preocupes, Sybil - disse-lhe
Clara. - Eu nunca me preocupo.
- É como uma peça de Shakespeare, em que todos se enganam quanto à
identidade das outras personagens, até que no final, depois de muitos
fios desembaraçados, tudo fica certo - concordou Henry. - Este ano o
Natal deve ser muito interessante.
- Eu não faço ideia do que é que vocês estão todos para aí a falar -
disse Piers num tom belicoso. - Bom, se a ideia é eu ficar para jantar
antes de me atirarem para essa maldita pensão, gostaria de me refrescar
e de descansar um pouco. Foi um dia muito esgotante.
- Pode usar o meu quarto - ofereceu River com generosidade. - Tem uma
casa de banho em frente. Eu mostro-lhe o caminho.
Piers não lhe agradeceu, mas seguiu-o para fora da sala. No átrio,
ouvimo-lo dizer a River, como se este fosse alguma espécie de criado:
- Vou precisar daquela mala pequena de pele que ali está.
- Muito bem, pode trazê-la - respondeu a voz de River com delicadeza.
- O River é uma alma amável e generosa, mas não deixa que ninguém o
pise - comentei.
- É melhor subir também, desfazer as malas e refrescar-me - disse Zelda.
- É o quarto do costume, querida - lembrou Clara. - Começa a parecer-me
que todos ficaríamos melhor depois de uma pequena sesta num quarto
escuro.
Tottie amontoou as coisas do chá no carrinho e Lex levou-as para a
cozinha. Lass seguiu-o, provavelmente na esperança de alguns restos,
mas Wisty estava profundamente adormecida em frente à lareira e Pansy
tinha voltado a saltar para o meu colo, sem que eu desse por isso.
River voltou e, ocupando o lugar mais próximo da lareira, que Piers
vagara, olhou em redor com um grande sorriso e, sem sarcasmo aparente,
comentou:
- Bem, mas que alegria!
Clara
Starstone Edge cada vez nos chamava mais e íamos falando da
possibilidade de adquirirmos um chalé no vale, onde pudéssemos passar
tempo, quer juntos, quer separados, sem termos de ficar com George.
Depois a minha querida tia Beryl faleceu e deixou a sua fortuna
considerável dividida entre mim e a minha irmã, Bridget.
Com isso e os prósperos investimentos de Henry, de súbito vimo-nos
surpreendentemente abastados, e viajámos até Starstone Edge para
vermos as poucas casas que havia à venda.
Tendo inspecionado uns quantos chalés minúsculos e claustrofóbicos e
uma moradia dos anos 1930 com sérios problemas de infiltrações,
estávamos a começar a desesperar. Foi então que fomos lanchar com Tottie
Gillyflower.
Ela não passava de uma bebé quando eu deixara Starstone, mas claro que
Henry a conhecia bem, e tínhamo-la visto com frequência nas nossas
visitas. Vivia na Casa Vermelha, um substancial casarão vitoriano na
ponta oposta da aldeia em relação a Underhill e, durante esse lanche,
ficámos a saber que as suas tentativas de transformar o espaço numa
pensão desde que a sua mãe falecera não tinham tido o sucesso que ela
esperava. A manutenção de uma casa tão grande era dispendiosa, e ela
receava ter de a vender e mudar-se. A ideia de perder o seu jardim era
o que parecia entristecê-la mais.
Henry sempre adorara aquela relíquia bizarramente excessiva do gótico
vitoriano e eu também me deixara afeiçoar ao espaço - bem como a Tottie,
uma jovem prática e angular apaixonada por jardinagem e apicultura.
Por isso, chegámos a um acordo e comprámos-lhe a Casa Vermelha, com
a salvaguarda de que ela continuaria a morar ali e se encarregaria da
lida da casa, devotando o resto do tempo ao seu jardim e às suas abelhas.
Den, o leal amigo que nos preparara as refeições e cuidara tão bem de
nós em Londres, poderia continuar a fazer o mesmo ali, mas teria o seu
próprio apartamento por cima da garagem, depois de completarmos uma
série de renovações muito necessárias.
Embora o acordo com Tottie pudesse parecer estranho e pejado de
dificuldades, depressa nos instalámos, formando uma família feliz -
que ainda somos, mais de trinta anos passados.
Com o passar do tempo, apesar de continuar oficialmente ligada ao Museu
Britânico, podia dividir o meu tempo entre o trabalho de epigrafia,
palestras e a escrita de livros, tanto eruditos como ficcionais.
É claro que já me reformei, mas não posso dizer que isso tenha provocado
grande diferença na minha vida, exceto que, pelas inovações da
tecnologia, posso fazer bastante da reconstrução epigráfica aqui
mesmo, no ecrã do computador, através de um programa maravilhoso.
As nossas vidas têm sido plenas e felizes e, se é certo que não tivemos
filhos, os da minha irmã Bridget passaram tanto tempo aqui na Casa
Vermelha que mais do que compensaram esse facto...
33
O Laço dos Beijos
Sybil tinha-se mantido em silêncio num canto de um dos sofás, mas então
levantou a cabeça e disse numa voz perturbada:
- Lamento imenso que o Piers tenha tentado impor assim a sua presença
e, realmente, sei que deveria ter tentado convencer o Mark a levá-lo
para Underhill... e ir com eles.
- Oh, que disparate, Sybil - foi a declaração rotunda de Clara. - Tens
um coração demasiado bondoso para o teu próprio bem. Lá por ele ter
sido o melhor amigo do teu pai, isso não quer dizer que tenha o direito
de ser um fardo para ti para o resto da vida.
- Mas... quero dizer, conheço-o desde que era pequena - protestou ela.
- E tenho pena dele, porque ele diz que a família não o quer receber
no Natal.
- Ele provavelmente irrita-os tanto que isso não surpreende - comentou
Henry.
- Mas o Piers não é assim tão mau - insistiu ela.
- Sybil, nós sabemos que, quando ele ficava em Underhill, ele e o George
costumavam beber até cair para o lado todas as noites depois do jantar,
já para não falar do jogo... e das outras coisas em que se metiam quando
davam as suas escapadelas para o Sul de França - atalhou Clara. -
Ouvíamos os rumores.
Sybil não tentou negá-lo.
- Não se preocupe com ele, Sybil - disse-lhe Lex com gentileza. - Vai
ficar mais confortável na pensão do que ficaria em Underhill, com todas
as obras que há por lá, e a Flora cuida dele.
- Desde que não ache que dá demasiado trabalho, porque é certo que ele
é um bocadinho obstinado - respondeu Sybil. - Mas também talvez a
estrada amanhã já fique desimpedida e ele possa ir embora - acrescentou,
otimista.
- Duvido, Syb - disse Tottie. - O Den disse-me que a previsão
meteorológica dizia que a neve não devia parar durante os próximos dias.
Por isso parece que é bem provável que o tenhamos aqui no Natal, sem
perspetivas de se pôr a andar.
- Nesse caso, é melhor guardar no bolso a chave do bar enquanto ele
aqui estiver - disse Henry, pensativo. - E dizer ao Den que mantenha
a porta da despensa trancada também, ainda que não guardemos lá muito
álcool, para além do hidromel e dos licores de fruta da Tottie.
- Há uísque e xerês, mas penso que é tudo - concordou Clara.
- E várias garrafas de champanhe de flor de sabugueiro, para a festa
na manhã a seguir ao Natal - relembrou Tottie.
- Oh, eu adoro champanhe de flor de sabugueiro! - exclamei. - Lá na
Quinta, a Maj também faz.
- É verdade - corroborou River. - Devem estar a bebê-lo agora, nas
celebrações...
Ficou com um ar ligeiramente pensativo, provavelmente a lembrar-se que,
desta vez, cedera a Oshan o seu papel nas cerimónias. Não me enganava,
pois acrescentou:
- No Solstício, o Oshan terá vertido uma libação de hidromel sobre o
moledo na colina por trás da Quinta, como de costume.
- Acho que o Den deve ter uma grade ou duas de Guinness no apartamento
dele - disse Henry. - Mas não vai partilhá-la com o Piers. Eles nunca
se entenderam.
- Isso é porque o Piers é um snobe e tenta tratar o Den como uma espécie
de criado - disse Clara.
Sybil fez um protesto simbólico, mas sem convicção.
- Calculo que o Den o ponha no seu lugar - disse Henry.
O telefone tocou. Era Flora, a dizer que Deirdre aceitava que recebesse
Piers como hóspede com pensão completa, mas pagando o dobro do valor
habitual.
- Basicamente o que eu achava que ela ia dizer - comentou Clara. -
Portanto, isso está resolvido.
- Eu levo-o lá na carrinha de caixa aberta depois do jantar - ofereceu-se
Lex. - As estradas já devem ter começado a gelar, mas posso pôr as
correntes.
- Acho que sou capaz de ir deitar-me até à hora de jantar, depois de
dar de comer às cadelas - disse Sybil. - Dói-me um pouco a cabeça.
Quanto a mim, não sentia qualquer vontade de me deitar, mas quis
escapulir-me para o meu pequeno torreão de Rapunzel e, quando lá
cheguei, mandei um email rápido a Fliss.
O Lex está a tratar-me muito bem, para compensar ter pensado que eu
era uma sedutora malvada. E acabo de assistir ao Mark, o único potencial
herói romântico, a perder-se de amores à primeira vista pela irmã do
Lex. A antiga ama do Teddy está furiosa, parece que estava a contar
ficar ela com ele. Chegou um velho horroroso, mas vai ficar noutro
sítio. O Rollo também continua em Starstone Edge - apanhou um resfriado,
as estradas estão bloqueadas e a neve não deixa ninguém ir a lado nenhum.
A complicação adensa-se.
Bjs, Meg
Não mencionei que me parecia que alguém tinha tentado empurrar-me de
um precipício abaixo, porque, em retrospetiva, via como era tola essa
ideia.
Lex continuava a tratar-me com uma amabilidade quase insuportável:
antes de eu ter subido, ele intercetara-me e perguntara-me se eu não
estava mesmo magoada pela súbita deserção de Mark, ao que eu respondera
que não fosse idiota.
Henry tinha razão, aquilo tudo parecia mesmo uma das peças românticas
mais confusas de Shakespeare. Eu só esperava que bem ficasse o que bem
acabasse.
Tinha acabado de enviar o email a Fliss quando ouvi algo a raspar e
uns latidos. Desci as escadas do torreão e deparei-me com Pansy à porta
do meu quarto, de olhos vivos e a dar à cauda.
- Como é que descobriste onde eu estava? - exclamei, pegando-lhe ao
colo.
E senti uma pontada horrível no coração, por saber que, depois do Natal,
ela passaria para as mãos de desconhecidos. Só esperava que a adorassem
tanto como eu passara a adorar.
Ela deitou-se no tapete e ficou a observar-me enquanto me penteava e
dava um tom ligeiramente mais dramático às pestanas e às sobrancelhas
naturalmente castanho-claras.
Um rosto pálido emoldurado por cabelo rosa, de olhos de um azul
estranhamente pálido como um ovo de pata, fitou-me no espelho. Com os
malares altos e o nariz reto, perguntei-me como me poderiam ter escapado
as feições da família Doome que pintara em Henry e que devia ter notado
em Mark.
Por impulso, abri a arca de lata da minha mãe e Pansy espirrou quando
uma onda de madeira de sândalo e pachuli a atingiu.
Remexi nas roupas. Sentia um impulso de a ter perto de mim naquela noite,
usando algo seu, pelo que escolhi uma blusa pesada de seda com mangas
de balão, peitilho bordado e fechado com cordões que terminavam em
borlas.
Usei-a com uma saia comprida verde-escura com um lado mais curto que
revelava uma camada de chiffon de seda por baixo. Encontrara-a anos
antes numa loja solidária e tinha um aspeto algo vitoriano.
Uns pendentes de malaquita completavam o visual... fosse lá qual fosse.
Senti-me animada pelo espírito da minha mãe livre e, de repente, dei-me
conta de que o estilo maternal de Zelda era muito similar ao dela.
Eu sabia que a minha mãe me amava, mas isso nunca a impedira de partir
nas suas próprias aventuras. Parecia que eu é que assumira o papel
maternal e preocupado... sobretudo desde o seu desaparecimento.
Ao fundo do corredor, deparei-me com muita atividade. Henry e Teddy
tinham despejado o grande saco dos correios sobre o aparador e estavam
a organizar o conteúdo em montículos, enquanto Den e River tinham ido
buscar o escadote alto e estavam a pendurar o laço dos beijos.
- Eu sabia que faltava qualquer coisa aqui - explicou River.
- Pois, e est’é o que c’a gente preparou antes, não é? - questionou
a voz lá em cima.
- Está lindo - disse eu num tom de admiração, apesar de não ser um laço,
mas mais um galho grande, com hera à volta e decorado com alguns raminhos
de azevinho cheios de bagas. Dali pendia um grande ramo de visco
artificial, que eles deviam ter tomado de empréstimo de uma das
grinaldas.
- O azevinho e a hera para representar o elemento feminino-masculino
e yin-yang da época, claro - disse River. - E o visco pelas razões
óbvias.
- Beijos - disse Den, começando a descer.
- Não, referia-me ao significado mágico mais profundo, mas beijar
também é bom - respondeu River, e deu-me um beijo na face.
Eu correspondi-lhe e abracei-o.
- Que linda estás esta noite, minha filha - disse ele.
- É uma blusa da mãe, tirei-a da arca. Lembrei-me de a usar porque esta
noite, não sei porquê, tenho a sensação de que ela está muito próxima.
- Sim, também sinto isso, e tenho a certeza de que em breve regressará
para junto de nós.
Esperava que ele tivesse razão e que os meus piores receios não se
concretizassem...
Naquela noite, River estava a usar a túnica com as runas. À volta do
pescoço tinha uma mandala de prata e um colar de chacras com pedras
de várias cores.
- Tu também estás muito elegante - disse-lhe eu. - Conseguiste ir ao
teu quarto para mudar de roupa?
- Sim, se bem que o Piers continuava apagado na minha cama. De facto,
talvez tenhamos de ir acordá-lo para jantar.
- E o melhor é voltarmos e acabarmos de cozinhar a maldita coisa -
sugeriu Den, e ambos se afastaram, levando o escadote entre os dois,
como um par cómico.
- Venha para a sala de estar e tome uma bebida - sugeriu Henry. - A
Clara, a Tottie e a Sybil já desceram... e partimos do princípio de
que a Pansy só podia estar consigo, quando desapareceu. O Lex foi buscar
mais lenha e a Zelda passou a última meia hora metida no escritório
da Clara, num telefonema muito demorado. Desconfiamos de que será com
o Mark. - Os seus olhos cintilaram. - Nunca tinha visto um coup de foudre
assim.
Ri-me.
- Nem eu! Ficaram os dois apanhadinhos de repente, não foi?
Teddy, que estava a segurar um embrulho grande, disse:
- Olha, Meg! O tio Henry esqueceu-se de que tinha licitado noutras
decorações de Natal há séculos e acabaram de chegar.
- Há uns dias que não vejo o correio eletrónico, caso contrário talvez
soubesse que vinham a caminho - reconheceu ele. - Nem me lembro do que
fazia parte deste lote.
- Podemos abri-lo agora? - pediu Teddy.
- Não, vamos aumentar a expetativa e guardá-lo para amanhã - disse ele.
- Leva-o com cuidado para o meu escritório e deixa-o na secretária junto
à máquina de escrever. É outra antiguidade: podem fazer-se companhia
durante a noite.
- És muito tonto, tio Henry - disse Teddy num tom sério.
- Eu sei, mas receio bem que já seja tarde de mais para mudar isso.
Teddy levou o embrulho e Henry apressou-se a tirar outra embalagem da
saca dos correios, que guardou dentro do aparador.
- É outra encomenda com selos norte-americanos, mas vem endereçada à
Clara e tem a morada do Radnor Vane na parte de trás, pelo que calculo
que seja algo para o Teddy.
Eu esperava, por Teddy, que não fossem mais pantufas do Rato Mickey.
- Já organizámos a correspondência. Isso era a última coisa - disse
Henry, enquanto Teddy regressava. - Já passei o nosso à Clara, na maior
parte cartões de boas-festas, e a Sybil está a ver o correio para
Underhill. Lembrei-me de que a Meg e o Lex poderiam levá-lo amanhã de
manhã, Meg.
- Mas ainda há muito mais para distribuir - constatei, olhando para
as pilhas em cima do aparador.
- Provavelmente levo-o amanhã, quando sair com a Lass, mas não deve
ser demorado, pois a maior parte é para os Adcock e para o Bilbo.
Na sala de estar, as luzes da árvore e do lustre cintilavam e, com as
cortinas fechadas e a lareira a emitir um brilho quente, tudo tinha
um ar muito aconchegante.
Clara estava a beber o seu habitual uísque com água mineral, ao passo
que Sybil e Tottie tinham copos de hidromel dourado.
- Boletos fortes e um caráter afável - dizia Sybil, pelo que depreendi
que estariam a falar de algo equino.
- Tudo o que sempre quis num homem - intrometi-me, provocando uma risada
seca a Tottie.
- O quê? - perguntou Lex, entrando com um cesto cheio de toros. Tinha
pingos em forma de estrela de neve a derreter nos seus caracóis escuros.
- Boletos fortes e um caráter afável - respondeu Sybil, a sorrir.
- Assim sou eu, mas, infelizmente, não posso casar com as três.
Ele pousou o cesto da lenha ao lado da lareira e, com cautela,
acrescentou mais um ou dois toros às brasas.
A porta tornou a abrir-se e Zelda entrou com uma expressão algo
sonhadora. Estava a usar qualquer coisa curta, vermelha como uma baga
de azevinho e com recortes interessantes que revelavam partes
selecionadas da sua anatomia curvilínea, mas miúda.
- O Mark está bem? - perguntou Clara.
- Sim, ele... - Interrompeu-se e corou. - Como é que sabia que eu tinha
estado a falar com ele?
- Intuição, minha querida - deduziu Clara.
Sybil fitava Zelda, de sobrolho franzido. Parecia estar prestes a dizer
qualquer coisa, não fosse Henry, Teddy e River terem entrado nesse
momento.
- Ainda não há sinal do Piers - observou Henry.
- Não. Talvez seja melhor fazer tinir um copo contra a garrafa de uísque
ali ao fundo das escadas? - sugeriu Clara.
- Na verdade, quando fui mudar-me e o encontrei ainda apagado na cama,
o quarto tinha um cheiro notório a brande - disse River. - Acho que
ele era capaz de ter mais provisões na sua mala de viagem.
- Acho que, se ele não aparecer até o Den tocar o gongo, vamos ter de
o acordar - disse Tottie. - E ainda vamos precisar de o levar até à
Flora, depois de ter comido.
- Comida sólida e uma caneca de café devem dar conta do recado - afirmou
Clara.
- Espero que a Flora não tenha demasiados problemas com ele - desejou
Henry. - Talvez seja melhor avisá-la para trancar o minibar na sala
dos hóspedes?
Sybil pareceu entristecer de novo.
- O Piers realmente bebe muito. O paizinho ficava sempre pior quando
ele se instalava lá em casa.
- Eu apostaria que a Flora é bem capaz de lidar com o Piers - disse
Clara. - Não tens de ficar com um ar tão culpado e preocupado, Sybil:
não é por tua causa que ele está aqui.
- O que vamos fazer amanhã? - perguntou Henry, mudando de assunto. -
Já sei que os jovens vão a Underhill de manhã para ajudar o Mark.
- Sim, se a estrada estiver suficientemente desimpedida, eu conduzo
até lá. A Zelda depois fica, mas eu trago a Meg para almoçar - disse
Lex.
- Será que podemos fazer mais uma sessão à tarde, Tottie? - sugeri.
- Não vejo porque não - acedeu ela.
- As minhas memórias vão de vento em popa - informou Clara. - Vou
terminar este volume e depois começo a escrever o próximo policial.
- Então sempre vai haver outro volume? - quis saber Tottie.
- Oh, sim, porque sinto que encontrar a Meg marca o início de um novo
capítulo nas nossas vidas, não acham?
- Eu acho - concordou Henry. - E agora que o meu próprio trabalho está
acabado, tirando uns retoques finais, talvez inicie também um segundo
volume: acerca da aldeia a regressar como um fantasma, durante o último
período de seca.
- Realmente foi esquisito, quando paredes e casas arruinadas começaram
a surgir de novo - concordou Tottie.
- Quem me dera ter visto isso - disse River.
- Tenho algumas fotos na biblioteca. Depois mostro-lhe - prometeu ela.
- Quanto a mim, amanhã também serei o carteiro da aldeia - anunciou
Henry, ao que River se ofereceu para o acompanhar e ajudá-lo.
- Então e eu? - perguntou Teddy. - Será melhor ir a Underhill, tio Lex,
ou ser um carteiro com o Henry e o River?
- O Den tinha dito que gostaria mesmo de ter alguma ajuda na cozinha
amanhã de manhã - lembrou River. - Qualquer coisa a ver com um tronco
de chocolate, disse-me que estava a contar contigo.
- Oh, pois, o tronco! - exclamou Teddy. - Tinha-me esquecido de que
íamos fazer isso.
Den abriu a porta e deu passagem a Piers, com uma falsa vénia e as
palavras:
- Aqui está su’alteza p’o jantar.
Piers devia ter passado água fria pelo cabelo, pois as suas madeixas
brancas e baças estavam coladas à cabeça. Tinha os olhos glaciais a
lacrimejar e precedia-o um forte cheiro a brande.
- Atear a acendalha e recuar - sugeriu Den.
Lass, fixando os olhos em Piers, emitiu um rosnido baixo e gutural.
Isso era bastante impressionante, para uma cadela que passava a maior
parte do seu tempo a comer ou profundamente adormecida. Wisty e Pansy,
enroscadas num monte em frente à lareira, não davam por nada.
- Den, eu amanhã ajudo-te com o tronco de chocolate - ofereceu-se Teddy.
- Já ‘tava a contar com isso, Teddy, então não ‘tava? E preparei-te
uma coisa para o jantar... um coelho.
Aquilo parecia improvável, mas Piers animou-se.
- Eu cá adoro coelho estufado, ou coelho com molho de mostarda.
- Não diga disparates - insurgiu-se Clara. - É um coelho cor-de-rosa
de manjar branco para a sobremesa, não é, Den?
- Isso mesmo. Há arroz-doce p’a quem não gostar disso.
- Ninguém vai oferecer-me uma bebida? - perguntou Piers.
- O jantar ’tá pronto, não? - disse Den, fazendo soar o gongo. - E você
já tresanda como uma destilaria.
- Vamos todos para a sala de jantar - disse Henry, levantando-se à
pressa, ao que todos o seguimos.
Eu nunca tinha visto Sybil a usar outra coisa que não fossem roupas
de montar, mas, naquele dia, ela tinha optado por um vestido traçado
num tom de ouro velho que lhe ficava muito bem.
Infelizmente, isso teve o efeito de tornar Piers tenebrosamente
galante.
- Que encantadoras estão todas as senhoras esta noite - elogiou ele,
com um olhar lúbrico para Zelda -, mas sobretudo tu, Sybil. Tens de
me deixar acompanhar-te à sala de jantar.
Deu-lhe o braço e levou-a para o átrio, como se aquilo fosse um drama
histórico passado numa casa senhorial. Reparei no perfume de Sybil
quando passou por mim, algo muito forte e invulgar que, ainda assim,
me era familiar.
No corredor, Piers parou de súbito debaixo do laço dos beijos.
- Ora, ora, eis um ramo de visco muito oportuno - comentou ele, e em
seguida beijou Sybil, que virou a cabeça no último momento possível,
ao que o beijo lhe acertou na face e não nos lábios.
Sem se intimidar, ele perguntou alegremente, com o olhar a passar de
mim para Zelda, no seu minivestido vermelho:
- Bom, quem se segue?
- Ninguém quer beijá-lo, Piers - disse Clara com firmeza. - Mas queremos
jantar, por isso vamos para a sala de jantar, antes que a comida
arrefeça.
- Sinto que acabei de escapar por pouco a uma experiência hedionda -
sussurrei a Lex.
- Eu não me lembro de alguma vez me terem beijado debaixo do visco -
respondeu ele. - Mas gosto de pensar que sou uma perspetiva mais
atraente do que o Piers.
- Se calhar nunca experimentaste o método dele de perguntar a tudo o
que se mexa? - disse eu, a sorrir.
- Não, mas agora já não há aqui ninguém a quem perguntar, para além
de ti e da Pansy... e se calhar sou picuinhas, mas prefiro não beijar
um cão.
Olhei para cima e constatei que os olhos verde-escuros a fitar os meus
não estavam duros como ágatas naquele momento, mas antes suaves e algo
tristes.
Num impulso súbito, pus-me em bicos de pés e dei-lhe um beijo rápido...
ou, pelo menos, que era suposto ser rápido, mas os seus braços
contornaram-me, mantiveram-me junto a si e o momento prolongou-se toda
uma eternidade.
Depois, subitamente, Pansy emitiu uma série de latidos agudos e
ciumentos e separámo-nos, fitando-nos, antes de desatarmos a falar ao
mesmo tempo.
- Meg! Eu... - Lex parecia estranhamente abalado.
- Desculpa, não queria... - comecei eu.
Uma voz interrompeu-nos:
- Vocês os dois querem jantar aqui fora, ou quê? - perguntou Den, que
se dirigia para a sala de jantar com uma travessa tapada, seguido por
River, que levava um cesto de pãezinhos.
- Estou a ver que a Deusa me pôs a ideia do laço dos beijos na cabeça
por alguma razão - disse River, e esboçou um sorriso benigno.
34
Bem Condimentado
Eu e Lex ocupámos os nossos lugares à mesa de jantar, tendo o cuidado
de não olharmos um para o outro, o que não era fácil, dado que estávamos
sentados um à frente do outro. Tinha sido acrescentada outra tábua à
mesa para haver espaço para todos. Para além de Sybil e Piers, Den estava
a jantar connosco e tinha criado um lugar para si entre Tottie e Clara.
Passámos o cesto de pãezinhos e a manteiga e Den destapou a travessa
revelando outras duas mais pequenas, que Piers encarou com desagrado.
- Que raio é isso?
- Este é um paté de vegetais e o outro de cogumelos - explicou Tottie.
- Os cogumelos são vegetais - disse Teddy.
- São fungos, seu espertalhão - replicou Tottie num tom amigável.
- Oh, meu Deus, tinha-me esquecido que vocês são todos vegetarianos.
Devia ter-me lembrado dos petiscos esquisitos que servem na vossa festa
a seguir ao Natal - disse Piers. - Até me espanta que alguém vá, com
isso e a falta de bebidas decentes.
- Se ainda não tiver conseguido ir-se embora por essa altura, Piers,
sinta-se à vontade para faltar ao evento e ficar na pensão - atirou-lhe
Clara.
- E o mesmo se aplica ao jantar de Natal - concordou Henry.
A mente de Piers, toldada pelo brande, parecia ser incapaz de
compreender o conceito de um jantar de Natal vegetariano.
- Mas têm de fazer peru no dia de Natal, certamente, mais não seja para
os convidados?
- Não, claro que não. Vamos servir um delicioso assado de frutos secos
- disse-lhe Clara. - Mas costumamos servir umas pequenas trouxas de
salmão como entrada.
Piers estava boquiaberto, o que não era uma visão agradável.
- Mas... nem sequer um presunto de Natal?
- Na Quinta mantemos dois porcos só para escavarem o solo onde desejamos
plantar - referiu River com delicadeza. - São melhores do que qualquer
cultivadora.
Piers ignorou-o e apelou a Sybil, que ele parecia sentir ser a sua única
aliada ali presente.
- Certamente o presunto de Westphalia que encomendas sempre para o Natal
pode ser mandado vir para cá e...
- Para a minha casa, não - atalhou Henry com firmeza.
- Há um presunto, Piers, mas é para o Mark ir comendo durante o Natal,
enquanto trabalha na casa. Mas é claro que se vai juntar a nós para
o jantar de Natal. - Sybil dirigiu um sorriso tímido a Piers. - Não
me importo nada de ser vegetariana quando estou cá, porque a comida
do Den é deliciosa!
Este pareceu sentir-se lisonjeado, apesar de todos nós passarmos a vida
a elogiar as coisas maravilhosas que ele nos servia.
- Também comemos pudim de Natal, um bolo e um doce - revelou Tottie,
a oferecer uma compensação.
- Eu preciso de carne - disse ele. - Não posso viver só de lentilhas
e folhas de alface.
- Imagino que a Flora vá servir o seu carnívoro interior lá na pensão
- disse Lex. - Provavelmente terá um pequeno-almoço inglês completo.
Piers resmungou.
- É o que se espera. - Passou uma vista de olhos pela mesa e disse:
- Esqueceram-se do vinho.
- Não temos grande hábito de beber ao jantar - respondeu Clara. - De
facto, nenhum de nós bebe muito. Quer que lhe passe o jarro da água?
- Água?
Seria de pensar que ela lhe sugerira passar-lhe um cálice envenenado.
- A minha sidra é muito boa, por isso podemos abrir uma garrafa, se
quiser? - ofereceu Tottie, à laia de concessão, mas Piers limitou-se
a fitá-la com um ar inexpressivo.
- Bem, como queira. - Tottie encolheu os ombros.
- O que vai ser o prato principal de hoje, Den? - perguntou Henry.
- Kedgeree, mas sem pescada, se bem que cozi o arroz em caldo de peixe,
não foi? Lentilhas, especiarias, ovos e natas.
- Parece delicioso - disse eu, perguntando-me se me daria a receita
para partilhar com Oshan. Se ele substituísse o caldo de peixe por caldo
de legumes, se usasse natas veganas e omitisse os ovos... Não, pensando
melhor, talvez não fosse boa ideia.
- Hoje é angular-indiana, a comida - disse Den. - P’a sobremesa é
arroz-doce com cardamomos.
- Anglo-indiana - corrigiu-o Clara.
Den parecia prestes a contestar a correção, mas Piers intrometeu-se:
- Isso é um exagero de arroz e eu não gosto, nem de nada picante.
- Nós adoramos comida picante - disse Tottie. - A Syb também, não é,
Syb? Costumamos comer um bom caril picante no jantar do dia a seguir
ao Natal, por isso ainda bem que não vai estar cá.
O kedgeree estava dourado e delicioso, o que não impediu Piers de fazer
uma grande fita para comer apenas uma colherada. Depois, River trouxe
a grande terrina de arroz-doce e Den um coelho cor-de-rosa de manjar
branco, a tremelicar no seu prato.
- Eu gosto de arroz-doce, mas não quando tem grande sementes verdes
que sabem a perfume - disse Teddy, enquanto Tottie lhe servia manjar
branco.
- Não percebo como é que podes saber a que sabe o perfume, Teddy - disse
Zelda. - Não faz propriamente parte da tua dieta normal.
- Mas eu percebo o que ele quer dizer - interveio Clara. - Realmente,
há um sabor estranho quando mordemos inadvertidamente uma vagem de
cardamomo.
- Eu acho que a Sybil está a usar perfume de vagem - disse Teddy, olhando
fixamente para ela.
- É um pouco forte? - perguntou ela, ansiosa. - Não costumo dar-me ao
trabalho de usar outra coisa que não seja um toque de Penhaligon’s
Violetta, mas mandaram-me uma amostra deste novo. Não tenho a certeza
de que seja para mim ou não. Pus um bocadinho quando chegou, no dia
do Solstício, mas como passei o tempo quase todo na rua, nem dei por
ele.
- Bem me tinha parecido familiar! - exclamei. - Devo ter reparado nele
na Congregação, quando me limpou as feridas das mãos e da cara.
- Eu gosto, mas parece-me que é o perfume que te usa e não o contrário,
Syb - comentou Tottie.
- É um aroma encantador - assegurou-lhe River com gentileza. - Perfeito
para ocasiões especiais, como esta reunião feliz.
E o seu sorriso deu a volta à mesa, apesar de nem toda a gente estar
com um ar completamente feliz, e, nesse momento, vi a cara de Zelda
paralisar e os seus olhos arregalarem-se de repente. Então Piers,
sentado ao lado dela, soltou um grito e puxou a mão de debaixo da toalha.
- Acho que desloquei a porra do dedo! - exclamou ele.
- Oh, céus, magoou-se? - perguntou-lhe Zelda num tom doce. - Devia mesmo
ter mais cuidado!
- Bati na aresta da mesa - disse ele, ao ver que todos estávamos de
olhos postos nele e engolindo o comentário irado que estivera
claramente prestes a fazer.
- Eu tentaria não fazer isso outra vez - sugeriu Clara com secura.
Sybil não dera por esta ação secundária, já que estava profundamente
embrenhada numa conversa agradável com River acerca de jardinagem.
Aparentavam estar a dar-se muito bem, coisa que não parecia ser ao gosto
de Piers, pois não parou de lhes dirigir esgares até nos levantarmos
da mesa.
Zelda e Tottie levaram um Teddy muito adormecido diretamente para a
cama. Eu e Lex ajudámos Den a levantar as coisas da mesa enquanto os
restantes iam para a sala de estar.
- Está quase na hora de nos livrarmos do horripilante Piers - disse
Lex, ao fechar a porta da máquina de lavar loiça. Depois sorriu. - Acho
que ele não vai voltar a tentar a sua sorte com a Zelda, o que te parece?
- Não, foi bem feito! Embora sinta um bocadinho de pena dele - confessei.
- Quero dizer, ele não sabe que é horripilante, pois não? Acha-se a
dádiva de Deus às mulheres. Para além disso, é muito velho.
- Setenta e muitos já não é assim tão velho nos tempos que correm e,
seja como for, ser velho não dá a ninguém o direito de ser odioso, pois
não?
- Odioso sempre foi - comentou Den, que entretanto começara a fazer
o café. - Nã s’arranjava um par pior qu’ele e o George. Nem dava
p’acreditar que fosse irmão do Henry.
E meu avô, pensei eu, ainda que não sentisse uma vontade louca de
reconhecer a relação.
Den foi para o seu apartamento e nós levámos o café para a sala.
Previsivelmente, Piers recusou-o e exigiu algo mais forte.
- Se não vai beber café, Piers, então o melhor é levá-lo já para a pensão
da Flora - sugeriu Lex. - Ela está a contar consigo e não queremos sair
demasiado tarde, porque as estradas vão ficar outra vez cobertas de
gelo.
- Não quero sair para o frio esta noite - disse ele, num tom patético.
- É pedir demasiado a um homem da minha idade e...
- Eu vou levá-lo de carro; não se dá o caso de ter de caminhar - atalhou
Lex. - Vou buscar a carrinha e pode entrar quando já estiver aquecida,
por isso não passará mais do que dois segundos ao frio.
Levantou-se e saiu da sala.
Piers virou-se para Sybil.
- Queria ter uma pequena conversa em privado contigo depois do jantar,
minha querida - começou ele. - Se calhar antes de eu ir embora
podíamos...
- É melhor começar a agasalhar-se, Piers - interrompeu-o Henry. - O
Lex já saiu para ir buscar a carrinha e vai estar a postos dentro de
minutos.
- Pois, não deve deixá-lo à espera - disse Sybil.
Pareceu-me que tinha um ar de alívio, até ele lhe lançar um olhar duro
e disparar:
- Vem ver-me amanhã à pensão, Sybil. Vou estar à tua espera.
- Oh... mas eu não sei se... - gaguejou Sybil.
A voz de Piers tornou-se oleosa.
- Então eu fiz esta viagem toda para te ver, minha querida. Não queres
desapontar-me, pois não?
Ela fitou-o, engoliu em seco e depois, conseguindo esboçar um sorriso
ténue, disse:
- Não, claro que não. Desço até lá a pé se não nevar muito durante a
noite.
Lex buzinou e todos, com grande entusiasmo, envolvemos Piers no seu
casaco e cachecol, instando-o a sair. Nevava, mas não com grande
intensidade. Lex ajudou-o a entrar na carrinha e depois contornou-a
para voltar ao lugar do condutor.
Sem conseguir dominar-me, avisei-o, ansiosa:
- Tem cuidado, Lex!
- Não te preocupes comigo. Estou habituado ao tempo por estas bandas
- disse ele, a sorrir, e entrou.
- Ele vai ficar bem - garantiu-me Clara, dando-me uma palmadinha no
braço. - Entre antes que deixemos escapar o calor todo da casa.
De volta à sala de estar, o aligeirar do ambiente era palpável.
Zelda e Tottie regressaram de deitar Teddy e indicaram que ele tinha
adormecido quase de imediato.
Sybil disse:
- O Teddy é um menino tão doce. Lembro-me do Mark com essa idade...
- Contudo, em seguida o seu rosto toldou-se e ela voltou a ficar ansiosa.
Durante aquela noite, eu ganhara a certeza de que algo a preocupava,
mas não tinha ideia do que fosse.
River foi sentar-se ao lado dela, ficando Tottie do outro lado, e
depressa os três se embrenharam numa profunda conversa hortícola. Pelo
menos, esperava que fosse disso que falavam, pois apanhei os termos
«polinização cruzada» e «viveiros».
Zelda sugeriu que Lex e eu fôssemos com ela para a sala da manhã para
assistir a uma comédia romântica chamada Enquanto Dormias, que adorei.
Todas aquelas ligações cruzadas trouxeram-me à memória um pouco a nossa
própria situação complicada que me incluía, juntamente com Lex, Zelda,
Mark, Rollo e Flora.
Mais tarde, quando ia deitar-me, ao passar pela sala, espreitei lá para
dentro para me despedir e vi que River, Sybil, Clara e Henry estavam
a jogar majongue. Tottie encontrava-se sentada por perto, a tricotar
um cachecol às riscas com as cores do arco-íris.
Era uma cena acolhedora, com Lass e Wisty enroscadas uma na outra
debaixo da mesa.
- A Pansy acabou de ir à rua - disse eu à Sybil, empurrando a cadelinha
para a sala, apesar de ser óbvio que ela queria ficar comigo. Eu tinha
de endurecer o coração.
- Está bem, querida - respondeu Sybil num tom distraído, antes de sorrir
a River com um ar triunfante e de dizer algo que, aos meus ouvidos,
parecia «Pung!».
Quando acordei na manhã seguinte, pensei em Pansy e perguntei-me se
ainda poderia implorar a Sybil que não a vendesse a outra pessoa
afinal... poderia até oferecer-lhe mais dinheiro, se ela não se
importasse de esperar?
A luz que entrava era do género suave e branco refletido pela neve,
e ainda parecia ser bastante cedo. Seria que Lex já acordara? Estaria
a pensar naquele beijo da noite passada? Poderia ter sido eu a
começá-lo, mas ele transformara-o em algo mais profundo e... bem,
resistir-lhe teria sido inútil.
Claro que ele tinha sido muito simpático comigo desde a nossa conversa
no carro, mas aquele beijo fora bem além da mera simpatia. Eu
simplesmente não sabia até onde teria ido.
Disse a mim mesma que não devia dar demasiada importância à coisa: em
tempos, ele poderia ter sentido algo por mim, mas tudo isso estava no
passado, do outro lado do abismo emocional da sua perda, da sua dor
e da sua tristeza.
Também os meus sentimentos estavam confusos. Quando éramos estudantes,
e depois de eu superar a paixoneta, tínhamo-nos dado bem e, por causa
de Lisa, eu nunca me permitira pensar nele de outra
forma.
Mas agora estava a pensar, e isso não era nada boa ideia porque, tendo
em conta o passado, como poderiam as coisas resultar entre nós? Eu
precisava de me controlar antes de perder o coração, ainda que isso
não fosse fácil, estando a viver na mesma casa que ele.
Dirigi os meus pensamentos para Zelda, de quem eu gostava muito e que
era tão diferente do irmão.
O seu estilo descontraído de maternidade lembrava-me imenso a minha
mãe: carinhosa, mas sempre disposta a deixar a responsabilidade de
criar um filho a outra pessoa. Uma mãe cuco. Assim eram algumas
mulheres.
Assistir ao filme com eles na noite anterior fora divertido: tínhamos
comido gulodices depois de fazermos um raide à cozinha e bebido cerveja
caseira de gengibre, como se tivéssemos escapado de um romance de Enid
Blyton.
Zelda tinha chamado o nome de Mark à conversa algumas vezes e
perguntei-me onde iria aquilo parar. Poderia ela assentar num só lugar?
E Mark... quão constante viria ele a ser?
Mas não, o amor à primeira vista é inconfundível... ou, neste caso,
o amor após um grande interregno entre avistamentos.
Virei-me na almofada, soltando a fragrância ténue a alfazema que me
parecia muito tranquilizadora, ao contrário do perfume inquietante que
Sybil usara na noite anterior.
E depois, de uma forma bastante súbita, algo se encaixou na minha mente
e endireitei-me, de olhos arregalados.
Eu não tinha reparado no odor penetrante, invulgar e estranhamente
familiar de Sybil na Congregação. Ao invés, esse cheiro estava
intrinsecamente associado ao momento em que eu quase caíra de cabeça
no precipício.
Mas quereria isso dizer que me tinham empurrado, e que fora Sybil a
fazê-lo? Eu só podia estar a enlouquecer se julgava que a mãe de Mark
era uma maníaca homicida! Afinal, depois de termos chegado a Underhill,
ela fora muitíssimo atenciosa, cuidando das minhas feridas, fazendo
comentários simpáticos acerca de eu me juntar à família e insinuando
o quanto Mark gostava de mim.
Mas é claro que, ao saber do parentesco, ela ficara horrorizada e
parecera ter medo. Mark também havia ficado desconfiado e zangado até
eu assegurar a ambos que nem eu nem a minha mãe teríamos o menor
interesse em reclamar herança alguma.
Talvez Sybil não tivesse realmente acreditado em mim e ainda me
considerasse uma ameaça? E depois, ao ver-me com Mark na Congregação,
concluíra que o nosso casamento resolveria o problema de uma forma muito
mais simples?
Todavia, a menos que ela fosse completamente louca, a minha teoria
parecia completamente inacreditável. Não obstante, agora eu acreditava
nisso. Só não sabia o que fazer a esse respeito.
Vesti o roupão e fui descalça pelo corredor até à casa de banho, parando
por um momento a ouvir o ligeiro matraquear de teclas de máquina de
escrever. Não era assim tão cedo, pois Henry já estava a trabalhar...
e aquele ruído murmurado seria Clara a ditar para o seu microfone?
Quando desci, quase toda a gente estava a tomar o pequeno-almoço ou,
no caso de Henry e Clara, um segundo pequeno-almoço.
- Bom dia, querida - disse-me Tottie. - Guardámos-lhe uns ovos
estrelados e uns pastéis de batata: estamos a fazer um banquete.
- A mamã diz que, agora, se vai deixar de ser atriz, pode comer o que
quiser - contou-me Teddy.
- Até certo ponto: também não quero transformar-me num pote de banha
- afirmou Zelda, que estava com um ar de operária mas com glamour de
filme, de calças de ganga e camisola, um lenço amarrado à pirata na
cabeça e grandes argolas de ouro nas orelhas.
Sybil não parecia ter dormido muito bem e deu-me uns bons-dias apáticos.
Eu não conseguia imaginar alguém que se parecesse menos com uma maníaca
homicida. Ela ia dando pedacinhos de torrada a Wisty e Lass, que estavam
debaixo da mesa, enquanto Pansy lambia as três tigelas de cão para o
caso de algum último pedacinho ter ficado esquecido.
Naquela cálida cena doméstica, o que estivera a pensar sobre Sybil
parecia impossível. Talvez todos aqueles policiais de Clara que eu
andara a ler me tivessem invadido a imaginação?
- Eu e o Henry estávamos a trabalhar, mas não conseguimos resistir ao
cheiro - disse Clara.
Sentei-me ao lado dela e Den levantou a cobertura de um prato com um
floreado e pousou-o à minha frente.
- Obrigada, Den - disse eu. Talvez fosse eu quem se transformaria num
pote de banha, mas não podia resistir.
- Café? - perguntou-me Tottie, empurrando a cafeteira na minha direção.
- Acabei de o fazer. O Lex saiu para ver como está a estrada, mas volta
num instante.
- Já voltei - disse a voz profunda de Lex atrás de mim. - O Pete andava
no trator a espalhar gravilha e disse que falou por telefone com o Fred
do pub e que em Thorstane não há neve nenhuma.
- Típico - disse Henry. - Basta chegar ao pub para encontrar um sistema
climático completamente diferente do nosso.
- O Pete acha que a neve nos vai deixar aqui presos durante o Natal
- prosseguiu Lex. - Vão continuar a tentar manter a estrada desimpedida
lá para cima, se conseguirem, por causa dos animais, portanto, deve
dar para alguém passar, se houver uma emergência.
- Espero sinceramente que não haja, se bem que, ao fim de uns dias de
Piers, a Flora é capaz de considerar que tirá-lo lá de casa é uma
emergência - sugeriu Clara.
Lex sentou-se e eu passei-lhe a cafeteira. Tinha evitado olhar para
ele até então, mas, quando o fiz, ele dirigiu-me um sorriso caloroso
a que correspondi antes de me apressar a desviar o olhar de novo,
sentindo o rosto a ruborizar. O problema de se ter uma pele tão pálida
é que a mínima mudança de cor é notória, por mais subtil que seja.
Clara acabou o seu ovo e suspirou, satisfeita.
- Não tarda volto às memórias, porque quero completar este volume até
ao Natal, se puder. E, segundo sei, todos têm planos para esta manhã?
- Eu, o Den e a Tottie vamos fazer um tronco de chocolate - disse Teddy,
num tom carregado de importância.
- E depois vamos pôr a cobertura no segundo bolo de Natal, para o festim
do dia seguinte - disse Tottie.
- Vem muita gente, mesmo com este tempo? - perguntei.
- Oh, sim, em podendo passar, ninguém falta - disse Henry. - É como
a Congregação.
Uma porta abriu-se algures e eu ouvia o som leve de música de rádio
e água a correr na copa.
- É a Olive. Está a dar uma última passagem pela casa antes do Natal
- disse Tottie.
- O único inconveniente que ela tem é que anda sempre com o seu rádio
e é viciada nas inanidades da Rádio Dois - disse Clara.
A cabeça de Olive apareceu junto à porta da copa.
- Eu ouvi isso... e para mim é soporífico.
- Acho que quer dizer relaxante, caso contrário andaria a dormir
enquanto limpa - indicou-lhe Henry.
- Tranquilizador - corrigiu Olive.
- Quer um chá ou um café e uma torrada, Olive? - perguntou-lhe Clara.
- Não, vou tratar das casas de banho lá de cima e depois logo como a
minha merenda.
- Muito bem - respondeu Clara, ao que a cabeça desapareceu.
- Nós estamos quase a ir para Underhill - disse Lex. - Eu e a Meg voltamos
para almoçar, mas o Mark deve trazer a Zelda mais logo.
- E depois vai posar para mim, não vai, Tottie? - perguntei-lhe.
- Pode ser - disse ela, assumindo o ar alheado que não disfarçava o
prazer que sentia por lhe estar a pintar o retrato.
- Acho que é melhor ligar à Flora e ver se ainda quer boleia até Underhill
- disse Lex, mas, ao voltar, indicou-nos que Flora iria no seu próprio
veículo.
- Lembrou-se de que o jipe com tração às quatro rodas de Deirdre estava
na garagem e encontrou a chave, por isso ligou ao Gil (é o filho da
Olive, Meg), que está a limpar e a pôr gravilha no acesso da casa. Não
vai é poder demorar-se muito, por causa dos hóspedes.
- O Piers sem dúvida estará a contar empanturrar-se a todas as refeições
- comentou Henry.
- A Flora diz que o Rollo está muito melhor e já se levantou - informou
Lex, antes de esboçar o seu sorriso de flecha e acrescentar: - Ela
disse-me que ontem à noite tinha avisado o Piers de que, se queria um
pequeno-almoço cozinhado, teria de se levantar antes das oito e meia,
pelo que parece que o pôs na linha.
- Sabia que o faria. Era uma ama muito eficiente e deve andar a aplicar
a mesma técnica - replicou Clara com secura.
- O Piers tinha acabado de lhe pedir que nos ligasse a lembrar à Sybil
que queria vê-la hoje de manhã. Mas eu cá deixava-o esperar sentado,
Sybil. - Lex sorriu-lhe. - Não há qualquer motivo para ir ter com ele
a toque de caixa, se não lhe apetece.
- Podes telefonar-lhe só - sugeriu Clara.
- Não... é melhor ir até lá e ver o tio Piers - respondeu ela.
Clara começara a fitá-la de olhos semicerrados, possivelmente
intrigada com o que levaria Piers a parecer exercer tamanha influência
sobre ela. Era muito estranho. Talvez ele e o pai sempre lhe tivessem
dado ordens e ela estivesse habituada a obedecer? Mas, apesar de ela
lhe chamar «tio Piers», a forma como ele tentara beijá-la na noite
anterior não tivera nada de avuncular.
- Eu e o River vamos distribuir a correspondência pela aldeia daqui
a nada, Sybil, por isso podias acompanhar-nos até à pensão? - sugeriu
Henry.
- Isso seria excelente. Podia levar as cadelas comigo para se
exercitarem um pouco, se não vos parece que a Flora se importe que entrem
na pensão.
- Provavelmente serão um alívio bem-vindo, depois do Piers - afirmou
Clara.
35
Arrancado
O carro de Flora descia pelo acesso de Bella Vista quando passámos por
lá e ela seguiu-nos até Underhill. A viagem era um pouco perigosa,
apesar de haver uma camada nova de gravilha na estrada, e ela não devia
conhecer bem o carro da tia, pois ficou para trás e chegou uns minutos
depois de nós.
Mark saiu da casa, mas só tinha olhos para Zelda, pelo que acho que
nem reparou quando Flora estacionou ao lado da carrinha de caixa aberta
e saiu do jipe com uma expressão notória de alívio. Tínhamos esperado
por ela e seguido os outros dois para o interior da casa e depois Mark
fez-nos basicamente a mesma visita guiada que fizera comigo antes, mas
pela ordem inversa, começando pela sala de festas quase concluída na
cocheira e seguindo pela futura cozinha industrial, ainda sem
equipamentos.
Eu e Lex deixámo-nos ficar para trás; acho que ele também já tinha ouvido
falar que chegasse daqueles planos. Flora, porém, manteve-se com Mark
e Zelda, fazendo perguntas e elogiando tudo até se tornar óbvio, até
para ela, que era um terceiro elemento indesejado na conversa. Senti
um pouco de pena dela.
Zelda ia apresentando algumas ideias práticas para o lugar e, quando
passámos pelo andar de cima, ela e Mark tinham dado início a um debate
entusiasmado.
- Começar na primavera com os copos-d’água é bastante exequível, porque
a nova cozinha industrial facilmente ficará pronta a tempo - disse ela.
- E, claro, vais precisar de uma suíte para a noiva usar nesse dia,
mas não tem de ser na ala da família, pois não?
- Mas é um dos quartos que eu já estou a renovar para os hóspedes -
respondeu ele.
- Esquece esses por agora, Mark. Porque é que não transformas os quartos
por cima da antiga cozinha, que tinhas destinado a serem alojamento
dos teus amigos, para serem antes a suíte nupcial?
- Mas porquê? - quis saber Mark.
- Porque assim, quando se sobe do salão, esses quartos ficam à direita,
enquanto os da família ficam à esquerda. Desta maneira, com a suíte
nupcial ali, o resto da casa da família ficaria completamente separada.
- Mas só até os outros quartos de hóspedes ficarem prontos.
- Vais ter de esquecer essa ideia - disse ela num tom decidido. - Não
me parece que arrendar uns quantos quartos valesse a pena o esforço
e, seja como for, Underhill deveria continuar a ser tanto uma casa de
família como um negócio.
- Isso não sei - respondeu ele. - E onde é que punha o Art e o Gerry?
- Se a Sybil continuar com o seu antigo quarto, enquanto aquela salinha
da governanta, com a sua própria escada para um quarto, daria um
apartamento pequeno e ideal para eles.
Parecia-me que ela era capaz de ter alguma razão e Mark começava a ficar
mais pensativo.
Foi dando voltas à cabeça a tudo aquilo durante uns minutos, até que
disse lentamente:
- Podia funcionar.
Zelda deu-lhe um braço e fitou-o com um sorriso luminoso.
- Eu tenho a certeza de que sim, e continuaria a ser uma linda casa,
para além de um negócio. Seria fácil conseguir lucro suficiente só com
os copos-d’água, desde que fosse tudo mesmo luxuoso.
- Eu tinha pensado celebrar aqui casamentos também, mais tarde - disse
ele. - A cerimónia propriamente dita no patamar e os convidados no átrio
em baixo.
Eles seguiram nessa direção e nós fomos atrás deles. Achei engraçado
notar que, a dada altura, Zelda tinha deixado de dizer «tu podias»,
substituindo-o por «nós podíamos».
Flora, que se vira ignorada durante a meia hora anterior, disse então:
- Eu acho que a ideia original do Mark de ter quartos para hóspedes
funcionaria muito melhor, e metade das suítes já estão feitas.
- Não, a essa escala o investimento não teria retorno financeiro - disse
Zelda num tom depreciativo. - Muito trabalho e perturbação que não
valeria a pena.
- Mas a Flora tem razão quanto a já ter instalado as suítes - admitiu
Mark.
- Seja como for, os quartos já estavam a precisar de obras, não? -
contrapôs Zelda.
- A Sybil vai ficar muito contente se não tiver de viver no quarto da
governanta - interveio Lex.
- Eu realmente acho que essa foi uma sugestão um pouco mesquinha,
querido - disse Zelda, apertando o braço de Mark. - Não importa,
redecoramos-lhe o quarto antigo e tenho a certeza de que ela vai adorar
que seja uma suíte.
- Deve dar para fazer como sugeres e depois, se não resultar,
continuaremos a ter a opção de o transformar num hotel rural - concedeu
Mark. - Mas o meu plano não é só fazer dinheiro suficiente para manter
Underhill, também quero conseguir passar os invernos na minha casa em
Itália... e ir esquiar.
- Isso parece mesmo perfeito, trabalhar durante o verão e depois
divertir-nos durante todo o inverno - disse ela, a sorrir-lhe. - E estou
mortinha por conhecer a tua pequena casa em Itália!
- E eu mal posso esperar por mostrar-ta - respondeu ele num tom afetuoso.
- Isso era o que me tinhas dito a mim - ripostou Flora com azedume.
Dissera-me o mesmo, também, mas, por mais inconstante que ele fosse,
eu tinha a certeza de que, desta feita, o dizia com convicção.
Era evidente que Flora achava o mesmo, pois começou a reconhecer a
derrota.
- Lamento, mas tenho de ir, Mark - anunciou. - Tenho de ir ver como
está o Rollo. Ainda não recuperou mesmo as forças. A coitada da mãe
anda tão preocupada, apesar de saber que estou a prestar-lhe os melhores
cuidados.
- E o Piers? - perguntou Lex.
- De saúde não tem nada a apontar, mas é um bocado rabugento e exigente
- disse ela. - Indiquei-lhe as regras da casa da Deirdre depois do
pequeno-almoço e mostrei-lhe que pode fazer chá e café no quarto, bem
como usar a sala comum, onde há um televisor. Eu e o Rollo não devemos
ir vê-lo muito, exceto às refeições na sala de jantar.
Rollo estava claramente a viver na parte familiar da pensão, o que
parecia muito aconchegante. Fiquei a pensar se aquela visita matinal
a Underhill fora simplesmente um último testar das águas com Mark e
se agora, ao ver que não iria a lado nenhum ali, ela dedicaria toda
a sua atenção ao pobre e indefeso Rollo.
Talvez depois o comesse, como uma aranha.
- Espero que tenhas escondido as chaves do bar da sala de jantar nalgum
sítio onde o Piers não as encontre... - quis saber Lex.
Ela dirigiu-lhe um sorriso ténue.
- Não nasci ontem; estão na minha mala. Não que tenhamos muitas bebidas
espirituosas na pensão. E vendemos sempre ao copo, nunca à garrafa,
como expliquei ao Piers ontem à noite.
- Com uma boa margem de lucro, imagino?
- Claro. Receio bem que a sua conta vá ser bastante elevada.
Lex acompanhou-a à porta e depois regressou, encontrando-nos no átrio,
a discutir o que fazer em seguida.
Lex disse:
- É melhor começarmos a fazer qualquer coisa, antes que também tenhamos
de ir embora.
- Decidimos forrar a papel e pintar primeiro o que ia ser a suíte
nupcial, e transformá-la no quarto do Mark - disse Zelda. - E depois
o mesmo com o antigo quarto da tua mãe, para que ela possa voltar para
cá depois do Natal.
- Acho que essa é uma ideia mesmo boa, Zelda - concordei.
- E não devo demorar muito tempo, com alguma ajuda - corroborou Mark.
- Depois podemos passar para a nova suíte nupcial.
- Parece um bom plano - disse Lex. - E se eu e a Meg tirássemos o papel
do quarto da Sybil e vocês atacassem o outro?
Fomos buscar baldes de água para ensopar as paredes e raspadores e
pusemos mãos à obra.
- A Flora está pior que estragada - disse Lex. - Mal podia esperar por
ir embora.
- Deve ter-se apercebido de que, tendo perdido o Mark, ainda tem um
pássaro na mão, que é o Rollo.
- Achas que agora se vai focar nele?
- Ele agora depende dela. Não pode fugir, nem que queira - afirmei.
- Mas desejo-lhe boa sorte. Até começo a pensar que ela era capaz de
fazer frente à mãe horrorosa dele. Um choque de titãs.
Depois de uns minutos a raspar paredes, comentei:
- Fiquei um bocado preocupada por a Zelda se apaixonar pelo Mark, que
parece passar tão depressa de uma miúda para a seguinte.
- Eu também - admitiu Lex. - Mas ela parece saber o que está a fazer:
reorganizar os planos que o Mark tem para Underhill, de forma a
adequá-los a uma vida futura com ele, tal como ela quer!
Ri-me.
- Incluindo invernos em Itália e esquiar! Sabes, acho que foram feitos
um para o outro.
Retomámos o trabalho com os raspadores e há algo muito satisfatório
em retirar longas tiras húmidas de papel de parede, com várias camadas
de profundidade, para revelar o gesso por baixo... mesmo que fosse o
quarto da pessoa que eu suspeitava ter tentado matar-me.
Era uma ideia bizarra.
De regresso à Casa Vermelha, subitamente Lex surpreendeu-me ao dizer:
- Passaste a manhã toda a pensar em qualquer coisa, não foi? E também
estavas a olhar de uma maneira muito esquisita para a Sybil ao
pequeno-almoço.
- Estava? Bem que tentei não olhar para ela. - Fiz uma pausa e depois
decidi-me a contar-lhe, ainda que ele pudesse julgar-me louca. -
Lembras-te de ontem ao jantar, quando estávamos a falar do perfume da
Sybil? É esmagadoramente distinto, não é? Eu sabia que tinha reparado
naquele odor antes.
- Pois, tu disseste... na Congregação.
- Foi o que pensei, mas hoje de manhã, quando acordei, fiquei perturbada
porque o associei ao momento em que quase caí do penhasco.
Ele parou o carro à beira da estrada e virou-se para me fitar com um
ar incrédulo.
- Queres dizer...?
- Sim, agora tenho a certeza de que me empurraram e, por mais ridículo
que pareça, acho que foi a Sybil.
- Mas por que raio haveria a velha Sybil de tentar matar-te? - perguntou
ele, sem perceber.
- Não sei, a menos que tenha sido um impulso súbito ao ver-me ali sozinha
na escuridão.
- Isso não é propriamente um motivo - salientou ele. - Quando te
encontrei, não havia ninguém por perto.
- Ela podia ter-se afastado rapidamente, e estava a usar um blusão de
esquiar azul-escuro e calças da mesma cor.
Ele olhava-me de sobrolho franzido, como se eu pudesse realmente ser
louca, pelo que acrescentei:
- Tenho pensado muito nisto e acho que ela ainda me via como uma ameaça
à herança do Mark, ainda que fingisse que não. Mas depois, na
Congregação, reparou que o Mark...
- Não te largava? - acabou ele.
- Algo do género. Então ficou com a ideia equivocada de que o interesse
dele por mim era sério e, claro, de que se casássemos a posição dele
ficaria a salvo.
- Mas isso é tudo tão rebuscado! Quero dizer, mesmo que tu ou a tua
mãe alguma vez reclamassem alguma parte, nada garantiria que obtivessem
o que quer que fosse - disse ele.
- E, de qualquer maneira, nem eu nem a minha mãe sonharíamos sequer
fazer isso. Estou contente por ter ficado a saber de onde venho, mas
isso não significa que os sinta como família... pelo menos, nem a Sybil,
nem o Mark. O Henry e a Clara sim, e afeiçoei-me muito ao Teddy.
- E eu, pareço-te família?
- Não, de todo - respondi com franqueza.
- Bom - respondeu ele enigmaticamente, antes de regressar à estrada.
Ia de sobrolho franzido. - Não sei se acredito nisso ou não, mas acho
que devias partilhar as tuas suspeitas com a Clara e o Henry - aconselhou
ele, deixando-me consternada.
- Oh, por favor, não lhes contes, Lex! Vamos só esquecer tudo isto.
- Não se pode simplesmente esquecer uma tentativa de assassinato. E
a Zelda?
- Mas a Zelda não é uma ameaça, pois não? - perguntei, estupefacta.
- Na verdade, a Sybil parece gostar dela e não vejo porque se importaria
se ela e o Mark ficassem juntos. Talvez pudesse ser diferente se fosse
a Flora.
- Suponho que isso seja verdade. Ainda assim, gostaria de ver o que
a Clara e o Henry pensam de tudo isto.
- Eu não quero estragar o Natal. Já é mau que chegue terem de convidar
o Piers para o jantar, não? Não me parece que ele vá conseguir ir-se
embora antes disso.
- Pois não, vamos ter de aturar o velho beberrão. Ou melhor, a Flora
é que vai.
E lançou-me um sorriso de esguelha que, súbita e comovedoramente, o
fez parecer o estudante despreocupado de outrora.
- Mas a ama Flora vai pô-lo no lugar e provavelmente até o mantém na
linha durante o jantar de Natal!
Quando voltámos, a casa estava silenciosa.
- Onde estão todos? - perguntou Lex, quando encontrámos Tottie sentada
na cozinha diante de uma chávena de café, com as três cadelas a
ressonarem nas suas cestinhas junto ao fogão e Teddy muito atarefado
a passar cola com purpurinas numa cartolina do outro lado da mesa.
- A Clara tinha emails por responder e depois ia trabalhar um bocado,
e o Henry está a imprimir a versão final do livro.
- Pareceu-me ouvir o som de uma impressora quando entrámos, mas pensei
que fosse a da Clara - disse eu.
- A Sybil voltou de Bella Vista com uma dor de cabeça que se transformou
numa enxaqueca terrível, por isso tomou uns comprimidos e foi para o
quarto, e o River e o Henry distribuíram o correio e depois visitaram
os Baggins.
- O River foi fazer uns embrulhos - disse Teddy, levantando a cabeça.
- Achas que me comprou um presente na Preciousss?
- Não sei. Não costumamos trocar presentes de Natal, mas é possível.
- Eu gosto do River e estou a fazer-lhe este desenho para o Natal. É
um dragão em cima da Starstone.
- Estou a ver... ele vai adorar.
- De manhã, o Den, a Tottie e eu fizemos o tronco de chocolate e depois
pusemos a cobertura no bolo para o dia a seguir ao Natal - contou-nos
Teddy, que, quando acabou o desenho, insistiu que fôssemos à despensa
admirá-los.
O grande tronco de chocolate tinha uma cobertura cremosa de chocolate
esculpida artisticamente com padrões que imitavam a casca de uma árvore
e adornada com azevinho e um rouxinol de plástico. O bolo tinha uma
cobertura branca, que formava pequenos montículos como gesso áspero,
e estava cheio de decorações variadas de plástico - uma caixa de correio
vermelha, um pinheiro-bravo, uma pequena casa coberta de neve e uma
tabuleta que apontava para «Feliz Natal».
- Lindos - disse eu. - E o que é esta grande taça de vidro?
- É a base para o doce especial que comemos no dia de Natal - disse
Tottie. - Pão de ló com compota de framboesa por cima e ensopado num
pouco de xerez e depois coberto com uma camada de gelatina de
framboesa... vegetariana, claro.
- Amanhã tenho de ajudar o Den a cozinhar montes de coisas - disse Teddy.
- Sim, ele vai preparar palitos de queijo e outros petiscos para o festim
do dia a seguir - comentou Tottie, acrescentando então que iria para
a estufa para quando eu quisesse ir pintá-la.
Primeiro subi ao meu quarto para mudar de roupa, pois tinha a certeza
de que cheirava a papel de parede velho e húmido. Ao descer, reparei
que a porta do quarto de River estava entreaberta e espreitei. Ele
estava sentado de pernas cruzadas sobre a cama, de olhos fechados, e
o quarto cheirava um pouco a ervas e paus de incenso queimados. Ele
abriu os olhos e sorriu-me.
- Ah, aí estás, Meg. És mesmo quem eu queria. Comprei algumas coisas
à querida Moonflower. Em Roma, sê romano... e os Doome trocam presentes
na manhã de Natal.
- Isso foi amável da tua parte - disse eu, e fui buscar o papel de
embrulho que me sobrara e a fita-cola. Os presentes estavam todos dentro
de um dos sacos mais pequenos de Flower, por isso sabia-se lá o que
teria comprado.
Ponderei contar-lhe as minhas suspeitas acerca de Sybil, mas, como ele
gostava tanto dela, hesitei, e depois acabei por não o fazer.
Tottie aguardava-me na estufa e, por entre uma aberta na folhagem, vi
Lex e Teddy a descerem ao jardim para limparem as galinhas.
Esperava que Lex tivesse mudado de ideias quanto a contar as minhas
suspeitas loucas a Henry e Clara.
Tottie assumiu a sua pose, segurando a cornucópia de vime, entretanto
vazia - a fruta, os vegetais e as folhas estavam quase acabados, mas
o vime ainda precisava de uns toques. O ananás, que parecia pairar sobre
a sua cabeça, parecia praticamente maduro e pronto a comer.
O rosto de Tottie ficara completo com uma rapidez incrível no dia
anterior e eu já tinha feito parte do fundo. Aquele era capaz de ser
o meu retrato mais rápido até à data!
A sua expressão tornara-se de novo sonhadora e absorta e, a dada altura,
ela murmurou:
- Fritillaria meleagris...
Passou-se algum tempo até eu regressar à realidade, vendo o jardim
vazio, com a luz a dar lugar à escuridão.
- Acho que está acabado, Tottie - disse eu.
Ela foi ver o retrato, espreguiçando-se à medida que caminhava.
- Estou com um ar bastante exótico, não estou? - comentou, num tom
agradado.
- Foi uma modelo perfeita - disse-lhe eu.
Em seguida ela dirigiu-se para o jardim enquanto eu levava o cavalete
e o material de pintura de volta para o estúdio, montando o retrato
para o observar com atenção.
Três retratos, todos - mesmo que parecesse imodesto dizê-lo - muito
bons. Tinha realizado o meu melhor trabalho ali e sabia quem é que queria
mesmo, mesmo pintar em seguida.
Lex.
Encontrei-o na cozinha, onde estava com River e Teddy, a fazer aquilo
a que River sempre chamou Olhos de Deus: pontas e restinhos de lã
colorida entrelaçados numa estrutura de paus.
Pansy acordou e correu na minha direção como se não me visse havia
semanas, latindo à volta dos meus tornozelos até eu lhe pegar.
- Temos de limpar a mesa em breve - disse River. - Não falta muito para
o chá. Scones de queijo, basta aquecê-los.
- Lex - perguntei-lhe abruptamente -, posso pintar-te a seguir?
Ele fitou-me por um momento com um ar ligeiramente surpreendido, e
depois disse:
- Claro. Quando queres começar?
- Amanhã... mas se calhar podíamos estabelecer já a pose? Parece que
estou lançada, depois de passar tanto tempo sem poder pintar, e só quero
continuar.
- Está bem, deixa-me só lavar esta cola das mãos e já vou ter ao estúdio.
Quando ele se juntou a mim, eu tinha colocado o estrado e a cadeira
como os queria.
Ele estacou em frente ao velho cavalete onde eu tinha deixado o retrato
de Tottie e disse num tom de admiração:
- Uau! Tens razão, estás mesmo lançada. Os três retratos estão
fantásticos.
- Acho que estou a realizar o meu melhor trabalho aqui e, embora costume
pintar depressa, aqui tem sido com uma rapidez espantosa.
- Esperemos que o meu não quebre a correnteza de sucesso, então - disse
ele com um sorriso. - Onde me queres?
Suprimi a imagem inquietante que me veio à cabeça em resposta e
disse-lhe:
- No estrado... se puderes ir sentar-te, eu posso ajustar um pouco a
luz.
Já tinha colocado outra tela no meu cavalete - não tardaria a acabar
com as maiores, àquele ritmo - e achava que ia desenhá-lo diretamente
ali. De qualquer forma, já tinha feito um pequeno esboço dele, sem que
ele tivesse dado por isso, para oferecer a Clara...
Ele sentou-se na cadeira alta e esculpida como se aquela tivesse sido
feita para si. Tirara a camisola de flanela verde na cozinha e tinha
um braço, dentro de uma manga de camisa branca e larga, sobre o apoio
acolchoado, com os dedos compridos e ágeis em repouso.
Estudei a pose, ajustando o ângulo das luzes.
- Agrada-me o branco dessa camisa e a forma como a tua garganta sobressai
do colarinho aberto...
- Fico lisonjeado.
- Para pintar - repliquei num tom incisivo. Dispus os cortinados atrás
dele de outra forma, mas precisava de algo mais. - Será que a Clara
me empresta o totem que tem no escritório? Se ficasse virado de maneira
a que a cabeça do falcão ficasse atrás da tua, acho que isso me daria
o que preciso.
- Com o bico a ecoar a curva da minha grande penca, é isso?
- Não é uma grande penca, é um nariz aquilino muito fino, como o da
Clara. Mas, sim, uma forma a ecoar a outra.
- Vou perguntar-lhe, se ela estiver no escritório - ofereceu-se ele
e regressou uns minutos depois, a carregar o poste de madeira bem pesado
como se não pesasse nada. Dispô-lo conforme lhe indiquei até eu ficar
satisfeita e em seguida tirei-lhe algumas fotos sentado à frente do
totem.
- Pronto - disse eu -, por hoje já chega.
- Então se já estás despachada, a Clara e o Henry querem que vamos à
sala de estar antes do lanche.
Fitei-o com uma desconfiança repentina.
- Já te descoseste acerca da Sybil, não foi?
- Contei-lhes, sim. Pareceu-me o melhor a fazer. Anda.
36
Encontros Clandestinos
- Ah, chegaram, queridos - disse Clara quando entrámos na sala de estar.
- A Sybil não se mexeu quando fui ver como estava e a Tottie e o River
estão na sala da manhã com o Teddy, a assistir a um filme antigo, por
isso, se tivermos sorte, ninguém vai interromper-nos durante algum
tempo.
Eu devia estar com um ar preocupado, pois Henry dirigiu-me um sorriso
encorajador.
- Depois do Solstício, o Lex contou-nos que ao início a Meg tinha achado
que alguém a empurrara do penhasco, mas que depois concluíra que tinha
sido imaginação sua.
- Pois, quem haveria de fazer uma coisa dessas? Pareceu-me muito
improvável.
- Mas eu acho que não dá mesmo para confundir a sensação de se ser
empurrado com a de uma rajada de vento, por mais forte que seja - afirmou
Clara. - Por isso, eu e o Henry estamos inclinados a acreditar em si.
- Eu achei que tinha sido imaginação dela, mas, quando me falou do
perfume da Sybil, comecei a duvidar - disse Lex.
- Explicaste tudo muito bem - garantiu-lhe Clara. - E receio que a Meg
possa ter razão. A reação horrorizada da Sybil quando lhe dissemos quem
era a Meg surpreendeu-nos imenso. Até àquele momento, nunca nos tinha
passado pela cabeça que ela e o Mark pudessem recear que a Meg e a mãe
reclamassem a propriedade!
- Na Congregação, o Mark convenceu-me mesmo de que já não estava
preocupado com isso... nem com o facto de a Meg ser sua prima direita.
- Estava bastante embeiçado por ela na altura, não estava? - concordou
Henry.
- O problema é que a Sybil reparou nisso e, de repente, convenceu-se
de que eu e o Mark tínhamos algo sério e que o nosso casamento resolveria
tudo - disse eu.
- As suas conclusões parecem ter sido um pouco prematuras, no mínimo
- comentou Clara. - Decerto não é em si que ele agora está interessado,
pois não?
- Definitivamente não, e a Sybil também deu por isso.
- Era preciso ser cego para não se reparar - salientou Lex. - Ele e
a Zelda mal desviaram os olhos um do outro desde que ela chegou.
- Continua a parecer muito bizarro que a Sybil tentasse livrar-se da
Meg de uma forma tão dramática - afirmou Henry. Achei que aquilo era
o eufemismo do ano. - Só para se aperceber pouco depois... ainda que
equivocadamente, como se revelaria... que havia uma forma melhor de
a neutralizar.
- Muito bem resumido, Henry - aplaudiu Clara. - Eu acredito na história
da Meg e acho que temos de aceitar que a Sybil foi a culpada, por mais
improvável que pareça.
- Se bem que reparámos que ela tem andado muito stressada, ultimamente
- disse Henry.
- Sim, por isso talvez nessa noite a escuridão e os ritos estranhos
possam ter-se combinado com os seus medos numa espécie de cenário de
pesadelo e, quando se deparou com uma oportunidade de se livrar da Meg,
agiu - sugeriu Clara.
- Um momento de insanidade mental temporária, que ela provavelmente
terá lamentado de imediato - concluiu Henry.
- A Meg teria lamentado ainda mais, caso tivesse caído no precipício
- comentou Lex com secura.
Estremeci.
- Foi uma experiência horrível. Ainda bem que me viste, Lex.
- Mas o que vamos fazer? Essa é que é a questão - quis saber Henry.
- Oh, nada! - respondi. - Quero dizer, não há qualquer prova concreta,
pois não? Ela poderia limitar-se a negá-lo e depois tudo se tornaria
muito incómodo.
- Hum... - fez Clara. - Eu sou uma grande apologista de deixar as coisas
em pratos limpos, como sabe, por isso essa ideia vai em sentido
contrário. Se bem que acho que já há algum tempo que algo se passa com
a Sybil.
- Uma crise de meia-idade, talvez? - sugeriu Henry. - E o Piers parece
exercer uma influência bastante forte sobre ela, apesar de não ser
nenhum Svengali11.
- Sim, isso é muito estranho - concordou Clara. - A Tottie é a melhor
amiga da Sybil, mas nem ela sabe o que a preocupa.
- Será que têm alguma espécie de romance de outono/inverno? - perguntou
Henry.
- Do lado da Sybil, pelo menos, não, Henry, ainda que o Piers possa
ter algumas ideias nesse sentido. Mas acho que a Sybil só não sabe como
rejeitá-lo sem lhe magoar os sentimentos inexistentes.
- Não há dúvida que ficou com um ar repugnado quando ele a beijou ontem
à noite - lembrou Lex.
- Não tomemos nenhuma atitude apressada, tiremos uns dias para ponderar
a situação - sugeriu Henry. - Vamos não pensar no assunto até depois
do Natal.
- Eu dar-me-ia por satisfeita se simplesmente esquecêssemos por
completo o que aconteceu - afirmei. - Tenho a certeza de que têm razão:
foi só um momento de desequilíbrio e ela nunca mais voltaria a fazer
algo parecido.
- Acho que, mais tarde ou mais cedo, teremos de ir ao fundo da questão
- contrapôs Clara. - Mas o Henry tem razão, devemos seguir apenas com
normalidade, celebrar o Natal e não deixar que isto arruíne as
festividades. Afinal, amanhã já é véspera de Natal, pelo que está mesmo
quase.
- E eis que chegam alguns dos outros... e o Den com o chá, pois oiço
o carrinho a trepidar - anunciou Henry.
Como não havia sinal de Sybil, Tottie levou-lhe uma chávena de chá e
um scone ao quarto e ao voltar comunicou-nos que já se sentia
ligeiramente melhor e esperava juntar-se a nós para o jantar.
Em seguida, Teddy e Henry foram para o escritório deste, para abrirem
a caixa de esferas que chegara no dia anterior, e senti-me estranhamente
cansada, pelo que fui para o meu quarto, com Pansy a acompanhar-me.
Liguei rapidamente a Fliss, que me disse que estava desejosa de que
Cal chegasse na manhã seguinte, altura em que ia contar-lhe do bebé.
- Ele vai ficar tão entusiasmado, mas temos mesmo de avançar com a
procura da casa, porque vai ser mais cedo do que tínhamos planeado.
Pu-la a par da Saga de Sybil e contei-lhe que já tinha a certeza de
que não fora um acidente e que mais parecia um mau thriller do que a
realidade.
Depois, quando ela se refez da surpresa que a minha revelação lhe
provocara, contei-lhe que tinha acabado o retrato de Tottie e que em
seguida ia pintar Lex.
- Então... vocês agora são amigos?
- Acho que sim. Ele tem sido... muito simpático.
- Hum - fez ela, evasiva. - Se o teu outro possível interesse romântico
debandou com a irmã do Lex, isso só o deixa a ele disponível para o
papel, não é? E aí estão os dois, com a neve a não vos deixar sair de
uma casa remota, durante o Natal... que romântico!
- Podia ter sido, se não tivéssemos um passado doloroso em comum com
que lidar e toda uma família a olhar para nós! Acho que vais ter de
abandonar toda essa ideia de isto ser uma comédia romântica, Fliss.
Quando desliguei, recostei-me na cama, com Pansy enroscada em mim e
limitei-me a fechar os olhos por um instante... quando dei por isso,
estava a acordar com o som do gongo do jantar.
Ainda bem que não me produzia muito, porque mudei de roupa, escovei
o cabelo, passei gloss nos lábios e desci tão depressa que tenho a
certeza de que o ar no corredor ainda reverberava com o gongo.
Foi um anoitecer estranho. Sybil desceu para jantar, mas manteve-se
muito calada, conquanto Zelda se mostrava sonhadora e distraída. Mark
deixara-a na casa enquanto eu dormia, mas não ficara, pois as estradas
já estavam outra vez a ficar cobertas de gelo.
De novo na sala de estar, todos nos reunimos em redor da lareira enquanto
Henry nos lia os primeiros capítulos de Um Conto de Natal, que parecia
ser outra tradição familiar. Ele lia mesmo bem e Teddy, que pela
primeira vez obtivera permissão para ficar acordado a ouvir, estava
fascinado.
- Só espero que não lhe dê pesadelos - comentou Henry, depois de Teddy
ter subido para o seu quarto acompanhado por Zelda e Tottie. Naquela
noite, River fora incumbido por Teddy de subir depois para lhe ler a
história antes de dormir.
- Não me parece - disse Lex. - Ele tem o DVD da versão dos Marretas,
não tem? Por isso, está habituado à ideia dos fantasmas, das correntes
e tudo isso.
- Hoje em dia, eles estão expostos a muito pior do que isso - disse
Clara. - Só podemos protegê-lo até certo ponto.
- Há de encontrar o seu próprio caminho pela vida, como nós encontrámos
o nosso - concluiu Henry. - É uma criança esperta e sensata.
Como Sybil se fora deitar cedo, eu e Lex levámos as cadelas à rua antes
de nos recolhermos também.
Fazia um frio brutal e tudo estava silencioso, à exceção do som da neve
que ia sendo esmagada sob as patas das cadelas.
O céu estava de um ultramarino límpido e translúcido, com estrelas que
pareciam lantejoulas, uma delas muito brilhante.
- É uma estrela cadente - disse Lex, quando apontei para ela. - Que
desejo vais pedir, Meg?
Desejo poder ficar aqui para sempre, contigo, sussurrou uma voz
traidora na minha cabeça.
- Se te contasse, não aconteceria - apressei-me a dizer. - E o teu
desejo?
- Idem - replicou ele, e sorriu.
Julgava que seria difícil esquecer toda a questão em torno de Sybil
durante o Natal, mas, na verdade, ao pequeno-almoço ela voltou a estar
tão normal que dei por mim a pôr em causa a minha própria sanidade
mental. Decerto todos éramos loucos para suspeitarmos de que a serena
e queixosa Sybil, com a sua beleza desbotada, fosse capaz de fazer algo
assim. Mas, por outro lado, claro, ela também era uma pessoa de cavalos,
que saía fizesse o tempo que fizesse e carregava fardos de feno, não
era nenhuma florzinha de estufa.
Tottie disse que, independentemente de ser véspera de Natal, Clara se
levantara cedo e começara a trabalhar bem antes de eu ter descido,
enquanto Henry e River tinham acabado de ir para o escritório juntos,
onde River ia ler o manuscrito de Henry para uma última revisão.
Não nevara mais durante a noite e os agricultores já teriam começado
a deitar gravilha na estrada, pelo que Zelda disse que tencionava passar
de novo o dia em Underhill, o que não causou surpresa. Sybil e Tottie
decidiram descer com ela e dar uma cavalgada pela propriedade, para
que os cavalos fizessem algum exercício.
- Gostavas de ir a Underhill comigo hoje, Teddy? - perguntou Zelda,
mas ele fez um ar duvidoso.
- A tia Clara disse que hoje de manhã ia ensinar-me a ler mais
hieróglifos - respondeu. - E o Den tem montes de coisas para cozinhar,
por isso preciso de o ajudar. Acho que fico cá, mamã.
- Então vemo-nos ao jantar, querido, e depois contas-me tudo sobre o
teu dia - disse ela, a sorrir-lhe.
- Onde está o Lex? - perguntei.
- Ele e o Den foram pôr o motor da sua autocaravana a funcionar... a
Meg deixou as chaves no estúdio. Acharam que era boa ideia pô-lo a
trabalhar durante uns dez minutos, porque já está parada ali ao frio
há uns dias.
- Nem sequer tinha pensado nisso! - exclamei, e agradeci-lhes quando
eles voltaram, antes de levar Lex para o estúdio, para a primeira sessão
do seu retrato.
Ele retirou a camisola quente sem que fosse sequer necessário pedir-lhe
e retomou a pose em mangas de camisa e calças de ganga pretas.
Verifiquei a imagem com a foto do iPad e depois peguei no lápis preto
suave e comecei a esboçar diretamente na tela.
A minha concentração era intensa e em breve aquele perfil de falcão,
ligeiramente de lado (a pose mais difícil de retratar), foi ganhando
forma, com a ligeira estrutura de ossos e tendões, a linha forte do
pescoço a elevar-se a partir do V aberto da camisa...
Por fim, dei um passo atrás e fitei intensamente o contorno que fizera
e o modelo: aquela forma de desenhar diretamente na tela sem esboços
preliminares era nova, mas parecia estar a funcionar bem.
Eu tinha estado a olhar para ele impessoalmente, como uma série de
linhas e formas, mas agora, de repente, tinha noção dele enquanto homem
- aquele que era agora, danificado e atormentado pelo passado, talvez,
mas ainda com uma natureza doce, amável e corajosa. Também havia humor
naquele sorriso de flecha.
De alguma forma, tudo o que conhecia dele, passado e presente, tinha
de ser destilado em pintura. Até à data, a misteriosa alquimia entre
olhos, mente e mão nunca me falhara, e eu rezava (à Deusa? A Gaia? A
qualquer ser divino que por acaso estivesse à escuta) para que não me
falhasse agora.
Den interrompeu-me a concentração ao entrar nesse momento com café e
alguns daqueles palitos de queijo que tinha estado a fazer para o dia
a seguir ao Natal. Pansy vinha colada aos seus calcanhares, sem que
eu soubesse se era por gula ou por andar à minha procura.
- Isso é me’mo a cabeça dele - disse Den, detendo-se atrás do cavalete.
Lex levantou-se e espreguiçou-se lentamente.
- Acho que ainda não quero olhar, porque tu tens estado a fitar-me tão
intensamente que até receio o que poderia ver.
- É só o esboço a lápis, de qualquer maneira - respondi. - Gostava de
começar a dar-lhe tinta, mas se calhar já te chega de posar para um
dia?
- Não me importo, desde que possa fazer um intervalo agora e dar uma
volta primeiro - disse ele, solícito. - Mas depois provavelmente vou
precisar de fazer qualquer coisa física, como cortar lenha.
- Levo a cadela, não? - perguntou Den.
- Não, não se incomode, basta deixar a porta ligeiramente aberta, para
ela poder sair quando quiser.
Preparei a minha paleta enquanto Lex fazia a sua pausa e ele depois
retomou a pose.
A minha mão, a segurar a espátula em forma de colher de pedreiro, com
a qual eu conseguia produzir uma linha, uma raspagem, uma passagem lisa
ou uma espiral espessa de tinta, tremia ligeiramente de excitação...
e então aquela força interior apoderou-se de mim e as sombras, os planos
e os ângulos do seu rosto começaram a surgir.
Para além da curva do seu nariz, na maioria eram ângulos. Tinha um tom
de pele oliváceo cálido e pálido, que partilhava com Clara, Zelda e
Teddy, juntamente com os caracóis pretos. Os seus olhos escuros
deveriam ser castanhos, não aquele verde-ágata-escuro...
A voz de Lex, ligeiramente queixosa, acabou por me chamar ao presente.
- Meg?
Pestanejei e depois fitei a tela diante de mim, na qual o seu rosto
parecia ter-se materializado. Quanto tempo passara eu a pintar?
- Acho que estou todo dormente e a Pansy está há meia-hora a fitar-te
- disse ele. - Acho que quer almoçar... e eu também. E alguém que faça
sons calmantes, porque me sinto como uma concha esvaziada do que era.
- Imagino que estejas exausto - respondi, contrita. - E sei que ter
alguém a observar-nos durante horas sem fim pode parecer esquisito.
- Acho que gostaria de me vingar e fazer um busto de argila de ti, um
dia destes.
- A sério? Mas é capaz de não haver tempo depois do Natal, porque, agora
que acabei os retratos encomendados, não vai haver qualquer motivo para
me demorar mais.
- Mas andas a trabalhar tão bem que talvez devesses ficar e pintar também
alguns dos outros?
Clara empurrou a porta para a abrir por completo e entrou.
- Sim, porque não faz o conjunto completo? O Den, o Teddy e a Zelda,
para começar.
- Podia pintar a Zelda e o Mark como presente de casamento - sugeri,
meio a brincar.
- Ora aí está uma ideia - respondeu ela. - Não devemos ver a Zelda até
à noite, mas a Tottie e a Sybil voltaram há mais de uma hora e estão
a ajudar o Den na cozinha.
- Então a Sybil hoje não foi convocada pelo Piers? - perguntou Lex.
- Na verdade, ele ligou logo de manhã cedo, mas eu atendi no meu
escritório e disse-lhe que ela hoje não podia ir. Não ficou satisfeito,
mas também parece querer levar a sua avante em tudo, não parece?
- Disse à Sybil que ele tinha telefonado?
- Não. Receio bem que me tenha esquecido por completo. Vai fazer-lhe
bem ter um dia agradável e sossegado a fazer antes coisas de que
desfruta. E eu também tive uma manhã maravilhosa - continuou ela. -
Um velho amigo enviou-me fotografias de um marcador de pedra partido
e chegámos ao consenso de que está escrito numa forma arcaica de ogam.
Partiu-se em vários pedaços e uma escavadora revelou-o, mas parece que
temos a maior parte.
- Ogam? - repeti.
- Não perguntes, que a explicação é capaz de nos levar até à hora do
lanche - intrometeu-se Lex.
- É só outra das primeiras formas de linguagem, querida, que se
desenvolveu na Irlanda, independentemente de outras em uso na mesma
época - disse Clara. - Uma linguagem escrita não se segue a outra de
uma forma linear; ao invés, é frequente que se sobreponham no tempo.
Ao contrário da evolução da raça humana, tal como a entendemos
atualmente - acrescentou.
- Vês a que me refiro? - ironizou Lex. - Anda, vamos comer qualquer
coisa. Estou esfomeado.
- Quiche de queijo e tomate - disse Clara. - O Den ainda não parou de
fazer coisas no forno e a Wisty está coberta de tanta farinha que parece
um cão fantasma.
O cão fantasma tinha sido desempoeirado, mas Den continuava a
trabalhar, preparando um rolo de frutos secos para o jantar de Natal.
Por bizarro que parecesse, deveria ir ao forno numa grande forma do
início da era vitoriana, em forma de capão.
- Isso há de confundir o Piers ainda mais do que o coelho - disse eu.
- Tenho mais umas coisas para fazer - declarou Den -, e depois já está.
Recheio os volley-vaunts na manhã do festim, não?
- Com sopa condensada de cogumelos? - perguntei, pois lembrava-me.
- Isso e Eggwinas.
- Eggwinas?
- Ovos em caril. É uma antiga piada da família - referiu Lex.
- Era aquela Edwina Curry12, não era? - continuou Den, enigmaticamente,
se bem que, desde que ela não estivesse nos vol-au-vents, não me
importasse realmente.
Depois de ter comido, voltei para o estúdio para estudar o retrato,
e em seguida verifiquei o iPad e o telemóvel.
Tinha um breve email de Fliss, a dizer-me que Cal estava em casa e
maravilhado com as notícias, ao que respondi adequadamente.
E tinha várias chamadas perdidas de Rollo, que eu achava que, por aquela
altura, já teria desistido. Depois, desconcertando-me, ele tornou a
telefonar-me, como se soubesse que eu tinha ligado o telemóvel.
- Mas que raio queres agora, Rollo? - perguntei-lhe, cansada. - Se ainda
estás a ver se arranjas uma entrevista com o Henry, isso não vai
acontecer. Acho que já tens uma sorte do caraças por teres sido
convidado para o jantar de amanhã e é bom que te comportes o melhor
possível!
- Não é nada do género - replicou ele, indignado. - Achei só que poderias
estar um pouco preocupada com a minha saúde, dado que foi por tua causa
que apanhei um resfriado tão mau.
- Eu fui a causa?
- Sim. Por isso, queria assegurar-me de que sabias que me sinto muito
melhor.
- Já sabia, porque a Flora nos manteve informados. Seja como for, não
passou de um resfriado, pois não?
- Não passou de um resfriado? Quando sabes como são fracos os meus
pulmões? Podia ter-me matado!
Que eu tivesse dado conta, ele nunca tivera qualquer problema de pulmões
ou de peito. Eu achava que a única coisa que provavelmente o mataria
no futuro próximo seria a própria Flora.
- Devias vir visitar-me - sugeriu ele.
- Ando demasiado ocupada com o trabalho e, seja como for, amanhã vou
ver-te, não vou?
- Mas estou a sentir-me encurralado e aborrecido, porque aquele velho
horroroso está sempre na sala de estar dos hóspedes, a beber e a
queixar-se.
- Ele é outro visitante indesejado, mas esquece, que ao menos de ti
a Flora parece gostar.
A sua voz deixou de estar moribunda e aqueceu, entusiasmada:
- Ela tem sido maravilhosa! A mãezinha está-lhe muito grata por ter
cuidado tão bem de mim. Falam por telefone todos os dias.
- Que agradável - disse eu, a pensar que se calhar uma ama era mesmo
aquilo de que ele sempre precisara. - Bem, vemo-nos amanhã - despedi-me
com brusquidão, preparando-me para desligar, mas não ia livrar-me dele
com tanta facilidade.
- Mais uma coisa - disse ele. - Contaste-me uma data de patranhas acerca
do Henry. Todas aquelas tretas sobre só usar verde e ser um eremita.
- Estava a gozar. E ele adora estar rodeado de pessoas... gosta apenas
de ser ele a selecioná-las.
Esperava que Rollo se comportasse no dia seguinte ao jantar. Mas Flora
estaria de olho nele, e eu também não achava que ele fosse estúpido
a ponto de esquecer que Henry ainda tinha muitos contactos influentes
no mundo da literatura.
Depois daquilo, senti que precisava de um pouco de ar fresco e
lembrei-me de caminhar até à Preciousss e visitar Flower.
A casa estava bastante serena, parecendo-me apenas ouvir a voz de Clara
pela porta do seu escritório.
Vesti o casaco e calcei as botas e, a pisar a gravilha do acesso e
passando para a estrada marcada pelo gelo, fiz uma contagem mental dos
meus presentes de Natal. Tinha feito montes de pequenos esboços de
todos, incluindo os cães, e já tinha uma ou duas prendas que comprara
na Preciousss, mas dava-me jeito arranjar mais algumas... como algo
para Den.
Flower, de Grace-Galadriel à anca, abriu-me a porta da loja e ficou
encantada por eu ter ido visitá-la - e ainda mais quando soube que queria
alguns presentes para o caso de ter esquecido alguém.
- Mas não sei o quê.
- Doces? - sugeriu Flower. - Toda a gente gosta de doces.
- Não sabia que os vendias, Flower!
- Tenho a minha própria linha - respondeu orgulhosamente, seguindo até
uma prateleira escura e distante que, até então, me tinha passado
despercebida. A linha de Flower fora criada enchendo velhos frascos
de compota de vários tamanhos e formas com guloseimas de compra,
cobrindo em seguida as tampas com toucas em miniatura de um roxo
brilhante. Etiquetas de papel escritas à mão davam um novo ar aos
conteúdos.
«Varinhas de Feiticeiro» eram apenas pauzinhos de alcaçuz, do género
mole e torcido com uma ponta coberta de pequenos grânulos coloridos.
«Feitiços Saborosos» eram rebuçados de mentol e «Mentas Mágicas» eram
do género mais mole, com cobertura de chocolate, cada uma embrulhada
em papel de prata.
Den gostava de alcaçuz; lembrei-me de Teddy dizer que ia guardar-lhe
uns rebuçados de alcaçuz da primeira vez que fomos buscá-lo à escola.
Comprei vários frascos e os olhos de Flower brilhavam tanto que ela
até pareceu bastante bonita por um momento, fazendo lembrar um pouco
Ofélia Afogada.
- A ver se o meu cartão não entra em combustão espontânea quando o
passares pela máquina - comentei, abatida. A renda do apartamento já
teria sido retirada da minha conta e, agora que a pagava sozinha, era
um fardo bem pesado. Tinha mesmo de começar a procurar um chalé assim
que regressasse, depois do Natal.
Flower foi à cozinha preparar-me um café e deixou-me a cuidar de
Grace-Galadriel enquanto guardava as minhas compras. Eu só tive tempo
de sacar do caderno e fazer um desenho rápido da bebé antes de ela
voltar. Ainda me restavam algumas molduras e, mesmo que não pudesse
oferecer o desenho a Flower no Natal, iria vê-la no dia seguinte.
Depois de tomarmos o café com uns biscoitos caseiros que pareciam cartão
perfurado e sabiam mais ou menos a isso, disse-lhe que era melhor ir
andando.
- Acabei de me lembrar que tenho aqui uma carta para a Casa Vermelha
- disse ela, levantando-se para ir tirar de uma cómoda um envelope muito
surrado. - Aqui está! O saco do correio devia estar húmido, porque o
envelope vinha colado ao fundo de um pacote. Tivemos de o arrancar.
- A neve deve ter entrado enquanto o arrastavam pelo chão - disse eu.
- Mas ao menos ainda dá para ler a morada do destinatário.
Era um envelope pardo comprido, com selos norte-americanos e manchas
interessantes, endereçado à Professora Clara Mayhem Doome.
- Dou-o à Clara quando voltar - disse eu, guardando-o na minha grande
mala bordada.
Eu tinha apenas começado a subir a rua quando um grupo de passeadores
de cães, composto por River, Henry e Lex, me apanhou.
Lass avançava pelos seus próprios meios, mas River levava Pansy ao colo,
enquanto a mais substancial Wisty ia nos braços de Lex.
- Têm umas perninhas tão curtas - disse River quando comentei esse
facto. - Estavam cansadas e tinham as barrigas frias.
- Suponho que não sejam os melhores cães para o campo - respondi.
- É surpreendente o que conseguem caminhar, quando não têm de atravessar
neve - disse Henry. - A Sybil é uma boa criadora de cães. Os seus
cachorrinhos são sempre saudáveis e ganham montes de prémios.
- Acho que a Pansy não vai ganhar prémios - atalhou Lex. - Parece um
conjunto de tudo o que os Dachshunds não devem ser.
- Mas é saudável, que é o mais importante. E é linda à sua própria maneira
- disse Henry.
Assim que entrámos, a porta do escritório de Clara abriu-se e os seus
caracóis cinzentos e prateados apareceram.
- Psst - sibilou ela estridentemente. - Venham cá, todos!
- Eu também? - perguntou River.
- Porque não? - ripostou Clara. - Já o vejo como parte da família.
- Deixa-me só pôr as cadelas na cozinha para que possam secar junto
ao fogão - disse Henry, fazendo isso mesmo.
Tottie já estava no escritório, a andar de um lado para o outro,
irrequieta.
- Fecha a porta, Henry - disse Clara quando ele entrou.
- Quem estamos a deixar de fora?
- A Sybil - disse Tottie. - Enquanto todos vocês estavam fora, o Piers
convenceu a Flora a trazê-lo cá e eu estava na sala de estar com a Sybil
quando tocaram à campainha. Tínhamos as luzes acesas, por isso eles
podiam ver-nos pela janela, não dava para fingir que não estava ninguém
em casa. O Piers disse que queria apenas trocar umas palavras com a
Sybil sobre uma questão privada.
- Que questão privada? - quis saber Henry.
- Não teria sido privado se ele a revelasse, pois não? - replicou Clara.
- Cala-te e deixa a Tottie contar a história.
- Bem, eu sugeri que ela o levasse para a biblioteca e ofereci-me para
fazer café para todos. Como sabem, a porta da biblioteca nunca fecha
como deve ser... Seja como for, quando voltei ouvi-os a falar e não
teria parado à escuta se não tivesse ouvido o Piers a dizer algo que
me chamou a atenção.
- Bem, agora ficámos todos em pulgas: o que disse ele? - perguntou Lex.
- Que qualquer coisa... não sei o quê... era a única solução, porque
de outra forma, se a verdade viesse à tona, as coisas poderiam ser muito
complicadas para ela. Depois disse que contava vir a passar mais tempo
em Underhill e que a casa ainda era dela, afinal, pelo que o Mark não
poderia impedi-lo.
- Isso soa-me a chantagem - comentou Henry, pensativo. - Ouviste mais
alguma coisa?
- Não, porque achei melhor levar o café antes que eles saíssem. Então,
a Sybil estava branca como um fantasma e com um ar completamente
atrapalhado, enquanto o Piers parecia satisfeito consigo mesmo. A Flora
fez questão de que fossem embora assim que acabaram o café e a Sybil
disse que estava outra vez com uma enxaqueca e foi para o seu quarto
tomar um comprimido.
Tottie olhou para todos nós, como se tentasse encontrar uma resposta
simples nos nossos rostos.
- O que quererá dizer tudo isto?
- Cheira-me a esturro - disse Clara. - E vem do Piers.
- Saberá ele algum segredo da Sybil? - perguntei.
- Não imagino o quê - respondeu Clara. - Suspeito de que ele ande a
extorqui-la desde que o George morreu e que é por isso que ela está
sempre com falta de dinheiro, mas ela poderá sentir apenas que está
em dívida para com ele, de alguma maneira.
- O que vamos fazer? - perguntou Tottie.
- Acho que precisamos de ter uma conversa séria com a Sybil e fazê-la
abrir-se connosco... e também há outro assunto que queremos discutir
com ela - acrescentou. - Mas primeiro tenhamos um Natal pacífico! Depois
do Natal, tenho a certeza de que poderemos resolver tudo isto.
- Sim, mas eu acho que devemos tentar manter o Piers o mais afastado
possível da Sybil até então - sugeriu Henry. - Certamente não pode haver
mais tête-à-têtes.
Clara verificou as horas.
- Está quase na hora do programa de cânticos.
- Que programa de cânticos? - perguntei, intrigada.
- É na rádio: Nove Lições e Cânticos com o coro da King’s College, de
Cambridge - explicou Henry.
- Sim, por isso vão andando para a sala de estar enquanto eu ponho
rapidamente a Tottie a par do que se passou na noite do Solstício -
instou Clara.
Como não haveria forma de a impedir de contar a Tottie, pensei que talvez
fosse melhor pôr River ao corrente também, assim que pudesse. Esperava
que não constituísse um choque demasiado grande para ele.
Henry ligou o rádio no momento em que Tottie e Clara vinham a entrar,
com Teddy atrás, ainda com alguma farinha ou açúcar em pó de ter estado
a ajudar Den na cozinha.
Tottie trazia uma caixa grande e, enquanto escutávamos o programa, ela
e Teddy tiraram de lá um conjunto de figuras de madeira belamente
esculpidas, representando o presépio (incluindo um berço), e
colocaram-nas num parapeito largo.
- É encantador - disse eu, admirando-o depois de termos desligado o
rádio. - Mas onde está o Menino Jesus?
- Ainda não nasceu - disse-me Teddy. - Amanhã é o dia do seu nascimento.
- Claro, que disparate o meu - desculpei-me.
Mais tarde, Clara disse-me que Tottie achava que a ideia de que Sybil
tivesse tentado empurrar-me de um precipício era ridícula e era apenas
fruto de uma imaginação demasiado fértil.
Mas River, quando o apanhei sozinho por uns minutos e lhe contei tudo,
limitou-se a dizer com tristeza:
- Pobre senhora! Desconfiei disso mesmo, na Congregação.
- Desconfiaste? E teria sido pobre Meg, se ela tivesse sido
bem-sucedida!
- A Deusa protegeu-te. Eu vi logo que achavas que te tinham empurrado
e percebi que só podia ter sido a Sybil, pois a sua aura não estava
bem... e a expressão dela, quando te viu entrar no átrio para a
Congregação, foi de alívio puro.
- Bem, isso é impressionante! Porque é que não me disseste?
- Achei melhor deixar que o padrão se esgotasse por si mesmo - disse
ele obscuramente, sorrindo como um elfo sábio mas irritante. Se
estivesse a usar o seu gorro tricotado e pontiagudo, ter-me-ia sentido
tentada a enfiar-lho até lhe tapar os olhos, como um daqueles pequenos
gnomos escandinavos. - A violência nunca é a solução - acrescentou,
sem que eu tivesse como saber se estava a dar seguimento ao seu
raciocínio original ou se me adivinhara os pensamentos.
11 Personagem hipnotizador do romance Trilby, de George du Maurier.
(N. da T.)
12 Trocadilho com o apelido de Edwina Currie, antiga política
britânica, que se assemelha a curry, caril. (N. da T.)
Clara
A seguinte parte das minhas memórias trata de acontecimentos mais
recentes, se bem que, como verão, ligados ao passado.
Recentemente, as nossas vidas sofreram outra reviravolta
surpreendente, quando tive uma ideia que viria a ter consequências
profundas.
Havia pouco tempo, uma velha amiga de Oxford, a professora Priscilla
Longridge, mandara pintar o seu retrato e tinha falado imenso de querer
deixá-lo para a posteridade, ou seja, doá-lo à Galeria Nacional de
Retratos. (Isto tinha a sua graça, já que o retrato era de tal forma
a sua cara que eu via que, secretamente, ela o detestava, apesar de
ser tão genial que não poderia rejeitá-lo!)
Depois de o ver, achei que seria muito divertido se eu e Henry também
mandássemos pintar os nossos retratos. Agradava-me muito a forma como
a artista capturara os aspetos mais crocodilinos do rosto de Pookie
Longridge. Era a artista que eu queria e, como tinha de me deslocar
a Londres para uma palestra, achei que poderia tratar do assunto ao
mesmo tempo, o que acabou por se revelar algo mais difícil do que eu
esperava.
No entanto, no final tudo se conjugou e, uns dias depois, Meg Harkness,
uma jovem encantadora, já estava instalada na Casa Vermelha e a dar
início ao primeiro dos nossos retratos.
Não tardou a fazer parte da família. De facto, tanto eu como Henry
sentimos, desde o início, que a sua tez invulgarmente pálida e os seus
olhos claros, quase turquesa, tinham algo estranhamente familiar.
Porém, só quando cheguei à parte das minhas memórias sobre o primeiro
ano em Oxford é que me caiu a ficha e, lentamente, fui-me dando conta
de que ela teria de ser neta de Nessa Cassidy e do irmão de Henry, George.
Quão estranhas são as reviravoltas do destino que nos uniram todos!
37
Prendas
Sybil desceu ao piso térreo com o ar de quem ia tomar a última refeição
antes de enfrentar um pelotão de fuzilamento na manhã seguinte, e não
um agradável jantar de véspera de Natal em família.
Tinha colocado um valente batom vermelho nos lábios, mas esquecera-se
por completo de mudar de calças, pelo que mantinha uma leve e não de
todo desagradável fragrância a cavalo.
Quanto a mim, preferia isso àquele perfume inquietante.
Todos a tratámos com muita amabilidade, como se ela estivesse doente...
coisa que devia estar, ou ter estado, pelo menos quando tentara
assassinar-me. Mas também eu dei por mim a falar delicadamente com ela
sobre temas inócuos, como que mel preferíamos e a forma como as abelhas
dançavam para comunicar umas com as
outras.
- Como língua escrita, isso poderia apresentar alguns problemas
interessantes ao nível da tradução - disse Clara.
- As abelhas não têm mãos - lembrou Teddy. - Como é que poderiam
escrever?
- Isso realmente era capaz de lhes complicar as coisas - concordou
Henry.
Den jantou connosco, mas disse que em seguida ia para o seu apartamento,
já que tinha selecionado programas na sua revista de programação para
se entreter durante aquela noite.
- E tenho um pacote de Cheese Footballs e uns quantos Twiglets, não
é?
- Os antigos são os melhores - comentou Henry, embora eu achasse
estranho que um homem capaz de fazer petiscos e salgados deliciosos
preferisse os de compra.
Teddy foi ficando cada vez mais entusiasmado à medida que a noite ia
avançando e eu não conseguia imaginar como iria acalmar-se o suficiente
para dormir.
Escutámos Henry a ler a segunda metade de Um Conto de Natal, e depois
eu, Lex e Zelda jogámos Monopólio com Teddy até ele começar a perder
algum ímpeto.
- Está na hora de deixar a merenda preparada para o Pai Natal e as renas?
- acabou Tottie por sugerir.
Uma empada, duas cenouras e um copinho de uísque foram deixados numa
mesa baixa junto à lareira, e Lex prometeu que se certificaria de que
todas as brasas ficavam apagadas, bem antes da hora de o Pai Natal descer
pela chaminé.
Por fim, Teddy deixou-se persuadir a ir para a cama e Tottie levou-o,
mas não antes de ele ter proclamado as suas ordens:
- A mamã também tem de vir e cantar-me a música do burrinho e depois
o tio Henry pode ler-me o livro especial.
- Livro especial? - perguntei.
- The Night Before Christmas, de Clement Clarke Moore - explicou-me
Henry. - Conhece?
- Não - respondi.
- Depois trago-o quando descer e poderá lê-lo. É uma pequena história
encantadora.
Quando o chamaram ao piso de cima para realizar aquele ritual anual,
Clara comentou animadamente:
- Então aqui estamos: a última volta antes do grande dia! Já só falta
dispor os presentes e encher a meia do Teddy.
- Eu adorava encher a meia do Mark quando ele era pequenino - disse
Sybil. - É estranho não estar com ele na véspera de Natal... nem quando
ele abrir os seus presentes de manhã.
- Mas estará cá para o jantar de Natal - disse Clara. - River, esteja
à vontade para beber o uísque do Pai Natal e comer a empada, se lhe
apetecer. Podemos devolver as cenouras à cozinha. O Teddy não vai dar
por nada.
- Eu nunca tive uma meia de Natal - disse eu. - Penduram-na aos pés
da cama dele?
- Não, o Teddy pendura a dele na maçaneta da porta do seu quarto, do
lado de fora, e depois o Pai Natal enche-a e pendura-a do lado de dentro.
- Assim não têm de esperar horas para que ele adormeça para poderem
encher-lhe a meia - disse Lex, e depois acrescentou: - É estranho que,
embora eu e a Zelda já não deixemos as nossas meias penduradas, o Pai
Natal continue a deixar-nos coisas dentro delas.
E sorriu a Clara, que nem pestanejou.
Zelda e Tottie desceram e Henry apareceu pouco depois, com uma meia
grande e tricotada com um laço de veludo vermelho em cima.
- Profundamente adormecido - informou-nos. - Mal acabei o livro e ele
já estava a dormir.
Passou-me The Night Before Christmas, uma versão ilustrada, que li com
interesse: dava para ver porque queria Teddy que lha lessem todos os
anos.
Trouxeram-se os presentes e os de Teddy foram colocados à volta da
árvore da sala, enquanto os nossos foram para debaixo do átrio.
Todos juntámos os nossos contributos e havia algo para toda a gente...
incluindo, para minha surpresa, Piers.
- Tínhamos umas garrafas de uísque de reserva na despensa, por isso
lembrámo-nos de lhe dar uma - disse Henry. - No outono, a Deirdre mantém
pouco álcool na pensão, portanto, ele agora já deve estar limitado a
uma escolha entre crème de menthe e Curaçao.
- Assim há de ficar sossegado quando voltarem para a pensão no dia de
Natal e dar alguma paz à Flora - concordou Clara.
Num momento de generosidade, eu tinha embrulhado um frasco de doces
para Rollo. Ele era assim delicodoce, mas não me parecia que fosse
perceber a piada. Não sentia necessidade de dar alguma prenda a Flora...
se bem que talvez já lhe tivesse dado Rollo, se ela conseguisse
agarrá-lo e chegar a acordo com a Mãe Dragão.
Os presentes embrulhados com papéis de cores garridas deram o último
toque festivo à cena: as luzinhas piscavam nas árvores e o cheiro a
especiarias e canela dos cozinhados e a pinheiro envolviam toda a cena.
Sentia a magia a incutir-se nos meus ossos e a própria casa parecia
estar misteriosamente à espera de algo.
Eu não compreendia nada daquilo, mas, de alguma maneira, percebia...
e estava maravilhada!
Olá, chamo-me Meg e sou viciada no Natal...
Para minha surpresa, River também se entregara por completo a tudo
aquilo, parecendo-me que alguns elementos novos poderiam insinuar-se
na cerimónia do Solstício e no Banquete da Quinta do ano seguinte.
Na sala de estar, Clara, Tottie e Zelda começaram a encher a meia de
Teddy. A tangerina tradicional foi para a biqueira, onde criou um alto
redondo e satisfatório; seguiu-se uma bolsa de rede de moedas de
chocolate e um tostão enorme numa lata redonda, que Zelda tinha comprado
na Fortnum & Mason.
Também contribuíra com um estojo em forma de sarcófago egípcio e um
pequeno modelo da deusa-gata Bastet. As adições de Tottie foram um
ratinho de açúcar cor-de-rosa, uma pistola de brincar antiga que fazia
barulho e disparava luzes e um pequeno acordeão de papel. Achei que
todos viríamos a lamentar este último.
Para terminar, Clara enfiou na meia um livrinho de capa mole da série
História Horrível e depois o meu dragãozinho de feijões, com a sua
cabeça de bombazina roxa a espreitar por cima.
Todos concordámos que aquilo parecia muito empolgante e, o que
importava, manteria Teddy ocupado durante algum tempo, depois de ter
acordado a uma hora impiedosa da madrugada.
Henry foi incumbido de pendurar a meia do lado de dentro da porta de
Teddy, não sem antes envergar um velho e rasgado casaco vermelho de
Pai Natal e uns óculos com bigode e barba brancos pendurados.
- Temos mesmo de substituir isto - disse Henry, prendendo as pregas
vermelhas à volta da sua cintura estreita com um cinto preto.
- Serve, para o caso de o Teddy acordar, coisa que não acontece - disse
Clara.
- E nem se mexeu - comunicou Henry ao descer, com um ar de alívio.
De facto, a sensação generalizada era agora de descontração, pelo que
distribuímos o hidromel e as empadas.
Henry, Clara, Sybil e River instalaram-se a jogar majongue, enquanto
os restantes jogávamos Scrabble, se bem que Zelda não estivesse
concentrada. A sua expressão sonhadora deixava-me adivinhar em que
estaria a pensar.
Quanto a mim, queria mesmo vencer Lex, mas, sem que eu percebesse
porquê, as minhas letras não paravam de formar palavras tão obscenas
que eu simplesmente não conseguia levar-me a usá-las, ainda que me
permitissem obter a pontuação tripla.
À meia-noite, todos nos desejámos um feliz Natal, com um brinde de
champanhe de flor de sabugueiro e, antes de Sybil e Tottie irem para
a cama, esta última colocou o Menino Jesus no presépio.
Lex tinha-se oferecido para levar as cadelas a darem uma última volta
pelo jardim e eu saí com ele para apanhar um pouco de ar antes de me
deitar. Estava tudo muito calmo ali, só se via a neve a cintilar e céus
do índigo mais profundo, pontilhados por milhões de estrelas.
As cadelas corriam por ali como se o frio as tivesse enlouquecido, e
uma janela por cima da garagem, por onde o ecrã de um televisor
tremeluzia, abriu-se. Então uma voz bradou:
- F’liz Natal e Deus abençoe o pequeno Tim13!
- Feliz Natal, Den! - respondi-lhe, a rir, e a janela tornou a fechar-se.
Lex estava a atirar bolas de neve para as cadelas perseguirem, apesar
de se desfazerem assim que elas as apanhavam.
Olhei de novo para as estrelas. Pareceu-me que sentia o mundo a girar
e os planetas a mover-se nas suas trajetórias ordenadas...
Algo leve e frio tocou-me no rosto.
- Os flocos de neve são penas caídas das asas de anjos - disse Lex num
tom mágico, estragando o efeito ao acrescentar: - Uma vez ouvi a Flora
dizer isso ao Teddy. Mas, se fosse verdade, haveria uma data de anjos
carecas a pairar sobre Starstone Edge.
- Carecas e cheios de frio - concordei.
- Até agora, estás a gostar do teu primeiro Natal? - perguntou ele,
fazendo as cadelas correr atrás de outra bola de neve.
- Não há dúvida de que é diferente de qualquer coisa que eu alguma vez
tenha experimentado - respondi com sinceridade.
Acordei muito cedo na manhã de Natal, com uma estranha sensação de
expetativa. Já percebia por completo o que Teddy sentia! Ainda estava
escuro, pelo que acendi o candeeiro da mesa de cabeceira... e reparei
logo que havia qualquer coisa pendurada na maçaneta da minha porta!
Era uma meia comprida e tricotada, à qual tinha sido cosida uma fita.
Estava cheia e parecia tentadora.
Fitei-a... e depois lembrei-me da insistência de Clara na noite
passada, dizendo que estava tão desperta que tencionava trabalhar mais
uma hora ou duas antes de se ir deitar... e de que Lex antes dissera
que ele e Zelda ainda recebiam meias de Natal. Agora eu também tinha
uma!
Fui buscá-la, voltei para a cama e comecei a investigar. Os conteúdos
estavam embrulhados em papel de seda verde e entre eles encontrei o
livro mais recente de Clara, com uma dedicatória pessoal, uma
garrafinha com o hidromel de Tottie, uma laranja de chocolate, um
conjunto de pequenas bonecas mexicanas e um lenço de seda comprido e
muito bonito, com um marmoreado verde, que eu estava certa de ter visto
na Preciousss.
Na biqueira estava uma tangerina, que comi, e depois atravessei o
corredor para ir à casa de banho lavar as mãos.
Ao regressar, ouvi um batucar de pés descalços enquanto Teddy corria
pelo patamar afora, sussurrando bem alto:
- Meg! Meg!
- Chiu! - avisei-o. - Ainda é muito cedo e acho que está toda a gente
a dormir.
- Eu sei. Já tentei o Lex, a mamã e a Tottie - disse ele, entristecido.
- Mas ainda bem que tu não estás, porque quero mostrar-te o que tinha
na meia!
- Eu também recebi uma - disse-lhe, voltando para a cama.
- O Lex e a mamã recebem sempre uma meia. O Pai Natal não deve ter
percebido que vocês são todos crescidos.
Ele fez um ninho com o edredão dobrado sobre os pés da minha cama e
esvaziou os seus tesouros.
Claro que eu já sabia o que ali estava, mas fingi que não. Tal como
eu, ele comera a sua tangerina, mas também a bolsa de moedas de
chocolate, das quais só restavam os invólucros metalizados.
- Tivemos muita sorte, Teddy, não tivemos? - perguntei-lhe por fim,
olhando para o meu relógio. - Acho que agora já será decente tomar um
duche e descer.
- Vão todos ter de se levantar em breve, porque eu não posso abrir os
presentes até termos tomado o pequeno-almoço... e mal posso esperar!
- Eu percebo - admiti. - A meia foi uma surpresa inesperada, mas agora
quero ver o que está nos outros embrulhos debaixo da árvore que têm
o meu nome!
- Aposto que o Den já deve estar na cozinha - disse ele, deslizando
para fora da cama. - Vou ver. Assim também posso mostrar-lhe a minha
meia!
- Boa ideia, Teddy, mas depois disso é melhor vires cá acima para te
lavares e mudares de roupa...
Mas ele tinha desaparecido antes de eu acabar a frase.
Tomei um duche e voltei para o meu quarto, encontrando Pansy lá dentro
à minha espera. E, a menos que tivesse aprendido a abrir e fechar portas,
alguém devia tê-la deixado entrar. Estava a tentar roer qualquer coisa
presa à sua coleira, mas desistiu disso para me receber com um prazer
a raiar a histeria.
- O que é que trazes na coleira, Pansy? - perguntei-lhe, pegando-lhe
ao colo para ver o que seria... e encontrei um cartão ligeiramente
mastigado, mas ainda legível, que dizia:
Para a Meg
Desejando-te um Natal muito feliz.
Se aceitares que te ofereça a Pansy, saberei que me perdoaste realmente.
Bjs
Lex
Fitei a nota, sobretudo os beijos da despedida.
- Foi o Lex que te pôs no meu quarto? - perguntei a Pansy, que se remexeu
até eu a pousar e depois correu para a porta, olhando para trás como
se me convidasse a segui-la. Quando a abri, não fiquei muito
surpreendida ao deparar-me com Lex do outro lado, como se não soubesse
como o seu presente fora recebido. Não lhe deixei dúvidas. - Oh, Lex,
obrigada! - exclamei, com uma gratidão sincera. - Não podias ter-me
dado outra coisa que eu quisesse mais... mas ela era tão cara. Não
devias!
- A Sybil fez-me um desconto de familiar - respondeu, com aquele sorriso
sardónico que eu já lhe conhecia. - Então... aceitas as minhas desculpas
pelo passado?
- Claro que aceito. Já não há nada a perdoar. Foi tudo um mal-entendido
e voltámos a ser amigos, não voltámos?
Por impulso, pus-me em bicos de pés para lhe dar um beijo na cara, mas
em vez disso os nossos lábios encontraram-se... e depois perdi-me de
novo nos seus braços, que me seguravam bem junto a si.
- Tio Lex! Tio Lex! Vais descer? - chamou a voz de Teddy, ao que nos
separámos, fitando-nos. O meu coração parecia estar a fazer alguma
espécie de rotina de ginástica e até me custava respirar.
- Temos de parar de nos encontrar assim - disse Lex, numa voz estranha.
Teddy estacou à nossa frente e exigiu saber:
- Porque é que estavas a beijar a Meg? Aqui não há visco pendurado e,
seja como for, eu acho que essas coisas são uma porcaria.
- Eu beijei o Lex para lhe agradecer por me ter oferecido a Pansy como
prenda de Natal.
- Queres dizer que ela é tua para sempre?
Assenti com a cabeça.
- Sim, é um presente especial que o Lex me deu mais cedo, mas, se queres
ver o que é que tu vais receber pelo Natal, é melhor ires vestir-te,
não? Acho que já está toda a gente a levantar-se.
Ele disparou a correr e, ao ver Lex a olhar para mim com uma expressão
séria, como se tentasse resolver alguma coisa intrigante, apressei-me
a dizer-lhe:
- É melhor ir vestir-me também... e tenho o cabelo a secar ao ar, por
isso vai parecer um palheiro cor-de-rosa.
E enfiei-me no quarto, fechando a porta, por sorte com Pansy do lado
de dentro.
Ups, tinha-o feito outra vez! Quero dizer, para além daquele breve beijo
que Lex me dera no carro na noite do Solstício, um cumprimento amigável
para marcar o fim das hostilidades, parecia ser sempre eu a dar o
primeiro passo, apesar de ele não me rejeitar propriamente quando isso
acontecia.
Quereria isso dizer que ele ainda sentia algo por mim? Eu já sabia que,
se mo permitisse, poderia apaixonar-me profundamente por Lex. Mas,
mesmo que ele sentisse o mesmo, poderíamos entregar-nos a essa paixão,
quando o fantasma do passado nos perseguiria para sempre?
13 Personagem de Um Conto de Natal. (N. da T.)
38
Completamente Comprometido
Tive de humedecer o cabelo de novo antes de poder fazer qualquer coisa
com ele, e depois demorei algum tempo a vestir o meu vestido novo de
retalhos de bombazina da cor de pedras preciosas, em honra do dia, antes
de descer com a minha cadela atrás de mim.
Já todos tinham descido e abriram um espaço para mim à mesa. Estou aqui
sentada com a minha família, pensei de repente. A minha nova família.
No meio da confusão geral de agradecimentos pelas meias, e com Sybil
a contar a toda a gente que Lex a obrigara a guardar segredo quando
comprara Pansy para mim, não tive tempo para introspeção.
O ramo da família da Nova Zelândia telefonou enquanto continuávamos
na cozinha - a irmã de Clara, Bridget, e o marido, os pais de Lex e
Zelda, estavam a passar o Natal com o irmão mais velho destes,
Christopher, e o telefone foi passado pela mesa.
Depois disso, Teddy não nos deixou ficar mais tempo na cozinha e levámos
o café para a sala de estar, onde finalmente lhe foi dada permissão
para que abrisse os presentes, com um CD de cânticos a tocar baixinho
como pano de fundo.
Seguiu-se um frenesim de papel a ser rasgado, durante o qual Tottie
se manteve perto, tomando nota de quem lhe dera os vários presentes,
para que ele depois pudesse escrever cartões de agradecimento.
Lex e Den tinham trazido os nossos presentes do átrio e não tardámos
a ter todos um pequeno monte junto de nós, incluindo River, o hóspede
inesperado.
Teddy corria até nós para nos mostrar cada novo tesouro e, se o
presenteador estivesse presente, para lhe agradecer.
O castelo de Clara e Henry, com a família de dragões oferecida por Den,
foi recebido com êxtase. Depois a caixa de materiais de arte que eu
lhe dei, mais um cavalete dobrável e um conjunto de pequenas telas de
Lex... quebra-cabeças, livros, puzzles e jogos... O chão não tardou
a ficar com uma grande pilha dos seus despojos, e já só lhe restavam
uns quantos por abrir. Por essa altura, estava a usar os óculos de
proteção de geólogo que tinham sido um dos presentes de Zelda,
juntamente com o chapéu de pirata do jogo que ele tanto quisera.
- Vejam - disse ele -, o papá mandou-me uma espada com luz e uma
fotografia dos amigos dele.
Era um sabre de luz da Guerra das Estrelas e a fotografia era do elenco
e vinha autografada. Um dos amigos do papá era extremamente peludo.
- O teu pai deve ligar-te mais logo, Teddy - disse Clara. - Lá são várias
horas a menos do que aqui, creio.
- O Radnor tem uma mulher e família nos Estados Unidos. Estavam
separados quando o conheci, e depois juntaram-se de novo assim que ele
voltou - confidenciou-me Zelda numa desnecessária voz baixa, pois Teddy
regressara aos seus presentes e provavelmente não a ouviria nem que
ela gritasse por um megafone.
Estávamos sentadas no mesmo sofá, com os nossos montes de presentes
entre nós, e ela tinha acabado de pôr um par de brincos com lamas de
prata oscilantes e a ver-se a um espelho de bolso com pedras preciosas,
outro presente.
- Ele nem acreditou que o Teddy fosse dele até o teste de ADN o provar,
mas agora mantém-se em contacto com ele; mas é só nos aniversários e
no Natal, na verdade.
- Isso há de ser melhor do que não ter qualquer contacto, e pelo menos
o Teddy sabe quem é o pai.
- Sim, sempre fui completamente transparente com ele - disse Zelda,
com ênfase. Então, após um momento pensativo em que estava claramente
a dar seguimento a algum raciocínio, acrescentou num tom sonhador: -
O Mark disse que ia tentar chegar mais cedo.
O último presente de Teddy, pequeno e retangular, era um presente
conjunto de Tottie e Sybil. Lá dentro estava uma fotografia emoldurada
de um pónei robusto e castanho, de crina e cauda compridas.
- Esse é o Conker - explicou-lhe Tottie. - É um Exmoor e vem para cá
emprestado nas férias para ser o teu pónei.
- Podes levá-lo a pastar com os meus cavalos, como fizemos com o Shetland
que tínhamos pedido emprestado - disse Sybil. - Na verdade, vem dos
mesmos amigos, cujo filho mais novo acabou de ficar demasiado grande
para ele.
- Vou comprar-te um novo chapéu de montar e umas botas quando ele chegar
- prometeu Tottie.
- E nós tratamos do seguro e das contas do veterinário - disse Clara.
- Que bela ideia!
Teddy estava tão encantado que, depois de um momento em que ficou sem
fala, sentiu o impulso de ir beijar Sybil e Tottie, apesar de pouco
antes ter dito que essas coisas eram uma porcaria.
Em seguida, ajudei Lex a apanhar todo o papel de embrulho descartado,
para não nos sentirmos à deriva num mar lúrido de pais natais, renas,
flocos de neve e pinguins.
Teddy instalou-se no chão com um puzzle da Pedra de Roseta e uma caixa
de bombons sortidos, enquanto todos nós acabávamos de rasgar os nossos
próprios embrulhos em paz.
Clara tinha um lindo colar comprido de pérolas de âmbar que lhe
oferecera Henry, a quem ela dera uma camisola de caxemira da cor dos
olhos dele. Os meus esquiços pareceram agradar a todos, e River ficou
contente com o livro sobre linhas de ley que eu lhe tinha comprado.
Tornou-se cada vez mais evidente que tinham sido feitas várias
incursões de compras à Preciousss nos últimos dias, à medida que uma
correnteza de coisas bonitas, úteis ou apenas interessantemente
bizarras iam emergindo dos seus embrulhos.
River tinha escolhido um tema e cingira-se a ele para as suas oferendas:
toda a gente recebeu um pequeno seixo liso, cada um com uma palavra
pintada em letras góticas, como «Bênçãos», «Paz» e «Tranquilidade».
A minha dizia «Amor». Também me tinha trazido um par de luvas compridas
de veludo azul, ao estilo isabelino, com os punhos acolchoados e com
pérolas bordadas, que tinham sido feitas por um dos artífices da Quinta.
A Teddy, ofereceu uma flauta de Pã de juncos e, como ele já tinha feito
várias demonstrações do acordeão de papel, percebi que nos esperava
um Natal ruidoso, se bem que o som sibilante da flauta fosse o menos
irritante dos dois.
Tottie também dera a mesma coisa a toda a gente, um cachecol tricotado
com as cores do arco-íris, salientando porém que tinha cosido etiquetas
com o nome de cada um, para que não os confundíssemos.
Den ofereceu-se para trocar as luvas de pele que usava para conduzir
pelas luvas de veludo, mas estava só a brincar. Tinha à cabeça a lanterna
mãos livres que Lex lhe oferecera, com a luz a parecer uma espécie de
olho brilhante de Ciclope no meio da testa.
Eu guardara o saco da Quinta para o fim. Continha uma ocarina de
terracota, uma pequena taça feita à mão de madeira de sicómoro, um par
de brincos de selenite e pérola e vários cremes de rosto, loções para
o banho e bálsamos de mãos, todos eles caseiros. Os artífices da Quinta
eram muito diversos naquilo que faziam.
Mas, por fim, tudo fora desembrulhado, o papel tinha sido apanhado e
arrumado, as cadelas haviam-se acalmado - tinham tido direito a
guloseimas especiais para roer - e já podíamos tomar mais café e
descontrair durante algum tempo.
Quando Den e River saíram da sala para começar a adiantar o jantar,
eu ajudei Tottie a pôr a mesa, que fora ampliada ao máximo para que
coubessem todos os convidados.
Havia uma toalha de mesa especial de damasco carmim e um caminho de
mesa comprido com flocos de neve bordados e borlas douradas a pender
de um lado e do outro.
Quando os talheres reluzentes, os guardanapos festivos de papel e os
crackers ficaram nos seus lugares, pareceu-me que estava perfeito.
Tottie acrescentou o centro de mesa, um toro a sério decorado com
azevinho, algodão em rama a fazer de neve e purpurinas, que Teddy fizera
na escola.
Lex sugeriu que em seguida levássemos as cadelas a passear, antes que
os convidados chegassem, e levámo-las pelos campos nas traseiras da
casa, onde a neve continuava amontada. Não falámos e eu desejava saber
o que ele estaria a pensar sobre o nosso beijo da manhã... se era que
pensava nisso de todo. No entanto, o nosso silêncio era agradável e,
a dada altura, quando escorreguei e caí, ele deu-me a mão e não a soltou
até ter de abrir o portão, quando regressámos.
Secámos as cadelas no átrio do jardim antes de as deixarmos passar para
o resto da casa: pernas e barriguitas, no caso de Wisty e Pansy, mas
Lass teve de ser toda seca, pois tinha andado a rebolar na neve.
Mark devia ter chegado cedo, pois ele, Zelda e Henry emergiram do
escritório deste precisamente quando fechámos as cadelas ainda um pouco
húmidas na cozinha. Pensei que ele talvez tivesse estado a mostrar-lhes
as adições mais recentes à sua coleção de bolas. Uma delas, em forma
de balão de ar quente com um cesto por baixo, agradara-me especialmente.
Pouco antes da uma e meia, Flora chegou no carro da sua tia, trazendo
Rollo e Piers.
Rollo estava com um aspeto pálido e interessante depois da sua doença
- era um ar que passara toda a vida a tentar alcançar - e tinha a
tendência de fitar Flora com adoração.
Fiquei aliviada ao ver que parecia contido e, quando foi apresentado
a Henry, apertou-lhe a mão de uma forma serena e respeitosa, antes de
se sentar ao lado de Flora. Suspeitei de que ela lhe dera instruções.
Piers, que tinha os olhos um pouco vidrados, lançou um olhar atrapalhado
a Flora e depois dirigiu-se esperançosamente na direção do móvel das
bebidas ao fundo da sala.
- O Piers fez questão de tomar uma bebida antes de virmos - contou-nos
Flora em voz baixa. - E as mãos dele tremem muito, por isso acho que
é praticamente alcoólico. Acabou a última garrafa de gin Bombay e, a
este ritmo, só a conta do bar vai chegar às centenas antes de ele se
ir embora.
- É um velho pavoroso, mas tu lidas maravilhosamente com ele, querida
- disse Rollo num tom adorador.
Querida? Mas que rápido!
Flora dirigiu-me um sorriso complacente - até arrogante - de esguelha,
como uma Mona Lisa simiesca.
- És tão querido, Rollo - arrulhou ela.
Lex debruçou-se sobre o espaldar do sofá e murmurou-me ao ouvido:
- O amor anda no ar, e não é só a Zelda e o Mark! A Flora já parece
ter as garras bem cravadas no Rollo.
Virei a cabeça e olhei para ele.
- Não perde tempo, pois não? - sussurrei.
- Pelo menos parece que não vai incomodar o Henry, por isso, se
conseguirmos impedir o Piers de chegar à Sybil, tudo deverá correr bem.
Não houvera lugar no sofá para Piers ao lado de Sybil, quando ele
regressara do bar depois de, sem que ninguém o convidasse, se servir
um uísque, pois ela tinha Tottie de um lado e River do outro. Eu ouvia
pedaços da conversa deles: River parecia estar a traduzir os símbolos
estranhos à volta da bainha da sua túnica roxa, com intervenções
ocasionais de Clara, sentada em frente.
Piers teve de se contentar com o sofá menos apreciado, que engolia as
pessoas, e, quando Den fez soar o gongo para o jantar, parecia não o
querer soltar. Mas devia ter acabado por cuspi-lo, já que chegou à sala
de jantar no momento em que ocupávamos os nossos lugares à mesa,
seguindo as indicações de Clara.
Sybil foi colocada na ponta oposta à de Piers e ao lado de River,
enquanto Piers se encontrava seguramente ladeado por Lex e Mark. Fosse
como fosse, a velha convenção de alternar convidados do sexo masculino
e feminino não era algo que Clara seguisse.
Em honra da ocasião, bebemos um vinho de flor de sabugueiro de uma
profunda cor rubi, e limonada para Teddy. Piers deu um gole do seu vinho
e fez uma careta, bebendo o resto de uma assentada.
Aquilo não era forma de tratar algo tão delicioso. Apostava que River
depois pediria a receita a Tottie.
Puxámos os crackers, que eram os que Teddy tinha escolhido no Moinho
dos Amigos, e continham carrinhos antigos de corda, chapéus e piadas.
Todos, incluindo Piers, pusemos os nossos chapéus de papel e lemos as
piadas más enquanto comíamos as nossas miniaturas de salmão en croûte.
Depois Lex e River ajudaram a trazer o prato principal: o grande assado
de frutos secos em forma de galo-capão tinha ficado perfeito, colocado
com pompa numa travessa com um padrão de salgueiros. Foi flanqueado
por pratos de batatas assadas douradas e luzidias, rebentos, molho de
pão, cenouras caramelizadas e um grande jarro às riscas azuis e brancas
com um molho espesso. Também havia frascos de temperos, incluindo o
picante Fiesta Fogosa que eu trouxera. Esperava que a imagem de uma
malagueta vermelha a usar cornos de diabo e com uma forquilha na
etiqueta avisasse toda a gente quanto à potência daquilo que continha.
O vinho de flor de sabugueiro também era obviamente forte, já que,
depois de Henry encher o copo de Piers uma segunda vez, o nariz e as
faces deste ficaram ainda mais vermelhos e os seus olhos mais vidrados.
As cortinas foram cerradas para obtermos o efeito total do pudim de
Natal flameado quando este entrou na sala. Eu nunca o tinha provado
e achei-o muito rico e sólido, servido com molho branco e manteiga de
brande. Poderia ter comido antes o doce, mas achei que valeria mais
a pena experimentar o pudim, mesmo que passasse uma semana a sofrer
de indigestão, depois daquele momento coroado de gula.
No final, depois de se levantarem os pratos, foram distribuídos copos
de champanhe e serviu-se uma garrafa do champanhe de flor de sabugueiro
para um brinde.
- Feliz Natal a todos - disse Henry, e todos repetimos o seu desejo
e tocámos os nossos copos uns nos outros. Depois ele bateu ao de leve
com uma colher na garrafa, pedindo silêncio, e disse que tinha um
segundo brinde a propor: - É com todo o gosto que anuncio o noivado
da Zelda e do Mark.
Aquilo era inesperadamente rápido, ainda que não constituísse surpresa
para a maioria de nós, exceto Teddy, que fitava a mãe, de sobrolho
franzido, como se tentasse perceber as implicações daquela notícia.
Todos lhes demos os parabéns. Então Flora chamou Henry, na sua voz doce
e bem audível:
- Tem de propor ainda outro brinde: hoje o Rollo pediu-me em casamento!
Rollo deu-lhe a mão.
- Sim, esta mulher maravilhosa concordou aceitar-me!
Mais parecia que ela tinha aceitado a posição de sua ama, e até que
tinha, pois, por aquela altura, já devia ter percebido como ele era:
carente, obcecado consigo mesmo e não tão talentoso como se julgava.
- Soubemos que éramos feitos um para o outro assim que nos conhecemos,
não foi, Rollo? - perguntou ela.
- Foi, e agora que já dei a novidade à mãezinha, ela ainda está mais
desejosa de te conhecer - concordou ele.
Boa sorte com isso, Flora, pensei eu, mas talvez ela estivesse à altura
da tarefa.
- Meu Deus, isso é que foi rapidez - exclamou Tottie, e achei que Zelda
e Mark pareciam ligeiramente contrariados por terem de partilhar o seu
momento especial.
Henry apressou-se a propor o brinde:
- Ao Rollo e à Flora!
- Ao Rollo e à Flora! - ecoámos todos, exceto Piers, que se tinha mantido
silencioso e encolhido na sua cadeira, a bebericar o champanhe de flor
de sabugueiro como se fosse remédio.
Naquela altura, os acontecimentos pareceram finalmente chegar ao que
lhe restava do cérebro, pois os seus olhos focaram-se de súbito em
Sybil, na outra extremidade da mesa, cuja mão River apertava enquanto
lhe murmurava ao ouvido - provavelmente a assegurá-la que a Deusa
propiciara a união de Zelda e Mark e verteria bênçãos sobre as cabeças
deles -, e disse num tom alto e autoritário:
- Sybil!
Ela assustou-se e virou a cabeça para o fitar como um coelho apanhado
à frente de uns faróis.
- Parece-me que nós também temos algo a celebrar, minha querida, não
temos? - Sybil ficou pálida e a sua boca abriu-se e fechou-se, sem emitir
ruído. - Ontem, eu e a Sybil decidimos dar o nó! Porque havemos de viver
separados, podendo viver juntos? - apregoou Piers, a arrastar apenas
um pouco as palavras. - Poderemos dividir o nosso tempo entre Underhill
e o meu apartamento em Chelsea, o melhor dos dois mundos.
A reação a tal anúncio não foi bem ao mesmo nível da que correspondera
aos primeiros dois. Na verdade, seguiu-se silêncio, interrompido
apenas quando Mark fitou a sua mãe, em estado de choque, e exigiu saber
se aquilo era verdade.
- Não podes querer casar com o Piers, mãe!
- Porque não haveria de querer? - replicou Piers. - Sou um excelente
partido, eu.
- O Piers de facto... sugeriu isso ontem, quando tivemos uma pequena
conversa, Mark - hesitou ela. - Mas eu... eu quero dizer, eu não disse...
nada ficou decidido. E...
Ela retorceu as mãos, coisa que eu nunca tinha visto alguém fazer
realmente, até que River reclamou a mais próxima de si, dando-lhe umas
palmadinhas tranquilizadoras.
- Dado que o seu anúncio parece ter apanhado a Sybil completamente de
surpresa, Piers, talvez seja melhor adiarmos a sua celebração para
outra altura - decretou Clara, com secura. - Que esta noite seja apenas
para os jovens.
Piers lançou um olhar zangado a Sybil, que se encolheu na direção de
River, o que não pôs água na fervura, de modo algum.
- Pensava que ontem tínhamos chegado a acordo quanto a ser o melhor
a fazer - disse Piers. - Mas talvez possamos ter uns momentos juntos
agora, para que eu possa apresentar o meu pedido devidamente.
- Eu duvido que haja alguma forma como possa fazê-lo que a leve a
aceitar, Piers - disse Clara. - Por isso, vamos, todos, vamos para a
sala de estar.
Henry virou-se para Piers e, astutamente, indicou-lhe:
- Creio que há um presente para si debaixo da árvore no átrio, e
parece-se extraordinariamente com uma garrafa de uísque.
O amor - ou fosse lá o que era - foi pela janela quando Piers quase
deitou a cadeira ao chão, tal a sua avidez por deitar a mão àquele prémio
inesperado.
Eu e Lex ajudámos Den a levantar a mesa e a encher a máquina de lavar
loiça, acompanhados por Mark a declarar a Zelda que nunca deixaria a
mãe casar com Piers e que certamente nunca viveria debaixo do mesmo
teto que ele.
Soava muito feudal e como o senhor de um castelo. Praticamente dava
para ver gerações de cavaleiros alinhados atrás dele, preparados para
chicotear alguém.
- Oh, eu concordo contigo, querido - disse Zelda. - Mas tenho a certeza
de que ela não quer casar com ele de todo.
Clara chegou em busca do café e, fechando a porta atrás de si,
encostou-se a ela e comentou num tom dramático:
- Mas que final de jantar!
- O que se passa ali?
- A Tottie e o River têm outra vez a Sybil entre eles no sofá, para
que o terrível Piers não se possa aproximar dela, e o Henry deu-lhe
uma grande bebida para o manter sossegado. Agora o Rollo está a falar
ao Henry da sua revista de poesia. Assim que tivermos tomado café, vou
livrar-me do contingente da pensão, mas é claro que não queremos
livrar-nos de ti, Mark.
- Eu gostaria de me livrar do Piers permanentemente! - exclamou ele,
irritadíssimo. - Não imagino que raio andará a passar pela cabeça da
minha mãe.
- Bem, quanto a isso, tenciono ter uma pequena conversa com ela depois
do Natal, porque é certo que ele parece ter uma influência nociva sobre
ela. Mas não te preocupes, porque a Sybil não quer casar com ele. Vamos
ter de passar a tal conversa com ela para amanhã de manhã, para chegarmos
ao fundo de tudo isto.
Eu esperava sinceramente que a conversa não abordasse também a questão
de Sybil ter tentado ou não atirar-me da ribanceira. Realmente, achava
eu, o melhor era esquecê-lo e decerto não queria que o pobre Mark ficasse
a saber disso.
- Tenho a certeza de que tu e a Zelda vão ser muito felizes, Mark -
disse Clara. - E a Flora parece-me mesmo à medida do Rollo, não lhe
parece, Meg?
- Sim, há de transformar-se num clone da mãe dele e, entre as duas,
darão conta dele.
Zelda levantou-se.
- Vá, vamos levar o café e representar a última cena, para depois
podermos todos relaxar.
O som desejado do carro de Flora a afastar-se era música para os nossos
ouvidos. As nossas despedidas tinham sido entusiásticas.
- Graças a Deus foram embora - disse Clara, recostando-se junto à
lareira com um suspiro de satisfação.
Sybil tinha desaparecido para o seu quarto, na confusão da partida.
No entanto, Tottie dissera-nos que ela estava bem e que desceria mais
tarde.
- Mas não é possível que queira casar com aquele homem.
- Não, é claro que não quer. Ele só pode estar a ameaçá-la com alguma
coisa, mas descobriremos do que se trata amanhã de manhã, antes da
festa. Não quero perturbá-la mais hoje.
- Então venho cedo - disse Mark.
- A sério, querido, mal vale a pena que voltes para Underhill - respondeu
Clara. - Bem podias ter vindo para cá quando a Sybil veio.
- Eu sei, mas não tinha contado apaixonar-me pela Zelda quando
combinámos como seria o Natal - disse ele, com o sobrolho a perder o
franzido, substituído por um sorriso atraente.
- Ajudei-te imenso a tirar o papel de parede, por isso não te atrasei
as remodelações - comentou Zelda.
- Eu não gosto do Piers - anunciou Teddy, levantando a cabeça do seu
castelo. As torres tinham luzes mínimas lá dentro e um dos dragões
estava na mais alta.
- Tens muito bom gosto - disse Lex.
O telefone fixo tocou: era Radnor Vane, que queria desejar um feliz
Natal a Teddy. Teddy agradeceu-lhe os presentes e disse-lhe, com a
franqueza da infância, que gostava muito mais das coisas novas do que
das pantufas de Rato Mickey.
Depois daquele telefonema, Teddy ficou calado durante algum tempo em
que deverá ter estado a pensar, pois de súbito perguntou se teria de
viver em Underhill, caso a mãe casasse com Mark.
O seu tom deixava bem claro que a ideia não lhe agradava. Zelda,
ligeiramente espantada, disse que ela e Mark andariam tão atarefados
a criar e gerir o negócio que, pelo menos no futuro mais próximo, ele
deveria continuar na Casa Vermelha.
- Imagino que acabes por ter um quarto lá, bem como um aqui, e possas
dividir o teu tempo entre um e outro - sugeriu Henry, ao que Teddy se
animou.
Mark foi-se embora depois de termos feito uma ceia simples de tostas
com queijo fundido, seguidas de doce ou bolo de Natal. Quanto a Den,
havia muito que regressara ao seu apartamento e à sua televisão para
um descanso bem merecido.
Por essa hora, Teddy já estava distintamente a cabecear e não protestou
minimamente quanto a ir para a cama mais cedo, desde que pudesse levar
alguns dos presentes de que mais gostara para o piso de cima.
Eu fui para o estúdio para enviar um email a Fliss e desejar-lhe um
feliz Natal, dando-lhe em seguida a notícia dos dois noivados,
sobretudo o incrivelmente veloz de Rollo e Flora. Ela respondeu de
imediato:
Ainda há um herói romântico nesta comédia romântica, e todos sabemos
quem é!
E eu nem lhe tinha falado de Pansy ou dos beijos...
Quando voltei para junto dos outros, percebi que a mente de Henry
deveria ter andado por caminhos semelhantes, já que anunciou
repentinamente, canalizando Orgulho e Preconceito:
- Vou retirar-me para o meu escritório, mas caso algum homem queira
pedir a mão de Meg em casamento, fico inteiramente ao dispor.
- Acho que vai poder ir sem interrupções - disse eu, ao que dei pelo
olhar de Lex fixo em mim e corei, esperando que ninguém, incluindo ele,
tivesse reparado.
A caminho do meu quarto, passei por Clara no patamar; ela tinha acabado
de ir espreitar Teddy e agradeci-lhe por um Natal maravilhoso, por todos
os presentes e pela meia.
- Espero que tenhamos muitos mais assim, porque agora faz parte da
família, Meg - disse ela -, mesmo que tenhamos de a partilhar com a
sua família da Quinta.
- Se falar com a Sybil de manhã, não vai referir o que aconteceu no
Solstício, pois não? - perguntei, ansiosa.
- Sou capaz, se isso me ajudar a chegar à raiz do que se passa com ela
- respondeu-me. - É preciso desatar os nós desta comédia de enganos
shakespeariana, e quanto mais cedo, melhor! - Depois sobressaltou-me
ao dizer-me num tom cálido: - Estou tão contente por a Meg e o Lex se
terem tornado tão bons amigos! Compreendo que devia haver algum
mal-entendido no passado e que finalmente o aclararam. Há anos que não
o via tão como era antigamente. Um grande bem-haja por isso, Meg.
Dei por mim a corar de novo, mas, por sorte, as luzes do patamar eram
bastante fracas. Tinha a minha mala bordada ao ombro e, de repente,
algo me fez lembrar da carta que Flower me dera para entregar a Clara.
Remexi no fundo da mala, por baixo do iPad, um caderno e uma dúzia de
outras coisas mais, e, com um ar apologético, apresentei-lhe um
envelope ainda mais amarrotado.
- Peço desculpa, tinha-me esquecido disto por completo! Foi para a
Preciousss por engano, com a correspondência deles, e a Flower deu-mo
para o trazer.
- Oh, não se preocupe. Estou a ver que vem da América, deve ser uma
daquelas petições que circulam pelo mundo inteiro, enviado por algum
antigo conhecido, pois hoje em dia parece que nada de importante chega
pelo correio.
Deu-me um beijo na face.
- Boa noite, querida Meg: estamos mesmo satisfeitos por ser uma Doome!
39
Uma Questão Familiar
Nenhum de nós se levantou cedo na manhã seguinte, à exceção de Clara,
que emergiu do seu escritório para tomar o pequeno-almoço connosco e
parecia encontrar-se num estado de espírito invulgarmente silencioso
e pensativo.
Assim que acabámos, disse que queria que todos fôssemos para a sala
de estar para uma grande reunião familiar e que Mark chegaria a qualquer
momento para se juntar a nós.
Aquilo não parecia nada a conversa discreta que ela propusera ter com
Sybil, e perguntava-me o que seria que ia acontecer. Iria trazer à baila
a minha queda e as nossas suspeitas quanto a ter sido Sybil a responsável
por isso?
- Quero que estejam todos presentes, se bem que, Den, se não se importa,
será que pode ficar aqui com o Teddy e depois pomo-lo ao corrente?
- Por mim tudo bem. Tenho de deixar a comida pronta p’á maldita festa,
não? E preciso d’ajuda do Teddy.
Teddy, que parecera prestes a protestar, conformou-se.
- Ainda faltam umas horas até os primeiros convidados chegarem - disse
Henry. - Tempo de sobra.
- Isto é tudo muito misterioso - disse Sybil, com um ar nervoso.
- É melhor eu ficar também aqui na cozinha - sugeriu River.
- Não, River, acho que podemos precisar de si - contrapôs Clara, e ele
seguiu obedientemente o resto das pessoas para a sala de estar.
«Família» parecia ser um termo tão infinitamente flexível para os Doome
como era na Quinta.
Olhei para Lex enquanto entrávamos e ele dirigiu-me um sorriso
tranquilizador, que me fez sentir um pouco melhor.
Mark tinha acabado de chegar e ele e Zelda empoleiraram-se no banco
da janela, enquanto os restantes nos distribuíamos pelos sofás e
cadeiras em frente à lareira, que tinha lenha, mas ainda não fora acesa.
Discretamente, River optou por um lugar um pouco mais distante.
- Aqui estamos, e provavelmente todos estarão a perguntar-se de que
se trata isto - começou Clara. - Eu e o Henry recebemos uma notícia
inesperada, que vem dar uma nova perspetiva a algumas das coisas que
têm acontecido ultimamente.
- Sim, de facto - corroborou ele. - Íamos ter uma pequena conversa
contigo hoje de manhã, Sybil, fosse como fosse, mas esta notícia
esclareceu tudo por completo.
Sybil sobressaltou-se muito e olhou em redor, com um ar aflito.
- Comigo?
- Sim, querida - disse Clara -, pois percebemos, mesmo antes de o Piers
ontem à noite ter anunciado o vosso noivado, que ele detinha algum
controlo sobre ti. E dado que, apesar de receberes uma anuidade
generosa, andavas sempre falida, juntámos dois mais dois e deu-nos
chantagem.
- Mas, até ontem à noite, não sabíamos o que ele saberia para te
chantagear - disse Henry, que então acrescentou delicadamente,
enquanto ela permanecia paralisada: - Já conhecemos toda a verdade,
Sybil.
- Queres dizer que o Piers te chantageava, mãe? - exigiu Mark saber,
pondo-se de pé de um pulo.
- Oh, não, de todo... quero dizer, não era... - gaguejou Sybil
incoerentemente.
Tottie disse-lhe num tom apaziguador:
- Está tudo bem, Syb.
- Mark, por favor, senta-te e escuta apenas por agora - disse-lhe Clara.
- Tudo será revelado, conforme se diz.
Mark cedeu, com um ar zangadíssimo.
- Ontem à noite, a Meg deu-me uma carta que se tinha misturado com a
correspondência para a Preciousss, e de que ela depois se esquecera
até então.
Lex, que estava sentado numa cadeira mesmo atrás de mim, inclinou-se
para a frente e sussurrou-me ao ouvido:
- Sabes de que se trata?
Abanei a cabeça. Ele não tornou a recostar-se, ficando debruçado com
um braço no espaldar da minha cadeira, e eu estava muito ciente da sua
presença.
- O envelope continha uma carta que me fora escrita pela Nessa Cassidy
e encontrada entre os papéis dela pela sua amante depois de ela ter
morrido precocemente num acidente de viação.
- Estava assinalada para ser enviada à Clara se algo lhe acontecesse
- continuou Henry. - Mas, por vários motivos, nunca foi, até agora.
- E chegou mesmo no momento certo - comentou Clara.
- Bem, agora já estamos todos mortinhos por saber que revelação
espantosa continha essa carta - exclamou Lex. - Desembuchem!
- Em termos bastante simples, declarava que ela tinha casado com o irmão
do Henry, o George, no final do primeiro semestre de mil novecentos
e cinquenta e nove.
- Ele... casou com a tal Nessa? - perguntou Mark, atónito, e senti a
minha própria mente a dar voltas e mais voltas como uma máquina de jogo,
até parar com um baque ressoante e mais do que um par de limões.
- Sim. Achava que podia deitar a mão à herança substancial da Nessa
quando se casassem, e ela era uma rapariga muito romântica e tola. Nessa
altura, depois do casamento, ele descobriu que não podia tocar no
capital dela até que ela fizesse trinta anos, e ela descobriu que se
enganara no seu interesse por aquele homem. Ou, de facto, por qualquer
homem. Tiveram uma discussão furiosa e concordaram separar-se e
esquecer que o casamento alguma vez tivera lugar.
- Só que, como na realidade tinha, isso fez com que o casamento
subsequente, com a mãe da Sybil, fosse bígamo - concluiu Henry.
Aquela era uma reviravolta com que nem eu nem ninguém contava, à exceção
de Sybil, cujo rosto revelava outra história.
No silêncio atónito, Henry disse:
- O George tinha mentido acerca de a Nessa ser maior de idade e de outros
pormenores na licença de casamento, e disse-lhe que isso o tornava
ilegal.
- Só lhe ocorreu mais tarde perguntar-se se teria sido legal ou não
- declarou Clara. - Claro que fora, como tenho a certeza de que o George
se dava conta, mas esperava que ninguém viesse a descobri-lo. E ele
nunca soube da bebé da Nessa.
- Isso é tudo verdade! - carpiu Sybil de repente. - Encontrei a certidão
entre os papéis do paizinho depois de ele ter morrido, se bem que uma
coisa que ele disse, já perto do fim, me tivesse deixado a pensar...
- Mas o Piers sabia? - perguntou Lex.
Ela assentiu com a cabeça.
- Ele assistiu ao casamento e foi para o apartamento da irmã dele que
eles foram depois. E então, quando o paizinho morreu, o Piers disse-me
que sabia, mas que tinha guardado segredo para me proteger e ao Mark.
- E depois passou a chantagear-te - disse Tottie. - Que velhaco!
Aquele termo antiquado parecia descrever Piers na perfeição: um velho
que sempre fora desprezível.
- O Piers não o apresentou assim. Era mais uma questão de ajudar o antigo
amigo do paizinho, convidando-o a passar temporadas lá em casa e...
- Permitindo que lhe extorquisse quantias cada vez maiores? - sugeriu
Lex, num tom desalentado.
- Que horrível para si, Sybil - disse Zelda, compadecida. Acho que não
tinha percebido bem as implicações daquilo, mas eu já começara a vê-las,
e o rosto de Mark indicava que ele também.
- Quando a Meg apareceu e percebemos quem ela era (ainda que, claro,
julgássemos que a mãe dela é que era ilegítima), percebeste que isso
daria ao Piers um motivo ainda maior para a sua chantagem - disse Clara.
Já corriam lágrimas pelo rosto de Sybil, que retorcia as mãos.
- Sim, porque a Meg passou a ser uma ameaça enorme à herança do Mark!
Como a mãe dela tinha desaparecido há anos e eu achava que o mais
provável era que tivesse morrido, só restava a Meg. E então,
ocorreu-me...
Deteve-se abruptamente e fez aquela coisa de retorcer as mãos outra
vez, fitando-me com uns olhos azuis arregalados e angustiados. Olhos
de Doome.
- Sim, sabemos o que te ocorreu, Sybil - disse Clara. - Que seria melhor
se te livrasses da Meg. Por isso, tentaste empurrá-la do penhasco da
fogueira, na noite do Solstício.
- Mas de que raio está a falar, Clara? - explodiu Mark. - A minha mãe
nunca...
Parou subitamente quando Sybil se limitou a olhar para cima e perguntar
em voz baixa a Clara:
- Como é que souberam?
- Eu tinha a certeza de que alguém me empurrara - expliquei. - Mas não
fazia ideia de quem pudesse ter sido. Então, na outra noite, a Sybil
voltou a usar aquele perfume muito distintivo e eu depois apercebi-me
de que não era à Congregação que o associara, mas sim ao momento em
que tentou matar-me.
- Queres dizer que tentaste mesmo empurrar a Meg da colina abaixo, mãe?
- exigiu Mark saber, incrédulo e a ficar pálido.
- Bom, bom, Mark, temos a certeza que foi simplesmente um impulso
momentâneo e de que se arrependeu de imediato - disse Henry num tom
apaziguador.
- Eu achava que estava a proteger-te, querido. Estava confusa e não
sabia para onde me virar - lamentou-se Sybil.
- Devias ter-me contado a verdade assim que encontraste a certidão de
casamento. Assim, nada disto teria acontecido - ripostou-lhe Mark.
- Eu... pois devia. - A voz tremia-lhe e Tottie passou um braço à volta
dos ombros dela.
- Firme, Syb! - disse ela, como se Sybil fosse um cavalo nervoso. Aquilo
pareceu surtir o efeito certo, pois ela endireitou-se.
- Arrependo-me profundamente, Meg. Não queria mesmo fazê-lo, mas algo
desesperado apoderou-se de mim. Deve ter sido um momento de loucura,
pois fiquei completamente horrorizada assim que o fiz.
Mas não, pensei eu, o suficiente para se deter e ver se eu tinha mesmo
caído. O instinto de autoconservação devia ter entrado em ação,
levando-a a apressar-se adiante dos outros, pelo caminho abaixo.
- Só podes ter estado louca, porque teria sido uma ideia muito melhor
tentar matar o Piers - realçou Clara. - Ainda assim, por sorte o Lex
viu a Meg pendurada daquela urze e salvou-a.
- Meu herói - disse-lhe eu, a tentar aligeirar o ambiente.
- Mas eu ao início não acreditei que alguém te tivesse empurrado, Meg
- disse ele. - Parecia tão inconcebível.
Sybil estremeceu e disse:
- Voltei para Underhill, sem saber o que acontecera, e foi um alívio
tão grande quando a vi entrar na Congregação, Meg. E depois pensei que
o Mark parecia seriamente interessado em si e que talvez se casassem,
e assim... bem, isso resolveria tudo.
Mark corou um pouco e Zelda fitou-o com um ar intrigado.
- Eu e o Mark nunca fomos mais do que amigos - declarei.
- Percebo porque é que achaste que um casamento entre a Meg e o Mark
seria a melhor solução - afirmou Henry.
Sybil assentiu com a cabeça.
- Mesmo que o Piers contasse a toda a gente a verdade acerca do casamento
e que a mãe da Meg era a filha legítima, já não faria diferença, pois
não? A Meg ocuparia o seu lugar de pleno direito em Underhill e seria
parte da família.
- E depois eu apareci para passar o Natal e estraguei tudo - atalhou
Zelda.
- Não havia nada para estragar - assegurei-lhe.
- Não é que não queira que o Mark case contigo, querida, mas percebes
que se casasse com a Meg as coisas seriam muito mais simples - disse-lhe
Sybil com sinceridade.
- Bem - interveio Tottie, pensativa -, e agora o que é que acontece?
Será a herdeira legítima a mãe da Meg, caso esteja viva, ou a Meg, caso
não esteja?
- Dado que sou filha de um casamento bígamo, julgo que sim - reconheceu
Sybil.
- Então é possível que Underhill não me pertença, afinal? - disse Mark,
com um ar afligido.
- Não necessariamente - disse Clara. - Quando eu e o Henry falámos ontem
à noite, depois de ter lido a carta da Nessa, ficámos com a impressão
de que depende das condições estabelecidas pelo testamento do George.
- Mas eu não quero reclamar Underhill, nem qualquer parte da sua
herança, Mark! - exclamei. - E a minha mãe também não há de querer.
- Ainda bem - disse Henry -, porque o testamento do George foi redigido
com o maior dos cuidados; lembro-me de ter pensado nisso na altura:
ele nomeou exatamente quem iria herdar. E Underhill não era uma
propriedade estritamente vinculada a herdeiros em linha direta, pelo
que ele podia deixá-la a quem quisesse. Acho que a Meg ou a mãe
provavelmente poderiam reclamar parte do dinheiro se fossem a tribunal,
mas tenho a certeza de que não chegará a tanto.
- Não, claro que não - declarei. - Na verdade, quando a minha mãe voltar
e eu lhe explicar tudo isto, ela mal vai conseguir assimilar os factos.
Ela só vive no momento e toda esta história pertence ao passado.
- Mas o que vamos fazer? - perguntou Mark.
- Mantê-lo na família - repliquei com firmeza - e prosseguir como se
o casamento equivocado entre o George e a Nessa nunca tivesse ocorrido.
- Parece-me o único caminho sensato a seguir - concordou River, falando
pela primeira vez. - Nada precisa de mudar: a Meg já se tornou parte
da vossa família.
- Eu e a Clara também achámos que essa era a solução mais fácil - disse
Henry. - E o Mark não precisa de pensar que não tem direito à
propriedade, já que o seu avô, muito obviamente, pretendia que ele a
herdasse.
- Mas o Piers pode contar às pessoas, por ressentimento - lembrou
Tottie.
- Duvido. Por um lado, há a questão da chantagem - contrapôs Henry.
- E a quem haveria de dizer? Duvido que lhe restem verdadeiros amigos,
e nenhum conhecido de passagem do seu clube vai ligar às suas histórias.
Pelo menos, não a ponto de ir investigar no cartório, seja como for.
- E como podemos resolver a questão em família, mais ninguém tem nada
a ver com isso - concordou Clara.
- Continua a não me parecer justo que... - começou Mark, com um ar pálido
e teimoso.
- Pensa só em todas as famílias nobres e complicadas, que deixavam
propriedade aos filhos ilegítimos, tanto como aos legítimos - disse-lhe
Henry.
- E talvez a Meg venha a casar com alguém da família, seja como for
- disse Zelda num tom animado. - O que te parece, Lex?
- Então, Zelda, não te metas com o teu irmão - disse Clara
distraidamente, enquanto eu ficava vermelhíssima, submetida ao
escrutínio de vários pares de olhos. - Agora temos de decidir como vamos
lidar com as coisas na festa... ou com o Piers. A esta hora, já não
podemos propriamente impedi-lo de vir.
- E eu não posso bater-lhe, porque é demasiado velho - afirmou Mark,
com um dos seus esgares sombrios.
- É melhor deixarem isso comigo - sugeriu Henry. - Eu afasto-o para
ter uma conversa serena com ele, após a qual ele deixará de ser bem-vindo
nesta casa, nem deverá contactar qualquer membro da minha família.
Sybil estava com o tipo de expressão que se vê nos rostos de pessoas
a serem lançadas numa montanha-russa, embora com um laivo de esperança.
- Pronto - concluiu Clara. - Isto foi mesmo como o desenlace de um livro
de Poirot, não foi? Sentimo-nos todos melhor depois da catarse
completa?
- Eu sinto que devia enfiar-me num buraco e nunca mais sair de lá -
disse a pobre Sybil. - Não sei como poderei voltar a encarar qualquer
um de vocês de frente, sobretudo a Meg.
Dei por mim a afiançar-lhe que tudo estava esquecido e perdoado e que,
na verdade, não guardava qualquer rancor quanto a ela ter tentado
matar-me...
River passou para o lado dela no sofá.
- A Meg tem toda a razão: a Sybil estava temporariamente desequilibrada,
por todo o stresse do fardo que carregava sozinha. Devia estar bastante
exausta.
E depois sugeriu-lhe que, quando regressasse à Quinta, ela o
acompanhasse para fazer uma visita breve.
- Uma mudança de cenário vai fazer-lhe bem, e será muito bem recebida
- acrescentou.
- Boa ideia - apoiou Tottie, do outro lado de Sybil.
- Espero que também nos visite na primavera, Tottie - disse River. -
Talvez nessa altura possa vir com a Sybil.
- Que agradável que é já não haver mistérios e mal-entendidos - disse
Clara alegremente com um dos seus sorrisos mais rasgados, à Gato de
Cheshire. - Agora podemos simplesmente voltar a desfrutar do Natal!
A hora da festa do dia a seguir ao Natal aproximava-se e Den e Teddy
já tinham as preparações bem avançadas: a longa mesa no átrio fora
coberta por um pano branco e estava cheia de copos, jarros de sumo de
laranja e garrafas de champanhe de flor de sabugueiro, dentro de um
balde galvanizado cheio de gelo.
A mesa de abas da sala de estar teria os guardanapos de papel, os pratos
e as travessas de petiscos frios, e Den assegurou-nos que os quentes
já estavam a postos para ir para o forno, quando todos tivessem chegado.
- O Teddy é o empregado; vai ajudar a levar as coisas.
Restava apenas tempo para nos arranjarmos, tentarmos regressar a um
estado de espírito normal e assumirmos uma expressão adequada antes
de os primeiros convidados terem chegado.
Às onze e quinze, as divisões estavam bastante cheias. Devia ser ainda
mais gente do que aquando da Congregação. O acesso e as bermas nevadas
da estrada estavam cheios de veículos, desde tratores a Land Rovers
e o velho camião que pertencia ao marido de Olive Adcock.
Estavam ali todos os agricultores do vale e as suas famílias, uma
mancheia de residentes idosos da aldeia que eu nunca tinha visto, Bilbo,
Flower e a bebé, Len Snowball e os Gidney...
Não vi Flora e a sua comitiva chegar e andava a passar os «volley-vaunts»
quentes de Den pelos convidados no átrio quando Lex me disse que Rollo,
impelido por Flora, estava na sala de estar a dar graxa a Henry e a
fazer aquilo a que chamava um ato de «génio poético jovem
incompreendido».
- Sei qual é, mas ele está um bocado velho para representar esse papel
- disse eu. - Onde está o Piers?
- Estava a tentar chegar à Sybil, mas o Henry levou-o para o escritório
e, quando saíram, o Piers até parecia maldisposto. Acho que foi procurar
um canto escuro em que possa esconder-se até ser hora de ir embora.
Passado algum tempo, Henry pediu a todos que se reunissem. Os que não
cabiam na sala de estar amontoaram-se junto à porta aberta enquanto
ele brindava ao Natal e a velhos amigos, o que pareceu marcar o final
oficial da festa, pois as pessoas começaram a partir.
Clara tinha estado a levar grupos de convidados ao estúdio, para
admirarem os retratos, e acabou por ser aí que Lex me encontrou, a
contemplar o seu quadro.
- Achei que eras capaz de estar aqui. Já te fartaste de pessoas? -
perguntou, ansioso. - Tem sido um dia tão intenso e ainda nem chegámos
a meio!
- Estou bem, ainda que não saiba se já assimilei tudo realmente. Mas
espero ter deixado o Mark descansado, para que tudo prossiga tal como
era antes.
- Eu acho que a Zelda o levou para a biblioteca e o fez ver a razão.
- Lançou um olhar de apreciação crítica ao seu retrato. - Não há dúvida
de que me capturaste... e podíamos fazer uma sessão longa amanhã, se
quiseres?
- Ótimo - disse eu, animando-me. - Detestei parar mesmo que só por um
dia, mas até agora não houve um momento propício e sinto-me
completamente acabada e exausta. Acho que devia ir ajudar a arrumar
as coisas.
- Não, a Sybil está a expiar os seus pecados num frenesim de solicitude,
com o River e a Tottie.
Alguém devia ter soltado Pansy da sua prisão na cozinha, pois, nesse
instante, ela empurrou a porta com o nariz e correu para dentro do
estúdio. Peguei-a ao colo, tranquilizada e reconfortada pelo seu
pequeno corpo quente nos meus braços.
Lex agarrou-me pelos ombros e fitou-me muito seriamente por cima da
cabeça dela.
- Tens a certeza de que estás bem? Não te importas realmente de não
reclamar qualquer parte de Underhill, ou o teu verdadeiro lugar na
família?
- Sim, completamente - garanti-lhe. - Gostaria que todos esquecêssemos
que essa certidão de casamento alguma vez existiu. Não passou de um
erro, afinal.
- És uma pessoa muito doce e bondosa, Meg Harkness - disse ele e, depois
de me dar um beijo ao de leve, soltou-me e saiu do estúdio.
Subi para o meu quarto sem ver mais ninguém e adormeci na cama com Pansy,
a melhor das mantinhas de segurança.
Quando acordei, sentia-me muito melhor: era como se o passado de que
me tinham falado não passasse de uma peça a que eu tivesse assistido,
sem ter o que quer que fosse que ver comigo. O pano caíra e agora
poderíamos avançar com as nossas vidas... onde quer que estas nos
levassem.
A minha, esperava eu, seria num pequeno chalé algures, e só veria Lex
quando visitasse a Casa Vermelha: não era provável que Clara me deixasse
escapar à órbita da família, agora que me encontrara.
Senti que tinha fome e quando desci encontrei todos, à exceção de Zelda
e Mark, na sala de estar, a tomar chá e a consumir os canapés que tinham
sobrado.
- Ah, aí está, querida - disse Clara. - O Lex, o Henry e o Teddy levaram
a Wisty e a Lass a dar uma corridinha, ainda que escurecesse, mas
calculámos que a Pansy deveria estar consigo.
- Estávamos as duas a dormir - disse eu, pegando numa chávena e
servindo-me de uma tartelete de queijo e tomate e de uma Eggwina.
- O degelo está a começar em força - comentou Henry. - Tenho a certeza
de que amanhã a estrada para Thorstane já vai estar desimpedida.
- Mas não vais embora já, pois não? - perguntou-me Teddy, com uma
preocupação que me deixou lisonjeada.
- Não, primeiro tenho de acabar o retrato do Lex.
- E, seja como for, não há pressa - disse Lex, indo sentar-se a meu
lado no sofá.
- A Zelda foi para Underhill com o Mark. Achou que era boa ideia não
o deixar sozinho esta noite, já que tudo isto foi um choque para ele.
É muito querida - disse Sybil. - Diz que o Mark desistiu da ideia de
fazer um hotel e que estão a redecorar o meu quarto para quando eu
voltar.
Se, como parecia provável, Zelda ia passar a noite em Underhill,
esperava que ela gostasse de presunto...
- O Piers há de fugir para Londres o mais depressa que possa - indicou
Henry. - Não sabia onde havia de se enfiar quando lhe disse que sabíamos
o que ele tinha andado a fazer e o ameacei que informaria a Polícia
caso ele tornasse a incomodar qualquer um de nós.
Aquilo ainda não tinha acabado realmente, mas havia uma sensação de
um percurso empreendido e realizado com sucesso.
- Adoro festas, mas é tão agradável sermos só nós outra vez! - O olhar
feliz de Clara abarcou toda a família, passando por um pagão, uma
assassina potencial e Den, que estava a comer três palitos de queijo
ao mesmo tempo, enquanto ajudava Teddy a construir um triceratops
tridimensional com peças de madeira com ranhuras.
- Acho que vou trabalhar um pouco mais nas minhas memórias antes do
jantar - acrescentou.
- E eu - disse Henry num tom resoluto -, vou carregar na tecla que diz
«Enviar» e mandar o meu livro ao meu agente, como uma espécie de presente
de Natal ligeiramente atrasado.
A vida na Casa Vermelha começava a regressar ao seu padrão familiar.
Mais tarde, Lex ajudou Teddy a montar o seu cavalete no estúdio, onde
ele dispôs as suas tintas novas e embarcou no seu primeiro retrato em
tela. Fui eu a modelo no estrado desta vez, o que era uma novidade.
Lex deixou-se ficar, sentando-se num dos cadeirões surrados, e observou
o processo, com Pansy enroscada ao seu colo.
Teddy parecia ser um pintor ainda mais rápido do que eu e tinha acabado
de me dizer que já estava quando ouvi o telefone tocar e depois a voz
de Clara no escritório adjacente ao estúdio, pelo que deveria ter
atendido. Depois, passados uns momentos, enquanto eu admirava a minha
imagem (cabelo muito cor-de-rosa, rosto ligeiramente esverdeado),
tornou a tocar e, desta feita, ela foi buscar-me.
- Meg, é um telefonema para si. Atenda no meu escritório.
- Para mim? - perguntei, seguindo-a. - Devo ter deixado o telemóvel
desligado outra vez e o Oshan ou alguém da Quinta andará a tentar
apanhar-me. Espero que nada tenha acontecido.
- Tenho a certeza de que não, caso contrário quereriam falar com o River
- disse ela. - Está aí o telefone, em cima da secretária.
- Oshan? - perguntei, ao atender.
- És tu, Meg? - disse uma voz ténue e distante que reconheci de imediato
e que definitivamente não era de Oshan.
- Mãe? - exclamei com incredulidade e, pelo canto do olho, vi a porta
fechar-se atrás de Clara.
Clara
No final do dia de Natal, recebi uma carta da América, remetida pela
antiga amante de Nessa, Suzanne Dell, que viria a lançar nova luz sobre
acontecimentos passados.
Ela encontrara, entre os papéis de Nessa, um envelope que deveria ser-me
enviado na eventualidade da sua morte. É claro que ela não fora capaz
de resistir a abri-lo e depois, instigada pelos ciúmes causados pelo
primeiro parágrafo, suprimiu-a. Mas agora, quando ela própria já só
tem semanas de vida, enviou-a finalmente. Vou transcrevê-la aqui na
íntegra.
Querida Clara
Se receberes isto, estarei morta, embora espero que tu continues
saudável, robusta e a desfrutar da vida como sempre. Provavelmente
ficarás horrorizada ao saber que foste o amor da minha vida, algo que
só percebi muito depois do meu terrível erro com o George.
Romper totalmente com o passado foi o melhor que poderia ter feito,
e tenho vivido feliz com a minha companheira, Suzanne Dell, desde que
a conheci na faculdade, depois de me mudar.
Estou a escrever-te esta carta porque há algo que quero partilhar e
tu és a única pessoa com quem sinto que posso fazê-lo.
Leva a tua mente de novo àquele fim de semana em Londres, no qual o
George se aproveitou de mim. Eu contei-te a verdade sobre esse
incidente, só não toda.
Eu era uma idiota ingénua e romântica e tinha-me convencido de que
estávamos apaixonados. Mas, na verdade, eu estava apaixonada pela ideia
do amor e em negação acerca da minha verdadeira sexualidade.
No entanto, assim que chegámos a Londres, ele anunciou que tinha tratado
de tudo para que nos casássemos num cartório nessa manhã! Não me deu
tempo algum para pensar, mas deixou-me estonteada e, antes que eu
percebesse bem o que acontecia, estava a sair de um anódino edifício
vitoriano como Mrs. George Doome.
Todavia, tudo aquilo não passou de um erro horrível, como descobrimos
ao ir para o apartamento. Nada houve de amoroso no que aconteceu
então... que foi um momento de revelação total para mim. A minha
repulsa, juntamente com a descoberta, por parte dele, de que eu não
obteria o controlo do meu capital durante outros dez anos, causou uma
cena terrível.
Ele disse que, fosse como fosse, o nosso casamento não era legal, já
que tinha mentido acerca de várias coisas para obter a licença - para
começar, eu era menor de idade -, pelo que podíamos simplesmente
esquecer que aquilo acontecera. Por mim, era ótimo que assim fosse,
e meti-me num táxi que me levou à casa da minha madrinha. Graças a Deus,
ela tinha saído, pelo que, quando regressou, eu já recuperara o controlo
e podia fingir que nada acontecera... Por dentro, estava simplesmente
entorpecida pelo choque, motivo pelo qual me mantive em negação quanto
à gravidez durante tanto tempo.
Só uns anos depois comecei a perguntar-me se o casamento sempre teria
sido legal e, assim sendo, se o matrimónio subsequente dele não o seria,
mas por essa altura já estava a viver com a Suzanne e isso não me
importava.
Agora deixo a questão nas tuas mãos - e do Henry -, para que decidam
o que fazer quanto a isso, se é que há algo a fazer. O melhor talvez
seja não fazer nada.
Espero que por vezes penses em mim com amabilidade, como eu penso em
ti. Foste um grande apoio para mim quando mais precisei, mesmo que nunca
pudesses corresponder ao meu afeto como eu desejava.
Despeço-me com amor, seja como for.
Nessa Cassidy
40
O Elefante na Sala
Até ouvir a voz da minha mãe, não tinha noção do quanto receara que
ela tivesse morrido. Por um momento, senti a garganta fechar-se e não
consegui falar.
Depois disse-lhe num tom trémulo:
- Onde raio estás, mãe?
- Em Bombaim, claro - respondeu. - O Oshan não te disse? Foi ele que
me deu este número quando liguei para a Quinta.
- Não, ele não me disse. Se calhar quis que fosse surpresa... o que
certamente está a ser. Passaste todo este tempo em Bombaim?
- Oh, não, passei séculos num ashram muito remoto. Acolheram-me depois
de eu ter tido um acidente qualquer e, quando fiquei melhor,
simplesmente não conseguia lembrar-me de quem era.
- Eles não tentaram descobrir?
- Não, mas estava tão feliz lá que nem quis que tentassem.
- Estávamos preocupados. Não fazíamos ideia do que te teria acontecido.
O River até foi à Índia à tua procura.
- Querido River! - exclamou ela. - De certeza que desfrutou da visita,
mesmo sem conseguir encontrar-me.
- Mas já não estás no tal ashram?
- Não, porque outros europeus visitaram o lugar e um deles tinha-me
conhecido há anos numa festa e reconheceu-me... e então lembrei-me de
tudo de repente. - Suspirou. - Fiquei triste por deixar o ashram, mas
senti que já ali passara tempo suficiente, pelo que, quando os meus
novos amigos partiram, fui com eles.
Isso fazia muito mais o estilo da minha mãe do que passar uns anos num
ashram.
- Recuperei a minha bagagem, mas o meu passaporte expirou, portanto,
vou ter de ir à Embaixada. Mas não há pressa.
- Mas vais precisar de um passaporte para voltar, não?
- A seu tempo - concordou ela. - Por sorte, os meus amigos são podres
de ricos e pagaram-me a estada num hotel... e, na verdade, conheci uma
pessoa maravilhosa no bar desse hotel e acho que vou casar com ele.
É um marajá ou um príncipe ou qualquer coisa assim - acrescentou ela.
Segurei o telefone longe de mim e olhei para ele como se ela pudesse
sair por ali, como um génio da lâmpada, mas ainda ouvia a sua voz suave
e sonhadora a palrar sobre o Príncipe Encantado, fosse ele quem fosse.
Eu tinha praticamente a certeza de que o seu verdadeiro nome não era
Querido Fofinho.
Por fim, consegui interromper-lhe aquele catálogo das melhores
caraterísticas dele e dizer-lhe, o mais sucintamente possível, que,
na verdade, os seus pais biológicos tinham sido casados e que o pai,
entretanto falecido, era o irmão do homem que eu fora ali pintar.
- Que maravilhoso! - exclamou ela num tom vago.
Tentei de novo.
- Isso quer dizer que eras sua filha legítima, mãe. Mas depois o teu
pai cometeu bigamia e casou com outra pessoa, e tens uma meia-irmã.
- É simpática?
- Encantadora - disse eu, deixando de parte toda a história de me ter
tentado matar. - E tem um filho, que é meu meio-primo, o Mark. Ele herdou
a propriedade da família, mas, se tu fosses a tribunal, talvez tivesses
direito a parte. Mas eu disse-lhes que não farias isso, pelo que
decidimos esquecer esse primeiro casamento.
- Isso é tudo muito confuso, querida, mas faz como achares melhor. Eu
sou filha da Deusa; isso para mim chega.
Parecia River a falar.
- Não queres vir cá e conhecer a tua nova família?
- Não, ainda que seja bom ter uma irmã... diz-lhe que espero que ela
venha cá visitar-nos um dia. O Fofinho tem um palácio. Tu também devias
vir, Meg - acrescentou com delicadeza. - Não sei se vou voltar tão cedo:
isso aí é demasiado frio, demasiado húmido. Sinto que a minha casa agora
é aqui na Índia.
Sim, pensei eu, provavelmente num palácio luxuoso com criados e
elefantes a servi-los, se tais lugares ainda existiam.
- Há aí elefantes?
- Na Índia há sempre elefantes, querida.
Depois de ela desligar, saí do escritório meio aturdida e fui contra
Lex, no corredor.
E deve ter sido do alívio e do choque, pois atirei os braços à volta
do seu pescoço e desatei a chorar no seu peito largo.
- A minha mãe está viva! - solucei, enquanto ele me abraçava.
- Eu sei. O teu irmão ligou à Clara e avisou-a de que a tua mãe ia
telefonar-te, mas a Clara achou que devia ser surpresa. Como é que ela
está?
Parei de chorar e limpei a cara com um lenço que tirei do bolso, e depois
contei-lhe o que a minha mãe completamente chanfrada tinha dito. À
medida que o fazia, comecei a ver o lado cómico...
- É mesmo típico dela: no momento em que se lembra de quem é, uns amigos
ricos levam-na para um hotel elegante, onde conhece um marajá, que logo
a pede em casamento.
Apercebi-me de que os braços de Lex ainda estavam à minha volta e que
ele me fitava, subitamente sério e intenso.
- Podíamos ir visitá-la... juntos? - sugeriu ele num tom hesitante.
- O que queres dizer? - perguntei estupidamente, a sentir o mundo a
rodopiar à minha volta e a ficar tonta.
Ele virou o meu rosto para cima, para o seu, e beijou-me longa e
demoradamente, deixando-me os joelhos bambos. Não ajudava a dissipar
a sensação de estonteamento, lá isso é que não.
- Acho que sabes o que quero - acabou ele por dizer. - Amo-te e julgo
que tu me amas. Por isso, vamos deixar que o passado nos mantenha
separados ou que nos aproxime?
- Pode aproximar-nos? A memória da Lisa não vai sempre estar presente?
- Sim, mas como ela queria ser recordada: com carinho, como uma memória
feliz, não um fantasma triste.
Olhei para ele e vi que o seu rosto não estava sardónico, nem sério,
nem sequer amável, mas antes cheio de ternura e amor.
Puxei-lhe a cabeça para outro beijo demorado... que acabou por ser
interrompido pela voz de River a exclamar, num tom agradado:
- Que maravilha que as vossas estrelas se tenham alinhado! Que as
bênçãos da Deusa vos acompanhem!
Ao jantar, abrimos mais champanhe de flor de sabugueiro para brindar
ao reaparecimento da minha mãe, mas não a outro noivado, pois Lex e
eu tínhamos decidido que já tinha havido demasiados desses anúncios
ultimamente. Em vez disso, faríamos primeiro uma lua de mel na Índia
e depois um casamento discreto, ou talvez até nos casássemos enquanto
lá estivéssemos.
Clara e Henry pareceram achar que aquela era uma sugestão perfeitamente
razoável.
- Ainda bem que foi um bom ano para a colheita de flores de sabugueiro
- disse Tottie, enchendo os copos. - Caso contrário, por esta altura
já não teríamos com que brindar.
Mais tarde, quando desejei uma boa noite a Lex, ele disse:
- Foi um dia e tanto!
- Bem que podes dizê-lo - concordei por completo. - Meio pesadelo,
meio...
Ele beijou-me antes que eu pudesse acabar a frase.
- Espero estar na boa metade agora, seja ela qual for.
- Sempre - garanti-lhe.
Como um agricultor idoso previra na festa, a temperatura subira
radicalmente durante a noite e acordámos na manhã seguinte ao som de
pingos por todo o lado. A neve ainda cobria tudo, mas estava a afundar-se
rapidamente, como um triste soufflé.
Quando eu e Lex demos por terminada uma longa sessão de pintura, seguida
por um ou dois beijos ligeiramente atrapalhados por uma pequena cadela
ciumenta, saímos e recebemos a notícia de que o trator e o limpa-neves
tinham subido a ladeira... e que, um pouco mais tarde, haviam
regressado, seguidos pela carrinha do correio.
A estrada para Thorstane reabrira, finalmente!
Depois do almoço, Flora telefonou para nos dizer que Piers insistira
em partir assim que soubera que a estrada estava desimpedida e que
pagara a Gil Adcock para que o levasse à estação.
- Ela contou-me que ele armou uma fita de todo o tamanho quando ela
lhe apresentou a conta e que disse que ela lhe cobrava o dobro do seu
clube em Londres. Mas é claro que teve de pagar - disse Clara.
- Eu acho que o Gil também deve cobrar-lhe uma boa maquia, se vai levá-lo
mesmo até à estação - comentou Henry.
- Ele queria que a Flora o levasse, mas ela tinha demasiado receio de
tentar até que a estrada degele mais um pouco, talvez amanhã. Quando
isso acontecer, ela e Rollo planeiam deixar o carro dela no motel e
seguir para Londres no dele, para que ele a apresente à mãe.
- A sério? - espantei-me. - Ela não perde tempo, pois não?
- Não, acho que já encontrou o seu homem e agora não vai tirar-lhe a
vista de cima - concordou Clara.
- Podiam ter levado o Piers para Londres - sugeriu Tottie.
- O Rollo tem um ridículo carro desportivo de dois lugares - disse eu.
- Não podiam levá-lo, nem que quisessem.
Zelda continuava em Underhill e River levou Sybil lá à tarde, para que
ela pudesse fazer as malas para a sua ida à Quinta.
- Contámos ao Mark que a sua mãe telefonou - disse Sybil quando
regressaram. - Estou certa de que isso o deixou descansado e que agora
podemos esquecer todo este sarapatel.
Ali estava uma maneira de o definir.
- E a minha querida? - perguntou-me Sybil. - Que maravilha que a Meg
e o Lex estejam... bem, juntos. Vai ficar aqui mais algum tempo ou também
vem para a Quinta amanhã?
- Oh, vou ficar por cá até acabar o retrato do Lex, pelo menos, e depois
acho que é melhor dizer ao meu senhorio que não vou renovar o
arrendamento do apartamento. Por sorte, expira logo a seguir à minha
exposição, em fevereiro.
- E, depois disso, vamos para a Índia - disse Lex com o sorriso especial
que me transformava os joelhos em gelatina. - Mas tenho de voltar ao
trabalho daqui a uns dias. Vou ficar-me pela olaria, como uma vez
sugeriste!
- Pelo barro - corrigi, mas a sorrir.
Sabia que, a dada altura, teria de me encontrar com Al e Tara, para
criar as fundações da nossa futura relação. Não era coisa pela qual
ansiasse, mas já recebera um pedido abjeto de desculpas pelo telefone,
pelo que estava preparada para perdoar e, se não esquecer, pelo menos
deixar aquela história no passado.
- Vamos ter de fazer planos, para que, depois da tua exposição e da
nossa viagem, possas mudar-te para cá de forma permanente - disse Lex.
- Vamos todos à exposição - declarou Clara.
- E eu vou alugar uma camioneta para o contingente da Quinta - disse
River. - Podemos encontrar-nos todos lá!
Parecia que ia ser a minha exposição individual mais memorável.
- Vai haver muito intercâmbio entre Starstone Edge e a Quinta, nos
próximos anos... que divertido! - exclamou Clara, feliz. - Tudo teve
um desfecho surpreendentemente bom! - Então franziu o sobrolho e
acrescentou: - Oh, mas falta só uma coisa! Henry, receio bem que o Rollo
venha cá a casa lanchar hoje com a Flora, para se despedir. Portou-se
bastante bem na festa, por isso pareceu-me uma maldade não o deixar.
Henry suspirou.
- Devo acabar por deixar que publique um dos meus poemas na sua revista
pavorosa. Mas definitivamente não vou escrever um prefácio para a sua
coletânea de poemas!
- Meg, animou e enriqueceu as nossas vidas! - declarou Clara.
E Lex, sentado ao meu lado, dirigiu-me o seu sorriso de flecha e, com
um laivo da sua antiga personalidade sardónica, comentou:
- É uma caixinha de surpresas.
Epílogo
Noite de Reis
Era a véspera do Dia de Reis e um vento gelado soprava em torno da Casa
Vermelha, causando de vez em quando um leve sussurro de flocos de neve
contra a janela ou uivando, ameaçador, pela chaminé.
As duas cadelas estavam fechadas com Clara no seu escritório, para não
incomodarem; a cocker spaniel, Lass, ressonava suavemente debaixo da
secretária, mas a Dachshund jovem e excitável de Meg, Pansy, ladrava
como louca à ameaça invisível, rodopiando com um pequeno dervixe.
No átrio, a enorme árvore de Natal estava a ser desprovida de ornamentos
e fitas por Lex e Meg, enquanto na sala de estar Henry e Teddy retiravam
cuidadosamente as bolas antigas da árvore artificial na janela
saliente.
Clara ouviu o riso grave de Lex e a voz de Meg a protestar quanto a
qualquer coisa e, como sempre, alegrou-lhe o coração ouvir o sobrinho
feliz de novo.
Zelda, que sempre fora uma criatura impulsiva, já trouxera todas as
suas posses do apartamento que partilhava em Londres, instalando-se
diretamente em Underhill.
Teddy, tranquilizado por poder continuar a viver na Casa Vermelha e,
mesmo assim, passar tempo com a mãe, parecia impressionantemente
impávido quanto àquela mudança, ao passo que a futura sogra de Zelda,
Sybil, acabava de regressar da Underhill, vinda da sua visita à Quinta
de River, parecendo ter perdido dez anos e revivido como uma flor em
água. Clara não sabia se isso se devia ao alívio por a verdade sobre
o passado ter vindo ao de cima e a chantagem ter terminado ou à companhia
de River. Já andava a falar em fazer-lhe outra visita mais prolongada...
Clara estava sentada à sua mesa em forma de U, supostamente à espera
de que a inspiração para o próximo policial a acometesse. Decidira
chamar-lhe Riscado. Invocara a Musa e esperava com confiança que ela
aparecesse a qualquer momento; caso contrário, exigiria saber o que
a impedia.
Ainda faltava uma boa hora antes de ser uma altura decente para almoçar,
mas já lhe chegavam cheiros agradáveis da cozinha.
Tartes de queijo e cebola, essa alternativa reconfortante no inverno
a uma rica sopa, pensava ela, e talvez alguns scones salgados, a
especialidade de Den, para acompanhar o chá, depois...
A comida era um prazer tão grande.
O som da voz doce e ressonante de Henry e o trinado mais agudo do
sobrinho-neto dela, Teddy, soavam mais alto, o que deveria querer dizer
que tinham acabado de retirar as decorações e iam guardar as antigas
bolas nos seus lugares na vasta coleção no escritório de Henry.
Mais tarde, Lex e Den levariam o pinheiro para o exterior e devolveriam
as caixas de decorações a um dos sótãos. Não faltavam zonas esconsas
naquela imponente casa gótica da época vitoriana e até tinham falado
em transformar parte num apartamento para Lex e Meg. O chalé da Antiga
Forja anexada à Terrapotter poderia então ficar para Al e a família,
que já mal cabiam na sua pequena casa arrendada.
Que incrível e maravilhoso era que as emaranhadas interações entre si,
os Doome e Nessa Cassidy, se tivessem por fim entrelaçado num padrão
completo e tão encantador!
E, agora, o tear parecia a postos para dar início a um novo... e a um
novo volume das suas memórias.
Constatava que ainda tinha muito a dizer...
Talvez tivesse sido um erro mencionar aos editores dos seus policiais
que estava a escrever as suas memórias? Eles tinham ficado
surpreendentemente interessados em publicá-las!
Decerto precisariam de ser muito editados antes, para proteger os
culpados. Mas o novo volume poderia começar no presente e ir recuando,
à medida que ela recordava os tempos maravilhosos que passara no
estrangeiro com Henry, a vaguear por áreas remotas e a trabalhar em
campos arqueológicos. Tinha muitas mais histórias para contar.
Abriu um novo ficheiro e começou a digitar:
Segundas Impressões
As Memórias de Clara Mayhem Doome
Volume 2
Prefácio
Receitas
Bolo Pegajoso de Melaço à Moda Antiga
Não me parece que Clara cozinhe lá muito, mas, se lhe apetecesse
fazê-lo, agrada-me pensar que seria exatamente isto que ela prepararia
numa noite fria de inverno. Reanimador, nostálgico e reconfortante,
é a sobremesa perfeita para se fazer naqueles dias entre o Natal e a
véspera de Ano Novo, para convidados, para crianças ou até só para nós.
Sirva com creme ou simples.
Vai precisar...
225 g de manteiga
225 g de açúcar mascavado
1 c. de sopa de melaço
2 ovos grandes
240 ml de leite gordo
450 g de farinha com fermento
4 c. de sopa de xarope dourado
Antes de fazer o que quer que seja, pré-aqueça o forno a 140 º C-160
° C, no caso de um forno ventilado, marca 3 no caso de um forno a gás.
Bata a manteiga, o açúcar e o melaço numa panela grande e leve a lume
médio até os ingredientes se derreterem, mexendo à medida que for
necessário.
Deixe a mistura arrefecer e, entretanto, bata os ovos com o leite.
Quando já não correr o perigo de cozinhar os ovos, junte o ovo batido
com o leite e a farinha à mistura original. Mexa tudo energicamente
inspirada pela vontade férrea de Clara.
Depois de bem combinada, verta a mistura para uma forma de 23 cm de
diâmetro, untada e forrada, e leve ao forno durante 50 minutos. Teste
o bolo inserindo um palito até que saia limpo. Deixe o bolo arrefecer
por uns minutos e depois faça-lhe furinhos com um palito limpo e verta
o xarope dourado por cima. Quando estiver completamente arrefecido,
retire-o da forma e sirva-se da primeira fatia pegajosa.
Kheer Anglo-Indiano de Cardamomo da Mãe de Meg
(Arroz-Doce)
Na eventualidade de a mãe de Meg regressar da Índia, há uma coisa que
decerto traria consigo: esta receita. O kheer é a versão indiana do
arroz-doce e é delicioso. Esta receita inspira-se na receita indiana,
mas usa arroz carolino em vez do mais tradicional arroz basmati, embora
se possa usar qualquer um deles.
Vai precisar...
1 l de leite gordo
1 c. de chá de cardamomo em pó
120 g de arroz carolino (ou basmati, se assim entender)
100 g de açúcar
1 c. de chá de extrato de baunilha
35 g de pistácios sem sal, grosseiramente picados
Noz-moscada, para guarnecer
Numa panela grande, em lume alto, deixe o leite levantar fervura. Junte
o cardamomo e o arroz ao leite a ferver, mexendo constantemente. Baixe
o lume para que a mistura fique apenas a fervilhar e deixe cozer durante
45 a 50 minutos, mexendo de poucos em poucos minutos para impedir que
o arroz se cole ao fundo. O arroz-doce fica pronto quando os bagos de
arroz estiverem suficientemente moles para serem esmagados entre dois
dedos. Junte açúcar, baunilha e dois terços dos pistácios. Mexa e retire
do lume. Sirva quente ou frio, guarnecido com mais pistácios e um pouco
de noz-moscada.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Oliver Mahony, arquivista do Lady Margaret
Hall, pela ajuda preciosa para pesquisar e compreender como era a vida
de uma estudante de Oxford entre o final dos anos 1950 e o início da
década de 1960. (Claro que quaisquer erros ou instâncias de licença
artística serão da minha total responsabilidade.)
Estou grata também ao meu filho, Robin Ashley, pela pesquisa em geral,
pelo apoio tecnológico e por encomendar o jantar quando os prazos se
aproximavam.
E, por fim, um enorme agradecimento à maravilhosa agente que me
acompanha há muitos anos, Judith Murdoch, pelo apoio e encorajamento
constantes.

Fim

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