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Um conto de Natal de José Saramago

História de um muro branco e de uma neve


Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou
sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande
erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma
única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em
adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança
começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não
tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas
autênticas, ambas verdadeiras.
A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol.
Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos
são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue
rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de
lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um
punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem,
ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde
bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas
do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de
conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.
Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo
a tradição, anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no
alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a
Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o
aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas
responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão:
é preciso ter cuidado com as crianças.

A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é
um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase
tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com
uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de
geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e
volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram
ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a
espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos
calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume
hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça
o seu eterno ofício de fabricante de cinzas.
A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns
quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm
nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e
complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-
Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua
mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá
fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem
lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma pausa, dum momento
mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um
dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da
Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha
surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes
regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase
que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta,
separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado,
baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a
cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes,
alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.

Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas,
implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas,
as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e
gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder,
tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o
terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo
quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.

As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de
deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em
silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças,
nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos
que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que
disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que
quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado,
alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume
nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus.
Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da
secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como
se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que
é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é
melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a
invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a
neve, e esta neve é preta. Porquê?

“Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa
do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre
aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim:
“Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou,
assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito
duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.

Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E
eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar,
mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham
encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por
isso.

Este conto foi originalmente escrito em duas crónicas, “Um Natal Há Cem Anos” e “A Neve Preta”,
publicadas no jornal A Capital, no final dos anos 60, e que hoje podem ser lidas no volume “Deste Mundo e
do Outro“.

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