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III.

Afinidades com a diferença

1. União dos opostos

Tillich e Jung, enquanto apologetas da religião, compartilham idéias comuns


relacionadas com o esforço de demonstrar a base natural da experiência religiosa na
vida humana e fundamentar essa experiência na presença e atividade inatas da atividade
imanente divina. Há ainda outras afinidades que, quando examinadas mais detidamente,
acabam sendo diferenças difíceis de superar.

A primeira dessas afinidades é o uso que fazem do antigo princípio da unio


oppositorum. Os dois pensadores entendem o princípio da união dos opostos em seu
sentido mais profundo e abrangente que é a da união da consciência com sua origem ou
matriz. Para Tillich tal união se dá entre a humanidade existencial e sua realidade
essencial no seu fundamento divino [52] . Para Jung, é a união entre o mundo
consciente do ego e sua fonte nas profundezas do psiquismo.

Além desta união mais geral de opostos, os dois pensadores entendem a


reunificação da consciência com sua fonte para unir, mesmo se de forma ambígua, as
divisões ou fragmentos da própria consciência existencial. Tillich elabora essa unidade
da fragmentação existencial por meu de seu entendimento trinitário de Deus. A
Trindade para ele representa a unidade suprema dos opostos em cuja vida as dimensões
de poder, profundidade ou abismo da vida se unem com sua expressão no Logos por
meio do Espírito. À medida que essa vida existencial participa em seu fundamento
trinitário, ela frui, embora parcialmente, a unidade de opostos que a vida divina possui
desde a eternidade. O indivíduo é levado a maiores círculos de participação sem se
perder no processo de sair de si mesmo. A relação do eu com o outro está, para Tillich,
no cerne da moral. A criatividade adquire forma ou expressão que a conduzem para
novas formas mais inclusivas da potencialidade humana que nunca conseguem se
expressar plenamente na vida finita. A busca de formas mais adequadas potencialmente
buscadas é a substância da cultura. Finalmente, a liberdade torna-se mais fiel a seu
próprio destino. Na resolução da oposição entre liberdade e destino, Tillich vê a
liberdade centrada na recuperação do ser essencial em Deus. Para ele aí reside a
substância da religião. Ao reunir tais opostos por meio do Espírito que induz maior
participação na Trindade, Tillich entende que a teleologia do Espírito divino leva o
espírito humano a se unir nos níveis da moral, da cultura e da religião [53] . Não
obstante separações e lutas na existência, a moral, a cultura e a religião unem-se na
sociedade utópica e teônoma de Tillich. Embora essa sociedade teônoma tenha de
permanecer no reino da utopia impossível de se concretizar na sociedade existencial,
Tillich apresenta um quadro atraente do Espírito empenhado em reunir as dimensões
moral, cultural e religiosa do espírito humano no agora fragmentado e além disso na
eternidade que ele chamará de "bemaventurança" [54] .

A união de opostos é também fundamental na psicologia de Jung. À medida que


o eu procura unir os opostos básicos, da consciência com sua origem, deseja a
realização plena dos potenciais do inconsciente na consciência. Como Tillich, Jung
entendeu que esse impulso divino que transcende a consciência nunca se realiza
plenamente nem se anula por completo na humanidade existencial [55] . O problema do
desejo do inconsciente para se conscientizar complica-se quando Jung entende que as
potencialidades mais poderosas do inconsciente, que são os arquétipos, são animadas
pelos conflitos entre os opostos. Segundo Jung, o indivíduo, pela própria natureza de
seu psiquismo, está envolvido na batalha entre o ego e o inconsciente e essa batalha se
torna mais intensa porque os poderes do inconsciente consistem de antinomias vivas.

As oposições básicas do psiquismo arquétipo, segundo Jung, são o masculino e


o feminino, o bem e o mal e o espírito e a matéria. Na apreciação e crítica do mito
cristão Jung acha que a situação histórica na qual nasceu o cristianismo, para compensar
as atrocidades da sociedade de então, exigia uma religião espiritual. Vem daí a
tendência do cristianismo de valorizar o espiritual, o masculino e o bem como epítome
da espiritualidade na pessoa de Cristo [56] . Se tais opções refletiram ou intensificaram
a misoginia cultural da época é questão sem solução porque essa mesma misoginia bem
poderia ter sido um aspecto da compensação cultural. O cristianismo, então,
desvalorizou os elementos opostos a seus valores, o feminino, o mal, na pessoa de
Satanás, e o material enquanto o terreno, o corpo e a criação. Segundo Jung, o único
elemento comum entre o feminino, o demoníaco e a terra era a sua exclusão da
Trindade, símbolo principal do Deus cristão. Infelizmente, essa exclusão criou com o
tempo a patologia unilateral na qual o feminino, o demoníaco e o corpo se uniram em
oposição à tendência cristã de valorizar o masculino, o espiritual e o bem.

Em seu ensaio sobre a Trindade Jung elogia o símbolo e a sabedoria de sua


história conciliar ao descrever o movimento básico da psique entre o inconsciente, que é
o mundo do Pai, o consciente, o do Filho, Logos ou razão discernente, e o Espírito,
poder do eu que une o Pai e o Filho, o inconsciente com o consciente [57] . Sem esses
três elementos a psique ficaria patologizada com o ego imerso no inconsciente ou
separado dele. Mas, em seguida, Jung pergunta pelo quarto elemento que lhe parece
estar faltando aí. O feminino, o mal e a matéria lhe parecem ausentes nessa tríade,
responsável pela criação de tudo. Quem teria criado esses outros elementos que não
podem ser negados? Em favor da divindade e da humanidade que devem reconhecer o
sagrado na totalidade da realidade, Jung conclui que o inconsciente, que fez nascer o
mito cristão, quer agora exceder-se num quarto mito. Nesse mito, o feminino, o
demoníaco e a matéria recuperariam sua divindade num Espírito unitivo capaz de
abraçar e reunir os opostos que o Espírito cristão excluiu.

Esse novo mito honraria o símbolo do andrógino no qual o masculino e o


feminino recuperam a oposição que estava faltando, primeiramente na base intra-
psíquica. Também a oposição entre o espírito e a terra seria superada. Nesse contexto,
Jung sentiu-se impressionado pela doutrina da Assunção que lhe pareceu simbólica não
apenas da restauração da Deusa na trindade cristã mas também da divindade da terra e
do corpo por meio dos quais Deus nasce na consciência humana [58] . A reunião de
Satanás com Cristo espera ainda seu símbolo. Talvez seja este o aspecto mais desafiador
do mito quaternário de Jung. Em certo sentido preliminar, o reconhecimento por Jung
de Cristo e Satanás como a luz e as trevas irmanadas, filhos do mesmo Pai [59] , poderia
diminuir a tendência atual para demonizar e destruir os que não pertencem à mesma
raça, tanto do ponto de vista religioso como étnico e político, separados ou combinados
entre si.

Quando Jung entende que a união dos opostos contém em si elementos


semelhantes ao pensamento de Tillich isso não quer dizer que seus pontos de vista
coincidam, muito embora ambos se tenham inspirado em Jacob Bohème. Segundo
Tillich, as contradições da humanidade resolvem-se por meio de participação na
Trindade na qual todas elas já foram superadas desde a eternidade. Assim, no universo
de Tillich a resolução das oposições que constituem a vida já se efetuou na eternidade
em Deus. Essa resolução pode ser verificada fragmentariamente no tempo à medida que
o ser humano participe no fluxo harmonioso da vida trinitária que só será consumada
além das ambigüidades na eternidade [60] .

Jung não tem assim tanta certeza. Ele não concebe essa força vital na qual as
contradições da vida sejam definitivamente superadas. Ao contrário, vê o inconsciente
como criador da consciência constantemente buscando na criatura expressões mais
plenas e resolução das auto-contradições que nem pode perceber nem resolver por si
mesmo. Se pudéssemos verter essa dialética para a linguagem religiosa, como Jung fez
em seu livro Resposta a Jó seria preciso descrever um Deus inconsciente e em doloroso
conflito para criar a consciência humana como único agente capaz de identificar a
antinomia divina e para resolve-la em si mesma em cooperação com o imperativo
divino e a ele sujeita [61] . Na mitologia mais tarde desenvolvida por Jung, a história,
tanto individual como coletiva, adquire seu sentido mais profundo como se fosse um
papel teatral no qual a colisão dos opostos divinos se resolve na vida humana. Neste
ponto Jung aproxima-se mais do que Tillich de Bohème, cuja experiência mística
percebe Deus e ser humano como mutuamente redentores.

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