Quando começa sua jornada pelo Paraíso, na Divina Comédia, Dante se
sente “transumanar”: consegue fazer e perceber coisas antes impossíveis, como se fosse um deus. Estamos, hoje, acostumados a ouvir o termo “transumanismo”: um projeto de alteração da natureza humana por meios técnicos, com direito a manipulação genética e fusão com as máquinas – uma “evolução controlada” – com intuito de aumentar as capacidades físicas, solucionar doenças e mazelas físicas e atingir, quiçá, a imortalidade. Outro é o transumanismo de Dante (e do cristianismo). A natureza humana não é alterada no processo; é, quando muito, sublimada e coroada; é transcendida sem deformar a própria essência. No Convívio (Tratado IV, XXI, 10), o poeta afirma que “se todas as virtudes [...] combinassem na sua melhor disposição na produção de uma alma, a divindade incidiria tanto sobre ela que seria como outro Deus encarnado”. O homem, contudo, está na condição decaída, perdido na selva escura e necessitado do auxílio divino para não cair na degradação completa – o Inferno. A viagem de Dante, na Divina Comédia, corresponde ao percurso salvífico do homem configurado a Cristo, que veio resgatar a humanidade decaída, e não por acaso ocorre numa Semana Santa: ele desce aos infernos, mas depois volta “a ver as estrelas”. Depois de atravessar o Inferno, Dante deve purificar-se de suas tendências viciosas, subindo pelo caminho estreito do monte. Este é o sentido do Purgatório; “purgar” significa “purificar-se”, e o resultado dessa purificação é a virtude. No fim da subida, de volta ao Paraíso Terrestre, Dante readquire a condição humana primordial, como Adão antes da queda. Trata-se de um caminho ascético muito semelhante a um processo educativo, tal como formulado por um autor que Dante admirava, Ricardo de São Vítor, na obra Benjamim menor, ou a preparação da alma para a contemplação (traduzido no Brasil pela Ecclesiae, 2021). O aperfeiçoamento pressupõe uma estrutura humana bem definida. O homem, para Dante, é um resumo da criação. Compartilha, com as plantas, da vida vegetativa (nutrição, crescimento e reprodução); com os animais, da vida sensitiva, afetiva e locomotiva; mas é o único mortal a possuir a vida racional. Todos os apetites da vida vegetativa e sensitiva devem ser ordenados pela vida racional e direcionados para a realização da felicidade especificamente humana, que é a contemplação da verdade. Como os vícios turvam a inteligência e desviam o homem de suas inclinações mais nobres, a ordenação dos apetites é fundamental para a felicidade. A semelhança divina reside naquilo que o homem tem de mais elevado, no intelecto, que é polido e purificado para espelhar o mais perfeitamente possível o Logos. Ao completar este percurso, o homem está “puro e disposto a subir às estrelas”, pronto para conhecer a verdade, que é o próprio Cristo. Por mais sublime que possa parecer, este não é, ainda, o transumanismo de Dante. Quem busca a sabedoria pode chegar, no máximo, próximo à condição de Adão e Eva antes da queda. Por isso a viagem não para no Paraíso Terrestre: o homem configurado ao Cristo não é apenas restaurado na sua condição inicial, em que foi criado semelhante a Deus. Cristo assume a condição humana e assim promove o homem à condição divina: o prêmio pela queda, a felix culpa, é a divinização no Paraíso, onde se realiza a passagem das Escrituras (nos salmos e no Evangelho): “Sois deuses”. É, no entanto, um transumanismo ao qual o homem não pode chegar pela própria capacidade: por mais que nos esforcemos, não podemos ser deuses. Só Deus, que pôde criar o mundo do nada, é que nos poderia “transumanar”. Ambas as formas de transumanismo estão relacionadas com a imortalidade; ambas buscam uma saída para a adversária mortal da humanidade, a morte, “inimiga das gentes”. Mas o transumanismo da atualidade, embora parta da mesma aspiração ao infinito que arde no coração humano, procura aplacar esta sede em águas mais turvas, incrementando as dimensões mais baixas, aquelas que Dante chama de vegetativa e sensitiva. Cientistas querem potencializar as capacidades do homem introduzindo propriedades de animais, ou da máquina. Pensam em transferir a consciência para uma nuvem de computador, permitindo a sobrevivência à morte corporal. Os Dantes de hoje cantam a epopéia do transumanismo em quadrinhos, desenhos animados e filmes. Há várias décadas a cultura de massa, especialmente a infanto-juvenil, prepara a imaginação das gerações mais jovens para a aceitação do transumanismo. Não é de hoje que os mutantes, o homem-aranha e os vilões que sobrevivem em hologramas povoam as mentes dos jovens. A ciência é instrumento eficaz para a realização de seus sonhos de poder sobre-humano. Afinal, se a própria natureza humana é uma condição provisória, produzida pela evolução casual do cosmos, por que não poderíamos nós mesmos conduzir o aprimoramento da espécie? O conhecimento do Bem e do Mal torna-se irrelevante quando conseguimos determinar como será o homem, de acordo com nosso arbítrio. “Sereis como deuses”: esse é o objetivo declarado do transumanismo, e chega a ser difícil distingui-lo da proposta da serpente a Adão e Eva. O transumanismo de hoje não é senão um câncer, um crescimento deformado e mortalmente perigoso de uma aspiração que não consegue calar no coração do homem, alimentado por uma ciência que não respeita a natureza humana. Que Dante nos auxilie a resgatar uma concepção de ciência que harmonize o homem e o universo, que auxilie o aperfeiçoamento natural do homem sem levá-lo à auto deformação, e que os faça ambos gravitar ao redor do “amor que move o sol e as estrelas”, o único capaz de aplacar a nossa sede de felicidade e imortalidade.