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Freud sempre insistia que a construção teórica, qualquer que seja o campo de
saber, se desenvolve através de um processo de elaboração dos conceitos. E, assim,
considerava que a incompletude teórica não constituiria uma espécie de falha, mas devia
ser considerada a cláusula pétrea da elaboração do saber psicanalítico.
A definição de um fenômeno depende do instrumental teórico disponível, mas
Freud ousou dar importância ao que vivenciava, “às antinomias de sua infância, às suas
perturbações, aos seus sonhos.” (LACAN, 2009, p. 10). Foi nessa via que Freud abriu
sua experiência, e a sua obra é o testemunho de que introduziu algo de uma essência
diferente. “ Do ponto de vista do cientista, Freud pareceu ligar-se então ao pensamento
mais arcaico [...] o que está em jogo é a subjetividade do sujeito, nos seus desejos, na
sua relação com seu meio, com os outros, com a própria vida. ” (LACAN, 2009, p. 10).
Não basta dizer que Freud apareceu num século científico, pois o que ele fez foi um
retorno às fontes, o que nem mereceria o título de ciência. A descoberta freudiana do
inconsciente subverte a razão e aponta algo “que a própria razão desconhece”.
Nesse ponto me pergunto como fazer pesquisa em psicossomática já que seus
limites não são definíveis nem no campo somático nem no psíquico? Seria preciso ousar
como Freud o fez? Não seria o caso de praticarmos “uma psicanálise desavergonhada
diante da ciência”? Como proposto por Elia: “Ali onde o discurso científico não é
suficiente para dar conta de nossa experiência, é a ética que responderia, para dar conta
do sujeito em sua dimensão de puro ato, como sujeito do desejo”. (ELIA, 2011, p.1)
No texto “ O Lugar da Psicanálise na Medicina” (1966), Lacan diz que a
psicanálise tem um lugar marginal na medicina - “extra-territorial”, mas que não é sem
razão que os psicanalistas se encontram nesse lugar e, provavelmente, o queiram
conservar. Por que conservar esse lugar? Não seria possível uma prática que
aproximasse ambos os campos numa espécie de laboratório de pesquisa sobre a questão
do real?
Cabe também à psicanálise participar dessa discussão, propondo um outro olhar
à questão do sofrimento corporal e considerando-o em relação ao desejo e ao gozo do
sujeito.
Nesse sentido, Jorge (2017), em seu livro Fundamentos da psicanálise de Freud
a Lacan, vol.3: a prática analítica, enfatiza que:
[...] a psicanálise opera de modo pontual e se furta às generalizações próprias
ao saber psicológico, que servem para adormecer o sujeito ainda mais e fazê-
lo caminhar sonambúlico nas redes da aliança contemporânea entre ciência e
capitalismo. (JORGE, 2017, p. 11).
Conforme Ribeiro (2004) no texto “O traço que fere o corpo”, está nas
proliferações de demandas de análise feitas por pacientes portadores de fenômenos
psicossomáticos, a evidência de que estão sem lugar, tanto na medicina quanto na
psicanálise. “[...] talvez seja essa, contudo, uma das aberturas por meio das quais a
psicanálise consiga introduzir o efeito de sujeito na reflexão da ciência. ” (RIBEIRO,
2014, p.49).
Por mais diversas que sejam as críticas a Groddeck, assim como o discernimento
que é preciso ter aos “excessos” de suas elaborações, ele nos estimula a transpor
fronteiras e limites ao dizer: “A psicanálise não deve deter-se – e não irá deter-se –
frente às moléstias orgânicas. Ainda veremos até onde chega o seu alcance”.
(GRODDECK, 2011, p. 7).
Ocorre que a realidade é abordada com os aparelhos do gozo, como diz Lacan
(1972-1973), em o Seminário livro 20: mais, ainda. Aparelho quer dizer de linguagem
e, a partir da qual o gozo é limitado. O que fazer então com o gozo, desde que prazer e
gozo são incompatíveis? O princípio do prazer busca a homeostase, por outro lado, no
gozo está implícito tensão e, até dor.
Em seu livro Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da
fantasia, Jorge (2010) diz que podemos situar dois polos da fantasia. No primeiro, o
polo inconsciente, do sujeito barrado, é constituído pela linguagem. No segundo, o polo
pulsional, o objeto “a” se inscreve na fantasia como mais gozar. A fantasia é o que vem
barrar o gozo absoluto e o transforma em gozo fálico, limitado pela linguagem. Assim,
o polo inconsciente pode ser designado de polo simbólico, enquanto que o pulsional é o
polo real da fantasia. “Desse modo, pode-se postular que a fantasia é, em essência, uma
fantasia de desejo de completude, construída em torno de dois polos diversos: o amor e
o gozo”. (JORGE, 2010, p. 82). No entanto falar de um mais gozar é também supor um
gozo Outro, sem limites.