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A FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A

CRENÇA EM DEUS

GORDON H. CLARK
Dr. Gordon H. Clark foi um dos melhores filósofos cristãos do século XX e,
na opinião deste autor, um dos melhores de todos os tempos. Seu Filosofia da
ciência e a crença em Deus é só um exemplo disso. Neste livro, o dr. Clark
nos ensina que a ciência tem seu lugar numa filosofia cristã, um lugar
importante. Mas jamais devemos chegar à conclusão de que a ciência deve
ser entendida como um meio de aprender a verdade. De acordo com o dr.
Clark, e corretamente, a verdade é encontrada na Escritura somente. Se
havemos de pensar biblicamente, que é a única forma como um cristão
deveria pensar, devemos perceber que a Bíblia tem um monopólio da
verdade. É sempre na Palavra de Deus, e somente nela, que devemos
acreditar e não nas experiências dos cientistas.
— Dr. W. Gary Crampton

A ciência merece tanto respeito na nossa sociedade que a maioria dos cristãos
parece pensar que até mesmo Deus deve responder a ela para manter alguma
credibilidade. Quando pregam a budistas, eles não argumentam que a fé cristã
é apenas uma forma mais forte de budismo. Quando confrontam as seitas,
nunca tentam retratar Cristo como o principal líder de seita ou o supremo
satanista. Porém, quando se dirigem a aqueles que confiam na ciência, são
movidos por uma avidez degradante de oferecer a fé cristã como mais
científica do que as suas alternativas. Sem qualquer fundamento, os cristãos
admitem que a ciência descobre a verdade e expõe o erro, e que o próprio
evangelho, portanto, deve passar pelo teste dela para garantir um lugar neste
mundo.
Isso é muito estranho, porque a Escritura nos diz que o homem espiritual
julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém, e
certamente não pelo homem natural. Aguardo que os cientistas pleiteiem
comigo e me convençam de que as suas conclusões são cristãs! A ciência não
é Deus. A ciência não é a verdade. Ela não é uma coisa em si mesma. Não é
algum padrão eterno de verdade pelo qual todas as coisas são julgadas. O que
ela é? A ciência são pessoas. Pessoas conjecturam, escolhem, cometem
equívocos, fazem esquemas de financiamento, revisam suas teorias, inventam
explicações e entram na espiral do completo absurdo. Mas Jesus Cristo é
Deus e a Verdade. Ele é a racionalidade encarnada e não responde a ninguém.
A ciência é que deve responder a ele.
Gordon Clark nos diz o porquê.
— Vincent Cheung

“Este é o livro para confundir quem quer que deposite uma fé e confiança na
ciência.”
— Jay P. Green

“Durante a maior parte da sua história, a ciência moderna tem estado em


guerra com o cristianismo. Este pequeno livro termina as batalhas, pois
demonstra que a ciência não pode argumentar contra a verdade da Escritura,
visto que os métodos da ciência nunca podem provar nada como sendo
verdadeiro. Escrito pelo presidente do Departamento de Filosofia da
Universidade de Butler, este livro pode ser estudado com proveito por
professores, pais e estudantes.”
— John Robbins
Copyright © 2008 de John W. Robbins,
Publicado originalmente em inglês sob o título
The Philosphy of Science and Belief in God
pela The Trinity Foundation.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


EDITORA MONERGISMO
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Telefone: (61) 8116-7481 — Sítio: www.editoramonergismo.com.br

1a edição, 2016

Tradução: Marcelo Herberts


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Felipe Sabino de Araújo

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicação em contrário.
Sumário
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
1. ANTIGUIDADE E MOVIMENTO
2. A CIÊNCIA NEWTONIANA
3. O SÉCULO XX
PÓS-ESCRITO: OS LIMITES E USOS DA CIÊNCIA

PREFÁCIO
Cristãos e não cristãos geralmente creem que a ciência é um corpo crescente
de conhecimento sobre o Universo. O conhecimento científico, de acordo
com essa visão popular, é extraído da natureza com grande dificuldade ―
porque a natureza não entrega facilmente os seus segredos ― por um grupo
de homens e mulheres extremamente inteligentes, altamente educados,
diligentes, imparciais e escrupulosamente honestos.
O progresso da ciência, assim defende essa visão popular, pode ser
visto na sua gloriosa marcha de um triunfo tecnológico para outro. Apenas
um século atrás o voo motorizado alguns metros acima do solo era
considerado algo impossível; em 1969 homens pousaram na Lua e
retornaram à Terra sãos e salvos. Todos os confortos e conveniências do
século XX são produtos da ciência: encanamento residencial, comida
abundante, aquecimento central e ar condicionado, automóveis, televisão,
computadores, viagens aéreas, raios-X e antibióticos ― a lista quase não tem
fim. A ciência, assim parece, tem demonstrado seu valor e sua verdade vez
após vez.
Para aqueles que mantêm essa opinião popular e ingênua da ciência,
o argumento de A Filosofia da Ciência e a Crença em Deus será bastante
surpreendente. De forma justa e cuidadosa, Dr. Clark examina e então refuta
a crença de que a ciência nos fornece verdades. Sua conclusão, note bem, não
é apenas dele, a despeito do que o norte-americano comum ― incluindo
muitos cristãos norte-americanos ― poderia pensar. Mas, ao que parece, as
opiniões de muitos cientistas e filósofos não têm sido tão divulgadas ou
convincentes quanto as invenções científicas do século XX.
Na mente moderna há uma crença profundamente arraigada, não
podendo ser totalmente traçada até John Dewey ou William James, de que o
sucesso é uma prova de verdade. Quem pode discutir com o sucesso? O envio
de homens à Lua não implica que os cientistas sabiam verdades o bastante
para enviá-los até lá? A maior expectativa de vida dos norte-americanos no
século XX não prova que a ciência médica sabe mais verdades sobre nutrição
e cuidados médicos que sabia no século XIX? Se uma coisa funciona, não é
verdadeira?
Acompanhando essa noção popular da ciência como um corpo de
verdades está uma admiração e um respeito generalizados por cientistas
famosos. Albert Einstein é provavelmente o mais famoso e talvez o mais
respeitado cientista do século XX. Mas duvido de que muitos dos seus
admiradores saibam que ele considerava suas próprias teorias como sendo
falsas ― suposições brilhantes, mas não verdadeiras. Na sua biografia de
Einstein, Ronald W. Clark relata uma conversa entre o famoso físico e o Dr.
Chaim Tschernowitz:
Uma contemplação dos princípios primeiros ocupou progressivamente a atenção de
Einstein. Um visitante, Dr. Chaim Tschernowitz, deu um relato vívido de uma viagem
de verão que tivera com ele em Havelsee, durante a qual suas discussões eram
frequentemente metafísicas. “A conversa avançava e recuava, de profundidades sobre
a natureza de Deus, do Universo e do homem a questões de natureza mais leve e
animada…”, escreveu ele. “De repente [Einstein] ergueu sua cabeça, olhou para cima
ao céu claro e disse: ‘Não sabemos nada, de fato, sobre isso tudo. Todo o nosso
conhecimento não passa de um conhecimento de colegiais’.
“‘Você acha’, perguntei, ‘que jamais sondaremos o que está oculto?’
“‘Possivelmente’, disse ele com um movimento de ombros, ‘nós saberemos um
pouco mais do que sabemos agora. Mas a natureza real das coisas, esta nós jamais
saberemos, jamais’”.[1]

Essa visão da ciência, de não fornecer a verdade, tem sido objeto de


longos debates por outros filósofos. Por exemplo, o filósofo britânico Karl
Popper escreveu vários livros sobre filosofia da ciência em que argumenta
que a ciência, ao invés de se consistir num corpo de verdades provadas, como
muitos acreditam, consiste nada mais que de suposições e suposições
refutadas. Escreve Popper:
Em primeiro lugar, embora façamos na ciência o nosso melhor para encontrar a
verdade, estamos cientes do fato de que jamais podemos ter certeza de que a
alcançamos… Nós sabemos que nossas teorias científicas permanecem sempre como
hipóteses… Na ciência não existe “conhecimento” no sentido em que Platão e
Aristóteles entendiam a palavra, no sentido que implica finalidade; na ciência jamais
temos razões suficientes para crer que obtivemos a verdade… Einstein declarou que
sua teoria era falsa ― disse que ela seria uma aproximação maior da verdade do que
a de Newton, mas deu razões por que não a consideraria uma teoria verdadeira ainda
que todas as predições se confirmassem.[2]

Em outro livro, Popper escreveu:


Nossas tentativas de ver e encontrar a verdade não são finais, mas abertas a
aperfeiçoamentos; …nosso conhecimento, nossa doutrina, é conjectura; …consiste de
suposições, hipóteses, em vez de verdades certas e finais.[3]

Para a resposta previsível de que, embora possam não ser


verdadeiras, as teorias científicas são pelo menos altamente prováveis,
Popper (e Gordon Clark) responde: “Pode ser mesmo mostrado que todas as
teorias, incluindo as melhores, têm a mesma probabilidade, a saber, zero”.[4]
Qual a importância disso tudo? Por que é necessário criticar uma
disciplina que tem concedido tantos benefícios óbvios a tantas pessoas e que
é mantida em tão alta conta? Bem, não é tanto a disciplina em si que deve ser
atacada, mas as concepções errôneas e populares a seu respeito. Na
mentalidade popular, a ciência é a principal, se não a única, forma de
descobrir a verdade. Precisamente porque a ciência é mantida em tão alta
conta é que se faz necessário lembrar às pessoas o que ela é. Evangelistas
científicos zelosos como Jacob Bronowski, Julian Huxley, Ernst Haeckel e
Carl Sagan têm proclamado que a ciência é o guia definitivo para a verdade; e
eles têm registrado a história da guerra entre a ciência e o cristianismo. Por
causa dos incansáveis esforços dos evangelistas científicos, “todo mundo
sabe” que Galileu foi martirizado por acreditar que a Terra se move e que
Serveto ― não tivesse sido queimado na estaca por Calvino ― teria
descoberto a circulação sanguínea. Na mentalidade popular, “Foi provado
cientificamente” substituiu a fórmula bíblica “Assim diz o Senhor”.
A Bíblia e a ciência representam autoridades conflitantes, e é o
propósito de A Filosofia da Ciência e a Crença em Deus mostrar que as
crenças populares sobre a ciência são falsas. Fossem os limites e usos
apropriados da ciência compreendidos, não haveria necessidade deste livro.
Porém, como a ciência se tornou um ídolo na mente de muitos, a natureza
dela deve ser minuciosamente discutida.
Um dos problemas da ciência é que, ao contrário da Bíblia, ela é
bastante ilógica. No seu ensaio “Limitações do Método Científico”
[Limitations of Scientific Method], o matemático, lógico e filósofo inglês
Bertrand Russell fez a seguinte observação:
Todos os argumentos indutivos se reduzem em último caso à seguinte forma: “Se isto
é verdade, aquilo é verdade: ora, aquilo é verdade, logo isto é verdade”. Esse
argumento, claro, é formalmente falacioso. Suponha que eu dissesse: “Se pão é uma
pedra e pedras são alimentos, este pão me alimentará; ora, este pão me alimenta; logo
ele é uma pedra e pedras são alimentos”. Se eu promovesse um argumento como esse,
certamente seria taxado de tolo; porém ele não seria fundamentalmente diferente do
argumento no qual todas as leis científicas estão baseadas.

Isso equivale a dizer que todas as leis científicas são baseadas em


argumentos falaciosos.
O cristianismo, é claro, não depende da indução, experimentação,
observação ou da experiência; seu método é a revelação proposicional e a
dedução rigorosa a partir de proposições reveladas, pois é somente através da
revelação que a verdade pode ser obtida.
No século sexto antes de Cristo, o poeta grego Xenófanes de Cólofon
já havia entendido o contraste entre a revelação e a ciência, pois escreveu:
Os deuses não desvendaram, desde o princípio,
tudo para nós; mas com o passar do tempo,
procurando, os homens descobriram o melhor…
Estas coisas, conjecturamos, são análogas à verdade.
Mas quanto à verdade certa, nenhum homem a tem conhecido,
nem virá a conhecê-la; tampouco sobre os deuses,
nem, ainda, acerca de todas as coisas das quais falo.
E mesmo se acontecesse de pronunciar a verdade final,
ele próprio não a conheceria:
pois tudo não passa de uma rede tecida de palpites.

Assim como Xenófanes, afirmamos que à parte da revelação tudo não


passa de uma rede tecida de palpites. Mas ao contrário de Xenófanes, foi-nos
dada uma revelação nos sessenta e seis livros do Antigo e Novo Testamentos.
São essas Escrituras, somente essas Escrituras e não os métodos dos
cientistas, que nos dão a verdade. É na Palavra de Deus que devemos
acreditar, não em nossa própria experiência. Não abandonemos essa Palavra,
como fez Eva no Jardim, só porque a ciência nos parece “agradável ao
paladar, atraente aos olhos e desejável para dela se obter discernimento”. A
ciência é falsa e sempre deverá ser falsa. A Escritura é verdadeira e sempre
deverá ser verdadeira. A questão é tão clara e simples como isso.

— John W. Robbins
INTRODUÇÃO

Vários cientistas e diversos filósofos têm usado conclusões científicas num


ataque contra a religião. Alguns negam a possibilidade de milagres, mas
admitem a existência de Deus; outros são completamente naturalistas e
excluem Deus totalmente.
David Hume, por exemplo, descartou tanto os milagres como Deus.
Ele fez um ataque total aos milagres, comparando o relato neotestamentário
da ressurreição de Cristo a um rumor fantástico de que a Rainha Elizabeth
tinha levantado dos mortos. Hume também não deixou espaço para Deus ao
propor uma cosmologia na qual o Universo, em vez de ser uma criação divina
com uma história finita, era retratado como um eterno vegetal. Mas Hume era
um filósofo, e filósofos que baseiam suas teorias em conclusões científicas
não devem ser ignorados; contudo, para julgá-los adequadamente, é sábio
examinar, antes de qualquer outra coisa, a ciência e os cientistas envolvidos.
As teorias de muitos cientistas apoiam a visão de Hume. Porque a
rejeição dos milagres tem sido tão frequente e disseminada, apenas um
exemplo será citado aqui. Austin Farrer, no seu ataque ao cristianismo
ortodoxo, declara que é cientificamente necessário (itálico seu) recusar-se a
crer que o Sol parou para Josué.[5] A questão mais ampla entre teísmo e
ateísmo, entretanto, é mais importante do que a questão dos milagres; e várias
amostras dadas aqui do que virá mais tarde são antecipações oportunas. A
partir da conclusão alegadamente científica de La Mettrie de que não existe
alma, o Barão d’Holbach inferiu que Deus não existe. Alguns anos mais tarde
Cabanis defendeu a negação da alma ao identificar o pensamento como uma
secreção física do cérebro. O cientista alemão Büchner negou que o
pensamento fosse uma secreção, mas ao identificá-lo como um movimento
do cérebro, insistiu em seu ateísmo ainda mais vigorosamente: “Onde há três
estudantes da natureza, há dois ateus”. Como a ciência havia chegado a essa
posição é uma boa parte da história seguinte.
Os teólogos que respondem a esses ataques estão em desvantagem.
Quando um cientista ou filósofo argumenta contra a religião, não precisa
saber muito sobre religião; mas quando um teólogo discute ciência, precisa
saber bastante. O cientista pode se virar sem saber nada além do fato de que
os cristãos creem que Deus é um espírito incorpóreo; mas do teólogo é
exigido debater sobre espaço, tempo, movimento, energia, eletrodinâmica, o
sistema solar, teoria quântica, relatividade e outros itens diversos.
Há outra coisa que o teólogo deve saber — algo mais importante.
Além de uma seleção de fragmentos específicos de informação, como os
detalhes recém mencionados, o teólogo precisa ter uma visão geral da ciência
como um todo. Ele precisa ter uma filosofia da ciência; isto é, ele precisa
saber o que é ciência. Obviamente ele não poderá comparar, contrastar ou
relacionar religião e ciência a menos que conheça ambas. Isso também vale
para o cientista. Talvez o cientista possa se virar com um conhecimento
mínimo de religião, mas ele certamente deveria saber o que é ciência. Muitos
cientistas têm uma enorme quantidade de informações técnicas detalhadas
sobre eletrodinâmica e teoria quântica, e, todavia, carecem de uma visão geral
não meramente de teologia, mas de ciência. Por estranho que possa parecer,
frequentemente um artista talentoso tem pouca ideia do que é arte; da mesma
forma, um homem pode ser um cientista especialista sem saber o que é
ciência. Mas qualquer argumento a favor da religião ou contra ela, qualquer
argumento que reivindique suporte científico, depende mais das implicações
filosóficas da ciência do que de fragmentos de informação detalhada. A
pessoa tem de encaixar sua ciência numa filosofia geral. É preciso considerar
o alcance e as limitações da aplicação científica. É preciso saber o que a
ciência realmente é. Portanto, a maior parte do presente estudo, que traça a
história da ciência desde as construções teístas mais antigas até as posições
antirreligiosas mais recentes, será uma tentativa de dizer o que a ciência é:
uma tentativa, em outras palavras, de esboçar uma filosofia da ciência. Tanto
o cientista como o teólogo são convidados a seguir o argumento, e não é uma
conclusão precipitada dizer que o cientista ficará mais descontente do que o
teólogo.
A filosofia da ciência não é um tema restrito e sem importância. Nem
tampouco a religião. Mas para aqueles que não se aprofundaram em filosofia,
em ciência ou em religião, outro motivo ― mais preliminar e superficial ―
pode ser dado para se manter a atenção sobre o assunto.
Nossa civilização, na sua dependência dos telefones e da televisão,
dos automóveis e aviões a jato, dos modernos manufaturados e
computadores, é permeada de ciência. O pensamento contemporâneo, o
pensamento dos não cientistas e não teólogos, está amplamente baseado na
visão científica de mundo. O método científico é dito ser o melhor ― na
verdade o único ― método de resolver qualquer problema, de forma que em
todos os debates é a ciência, e não a teologia, que tem a última palavra. Visto
que toda pessoa inteligente e curiosa deseja naturalmente compreender sua
própria época, ela deve estar preparada para dar à ciência uma atenção
contínua.
Isso não é fácil. A ciência contemporânea é extremamente complexa.
Porém, não é a evidente complexidade, não é o acúmulo infinito de detalhes
específicos, não são as complexidades da matemática avançada nem
tampouco os equipamentos extremamente caros para levar um homem ao
espaço a maior e mais importante dificuldade. As coisas mais simples são as
mais difíceis. Nada é mais difícil de explicar do que o simples fenômeno de
uma bolinha de gude rolando sobre uma mesa. E foi mesmo um dos melhores
cientistas modernos quem reconheceu estar absolutamente perplexo com o
fato de que ao se pegar um lápis por uma das extremidades a outra vem junto.
Esses problemas simples são básicos; portanto, são muito antigos.
Homens de outras épocas têm lutado com eles. E, de modo geral, pode-se
dizer que a superestrutura da ciência em qualquer época depende de como a
ação de uma bolinha de gude rolar ou uma pedra cair é entendida. Portanto,
esta monografia dividirá a história da ciência em três capítulos,
correspondendo a três épocas científicas caracterizadas em grande parte por
suas visões divergentes sobre como um corpo se move.
Em primeiro lugar haverá um capítulo sobre “Antiguidade e
Movimento”. Movimento, o simples fato de que as coisas se movem e
mudam, é o fenômeno científico básico e mais universal. Seu estudo iniciou
na Grécia quase vinte e cinco séculos atrás; e visto que, em toda a
superioridade da qual se gaba, o pensamento recente tem relativamente pouco
mais a oferecer sobre a dificuldade principal, os argumentos podem manter
assim a sua forma antiga.
Em segundo, o mecanicismo moderno deve ser discutido. Trata-se da
física empírico-matemática que começou com Galileu e se desenvolveu sem
nenhuma ruptura séria até o início do século XX. Por causa da figura
dominante de Sir Isaac Newton, ela pode ser chamada de “Ciência
Newtoniana”.
Em terceiro lugar, alguns experimentos desconcertantes foram
realizados por volta da virada do século. As mudanças na teoria científica que
esses experimentos iniciaram se provaram muito mais revolucionárias do que
a princípio se suspeitava. De fato, os avanços mais recentes têm deixado os
cientistas ofegantes. As coisas se tornaram tão desorganizadas e confusas que
alguém poderia ficar tentado a intitular o terceiro capítulo de “A Confusão
Contemporânea”. Mas, para não assustar os tímidos nem pré-julgar o caso
antes de ele ser conhecido, nós nos contentaremos com o título inócuo “O
Século XX”.
1. ANTIGUIDADE E MOVIMENTO

A ciência, ou pelo menos este capítulo sobre a ciência, começa com um


estudo do movimento. Se não houvesse movimento, não haveria ciência. A
física poderia existir na ausência de eletricidade, e a zoologia absolutamente
não requer borboletas. Mas nem uma nem outra poderia funcionar sem o
movimento. Quer na física, quer na zoologia, os fenômenos examinados ou
são as causas e efeitos do movimento, ou são os próprios movimentos.
Movimento ou mudança é um elemento extremamente familiar na
nossa experiência. As plantas crescem, e os planetas giram. Dificilmente algo
pode ser mais trivial do que um lápis ou uma bola rolando sobre uma mesa
até cair. Mas dificilmente algo pode ser mais difícil de explicar. A maioria
das pessoas simplesmente toma o movimento como algo corriqueiro e não
reflete sobre ele. Elas nunca supõem que ele tem de ser explicado. Elas não
veem que ele apresenta algum problema. O primeiro objetivo desta seção será
de trazer as dificuldades à luz. Assim como uma criança cujo pai sempre a
levou a andar em volta de um carro pode, na adolescência, querer saber como
um carro funciona e começar a estudar os princípios de um motor a
combustão interna, o universitário, o cientista e o teólogo deveriam parar de
tomar o movimento como algo corriqueiro e começar a ver que ele apresenta
alguns quebra-cabeças peculiares.

Os paradoxos de Zenão

Um desses quebra-cabeças foi revestido de grande habilidade literária por um


antigo filósofo grego, Zenão o Eleático (c. 450 a.C.). A história que ele conta
é tão boa que a realidade do quebra-cabeça intelectual é muitas vezes perdida
na diversão. Ela é a história da famosa corrida entre Aquiles e a tartaruga.
Uma das fábulas de Esopo fala de uma tartaruga vencendo a corrida
com uma lebre por causa da soneca autoconfiante desta; mas na história de
Zenão, uma história muito melhor que a de Esopo, a tartaruga vence por pura
inteligência. A tartaruga tinha desafiado Aquiles para uma corrida, e foi nos
termos desse desafio que a genialidade acabou ficando demonstrada. Os
termos eram simples: à tartaruga seria dada a vantagem inicial de já partir de
certa distância, e Aquiles não seria considerado vencedor enquanto não
alcançasse a tartaruga. Termos simples ― enganosamente simples. Ao tiro da
pistola de Zenão o Eleático, a corrida mais famosa de toda a história teve
início. Porém, quando Aquiles, cuja velocidade era lendária, chegou ao ponto
de onde a tartaruga iniciara a corrida, a tartaruga obviamente não estava mais
lá. Durante o intervalo ele fez um lento progresso. Lento, sem dúvida; mas
um progresso, apesar de tudo. Ao contrário da lebre de Esopo ― para
começar, Aquiles ainda não estava à frente da tartaruga ―, Aquiles não parou
para tirar uma soneca; ele continuou a correr. Agora, quando Aquiles, por sua
lendária velocidade, chegou ao ponto onde a tartaruga esteve quando Aquiles
tinha estado no ponto do qual a tartaruga partira, a tartaruga obviamente não
estava mais lá. Durante o intervalo, curto que foi, ele fez um pequeno
progresso. Pequeno, sem dúvida; mas um progresso, apesar de tudo. Aquiles
ainda não estava em condições de imitar a lebre de Esopo; ele continuou a
correr. Agora, quando Aquiles, por sua lendária velocidade, chegou ao ponto
onde a tartaruga esteve quando Aquiles tinha estado no ponto do qual a
tartaruga há muito partira, a tartaruga obviamente não estava mais lá. Durante
o intervalo, curto que foi, ele fez um pequeno progresso. Pequeno, sem
dúvida; mas um progresso, apesar de tudo. Bem, essa história, mesmo sem
tirar uma soneca a cada repetição, começa a se tornar longa demais. O
resultado de tudo isso é que, toda vez que Aquiles chegava ao ponto onde a
tartaruga tinha estado, a tartaruga não estava mais lá. Como isso acontecia o
tempo todo, não houve um momento em que o sempre veloz Aquiles
conseguiu alcançar a tartaruga eleática.
Nesse ponto, a maioria das pessoas ri da piada e sem pensar muda o
assunto da conversa. Quem seria tão estúpido para explicar uma piada? Mas a
pergunta deveria ser: Quem seria suficientemente esperto para explicar essa
piada? Embora mais de dois mil anos tenham se passado desde que Zenão
contou essa história, nenhuma refutação dela obteve até agora um consenso
universal. Uma das respostas superficiais seria a de simplesmente calcular a
distância que Aquiles poderia percorrer em dez minutos (facilmente um
quilômetro) e a distância que a tartaruga poderia rastejar no mesmo intervalo
de tempo (dificilmente cem metros). Essa aritmética elementar mostraria que
se a tartaruga tivesse originalmente uma vantagem de duas ou três centenas
de metros, Aquiles estaria muito à frente da tartaruga. Esse é um
entendimento superficial, e Zenão não aceitaria essa resposta, porque
pressupõe um fator que Zenão não admite. Claro, se Aquiles pudesse correr
por dez minutos, indubitavelmente deixaria o nosso lento, mas paciente
amigo para trás; porém a genialidade da tartaruga em definir as condições
iniciais pelas quais venceu a corrida depende do fato de que Zenão não está
pronto a reconhecer que Aquiles pode correr por dez minutos. Ele não está
pronto a reconhecer que Aquiles pode sequer correr.
Ao despir o quebra-cabeça do seu ornamento literário, Zenão o
apresenta nos seus termos claros. Considere uma bolinha de gude rolando
sobre uma mesa ou, para ser bem científico, considere um átomo se movendo
de um ponto para outro no espaço. Antes de o corpo em movimento poder
alcançar o ponto final, ele precisa ter obviamente cruzado metade da
distância. Certamente, o corpo não pode chegar ao final antes de haver
passado pelo ponto médio. Mas antes que possa alcançar o ponto médio, ele
precisa ter percorrido a quarta parte da distância. E, antes disso, ele precisa
ter percorrido um oitavo da distância, um dezesseis avos, e assim por diante.
O “assim por diante”, todavia, é uma série infinita, o que significa que o
corpo em movimento precisa ter exaurido uma série infinita antes de começar
realmente a se mover. Como, no entanto, uma série infinita é precisamente
uma série que não pode ser exaurida, segue-se que uma bolinha de gude ou
um átomo jamais pode começar a se mover. O movimento é impossível.
Portanto, Aquiles jamais alcançou a tartaruga.
A primeira reação de uma mente norte-americana sadia, uma mente
que nunca teve muito interesse em atividade intelectual e permanece num
estado de caos indisciplinado, é rejeitar a coisa toda como um disparate. É
claro que o movimento é possível! Por que se preocupar com isso? Bem, há
uma boa razão para se preocupar com isso. Carros também se movem, certo?
Ao menos, havendo uma falha no argumento de Zenão, carros se movem. E é
o norte-americano não intelectual, acima de tudo, quem acha que vale a pena
estudar motores a combustão interna. Agora, se a engenharia automotiva
requer em último caso um conhecimento de matemática, não devemos
tropeçar no estudo do movimento (átomos se movem, não é mesmo?) só
porque ele envolve lógica e séries infinitas.
Outra tentativa superficial de resolver o problema depende do
equilíbrio entre a divisibilidade infinita do espaço e a divisibilidade infinita
do tempo. Se Aquiles deve exaurir uma série infinita de espaços, ao menos
tem uma série infinita de tempo para fazê-lo. Isso é bastante tempo, e assim
ele logo ultrapassa a tartaruga. Mas esse artifício meramente duplica o
problema. A dificuldade da divisibilidade infinita irá impedir o tempo de
começar a correr tanto quanto efetivamente impediu o movimento de
começar. Para contornar essas duas dificuldades ― elas são, como você
percebe, exatamente a mesma dificuldade aplicada duas vezes ―, Aristóteles
(Física, VIII, 8) argumentou que o corpo em movimento não passa, na
verdade, por uma série infinita de pontos. Zenão, diz Aristóteles, trata um
ponto, o ponto médio, como se fossem dois. Ele o toma tanto como fim e
início de um movimento. Mas esse só pode ser o caso se o corpo em
movimento para nesse ponto e então começa a se mover de novo. Se o corpo
está em movimento contínuo, nenhum desses pontos médios é “atualizado”.
Os pontos e as divisões são apenas potenciais, e não existem realmente.
Assim, embora seja impossível passar por ou exaurir um número infinito de
pontos reais, não há nenhuma dificuldade em passar por um número infinito
de pontos potenciais.
Se essa solução levanta suspeita ― e parece haver algo estranho, não
é mesmo? ― talvez o paradoxo de Zenão não seja tão absurdo quanto
inicialmente poderia parecer. Possivelmente, o movimento é de fato um
pouco difícil de entender.
Há ainda outra tentativa de responder a Zenão. Alguém pode
protestar que como uma série infinita não tem um último termo, Zenão não
pode exigir que o corpo em movimento alcance o último termo antes de
começar a se mover. Ele não pode levantar como barreira ao movimento um
fator que reconhecidamente não existe. E demais a mais, Zenão disse que era
necessário alcançar o último termo? Será que seu paradoxo não permanecerá
se ele simplesmente afirmar que o movimento não pode começar enquanto
existirem mais termos na série? Isso já bastará.
Bem, talvez um expediente ligeiramente diferente permitirá ao corpo
se mover. Admitamos que em qualquer espaço finito exista de fato um
número infinito de pontos. Admitamos também que para se mover daqui para
lá um corpo deve passar por todos esses pontos. Mas neguemos que o corpo
deve passar por cada um desses pontos. Isto é, nós podemos alegar, Zenão
confundiu um “todos” coletivo com um “cada” distributivo. Ele supôs
erroneamente que o que quer que seja verdade de um, deve ser verdade do
outro. No entanto, há muitos exemplos em que o todo coletivo tem
qualidades muito diferentes do cada distributivo. Pegar cada prego nesse
barril é fácil, mas pegá-los todos é difícil. Da mesma forma, o que é verdade
em cada caso não é necessariamente verdade no geral. Aristóteles argumenta
que embora, para cada um dos três tipos de triângulo, seja provado um
teorema, não fica provado nisso um teorema para o triângulo em geral. Ou,
por fim, cada elemento de um composto tomado individualmente pode ser
venenoso (NaCℓ), mas o todo pode ser bom para ingerir. Zenão, assim, estava
enganado, pois insistia que um corpo em movimento deve passar por cada
ponto, quando a bem da verdade só precisa passar por todos eles. Essa
solução também é suspeita? Sejamos cautelosos. Não há muito mais
soluções, e se não podemos decidir sobre uma delas, podemos ser forçados a
concluir que o movimento é impossível. E onde estaria a ciência então, pobre
coitada?

O fluxo heracliteano

Como não podemos parar aqui mais outros dois mil anos para elaborar
respostas melhores a Zenão, devemos prosseguir como se essas objeções
jamais tivessem sido levantadas. Vamos bani-las da nossa memória.
Resolvamos não pensar sobre elas. Devemos, sem mais demora,
simplesmente assumir que as coisas estão em movimento. Um dos primeiros
filósofos a estudar o movimento, na verdade o primeiro filósofo a fazer do
movimento o principal objeto do seu estudo, concluiu não só que as coisas
estão em movimento, como também que todas as coisas estão em constante
movimento.
O slogan de Heráclito (c. 500 a.C.) era “Tudo flui”. Ele comparou o
Universo a um rio com novas águas continuamente sucedendo as anteriores.
Nada permanece em repouso; tudo muda. Portanto, não se pode entrar no
mesmo rio duas vezes. Se o rio consiste de água, e a água nunca é a mesma, o
rio nunca é o mesmo; logo, ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes.
Se fosse feita uma tentativa de evitar essa conclusão forçando a ilustração, e
se fosse observado que um rio tem leito e margens tanto quanto tem água,
Heráclito responderia que o leito e as margens estão constantemente erodindo
e nunca permanecem iguais. Até o mais ínfimo cascalho ou partícula de areia
está constantemente se modificando. Nada permanece igual.
Há também outra razão por que um homem não pode entrar no mesmo
rio duas vezes. Não é só o rio que muda; a pessoa também muda. Nada do
homem permanece igual; de sorte que nas duas vezes não é o mesmo homem
que entra no rio.
Embora Heráclito fosse um grego antigo, a universalidade do
movimento não é uma ideia estranha nos tempos modernos. Costumava-se
considerar os átomos internamente estáveis e sólidos, mas com a divisão do
átomo veio a ideia de que o átomo é mais ou menos como um sistema solar
em miniatura cujas partes giram em torno de um núcleo central. Ainda mais,
o núcleo do novo átomo e seus satélites não são geralmente considerados
esferas sólidas, mas toda a matéria do Universo é supostamente uma espécie
de campo de energia palpitante onde nada é estável. Indubitavelmente, os
cientistas modernos e os filósofos contemporâneos divergem sobre vários
detalhes e até mesmo sobre questões substantivas; mas a ideia da mudança
universal, ao menos, não é estranha em nossa época atual. Por esse motivo as
implicações que Heráclito e seus discípulos tiraram das visões deles, de que
todas as coisas fluem, são considerações que devem ser guardadas em mente
até mesmo hoje.
Foi Crátilo, um discípulo, em vez de Heráclito, quem extraiu algumas
dessas conclusões. Nosso principal interesse aqui, evidentemente, é a análise
do conceito de mudança universal, não o preciso desenvolvimento histórico.
A questão, portanto, é: Se todas as coisas mudam, se nada permanece em
repouso, o que resulta disso?
Platão observa causticamente que os heracliteanos exemplificam seu
princípio no fato de que suas opiniões nunca permanecem iguais. Eles nunca
respondem a mesma questão duas vezes da mesma forma. Suas mentes fluem
tão constantemente como seu rio. Crátilo, porém, foi capaz de escapar da
acusação de Platão. Sempre que se lhe fazia uma pergunta, não importava
qual fosse, ele dava a mesma resposta. Apenas que a resposta não era em
palavras, mas com um aceno de mão.
Talvez Crátilo fosse consistente; talvez a teoria do movimento universal
tornasse o discurso inteligível algo impossível. Vamos ver. Se o rio está
constantemente mudando, ele pode mesmo ser chamado de rio? Quando
chamamos uma coisa de rio, ou mesmo de nuvem, acreditamos que ela
continua sendo um rio ou uma nuvem por certo espaço de tempo. Rios
presumivelmente duram mais tempo que nuvens; mas até mesmo uma
nuvem, para ser chamada como tal, deve durar tempo bastante para ser assim
reconhecida e nominada. Algo nela, ao menos alguma coisa, precisa
permanecer igual e não mudar, ou do contrário ela não será o que a
chamamos. Com isso não queremos dizer que o rio deve permanecer
inalterado em todos os aspectos; nem que ele deve permanecer para sempre
inalterado em algum aspecto. Mas a menos que algo (ser um rio) não mude
em outra coisa (não ser um rio), o nome não teria qualquer sentido. Por
conseguinte, a possibilidade do discurso inteligível pressupõe a existência de
entidades que permanecem inalteradas por algum tempo finito; e,
inversamente, a teoria da mudança universal torna o discurso e o
conhecimento impossíveis.
No Timeu, Platão produziu uma boa ilustração desse ponto. Ele supõe
que um escultor hábil esteja modelando uma estátua em ouro. O ouro é
macio, maleável e pode ser trabalhado de forma rápida. Para propósitos
ilustrativos, podemos acelerar o processo para enfatizar o ponto. O escultor
agora modela uma estátua de Zeus, e um dos espectadores pergunta a você no
que ela consiste. Mas o escultor não para de modelar no momento em que
Zeus aparece no ouro; ele segue em velocidade constante. E antes que você
possa dizer Zeus, a estátua já não é mais Zeus. Talvez ela comece a tomar a
forma de Sócrates ou de um centauro. Mas toda vez que você se sente seguro
para chamá-la de alguma coisa, ela já mudou. Ela não é alguma coisa; ela não
é nada.
É claro, alguém poderia dizer que ela é ouro. Ela poderia não ser Zeus
ou um centauro, mas certamente é uma coisa, ela é ouro. Em resposta a essa
réplica nós teríamos de desenvolver as implicações de Platão um pouco além
da ilustração explícita. Somos tentados a chamá-la de ouro, não é mesmo,
porque o ouro em si se manteve inalterado ao longo do processo. Mas
suponha, novamente, que o ouro não permaneceu inalterado. Suponha que
durante o processo de modelagem o próprio ouro esteve mudando para barro.
Suponha, também, que tão logo tenha parecido ser apenas barro, ele começou
a mudar para cera. Sob essas condições, como poderíamos responder à
pergunta “O que ele é”? Ele não apenas não é Zeus; ele também não é ouro;
não é barro; não é cera; não é nada. Vale dizer, se uma coisa está mudando,
ela não existe; ou, para generalizar, se tudo está mudando, nada existe.
Mudança universal implica não existência universal. E isso implica que a
mudança é irreal e a realidade é imutável.
Ora, isso soa sempre de novo como Zenão! Já não mostramos mais uma
vez que o movimento é impossível?

Aristotelianismo
O clímax do estudo da antiguidade do movimento é encontrado em
Aristóteles. Antes que as partes mais intrincadas da sua teoria sejam
examinadas, a resposta imediata a Heráclito servirá como um ponto de
partida fácil. Aristóteles concorda que se tudo estivesse sempre mudando,
nada existiria e o conhecimento seria impossível. Portanto, conclui ele, deve
existir algo que não muda.
A afirmação de que algo imutável existe, pelo menos por um período
finito de tempo, não depende apenas do desejo de Aristóteles de defender a
possibilidade do conhecimento, embora a possibilidade do conhecimento
seja, é claro, uma questão muito importante. Mas a existência de algo
imutável também está diretamente ligada à possibilidade do movimento em
si. Isto é, para que algo possa se mover, algo deve permanecer imóvel. A
situação em que o movimento acontece é um pouco complicada. Ao
expressar uma situação de movimento ou mudança, nós dizemos que a folha
verde ficou marrom, ou que o rapaz mal-educado se tornou um homem
educado, ou, simplesmente, que a bola de gude rolou daqui para lá. Em cada
caso, algo deve permanecer imutável durante a mudança. Uma folha só pode
se tornar marrom se for a mesma folha em ambos os extremos da mudança;
uma bola de gude só pode rolar daqui para lá se for a mesma bola de gude o
tempo todo.
Suponha que não fosse a mesma folha e a mesma bola de gude.
Teríamos então visto uma folha verde e um pouco mais tarde uma folha
marrom, mas não teria havido nenhuma mudança, pois nada teria mudado de
verde para marrom. Ou um mágico poderia me enganar substituindo a
primeira bola de gude por uma segunda, produzindo assim uma ilusão de
movimento. Mas se há duas bolas de gude, nenhuma delas rolou daqui para
lá. A primeira não rolou porque não chegou lá. A segunda não rolou porque
não partiu daqui. Todo movimento, portanto, requer um sujeito que
permanece imutável durante o movimento.
Uma invenção moderna fornece uma ilustração melhor do que
Aristóteles poderia alguma vez imaginar. Nos filmes não há nenhuma
imagem que se move. O movimento é todo uma ilusão. Nós pensamos ver a
imagem de um homem caminhando ao fundo. Mas sabemos que há cerca de
dezesseis imagens sendo projetadas na tela a cada segundo. Uma das imagens
aparece na tela numa posição fixa e definida. Ela não pode se mover. A
próxima imagem substitui em seguida a primeira, mas num local ligeiramente
diferente. O processo todo consiste em substituir a imagem precedente por
outra. O movimento resultante é uma ilusão óptica, porque não há nada se
movendo. Movimento, então, pressupõe um substrato imutável.
No entanto, há uma questão. Movimento pressupõe indubitavelmente
um substrato imutável, mas como sabemos que existe tal substrato, e como
sabemos que há movimento? Talvez a tela da imagem em movimento seja
uma boa ilustração do mundo. Por que deveríamos assumir que existe um
substrato diante dos nossos olhos fora do teatro mais do que há dentro dele?
Mesmo alguns teólogos cristãos, de forma bastante surpreendente, têm
defendido uma teoria chamada de criação contínua. Eles supõem que Deus
está constantemente criando; o mundo não pode preservar a si mesmo, e está
constantemente colapsando; a todo instante Deus o recria. Alguns desses
teólogos não forçam demasiadamente a formulação, mas alguns poucos
parecem sugerir que um mundo novo substitui o anterior dezesseis ou
dezesseis centenas de vezes por segundo. Nesse caso, não haveria nada que
pudesse se mover; cada coisa existiria momentaneamente num ponto fixo.
Agora, por que isso não poderia ser verdade? Existe alguma evidência,
qualquer evidência convincente, de que algo permanece imutável por
qualquer período finito de tempo?
Talvez, porém, estejamos errados em esperar demais do simples
repúdio de Aristóteles ao fluxo heracliteano. Ele tem outros e muito mais
profundos argumentos para dar. Essas teorias intrincadas podem ser mais
facilmente compreendidas se forem precedidas de um breve relato das visões
contrastantes de Demócrito. Demócrito era um atomista e mecanicista. Ele
não gastou nenhum tempo com os paradoxos de Zenão e foi apenas
indiretamente influenciado pela filosofia de Heráclito; ele simplesmente
partiu do pressuposto de que os átomos se movem no espaço vazio. Para ele,
portanto, o movimento é um axioma indemonstrável, um fato bruto
inexplicável. Mas embora o movimento como tal não possa ser explicado,
cada movimento particular pode. Assim como numa página anterior alguém
tentou dizer que um corpo em movimento poderia passar por todos os pontos,
mas não por cada ponto, Demócrito explica aqui cada movimento, mas não
todos. Escolha qualquer átomo que você queira, e seu movimento, sua
velocidade e direção poderão ser explicados pela força e ângulo de impacto
de outro átomo em movimento. Esse outro átomo em movimento, por sua
vez, foi antes atingido por outro átomo, e assim retrospectivamente ad
infinitum. O movimento nunca começou; ele não teve nenhuma fonte
original; ele nunca acabará; ele é um fato bruto fundamental.
Aristóteles, por outro lado, acreditava ser possível explicar não apenas
cada movimento em particular, como também o movimento em geral. Ao
fazê-lo, rejeitou a filosofia do mecanicismo e com ela a imagem atomística
do mundo. Em vez do mecanicismo, ele defendeu a teleologia. Em vez de
átomos num vazio infinito, ele assumiu um mundo finito totalmente cheio. A
visão resultante é difícil de entender, embora não deva, por esse motivo, ser
assumida como insustentável. O princípio do mecanicismo, evidentemente, é
muito fácil de compreender, ainda que com Aristóteles alguém finalmente
conclua que ele falha. Não resta nada a fazer, então, a não ser estudar os
argumentos em tantos detalhes e com tanta meticulosidade quanto o nosso
interesse possa permitir.
Não se pode discordar de Demócrito sob o fundamento de que ele fez
certas suposições indemonstráveis. Cada filósofo e cada sistema de filosofia
deve partir de algum lugar, e, por óbvio, nada pode ser anterior ao ponto de
partida. Para Aristóteles, no entanto, o ponto de partida não é o fato do
movimento observado, mas a existência da natureza. “Que a natureza existe”,
escreve Aristóteles (Física, II, I), “é algo que seria absurdo tentar provar; pois
é óbvio que há muitas coisas desse tipo [objetos naturais], e provar o que é
óbvio por aquilo que não é é a marca de um homem que é incapaz de
distinguir o que é autoevidente do que não é”.
Agora, a ideia de Aristóteles não é tão simples e óbvia quanto poderia
parecer. Pode-se de fato supor que os objetos naturais, como árvores e pedras,
são pelo menos tão autoevidentes quanto o movimento. Na verdade, desde
que movimento é sempre o movimento de objetos como esses, e desde que,
portanto, os objetos são logicamente anteriores ao movimento, por que não
seria melhor começar com aqueles em vez de com este?
Essa consideração, porém, não é um grande suporte ao procedimento de
Aristóteles, porque embora muitas pessoas estejam inclinadas a dizer que a
natureza consiste desses objetos — árvores, pedras, animais, terra, ar, fogo e
água —, essa não é a definição de Aristóteles de natureza. Esses objetos são
naturais; eles têm uma natureza; eles agem de acordo com a natureza; mas
não é verdade que eles são a natureza. Natureza, para Aristóteles, é um
princípio de repouso e movimento, imanente nesses corpos per se. Como a
natureza pode ser a causa do repouso é uma questão que por ora pode ser
adiada; para o presente deve ser notado que a natureza não é um objeto, como
uma árvore ou uma pedra, e tampouco o agregado deles, mas um princípio de
movimento no objeto. Demócrito havia localizado a causa de todo
movimento num corpo que não era aquele cujo movimento ele estava
explicando; a causa de qualquer movimento é sempre externa ao corpo que é
o sujeito desse movimento. Mas para Aristóteles, a causa do movimento é
imanente no próprio corpo em movimento. A bem da verdade, Aristóteles
reconhece os movimentos forçados ou não naturais que são causados pelo
impacto. Quando uma pedra é lançada para cima, a causa é a mão e o braço
que a lançou. Mas esse é um movimento não natural ou violento. Porém, a
queda da pedra é natural, tão natural como o crescimento de uma planta; e a
causa de um movimento natural não é um impacto de fora, mas um princípio
imanente no próprio corpo em movimento. É a natureza desse corpo.
Agora, é de admirar se um princípio imanente de movimento como esse
é tão óbvio e autoevidente como o objeto ou o próprio movimento. Se
confiamos na sensação, podemos dizer que vemos e sabemos imediatamente
que as coisas se movem. Mas pode ser sustentado que uma causa imanente de
movimento é imediatamente conhecida? Sem dúvida algo deve ser um ponto
de partida autoevidente indemonstrável; mas é autoevidente que o movimento
natural não pode ser explicado por colisão ou impacto? Talvez, no entanto,
autoevidente não signifique imediatamente percebido. Talvez haja um
argumento complicado para mostrar que a teoria mecânica do movimento é
insatisfatória. Talvez, ainda, todas as tentativas falhem, a não ser a de
Aristóteles, e seu princípio primeiro tenha sucesso em resolver o problema.
Então nós poderíamos dizer que é necessário começar com a natureza
concebida como um princípio imanente de movimento e repouso. A natureza
então seria autoevidente num sentido muito sofisticado do termo, mas apenas
uma análise cuidadosa do argumento pode justificar tal conclusão.
Em Física, Livro III, Aristóteles começa fazendo um ataque
determinado ao problema do movimento. Ele não poupa esforços para chegar
a uma solução. E esforço é necessário, pois a explicação do movimento
precisa usar os conceitos de continuidade, infinidade, lugar, tempo e, talvez,
vazio. Esse é um problema constante nos temas filosóficos. Dificilmente se
começa um tópico antes de descobrir que outro assunto requer primeiro
atenção. Nós estamos sempre sendo empurrados para frente ou para trás até
parecer impossível resolver qualquer problema isolado sem resolver todos.
Onisciência é o pré-requisito, e onisciência é algo difícil de obter. Mas
Aristóteles faz um bravo começo.
Primeiro, ele deve definir movimento. Quando alguém se compromete a
discutir um assunto, é vantajoso saber o teor da conversa. Nos primeiros
diálogos platônicos, Sócrates foi capaz de deixar seus adversários confusos
porque eles não sabiam do que estavam falando. Protágoras não podia definir
virtude, Eutífron não podia definir piedade e Laques, embora fosse um
general do exército, não sabia o que era coragem. Assim também, os pré-
socráticos não conseguiam desvendar o enigma do movimento,
principalmente porque não sabiam o que era movimento. Seus conselhos
hesitantes eram falhos como definições. Dentro dessa seção (Física III, I),
Aristóteles formulou a definição de movimento três vezes. Primeiro ele diz
que o movimento é a realização ─ ele diz, literalmente, a realidade — do
potencial qua potencial. Essa frase enigmática é então explicada. Quando o
que é construível, na medida em que é construível, é real, está sendo
construído; e esse é o movimento ou mudança chamado de construção. Note-
se que a casa completa não é construível; ela é construída e o movimento está
concluído. A realidade do tijolo e da madeira também não é movimento; até
onde os materiais como tal estejam em questão, o movimento ainda não
iniciou. Esse movimento, por conseguinte, é a realização do construível qua
construível.
Aristóteles deve insistir na importância do até onde, do qua e do como
tal. Bronze é potencialmente uma estátua, mas a realidade do bronze qua
bronze não é nem estátua, nem movimento. Ser bronze e ser móvel não
significam a mesma coisa. Ou, mais uma vez, ser potencialmente saudável
não é o mesmo que ser potencialmente doente; pois do contrário ser
realmente saudável significaria ser realmente doente. É claro, a mesma
pessoa poderia estar doente ou estar bem, mas as potencialidades são
diferentes. O movimento, então, é a realização do potencial qua potencial.
Na segunda vez em que Aristóteles formula a definição, ele diz:
“Movimento é a realidade de um ser potencial quando este, na realidade, não
opera como sendo o que é, mas como sendo móvel”. A terceira formulação,
algumas linhas abaixo, é essencialmente uma repetição da primeira.
Ora, a segunda dessas três formulações é claramente insustentável: é
obviamente circular. Definir movimento como a realidade do móvel é usar o
conceito de movimento na sua própria definição. Como alguém pode saber o
que significa móvel, isto é, ser capaz de mover, sem primeiro entender o que
é movimento? Essa circularidade também está presente no exemplo dado sob
a primeira formulação. O que construível significa não pode ser conhecido
até que os movimentos de construção sejam entendidos. Assim, ou
Aristóteles cometeu uma tolice circular, ou a primeira e terceira formulações
devem de alguma forma escapar dessa crítica.
Não é de todo certo que a segunda formulação seja um mero lapso da
pena que é justificável à luz das outras duas. Em Física VIII, I (251a8), uma
passagem presumivelmente se referindo a Física III, I, Aristóteles novamente
define movimento como a realidade do móvel qua móvel. Similarmente,
algumas páginas adiante (257b8), ele diz: “Movimento é uma realidade
incompleta do móvel”. Parece, então, que a nódoa da circularidade é mais do
que apenas superficial.
No entanto, deve ser dada toda oportunidade para Aristóteles rebater
essa acusação antes que um julgamento final possa ser feito. Desde que,
portanto, ele fornece duas outras formulações, elas também precisam ser
examinadas. E deve-se reconhecer que elas ao menos não contêm nenhuma
circularidade aparente. Movimento é a realização do potencial qua potencial.
No entanto, é um pré-requisito afirmar o que se busca dizer com o termo
potencial. Na verdade dois pré-requisitos devem ser satisfeitos. Em primeiro
lugar, o termo potencial deve ser definido sem usar a ideia de movimento, ou,
do contrário, a circularidade reaparecerá; e em segundo, a ideia da
potencialidade deve ser apresentada de forma clara e inequívoca, ou, do
contrário, toda a física permanecerá vaga e confusa.
A clarificação do conceito de potencialidade é encontrada mais na
Metafísica do que nas discussões sobre o movimento. No Livro Delta,
Aristóteles afirma: “Potencialidade é uma fonte de movimento e mudança
que está em outra coisa que não a coisa movida ou na mesma coisa qua
outra… Potencialidade, então, significa a fonte de mudança ou
movimento…” Ao que parece, no entanto, isso não é de todo satisfatório. Na
Física Aristóteles definiu movimento em termos de potencialidade, e agora
em Metafísica ele define potencialidade em termos de movimento. A
circularidade, portanto, não foi evitada, e nós ainda não sabemos o que é
movimento.
Há, contudo, uma outra passagem. No Livro Teta de Metafísica
(1048a30-b6), Aristóteles define realidade:
Realidade significa a existência de um objeto, mas não da forma que chamamos
potencialidade. Dizemos, por exemplo, que uma estátua de Hermes está
potencialmente no bloco de madeira… porque pode ser esculpida nele. Também
chamamos um homem de estudioso mesmo quando não está estudando, se ele é
realmente capaz de estudar… Não devemos buscar uma definição de tudo, mas nos
dar por satisfeitos em compreender uma analogia: que assim como aquele que constrói
é para ele alguém que pode construir, assim como aquele que está acordado é para ele
alguém que está adormecido e assim como aquele que vê é para ele alguém que,
embora não cego, tem os olhos fechados… a realidade é definida por um membro
dessas antíteses e a potencialidade, pelo outro.

Mesmo nessa passagem mais extensa, a questão é se a circularidade


foi evitada. Esculpir a estátua a partir da madeira, estudar e ver são
movimentos; logo, a potencialidade e a realidade são explicadas com base no
movimento. O movimento, então, não pode ser corretamente definido em
termos de potencialidade.
Mas, diz Aristóteles, isso não é uma definição. A potencialidade não
pode ser definida. Ela deve ser entendida por analogia. Como aquele que está
adormecido é para ele alguém que está acordado, assim a potencialidade é
para a realidade. Agora, o homem que está adormecido é horizontal, e o
homem que está acordado é vertical. É isso o que Aristóteles quer dizer?
Claro que não. Mas é difícil entender o que ele quer dizer, pois há muitas
comparações que podem ser feitas entre homens adormecidos e homens
acordados. O primeiro sonha; o último não. Como alguém pode escolher que
ponto de comparação é pretendido? Parece, então, que mesmo que Aristóteles
tenha evitado a aparente circularidade, ele não nos deu um conceito claro e
inequívoco de potencialidade.
A ambiguidade da potencialidade e a inutilidade das analogias se
tornam mais evidentes quando Aristóteles sai do movimento para considerar
o infinito como uma potencialidade. O assunto tem a ver com a divisibilidade
infinita das linhas e a possibilidade sem fim da adição. A infinidade, pelo
argumento de Aristóteles, é algo potencial, não real, pois nunca pode ser
concluída. Agora, há certo sentido em chamar um bloco de madeira de
estátua potencial, já que ele pode ser esculpido numa. Mas um bloco de
madeira dificilmente poderia ser chamado de vela de ignição potencial ou de
ímã potencial, pois estes não podem ser feitos de madeira. Para mostrar que
um objeto é potencialmente alguma coisa é necessário mostrar que numa
ocasião ou noutra ele se torna essa alguma coisa. O critério da potencialidade,
portanto, é uma instância de ele haver se tornado real. Mas aqui, na discussão
da infinidade, Aristóteles diz: “O infinito é potencial. Mas a potencialidade
não deve ser tomada no sentido de que a madeira é uma estátua potencial, isto
é, que ela será uma estátua, como se houvesse um infinito que mais tarde se
tornasse real. Porém, assim como o ser tem vários significados… assim
também o infinito” (206a17-23). E, devemos acrescentar, assim também o
potencial.
Eis aqui, então, mais um sentido de potencialidade, não claramente
relacionado à analogia do adormecido e do acordado. O que se pode fazer
dele? Ouvir que ele é um sentido diferente do anterior, quando o anterior é
em si muito vago, não é uma explicação suficiente para servir de base para
resolver o problema do movimento.[6]
Esse argumento poderia agora parecer ter-se tornado muito intrincado.
O interesse do leitor pode ter-se dissipado pelo caminho. Mas a conclusão
deveria ser inquietante o bastante para sacudi-lo de qualquer tendência ao
cochilo. A conclusão não é que Aristóteles se colocou em um atoleiro; isso
seria meramente um fragmento de informação histórica. A conclusão
tampouco é, simplesmente, a falta de sentido do conceito de potencialidade e
a inutilidade das definições analógicas. Essa é, evidentemente, uma valiosa
advertência para quaisquer filósofos ambiciosos que estejam
inadvertidamente trilhando para um beco sem saída. Mas há uma conclusão
muito mais inquietante do que todas essas. É que o problema do movimento
permanece sem solução.
Essa falha é bem mais catastrófica do que meramente falhar em decidir
se o movimento depende de um princípio interno, espontâneo, ou de um
impacto externo. Não temos a permissão de rejeitar Aristóteles e retroceder
sobre o movimento como um fato bruto observado. A análise liquidou tanto
Demócrito quanto Aristóteles. A razão é que não sabemos o que é
movimento. Nós não temos nenhum conceito de movimento. Não temos nada
claramente em vista quando usamos a palavra. Nós simplesmente não
sabemos do que estamos falando. E nos recônditos do nosso esquecimento
ainda espreita o esqueleto de Aquiles de Zenão. Talvez o movimento, junto
da ciência, seja apenas um absurdo.
2. A CIÊNCIA NEWTONIANA
Uma das vanglórias mais difundidas da civilização moderna é sua
superioridade sobre o medievalismo na ciência. A Idade Média era uma
época de ignorância, superstição e esterilidade científica. Para não mencionar
as relíquias dos santos, todo o depósito de madeiras da verdadeira cruz e
falsificações como a “Doação de Constantino” e Dionísio, o Areopagita, a
ignorância na física era evidente no baixo nível de cultura material e conforto
corporal. Nesse aspecto, a Idade Média foi inferior até mesmo à Antiguidade,
visto que seus melhores homens tinham pouco entendimento ou controle dos
processos naturais.
Por outro lado, os tempos modernos são superiores além da
comparação. Conhecimento, descobertas e invenções têm ocorrido em
profusão surpreendente. Obviamente a construção dessa nova civilização,
mesmo o primeiro passo dessa construção, foi um avanço de primeira ordem.
O que explica isso? Não pensemos que os homens da Renascença, que
lançaram as bases dessas realizações, tinham mais poder cerebral que os
antigos e os escolásticos. Aristarco, Arquimedes e Ptolomeu eram cientistas
brilhantes; e os estudiosos medievais, poucos que fossem em número, e ainda
que mais metafísicos que científicos, eram extremamente argutos. A
diferença depende mais dos problemas abordados e dos métodos usados.
Os químicos medievais, chamados então de alquimistas, escolheram
como seu problema principal a redução de metais menos nobres a ouro. O
problema pode ser e foi resolvido, mas é um dos mais difíceis problemas
físico-químicos imagináveis. Não poderia haver problema pior para iniciar a
química. Os métodos da Idade Média eram totalmente incapazes de lidar com
ela. Na verdade, a metodologia científica da Idade Média podia lidar com
muito pouco. Foi a Renascença, o novo nascimento do conhecimento, que
descobriu o que nós agora familiarmente chamamos de método científico; e o
propósito final desta discussão é afirmar, explicar e analisar esse método;
pois a ciência e o método científico são o interesse intelectual dominante dos
tempos modernos e a base da nossa civilização.
Uma das diferenças mais óbvias entre o método medieval e o moderno,
e até mesmo entre o interesse antigo e o moderno, foi o desprendimento de
sofismas inúteis e fantasiosos. Essa nova geração não dava atenção para
quebra-cabeças ingênuos sobre Aquiles e a tartaruga. Ela não se importava
em provar que o movimento ocorre nem tampouco perderia tempo com
explicações ou definições fúteis do movimento em geral. Aristóteles não
tinha definido o movimento apenas, mas também dado um relato cuidadoso
do tempo. Sir Isaac Newton, porém, disse: “Eu não defino tempo, espaço,
lugar e movimento como se fossem coisas bem conhecidas de todos”.
Deixando todo sofisma estéril para trás, eles se lançaram a uma investigação
direta da natureza. O resultado é que hoje, ao invés de ignorância e
analfabetismo, fogueiras públicas e Peste Negra, espadas, flechas e cavalos,
nós temos educação universal, aquecimento central (exceto Londres), drogas
milagrosas, bombas de hidrogênio e aviões a jato. Tal é o triunfo da ciência
moderna sobre o medievalismo.

As falhas em Aristóteles

Porém, apesar de toda a escuridão da Idade das Trevas, não devemos supor
que nenhum estudo sério dos fenômenos naturais tenha sido empreendido.
Uma superstição moderna é que os cientistas medievais pensavam que a
Terra era plana. Jactância e superioridade devem ser temperadas com
informação histórica correta. Sem diminuir um só pouquinho a fama e a
genialidade de Sir Isaac Newton, precisamos reconhecer que certas falhas no
relato aristotélico do movimento estimularam os pensadores medievais a
pensar. Havia pelo menos dois problemas muito reais que homens antes dos
tempos de Galileu estavam estudando. Um deles era o movimento de
projéteis; o outro era o problema similar de um corpo em queda livre.
De acordo com Aristóteles, todo corpo que é colocado em movimento é
colocado em movimento por um propulsor que exerce força sobre ele. Isso é
particularmente evidente no caso de uma pedra que é jogada para cima. Ela
não pode se mover; ela deve ser movida por alguma outra coisa. Na verdade,
desde que o movimento ascendente não é natural para uma pedra — por
natureza as pedras fazem o movimento descendente —, deve ser exercida
uma força sobre a pedra em cada momento da sua ascensão; do contrário ela
começará a cair. Mas o que exerce essa força? A mão que jogou a pedra, e,
para emprestar um exemplo da Renascença, a explosão que primeiro
impulsionou uma bala de canhão, não está mais em contato com ela. E não é
óbvio, perfeitamente óbvio, que um corpo não pode exercer força sobre outro
sem estar em contato com ele? Uma mão não pode jogar uma pedra que não
esteja segurando; e uma bola de bilhar não pode colocar outra em movimento
exceto pelo impacto. Como, então, pode a pedra continuar subindo após ter
deixado a mão?
A resposta aristotélica, interpretada e expandida a partir de passagens
não muito claras de Mecânica (858a19-30), é que quando a mão primeiro
empurra a pedra para cima, a pedra empurra o ar acima dela; quando a pedra
deixa a mão, o ar deslocado corre para trás da pedra e a empurra ainda mais
alto; isso desloca mais ar, e assim a pedra continua o seu voo.
Relacionado aos fenômenos dos projéteis, o segundo problema que
envolveu os pensadores medievais posteriores foi o movimento de um corpo
em queda livre. Este, ao que parece, seria um problema mais complicado. Até
onde os projéteis estejam em questão, só se precisa explicar como eles
continuam em movimento; mas um corpo em queda livre não continua em
movimento, apenas — ele também acelera. Na verdade, o fato mais óbvio
sobre um corpo em queda é que o seu movimento é muito mais rápido perto
do fim da sua queda que no início. Ora, visto que a velocidade, sobre
princípios aristotélicos, é proporcional à força exercida, uma força constante
produziria um movimento uniforme, não uma aceleração. Um corpo em
queda, então, deve estar sujeito a uma força constantemente crescente. Como
isso pode ser explicado? O que faz um corpo em queda cair mais rápido?
Essas são duas dificuldades conspícuas no sistema aristotélico. Agora,
quando esses pontos específicos de dificuldade são encontrados —
incorporados no sistema aristotélico, newtoniano ou em qualquer outro — o
procedimento normal é tentar resolver o quebra-cabeça dentro da estrutura do
sistema aceito. Isso é apenas senso comum. Um corpo da ciência não deve ser
descartado in toto só porque um ponto menor apresenta uma dificuldade. Mas
às vezes, uma vez em três ou quatro ou quinze séculos, o ponto supostamente
menor revela um defeito tão básico que uma construção totalmente nova se
faz necessária. É o que aconteceu no caso em questão.
A teoria aristotélica da natureza, que também se preocupava com outras
formas de mudança que não a locomoção — a alteração e o crescimento, por
exemplo —, era teleológica e orgânica em vez de matemática e mecanicista.
As causas das mudanças eram buscadas nas qualidades e não nas quantidades
dos corpos. Os animais em movimento natural são movidos por sua alma ou
forma inerente. Num lugar, Aristóteles explica por que algumas árvores
produzem frutas doces:
Árvores que crescem em água ácida produzem frutas doces porque a acidez, ajudada
pelo calor do Sol, atrai aquilo que é da sua própria qualidade, a saber, frio e secura. Os
líquidos doces, portanto, surgem dentro da árvore… [De Plantis, 829b].

A explicação qualitativa também se aplica ao movimento: As pedras


caem porque são pesadas, e o fogo sobe porque é luz.
Amiúde as qualidades que produzem os efeitos não são evidentes. As
drogas e os produtos químicos produzem seus efeitos, para falar em
linguagem medieval, em razão de qualidades ocultas, isto é, qualidades que
estão encobertas da visão. Mas dizer que o ópio causa sono em razão da sua
qualidade dormitiva ou soporífera é cobrir a própria ignorância desvelada
com um palavreado vaporoso. À teoria teleológica da natureza de Aristóteles,
portanto, é creditada a esterilidade da ciência medieval.
Então, para voltar à questão da locomoção: A utilização de uma
terminologia moderna identificará de forma mais fácil certas confusões no
pensamento de Aristóteles. Apesar do risco de anacronismo, dificilmente se
pode evitar o uso da terminologia moderna, pois a estrutura conceitual da
teoria de Aristóteles (veja Física, VIII) é tão estranha à estrutura moderna da
mente que nossa dificuldade não é mais de refutar, mas de meramente
entender. Com alguma falta de precisão, portanto, talvez seja suficiente
sugerir que, por um lado, Aristóteles confundiu o que consideramos ser os
dois conceitos distintos da velocidade e do trabalho, e, por outro lado, a sua
fusão de tamanho e força o impediu de chegar ao que chamaríamos de uma
definição clara do último. E isso nos traz de volta à questão: Quais forças
fazem um projétil continuar se movendo?
Em meados do século XIV, um filósofo chamado Buridan fez uma
sugestão muito notável. Ele supôs que quando a pedra foi colocada em
movimento pela mão, o próprio fato do seu movimento, embora em contato
com a mão, produziu uma nova qualidade na pedra. Ele chamou essa nova
qualidade de impulso. Todo mundo já observou que quando o ferro é
aquecido no fogo, permanece vermelho por certo tempo após retirado do
fogo. Ele não se torna novamente preto instantaneamente. Por que, então, não
poderia a mão por seu movimento transmitir um impulso à pedra de forma
que a pedra continuaria se movendo por certo tempo após o contato ter
cessado?[7]
Mais tarde, no final do século XVI, Galileu deu mais um passo e
formulou um argumento interessante que contribuiu para a substituição do
aristotelismo pela mecânica moderna. Ele observou que após um pêndulo
descer até a metade do seu arco, ele sobe no outro lado da perpendicular à
mesma altura do início da sua oscilação. E, novamente, quando se faz uma
bola de gude rolar para baixo num plano inclinado e na base encontra outra
inclinação e deve rolar para cima, ela sobe até a altura da qual partiu. Com
base nessas observações, Galileu construiu um argumento engenhoso.
Durante a descida, a bola de gude ou pêndulo acelera; durante a subida,
desacelera. Portanto, concluiu Galileu, na base da descida, antes de começar a
subir novamente, ela não pode estar nem aumentando, nem reduzindo a sua
velocidade. Isto é, um corpo em movimento num plano horizontal continuará
em movimento à mesma velocidade sem qualquer força adicional aplicada a
ele, a menos que seja retardado por alguma força externa de sentido contrário.
Portanto, embora nenhuma mudança de direção ou velocidade deva ser
contabilizada, o movimento continuado de projéteis para frente ou para cima
não requer nenhuma explicação. Quando esse plano horizontal se torna uma
linha reta no espaço infinito, em vez de permanecer paralelo à superfície
curva da Terra, a dedução de Galileu se transforma na lei da inércia de
Newton. As falhas em Aristóteles levaram a um novo sistema de ciência.

Sir Isaac Newton (1642-1727)


Newton teve os seus antecessores. Não apenas tinha Kepler formulado as leis
do movimento planetário, como também Galileu e mesmo Buridan tinham
antecipado a lei da inércia. Nada disso, porém, reduz o brilho deslumbrante
da síntese de Newton. Sir Isaac Newton tinha uma mente de primeira ordem;
e, felizmente, viveu numa época em que um problema de primeira magnitude
exigia atenção. Para obter um justo respeito pelo seu gênio, deve-se pelo
menos começar a trabalhar com suas teorias em certo detalhe; mas a
apreciação popular assumiu a forma das linhas de Alexander Pope, que longe
de dizer bastante, disse muito pouco:
A natureza e as leis da natureza se escondem na noite;
Deus disse, Deixai Newton agir! E tudo foi luz.[8]

Ao examinar a filosofia newtoniana, três pontos devem ser mantidos


tão distintos quanto possível. Primeiro, há os detalhes científicos concretos.
Por exemplo, no Livro II, Proposição VII, Teorema V:
Se corpos esféricos são resistidos como os quadrados de suas velocidades, em tempos
que são diretamente como os primeiros movimentos, e inversamente como as
primeiras resistências, eles perderão partes de seus movimentos proporcionais aos
todos, e vão descrever espaços proporcionais ao produto destes tempos e às
velocidades iniciais.

Ou, ainda, a Proposição XXV, Teorema XX:


Corpos pendentes que são, em qualquer meio, opostos na proporção dos momentos do
tempo e corpos pendentes que se movem num meio não resistente de mesma
gravidade específica realizam suas oscilações numa cicloide ao mesmo tempo e
descrevem partes proporcionais de arcos em conjunto.

E, finalmente, Livro III, Proposição XL, Teorema XX:


Que os cometas se movem em algumas das seções cônicas, tendo seu foco no centro
do Sol, e por um raio atraído para o Sol, descreve áreas proporcionais aos tempos.

Esses teoremas então recebem sua prova matemática completa.


Há também um segundo ponto a ser considerado num estudo da obra de
Newton. É a sua filosofia da ciência. O que ele pensava da natureza e do
propósito da ciência? Além dos resultados concretos consagrados nos
teoremas, como Newton descrevia seus procedimentos? Que regras de
operação usava? Ele percebia que as usava? Ou alegava proceder de uma
forma quando, na verdade, estava usando um método diferente? Alguém
pensaria que com um pouco de cuidado esse segundo ponto poderia ser
claramente distinguido do primeiro; e que, portanto, o próprio Newton, um
matemático dos mais cuidadosos, não teria tido dificuldade para distingui-los.
Outros, em qualquer caso, se tornaram confusos; e nós gostaríamos de evitar
essa confusão, se possível. Para antecipar: Será que a lei da inércia de
Newton é um detalhe científico solidamente baseado nas observações de
Galileu ou é uma suposição filosófica a priori fora da esfera da experiência?
Por fim, há um terceiro ponto. Deseja-se saber como Newton
influenciou seus sucessores. É comumente dito que a ciência newtoniana
dominou a civilização ocidental por dois séculos completos. Muitos homens,
tanto cientistas como filósofos, desenvolveram sobre esse fundamento. Como
eles desenvolveram? As implicações que eles extraíram do trabalho de
Newton eram implicações que Newton teria admitido? Ou, ainda que
algumas sejam conhecidas por contradizer certas coisas que Newton disse,
essas implicações foram, porém, validamente extraídas? Ou são falaciosas?
Ademais, se dominar o pensamento ocidental significa ter a religião e a
política afetadas, se uma cosmovisão científica não é meramente uma ciência
detalhada, mas uma filosofia ampla, se a moralidade, a arte e os valores da
vida estão envolvidos, então um entendimento dessas matérias também é
essencial para uma mente educada.

Planetas e cometas

Com respeito ao primeiro desses três pontos ─ os detalhes científicos,


concretos, e como esses detalhes logo nos introduzem a inquirições
filosóficas mais amplas ─, a abordagem mais fácil é o movimento planetário
e, em particular, a teoria dos cometas que é aludida no último dos teoremas
newtonianos citados logo acima.
O estudo da astronomia, a descrição matemática precisa dos
movimentos diários das estrelas e os movimentos anuais dos planetas, e até
mesmo o estudo dos cometas mais desconcertantes, nunca desapareceu na
Idade Média. Embora não tenha sido feito muito progresso com os cometas,
as previsões das posições dos outros corpos eram notavelmente exatas. Essas
previsões eram feitas assumindo-se que a Terra estava próxima do centro do
Universo e que os planetas se moviam em órbitas circulares ao redor de
pontos que se moviam em órbitas circulares ao redor do centro do Universo.
O esquema ptolomaico era a teoria dos epiciclos. Através de um único
epiciclo, por exemplo, a posição e os movimentos para frente e para trás de
Marte poderiam ser preditos por um curto espaço de tempo; com a adição de
outros epiciclos os movimentos aparentes de Marte poderiam ser calculados
por um espaço de tempo mais longo; e por fim os astrônomos medievais
trabalharam até quarenta e alguns epiciclos.
Na primeira metade do século XVI, Copérnico estudou Aristarco e
aprendeu que esses epiciclos inconvenientes poderiam ser evitados ao fazer o
Sol o centro ou ponto de referência. Ao elaborar uma astronomia
heliocêntrica, Copérnico ainda reteve o movimento circular, com o resultado
de que suas predições não eram mais precisas, mas na verdade menos
precisas que as dos seus contemporâneos. Mas a matemática era simplificada
e unificada. A unificação se tornou mais evidente com Kepler, cujas três leis,
em particular a segunda e a terceira, exigiam equações de formatos similares
para todos os planetas e tornavam o mecanismo planetário uniforme. O
próprio Copérnico, entretanto, tomou um passo decisivo não apenas ao
remover os epiciclos, mas também ao estabelecer os tamanhos relativos (não
absolutos) das esferas planetárias, ao explicar as flutuações dos tamanhos
aparentes dos corpos celestes e ao descartar alguns outros pequenos itens da
bagagem ptolomaica.
Tycho Brahe, um astrônomo dinamarquês mais jovem, não foi
convencido por Copérnico. Tanto a observação astronômica como a filosofia
reinante favoreciam o geocentrismo. Por um lado, a astronomia heliocêntrica
implicava uma paralaxe estelar, e nenhuma fora descoberta. Mas com
observação ou não, o progresso na matemática era indiscutível.
No início Copérnico defendeu seu caso meramente no progresso
matemático que havia produzido. Mais tarde ele e, não surpreendentemente,
todos os demais caíram no hábito de pensar que os planetas “realmente”
giravam em torno do Sol. O esquema se tornaria não meramente matemático,
mas também concretamente físico. Nessa conclusão bastante natural estavam
embutidas algumas questões filosóficas que agitaram muitas mentes por
longo tempo. Outras questões serão mencionadas mais tarde, mas neste
momento será traçada aquela em que os cometas desempenharam um papel
decisivo.
Durante o final da Idade Média era comumente defendido que os
planetas eram carregados por esferas cristalinas sólidas nas quais estavam
incorporados. Antes disso a astronomia ptolomaica original era a visão usual.
Para Ptolomeu, a verdade simples era que os planetas se moviam em círculos
ao redor da Terra. Os círculos eram meramente os caminhos geométricos dos
planetas. Mas à medida que os escritos de Aristóteles começavam a se tornar
conhecidos, as pessoas ficaram persuadidas de que deveria haver esferas
físicas para carregar os planetas. As “Tabelas de Londres” (A.D. 1232)
colocaram as estrelas fixas numa esfera sólida, mas não os planetas, que se
moviam no éter. William de Auvergne (morto em 1248) defendia as esferas
sólidas, mas seus pontos de vista eram extremamente confusos. Menos
confusão é encontrada em Robert Grosseteste. Quando ele desejava
determinar o calendário, usava os círculos, excêntricos e epiciclos de
Ptolomeu; mas quando filosofava, referia às esferas homocêntricas. Essas
esferas, contudo, parecem ter vindo não de Aristóteles, mas de um astrônomo
muçulmano, Al Bitrogi. Um pouco mais tarde (c. 1300) Duns Scotus tentou
harmonizar Ptolomeu e Aristóteles. Cada planeta teria pelo menos três esferas
que circundam a Terra. A superfície superior convexa da esfera superior e a
superfície inferior côncava da esfera inferior são concêntricas com a Terra.
Mas a superfície inferior côncava da esfera superior e a superfície superior
convexa da esfera inferior são excêntricas à Terra, mas concêntricas uma com
a outra. Entre essas duas superfícies haveria uma terceira esfera, excêntrica à
Terra, mas concêntrica com as duas esferas que acabamos de descrever. As
três esferas poderiam se mover sem abrir um espaço vazio (a natureza
abomina o vácuo), já que a parte mais espessa de uma esfera estaria sempre
na parte mais fina da outra. Além disso, as esferas não seriam fraturadas, pois
as superfícies adjacentes seriam sempre concêntricas.[9] Tycho Brahe também
acreditava nas esferas cristalinas sólidas. Pensava-se, portanto, que os
planetas se moviam porque eram transportados em esferas sólidas.
Essas esferas cristalinas ruíram sob o impacto de Copérnico. A
astronomia heliocêntrica não poderia obviamente permitir um sistema de
esferas sólidas circundando a Terra. Mas por que as esferas não poderiam ser
reconstruídas tendo o Sol como o centro? Isso teria a vantagem de dispensar
o expediente engenhoso de Duns Scotus. Visto que Copérnico tinha os
planetas girando em círculos simples em torno do Sol, apenas uma esfera
seria necessária para cada planeta. Havia, no entanto, outros fatores operando.
Além da nova astronomia, uma nova filosofia estava tomando forma. A
ciência rigorosa, a matemática pura e a observação podem não ter exigido o
abandono das esferas; mas a imaginação especulativa, dispersa pelas novas
posições físicas da Terra e do Sol, se lançou numa nova direção. Tinha
começado uma reação ao escolasticismo aristotélico. E se o geocentrismo
aristotélico tinha agora se provado falso (embora, a bem da verdade, a prova
ainda estivesse longe de ser completa), então sem dúvida Aristóteles também
estava errado na sua visão de que o mundo tem uma extensão finita. Mas se o
mundo é infinito, as estrelas devem estar espalhadas pelo espaço infinito, e
não existe uma esfera exterior.
Nessa situação, não apenas a mente comum, mas também a mente
filosófica se perguntaria: “O que faz, então, os planetas se moverem?”.
René Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, deu uma
resposta a essa pergunta. Ele supôs que a matéria era dividida em partículas
extremamente pequenas. Essas partículas preenchem todo o espaço, porque
entre as partículas maiores, e ainda mais entre os corpos visíveis maiores,
existem partículas ainda menores — tão pequenas que preenchem
completamente os interstícios sem deixar qualquer vácuo. Nos céus, essas
partículas — agitando-se em correntes e redemoinhos — transportam consigo
os planetas do entorno. Não há esferas cristalinas sólidas, mas mesmo assim
os planetas são impulsionados pelo contato físico.
Esses vórtices cartesianos tinham a vantagem de apelar à experiência
familiar. Todo mundo já viu correntes e redemoinhos na água e assistiu à
água carregando ramos e lascas em seu movimento circular ou possivelmente
elíptico. A teoria dá assim uma resposta clara à questão “O que faz os
planetas se moverem?”.
Porém, lamentavelmente, há um fato da astronomia que arruína os
vórtices de Descartes. Ele também é incompatível com as esferas. Esse fato
desagradável é a existência de cometas. Os cometas cortam os planos orbitais
dos planetas em todos os ângulos, e jamais poderiam, portanto, ser resultado
de redemoinhos num fluido celestial. Há também outro fato. Os planetas na
verdade se movem mais lentamente à medida que se afastam do Sol, ao passo
que os vórtices dariam aos planetas mais exteriores as velocidades maiores.
Apesar desses dois fatos conclusivos, os vórtices de Descartes competiram
com a teoria da gravitação de Newton por muitos anos. Talvez a hesitação
generalizada em aceitar a teoria de Newton tenha resultado da sua resposta,
ou da sua falta de resposta, à questão “O faz os planetas se moverem?”.

Gravitação
Desde a época em que a ciência newtoniana ganhou aceitação geral, tem sido
habitual dizer que um corpo em queda livre cai e os planetas giram em torno
do Sol por causa da gravitação. Ora, uma das objeções fatais feitas contra a
ciência medieval era que ela apelava para qualidades ocultas. Ópio causava
sono não por causa da sua cor visível, não por causa do cheiro ou de suas
qualidades tangíveis, mas por causa de uma qualidade soporífera ou
produtora de sono oculta. Como Newton disse,
Os aristotélicos deram o nome de qualidades ocultas não para manifestar as
qualidades, mas apenas para qualidades que eles supunham estarem ocultas nos
corpos e serem as causas desconhecidas de efeitos manifestos… Essas qualidades
ocultas interromperam o progresso da filosofia natural, e, portanto, foram nos últimos
anos rejeitadas. Dizer que toda espécie de coisas é dotada de uma qualidade oculta
específica pela qual ela age e produz efeitos manifestos não nos quer dizer nada.

Ora, as observações de Newton sobre as qualidades ocultas são muito


pontuais, mas levantam a questão se a gravidade também é uma qualidade
oculta ─ invisível, intangível e, portanto, inútil como uma explicação do
movimento. O que seria, então, gravidade?
Cajori, um editor de Newton do século XX,[10] reúne algumas frases de
Newton que parecem fazer da gravidade uma propriedade oculta ou inata da
matéria. Essas frases são sobretudo aquelas em que Newton fala da atração de
um corpo por outro. De fato, esse entendimento tem sido bastante comum.
No entanto, cartas particulares, não publicadas durante a vida de Newton,
mostram que essa não era de fato a sua visão. Por um tempo ele até manteve
a ideia de um éter que, por sua condensação e rarefação, exerceria pressão
sobre os corpos que gravitam. Mas fosse um éter elástico a explicação correta
ou não, era inconcebível para Newton que um corpo pudesse afetar outro
corpo sem um contato físico, a menos que por acaso o movimento fosse
causado por algum agente espiritual imaterial.
A palavra final de Newton sobre o assunto era que ele não sabia a causa
da gravidade. E foi nesse contexto que ele fez sua declaração frequentemente
citada “Não invento hipóteses” [Hypotheses non fingo]. Ou, novamente,
numa carta, “A gravidade deve ser causada por um agente que opere
constantemente de acordo com certas leis; mas se esse agente é material ou
imaterial, deixo à consideração dos meus leitores” (veja o Principia,
Proposição LXIX, Teorema XXIX, Escólio).
O Escólio Geral no final do Livro III é claro sobre esse ponto. Desde
que os corpos continuam em movimento, argumenta ele, exceto se parados
por fricção, os planetas continuarão a se mover pelas meras leis da gravidade.
“Contudo, eles [os planetas] não poderiam de forma alguma ter inicialmente
derivado as posições regulares das próprias órbitas a partir dessas leis”. Os
cometas fornecem evidência conclusiva de que o sistema solar não poderia
ter surgido através de meras causas mecânicas. Ele “só poderia proceder do
conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso”.
Segue-se então uma exposição teológica, pois Newton estava
convencido de que: “Muito do que concerne a Deus, no que diz respeito ao
discurso sobre ele a partir das aparências das coisas, certamente pertence à
filosofia natural”. Voltando finalmente à gravitação, ele conclui: “Mas até
então não tenho sido capaz de descobrir as causas daquelas propriedades da
gravidade a partir dos fenômenos, e não estruturo nenhuma hipótese”.

Explicação

O material anterior, selecionado da história da ciência, mostra de forma


suficientemente clara que os detalhes das leis e dos fatos científicos não
esgotam o interesse do assunto. A história tem sua importância, certamente.
Nós queremos saber que Descartes disse isso e Newton disse aquilo. Mesmo
as razões para rejeitar vórtices foram dadas como sendo informação histórica.
Mas nem toda ciência é tão definitiva e estritamente científica. Temas
filosóficos também estão sempre entrelaçados. Portanto, nesse ponto um
pouco de reflexão sobre o significado desse avanço histórico e científico se
faz necessário.
Logo acima lemos as palavras de Newton, terminando com sua recusa
em explicar a gravitação. O que essa recusa significa? Se a gravitação não
pode ser explicada, a gravitação pode explicar alguma coisa? O que se quer
dizer com explicação científica?
À parte das observações de Newton sobre a teologia, às quais
voltaremos um pouco mais tarde, a questão imediata é o significado da lei da
gravitação para a ciência estrita ─ para a revolução dos planetas e para um
corpo em queda. As esferas cristalinas, os vórtices cartesianos e até mesmo,
por um tempo, o éter newtoniano foram inventados para explicar o que faz os
planetas se moverem. Mais particularmente, esses expedientes foram
inventados para explicar o que faz os planetas se moverem em uma trajetória
curva ao invés de voar em linha reta. Não só poderia Demócrito dizer sem
rodeios que o movimento não precisa ser explicado, como de fato a lei da
inércia de Newton dá a aparência de assim o dizer. No entanto, a lei da
inércia se refere apenas ao movimento retilíneo. Quando um corpo em
movimento muda a direção do seu movimento, como os planetas
constantemente fazem nas suas órbitas elípticas, uma causa ou explicação é
necessária. Que essa motivação esteja por trás da lei da gravitação é mais
claro do que qualquer esfera cristalina já tenha sido. A gravidade é usada
principalmente para explicar por que os planetas “caem em direção” ou giram
em torno do Sol em vez de continuar em linha reta de acordo com a primeira
lei do movimento. Mas agora que a lei da gravitação foi desenvolvida com a
precisão matemática dos quadrados inversos, nós explicamos quod erat
demonstrandum?
A dificuldade pode ser ilustrada com um exemplo ainda mais simples.
Se perguntamos para uma pessoa por que uma pedra que é largada cai no
chão, ela responde “Ah, é por causa da gravidade”, ela explicou alguma
coisa? Aqui a dificuldade não é encontrada em uma mudança de direção,
como é o caso dos planetas, mas em dois outros fatores: o que faz, em
primeiro lugar, a pedra cair em vez de permanecer no ar, e o que faz sua
velocidade aumentar à medida que ela cai? Será que a lei da gravitação
responde essas questões?
A lei geral da gravitação é que quaisquer duas partículas se atraem
mutuamente na proporção do produto das suas massas e inversamente ao
quadrado da distância. Quando aplicada aos planetas e cometas, essa lei se
transforma nas três leis do movimento planetário de Kepler; quando aplicada
a pedras em queda, se torna a lei da aceleração constante de Galileu. O caso
mais simples será satisfatório para a discussão.
Fora feitas as perguntas “Por que uma pedra cai? O que a faz cair? O
que a faz cair mais rápido?”. A resposta usual é “A lei da gravitação”. Essa
lei, se aplicada a corpos em queda livre, é que o corpo cai com uma
aceleração de 9,8 metros por segundo ao quadrado. Ora, para substituir a
própria lei pelo seu nome, a pergunta “Por que uma pedra cai?” é respondida
dizendo que ela cai porque cai com uma aceleração de 9,8 metros por
segundo ao quadrado. Mas como é que uma declaração da taxa de queda
pode explicar o que faz a pedra cair em primeiro lugar? E como a taxa,
sempre tão cuidadosamente medida, explica o que faz a pedra cair
constantemente mais rápido? Não se torna claro, a partir da uma reflexão, que
a lei da gravitação não é uma explicação? Ela não explica nem a queda da
pedra, nem a revolução dos planetas.
Aqui começamos a ver como os detalhes da ciência e os princípios da
filosofia se tornam entrelaçados e mesmo confusos. Galileu e Newton em sua
grande genialidade desenvolveram suas respectivas leis em forma matemática
rigorosa. Isso era ciência. Que ninguém subestime a sua importância! Claro
que não; nós resolvemos nunca subestimar a importância da ciência — se ao
menos pudermos descobrir qual ela é. Chegamos à lei científica da
gravitação, ou, pelo menos, Newton chegou por nós; mas agora perguntamos,
e até o próprio Newton começa a perguntar, sobre a importância dela. Isso
não é ciência; é filosofia. Que ninguém subestime a importância da filosofia!
A filosofia da ciência, em distinção da própria ciência como
ordinariamente entendida, deve considerar a importância da lei científica. A
ciência explica alguma coisa? Não devemos ir além da ciência, e se não nos
importamos com qualidades ocultas, não devemos, tal como Newton,
explicar a origem (pelo menos) do sistema solar como resultado de uma
Inteligência Suprema? Não devemos avançar da física para a metafísica?
Certamente queremos saber mais do que o caminho dos planetas e a
aceleração de um corpo em queda livre. Fatos como esses são interessantes e
importantes. Mas uma declaração do fato não é uma explicação: é a própria
coisa que precisa ser explicada. Visto por essa luz, a ciência não explica nada.
Bem, então essa luz, alguns cientistas afirmam, deve ser a luz errada. A
verdadeira luz, dizem eles, é que a ciência explica. Visto que, obviamente, a
ciência não explica o que faz uma pedra cair, esses homens concluem que a
pergunta errada foi feita. A explicação deve ser definida por aquilo que a
ciência pode fazer; o que a ciência não pode fazer não deve ser chamado de
explicação. Qualquer pergunta que a ciência não possa responder — quer ela
tenha a aparência de ciência, como a causa da queda de um corpo, quer seja a
fortiori uma questão metafísica última, como a existência de Deus —, não é
uma pergunta adequada. Não se deve fazer essas perguntas. Só se deve fazer
perguntas que a ciência possa responder. E existe essa pergunta. A ciência
pode não ser capaz de explicar o que faz um corpo cair, mas pode responder
— e pode responder com incrível precisão matemática — como um corpo
cai: com uma aceleração de 9,8 metros por segundo ao quadrado. A ciência
responde como. Qualquer outra pergunta é absurda. Explicação é descrição.
Como Morris R. Cohen coloca,
Muitas vezes é feita uma distinção nítida entre descrição e explicação, mas uma
explicação científica é no fim das contas apenas um certo tipo de descrição, uma
descrição na qual o fenômeno está relacionado a outros fenômenos de acordo com
certas leis. Assim, explicamos o arco-íris ao chamar a atenção para a lei da refração da
luz… Note que a lei da refração não é algo antecedente no tempo à ocorrência dos
arco-íris. O arco-íris é apenas uma das formas ou ocorrências da refração… Lei não é
uma força que compele suas instâncias a se conformarem com ela. Então, a lei da
gravitação é uma descrição em termos matemáticos das relações espaço-temporais de
todos os corpos, celestes assim como terrestres… Formular a lei do modo como
Newton fez foi possível por causa do fato empírico de que as observações da Lua e
dos corpos em queda se encaixam nessa fórmula. Isso em nada responde a noção
popular de uma causa como sendo a força que compele objetos a se comportarem de
uma certa maneira em vez de outra.[11]

Evidentemente, essa visão da explicação e, em particular, essa visão


da ciência, não era a visão de Newton. Planetas e pedras em movimento sem
nada os tendo colocado em movimento lhe era algo inconcebível. A lei da
gravitação não poderia ter colocado os planetas nas suas órbitas. Sem a
operação de uma Inteligência Suprema, o sistema solar não pode ser
explicado. Mas se Newton estava certo nesses pontos, como não é a única
questão que pode ser legitimamente feita; a ciência experimental não é o
único caminho para a verdade; e uma filosofia da ciência é necessária para
determinar a gama de aplicação e as limitações da ciência. A necessidade de
princípios não científicos ou não experimentais se torna ainda mais clara
quando examinamos a própria visão da explicação. A afirmação confiante de
que como é a única questão legítima não é uma descoberta experimental de
laboratório. E tampouco é uma descrição de qualquer movimento físico.
Sobre qual fundamento, então, uma declaração como essa pode ser feita?
Como alguém reconhece que Deus não é a verdadeira luz, e que alguma outra
coisa é? Mais uma vez fica claro que os cientistas, quer intencionalmente,
quer não, fazem e devem fazer uso de uma filosofia.

Filosofia mecanicista

A ciência, a história da ciência, e a filosofia da ciência estão, como temos


visto, tão inextricavelmente fundidas ou confundidas que é impossível traçar
limites definidos entre elas. No entanto, algumas pessoas acreditam que os
limites são mais distintos e óbvios. Assim, por vezes os cientistas acusam os
filósofos de não serem científicos e ignorarem os fatos. A ciência lida com
fatos! Os filósofos respondem condenando os cientistas por aceitarem como
fatos as pressuposições filosóficas que subjazem suas leis. Ou, o que é pior,
eles acusam os cientistas de não estarem cientes de que usam pressuposições
filosóficas. Os cientistas frequentemente pensam que seus resultados
decorrem direta e exclusivamente da experimentação e totalmente à parte da
especulação filosófica e da metafísica etérea. Dificuldades como essas
aumentam com o desenvolvimento da ciência newtoniana em filosofia
mecanicista.
O mecanicismo foi a cosmovisão científica dominante do século XIX.
Ele era considerado a conclusão mais abrangente e definitiva da investigação
científica. Mesmo neste, a segunda metade do século XX, o mecanicismo não
está sem defensores. Mas desde que agora ele também enfrenta oposição dos
próprios cientistas, deve-se determinar se ele realmente é ciência, ou se é
meramente uma metafísica supersticiosa; e sendo o último caso, deve-se
decidir como substituí-lo por uma filosofia sólida ou, no caso, fazê-lo sem
qualquer filosofia e metafísica. Consequentemente, o objetivo imediato é
mostrar como os métodos modernos de ciência levaram ao mecanicismo, o
que é o mecanicismo, e por fim mostrar o efeito sobre essa filosofia da
revolução do século XX na ciência.
Para examinar a relação entre a ciência e o mecanicismo, algo além da
história convencional deve ser primeiro dado em relação ao método
científico. O método científico, como já foi dito, é tido em alta reputação hoje
em dia. Cursos universitários em Sociologia, desenvolvimento da civilização
(onde um estudante aprende tudo sobre tudo em um semestre) e mesmo
Inglês nunca cansam de cantar seus louvores. Mas quando um estudante de
Física, que usa o método científico em seus experimentos de laboratório,
mais tarde lê relatos divergentes sobre esse método, ele — se não a
Sociologia e outras especialidades — entende a dificuldade de defini-lo com
precisão. No entanto, até que seja definido, sua relação com o mecanicismo
permanece em dúvida. Agora, por mais difícil que seja formular um relato
exato do método científico, é relativamente fácil mencionar algumas
diferenças entre o procedimento aristotélico, agora condenado como não
científico, e os métodos modernos.
Ao contrário das impressões populares, a diferença entre a ciência
aristotélica e a moderna não é que a primeira é dedutiva e a última empírica.
Galileu e qualquer cientista moderno formulou hipóteses e então deduziu
suas consequências. Sem essa dedução, a ciência moderna não poderia
funcionar. E, também, a diferença não é que a ciência moderna é
observacional e empírica, mas o procedimento aristotélico não. Aristóteles e
muitos outros antigos eram excelentes observadores. Embora Aristóteles não
tenha descoberto a velocidade da luz, ele observou que corpos pesados caem
mais rápido do que os mais leves e explicou isso pelas diferentes resistências
a um meio.
Talvez a principal diferença — a fonte de outras diferenças — seja que
os cientistas modernos experimentam por princípio, ao passo que os antigos
apenas observavam, ou no máximo experimentavam em uma escala muito
pequena sem qualquer plano definido. O cientista de hoje não senta e espera
algum evento natural acontecer por acaso. Ele deliberadamente faz algo.
Galileu, por exemplo, embora seu estudo do pêndulo possa ter começado
acidentalmente, não esperou para observar algum corpo casual cair de
qualquer altura que fosse. Ao contrário da história popular, ele sequer jogou
pesos da torre inclinada de Pisa. Ele deliberadamente rolou bolas de gude
num plano inclinado que havia cuidadosamente alisado e polido. Essa
experimentação planejada é o fator pelo qual John Dewey gostava sobretudo
de recomendar o método moderno. O experimentador faz coisas com o
material que está examinando. Ele o corta, ou o aquece, ou o dissolve em
ácido, ou passa uma corrente elétrica através dele, entre outras coisas.
Essa experimentação sistemática logicamente requer e historicamente
desenvolveu uma técnica. Galileu não só preparou seu plano inclinado e
rolou bolas de gude para baixo, como também variou a extensão da sua
descida. Isso significa que ele mediu as distâncias; ele mediu os tempos
também. E tirou essas medidas com o propósito de manipulá-las
matematicamente. Uma das suas análises matemáticas mostrou que variar a
velocidade com a distância pressupõe velocidade infinita; e uma vez que isso
é impossível, ele assumiu que a velocidade aumenta com o tempo. A partir
dessa suposição, dessa lei, dessa equação matemática, pode ser deduzido que
um corpo cai quatro vezes tão longe em dois segundos como em um.
Cientistas posteriores usaram mais matemática; na verdade, inventaram mais
matemática para usar. Hoje todo mundo que assiste a astronautas na televisão
vê quadros negros cheios de fórmulas enigmáticas. Na física antiga, a
matemática em larga medida não era usada; mas a matemática é a alma, ou
materialisticamente alguém diria, a “mola mestra” da ciência moderna.
Kepler expressou a ideia muito bem, dizendo que assim como os ouvidos
foram feitos para o som e os olhos para a cor, a mente do homem é feita para
medir quantidades e vagueia na escuridão quando deixa o reino do
pensamento quantitativo.[12]
O uso da matemática destaca ainda outra importante diferença entre a
ciência antiga e a moderna. Após ter matematicamente deduzido da sua
primeira fórmula a consequência de que um corpo cai quatro vezes tão longe
em dois segundos como em um, Galileu mediu suas bolas de gude novamente
para ver se realmente faziam isso. Ou seja, a dedução matemática é uma
previsão que pode ser verificada por um experimento posterior. Previsão e
verificação são a essência do método científico moderno. Claro, a astronomia
antiga fez um uso brilhante da matemática, ao menos da geometria. As
previsões também eram essenciais, e as previsões eram testadas pela
observação posterior. Mas essas antecipações dos métodos modernos estavam
em grande parte confinadas à astronomia. A física, para não dizer a química,
era algo completamente diferente.
Os rápidos avanços do novo método científico — não apenas na grande
escala celestial de Kepler e Newton, mas também nos inumeráveis detalhes
do pêndulo e de pequenas máquinas, da pressão atmosférica, da ótica física,
da termodinâmica, da teoria atômica, etc. — confirmaram o poder ilimitado
da matemática e a fecundidade da medição quantitativa. Logo, era inevitável
a tese de que todos os fenômenos naturais são suscetíveis a esse método.
Como Laplace colocou: dê-me as posições e velocidades de todas as
partículas do Universo e poderei calcular suas posições em qualquer
momento do futuro. Essa tese é a tese do mecanicismo. O Universo é visto
como uma máquina, e as previsões das fórmulas matemáticas são atualizadas
inevitavelmente. Nada que seja contrário à matemática pode possivelmente
ocorrer.[13]
Que os céus astronômicos são mecânicos não era uma ideia nova. Ela
não é mais copernicana do que ptolomaica. Descartes com seus vórtices e a
teoria da gravitação de Newton não eram tão surpreendentes até onde a ideia
de movimento mecânico estivesse em questão. Mas o que era surpreendente,
perturbador e controverso era a extensão do ideal mecânico para todos os
fenômenos, incluindo a vida, e em especial a vida humana.
Descartes estava suficientemente disposto a considerar os animais
como máquinas inconscientes. Esmurre o botão certo, e sai um grito. Mas
Descartes sabia que ele próprio não era apenas uma máquina; ele era um ser
pensante — Cogito ergo sum. O pensamento é algo que as máquinas não
podem ter; e por esse pensamento, incluindo a disposição, Descartes foi
capaz de alterar, se não a quantidade constante de movimento no Universo,
pelo menos a direção dos movimentos ao redor da glândula pineal e, assim,
controlar sua própria conduta. No entanto, apesar dessa experiência íntima do
pensar, um homem não mecânico em um Universo mecânico resulta num
dualismo estranho. Spinoza, com sua forte tendência para a unidade, não teria
o homem como um reino dentro de um reino. As leis da natureza não
poderiam permitir nenhuma exceção. A lei mecânica deve ser inviolável.
Mesmo Locke, num momento cético, disse que até onde ele sabia, um corpo
era capaz de pensar. Em cujo caso uma alma seria desnecessária. Então, o
escritor francês La Mettrie (1709-1751) aboliu os princípios espirituais em
seu livro L’Homme Machine:
L’âme n’est donc qu’un vain terme dont on n’a point d’idée, et dont un bon esprit ne
doit se servir que pour nommer la partie qui pense en nous. Posé le moindre principe
de mouvement, les corps animés auront tout ce qu’il leur faut pour se mouvoir, sentir,
penser, se repentir, et se conduire en un mot dans le Physique et dans le Moral qui en
depend. [But] C’est une folie de perdre le temps à en rechercher le méchanisme. La
nature du mouvement nous est aussi inconnue que celle de la matière… Qu’on
m’accorde seulement que la matière organisée est douée d’un principe moteur… c’en
est assez…[14]

Os detalhes científicos de La Mettrie não são superiores ao nível do


século XVIII; alguns dos seus argumentos parecem superficiais hoje; eles não
deveriam ser julgados pelos padrões atuais. Uma tentativa mais abrangente de
reduzir a vida à lei psicoquímica deve ser encontrada em The Mechanistic
Conception of Life (1912) por Jacques Loeb.
Agora, se os corpos não precisam de uma alma, como argumentou La
Mettrie, foi fácil para outro francês, o Barão d’Holbach (1723-1789), concluir
que o Universo não precisa de Deus. Como com Spinoza, o Universo é sem
propósito e, consequentemente, o teísmo é uma doença causada por algum
desarranjo do mecanismo do homem.
Cabanis (1757-1808) em seguida tentou formular uma psicologia
materialista e mecanicista. Ele relacionou a influência da idade, do sexo, da
saúde, do clima, etc. sobre a assim chamada mente. Foi ele quem inventou a
frase muito conveniente “O cérebro secreta o pensamento assim como o
fígado secreta a bile”. No entanto, ele tentou evitar a metafísica, recusando-se
a discutir as “causas primárias”; e o excelente historiador da filosofia
francesa Lévy-Bruhl alega que, por essa razão, ele não deveria ser chamado
de materialista.
Na Alemanha durante o século XIX o materialismo encontrou liderança
nas obras de Moleschott, Büchner e Vogt. Força e matéria eram as realidades
últimas. O princípio da conservação da matéria era um fundamento desse
materialismo, e o correspondente princípio da conservação de energia foi
usado para apoiar as ideias do mecanicismo e do determinismo. A ampla
aceitação desse ponto de vista ─ o materialismo, o ateísmo e a arrogância
ingênua da certeza absoluta ─ pode ser julgada pelo fato de que Kraft und
Stoff de Ludwig Büchner passou por pelo menos 17 edições em alemão e 22
em línguas estrangeiras. Prefaciando seu primeiro capítulo com o slogan
“Onde há três estudantes da natureza, há dois ateus”, ele abre o corpo do seu
texto com onze afirmações do materialismo por diferentes autores. Além
destas, será interessante e instrutivo tomar como amostra as próprias
afirmações vigorosas dele:
Aqueles que falam de uma força criativa independente ou sobrenatural, que fez o
Universo evoluir de si mesmo ou do nada, estão em antagonismo com o primeiro e
mais simples axioma de uma visão filosófica da natureza.
A matéria como tal é indestrutível… “Um átomo elementar simples”, diz B. Stewart,
“é realmente um ser imortal”… A matéria deve ter sido eterna, o Universo deve ser
não criado… Hoje a indestrutibilidade ou permanência da matéria é um fato científico
firmemente estabelecido.

O movimento é um atributo necessário e indispensável da matéria… A astronomia


física nos ensina com certeza absoluta… Segue-se, portanto, com absoluta certeza que
o movimento é tão eterno e incriável… como a força ou a matéria… De acordo com
Holbach (Système de la Nature) o mundo não é nada mais que matéria e movimento…
A matéria e o movimento são eternos… E tudo isso é inteiramente corroborado pela
ciência moderna.
As leis naturais são imutáveis. A experiência de mais de mil anos tem imposto sobre
os observadores a convicção da imutabilidade das leis naturais… com tal certeza
absoluta que não pode restar a menor dúvida… Com a mais absoluta verdade e a
maior certeza científica podemos dizer neste dia: Não há nada de milagroso no
mundo… O fantasma de um espírito pessoal, universal, interferindo nos processos
naturais há muito foi banido da astronomia, física e química… O leigo ignorante pode
acreditar em um Deus pessoal; mas o cientista ou o leigo educado… colocariam sua
razão abaixo da do camponês mais simplório se cressem em tal ser sem um
fundamento… A crença em Deus está, portanto, quase que confinada atualmente aos
chamados homens instruídos que não sabem quase nada sobre os processos naturais…
Qualquer interesse teológico ou pedantismo tacanho que possa ser ensejado em
oposição a isso, ele será contravertido pela força dos fatos, que no que diz respeito a
isso não deixam margem para qualquer dúvida.

O pensamento pode e deve ser considerado um modo especial de movimento natural


geral que é tão característico da substância dos elementos nervosos centrais como o
movimento da contração é da substância-músculo ou o movimento da luz é do éter
universal… As palavras mente, espírito, pensamento, sensibilidade, volição e vida não
designam nenhuma entidade ou coisa real, mas apenas propriedades, capacidades e
ações da substância viva, ou resultados de entidades, que estão baseadas na forma
material da existência.[15]

É o julgamento de Dampier-Whettham[16] que “No início do século


XX a maioria dos homens da ciência mantinha inconscientemente um
materialismo ingênuo, ou, se de fato pensava nesses problemas, era inclinada
ao fenomenalismo de Mach e Karl Pearson, ou o monismo evolucionista de
Haeckel ou de W. K. Clifford”.
Entre os filósofos da ciência do século XX tem havido uma tendência
não só de negarem eles mesmos o materialismo, mas também de
minimizarem sua extensão e importância no século XIX. Essa interpretação
da história da filosofia científica é sustentada de duas maneiras. A primeira é
o ceticismo cauteloso de alguns autores. Por exemplo, acabamos de ver como
Lévy-Bruhl hesitou em chamar Cabanis de materialista por causa da sua
ostensiva fuga das questões últimas. Mesmo La Mettrie não é um segundo
Hobbes. F. H. Lange (1828-1875), em sua famosa History of Materialism, é
um exemplo mais convincente. Lange era uma espécie de kantiano com uma
realidade incognoscível; uma vez que é incognoscível, não podemos afirmar
que ela é ou material, ou mental, com o resultado de que, embora as
categorias a priori nos forcem a pensar mecanisticamente, o materialismo
metafísico é ceticamente evitado.
Outro artifício para escapar do rótulo desagradável de materialismo é
insistir que por definição estrita materialismo é a teoria de pequenas esferas
maciças se movendo no espaço vazio. Assim, se um autor nega o espaço
vazio e assume um corpo continuamente elástico ou etéreo, não pode ser
chamado de materialista. Talvez possa ser chamado de corporealista e, se
imita Spinoza e atribui a sensação ao corpo, possamos chamá-lo de
hilozoísta.
Essa é a posição de Ernst Haeckel em The Riddle of the Universe.
Embora seu prefácio modestamente negue a onisciência, ele está bastante
convencido de que a conservação da matéria e a conservação de energia são
duas leis supremas da natureza. A descoberta delas é o maior triunfo
intelectual do século XIX. Em frases consecutivas ele diz:
A morte prematura de Spinoza, Raphael, Schubert e muitos outros grandes homens…
é suficiente… para destruir o mito insustentável de uma “Providência sábia” e de um
“Pai Celestial todo amoroso”. A existência do éter (ou éter cósmico) como um
elemento real é um fato positivo [itálicos seus] e tem sido conhecido como tal pelos
últimos doze anos.[17]

Seu interesse no éter e na conservação da matéria é igualado e talvez


sobrepujado por sua antipatia pelo cristianismo, não só na forma da
corrupção e intriga romana, mas também na forma do protestantismo liberal.
A crença na criação, providência e milagres é incompatível com a lei da
persistência da matéria e da força (235). Até mesmo os ministros protestantes
liberais acalentam ideias de Deus que são diretamente opostas a toda
experiência científica (10). A ciência já tem “amplamente demonstrado” (13)
que o Universo é eterno, que a substância tem dois atributos — matéria e
energia — e que a vida orgânica resultou da água que foi produzida pelo
arrefecimento geológico da Terra.
Haeckel evita o materialismo ordinário em favor do espinosismo. A
matéria não pode existir sem espírito nem o espírito sem matéria. “A matéria
ou substância infinitamente estendida e o espírito (ou energia) ou substância
sensível e pensante são os dois atributos fundamentais… da essência divina
abrangente do mundo, a
substância universal” (20-21). Portanto ele também pode dizer: “A
consciência, o pensamento e a especulação são funções das células
ganglionares do córtex cerebral”.
Esse dogmatismo científico pode não ser um materialismo atômico.
Spinoza, de forma semelhante, tentou evitar a acusação de ateísmo ao tomar a
natureza como sendo Deus. Visto, no entanto, que ele negava a existência de
um criador pessoal e transcendente do Universo, insistir que ele não era ateu
é meramente um jogo de palavras. Assim também, quando o pensamento é
identificado como uma secreção ou como os movimentos das células
ganglionares, não passa de um jogo de palavras alegar que o materialismo foi
abandonado. Todavia, deixemos quem quer insistir nessa picuinha; o tipo de
ciência que está sendo aqui discutido é o mecanicismo. Ele é um método que
depende de mensurações quantitativas e desconsidera qualidades. Seus
resultados são equações diferenciais, e sua filosofia é que nada existe que
possa violar a lei mecânica.
Sem dúvida, as equações diferenciais têm seu próprio apelo estético;
mas será que esse apelo pode ocorrer em um mundo completamente
quantitativo, desprovido de qualidades? Já foi explicado que os cientistas
medievais afirmavam, e que Newton negava, o valor das qualidades ocultas.
Essas supostas qualidades sofriam de um defeito duplo: elas não podiam ser
observadas, e mesmo quando assumidas, eram inúteis para fins de explicação.
Mas os tipos comuns de qualidade — por mais facilmente que fossem
observáveis — também se provaram, aos olhos de Galileu e Newton,
igualmente inúteis para fins científicos. Ao estudar o pêndulo ou a alavanca,
ninguém pensa em prestar atenção à sua cor. Se o pêndulo é vermelho ou
azul, não faz a menor diferença. Da mesma forma, se alguém estuda os
efeitos dos ácidos nos metais, o gosto não tem importância. E se alguém
deixa cair uma bola para ver o ângulo do seu repique, o som que ela faz ao
chocar com a superfície não tem nada a ver com o objeto do experimento.
Essas assim chamadas qualidades secundárias podem, portanto, ser
ignoradas.
Não só porque são inúteis é que podem ser ignoradas; um pouco de
reflexão irá mostrar que vermelho e azul, doce e azedo, barulhento e suave,
quente e frio na verdade não existem. Galileu considerou o fenômeno do
calor. A opinião comum, em seus dias e hoje, era que o calor é uma
verdadeira qualidade que realmente reside na coisa que dizemos ser quente.
Mas quando Galileu pensou sobre a constituição do corpo ou matéria, chegou
à conclusão de que a matéria em sua própria natureza possui tamanho e
forma; em relação a outros corpos, um pedaço de matéria pode ser grande ou
pequeno; pode se mover ou permanecer em repouso; toca ou não toca em
outro corpo. Essas características são absolutamente inseparáveis do corpo;
nós não podemos separá-las fisicamente nem sequer podemos imaginá-las
separadas. O status das qualidades secundárias, no entanto, é bem diferente
disso. Se fôssemos seres de razão pura e não possuíssemos sentidos,
provavelmente nunca teríamos qualquer ideia dessas qualidades. Ao invés de
estarem realmente no corpo, vermelho, doce e quente são meramente reações
que ocorrem na mente de um organismo sensitivo. Fossem as sensações
abolidas, e vermelho e quente não apareceriam mais em lugar algum.
Uma ilustração notável desse ponto de vista é o experimento de Galileu
com uma pena. Suponha que uma pena se mova, ela tem um tamanho e uma
forma, e a tocamos. Mas se ela é roçada no lábio superior logo abaixo das
narinas, ela coça. Roce-a na parte de trás dos dedos, e ela não coça. Ora, diz
Galileu, essas cócegas estão todas em nós e não na pena, e se o corpo
animado e sensitivo é removido (e a pena é roçada em uma estátua de
mármore), as cócegas deixam de existir. O mesmo vale para os gostos, as
cores, os odores e os sons.
Newton também negava a existência real das qualidades secundárias.
Falando das cores, ele disse que os raios de luz não são estritamente
coloridos. Neles não há nada mais do que certo poder de provocar uma
sensação na mente. Assim também, o som de um sino não é nada mais que
um movimento trêmulo, e o som no ar não é nada mais que o consequente
movimento do ar. As cores e os sons, portanto, só existem na mente da
pessoa que os sente. E se a mente é precisamente o movimento das células
ganglionares, então as cores e os sons são precisamente os movimentos
dentro do nosso crânio. Será que complicaria o argumento se também
fizéssemos a seguinte pergunta: se o vermelho que vemos não é uma
qualidade do corpo que vemos, mas apenas um movimento no cérebro, não
são os corpos que vemos e os movimentos que descrevemos nessas equações
diferenciais também meramente movimentos no cérebro?
A rejeição das qualidades secundárias é o lado negativo do ponto de
vista científico; o lado positivo é que a quantidade é real. A insistência na
medição quantitativa — ou melhor, essa restrição da ciência aos
relacionamentos matemáticos entre pontos no espaço — estava em decidido
contraste com o procedimento medieval e aristotélico. Na filosofia
escolástica, um dos conceitos científicos importantes era o da mudança
qualitativa. A experiência apresenta inúmeros exemplos: nascimento,
crescimento e morte; as mudanças do clima; a deterioração dos alimentos; o
derretimento do gelo; e a ebulição da água. Todos esses são exemplos de
mudança qualitativa. Mas quando as qualidades secundárias são consideradas
irreais e quando a medição espacial substitui todas outras observações
sensoriais, a mudança qualitativa não mais tem qualquer interesse para a
ciência. Se não há qualidades, não pode haver mudança qualitativa.
Essa nova perspectiva científica logo produziu um resultado
interessante e importante. Na visão aristotélica alguns corpos eram pesados e
outros, leves. Isto é, as diferenças qualitativas eram a base de duas espécies
totalmente diferentes de corpos — tão diferentes que as mesmas leis não
poderiam se aplicar a ambos. Terra e água eram pesados, e naturalmente
caiam na direção do centro da Terra; ar e fogo eram leves, e seu movimento
natural era para cima em direção ao céu. Mas com o novo método
matemático de medição do espaço, os experimentos logo foram concebidos
para mostrar que o ar tinha peso. Duas hemisferas de latão foram colocadas
juntas e o ar dentro delas sugado. A pressão de ar externa então tornou quase
impossível separar as hemisferas. Mais uma vez, um tubo de mercúrio, ou
seja, um barômetro, foi levado montanha acima, e foi observado que a altura
da coluna diminuía à medida em que a altitude aumentava. Esses resultados
são em si mesmos bastante interessantes, porém mais importante é a
generalização baseada neles ─ a saber, que todos os corpos são iguais e que
um tipo de lei cobre toda a natureza.
Ao invés, portanto, de a natureza ser composta de corpos pesados,
leves, quentes, frios e coloridos sujeitos a mudanças qualitativas, ela é
composta de minúsculos átomos ou esferas pesadas e rígidas que se movem
no espaço, mas que não mudam a si mesmas. Newton colocou desta forma:
“Deus formou no princípio a matéria em partículas sólidas, pesadas, duras,
rígidas e móveis… incomparavelmente mais duras que quaisquer corpos
porosos compostos delas”. Essencialmente, essa é a visão do antigo rival de
Aristóteles, Demócrito. Atomismo é a teoria de que o mundo é composto de
pequenas partículas movendo-se no espaço vazio. Todos os fenômenos
observados resultam do rearranjo dos átomos. Os fenômenos da vida e da
mente, da mesma forma, devem ser explicados por arranjos e movimentos
mais complexos.
Claro, o próprio Newton não tinha a intenção de negar a existência de
Deus e da alma; mas as implicações da sua teoria foram entendidas como
levando a isso. Um autor contemporâneo afirma:
A autoridade de Newton estava diretamente por trás dessa visão do cosmo que via no
homem um espectador débil e irrelevante (até onde alguém aprisionado num quarto
escuro pudesse ser assim chamado) do vasto sistema matemático cujos movimentos
regulares de acordo com princípios mecânicos constituíam o mundo da natureza. O
mundo gloriosamente romântico de Dante… o mundo em que as próprias pessoas
pensavam estar vivendo — um mundo rico em cores e sons, impregnado de
fragrâncias, cheio de alegria, amor e beleza… está amontado agora no canto, nos
cérebros de seres orgânicos dispersos. O mundo realmente importante que havia fora
era um mundo duro, frio, sem cor, silente e morto.[18]

É inclusive um tópico de disputa se o mundo real — os átomos —


podem ser duros, pois duro também parece ser uma qualidade em vez de uma
dimensão geométrica. Mas é indiscutivelmente “um mundo de quantidades,
um mundo de movimentos matematicamente computáveis em regularidade
mecânica” no qual as aspirações humanas não podem passar de efeitos
químicos misteriosos em compostos de carbono complexos. Bertrand Russel
escreveu um parágrafo muito citado, no sentido de que o homem é o produto
de causas que não tinham a previsão do seu surgimento; que suas esperanças
e temores são a colocação acidental dos átomos; que nenhum heroísmo ou
intensidade de pensamento pode preservar uma vida individual além da
sepultura; que todo labor, inspiração e gênio humanos são destinados à
extinção e serão enterrados sob os escombros de um Universo em ruína. E, de
maneira definitiva, diz: “Todas essas coisas, se não absolutamente
incontestáveis, são, todavia, quase tão certas que nenhuma filosofia que as
rejeite pode esperar ficar de pé”.[19]
É agora óbvio que a ciência chegou a conclusões de importância
religiosa, ética e humana. Mas é ainda ciência? Não será antes cientificismo?
Não foi o limite tênue entre a ciência e a filosofia de algum modo cruzado?
Deve ter sido; pois embora a negação dos milagres possa parecer científica
devido à incompatibilidade dos milagres com a lei matemática, a existência
Deus e a imortalidade da alma e o valor da vida humana em oposição ao
desespero são questões da teologia e da ética e não da física matemática.
Mesmo a conservação da matéria e a existência do éter — tão amplamente
demonstradas 12 anos antes de The Riddle de Haeckel — podem ser filosofia,
má filosofia, em vez de boa ciência.

Verdade absoluta e final


Mas muitos dos cientistas e a maioria dos líderes da opinião pública tomam
tudo isso como uma verdade absoluta e final. Karl Pearson, por exemplo, em
sua famosa Grammar of Science, ensinou: “A classificação dos fatos e a
formação de juízos absolutos com base nessa classificação — juízos
independentes das idiossincrasias da mente individual ─ resumem, em
essência, o objetivo e o método da ciência moderna”. Que os juízos absolutos
da ciência se estendam à teologia e à ética, é algo que Pearson afirma no
seguinte:
O objetivo da ciência é claro — nada menos que a completa interpretação do
Universo… A ciência faz muito mais do que a demanda que deve ficar na posse
tranquila do que o teólogo e o metafísico se agradam em chamar seu “campo
legítimo”. Ela reivindica que toda a gama de fenômenos, mentais bem como físicos
— o Universo inteiro —, é seu campo. Ela afirma que o método científico é a única
porta de entrada para toda a região do conhecimento.[20]

W. K. Clifford também estende a ciência à ética quando diz: “É


sempre errado, em todo lugar, e para qualquer um, crer em qualquer coisa
com base em evidência insuficiente”.
Isso implica que, talvez com a exceção de alguns pequenos lapsos na
moralidade, o próprio Clifford tinha evidência suficiente para os seus
princípios científicos e antiteológicos.
O professor A. J. Carson fez uma declaração particularmente vigorosa
desse ponto de vista. Embora seu trabalho profissional não estivesse nas
ciências exatas, razão pela qual se esperaria ser ele menos dogmático que um
físico, suas expressões são bastante intransigentes e foram
extraordinariamente influentes por terem sido publicadas duas vezes. O artigo
“A Ciência e o Sobrenatural” afirma:
Qual é o método da ciência? Em essência, este — a rejeição in toto de qualquer
autoridade não observacional e não experimental no campo da experiência… Quando
nenhuma evidência é produzida [em favor de um pronunciamento] além do dito
pessoal, das “revelações” do passado e do presente em sonhos ou da “voz de Deus”, o
cientista não pode prestar nenhuma atenção, exceto perguntar “Como conseguem
dessa forma?[21]

Em seguida, Carlson afirma confiantemente: “O cientista busca se


livrar de todos os tipos de fé e crença. Ou ele sabe, ou não sabe. Se ele sabe,
não há espaço para a fé ou crença. Se ele não sabe, não tem direito à fé ou
crença”.
Essa atitude de absolutismo é mais característica do século XIX que do
XX, e é interessante notar esse extremo de dogmatismo justamente na época
em que o fundamento newtoniano estava sendo arrastado. Na verdade, para
grande surpresa, ela é encontrada em autores do século XX, além de Carlson,
que deveriam ter sabido mais.
Hans Reichenbach contrasta a incapacidade perene dos filósofos de
chegarem a um acordo sobre qualquer coisa com o terreno comum,
universalmente reconhecido, que a ciência desenvolveu. Um professor de
ciências pode ensinar “com o sentimento de orgulho de introduzir seus alunos
no reino de uma verdade bem estabelecida”. Os resultados da ciência são
“estabelecidos com uma validade super-pessoal e universalmente aceita”.[22]
Ora, Reichenbach não se opõe a todos os sistemas de filosofia. A
filosofia da análise, que se abstém de se entregar à construção independente,
é recomendável. Outras filosofias são criações individualistas e glamorosas
da arte, mas a filosofia da análise goza
da vantagem de pavimentar o caminho para a concordância universal, de configurar
resultados que finalmente serão isentos de controvérsia e ataque. Ela é o caminho da
ciência sobre a qual a filosofia da análise lógica está operando. Embora menos
atraente para a mente romântica, a adoção do método científico parecerá ser a
consequência inevitável de um estudo imparcial da história da filosofia.

Ernest Nagel também herdou um toque de dogmatismo. No seu discurso


presidencial de 1954, ele reconhece que os cientistas e filósofos da ciência se
tornaram extremamente céticos no segundo quarto do presente século. Isso
levou a uma especialização estreita que não deve ser de todo lamentada. No
entanto, insiste Nagel, os pensadores científicos sustentam, por vezes
inconscientemente, certas pressuposições abrangentes relativas à natureza
geral das coisas. Ora, um filósofo tem para si mesmo o dever de articular suas
pressuposições básicas e, conclui Nagel, os achados de diferentes ciências
positivas apoiam algumas e desmentem outras dessas generalizações amplas.
Especificamente, o naturalismo é um relato generalizado sólido do mundo,
repetidamente confirmado por séculos de experiência humana. A primazia
causal da matéria organizada, a contingência dos eventos sobre a organização
de corpos espaço-temporalmente localizados, é uma das conclusões mais bem
testadas da experiência. Não há lugar para um espírito imaterial ou para a
sobrevivência da personalidade após a decomposição do corpo. Esses
princípios, repete ele, são apoiados por evidências convincentes, evidências
conclusivas.
Assim, é evidente que se Nagel não é tão impetuoso como Clifford e
Carlson, ele está muito confiante de que a ciência apoia o naturalismo. Esse
tremendo orgulho na verdade permanente das fórmulas científicas
generalizadas tem sido amiúde usado também por teólogos liberais em seu
ataque aos crentes ortodoxos. Rudolf Bultmann, competindo com Karl Barth
pelo primeiro lugar na presente escalação teológica, mantém ainda mais o
absolutismo do século XIX que Nagel ou Reichenbach. Em Kerygma and
Myth, ele combina uma confiança na permanência da lei científica com uma
rejeição da crença nos espíritos: “Agora que as forças e leis da natureza
foram [realmente] descobertas, não podemos mais acreditar em espíritos,
quer bons, quer maus” (4). Consistentemente, ele deveria negar a existência
de Deus, pois Deus é um espírito bom; mas ele parece não ser tão consistente.
E então, em Jesus Christ and Mythology (36-38), ele empresta de Auguste
Comte e afirma que, embora a ciência possa mudar em alguns detalhes, o
método de pensamento nunca voltará a mudar. Ele vai ainda mais longe e
parece sugerir que, embora a astronomia geocêntrica e a heliocêntrica possam
continuar a mudar, as leis (newtonianas?) do movimento são verdades
imutáveis.
Contrastando fortemente com Bultmann e com o dogmatismo científico
em geral, a declaração de Philipp Frank (Philosophy of Science, 90) é uma
modesta antecipação do que segue: “Levou muito tempo para a teoria do
movimento atual se desenvolver, e não sabemos se ela é, ou não, o esquema
correto para o futuro”.

Crítica

É bem conhecido que os avanços científicos do século XX têm alterado


sobremaneira a cosmovisão newtoniana. Assim, antes de continuar com a
história mais recente, devemos fazer uma pausa aqui para resumir e avaliar a
posição mais antiga. As leis newtonianas do movimento deram origem à
filosofia do mecanicismo. Todos os eventos ocorreriam através da colisão
entre os átomos. Nada inconsistente com as equações matemáticas poderia
acontecer. Essas leis seriam descrições fixas, absolutas e precisas de como a
natureza funciona. Logo, nenhum milagre, nenhuma alma, nenhuma
imortalidade pessoal, nenhum Deus poderia existir; e a vida na morte, o
Universo sombrio, deveriam ser vividos com base no desespero implacável.
O objetivo desta próxima seção de argumentos é mostrar que a ciência
newtoniana, de forma totalmente independente de qualquer reversão do
século XX, não pode validamente apoiar essas conclusões. O retrato da
ciência é em si mesmo equivocado, e sua extensão para assuntos religiosos é
injustificada.
Em primeiro lugar, os processos da ciência tal como efetivamente
conduzidos nos laboratórios não justificam a conclusão de que as leis da
mecânica descrevem a forma como a natureza opera. As leis newtonianas
nunca foram, pura e simplesmente, descobertas. Ao contrário de Carlson,
essas leis não excluem toda autoridade não observacional e não experimental.
Na melhor das hipóteses, a lei científica é uma construção em vez de uma
descoberta; e a construção depende de fatores jamais vistos sob o
microscópio, jamais pesados numa balança e jamais manuseados ou
manipulados.
Para justificar essas críticas, a lei do pêndulo servirá como um exemplo
adequado. A lei do pêndulo afirma que o período da oscilação é proporcional
à raiz quadrada do comprimento. Se, no entanto, o peso do pêndulo for
deslocado irregularmente em torno do seu centro, a lei não se manterá. A lei
assume que o pêndulo é homogêneo, que o peso está simetricamente
distribuído ao longo de todos os eixos, ou (mais tecnicamente) que a massa
está concentrada num ponto. Nenhum pêndulo físico assim existe, e,
portanto, a lei não é uma descrição precisa de qualquer pêndulo tangível. Em
segundo lugar, a lei assume que o pêndulo oscila por um fio não tensionado.
Não existe um fio físico assim, e, portanto, a lei científica não descreve
nenhum pêndulo físico. E em terceiro, a lei só poderia ser verdadeira se o
pêndulo oscilasse em um eixo sem fricção. Não existe tal eixo. Segue-se,
portanto, que nenhum pêndulo visível concorda com a fórmula matemática, e
que a fórmula não é uma descrição de qualquer pêndulo físico.
Deve ser notado que esse exemplo não depende da distinção entre
relógios de pêndulo de caixa alta e pêndulos sob condições de laboratório. O
pêndulo de laboratório mais cuidadosamente construído ainda está aquém dos
requisitos ideais. Apenas um pêndulo ideal, apenas um pêndulo imaginário,
apenas um pêndulo não existente, é descrito pela lei newtoniana.
Portanto, uma vez que as leis newtonianas não descrevem o
funcionamento real da natureza, elas não podem ser usadas como uma
demonstração satisfatória da impossibilidade de Deus e dos milagres. Se essa
conclusão parece ser um pouco prematura, será necessário mostrar de forma
mais completa que fatores não observacionais são ingredientes essenciais na
lei científica.
Para fazer isso, devemos examinar mais cuidadosamente o processo da
experimentação. Não importa quão complexo um experimento possa ser, seu
processo básico será a medição de uma linha. Se um cientista tenta
determinar o ponto de ebulição de um fluido, mede o comprimento do
mercúrio em um termômetro. Se ele está interessado na gravidade específica
disso ou daquilo, mede a distância entre o marco zero numa balança e outra
marca na escala. Seja qual for o experimento, toda medição é a medição do
comprimento de uma linha.
Quando esse comprimento foi medido uma vez, o cientista em qualquer
novo e importante experimento repete o experimento e mede o comprimento
uma segunda, uma terceira, uma quarta vez, até que tenha uma longa lista de
leituras. Essas medições são os fatores experimentais; são os dados
observacionais; mas elas não são os únicos fatores para se chegar a leis.
Depois que o cientista obteve sua lista de leituras, percebe que elas são todas
diferentes. A água nunca, bem, quase nunca, ferve à mesma temperatura. Um
centímetro cúbico de ouro dificilmente pesa o mesmo duas vezes. Assim,
uma lista de leituras diferentes é um resultado inevitável da medição.
Com essa lista de leituras, o cientista faz o que parece ser apenas bom
senso. Ele soma os valores e os divide pelo número de leituras; isto é, ele
calcula a média aritmética. Para propósitos filosóficos, esse passo deve ser
cuidadosamente considerado. Por que seria bom senso calcular a média
aritmética? Para muitas pessoas isso parece ser a coisa natural a fazer porque
elas consideram que nós precisamos de uma média, e a média aritmética é a
única média que elas conhecem. Mas os estatísticos conhecem duas outras
médias: a moda — ou o número que ocorre mais frequentemente — e a
mediana — ou o número do meio na lista quando é disposta em ordem de
grandeza. Por que então o cientista escolhe a média em vez de alguma das
outras duas? Essa questão acaba sendo mais difícil de responder do que a
princípio pareceria; mas qualquer que seja a resposta tentada, claramente
nada nos dados observacionais ditou a escolha. Aqui está algo com que o
próprio cientista contribui, sem dúvida a partir da sua própria teoria de
matemática. Tal escolha certamente não lhe é nem imposta pelo material
experimental, nem descoberta por ele nesse material.[23]
Esse é apenas o começo no uso de fatores não empíricos na construção
de uma lei da física. O próximo passo é o cientista subtrair cada leitura da
média para encontrar a diferença. Uma leitura pode ser .002 acima da média e
outra .003 abaixo dela. Quando essas diferenças são determinadas, o cientista
— desconsiderando os sinais de mais e menos — as soma e divide pelo
número de leituras, calculando assim a média aritmética das diferenças. A
essa média ele acrescenta o sinal de mais e menos da média original (por
exemplo, 19.31 ± .0025) e a chama de variável de erro. Mais uma vez o
procedimento é ditado por algo que não os dados observados.
Após o cientista ter feito isso para toda uma série de experimentos —
por exemplo, o ponto de ebulição de um líquido a diferentes pressões, ou a
força da gravidade entre os mesmos dois corpos separados por diferentes
distâncias —, seu próximo passo é a notável confirmação da conclusão de
que uma lei da física é uma construção e não uma descoberta de como a
natureza age. O passo que vai das diferentes médias com suas variáveis de
erro à equação que será chamada de lei pode ser feito através da
representação gráfica desses valores. Mas, é claro, em vez de indicar um
ponto no gráfico, o valor 19.31 ± .0025 indica uma linha; o correspondente
intervalo de pressão ou de força indica outra linha sobre outro eixo, com o
resultado de que os dois valores delimitam uma área retangular no gráfico. O
cientista traça uma série dessas áreas, cada uma correspondendo a um dos
experimentos de todo o conjunto.
Então ele passa uma curva através dessas áreas, e chama essa curva de
lei. Mas aqui está o problema. É possível passar através de uma série de
retângulos qualquer número de curvas. Mesmo através de uma série de
pontos aparentemente em linha reta é igualmente fácil passar uma linha reta
ou uma curva senoidal. Na verdade, deve ser particularmente notado que
através de uma série de áreas um número infinito de diferentes curvas pode
ser passado. Os dados empíricos não necessitam de qualquer curva. Em
outras palavras, até onde a observação esteja em questão, o cientista poderia
ter escolhido uma lei diferente da que selecionou. Na verdade, sua gama de
seleção era infinita; e desse infinito ele escolheu, ele não descobriu, a
equação que aceita.
Essa consideração não apenas mostra que as leis não são descobertas no
material empírico ou necessariamente deduzidas desse material, como
também que se as equações matemáticas pudessem descrever a natureza, a
chance de escolher a descrição correta seria uma no infinito, ou zero.
Portanto, todas as leis da física são falsas.
Quae cum ita sint, como nossos velhos amigos das aulas de latim do
colegial diriam, segue-se que a filosofia do mecanicismo não é uma
conclusão empírica tão fixa e absoluta a ponto de alguma outra crença ser
imoral. Não é suficiente descartar os milagres neste mundo ou a imortalidade
no próximo. Nem é isso algo “quase tão certo” que devemos trocar a fé em
Deus pelo desespero, quer cedendo, quer persistindo. O mecanicismo pode,
por esta ou aquela razão, parecer plausível aos olhos de alguns filósofos, mas
não é uma necessidade científica.
O verdadeiro estado de coisas pode ser revelado mais plenamente por
outra consideração. A pergunta é: Como se chega à conclusão de que o
Universo é um mecanismo? Certamente ela não é uma dedução válida a partir
da experiência. Pelo contrário, é um salto de fé. Todos nós, incluindo os
cientistas, temos a experiência comum de seres vivos, animais e homens;
também temos a experiência comum de máquinas. As diferenças entre as
duas espécies de coisas são óbvias. Ora, devemos saltar para a conclusão de
que o homem e o Universo como um todo são máquinas, ou devemos saltar
para a conclusão de que corpos em queda livre e o Universo como um todo
são seres vivos? Muitos dos antigos retratavam o Universo como um ser vivo.
Essa visão não é uma excentricidade desconhecida, por mais que possa
parecê-lo aos materialistas recentes. Não apenas alguns antigos, mas alguns
filósofos modernos também defendiam que o Universo é vivo. Leibniz
compôs o mundo de almas, e o idealismo hegeliano diz que ele é uma mente.
Mas Galileu e a ciência newtoniana tomaram o Universo como sendo uma
máquina inanimada.
Aqui, então, está um problema importante. Sobre que base,
experimental ou intuitiva, deveria um cientista escolher sua imagem do
Universo? Assim como a observação dos animais não necessariamente
implica que o Universo é um animal — David Hume sugeriu que era um
repolho —, a experimentação com bolas de gude não implica que ele é uma
máquina. De fato, poderia a familiaridade com qualquer parte do Universo
justificar uma conclusão verdadeira para o Universo como um todo? Uma
analogia é melhor do que qualquer outra? Foi uma cegueira lamentável para
os problemas lógicos e filosóficos que levou os séculos XVIII e XIX se
incomodarem cada vez menos com a lógica da analogia. Aqueles que se
gabam da ciência estavam certos de que o Universo com o homem nele é
uma máquina.
Esses argumentos, então, minam a confiança de Clifford, Carlson e
Russell. O mecanicismo não é a descoberta científica de uma verdade fixa e
final, e tampouco é qualquer lei da física uma descrição de como a natureza
funciona. Isso tudo pode ser afirmado estritamente dentro dos limites da era
newtoniana. Quando chegamos agora à revolução científica do século XX,
não apenas essas conclusões são confirmadas, como também somos
apresentados a uma visão radicalmente nova, não meramente da precisão de
leis específicas, mas da natureza, das limitações, da finalidade e da
importância da ciência como um todo.
3. O SÉCULO XX
O fato mais bem conhecido sobre a física do século XX é seu tremendo
avanço para além tudo o que a precedeu. Popularmente, esse avanço é
reconhecido no uso da televisão, dos aviões a jato e da bomba atômica. Mas
há também certa consciência por parte do público de que essas invenções
dependem de novas leis da física, recentemente “descobertas”. Quase todo
mundo já ouviu falar de relatividade e Einstein. Há um entendimento bastante
amplo de que a física passou por uma revolução. Naturalmente, os cientistas
têm uma apreciação mais ampla do escopo dessa revolução do que um
público geral; e por essa razão eles estão mais dispostos a admitir que a
ciência não descobre verdades absolutas. Se os cientistas anteriores tivessem
realmente descoberto uma lei, ela não seria agora rejeitada. A verdade fixa e
final não é para ser descartada. Portanto, a noção aristotélica e medieval,
adotada pelo epígono newtoniano, de que as leis da ciência estão
perenemente acima de qualquer questão foi em larga medida substituída pela
visão platônica e mais cética de que toda ciência é tentativa.
Esse ponto pressupõe que a revolução na ciência não é uma mera
adição de leis recém-descobertas às leis anteriormente descobertas, mas uma
rejeição das leis anteriores e sua substituição por leis diferentes. Para
sustentar esse ponto, então, é necessário prosseguir com um pouco mais de
história e exposição. E o primeiro exemplo será o mais simples possível.

O colapso da mecânica

A primeira lei do movimento de Newton e o fundamento sobre o qual todo o


restante do seu sistema está baseado é a lei da inércia: “Todo corpo continua
em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta a menos
que seja compelido a mudar esse estado por forças exercidas sobre ele”. A
dificuldade com as forças exercidas sobre os planetas já foi discutida; agora a
concepção de movimento uniforme em uma linha reta exigirá nossa atenção.
Um estudo da astronomia faz alguém se perguntar se existe algo como um
movimento em linha reta. Que evidências há de tal movimento? Ou, de fato,
como o movimento em linha reta poderia definido?
Em linguagem coloquial, diz-se que uma bola de bilhar se move em
linha reta se não diverge do caminho mais curto entre sua posição atual e um
ponto fixo na mesa ao qual ela chega num momento posterior. Uma linha
reta, portanto, é determinada por dois pontos, um dos quais sendo a posição
atual do corpo em movimento. Mas o que dizer do outro ponto, chamado
ponto fixo? Quer seja o caso de uma bola de bilhar, quer o de um avião
voando de Nova Iorque para Los Angeles, o movimento não é
verdadeiramente uma linha reta, ainda que os corpos em movimento se
dirijam constantemente aos seus destinos. Durante o tempo decorrido (isso é
mais óbvio, mas não mais real, no caso do avião), a Terra gira e faz seu
movimento de revolução. Portanto, Los Angeles está constantemente
mudando sua posição no espaço newtoniano.
“O espaço absoluto”, disse Newton, “em sua própria natureza, sem
relação com qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel”.
Ora, se uma meta está constantemente mudando sua posição no espaço,
um corpo que está sempre se movendo em direção a ele não pode se mover
em uma linha reta. Isso que vale para o avião e Los Angeles vale igualmente
para um átomo nos espaços interestelares. Se o movimento desse átomo
pudesse ser observado como sendo na direção de uma estrela “fixa”, o
movimento não poderia ser um movimento em linha reta, pois a estrela não é
fixa. Ela também se move, assim como Los Angeles. Como não há pontos
visíveis nos céus além das estrelas, permanece sempre impossível descobrir
um movimento em linha reta, se de fato há algum. Talvez o planeta Marte
esteja se movendo em uma linha perfeitamente reta na direção de algum
ponto hipotético invisível no espaço, levando todo o sistema solar consigo;
mas sendo esse o caso, nós jamais poderíamos sabê-lo, pois não podemos
fixar esse ponto. Portanto, a ideia do movimento retilíneo deve ser descartada
da ciência.
Uma vez que essa primeira lei do movimento, a lei da inércia, subjaz
todo o sistema newtoniano, uma falha nesse ponto automaticamente altera
tudo o que se segue.
Essencialmente a mesma dificuldade está atrelada ao conceito
newtoniano de repouso. A primeira parte da lei tinha afirmado que um corpo
continua em repouso a menos que forças exercidas possam compelir a uma
mudança. Um corpo assim pode existir? Como alguém poderia identificá-lo?
Newton escreveu (Escólio à Definição VIII):
Movimento absoluto é a translação de um corpo de um local absoluto para outro;
movimento relativo, a translação de um local relativo para outro… Mas repouso
absoluto real é a continuidade do corpo na mesma posição desse espaço imóvel…
Mas podemos distinguir repouso e movimento, absoluto e relativo, um do outro pelas
suas propriedades, causas e efeitos. Uma propriedade do repouso é que corpos
realmente em repouso repousam uns em relação aos outros. E, por conseguinte, assim
como é possível que em regiões remotas de estrelas fixas, ou talvez muito além delas,
possa haver algum corpo absolutamente em repouso; mas sendo impossível saber, a
partir da posição dos corpos uns dos outros em nossas regiões, se quaisquer deles
mantêm a mesma posição desse corpo remoto, segue-se que o repouso absoluto não
pode ser determinado a partir da posição dos corpos em nossas regiões.

Assim, o próprio Newton reconheceu que era impossível identificar


qualquer corpo como estando absolutamente em repouso, mas não é provável
que ele remotamente suspeitou da situação impossível que havia criado.
Repouso absoluto, movimento absoluto e o espaço absoluto em que
eles supostamente ocorrem levaram posteriormente a uma interessante
ramificação da teoria. Perto do início do seu Principia, Newton, que era
muito cuidadoso em definir massa, momento, etc., disse: “Eu não defino
tempo, espaço, local e movimento como sendo bem conhecidos de todos”.
Mas ele insistiu na distinção entre movimento absoluto e relativo, espaço
absoluto e relativo e tempo absoluto e relativo.
Esses absolutos não gozam de boa reputação científica hoje, e a defesa
de Newton do movimento absoluto foi adversamente criticada. O
experimento de Newton tinha sido engenhoso. Ele fez um balde de água girar
rapidamente. Newton usou uma corda e a torceu o bastante para que o balde,
assim que solto, produzisse um movimento de revolução. Assim que o balde
começou a girar, a superfície da água permaneceu nivelada por algum tempo;
mas logo em seguida o balde transmitiu seu movimento à água. A água não
só então começou a girar, como também começou a subir pelos lados do
balde, deixando o centro deprimido a ponto de a superfície se tornar côncava.
Com base nesse experimento, Newton argumentou que quando o movimento
relativo da água era maior — isto é, antes de o balde ter transmitido sua
rotação à água —, a água permanecia nivelada. Logo, o movimento real ou
absoluto da água ainda não tinha começado. Mas na sequência, quando o
movimento relativo da água era menor — isto é, quando a água também
estava girando —, a subida da água pelo lado do balde mostrava uma
tentativa de se afastar do eixo; e essa tentativa revelava o movimento real da
água, subindo continuamente até atingir seu ponto mais alto, enquanto
relativamente a água estava em repouso no balde. Ernst Mach responde:
Quando autores bastante modernos se deixam ludibriar pelos argumentos newtonianos
que são derivados do balde de água para distinguir entre movimento relativo e
absoluto, eles não refletem que o sistema do mundo nos é dado apenas uma vez, e que
nossa interpretação é a visão ptolomaica ou a copernicana, mas ambas são igualmente
reais. Tente fixar o balde de Newton e girar o céu das estrelas fixas e então prove a
ausência de forças centrífugas![24]

No que diz respeito à resposta de Mach, Hans Reichenbach


acrescenta: “A resposta de Mach está baseada no fato de que a força
centrífuga pode ser interpretada relativisticamente como um efeito dinâmico
da gravitação produzido pela rotação de estrelas fixas”.[25] Sobre o mesmo
assunto do movimento absoluto, embora não do experimento do balde,
Reichenbach havia mesmo dito:
Talvez nenhuma outra passagem demonstre tão claramente a influência trágica da
filosofia de Newton sobre o seu julgamento… Após dois séculos de erro, a
“philosophia naturalis” finalmente deixou as visões filosóficas de Newton, mas isso
não diminui as contribuições de Newton à física. Felizmente, todo conhecimento
empiricamente baseado é independente da interpretação dos seus descobridores, mas o
preço dessa independência é que esse conhecimento é possuído apenas
aproximadamente.

Essa última sentença reduz muito o preço, mas a citação inteira


somada ao argumento de Mach é uma evidência de que o sistema newtoniano
não é mais aceito.
A extensão do argumento contra o movimento absoluto aos conceitos
de tempo e espaço absoluto pode ser mostrada por uma referência adicional a
Mach e Reichenbach. O primeiro argumenta que
O tempo é uma abstração à qual chegamos por meio da mudança das coisas… Um
movimento pode, em relação a outro movimento, ser uniforme. Mas a questão de
saber se um movimento é em si mesmo uniforme não faz sentido. Com idêntica
justiça, também, podemos falar de um “tempo absoluto” — de um tempo
independente de mudança.[26]

O argumento deste último aparece em uma análise incisiva que é


demasiado complicada para ser reproduzida aqui, mas a rejeição do espaço
absoluto está centrada na declaração “O espaço é a ordem de coisas
coexistentes, ou a ordem de existência de todas as coisas que são
contemporâneas”.[27]
Essas análises dos absolutos do espaço e do tempo podem parecer mais
filosóficas do que estritamente científicas, se tal distinção retém qualquer
significado apreciável. Mas nenhuma objeção assim, por mais superficial que
possa ser, pode ser levantada contra as investigações recentes da velocidade e
da luz. Elas podem ser oferecidas como as provas experimentais convincentes
de laboratório de que a mecânica newtoniana entrou em colapso.
As formulações de Newton pressupõem a possibilidade de se
determinar a posição e a velocidade de uma partícula de forma absoluta, isto
é, à parte de sua relação com qualquer outra partícula. Ao mesmo tempo, a lei
da gravitação afirma a contínua interação de todas as partículas. Por muito
tempo a incompatibilidade dessas duas pressuposições não impediu o
brilhante desenvolvimento da ciência newtoniana, e cientistas orgulhosos
rejeitaram as análises lógicas como sendo especulações etéreas de filósofos
nebulosos;[28] mas quando no passado bastante recente os fenômenos da luz
se tornaram fatores mais frequentes na experimentação, a contradição latente
logo resultou na destruição do nobre edifício.
Um elétron, assim nossos experts contemporâneos nos dizem, só pode
ser estudado quando troca energia com alguma outra coisa. Em completo
isolamento ele jamais poderia ser descoberto. Ora, um elétron é um corpo tão
pequeno (se é que é um corpo) que qualquer troca de energia o perturba
seriamente. Até mesmo a luz o perturba. Se ao estudar o elétron usamos luz
de comprimento de onda longo e pouca energia, a perturbação pode ser
pequena e a velocidade do elétron dificilmente é alterada; mas a imagem será
tão obscura que não poderemos determinar a posição do elétron. Por outro
lado, se usamos luz de comprimento de onda curto e maior energia, sendo
assim capazes de determinar a posição do elétron, seu movimento se torna
imprevisível. Ou seja, quanto mais precisamente determinamos a posição do
elétron, menos precisamente podemos determinar sua velocidade; e quando
mais precisamente determinamos a sua velocidade, menos podemos
determinar sua posição. Mas para a previsão científica, que vimos antes ser
uma das características mais importantes que distinguem a ciência moderna
da antiga, a velocidade e a posição devem ser ambas precisamente
conhecidas.
Isso basta para demonstrar que o determinismo mecanicista não é uma
descoberta baseada na observação, mas uma tese a priori adotada por outras
razões. Se isso é suficiente ou não para demonstrar que a natureza é
indeterminista, é uma questão totalmente diferente. Mas suficiente ou não,
isso não é tudo. O experimento com luz produziu mais resultados
surpreendentes. Tem sido muitas vezes contada a história, e para o presente
propósito deve ser repetida, de como o século XIX refutou a teoria
corpuscular da luz de Newton por meio de um experimento crucial, que de
uma vez por toda demonstrou a teoria das ondas e a colocou além de
qualquer dúvida futura.
A partir da mecânica dos fluidos, segue-se que a velocidade da luz no
ar seria maior que na água se a luz fosse um movimento ondulatório em um
meio; mas a velocidade da luz seria maior na água se a luz fosse corpuscular.
Infelizmente, nos dias de Newton não havia nenhum método para fazer essas
medições, e o próprio Newton reconheceu a necessidade de uma maior
experimentação. Arago delineou o experimento necessário em 1838, e em
1850 Leon Foucault o realizou. Ele descobriu então que a velocidade da luz é
maior no ar.
De um ponto de vista estritamente lógico, essa descoberta experimental
não estabeleceria a teoria ondulatória, a menos que as ondas e os corpúsculos
fossem as únicas alternativas. Visto que nenhuma outra possibilidade era
então conhecida, a maioria das pessoas concluiu que a teoria ondulatória
estava demonstrada. O que eles tinham mais certeza era que a teoria
corpuscular tinha sido permanentemente refutada. Se essa teoria requer luz
para viajar mais rápido na água, e de fato não requer, então a teoria
corpuscular deve ser falsa, permanentemente falsa.
De forma bastante surpreendente, outro experimento por assim dizer
crucial foi realizado em 1902 por Phillip Lenard, e sua importância foi vista
por Einstein em 1905. Suponha que uma fonte de luz brilhe sobre uma placa
de cobre: a energia constituída na placa por unidade de tempo pode ser
medida. Se a distância entre a placa e a fonte de luz é gradualmente
aumentada, a quantidade de energia diminui. Ora, no pressuposto de que a luz
é um movimento ondulatório, essa diminuição continua infinitamente em
direção a zero. Se, no entanto, a luz é uma partícula, e a fonte emite tantas
partículas por unidade de tempo, a diminuição não reduzirá uniformemente
até zero, porque a energia absorvida pela placa nunca pode ser menor do que
a energia de uma única partícula. O experimento mostrou que a energia não
diminui uniformemente até zero, mas, pelo contrário, diminui até um e então
cai de repente para zero. Assim, a teoria ondulatória parece ter sido provada
falsa, permanentemente falsa.
Nesse ponto, devemos fazer uma pausa para esclarecer a lógica tanto
dessa situação particular como da verificação experimental em geral. Um
argumento simples da verificação procede assim: Uma dada hipótese implica
certos resultados definidos; o experimento realmente dá esses resultados;
portanto, a hipótese é verificada e pode ser chamada de lei. Obviamente, esse
argumento é a falácia de afirmar o consequente; e uma vez que toda
verificação deve cometer essa falácia, segue-se que nenhuma lei ou hipótese
científica pode alguma vez ser logicamente demonstrada.
Parece, no entanto, que as hipóteses podem ser logicamente provadas
falsas. O argumento seria: Uma dada hipótese implica certos resultados
definidos; o experimento na verdade dá um resultado contraditório; portanto,
a hipótese é falsa. Obviamente, esse é o argumento perfeitamente válido de
negar o consequente. Assim, ao que parece, embora as leis possam ser
provadas falsas, nunca podem ser provadas verdadeiras.
No entanto, há complicações, e a situação que inspirou esta lição
elementar de lógica é um excelente exemplo disso. O argumento estrito em
1850 deveria ter sido: A teoria corpuscular da luz e toda a mecânica de
Newton implicam o que o experimento negou; portanto, ou a teoria
corpuscular é falsa, ou algo está errado com a mecânica newtoniana, ou
ambos. Mas até à data ninguém se dispôs a questionar a mecânica
newtoniana. O experimento mais recente de Lenard e a argumentação de
Einstein mostram que a luz pode consistir de partículas, se descartarmos a
mecânica newtoniana. E atualmente as leis newtonianas foram substituídas.
Estranhamente, os cientistas de hoje usam ambas as teorias da luz. Para
alguns propósitos, eles dizem que a luz é um movimento ondulatório; para
outros propósitos, dizem que a luz consiste de partículas. Obviamente essas
duas teorias não podem ser ambas verdadeiras. Mas ambas se provam úteis, e
os cientistas contemporâneos por vezes mostram um deleite travesso nas suas
pequenas inconsistências: como um brilhante cientista explicou, a luz não é
nem uma onda, nem uma partícula, mas uma wavicle.[29]
As duas teorias da luz tampouco são o único exemplo do estado
autocontraditório da ciência. Experimentos sobre as propriedades térmicas
dos gases usam uma teoria que retrata os gases como um agregado de
partículas discretas; mas na acústica o cientista representa o gás como um
meio contínuo. Logicamente, essas teorias não podem ser ambas verdadeiras,
e somos levados a concluir que a violação da lógica só pode ser justificada no
fato de que os cientistas não estão interessados na verdade literal das suas
leis.
Mas se a lógica da situação é facilmente determinada, a ciência da
situação é um tanto quanto obscura. Que a mecânica newtoniana tenha
entrado em colapso, não é algo obscuro. Se os itens relativamente simples
mencionados não são suficientes para convencer uma pessoa, faça-a ler a
nova fórmula para a adição de velocidades,[30] a mudança da massa em
energia e novamente a dependência do movimento da velocidade, o problema
da simultaneidade, e uma longa lista de maravilhas modernas. O que
permanece obscuro são as leis específicas que a ciência irá propor em
seguida, e se alguma lei científica voltará a desfrutar tanto quanto dois
séculos ou pelo menos duas décadas de aceitação. A ciência muda com
rapidez cada vez maior. A afirmação dogmática de verdades absolutas, a
exclusão de todo dado não observacional, a ideia de que a ciência realmente
descobre como a natureza funciona têm sido amplamente refutadas. O que é
necessário agora não é tanto uma nova ciência, mas uma nova filosofia de
ciência. E tentativas nesse sentido não faltam.

Operacionalismo

Nos últimos anos do século XIX, houve dois grupos de cientistas filosóficos.
Um grupo, contra o qual este argumento foi dirigido, enfatizava os resultados
e conteúdos da ciência e levantava princípios últimos da natureza, da vida e
da religião com base neles. Se esses autores não eram todos estritamente
materialistas, eram pelo menos naturalistas. O segundo grupo, ainda que
alguns de seus membros fizessem e ainda façam afirmações naturalistas,
enfatizava os métodos da ciência e rejeitava as questões dos princípios
últimos como pseudoproblemas metafísicos. Estes autores são agora
conhecidos como positivistas lógicos.
Talvez devamos localizar a origem do positivismo lógico em Ernst
Mach (1838-1916). Este argumentou contra uma metafísica materialista bem
como contra uma metafísica mentalista. Mas se ele se opunha a toda a
metafísica, como os positivistas lógicos agora fazem, é duvidoso, por causa
da sua afirmação de que a realidade é neutra. Em todo caso, essa afirmação é
singularmente pouco informativa, e não vai além do incognoscível de Lange
e Kant. Neutra significa simplesmente que não é nem mental, nem material.
Mas o que isso positivamente é, ou mesmo quais alternativas existem, Mach
e Lange não podem dizer. Essas pessoas são frequentemente as primeiras a
reclamar da falta de sentido da teologia negativa. A eternidade é tomada
como sendo a mera negação do tempo sem qualquer conteúdo positivo. Mas
dizer que a realidade é neutra é tão negativo e tão sem sentido quanto.
Os seguidores posteriores de Mach tentaram ser mais consistentes. Eles
definitivamente recusaram toda metafísica. Nenhuma declaração sobre a
realidade deve ser permitida. A realidade última é um conceito vazio e inútil;
ou, antes, é uma palavra sem um conceito. Questões sobre a alma, até mesmo
questões sobre a origem da vida, são pseudoproblemas. Toda proposição
significativa (exceto as tautologias formais, processuais da lógica e da
matemática) devem ser verificadas pela observação sensorial. Uma
declaração que não possa ser relacionada ao e testada pelo experimento
científico não diz nada. Assim, tanto Deus como matéria são sílabas sem
sentido. Uma extensão desse ponto de vista nos leva ao operacionalismo.
Nos Estados Unidos, um dos primeiros e mais proeminentes defensores
do operacionalismo foi Percy Bridgman (The Logic of Modern Physics,
1927). Embora seu livro seja intensamente interessante, é impossível, no
entanto, dar um relato completo dele aqui. O presente objetivo é caracterizar
e projetar uma linha de pensamento. Para esse propósito, não é necessário
fazer plena justiça a Bridgman nem tampouco concordar com tudo o que ele
diz. Na verdade, pode-se sustentar que Bridgman não procede consistente
com suas principais teses. De qualquer modo, a situação na ciência, que
Bridgman tão bem descreve em outros aspectos, não parece justificar sua
afirmação de que “A atitude do físico deve, portanto, ser a de um puro
empirismo” (3). Assim, a presente finalidade é selecionar aquelas ideias que
constituem a contribuição mais útil de Bridgman e forçá-las, talvez, para
além dos limites que ele próprio imporia.
Como estudante, Bridgman recebeu uma educação newtoniana, e ele
reconhece que “Foi um grande choque descobrir que conceitos clássicos,
aceitos sem questionamento, eram inadequados para atender à situação real”
(1). Na Introdução (ix), ele antecipa a extensão do choque ao dizer que:
Os fatos experimentais são tão completamente diferentes daqueles da nossa
experiência habitual que não só temos de aparentemente abrir mão de generalizações
da experiência passada tão amplas como as equações de campo da eletrodinâmica, por
exemplo, como é mesmo questionado se nossas formas habituais de pensamento são
aplicáveis no novo domínio; é muitas vezes sugerido, por exemplo, que os conceitos
de tempo e espaço sucumbem.

Embora esse argumento da monografia tenha mostrado a


impossibilidade de um empirismo puro ao mostrar alguns fatores que não são
dados observacionais, uma das principais razões de Bridgman para a sua
infeliz generalização é bastante sólida. Ele insiste que os conceitos adequados
em um determinado tipo de experimento não devem ser assumidos como
aplicáveis para outro gama de experiência. Ao invés de antecipá-la com
conceitos antigos, deve-se esperar pela experiência posterior, e só então
decidir sobre que conceitos usar.
Esse princípio geral é extensamente discutido sob a noção pitoresca da
penumbra. Depois de comentar que todos os resultados de medição são
apenas aproximados e que, portanto, declarações sobre as relações numéricas
entre as grandezas medidas são válidas apenas até certo ponto, Bridgman
conclui: “Nunca temos um conhecimento bem lapidado de qualquer coisa,
mas toda a nossa experiência está rodeada por uma zona limiar, uma
penumbra de incerteza, na qual não penetramos” (33). No que concerne ao
que existe ou se passa nessa penumbra, não se deve manter quaisquer noções
preconcebidas. Mesmo
a aritmética, até onde ela se propõe a lidar com objetos físicos reais, também é afetada
pela mesma penumbra de incerteza… Se a declaração de aritmética deve ser uma
declaração exata no sentido matemático, o “objeto” deve ser uma coisa definida e
lapidada que preserve sua identidade no tempo sem nenhuma penumbra. Mas esse
tipo de coisa nunca é experienciado, e tanto quanto sabemos não corresponde
exatamente a qualquer coisa na experiência… Mesmo sólidos [para não mencionar
líquidos e gases] evaporam ou condensam os gases neles, e vemos que um objeto com
identidade é uma abstração correspondendo exatamente a nada na natureza [34-35].

Bridgman encontra a mesma espécie de penumbra presente em


explicações físicas também: “Uma explicação não é uma espécie absoluta de
coisa; o que é satisfatório para um homem não o será para outro” (38). As
explicações dependem dos elementos ou axiomas utilizados, e esses
dependem do objetivo em vista e também do alcance da nossa experiência
física anterior. Portanto, as explicações mudam à medida que o físico
progride:
No reino dos fenômenos quânticos é ponto pacífico que nossas antigas ideias de
mecânica e eletrodinâmica têm falhado, sendo assim da maior preocupação descobrir
quantos elementos das antigas situações, se é que realmente algum, podem ser
transportados para os novos [41].

Muitos físicos no passado não tiveram essa cautela. Confrontados


com algo novo, eles geralmente concebiam uma estrutura construída sobre
elementos familiares e a usavam para explicar o que estava além do seu
alcance real de experimentação. Mas, afirma Bridgman, “Não há nenhuma
garantia, qualquer que seja, na experiência para a convicção de que à medida
que penetrarmos mais e mais fundo, veremos os elementos da experiência
anterior repetidos” (43-44). Faraday e, em menor extensão, Maxwell eram
culpados desse alargamento injustiçado dos conceitos quando tentaram
explicar a eletricidade por atrações e impulsos mecânicos. Um exemplo
anterior e mais horrível foi o de Boscovitch, na sua tentativa de explicar a
gravitação. Bridgman é ainda mais enfático: “É difícil conceber qualquer
coisa mais cientificamente intolerante que postular que toda experiência
possível se conforma ao mesmo tipo com o qual estamos familiarizados”
(46). A nostalgia pela explicação mecânica, diz ele, tem toda a tenacidade do
pecado original.
A implicação dessa linha de raciocínio é que devemos analisar a
natureza em correlações sem qualquer tipo de pressuposição quanto ao
caráter dessas correlações. Devemos aceitar como último para a explicação a
mera declaração de uma correlação.
Em considerações como essas, Bridgman coloca em questão a
existência de campos elétricos. Quase todo físico assume que um campo de
força é uma realidade física:
A realidade do campo é autoconscientemente inculcada em nosso ensino básico… e é
considerada o conceito mais fundamental de toda a teoria elétrica moderna. No
entanto, a despeito disso, creio que um exame crítico mostrará que a atribuição da
realidade física ao campo elétrico é totalmente sem justificação. Não consigo
encontrar um único fenômeno físico ou uma única operação física pela qual uma
evidência da existência do campo possa ser obtida independentemente das operações
que introduziram a definição [57].

Em adição a tudo isso, que pode ser chamado de negativo e


destrutivo, Bridgman oferece uma proposta positiva para a formulação dos
conceitos da física. Seu primeiro exemplo é o mais simples possível — o
conceito de comprimento. Para virtualmente todos os físicos do passado,
comprimento era uma característica física real para um objeto individual real.
Era algo que podíamos ver perante os nossos olhos. Mas se, como uma
citação prévia de Bridgman já indiciou, não existe tal coisa como um objeto
individual real, o conceito de comprimento deve ser entendido de outra
maneira:
O que queremos dizer com o comprimento de um objeto? Nós evidentemente sabemos
o que entendemos por comprimento se podemos dizer o comprimento de todo e
qualquer objeto, e para o físico nada mais se requer. Para encontrar o comprimento de
um objeto, temos de realizar certas operações físicas. O conceito de comprimento é,
portanto, fixo quando as operações pelas quais o comprimento é medido são fixas; isto
é, o conceito de comprimento envolve tanto quanto e nada mais que o conjunto de
operações pelas quais o comprimento é determinado. Em geral, por qualquer conceito
nós não queremos dizer nada mais do que um conjunto de operações; o conceito é
sinônimo do conjunto de operações correspondente [itálicos seus; 5].
Se temos mais que um conjunto de operações, temos mais que um conceito, e deveria
estritamente haver um nome separado para corresponder a cada diferente conjunto de
operações [10].

Ele passa então a mostrar que o “comprimento” astronômico, o


“comprimento” cotidiano, ingênuo, e o “comprimento” microscópico são três
conceitos totalmente diferentes.
Qual é o possível significado da afirmação de que o diâmetro de um elétron é 10-13
centímetros? Mais uma vez, a única resposta é encontrada ao examinar as operações
pelas quais o número 10-13 foi obtido. Esse número veio da resolução de certas
equações derivadas das equações de campo da eletrodinâmica, nas quais certos dados
numéricos obtidos pela experiência foram substituídos. O conceito de comprimento
foi, por conseguinte, agora modificado para poder incluir essa teoria de eletricidade
incorporada nas equações de campo; e, mais importante, ele assume a veracidade de
estender essas equações das dimensões nas quais podem ser verificadas
experimentalmente para uma região na qual sua veracidade é uma das questões mais
importantes e problemáticas da atualidade na física… A bem da verdade, o conceito
de comprimento desaparece como uma coisa independente e se funde de uma maneira
complicada com outros conceitos, todos os quais são eles próprios assim alterados…
[21-22].

O significado dessa teoria da definição operacional dos conceitos não


deve ser perdido. Comprimento, massa, carga elétrica e todos os conceitos da
física são descrições de operações realizadas em laboratório. Eles não são
descrições de objetos naturais ou realidades físicas. As leis da física, as
equações que incorporam os conceitos, não descrevem como a natureza age.
Elas descrevem como o físico age. Seria bastante surpreendente se os
processos da natureza e os processos do físico fossem iguais. Ao contrário, a
verdade mais certa da física é que a física não é verdadeira — não é
verdadeira como um relato do que a natureza é e como a natureza funciona.
Os conceitos da física são as operações do físico.
Desde que os conceitos mudam com a mudança das operações, segue-
se que quando investigamos fenômenos que estão fora do domínio de um
experimento anterior, é sempre ilegítimo aplicar os conceitos assim obtidos.
Uma mudança de operações muda os conceitos; e usar os mesmos nomes em
ambos os casos, quer seja comprimento, massa, tempo ou espaço, é tropeçar
na ambiguidade. O que é pior, do ponto de vista do mundo impecavelmente
ordenado do mecanicismo, é que os conceitos perdem sua individualidade e
se fundem à medida que se aproxima dos limites experimentais. Após suas
observações sobre as dimensões de um elétron, Bridgman conclui que “os
conceitos de comprimento e os vetores de campo elétrico se fundem num
todo amorfo” (24).
Bridgman ilustra então suas visões através de uma análise dos conceitos
de espaço, tempo, causa, velocidade, energia e alguns outros. Desde que o
“comprimento” de uma vara métrica não é o “comprimento” das ondas de
luz, há pelo menos dois tipos diferentes de “espaço”, tátil e óptico. Do
mesmo modo, há dois tempos. Um dos tempos tem a ver com eventos que
ocorrem próximos um do outro no espaço tátil; outro, diz respeito a eventos
astronomicamente separados um do outro. A partir disso, segue-se também
que tempo e espaço estão inextricavelmente misturados. “Isso não é
primariamente uma declaração sobre a natureza, e poderia ter sido feita
simplesmente pela observação de que as operações pelas quais o tempo
estendido é medido envolvem aquelas para a medição do espaço” (69).
As complicações são enormes:
Nós reconhecemos em princípio que o comprimento da vara métrica pode ser
diferente quando em movimento, que ele pode igualmente mudar durante a aceleração
incidente para movê-la de um lugar a outro, e que, até que provado em contrário, a
velocidade da luz pode ser uma função da velocidade ou da aceleração [70].

Complicações como essas não diminuem quando se tratar de força,


massa, energia e termodinâmica. Mas arrolar os detalhes é talvez agora
desnecessário.
Bridgman também extrai a conclusão de que, devido a essas
considerações, todo o nosso conhecimento é relativo. Aqui nós não
precisamos segui-lo, pois se trata de uma implicação inválida. O relativismo
filosófico não segue do operacionalismo, e o ceticismo na ciência não é ipso
facto um ceticismo universal. Bridgman poderia ter concluído corretamente
que todo conhecimento obtido por processos de laboratório é relativo; que
todas as leis e conceitos da física são relativos. Mas a conclusão que ele
realmente dá requer como premissa a afirmação absoluta de que o
procedimento de laboratório é a única porta de entrada para todo
conhecimento. Esse princípio de Karl Pearson, no entanto, carece, como
temos visto, de uma justificação empírica, científica e observacional. Talvez
Bridgman concorde com Pearson, mas ele não tem nenhuma base
experimental ou operacional para essa concordância.
Não apenas o cientificismo de Karl Pearson não tem suporte científico,
como também a afirmação geral do relativismo filosófico é autodestrutiva.
Quando um filósofo afirma que todo conhecimento é relativo, ele deixa de
reconhecer que viola seu próprio princípio ao afirmá-lo. Essa declaração, ele
nunca considera relativa e tentativa; essa declaração, ele nunca pretende
substituir pela sua contraditória. Assim, os relativistas são absolutistas a
despeito de si mesmos. Mas se o relativismo e o ceticismo estão confinados à
ciência, os operacionalistas tiveram uma vitória completa sobre as visões
dogmáticas da era newtoniana.

Expressões de ceticismo

Em uma página anterior, o dogmatismo inflexível foi ilustrado com uma lista
de citações. A ciência faz descobertas permanentes das operações da
natureza, chega a verdades fixas e formula julgamentos absolutos. Este é o
local apropriado para incluir outra lista. Em contraste com os precedentes, os
cientistas mais recentes têm reconhecido certas limitações da ciência e
considerado um grau maior ou menor de ceticismo. As citações a seguir são
exemplos dessa tendência cética. O objetivo não é avaliar com precisão o
grau de ceticismo de cada autor. Alguns deles, por exemplo Sullivan, são em
geral menos céticos do que parecem nas frases selecionadas. O objetivo, pelo
contrário, é simplesmente apontar a tendência do pensamento científico e
enfatizar o nítido contraste entre os séculos XIX e XX.
A primeira nesta lista será a citação final de Bridgman, desta vez de
uma das suas publicações posteriores, The Way Things Are:
Algumas pessoas vão longe a ponto de definir ciência como o consenso de todos os
observadores competentes. Isso, parece-me, vai longe demais e faz perder a ênfase…
“Pessoas competentes” em qualquer época significa aquelas em dada época que eram
sujeitas a um precondicionamento definido… Isso não exclui a possibilidade de que
todas as pessoas competentes estejam reagindo incorretamente por causa de alguma
característica na cultura contemporânea; e há exemplos, como Weierstrass na
matemática, onde o consenso em última análise foi demonstrado ter sido errado [129].

A citação aponta para a grande possibilidade de erro entre os


cientistas. A grande maioria pode estar toda errada. No entanto, isso não é
razão suficiente para se recusar a “definir ciência como o consenso de todos
os observadores competentes”. Meramente significa que a ciência, como uma
descrição da natureza, está normalmente, na verdade sempre, enganada.
Em seguida, J. W. N. Sullivan em The Limitations of Science opõe os
extremos do convencionalismo e mantém que realmente existem aspectos
objetivos e físicos na natureza de forma totalmente independente dos nossos
métodos de medi-los; e, aparentemente falando de si mesmo também, ele
observa que a maioria dos cientistas ainda acredita existir uma verdade
científica final sobre o Universo da qual estão se aproximando (160-162). No
entanto, essa crença numa verdade científica final, admite ele, é um artigo de
fé; o que as quantidades físicas fundamentais do Universo são, ninguém sabe.
Esse é um grau de ceticismo nunca encontrado em Büchner, por exemplo.
Em outras passagens, Sullivan parece ainda mais cético.
Representações pictóricas de um elétron são substituídas por símbolos
matemáticos, e nós não sabemos o que esses símbolos significam na
verdadeira realidade física (38). Na página seguinte ele até mesmo diz que
“verdade” na ciência é conveniência e que os cientistas são na prática
pragmáticos, qualquer que seja a filosofia dogmática em que acreditem. E,
finalmente, parafraseando um tanto que livremente, nós não precisamos
conhecer a natureza das entidades que discutimos; tudo o que realmente
sabemos sobre essas entidades é o modo como afetam os nossos instrumentos
de medição. Embora possamos medir distâncias no espaço, é evidente que o
espaço da física não tem nada a ver com o espaço da percepção. Desde que
uma rede matemática pode sempre ser tecida sobre qualquer distribuição de
objetos, o fato de a física lidar com estruturas matemáticas pode ser uma
coincidência em vez de uma descoberta. Sullivan questiona se a energia é um
constituinte do Universo externo e duvida de que ele nunca aumente ou
diminua. A imagem de Bohr de elétrons girando dentro de um átomo foi
inicialmente pensada como sendo fiel à realidade objetiva; mas agora nós
percebemos que qualquer outra imagem, consistente com as equações,
também o seria. E o átomo de Schrödinger com suas ondas no espaço
multidimensional é francamente não crível. Então, para concluir essas frases
selecionadas de Sullivan (38, 41, 141-162), citamos sua afirmação de que “é
altamente provável que todas as teorias científicas estejam erradas”.
Sullivan, como o presente autor, está interessado em defender certos
valores éticos, estéticos e teológicos da aniquilação científica. Philipp Frank
(Philosophy of Science, 238-242) critica seu argumento como sendo uma
simplificação grosseira. Sullivan havia argumentado: Desde que os físicos
não conhecem a natureza das entidades que discutem, mas conhecem apenas
as estruturas matemáticas, a ciência não pode insistir que somente a matéria
em movimento é real e que Deus e a moralidade são irreais. Frank objeta que
alguns newtonianos tardios negavam a realidade da matéria e mantinham que
somente a energia é real, e esse tipo de física dá espaço para os valores. Ou,
ao contrário, continua Frank, “dificilmente é mais plausível considerar a
beleza e a comunhão com Deus como ondas de Broglie do que considerá-las
como massas materiais”.
A última frase e o tema que ela expressa são bastante verdadeiros. Não
se pode defender as realidades espirituais simplesmente substituindo a
matéria em movimento pelas ondas de Broglie. Nem tampouco, para remeter
a outros autores, pode-se defender o livre-arbítrio pela teoria quântica ou a
predestinação pela relatividade. Mas talvez Frank tenham entendido mal o
argumento de Sullivan. Na medida em que Sullivan mantenha algum
dogmatismo do século XIX, ele pode estar aberto à crítica. Mas ela só pode
se aplicar até onde a física apreende a verdade absoluta.
Em que medida Frank acha que a física apreende a verdade absoluta?
Em uma página anterior ele reconhece que:
Levou um longo tempo até que a teoria atual de movimento se desenvolvesse, e não
sabemos agora se ela é, ou não, o esquema certo para o futuro… É muito importante
avaliar corretamente que as teorias antigas tinham a sua própria beleza e consistência
lógica. Não podemos dizer que as pessoas que acreditavam nelas estavam “erradas”,
mas é certo que usavam um esquema simbólico diferente [90].

Aqui Frank parece bastante cético: Nós não podemos dizer que a
teoria atual está certa nem que as teorias antigas estavam erradas. Na primeira
sentença, a frase “não sabemos agora” deixa em aberto a possibilidade de que
podemos chegar à verdade absoluta algum dia, mas o restante tem uma
tendência cética.
No entanto, ao criticar Sullivan, Frank parece adotar uma atitude mais
dogmática. Ele escreve: “Pode-se claramente ver que a palavra ‘incerteza’ no
princípio de Heisenberg não significa ‘incerteza’ sobre a verdade de uma
teoria científica” (241). Isso é de fato verdade; pode-se estar bastante certo de
que o movimento subatômico é incerto ou imprevisível. Mas Frank
aparentemente não vê que o argumento de Sullivan não traz essa confusão.
Sullivan não argumenta “Visto que as ondas de Broglie substituíram as
partículas atômicas, podemos acreditar em valores ético e teológicos”. Antes,
o argumento é: “Visto que o avanço da ciência, dos átomos para as ondas de
Broglie e outras maravilhas modernas, mostra que as leis físicas são apenas
tentativas, que elas não são descrições da natureza ou declarações sobre a
realidade última; visto que os cientistas de fato não têm nenhum
conhecimento das entidades naturais que discutem; e visto que é altamente
provável que todas as teorias científicas estejam erradas, a ciência não pode
insistir que Deus e a moralidade são irreais. A objeção de Frank a esse
argumento é completamente irrelevante.
Bridgman e Sullivan já foram citados como tendendo ao ceticismo
científico. A eles poderiam ser somados vários cientistas, inclusive Frank,
que admitem que preferências estéticas — particularmente a respeito da
simplicidade matemática ─ determinam as equações mais gerais que um
cientista aceita. Nenhuma descoberta da verdade física está envolvida; é
meramente uma questão de beleza e elegância.
A estética não é o único determinante não observacional da lei física. C.
West Churchman, de forma alguma um cético, escreve:
A questão de fato mais simples na ciência requer, mesmo para uma aproximação, um
juízo de valor… a ciência da ética (como todos os principais ramos da ciência) é
básica [itálico seu] para o significado de qualquer questão que o cientista
experimental possa levantar.[31]

Sem entrar no mérito da questão de como as normas éticas são estabelecidas,


pareceria que uma escolha das leis físicas com base em princípios éticos
representa uma tendência cética na física.

Objeções ao operacionalismo
Reconhecidamente, a teoria do operacionalismo e suas implicações céticas
não são universalmente aceitas pelos filósofos e cientistas do século XX.
Vários autores tentam manter alguma forma atenuada de dogmatismo. A. R.
Hall insiste que a ciência lida com
entidades materiais na natureza,… distingue firmemente entre teorias confirmadas por
múltiplas evidências, hipóteses, e especulações não confirmadas. Ela apresenta não
um retrato possível ou mesmo plausível da natureza, mas um retrato no qual todos os
fatos disponíveis recebem sua posição lógica e ordenada.[32]
Embora o restante do livro seja informativo e interessante, Hall
parece se apoiar na confiança ingênua e não faz nenhuma tentativa de lidar
com os argumentos céticos.
Hans Reichenbach, previamente citado, faz melhor. O capítulo sobre
racionalismo e empirismo em Modern Philosophy of Science se estende até
certo ponto na defesa da atitude antiga para com a ciência. Em resposta a
Hume, Reichenbach desenvolve dois pontos. Primeiro, ele redefine
conhecimento e verdade para preservar o “conhecimento” na ciência. Poderia
talvez ser argumentado que o que ele agora toma como “conhecimento” não
está longe do ceticismo. Mas o segundo ponto pode ser tratado mais
rapidamente. O autor parece interpretar a força dos argumentos de Hume
como se apenas lançassem dúvida sobre a acurácia das previsões relativas ao
futuro (142). Essa é uma interpretação manifestamente inadequada de Hume.
A filosofia de Hume também descarta todas as induções e generalizações do
passado.
Há dois outros autores que lidam com o operacionalismo de frente e
em detalhes. É necessário, portanto, considerar seriamente as objeções de A.
Cornelius Benjamin e Ernest Nagel.
O professor Benjamin (Operationism, 1955) faz uma crítica refletida
e abrangente de Bridgman. Dos dois principais elementos dessa crítica, um
acusa Bridgman de inconsistência em questões menores, enquanto o outro
rejeita a teoria na sua forma mais generalizada.
Quanto às questões menores, Benjamin cita as definições
inconsistentes (ou pelo menos não relacionadas entre si) do seu método. Há
um sentido estrito do termo operação, referindo-se à medição por varas
métricas, e um sentido mais amplo incluindo operações mentais, isto é, de
lápis e papel. O fracasso de Bridgman em distinguir as operações simbólicas
das não simbólicas, seu fracasso em classificar as operações (ou mesmo de
arrolar seus tipos exaustivamente) ─ Benjamim toma essas coisas como
sendo uma confusão fatal.
Gustav Bergmann também percebe essa dificuldade:
Embora as operações no sentido relevante sejam manipulações e nada mais, os
“operacionistas” viam operações por toda parte. Num extremo, as observações do
cientista eram adornadas para serem espécies de operações; no outro, suas atividades
verbais e computacionais eram, como assim chamadas operações simbólicas,
arrebanhadas dentro do mesmo curral. Esse uso completamente não específico de
“operação” (ou de qualquer palavra) não apenas é inútil; é também confuso.[33]
A continuação dessa objeção por Bergmann especifica John Dewey
como outro exemplo. Contudo, não é evidente que se trata de uma falha tão
fatal e irremediável quanto Benjamin pensa. John Dewey pode ser confuso, e
Bridgman pode ter sido inconsistente. De fato, parece que ele foi, porque
além da sua afirmação principal, “O conceito é sinônimo das correspondentes
operações”, ele também disse “O aspecto operacional de forma alguma é o
único aspecto de significados”. No entanto, essa não é uma objeção fatal e
final ao operacionalismo, pois confusões são evitáveis e inconsistências são
removíveis.
Ora, não é de surpreender que a primeira obra de Bridgman, The Logic
of Modern Physics (1927), contenha várias infelicidades menores. Mesmo
numa obra posterior, em que responde diretamente a Benjamin (The Way
Things Are, 37-38), ele não aborda plenamente as críticas. Mas o significado
disso é de pouca importância para a presente finalidade, e mesmo talvez para
Bridgman também, porque, por um lado, os detalhes menores podem ser
ajustados e tornados harmoniosos, enquanto que, por outro lado, a crítica se
aplica a uma teoria estendida e generalizada do operacionalismo que deixa o
domínio mais estreito da física e se funde com a epistemologia geral.
Benjamin reconhece que Bridgman se exime de qualquer teoria geral de
conhecimento e se restringe ostensivamente à física e sua técnica. Mas,
afirma o crítico, postulados epistemológicos subjazem essa visão restrita,
mesmo que Bridgman não os afirme. Sobre este ponto, Benjamin está
totalmente certo. Nós também reconhecemos que num lugar Bridgman
realmente afirma um relativismo epistemológico geral, e que, como Benjamin
alega, ele e seus seguidores são inclinados ao pragmatismo e positivismo
lógico. Benjamin certamente tem razão. Mas é um ponto que pode ser
evitado, indubitavelmente em oposição às inclinações de Bridgman, ao se
insistir na visão mais estreita do operacionalismo e combinando-a com uma
epistemologia externa a ambos os autores.
Vamos, portanto, limitar nosso argumento para as objeções específicas
de Benjamin à forma mais estreita de operacionalismo. Ele sustenta que a
tese “Os conceitos são sinônimos das operações físicas” é refutado de forma
muito simples: ele é falso como uma descrição das técnicas, fútil como uma
proposta para o futuro e patentemente absurdo!
Por que, exatamente, Benjamin declara que o operacionalismo é falso e
fútil, não é fácil ver, a menos que seja porque ele inclui esses dois pontos sob
a rubrica do “patentemente absurdo”. Nesse terceiro ponto, Benjamin
argumenta que cada operação é um evento singular, datável, e não pode ser
repetido. Assim, não é possível duas operações darem o mesmo conceito.
Portanto, ao se medir uma mesa com uma vara métrica, haveria diferentes
conceitos ─ não meramente diferentes comprimentos, mas diferentes
conceitos de comprimento ─ cada vez que a mesa fosse medida, ainda que
pela mesma vara métrica. E a maioria das pessoas concorda que isso é
patentemente absurdo.
De forma muito clara, no entanto, esse absurdo não é o significado de
Bridgman. Nessas várias tentativas de medir a mesa, uma vara métrica é
sempre usada. Embora os resultados em centímetros possam diferir, o método
ou operação é o mesmo, e, portanto, há apenas um conceito de comprimento
envolvido. Somente quando varas métricas são substituídas por microscópios
eletrônicos ou outros instrumentos um conceito diferente aparece. E isso não
é patentemente absurdo.
Em vez de considerar a descrição de técnicas e mostrar que o
operacionalismo por esse motivo é falso, a objeção de Benjamin não
concerne realmente ao operacionalismo como uma teoria estreita da física,
mas como uma epistemologia geral. Pois é neste contexto que Benjamin
acusa Bridgman de uma ênfase exagerada na particularidade. Bridgman, ao
fazer das operações eventos singulares, datáveis e não repetíveis, não
forneceu, na opinião de Benjamin, nenhum método de desenvolver conceitos
abstratos a partir dos experimentos singulares. Em outras palavras, Bridgman
é um nominalista extremo: não há nada similar em quaisquer duas aplicações
de uma mesma vara métrica. Ora, o problema dos universais é,
evidentemente, um problema epistemológico substancial; mas isso
dificilmente pode ser uma razão suficiente para reivindicar que o
operacionalismo é falso como uma descrição das técnicas na física. Que seja
admitido que Bridgman, o físico, é fraco em epistemologia; porém, o método
de medição por varas métricas é, todavia, um conceito universal ou abstrato
distinguível de técnicas microscópicas que dão origem a um conceito
diferente de comprimento.
Benjamim também repete o reductio ad absurdum de Franz Adler. Para
definir Cn some o número de horas que um homem dorme numa dada noite
ao comprimento do seu nariz, mais ou menos 1 se ele gosta ou não gosta de
fígado frito, etc.; repita as mensurações toda segunda-feira até onde puder, e
manipule as figuras em alguma fórmula matemática. Assim o conceito de Cn
é um conceito científico cuidadosamente concebido.
Muito espirituoso, mas isso não é um reductio ad absurdum do
operacionalismo. Se ele reduz qualquer coisa ao absurdo, é toda a ciência que
ele torna absurda. Até mesmo no newtonianismo mais estrito, não há
nenhuma garantia contra multiplicar o diâmetro da Terra pela periodicidade
das marés, dividindo por pi e correlacionando o resultado com a velocidade
da luz na água e no ar. Ambos os exemplos são absurdos no sentido de
inutilidade. E o operacionalista, tão facilmente como o newtoniano, pode
abandonar esses experimentos e tentar encontrar outros conceitos mais úteis.
Passar pela crítica de Benjamin é outro tema mais claramente expresso
pelo professor Nagel. Ele tem a ver com a objetividade, o verdadeiro valor
das leis científicas e a referência delas à natureza. Nagel observa (The
Structure of Science, 137) que os proponentes do instrumentalismo ou
operacionalismo acreditam assim que as teorias científicas revelam ser temas
impróprios para as caracterizações de verdadeiro e falso. Tal é
reconhecidamente o argumento dessa monografia. Nagel então acrescenta
que não existe nenhuma incompatibilidade necessária entre dizer que uma
teoria é verdadeira e dizer que ela é útil. Isso nós também admitimos. Mas é
algo irrelevante, pois a questão básica é se uma teoria científica pode ser
verdadeira. O problema principal é enfrentado no sentido oposto. É este:
Visto que, como foi mostrado, as leis da física não podem ser verdadeiras ─
isto, verdadeiras como descrições de como uma natureza independente
funciona ─, qual então é o seu status? O operacionalismo ou
instrumentalismo responde essa pergunta.
A falha na crítica tanto de Benjamin como de Nagel é a sua segurança
indelével de que a ciência deve ser verdadeira e deve compelir o assentimento
de todos os investigadores sem preconceitos. Assim, Nagel segue a dizer que
os operacionalistas não concordam em seus relatos dos “objetos científicos”,
tais como elétrons e ondas de luz, que são ostensivamente postulados pelas
teorias microscópicas. Se isso é uma objeção sólida ao operacionalismo, deve
se aplicar aos cientistas não operacionalistas também, pois estes também
divergem em seus relatos dos elétrons e das ondas de luz. Então Nagel
acrescenta: “Mas o ponto adicional [não é um ponto adicional, mas o mesmo,
sempre de novo] também pode ser feito de que está longe de ser claro como,
nesta visão, esses ‘objetos científicos’ podem ser tidos como coisas
fisicamente existentes” (140). Mas quem disse isso? Não foi Bridgman. Nem
essa monografia. Os elétrons e as ondas de luz não são coisas fisicamente
existentes; são elementos de um conjunto de instruções sobre como operar
em um laboratório. Ora, se algum operacionalista indiferente discutiu a
questão de se átomos existem e concluiu que eles existem, como Nagel
sugere, essa inconsistência infeliz em alguns poucos autores não significa
uma refutação de toda a teoria.

Conclusão

Para uma conclusão, devemos propor, em primeiro lugar, que as expressões


de ceticismo sejam tomadas mui seriamente. Na Introdução, um cientista
contemporâneo foi citado no sentido de que estava absolutamente perplexo
com o fato de que ao se pegar um lápis por uma das extremidades a outra
vem junto. Esse enigma depende das distâncias entre os átomos que
compõem o lápis e as distâncias mais imensas entre os misteriosos prótons e
nêutrons que compõem o átomo. Noventa e nove por cento ou mais do
espaço entre duas extremidades do lápis é completamente vazia; e a
experiência ensina que se pegarmos uma dúzia de grãos de areia no final de
uma linha desses grãos, o resto da linha não virá junto. A ciência, então, não
tem nenhum conhecimento do que acontece quando pegamos um lápis.
Embora esse exemplo venha do século XX, uma ignorância semelhante
caracterizava a era newtoniana, ainda que os cientistas dogmáticos tenham
sido ignorantes da sua ignorância. David Hume deu o exemplo de duas peças
lisas de mármore que se aderem de tal maneira que é necessária uma grande
força para separá-las numa linha direta, embora façam muita pouca
resistência a uma pressão lateral.
O presente autor inquiriu três físicos sobre esse problema. O primeiro
explicou o fenômeno pela pressão do ar e o vácuo. As superfícies lisas
impedem que qualquer ar permaneça entre as peças de mármore. Elas são
difíceis de separar porque a pressão do ar no lado de fora as mantêm juntas.
O segundo físico explicou que quando as superfícies são muito lisas, as duas
faces estão tão próximas uma da outra que uma atração molecular é
estabelecida semelhante àquela dentro de qualquer pedaço de mármore.
Separar as peças é quase tão difícil quanto puxar uma única peça à parte.
Perguntei a esse senhor se a pressão do ar tinha alguma coisa a ver com o
fenômeno. Ele confiantemente afirmou que a pressão do ar era totalmente
irrelevante. A atração molecular é a explicação. O terceiro físico respondeu
simplesmente que ninguém sabe por que as peças aderem. Estou inclinado a
acreditar que ele estava certo.
Portanto, o primeiro ponto desta conclusão é reafirmar a declaração de
Hume:
O máximo esforço da razão humana é de reduzir os princípios, fonte dos fenômenos
naturais, a uma maior simplicidade, e de resolver os muitos efeitos particulares em
algumas poucas causas gerais por meio de raciocínios da analogia, experiência e
observação. Mas quanto às causas dessas causas gerais, em vão tentaríamos a sua
descoberta; e tampouco seríamos capazes de nos satisfazer com qualquer explicação
particular dos mesmos. Essas fontes e princípios últimos são totalmente inacessíveis à
curiosidade e inquirição humanas.[34]

O segundo ponto da conclusão complementa o primeiro. A mera


afirmação de que a ciência nos deixa na ignorância das operações da natureza
não é uma filosofia da ciência suficiente. Algo deve ser dito da natureza e
utilidade da ciência. Portanto, o operacionalismo é oferecido não como uma
teoria geral de epistemologia, mas como a melhor filosofia da ciência
disponível. Essa é uma declaração melhor do que a ciência é, do que a ciência
realmente faz e do que a ciência pode fazer.
Somente negando que a ciência é cognitiva é que alguém pode justificar
o uso de teorias contraditórias. Por todas as considerações espirituosas sobre
wavicles, duas equações irredutíveis não podem ambas descrever a
propagação da luz. Nenhuma pessoa em sã consciência pode aceitar ambas
como descrições acuradas da natureza. Mas se a ciência, em vez de ser
considerada cognitiva, é tomada como um método para dominar e utilizar a
natureza, não há nada repreensível em utilizar essas fórmulas incompatíveis.
Mesmo acima o professor Nagel defendeu a ideia perfeitamente correta,
mas completamente irrelevante, de que uma fórmula pode ser tanto
verdadeira como útil. A esta altura quase todo mundo pode ver que a questão
relevante é: Uma fórmula pode ser falsa e também útil? Pode.
Um exemplo interessante é a redução da mortalidade em vacas com
febre do leite. A teoria da doença por germes, mesmo descoberta por Louis
Pasteur, levou um veterinário dinamarquês a injetar uma solução antisséptica
nos úberes de vacas. A mortalidade caiu de 90 para 30%. Isso parecia
confirmar a teoria da doença por germes, até que se descobriu que a água
destilada produzia tantas curas quanto a solução antisséptica. Mais tarde, o ar
comprimido teve resultados ainda melhores. O operacionalismo aceitará os
procedimentos como úteis, mas as teorias de como a natureza funciona na
febre do leite eram falsas.
A ciência, então, não deve ser considerada cognitiva, mas sim uma
tentativa de utilizar a natureza para as nossas necessidades e desejos. Essa
filosofia da ciência não é apresentada como uma epistemologia geral, e
certamente não como um relativismo universal. O relativismo universal é
autoestupidificante. Pelo contrário, o operacionalismo é aqui oferecido
absolutamente como uma filosofia da ciência. Em vez de ser a única porta de
entrada para todo conhecimento, a ciência não é uma forma de conhecimento,
seja qual for — a menos que, como foi dito, se trate de um conhecimento do
que fazer em um laboratório. Mas conhecimento da natureza, não. Para
repetir uma citação anterior de Bridgman, “Isso [partícula da física] não é
primariamente uma declaração sobre a natureza”
O terceiro ponto da conclusão é que o relacionamento entre a ciência,
por um lado, e a religião, a moral e outras disciplinas normativas, por outro
lado, deve ser construído em termos radicalmente diferentes das visões de
Büchner, Clifford, Carlson e daqueles de mesma mentalidade. O naturalismo
científico, isto é, o naturalismo oferecido como uma conclusão inescapável da
ciência, deve ser repudiado.
No seu discurso presidencial perante a Associação Filosófica
Americana em 1954, Ernest Nagel disse:
A ocorrência de eventos, qualidades e processos, e os comportamentos característicos
dos vários indivíduos, são contingentes sobe a organização dos corpos situados
espaço-temporalmente, cujas estruturas internas e relações externas determinam e
limitam o aparecimento e o desaparecimento de tudo que acontece. Que isso assim
seja é uma das conclusões mais bem testadas da experiência… Não há lugar para a
operação de forças incorpóreas, nenhum lugar para um espírito imaterial dirigindo o
curso dos acontecimentos, nenhum lugar para a sobrevivência da personalidade após a
corrupção do corpo que a exibe.

O argumento dessa monografia mostra que não existe nenhuma base


científica para essas inferências. Os corpos naturais são desconhecidos; os
corpos científicos existem em vários tipos diferentes de espaço e tempo; as
estruturas internas estão abaixo do limiar da observação; e as relações
externas não explicam nada. Certamente, as relações externas ─ como a
gravitação ─ não determinam o aparecimento ou desaparecimento de
qualquer coisa; ao contrário, supostos aparecimentos supostamente
determinam a lei da gravitação.
Talvez, por algumas razões filosóficas, um homem possa decidir que as
mônadas leibnizianas (aquelas forças incorpóreas que fazem todas as coisas
acontecerem) sejam ilusórias; mas não há nenhum argumento científico para
provar isso.
Austin Farrer disse que nenhum homem moderno decente pode
acreditar numa criação oito mil anos atrás. Em resposta, perguntamos: Pode
um cientista que está convicto de ter a verdade, um cientista que não dá
espaço para a crença ou porque sabe, ou porque não sabe (e se sabe, não há
espaço para a crença, mas se não sabe, não tem o direito de crer) ─ Pode um
cientista crer, saber ou provar que o mundo existe há mais de 24 horas ou
mesmo 5 minutos? Estudiosos que, como Nagel, são tão confiantes de que
Deus não pode existir e que, como Pearson, alegam fazer julgamentos
absolutos que estão além de qualquer dúvida, deveriam ser capazes de
cientificamente demonstrar com certeza absoluta que o mundo existe há mais
de cinco minutos. Essa não pode ser uma suposição das mais absurdas. Mas
se é tão absurda, isso não pode com a maior facilidade ser demonstrado
acima de qualquer dúvida? Qual, então, é o argumento científico contra a
proposição de que apenas um minuto atrás o Universo veio à existência,
árvores completas com anéis, seres humanos com umbigo e cientistas com
aquelas ideias que chamamos de memória? Em todo caso, não posso
imaginar qualquer observação empírica que contradiga essa hipótese
extremamente peculiar. Para descartá-la, outra coisa que não a ciência é
necessária.
Tanto menos pode a física demonstrar a não existência de uma
Inteligência Suprema que fez o que a gravitação não poderia e que dirige o
Universo inteiro para os seus próprios fins. E como o procedimento de
laboratório ─ confinado no século XIX a condições impossivelmente ideais
no aqui e agora, e no século XX impedido de toda aplicação descritiva à
realidade ─ pode mostrar que a personalidade não sobrevive à morte em uma
vida futura, é algo totalmente ininteligível.
Finalmente, para mostrar a inutilidade da ciência fora da sua própria
esfera restrita, a ciência não pode determinar seu próprio valor. Sem dúvida, a
ciência permite ao homem dominar a natureza. Pela ciência bombas são feitas
e o câncer poderá em breve ser curado. A maioria das pessoas acha que as
bombas e a medicina são coisas boas de se ter. Mas não há nenhum
experimento que prove a bondade dessas coisas. Elas são indubitavelmente
“boas para” alguma coisa; são meios eficazes para um fim. Mas pode a
experimentação demonstrar que a destruição de cidades ou o prolongamento
da vida é algo bom?
O valor da ciência depende do valor da vida; mas o valor da vida,
quando o suicídio é uma escolha possível, e, portanto, o valor da ciência em
si, deve ser determinado por algum tipo de filosofia geral, da qual a ciência
não é nem a totalidade, nem a base, mas apenas uma parte subsidiária. E é a
minha convicção que a melhor filosofia geral, na verdade a única posição que
administra satisfatoriamente todos esses problemas, é a filosofia revelacional
do teísmo cristão.
PÓS-ESCRITO: OS LIMITES E USOS DA
CIÊNCIA[35]

A maioria dos cristãos, quando pensa na ciência, tem em mente algum


interesse apologético imediato. Por exemplo, a filosofia mecanicista nega a
ocorrência de milagres e questiona o valor da oração. Os cristãos comuns
querem, então, um argumento para justificar a oração e os milagres. Ou,
novamente, o behaviorismo elaborou uma teoria da natureza humana que
mina o conceito bíblico de pecado e tem levado muitos universitários à
imoralidade grosseira. Os cristãos devotos, naturalmente, querem alguma
defesa contra Sigmund Freud, Bertrand Russell e John Dewey. E subjazendo
o behaviorismo está a teoria da evolução, pela qual todas as formas de vida
derivam da matéria inanimada e a vida humana, dos animais inferiores. Mais
uma vez, queremos ver o homem não como um mero animal sensorial, mas
como uma alma racional que anseia por uma vida além-túmulo.

Ciência como vocação


Embora a maioria dos cristãos pense nessas questões de forma um
tanto que desordenada, está claro que a Física, a Psicologia e a Zoologia são
assuntos técnicos em que o pensamento desordenado e desconexo não tem
qualquer valor. Os estudiosos devem fazer dessas ciências sua preocupação
profissional e dedicar sua vida às formulações técnicas delas. Alguns
estudantes extremamente devotos, porém, vendo com preocupação a
apostasia das igrejas, o secularismo da população e o recrudescimento
universal da criminalidade, da dependência das drogas e do terrorismo, agora
questionam se uma vida de pesquisa científica vale a pena ou é mesmo
permissível a um cristão. Os adultos na metade da carreira dão pouca atenção
a essa questão, mas para um pequeno grupo de estudantes dotados a ciência,
como alternativa vocacional, é uma opção forçada e momentosa. O presente
ensaio, embora principalmente interessado na natureza e na filosofia da
ciência como tal, se permite, por causa de alguns desenvolvimentos atuais,
começar com o problema pessoal.
Todo estudante deve escolher a profissão para a sua vida. O
problema é real. Mas os estudantes cristãos podem enfrentar a alternativa de
pregar o Evangelho ou de fazer Física. Eles não são suscetíveis a negar que a
Bíblia aprova todos os métodos de ganhar a vida, à exceção dos que são
pecaminosos. Há muitas ocupações; e nem todo cristão, por mais sincero que
seja, é obrigado a entrar no ministério. A ciência, portanto, é uma vocação
legítima.
Por outro lado, no presente estado de coisas, o mundo em geral
mantém a ciência em tão alta estima que alguns cristãos têm começado a
questionar o valor de se pregar o Evangelho. Eles já começam a partilhar da
idolatria da ciência. Visto serem cristãos professos, criados em lares
evangélicos, mantendo uma ligação com visões bíblicas, esses filósofos-
teólogos pinçaram Gênesis 1.28, cunharam a frase “mandato cultural” e
enfatizaram a tal ponto a subjugação da Terra para o conforto do homem que
o ministério acabou sendo realmente rebaixado. Alguns foram longe a ponto
de sugerir que a pregação do Evangelho deveria cessar até que a sociedade
fosse reconstruída em linhas socialistas e pronta, assim, para aceitar o
cristianismo.
Nos dias pré-diluvianos, esse mandato cultural de Gênesis foi
cumprido pelo desenvolvimento da agricultura, pela domesticação dos
animais, pela invenção de instrumentos musicais, pela metalurgia e pelas
artes rudimentares de guerra. Esses foram avanços científicos — científicos,
pelo menos, no sentido de que a ciência deveria começar dessa maneira —,
mas foram feitos, assim nos dizem os registros, principalmente pela linhagem
ímpia de Caim e não pelos descendentes de Sete. Mais tarde, como observado
em Êxodo 31, alguns da linhagem piedosa eram hábeis na arte, se não na
ciência.
A Escritura, assim, aprova as artes e as ciências. Mas ela não aprova
a pesquisa física em exclusão de outras ocupações dignas. A aprovação
admite, e neste caso requer, um reconhecimento de graus de importância. De
fato, o Antigo Testamento mostra pouco interesse em matemática e física, ao
mesmo tempo que atribui um papel contínuo aos sacerdotes e levitas. E no
Novo Testamento, se Paulo tivesse considerado o cumprimento do mandato
cultural um pré-requisito para a execução da “Grande Comissão”, o
cristianismo jamais teria ido além das fronteiras da Palestina. Menos ênfase
ainda requer o mandato cultural hoje, pois, com a ajuda especial da linhagem
ímpia, ele tem sido muito mais plenamente obedecido que a Grande
Comissão.
Também deve ser observado que há uma grande lacuna lógica entre
as simples palavras de Gênesis e algumas das propostas atuais feitas sob sua
égide. Se alguém apela à Escritura para um mandato cultural, também deve
mostrar, por exemplo, que as políticas precisas da Associação Cristã para o
Trabalho do Canadá (CLAC), a desvalorização da moeda, a exigência de que
pequenas empresas com somente quatro ou cinco empregados façam longos
relatórios trimestrais em quintuplicado, a lei contra os idosos com artrite nos
dedos impedindo-os de ter acesso aos remédios em recipientes facilmente
abertos e volumes de regulamentos irritantes são deduzíveis por silogismos
válidos não de Gênesis, mas de outras partes da Bíblia. Caso contrário, no
entanto, a ciência é uma ocupação indubitavelmente legítima para um
universitário.

O que é Ciência?
De interesse pessoal, nada mais a acrescentar. A ciência é legítima e
importante, assim como real e generalizada. Esse julgamento, contudo,
levanta a seguinte questão: o que é ciência? Qual é a natureza e função da
experimentação em laboratório? Será que ela, por silogismos válidos, pode
suportar uma cosmovisão mecanicista, banir Deus do Universo e reduzir a
oração à meditação sobre outros assuntos?
Essas perguntas são na verdade questões de interesse apologético,
mas as respostas só vêm mediante uma análise filosófica técnica.
Infelizmente, um ensaio breve como este só poderá cobrir um pouco do
assunto. Portanto, o behaviorismo, a evolução e muitas outras coisas mais
precisam ser omitidos para podermos nos concentrar num assunto — física
— com maior profundidade. Essa limitação pode ser de certa forma
justificada porque a biologia depende da física e os vários pontos de vista
sobre a ciência básica alteram profundamente todas as disciplinas que dela
dependem. Portanto, após uma breve descrição de alguns desenvolvimentos
históricos, a análise do procedimento adotado em laboratório e da formulação
das leis físicas levará às conclusões aqui propostas.
Como a pesquisa histórica também deve ser breve, não há por que
focar a era pré-newtoniana. Usando o trabalho de Galileu e Kepler, Sir Isaac
Newton estabeleceu princípios que nortearam os avanços científicos por dois
séculos. De 1686 (ou tão logo os cientistas puderam ler o Principia
Mathematica) até aproximadamente 1900, toda a física estava baseada em
certas definições e leis básicas, das quais os seguintes exemplos são
especialmente importantes:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si mesmo e por sua própria
natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa…
O espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa
externa, permanece sempre similar e imóvel.
Movimento absoluto é a translação de um corpo de um espaço absoluto para
outro…

Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme


em uma linha reta a menos que seja obrigado a mudar esse estado por forças
impressas sobre si.[36]

Com base nessas premissas, Newton, com incrível genialidade e


infinita paciência, elaborou seu sistema gravitacional em grandes detalhes.
Embora seu triunfo tenha sido esmagador, seu edifício hoje está em ruínas.
Nada dele permanece. Tanto o seu desenvolvimento como o seu fracasso
lançam luz sobre a natureza e o compasso da ciência.
Durante a vida de Newton, Leibniz argumentou que a Principia
dependia de um conjunto de contradições. Mas os outros cientistas não
ficaram impressionados com as objeções desses filósofos de araque; eles
firmemente operaram sobre a teoria newtoniana em suas muitas leis
subordinadas. Então, dois séculos mais tarde, Ernst Mach, bastante inocente
sobre a erudição leibniziana, redescobriu a asneira lógica de Newton: a lei da
gravitação e os conceitos de tempo e movimento absoluto não podiam ser
combinados. Como Hans Reichenbach escreveu:
A famosa correspondência entre Leibniz e Clarke… sugeria que Leibniz
tivesse tomado seus argumentos das exposições da teoria de Einstein… Essa
concepção da relatividade foi mantida num momento posterior por Ernst
Mach [que argumentou]… que a relatividade do movimento rotacional
requer uma extensão do relativismo para o conceito de força inercial.[37]

O material técnico relevante está disponível para qualquer um que


queira lê-lo. Aqui, deve ser suficiente indicarmos apenas duas das
dificuldades de Newton. Em primeiro lugar, a ideia de que o tempo absoluto
flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa é cientificamente
inútil e filosoficamente impossível. A razão é a seguinte. Quando medimos o
movimento de um automóvel, dizemos que ele vai a 50 quilômetros por hora,
isto é, uma determinada distância num determinado tempo. Mas se o próprio
tempo flui uniformemente por nós, esse movimento do tempo não pode ser
medido pelo tempo — assim como o movimento do automóvel é medido pelo
tempo —, mas apenas por sua relação com algum “supertempo”. Agora, se o
tempo pode ser medido em segundos e o movimento de um carro em metros
por segundo, em que velocidade se dá o fluxo uniforme do tempo? Em
segundos por o quê? O automóvel vai em metros por segundo; o tempo vai
em segundos por o quê? Após responder isso, deve-se seguir e perguntar se
esse “supertempo” também flui uniformemente. E assim por diante, ad
infinitum.
Uma segunda dificuldade com a teoria newtoniana diz respeito ao
princípio do movimento em linha reta. Um método empírico para identificar
o movimento retilíneo no espaço absoluto é impossível. O cientista
precisaria, além da localização atual do corpo em movimento, de um ponto
fixo no espaço para o qual o corpo estivesse se movendo. Uma estrela fixa
satisfaria essa exigência. Mas não há estrelas fixas. Por isso, o conceito de
movimento em linha reta é inútil na ciência.
Note também que a lei da gravitação conflita com a distribuição
observada da população de estrelas. A gravitação implica um centro no
Universo em que haja mais estrelas por volume cúbico do que nos outros
lugares, com a população de estrelas diminuindo gradualmente do centro para
uma área distante de completo vazio. Contudo, a observação real não
corrobora essa hipótese.
Nesse ponto, o leitor não científico pode querer outra referência para
a apologética. Três podem ser dadas. Primeiro, a hipótese do mecanicismo
newtoniano — pelo qual W. K. Clifford, Karl Pearson e outros condenaram
os milagres — não tem prova experimental. Os cientistas podem permanecer,
e alguns permanecem, mecanicistas, mas não têm nenhuma base científica
para fazê-lo. Assim, não existe nenhum argumento científico válido contra os
milagres.
Em segundo lugar, se o majestoso sistema newtoniano se
desintegrou, e se a ciência deve estar sempre baseada em tentativas, nenhuma
síntese futura pode ser tomada como verdadeira e final. Todo mundo sabe
que a Física tem passado por enormes mudanças, porém mesmo alguns
cientistas acham difícil compreender a imensidão disso. Por exemplo, em “As
limitações da Ciência”, J. W. N. Sullivan conta uma interessante história
sobre os avanços e as dificuldades da ciência contemporânea. Mas embora
detalhe as dificuldades, apresente as limitações e beire o ceticismo, ele não se
coloca em posição de finalmente reconhecer que a ciência sempre será
tentativa.[38] Entretanto, sua própria evidência é conclusiva. Tão rápidas e
extensas foram as mudanças na Física desde a abolição do éter e a invenção
das wavicles,[39] que se pode afirmar com confiança que, conquanto o
newtonianismo tenha durado dois séculos, nenhuma teoria hoje parece
provável durar duas décadas. Os argumentos deste capítulo se referem
diretamente à Física; mas se a Física é sempre tentativa e nunca final, podem
as ciências que dela dependem ser superiores? Claramente, não. Portanto, os
argumentos anticristãos baseados na ciência sempre dependem de premissas
que em breve serão descartadas.
Há também um terceiro ponto, ou pelo menos uma confirmação do
segundo. A seguinte análise do procedimento de laboratório irá mostrar por
que nenhuma lei da Física já foi ou mesmo pode ser alguma vez uma
descrição verdadeira dos processos naturais.

O método experimental

Com base no pressuposto de que os conceitos de tempo e espaço absoluto


estão desacreditados e que a lei da gravitação sucumbiu ante o assalto da
relatividade, é pertinente contrastar a visão de ciência do século XX, baseada
na tentativa, com a visão do século XIX de que a Física chega à verdade
absoluta. A população em geral, embora vagamente consciente dos grandes
avanços científicos deste século, ainda mantém o otimismo newtoniano de
que a ciência realmente descobre a verdade. No lado oposto, alguns cientistas
profissionais conhecem tanto de ciência moderna e tão pouco de história que
duvidam que já houve uma teoria de verdade fixa em Física. Houve já uma
tal teoria, no entanto. Seus expoentes não são espantalhos.[40]
Karl Pearson, em sua “Gramática da Ciência”, ensinou que “a
classificação de fatos e a formação de juízos absolutos com base nessa
classificação — juízos independentes das idiossincrasias da mente individual
— resumem, essencialmente, a finalidade e o método da ciência moderna”.
Que os juízos absolutos da ciência se estendam à teologia e à ética, é algo que
Pearson afirma explicitamente:
O objetivo da ciência é claro — nada menos que a completa interpretação do
Universo… A ciência faz muito mais do que urge ser deixado na posse imperturbável
do que os teólogos e metafísicos se agradam em chamar de seu “campo legítimo”. Ela
afirma que toda a gama de fenômenos, mentais assim como físicos — o Universo
inteiro — é o seu campo. Ela afirma que o método científico é a única porta de
entrada para toda a região do conhecimento.[41]

O professor A. J. Carlson escreve:


Qual é o método da ciência? Em essência é isto ─ a rejeição in toto de toda autoridade
não observacional e não experimental no campo da experiência… Quando nenhuma
evidência é produzida [em favor de um pronunciamento] além da personal dicta, de
“revelações” do passado e do presente ou da “voz de Deus”, o cientista não pode dar
nenhuma atenção, exceto para perguntar “Como se chegou a isso?”.

Carlson, então, confiantemente afirma: “O cientista tenta se livrar de


toda espécie de fé e crença. Ou ele sabe, ou ele não sabe. Se ele sabe, não há
espaço para a fé ou crença. Se ele não sabe, não tem direito à fé ou crença”.
[42]
Mesmo Hans Reichenbach, que, como a citação anterior mostra,
deveria saber mais, sucumbe ao excessivo otimismo. Na sua “Moderna
Filosofia da Ciência”, ele contrasta a perene incapacidade dos filósofos de
concordarem em qualquer coisa com o terreno comum, universalmente
reconhecido, que a ciência desenvolveu. Um professor de ciências pode
ensinar “com o sentimento de orgulho de introduzir seus alunos em um reino
de verdades bem estabelecidas”. Os resultados da ciência são “estabelecidos
com uma validade super-pessoal e universalmente aceita”.[43]
Philipp Frank, por outro lado, interpreta de forma mais precisa o
estado de coisas contemporâneo: “Levou um longo tempo até a teoria de
movimento atual ser desenvolvida, e não sabemos se ela é ou não o esquema
correto para o futuro”.[44]
Nesse ponto, é instrutivo notar quão retrógrados são muitos teólogos
liberais. Rudolf Bultmann, por exemplo, afirma em “Kerigma e Mito” que
“agora que as forças e leis da natureza foram descobertas, não podemos mais
crer em espíritos, bons ou maus”.[45] Se fosse consistente, Bultmann deveria
negar a existência de Deus, pois Deus é um espírito bom; mas ele não parece
ser tão consistente. E então, em “Jesus Cristo e Mitologia”, ele se baseia em
Auguste Comte para afirmar que, embora a ciência possa mudar em alguns
detalhes, seus métodos de pensamento nunca mais irão mudar.[46] Ele vai
ainda mais longe e parece sugerir que, embora a astronomia geocêntrica e a
heliocêntrica possam continuar mudando, as leis (newtonianas?) do
movimento são verdades imutáveis.
Para sustentar a afirmação anterior de que a física jamais pode
descobrir ou formular uma descrição verdadeira dos processos naturais, é
apropriado seguir agora com uma análise técnica, embora simples, da
metodologia de laboratório. O que um cientista faz, o que ele deve fazer, o
impede de descobrir alguma vez a verdade ─ a verdade supostamente fixa e
absoluta de Clifford, Pearson e Carlson, a lei inalterável, final e
insubstituível.
Após escolher um problema e iniciar um experimento pertinente à
sua hipótese, o cientista logo inicia mensurações. Na verdade, se poderia
dizer que todo experimento à medição o comprimento de uma linha. Pode ser
o comprimento de mercúrio num tubo; pode ser uma certa distância numa fita
métrica; ou a distância entre dois pontos num mostrador. O cientista registra
essa leitura. Então repete o experimento e faz uma segunda leitura. Por quê?
Uma possível razão para a segunda leitura é que seus olhos podem ter
piscado na primeira vez. Eles poderiam, é claro, piscar na segunda vez
também, mas o cientista espera que um grande número de leituras irá
minimizar esses defeitos. Mas há também outra razão para fazer uma segunda
ou vigésima segunda leitura. Pode ser que o mercúrio ou o marcador de aço
esteja palpitando, constantemente se expandindo e se contraindo no fluxo
universal. Uma barra de metal pode não se expandir uniformemente em todas
as temperaturas, nem todas as vezes, mesmo dentro de limites muito estreitos
de temperatura. Pior ainda (no que diz respeito à verdadeira ciência), o
próprio objeto sendo medido também pode estar vibrando. Poderia algum
experimento provar que um centímetro cúbico de ouro, água ou enxofre
mantém sempre o mesmo peso? As medições sempre variam, e os pesos
atômicos são apenas médias. Se essas variações são casuais, então a verdade
fixa é impossível, não só porque nossos olhos piscam, mas também porque o
objeto em si não é fixo. De fato, em anos recentes este último ponto de vista
tem sido aceito por alguns cientistas, como em breve será explicado.
Antes de levar adiante a discussão sobre o indeterminismo
metafísico ao qual o último parágrafo se refere, consideremos se a utilização
de médias pode neutralizar o piscar dos olhos e assim preservar a veracidade
das leis físicas. O que o físico faz é repetir um experimento muitas vezes e
registrar uma lista das leituras divergentes. Em seguida ele calcula sua média
aritmética. Há outras médias que ele poderia usar, mas por nenhuma razão
empírica o físico prefere a média aritmética. Há outros fatores não
observacionais que contribuem para os achados do físico. Na verdade, os
achados do físico não são achados de fato. São formulações. Vários fatores
na formulação de uma lei estão completamente ausentes de evidência
observacional, mas para o momento é suficiente notar que o físico escolhe
um tipo de média dentre outras.
Em seguida, cada leitura é subtraída da média aritmética, e uma
média desses desvios é calculada. Essa segunda média é anexada à primeira e
então chamada de índice de erro. Nessa altura, o físico tem uma longa lista de
figuras como 17.03 ± .0007. Então ele repete o experimento uma série
entediante de vezes e obtém uma longa lista de figuras semelhantes à descrita
acima.
Para formular sua lei, o físico agora transfere esses valores para um
papel gráfico, onde aparecem como pequenos retângulos. Através deles ele
desenha uma curva, determina uma equação algébrica que originará uma
curva correspondente e anuncia isso para o mundo como uma lei da física.
Para simplificar o argumento, suponhamos que as médias resultem
em três manchas no papel gráfico que pareçam podem ser unidas por uma
linha reta. O cientista pode então anunciar que a lei é ou . Isso
poderia significar que a pressão na parte inferior de um vaso aumenta e reduz
com a altura do líquido, ou que a temperatura varia com o comprimento de
uma coluna de mercúrio. Contudo, esses pequenos retângulos também podem
ser unidos por uma curva senoidal; na verdade, por um número infinito de
curvas senoidais, e mesmo por alguma de um número infinito de outras
curvas.
Que três áreas, ou mesmo três pontos numa linha reta podem ser
pontos numa curva senoidal é mais facilmente demonstrado visualmente
desenhando-se uma linha reta através de uma curva dessas. Mais
reconditamente, a equação pode sempre passar por
três pontos determinados por . As duas equações definitivamente não
são a mesma lei na física.
O leitor paciente pode permitir ou ignorar um exemplo mais
complexo. Suponha que uma série de experimentos produza vários valores a
serem assinalados logo acima do eixo x. Aos olhos da pessoa eles também
poderiam parecer com uma linha reta. Mas poderiam ser a extremidade
assintótica de uma hipérbole. Ou, para pegar um caso real, os valores
poderiam ser a extremidade assintótica da lei da gravitação, que não é uma
hipérbole. Mas desde que esses valores são áreas retangulares, eles poderiam
estar conectados pela equação complicada

Ou, reconhecendo que as leis da física são escolhidas por


considerações estéticas, os mesmos valores também podem ser determinados
pela equação muito mais bonita

Para conectar isso com a gravitação, a última equação poderia ser


alterada para

Aqui nós temos o cerne da controvérsia entre choque ou contato e


ação à distância. Newton pensava que dois corpos se aproximam um do
outro, entram em choque e se afastam. A ação à distância parecia-lhe uma
impossibilidade não mecânica, sobre a qual fez sua declaração
frequentemente citada hypotheses non fingo (não faço hipóteses). Mas não há
nenhuma evidência observacional que requer corpos entrando em choque. A
força de gravitação pode aumentar até que a distância entre os dois corpos
seja infinitesimal, em cujo ponto uma força de repulsão tem início; a curva
tem uma inflexão para baixo de um ponto alto no eixo y para um valor
negativo igualmente grande. Portanto, a ação à distância bem como as forças
impressas de Newton são igualmente compatíveis com as observações
empíricas. A experimentação jamais descobre como a ciência funciona. Toda
lei da física é uma equação e, se vista como uma descrição dos processos
naturais, falsa. A lei é indubitavelmente improvável; ela pode ser chamada de
falsa, pois (mesmo à parte da teoria do indeterminismo) a partir de uma visão
estritamente mecanicista a chance de selecionar a verdadeira descrição entre
todas as leis que a observação permite é uma no infinito, ou zero.
Numa conversa sobre a natureza da realidade última, Chaim
Tschernowitz cita Einstein, ao dizer: “Não sabemos nada, de fato, sobre isso.
Nosso conhecimento não passa de um conhecimento de colegiais…Nós
deveremos saber um pouco mais do que sabemos agora. Mas a natureza real
das coisas — essa nós jamais saberemos, jamais”.[47]
Segue-se disso a conclusão de que a ciência jamais pode refutar a
veracidade do cristianismo. Ela jamais pode provar ou refutar qualquer
afirmação metafísica ou teológica.

Ciência e cristianismo

Dois exemplos dessa conclusão negativa devem ser agora explicados; e então
deve ser feita uma declaração sobre o valor ou importância da ciência, se ela
é sempre falsa.
Os dois exemplos dessa conclusão negativa objetivam enfatizar que
nenhuma conclusão metafísica ou teológica é possível. Embora o argumento
tenha mostrado que a ciência não pode afirmar o mecanismo, igualmente se
segue que ela tampouco pode afirmar o indeterminismo. Por volta de 1930,
Heisenberg convenceu o mundo de que se os seus experimentos sobre
partículas usassem suficiente luz para localizar o objeto, a velocidade dele
não poderia ser determinada, porque a própria energia da luz afetava o objeto.
Por outro lado, se a luz fosse tênue o bastante para não interferir na
velocidade, o objeto não poderia ser localizado. Mas a partir desse trabalho
científico admirável, Heisenberg chegou à conclusão de que o mecanismo é
falso e o indeterminismo é verdadeiro. Essa inferência é inválida.[48] A
incapacidade do cientista de construir um experimento que possa determinar
tanto a velocidade como a posição certamente não dá nenhuma informação
sobre as leis ainda desconhecidas das partículas infinitesimais. Ou, no que diz
respeito a isso, a incapacidade do cientista torna incerto se a natureza é de
fato constituída de partículas, ou se é um continuum. O resultado é zero; nem
positivo, nem negativo.
Alguns apologistas cristãos, embora reconheçam que esse resultado
destrói todos os argumentos científicos contra os milagres, ainda podem
defender o mecanismo científico porque a segunda lei da termodinâmica
parece provar a doutrina de uma criação no passado finito e refutar a doutrina
da eternidade do Universo. No entanto, se é impossível medir com precisão
uma linha, e se uma série de áreas sobre um gráfico fornece um número
infinito de equações que se pode escolher, a segunda lei da termodinâmica,
juntamente com todas as demais, se torna tentativa e falsa.
Suponha que um cientista, por um breve instante na sua vida, esteja
na costa da praia observando a maré baixando. O nível da água desce um
metro em 12 horas, ou em 12 bilhões de anos. Ele conclui que a maré não
pode estar baixando desde a eternidade, pois se assim o fosse, a água já teria
alcançado seu nível mais baixo milhões de anos antes daquele momento de
observação. Evidentemente, é filosoficamente impossível a maré subir da
mesma forma que desce; ou não?
Agora, o cientista termodinâmico observou alguns sistemas de
energia, poucos em número e no máximo pelo período de algumas poucas
vidas. Ele viu o refluxo e, sem nunca ter visto uma maré subindo, registrou
alguns pontos sobre um gráfico. Eles se parecem com uma linha, mas um
matemático pode muito bem ligá-los por uma perturbadora curva senoidal. O
cientista vive na era do refluxo; numa era futura, as diferenças de energia
voltarão a aumentar.
Talvez um exemplo simplificado e artificial possa tornar mais claro
como uma série de números pode acomodar uma variedade grande, mesmo
infinita, de equações. Suponhamos que o primeiro ponto esteja em 3, o
segundo ponto em 9 e o terceiro em 19.[49] Agora, suponha a experimentação
que termine com o número 9. A experimentação deve sempre terminar em
algum lugar, pois do contrário nenhum momento seria deixado para formular
uma lei. Se, então, o último experimento desse o número 9, a lei poderia ser e
— em vista da antipatia do cientista pelas complicações de Rube Goldberg —
seria x = 3n. O primeiro número é 3, o segundo é 3 à segunda potência e o
terceiro será extrapolado no gráfico e predito como 27.
Mas neste exemplo a experimentação não parou em 9. O cientista
seguiu para a sua terceira média, 19. Portanto, x = 3n é refutado. Uma nova
fórmula deve ser concebida. Bem, o cientista tem um número infinito de
escolhas, das quais duas são:

Esse exemplo artificial deveria convencer qualquer um de que em


qualquer teorização científica há infinitas possibilidades de extrapolação.
Cada uma descreve o processo natural igualmente bem; isto é, nenhuma delas
pode ser mostrada como sendo a verdadeira descrição. Assim, toda lei da
física deve ser falsa, pois a ciência sempre está baseada na tentativa.

O valor da Ciência
O público em geral, incluindo os teólogos conservadores e alguns cientistas,
podem rejeitar essa tese do ensaio com uma repulsa irracional; mas caso não
o façam, certamente irão perguntar — e é uma pergunta legítima: “Se a
ciência é sempre falsa, que valor ela tem?”. A ciência tem feito maravilhas.
Mesmo a cura do câncer ainda não estando ao nosso alcance, nós pusemos
homens na Lua. Como poderiam leis falsas ter produzido essas maravilhas?
A resposta é que uma lei não precisa ser verdadeira para ser útil. Leis
científicas agora universalmente reconhecidas como falsas amiúde foram
muitas úteis. Por exemplo, nenhum astrônomo contemporâneo aceita a teoria
geocêntrica de Ptolomeu. Todavia, mesmo depois de Copérnico ter se
apropriado indevidamente do sistema heliocêntrico de Aristarco e Platão, o
sistema ptolomaico ainda era capaz de predizer as posições dos planetas com
maior precisão que a teoria copernicana; e assim, as leis de Ptolomeu eram
mais úteis para essas predições, quaisquer que fossem as utilidades destas. Da
mesma forma, a teoria de que campos eletromagnéticos existem é agora
negada, pelo menos por alguns cientistas; mas ninguém nega que essa teoria
falsa ajudou bastante no avanço da utilização da eletricidade.
Para aliviar o sofrimento daqueles que se cansam com física, outro
exemplo — mais interessante — pode ser tomado da zoologia ou medicina
veterinária. No século XIX, a febre do leite nas vacas era uma temível doença
com morbidade estimada em 90%. Após a guerra franco-prussiana, Pasteur
propôs a teoria da doença por germes e curou casos de antraz e raiva. Então
um veterinário brilhante pensou consigo mesmo: germes causam doenças;
logo, se eu injetar um antisséptico nos úberes das vacas e matar os germes, as
vacas ficarão bem. Ele fez isso; as vacas se recuperaram, ele publicou suas
descobertas e a mortalidade rapidamente caiu de 90% para 30%. Ele e outros
argumentaram, então, que isso provava ainda mais a verdade da teoria da
doença por germes.
Mas certo dia uma vaca telefonou para o seu veterinário para ele vir
imediatamente, ou ela morreria. Ele imediatamente encilhou seu mustangue e
a 60 MPH (mudpuddles per hedgerow)[50] logo chegou ao destino. Mas então,
quando abriu sua valise preta, descobriu que lamentavelmente havia
esquecido de trazer nela uma provisão de antisséptico. Felizmente, algumas
vacas ainda morreram; e como nem a vaca, nem o fazendeiro podia dizer a
diferença, eles jamais saberiam que ele havia injetado água destilada em vez
de Lugol. Para a surpresa dele, a vaca ficou bem.
Tendo uma mente científica, ele continuou a injetar água destilada
nas outras vacas, resultando em que tantas ou mais vacas se recuperaram. Ele
publicou suas descobertas; e outros veterinários investigadores tentaram
injetar ar comprimido, com resultados ainda melhores. Mas o que dizer,
então, da teoria da doença por germes? Água destilada e ar comprimido não
matam germes.[51] O ponto é que a teoria dos germes, agora provada falsa
com respeito à febre do leite, foi, todavia, muito útil na cura das vacas.
Portanto, a utilidade da ciência pode ser defendida até mesmo quando se
afirma a sua falsidade.
Agora, em conclusão: a ciência é sempre incapaz de produzir um
argumento válido contra a existência de Deus, contra a ocorrência de
milagres, incluindo a revelação sobrenatural, e contra a vida além-túmulo. O
autor[52] do artigo sobre “Ateísmo” na Enciclopédia de Filosofia baseia os
argumentos no problema do mal; outros autores podem tentar provar o
ateísmo sobre outras bases. Este artigo diz respeito à física; e a física — e
seus desdobramentos da química e biologia — é totalmente, totalmente
incompetente, tanto positiva como negativamente, para fazer qualquer
pronunciamento metafísico ou teológico. A ciência é falsa, mas muitas vezes
útil.

[1]
Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times, Avon Books, 1971, 504.
[2]
Popper Selections, editado por David Miller, Princeton University Press, 1985, 90, 91, 121; a ênfase
é de Popper.
[3]
Conjectures and Refutations, Harper and Row, 1968, 151.
[4]
Ibid., 192.
[5]
Hans Werner Bartsch, ed., Kerygma and Myth, Harper & Brothers, 1961, 214-215.
[6]
Para complicar o assunto ainda mais, considere o argumento de 206b20ss. Aristóteles afirma que a
magnitude infinita não pode existir mesmo potencialmente, pois não existe um infinito real. Aqui a não
existência de uma realidade é usada para provar a não existência de uma potencialidade. Isso funciona
suficientemente bem no caso usual da estátua, mas se essa interpretação está correta, ela torna o
segundo sentido totalmente impossível.
[7] Para as dificuldades na teoria do impulso e o hiato entre ela e a teoria posterior da inércia, veja A.
R. Hall, The Scientific Revolution, 77-80.
[8]
Nature and Nature’s laws lay hid in night / God said, Let Newton be! and all was light.
[9] Compare com Pierre Duhem, Le Système du Monde, III, 231-498.
[10] Florian Cajori, Newton’s Principia, 1934, Apêndice, 632ss.
[11]
The Meaning of Human History, 1947, 99.
[12] Herbert Butterfield, The Origin of Modern Science, 67.
[13] A definição de mecânica dada por Laplace, embora expressa de forma bastante simples,
dificilmente pode ser aperfeiçoada. Discussões contemporâneas tentam agora ser mais técnicas ou, pelo
menos, mais pedantes. A frase “lei processo” entrou em uso, e o mecanicismo é definido como a teoria
segundo a qual toda explicação científica toma a forma de leis processo. Mas, em primeiro lugar, o
termo lei processo é menos amplamente compreendido do que o termo lei matemática. E, segundo,
mesmo Gustav Bergmann, que prefere a palavra processo, admite que “mesmo quando conhecemos
processos, como é o caso na Física, a lei não é realmente afirmada dessa forma, mas, como referi antes,
como um sistema de equações diferenciais (Philosophy of Science, 93). Assim, parece satisfatório
definir mecanicismo como a teoria que sustenta que o Universo consiste de partículas cujos
movimentos podem ser descritos e cujas posições futuras podem, portanto, ser preditas por equações
diferenciais. Por outro lado, o mecanicismo é negado quando é dito que as menores partículas são
individualmente imprevisíveis; em cujo caso, seu comportamento é descritível somente por leis
estatísticas.
[14]
Aram Vartanian, editor 1960, 180, 189.
[15]
Force and Matter, edição inglesa, 1891, 8, 14-19, 58-66, 75-81, 242-243.
[16] A History of Science, 445.
[17]
The Riddle of the Universe, 1901, 225.
[18]
E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science, 236.
[19] Mysticism and Logic, 47, 56.
[20]
Karl Pearson, Grammar and Science, 6, 14, 24.
[21]
Science, 73:217-225, 1931; The Scientific Monthly, 59:85-95, 1944.
[22] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 136, 149.
[23] O físico usa outras médias também. A média geométrica, usada na dupla pesagem, parece ser
menos arbitrária; mas na verdade depende da teoria a alavanca, que por sua vez foi obtida da forma
descrita. Há também a média harmônica e o desvio padrão. O último inclui um número quadrado,
quadrado por causa da teoria dos quadrados mínimos. Mas poder-se-ia ter os números ao cubo e aplicá-
los a uma teoria dos cubos mínimos.
[24]
Science of Mechanics, 1942, 280.
[25] Modern Philosophy of Science, 50.
[26]
Science of Mechanics, 272.
[27] The Theory of Motion, According to Newton, Leibniz, and Huyghens, 52.
[28] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 46-47, fornece ainda outro exemplo do
fracasso dos cientistas em se beneficiar da análise filosófica: “É irônico”, diz ele, “que Newton, que tão
imensamente enriqueceu a ciência com suas descobertas físicas, tenha ao mesmo tempo em grande
parte impedido o desenvolvimento do fundamento conceitual dela… A teoria da mecânica de Newton
atrasou a análise do espaço e do tempo por mais de dois séculos, não obstante o fato de Leibniz, que era
seu contemporâneo, ter demonstrado uma compreensão muito mais profunda da natureza do espaço e
do tempo… A injustiça da história vai ainda mais longe… As teorias [de Leibniz] parecem ter sido
esquecidas pelos cientistas e preservadas apenas pelos historiadores da filosofia… Mach, o primeiro
relativista, da nova era… não sabia nada das objeções bem fundamentadas de Leibniz a Newton, e fez
apenas alguns poucos comentários ingênuos sobre ele. Até mesmo a solução de Einstein, indo muito
além de Mach, tomou a ‘mecânica clássica’ de Newton como seu ponto de partida sem fazer qualquer
referência a Leibniz e Huyghens”. Também se poderia mencionar a declaração de Percy Bridgman em
The Way Things Are (134): “A visão de que pode ser conceitualmente ilegítimo estender
indefinidamente o mundo que nos é revelado pela instrumentação [como fez Lorentz na sua teoria do
elétron] é uma visão que nós devemos à teoria quântica recente”. Não, não é. É a antiga falácia lógica
da composição e divisão, revelada aos estudantes em manuais de lógica elementar.
[29]
Fusão das palavras wave (onda) e particle (partícula) para representar entidades possuindo
simultaneamente as propriedades de onda e partícula. [N. do T.]
[30]
O caso da adição de velocidades fornece uma refutação facilmente compreendida da tentativa de
reabilitar Newton e a descoberta da verdade absoluta. Tem sido dito que as leis mais recentes são
simplesmente descrições mais precisas, e que as leis anteriores são casos especiais deduzíveis das leis
mais gerais descobertas posteriormente. Morris R. Cohen, The Meaning of Human History, 85-86, tem
isso da seguinte forma: “Podemos nós formular uma proposição universal precisa (isto é, uma sem
qualquer exceção) que nos capacite a dizer o que é relevante e o que é irrelevante para todos esses
movimentos? A lei da gravitação faz precisamente isso… Outra lei, como a de Einstein, pode substitui-
la como uma descrição mais precisa, mas essa outra lei terá de incluir a verdade da mais antiga sob
determinadas condições”. Cohen também especifica as leis da luz como exemplos. Mas Cohen está
equivocado. A formula v1 + v2 = V (isto é, um homem que anda a 3 mph dentro de um trem viajando a
60 mph está se movendo a 63 mph) não pode ser matematicamente deduzida a partir de e como um
caso especial de:
Claro, o quadrado da velocidade da luz é uma quantidade negligenciável em se tratando de andar dentro
de um trem; mas essa não é a consideração pela qual uma equação é determinada como um caso
especial de outra.
[31]
Theory of Experimental Inference, vii.
[32]
The Scientific Revolution, xi.
[33]
Philosophy of Science, 58.
[34]
Enquiry, Seção IV, Parte I.
[35] Este ensaio apareceu originalmente em Horizons of Science, Carl F. H. Henry, editor, 1978.
[36]
A. Motte, tradutor, e F. Cajori, editor, Mathematical Principles of Natural Philosophy, 1946.
[37]
Hans Reichenbach, “The Philosophical Significance of the Theory of Relativity”, em Albert
Einstein Philosopher-Scientist, Paul A. Schilpp, editor, 1949, 299ss. Veja também Reichenbach, Die
Beweglehre bei Newton Leibniz und Huyghens, 1924, e Philosophic Foundation of Quantum
Mechanics, 1944.
[38] J. W. N. Sullivan, The Limitations of Science, [1933] 1957. Veja também Henri Poincaré, Science
et Methode, Paris, 1927, e seus dois volumes sucessivos.
[39] Fusão dos termos wave e particle no plural para representar entidades possuindo simultaneamente
as propriedades de onda e partícula. [N. do T.]
[40] W. K. Clifford, The Common Sense of the Exact Sciences, 1946; Karl Pearson, Grammar of
Science, 1911, 6, 14, 24; A. J. Carlson, “Science and the Supernatural”, Science, 73 (1931): 217-225;
reimpresso em The Scientific Monthly, 59 (1944): 85-95.
[41]
Pearson, Grammar of Science, 6, 14, 24.
[42] A. J. Carlson, “Science and the Supernatural”.
[43] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 1959, 136, 149.
[44]
Philipp Frank, Philosophy of Science, 1962, 90.
[45]
Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth, 1961, 4.
[46]
Rudolf Bultmann, Jesus Christ and Mythology, 1958, 36-38.
[47]
Reader’s Digest, Agosto de 1972, 28.
[48] Para uma discussão técnica, veja C. T. Ruddick, “On the Contingency of Natural Law”, The
Monist (Julho, 1932), 330-383.
[49] Morris R. Cohen e Ernest Nagel fornecem esse exemplo em An Introduction to Logic and
Scientific Method, 1934, 209ss., embora Nagel, em seus livros posteriores, rejeite a implicação do
operacionalismo.
[50]
Literalmente, em inglês, “poças de lama por cerca viva”. O autor faz um trocadilho com “milhas
por hora”, a unidade de velocidade representada por MPH. [N. do T.]
[51]
O leitor pode verificar se a febre do leite é agora curada com injeções de cálcio no pescoço da vaca.
[52]
Paul Edwards, “Atheism”, The Encyclopedia of Philosophy, 1967, Volume I, 174-190.

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