Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CRENÇA EM DEUS
GORDON H. CLARK
Dr. Gordon H. Clark foi um dos melhores filósofos cristãos do século XX e,
na opinião deste autor, um dos melhores de todos os tempos. Seu Filosofia da
ciência e a crença em Deus é só um exemplo disso. Neste livro, o dr. Clark
nos ensina que a ciência tem seu lugar numa filosofia cristã, um lugar
importante. Mas jamais devemos chegar à conclusão de que a ciência deve
ser entendida como um meio de aprender a verdade. De acordo com o dr.
Clark, e corretamente, a verdade é encontrada na Escritura somente. Se
havemos de pensar biblicamente, que é a única forma como um cristão
deveria pensar, devemos perceber que a Bíblia tem um monopólio da
verdade. É sempre na Palavra de Deus, e somente nela, que devemos
acreditar e não nas experiências dos cientistas.
— Dr. W. Gary Crampton
A ciência merece tanto respeito na nossa sociedade que a maioria dos cristãos
parece pensar que até mesmo Deus deve responder a ela para manter alguma
credibilidade. Quando pregam a budistas, eles não argumentam que a fé cristã
é apenas uma forma mais forte de budismo. Quando confrontam as seitas,
nunca tentam retratar Cristo como o principal líder de seita ou o supremo
satanista. Porém, quando se dirigem a aqueles que confiam na ciência, são
movidos por uma avidez degradante de oferecer a fé cristã como mais
científica do que as suas alternativas. Sem qualquer fundamento, os cristãos
admitem que a ciência descobre a verdade e expõe o erro, e que o próprio
evangelho, portanto, deve passar pelo teste dela para garantir um lugar neste
mundo.
Isso é muito estranho, porque a Escritura nos diz que o homem espiritual
julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém, e
certamente não pelo homem natural. Aguardo que os cientistas pleiteiem
comigo e me convençam de que as suas conclusões são cristãs! A ciência não
é Deus. A ciência não é a verdade. Ela não é uma coisa em si mesma. Não é
algum padrão eterno de verdade pelo qual todas as coisas são julgadas. O que
ela é? A ciência são pessoas. Pessoas conjecturam, escolhem, cometem
equívocos, fazem esquemas de financiamento, revisam suas teorias, inventam
explicações e entram na espiral do completo absurdo. Mas Jesus Cristo é
Deus e a Verdade. Ele é a racionalidade encarnada e não responde a ninguém.
A ciência é que deve responder a ele.
Gordon Clark nos diz o porquê.
— Vincent Cheung
“Este é o livro para confundir quem quer que deposite uma fé e confiança na
ciência.”
— Jay P. Green
1a edição, 2016
PREFÁCIO
Cristãos e não cristãos geralmente creem que a ciência é um corpo crescente
de conhecimento sobre o Universo. O conhecimento científico, de acordo
com essa visão popular, é extraído da natureza com grande dificuldade ―
porque a natureza não entrega facilmente os seus segredos ― por um grupo
de homens e mulheres extremamente inteligentes, altamente educados,
diligentes, imparciais e escrupulosamente honestos.
O progresso da ciência, assim defende essa visão popular, pode ser
visto na sua gloriosa marcha de um triunfo tecnológico para outro. Apenas
um século atrás o voo motorizado alguns metros acima do solo era
considerado algo impossível; em 1969 homens pousaram na Lua e
retornaram à Terra sãos e salvos. Todos os confortos e conveniências do
século XX são produtos da ciência: encanamento residencial, comida
abundante, aquecimento central e ar condicionado, automóveis, televisão,
computadores, viagens aéreas, raios-X e antibióticos ― a lista quase não tem
fim. A ciência, assim parece, tem demonstrado seu valor e sua verdade vez
após vez.
Para aqueles que mantêm essa opinião popular e ingênua da ciência,
o argumento de A Filosofia da Ciência e a Crença em Deus será bastante
surpreendente. De forma justa e cuidadosa, Dr. Clark examina e então refuta
a crença de que a ciência nos fornece verdades. Sua conclusão, note bem, não
é apenas dele, a despeito do que o norte-americano comum ― incluindo
muitos cristãos norte-americanos ― poderia pensar. Mas, ao que parece, as
opiniões de muitos cientistas e filósofos não têm sido tão divulgadas ou
convincentes quanto as invenções científicas do século XX.
Na mente moderna há uma crença profundamente arraigada, não
podendo ser totalmente traçada até John Dewey ou William James, de que o
sucesso é uma prova de verdade. Quem pode discutir com o sucesso? O envio
de homens à Lua não implica que os cientistas sabiam verdades o bastante
para enviá-los até lá? A maior expectativa de vida dos norte-americanos no
século XX não prova que a ciência médica sabe mais verdades sobre nutrição
e cuidados médicos que sabia no século XIX? Se uma coisa funciona, não é
verdadeira?
Acompanhando essa noção popular da ciência como um corpo de
verdades está uma admiração e um respeito generalizados por cientistas
famosos. Albert Einstein é provavelmente o mais famoso e talvez o mais
respeitado cientista do século XX. Mas duvido de que muitos dos seus
admiradores saibam que ele considerava suas próprias teorias como sendo
falsas ― suposições brilhantes, mas não verdadeiras. Na sua biografia de
Einstein, Ronald W. Clark relata uma conversa entre o famoso físico e o Dr.
Chaim Tschernowitz:
Uma contemplação dos princípios primeiros ocupou progressivamente a atenção de
Einstein. Um visitante, Dr. Chaim Tschernowitz, deu um relato vívido de uma viagem
de verão que tivera com ele em Havelsee, durante a qual suas discussões eram
frequentemente metafísicas. “A conversa avançava e recuava, de profundidades sobre
a natureza de Deus, do Universo e do homem a questões de natureza mais leve e
animada…”, escreveu ele. “De repente [Einstein] ergueu sua cabeça, olhou para cima
ao céu claro e disse: ‘Não sabemos nada, de fato, sobre isso tudo. Todo o nosso
conhecimento não passa de um conhecimento de colegiais’.
“‘Você acha’, perguntei, ‘que jamais sondaremos o que está oculto?’
“‘Possivelmente’, disse ele com um movimento de ombros, ‘nós saberemos um
pouco mais do que sabemos agora. Mas a natureza real das coisas, esta nós jamais
saberemos, jamais’”.[1]
— John W. Robbins
INTRODUÇÃO
Os paradoxos de Zenão
O fluxo heracliteano
Como não podemos parar aqui mais outros dois mil anos para elaborar
respostas melhores a Zenão, devemos prosseguir como se essas objeções
jamais tivessem sido levantadas. Vamos bani-las da nossa memória.
Resolvamos não pensar sobre elas. Devemos, sem mais demora,
simplesmente assumir que as coisas estão em movimento. Um dos primeiros
filósofos a estudar o movimento, na verdade o primeiro filósofo a fazer do
movimento o principal objeto do seu estudo, concluiu não só que as coisas
estão em movimento, como também que todas as coisas estão em constante
movimento.
O slogan de Heráclito (c. 500 a.C.) era “Tudo flui”. Ele comparou o
Universo a um rio com novas águas continuamente sucedendo as anteriores.
Nada permanece em repouso; tudo muda. Portanto, não se pode entrar no
mesmo rio duas vezes. Se o rio consiste de água, e a água nunca é a mesma, o
rio nunca é o mesmo; logo, ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes.
Se fosse feita uma tentativa de evitar essa conclusão forçando a ilustração, e
se fosse observado que um rio tem leito e margens tanto quanto tem água,
Heráclito responderia que o leito e as margens estão constantemente erodindo
e nunca permanecem iguais. Até o mais ínfimo cascalho ou partícula de areia
está constantemente se modificando. Nada permanece igual.
Há também outra razão por que um homem não pode entrar no mesmo
rio duas vezes. Não é só o rio que muda; a pessoa também muda. Nada do
homem permanece igual; de sorte que nas duas vezes não é o mesmo homem
que entra no rio.
Embora Heráclito fosse um grego antigo, a universalidade do
movimento não é uma ideia estranha nos tempos modernos. Costumava-se
considerar os átomos internamente estáveis e sólidos, mas com a divisão do
átomo veio a ideia de que o átomo é mais ou menos como um sistema solar
em miniatura cujas partes giram em torno de um núcleo central. Ainda mais,
o núcleo do novo átomo e seus satélites não são geralmente considerados
esferas sólidas, mas toda a matéria do Universo é supostamente uma espécie
de campo de energia palpitante onde nada é estável. Indubitavelmente, os
cientistas modernos e os filósofos contemporâneos divergem sobre vários
detalhes e até mesmo sobre questões substantivas; mas a ideia da mudança
universal, ao menos, não é estranha em nossa época atual. Por esse motivo as
implicações que Heráclito e seus discípulos tiraram das visões deles, de que
todas as coisas fluem, são considerações que devem ser guardadas em mente
até mesmo hoje.
Foi Crátilo, um discípulo, em vez de Heráclito, quem extraiu algumas
dessas conclusões. Nosso principal interesse aqui, evidentemente, é a análise
do conceito de mudança universal, não o preciso desenvolvimento histórico.
A questão, portanto, é: Se todas as coisas mudam, se nada permanece em
repouso, o que resulta disso?
Platão observa causticamente que os heracliteanos exemplificam seu
princípio no fato de que suas opiniões nunca permanecem iguais. Eles nunca
respondem a mesma questão duas vezes da mesma forma. Suas mentes fluem
tão constantemente como seu rio. Crátilo, porém, foi capaz de escapar da
acusação de Platão. Sempre que se lhe fazia uma pergunta, não importava
qual fosse, ele dava a mesma resposta. Apenas que a resposta não era em
palavras, mas com um aceno de mão.
Talvez Crátilo fosse consistente; talvez a teoria do movimento universal
tornasse o discurso inteligível algo impossível. Vamos ver. Se o rio está
constantemente mudando, ele pode mesmo ser chamado de rio? Quando
chamamos uma coisa de rio, ou mesmo de nuvem, acreditamos que ela
continua sendo um rio ou uma nuvem por certo espaço de tempo. Rios
presumivelmente duram mais tempo que nuvens; mas até mesmo uma
nuvem, para ser chamada como tal, deve durar tempo bastante para ser assim
reconhecida e nominada. Algo nela, ao menos alguma coisa, precisa
permanecer igual e não mudar, ou do contrário ela não será o que a
chamamos. Com isso não queremos dizer que o rio deve permanecer
inalterado em todos os aspectos; nem que ele deve permanecer para sempre
inalterado em algum aspecto. Mas a menos que algo (ser um rio) não mude
em outra coisa (não ser um rio), o nome não teria qualquer sentido. Por
conseguinte, a possibilidade do discurso inteligível pressupõe a existência de
entidades que permanecem inalteradas por algum tempo finito; e,
inversamente, a teoria da mudança universal torna o discurso e o
conhecimento impossíveis.
No Timeu, Platão produziu uma boa ilustração desse ponto. Ele supõe
que um escultor hábil esteja modelando uma estátua em ouro. O ouro é
macio, maleável e pode ser trabalhado de forma rápida. Para propósitos
ilustrativos, podemos acelerar o processo para enfatizar o ponto. O escultor
agora modela uma estátua de Zeus, e um dos espectadores pergunta a você no
que ela consiste. Mas o escultor não para de modelar no momento em que
Zeus aparece no ouro; ele segue em velocidade constante. E antes que você
possa dizer Zeus, a estátua já não é mais Zeus. Talvez ela comece a tomar a
forma de Sócrates ou de um centauro. Mas toda vez que você se sente seguro
para chamá-la de alguma coisa, ela já mudou. Ela não é alguma coisa; ela não
é nada.
É claro, alguém poderia dizer que ela é ouro. Ela poderia não ser Zeus
ou um centauro, mas certamente é uma coisa, ela é ouro. Em resposta a essa
réplica nós teríamos de desenvolver as implicações de Platão um pouco além
da ilustração explícita. Somos tentados a chamá-la de ouro, não é mesmo,
porque o ouro em si se manteve inalterado ao longo do processo. Mas
suponha, novamente, que o ouro não permaneceu inalterado. Suponha que
durante o processo de modelagem o próprio ouro esteve mudando para barro.
Suponha, também, que tão logo tenha parecido ser apenas barro, ele começou
a mudar para cera. Sob essas condições, como poderíamos responder à
pergunta “O que ele é”? Ele não apenas não é Zeus; ele também não é ouro;
não é barro; não é cera; não é nada. Vale dizer, se uma coisa está mudando,
ela não existe; ou, para generalizar, se tudo está mudando, nada existe.
Mudança universal implica não existência universal. E isso implica que a
mudança é irreal e a realidade é imutável.
Ora, isso soa sempre de novo como Zenão! Já não mostramos mais uma
vez que o movimento é impossível?
Aristotelianismo
O clímax do estudo da antiguidade do movimento é encontrado em
Aristóteles. Antes que as partes mais intrincadas da sua teoria sejam
examinadas, a resposta imediata a Heráclito servirá como um ponto de
partida fácil. Aristóteles concorda que se tudo estivesse sempre mudando,
nada existiria e o conhecimento seria impossível. Portanto, conclui ele, deve
existir algo que não muda.
A afirmação de que algo imutável existe, pelo menos por um período
finito de tempo, não depende apenas do desejo de Aristóteles de defender a
possibilidade do conhecimento, embora a possibilidade do conhecimento
seja, é claro, uma questão muito importante. Mas a existência de algo
imutável também está diretamente ligada à possibilidade do movimento em
si. Isto é, para que algo possa se mover, algo deve permanecer imóvel. A
situação em que o movimento acontece é um pouco complicada. Ao
expressar uma situação de movimento ou mudança, nós dizemos que a folha
verde ficou marrom, ou que o rapaz mal-educado se tornou um homem
educado, ou, simplesmente, que a bola de gude rolou daqui para lá. Em cada
caso, algo deve permanecer imutável durante a mudança. Uma folha só pode
se tornar marrom se for a mesma folha em ambos os extremos da mudança;
uma bola de gude só pode rolar daqui para lá se for a mesma bola de gude o
tempo todo.
Suponha que não fosse a mesma folha e a mesma bola de gude.
Teríamos então visto uma folha verde e um pouco mais tarde uma folha
marrom, mas não teria havido nenhuma mudança, pois nada teria mudado de
verde para marrom. Ou um mágico poderia me enganar substituindo a
primeira bola de gude por uma segunda, produzindo assim uma ilusão de
movimento. Mas se há duas bolas de gude, nenhuma delas rolou daqui para
lá. A primeira não rolou porque não chegou lá. A segunda não rolou porque
não partiu daqui. Todo movimento, portanto, requer um sujeito que
permanece imutável durante o movimento.
Uma invenção moderna fornece uma ilustração melhor do que
Aristóteles poderia alguma vez imaginar. Nos filmes não há nenhuma
imagem que se move. O movimento é todo uma ilusão. Nós pensamos ver a
imagem de um homem caminhando ao fundo. Mas sabemos que há cerca de
dezesseis imagens sendo projetadas na tela a cada segundo. Uma das imagens
aparece na tela numa posição fixa e definida. Ela não pode se mover. A
próxima imagem substitui em seguida a primeira, mas num local ligeiramente
diferente. O processo todo consiste em substituir a imagem precedente por
outra. O movimento resultante é uma ilusão óptica, porque não há nada se
movendo. Movimento, então, pressupõe um substrato imutável.
No entanto, há uma questão. Movimento pressupõe indubitavelmente
um substrato imutável, mas como sabemos que existe tal substrato, e como
sabemos que há movimento? Talvez a tela da imagem em movimento seja
uma boa ilustração do mundo. Por que deveríamos assumir que existe um
substrato diante dos nossos olhos fora do teatro mais do que há dentro dele?
Mesmo alguns teólogos cristãos, de forma bastante surpreendente, têm
defendido uma teoria chamada de criação contínua. Eles supõem que Deus
está constantemente criando; o mundo não pode preservar a si mesmo, e está
constantemente colapsando; a todo instante Deus o recria. Alguns desses
teólogos não forçam demasiadamente a formulação, mas alguns poucos
parecem sugerir que um mundo novo substitui o anterior dezesseis ou
dezesseis centenas de vezes por segundo. Nesse caso, não haveria nada que
pudesse se mover; cada coisa existiria momentaneamente num ponto fixo.
Agora, por que isso não poderia ser verdade? Existe alguma evidência,
qualquer evidência convincente, de que algo permanece imutável por
qualquer período finito de tempo?
Talvez, porém, estejamos errados em esperar demais do simples
repúdio de Aristóteles ao fluxo heracliteano. Ele tem outros e muito mais
profundos argumentos para dar. Essas teorias intrincadas podem ser mais
facilmente compreendidas se forem precedidas de um breve relato das visões
contrastantes de Demócrito. Demócrito era um atomista e mecanicista. Ele
não gastou nenhum tempo com os paradoxos de Zenão e foi apenas
indiretamente influenciado pela filosofia de Heráclito; ele simplesmente
partiu do pressuposto de que os átomos se movem no espaço vazio. Para ele,
portanto, o movimento é um axioma indemonstrável, um fato bruto
inexplicável. Mas embora o movimento como tal não possa ser explicado,
cada movimento particular pode. Assim como numa página anterior alguém
tentou dizer que um corpo em movimento poderia passar por todos os pontos,
mas não por cada ponto, Demócrito explica aqui cada movimento, mas não
todos. Escolha qualquer átomo que você queira, e seu movimento, sua
velocidade e direção poderão ser explicados pela força e ângulo de impacto
de outro átomo em movimento. Esse outro átomo em movimento, por sua
vez, foi antes atingido por outro átomo, e assim retrospectivamente ad
infinitum. O movimento nunca começou; ele não teve nenhuma fonte
original; ele nunca acabará; ele é um fato bruto fundamental.
Aristóteles, por outro lado, acreditava ser possível explicar não apenas
cada movimento em particular, como também o movimento em geral. Ao
fazê-lo, rejeitou a filosofia do mecanicismo e com ela a imagem atomística
do mundo. Em vez do mecanicismo, ele defendeu a teleologia. Em vez de
átomos num vazio infinito, ele assumiu um mundo finito totalmente cheio. A
visão resultante é difícil de entender, embora não deva, por esse motivo, ser
assumida como insustentável. O princípio do mecanicismo, evidentemente, é
muito fácil de compreender, ainda que com Aristóteles alguém finalmente
conclua que ele falha. Não resta nada a fazer, então, a não ser estudar os
argumentos em tantos detalhes e com tanta meticulosidade quanto o nosso
interesse possa permitir.
Não se pode discordar de Demócrito sob o fundamento de que ele fez
certas suposições indemonstráveis. Cada filósofo e cada sistema de filosofia
deve partir de algum lugar, e, por óbvio, nada pode ser anterior ao ponto de
partida. Para Aristóteles, no entanto, o ponto de partida não é o fato do
movimento observado, mas a existência da natureza. “Que a natureza existe”,
escreve Aristóteles (Física, II, I), “é algo que seria absurdo tentar provar; pois
é óbvio que há muitas coisas desse tipo [objetos naturais], e provar o que é
óbvio por aquilo que não é é a marca de um homem que é incapaz de
distinguir o que é autoevidente do que não é”.
Agora, a ideia de Aristóteles não é tão simples e óbvia quanto poderia
parecer. Pode-se de fato supor que os objetos naturais, como árvores e pedras,
são pelo menos tão autoevidentes quanto o movimento. Na verdade, desde
que movimento é sempre o movimento de objetos como esses, e desde que,
portanto, os objetos são logicamente anteriores ao movimento, por que não
seria melhor começar com aqueles em vez de com este?
Essa consideração, porém, não é um grande suporte ao procedimento de
Aristóteles, porque embora muitas pessoas estejam inclinadas a dizer que a
natureza consiste desses objetos — árvores, pedras, animais, terra, ar, fogo e
água —, essa não é a definição de Aristóteles de natureza. Esses objetos são
naturais; eles têm uma natureza; eles agem de acordo com a natureza; mas
não é verdade que eles são a natureza. Natureza, para Aristóteles, é um
princípio de repouso e movimento, imanente nesses corpos per se. Como a
natureza pode ser a causa do repouso é uma questão que por ora pode ser
adiada; para o presente deve ser notado que a natureza não é um objeto, como
uma árvore ou uma pedra, e tampouco o agregado deles, mas um princípio de
movimento no objeto. Demócrito havia localizado a causa de todo
movimento num corpo que não era aquele cujo movimento ele estava
explicando; a causa de qualquer movimento é sempre externa ao corpo que é
o sujeito desse movimento. Mas para Aristóteles, a causa do movimento é
imanente no próprio corpo em movimento. A bem da verdade, Aristóteles
reconhece os movimentos forçados ou não naturais que são causados pelo
impacto. Quando uma pedra é lançada para cima, a causa é a mão e o braço
que a lançou. Mas esse é um movimento não natural ou violento. Porém, a
queda da pedra é natural, tão natural como o crescimento de uma planta; e a
causa de um movimento natural não é um impacto de fora, mas um princípio
imanente no próprio corpo em movimento. É a natureza desse corpo.
Agora, é de admirar se um princípio imanente de movimento como esse
é tão óbvio e autoevidente como o objeto ou o próprio movimento. Se
confiamos na sensação, podemos dizer que vemos e sabemos imediatamente
que as coisas se movem. Mas pode ser sustentado que uma causa imanente de
movimento é imediatamente conhecida? Sem dúvida algo deve ser um ponto
de partida autoevidente indemonstrável; mas é autoevidente que o movimento
natural não pode ser explicado por colisão ou impacto? Talvez, no entanto,
autoevidente não signifique imediatamente percebido. Talvez haja um
argumento complicado para mostrar que a teoria mecânica do movimento é
insatisfatória. Talvez, ainda, todas as tentativas falhem, a não ser a de
Aristóteles, e seu princípio primeiro tenha sucesso em resolver o problema.
Então nós poderíamos dizer que é necessário começar com a natureza
concebida como um princípio imanente de movimento e repouso. A natureza
então seria autoevidente num sentido muito sofisticado do termo, mas apenas
uma análise cuidadosa do argumento pode justificar tal conclusão.
Em Física, Livro III, Aristóteles começa fazendo um ataque
determinado ao problema do movimento. Ele não poupa esforços para chegar
a uma solução. E esforço é necessário, pois a explicação do movimento
precisa usar os conceitos de continuidade, infinidade, lugar, tempo e, talvez,
vazio. Esse é um problema constante nos temas filosóficos. Dificilmente se
começa um tópico antes de descobrir que outro assunto requer primeiro
atenção. Nós estamos sempre sendo empurrados para frente ou para trás até
parecer impossível resolver qualquer problema isolado sem resolver todos.
Onisciência é o pré-requisito, e onisciência é algo difícil de obter. Mas
Aristóteles faz um bravo começo.
Primeiro, ele deve definir movimento. Quando alguém se compromete a
discutir um assunto, é vantajoso saber o teor da conversa. Nos primeiros
diálogos platônicos, Sócrates foi capaz de deixar seus adversários confusos
porque eles não sabiam do que estavam falando. Protágoras não podia definir
virtude, Eutífron não podia definir piedade e Laques, embora fosse um
general do exército, não sabia o que era coragem. Assim também, os pré-
socráticos não conseguiam desvendar o enigma do movimento,
principalmente porque não sabiam o que era movimento. Seus conselhos
hesitantes eram falhos como definições. Dentro dessa seção (Física III, I),
Aristóteles formulou a definição de movimento três vezes. Primeiro ele diz
que o movimento é a realização ─ ele diz, literalmente, a realidade — do
potencial qua potencial. Essa frase enigmática é então explicada. Quando o
que é construível, na medida em que é construível, é real, está sendo
construído; e esse é o movimento ou mudança chamado de construção. Note-
se que a casa completa não é construível; ela é construída e o movimento está
concluído. A realidade do tijolo e da madeira também não é movimento; até
onde os materiais como tal estejam em questão, o movimento ainda não
iniciou. Esse movimento, por conseguinte, é a realização do construível qua
construível.
Aristóteles deve insistir na importância do até onde, do qua e do como
tal. Bronze é potencialmente uma estátua, mas a realidade do bronze qua
bronze não é nem estátua, nem movimento. Ser bronze e ser móvel não
significam a mesma coisa. Ou, mais uma vez, ser potencialmente saudável
não é o mesmo que ser potencialmente doente; pois do contrário ser
realmente saudável significaria ser realmente doente. É claro, a mesma
pessoa poderia estar doente ou estar bem, mas as potencialidades são
diferentes. O movimento, então, é a realização do potencial qua potencial.
Na segunda vez em que Aristóteles formula a definição, ele diz:
“Movimento é a realidade de um ser potencial quando este, na realidade, não
opera como sendo o que é, mas como sendo móvel”. A terceira formulação,
algumas linhas abaixo, é essencialmente uma repetição da primeira.
Ora, a segunda dessas três formulações é claramente insustentável: é
obviamente circular. Definir movimento como a realidade do móvel é usar o
conceito de movimento na sua própria definição. Como alguém pode saber o
que significa móvel, isto é, ser capaz de mover, sem primeiro entender o que
é movimento? Essa circularidade também está presente no exemplo dado sob
a primeira formulação. O que construível significa não pode ser conhecido
até que os movimentos de construção sejam entendidos. Assim, ou
Aristóteles cometeu uma tolice circular, ou a primeira e terceira formulações
devem de alguma forma escapar dessa crítica.
Não é de todo certo que a segunda formulação seja um mero lapso da
pena que é justificável à luz das outras duas. Em Física VIII, I (251a8), uma
passagem presumivelmente se referindo a Física III, I, Aristóteles novamente
define movimento como a realidade do móvel qua móvel. Similarmente,
algumas páginas adiante (257b8), ele diz: “Movimento é uma realidade
incompleta do móvel”. Parece, então, que a nódoa da circularidade é mais do
que apenas superficial.
No entanto, deve ser dada toda oportunidade para Aristóteles rebater
essa acusação antes que um julgamento final possa ser feito. Desde que,
portanto, ele fornece duas outras formulações, elas também precisam ser
examinadas. E deve-se reconhecer que elas ao menos não contêm nenhuma
circularidade aparente. Movimento é a realização do potencial qua potencial.
No entanto, é um pré-requisito afirmar o que se busca dizer com o termo
potencial. Na verdade dois pré-requisitos devem ser satisfeitos. Em primeiro
lugar, o termo potencial deve ser definido sem usar a ideia de movimento, ou,
do contrário, a circularidade reaparecerá; e em segundo, a ideia da
potencialidade deve ser apresentada de forma clara e inequívoca, ou, do
contrário, toda a física permanecerá vaga e confusa.
A clarificação do conceito de potencialidade é encontrada mais na
Metafísica do que nas discussões sobre o movimento. No Livro Delta,
Aristóteles afirma: “Potencialidade é uma fonte de movimento e mudança
que está em outra coisa que não a coisa movida ou na mesma coisa qua
outra… Potencialidade, então, significa a fonte de mudança ou
movimento…” Ao que parece, no entanto, isso não é de todo satisfatório. Na
Física Aristóteles definiu movimento em termos de potencialidade, e agora
em Metafísica ele define potencialidade em termos de movimento. A
circularidade, portanto, não foi evitada, e nós ainda não sabemos o que é
movimento.
Há, contudo, uma outra passagem. No Livro Teta de Metafísica
(1048a30-b6), Aristóteles define realidade:
Realidade significa a existência de um objeto, mas não da forma que chamamos
potencialidade. Dizemos, por exemplo, que uma estátua de Hermes está
potencialmente no bloco de madeira… porque pode ser esculpida nele. Também
chamamos um homem de estudioso mesmo quando não está estudando, se ele é
realmente capaz de estudar… Não devemos buscar uma definição de tudo, mas nos
dar por satisfeitos em compreender uma analogia: que assim como aquele que constrói
é para ele alguém que pode construir, assim como aquele que está acordado é para ele
alguém que está adormecido e assim como aquele que vê é para ele alguém que,
embora não cego, tem os olhos fechados… a realidade é definida por um membro
dessas antíteses e a potencialidade, pelo outro.
As falhas em Aristóteles
Porém, apesar de toda a escuridão da Idade das Trevas, não devemos supor
que nenhum estudo sério dos fenômenos naturais tenha sido empreendido.
Uma superstição moderna é que os cientistas medievais pensavam que a
Terra era plana. Jactância e superioridade devem ser temperadas com
informação histórica correta. Sem diminuir um só pouquinho a fama e a
genialidade de Sir Isaac Newton, precisamos reconhecer que certas falhas no
relato aristotélico do movimento estimularam os pensadores medievais a
pensar. Havia pelo menos dois problemas muito reais que homens antes dos
tempos de Galileu estavam estudando. Um deles era o movimento de
projéteis; o outro era o problema similar de um corpo em queda livre.
De acordo com Aristóteles, todo corpo que é colocado em movimento é
colocado em movimento por um propulsor que exerce força sobre ele. Isso é
particularmente evidente no caso de uma pedra que é jogada para cima. Ela
não pode se mover; ela deve ser movida por alguma outra coisa. Na verdade,
desde que o movimento ascendente não é natural para uma pedra — por
natureza as pedras fazem o movimento descendente —, deve ser exercida
uma força sobre a pedra em cada momento da sua ascensão; do contrário ela
começará a cair. Mas o que exerce essa força? A mão que jogou a pedra, e,
para emprestar um exemplo da Renascença, a explosão que primeiro
impulsionou uma bala de canhão, não está mais em contato com ela. E não é
óbvio, perfeitamente óbvio, que um corpo não pode exercer força sobre outro
sem estar em contato com ele? Uma mão não pode jogar uma pedra que não
esteja segurando; e uma bola de bilhar não pode colocar outra em movimento
exceto pelo impacto. Como, então, pode a pedra continuar subindo após ter
deixado a mão?
A resposta aristotélica, interpretada e expandida a partir de passagens
não muito claras de Mecânica (858a19-30), é que quando a mão primeiro
empurra a pedra para cima, a pedra empurra o ar acima dela; quando a pedra
deixa a mão, o ar deslocado corre para trás da pedra e a empurra ainda mais
alto; isso desloca mais ar, e assim a pedra continua o seu voo.
Relacionado aos fenômenos dos projéteis, o segundo problema que
envolveu os pensadores medievais posteriores foi o movimento de um corpo
em queda livre. Este, ao que parece, seria um problema mais complicado. Até
onde os projéteis estejam em questão, só se precisa explicar como eles
continuam em movimento; mas um corpo em queda livre não continua em
movimento, apenas — ele também acelera. Na verdade, o fato mais óbvio
sobre um corpo em queda é que o seu movimento é muito mais rápido perto
do fim da sua queda que no início. Ora, visto que a velocidade, sobre
princípios aristotélicos, é proporcional à força exercida, uma força constante
produziria um movimento uniforme, não uma aceleração. Um corpo em
queda, então, deve estar sujeito a uma força constantemente crescente. Como
isso pode ser explicado? O que faz um corpo em queda cair mais rápido?
Essas são duas dificuldades conspícuas no sistema aristotélico. Agora,
quando esses pontos específicos de dificuldade são encontrados —
incorporados no sistema aristotélico, newtoniano ou em qualquer outro — o
procedimento normal é tentar resolver o quebra-cabeça dentro da estrutura do
sistema aceito. Isso é apenas senso comum. Um corpo da ciência não deve ser
descartado in toto só porque um ponto menor apresenta uma dificuldade. Mas
às vezes, uma vez em três ou quatro ou quinze séculos, o ponto supostamente
menor revela um defeito tão básico que uma construção totalmente nova se
faz necessária. É o que aconteceu no caso em questão.
A teoria aristotélica da natureza, que também se preocupava com outras
formas de mudança que não a locomoção — a alteração e o crescimento, por
exemplo —, era teleológica e orgânica em vez de matemática e mecanicista.
As causas das mudanças eram buscadas nas qualidades e não nas quantidades
dos corpos. Os animais em movimento natural são movidos por sua alma ou
forma inerente. Num lugar, Aristóteles explica por que algumas árvores
produzem frutas doces:
Árvores que crescem em água ácida produzem frutas doces porque a acidez, ajudada
pelo calor do Sol, atrai aquilo que é da sua própria qualidade, a saber, frio e secura. Os
líquidos doces, portanto, surgem dentro da árvore… [De Plantis, 829b].
Planetas e cometas
Gravitação
Desde a época em que a ciência newtoniana ganhou aceitação geral, tem sido
habitual dizer que um corpo em queda livre cai e os planetas giram em torno
do Sol por causa da gravitação. Ora, uma das objeções fatais feitas contra a
ciência medieval era que ela apelava para qualidades ocultas. Ópio causava
sono não por causa da sua cor visível, não por causa do cheiro ou de suas
qualidades tangíveis, mas por causa de uma qualidade soporífera ou
produtora de sono oculta. Como Newton disse,
Os aristotélicos deram o nome de qualidades ocultas não para manifestar as
qualidades, mas apenas para qualidades que eles supunham estarem ocultas nos
corpos e serem as causas desconhecidas de efeitos manifestos… Essas qualidades
ocultas interromperam o progresso da filosofia natural, e, portanto, foram nos últimos
anos rejeitadas. Dizer que toda espécie de coisas é dotada de uma qualidade oculta
específica pela qual ela age e produz efeitos manifestos não nos quer dizer nada.
Explicação
Filosofia mecanicista
Crítica
O colapso da mecânica
Operacionalismo
Nos últimos anos do século XIX, houve dois grupos de cientistas filosóficos.
Um grupo, contra o qual este argumento foi dirigido, enfatizava os resultados
e conteúdos da ciência e levantava princípios últimos da natureza, da vida e
da religião com base neles. Se esses autores não eram todos estritamente
materialistas, eram pelo menos naturalistas. O segundo grupo, ainda que
alguns de seus membros fizessem e ainda façam afirmações naturalistas,
enfatizava os métodos da ciência e rejeitava as questões dos princípios
últimos como pseudoproblemas metafísicos. Estes autores são agora
conhecidos como positivistas lógicos.
Talvez devamos localizar a origem do positivismo lógico em Ernst
Mach (1838-1916). Este argumentou contra uma metafísica materialista bem
como contra uma metafísica mentalista. Mas se ele se opunha a toda a
metafísica, como os positivistas lógicos agora fazem, é duvidoso, por causa
da sua afirmação de que a realidade é neutra. Em todo caso, essa afirmação é
singularmente pouco informativa, e não vai além do incognoscível de Lange
e Kant. Neutra significa simplesmente que não é nem mental, nem material.
Mas o que isso positivamente é, ou mesmo quais alternativas existem, Mach
e Lange não podem dizer. Essas pessoas são frequentemente as primeiras a
reclamar da falta de sentido da teologia negativa. A eternidade é tomada
como sendo a mera negação do tempo sem qualquer conteúdo positivo. Mas
dizer que a realidade é neutra é tão negativo e tão sem sentido quanto.
Os seguidores posteriores de Mach tentaram ser mais consistentes. Eles
definitivamente recusaram toda metafísica. Nenhuma declaração sobre a
realidade deve ser permitida. A realidade última é um conceito vazio e inútil;
ou, antes, é uma palavra sem um conceito. Questões sobre a alma, até mesmo
questões sobre a origem da vida, são pseudoproblemas. Toda proposição
significativa (exceto as tautologias formais, processuais da lógica e da
matemática) devem ser verificadas pela observação sensorial. Uma
declaração que não possa ser relacionada ao e testada pelo experimento
científico não diz nada. Assim, tanto Deus como matéria são sílabas sem
sentido. Uma extensão desse ponto de vista nos leva ao operacionalismo.
Nos Estados Unidos, um dos primeiros e mais proeminentes defensores
do operacionalismo foi Percy Bridgman (The Logic of Modern Physics,
1927). Embora seu livro seja intensamente interessante, é impossível, no
entanto, dar um relato completo dele aqui. O presente objetivo é caracterizar
e projetar uma linha de pensamento. Para esse propósito, não é necessário
fazer plena justiça a Bridgman nem tampouco concordar com tudo o que ele
diz. Na verdade, pode-se sustentar que Bridgman não procede consistente
com suas principais teses. De qualquer modo, a situação na ciência, que
Bridgman tão bem descreve em outros aspectos, não parece justificar sua
afirmação de que “A atitude do físico deve, portanto, ser a de um puro
empirismo” (3). Assim, a presente finalidade é selecionar aquelas ideias que
constituem a contribuição mais útil de Bridgman e forçá-las, talvez, para
além dos limites que ele próprio imporia.
Como estudante, Bridgman recebeu uma educação newtoniana, e ele
reconhece que “Foi um grande choque descobrir que conceitos clássicos,
aceitos sem questionamento, eram inadequados para atender à situação real”
(1). Na Introdução (ix), ele antecipa a extensão do choque ao dizer que:
Os fatos experimentais são tão completamente diferentes daqueles da nossa
experiência habitual que não só temos de aparentemente abrir mão de generalizações
da experiência passada tão amplas como as equações de campo da eletrodinâmica, por
exemplo, como é mesmo questionado se nossas formas habituais de pensamento são
aplicáveis no novo domínio; é muitas vezes sugerido, por exemplo, que os conceitos
de tempo e espaço sucumbem.
Expressões de ceticismo
Em uma página anterior, o dogmatismo inflexível foi ilustrado com uma lista
de citações. A ciência faz descobertas permanentes das operações da
natureza, chega a verdades fixas e formula julgamentos absolutos. Este é o
local apropriado para incluir outra lista. Em contraste com os precedentes, os
cientistas mais recentes têm reconhecido certas limitações da ciência e
considerado um grau maior ou menor de ceticismo. As citações a seguir são
exemplos dessa tendência cética. O objetivo não é avaliar com precisão o
grau de ceticismo de cada autor. Alguns deles, por exemplo Sullivan, são em
geral menos céticos do que parecem nas frases selecionadas. O objetivo, pelo
contrário, é simplesmente apontar a tendência do pensamento científico e
enfatizar o nítido contraste entre os séculos XIX e XX.
A primeira nesta lista será a citação final de Bridgman, desta vez de
uma das suas publicações posteriores, The Way Things Are:
Algumas pessoas vão longe a ponto de definir ciência como o consenso de todos os
observadores competentes. Isso, parece-me, vai longe demais e faz perder a ênfase…
“Pessoas competentes” em qualquer época significa aquelas em dada época que eram
sujeitas a um precondicionamento definido… Isso não exclui a possibilidade de que
todas as pessoas competentes estejam reagindo incorretamente por causa de alguma
característica na cultura contemporânea; e há exemplos, como Weierstrass na
matemática, onde o consenso em última análise foi demonstrado ter sido errado [129].
Aqui Frank parece bastante cético: Nós não podemos dizer que a
teoria atual está certa nem que as teorias antigas estavam erradas. Na primeira
sentença, a frase “não sabemos agora” deixa em aberto a possibilidade de que
podemos chegar à verdade absoluta algum dia, mas o restante tem uma
tendência cética.
No entanto, ao criticar Sullivan, Frank parece adotar uma atitude mais
dogmática. Ele escreve: “Pode-se claramente ver que a palavra ‘incerteza’ no
princípio de Heisenberg não significa ‘incerteza’ sobre a verdade de uma
teoria científica” (241). Isso é de fato verdade; pode-se estar bastante certo de
que o movimento subatômico é incerto ou imprevisível. Mas Frank
aparentemente não vê que o argumento de Sullivan não traz essa confusão.
Sullivan não argumenta “Visto que as ondas de Broglie substituíram as
partículas atômicas, podemos acreditar em valores ético e teológicos”. Antes,
o argumento é: “Visto que o avanço da ciência, dos átomos para as ondas de
Broglie e outras maravilhas modernas, mostra que as leis físicas são apenas
tentativas, que elas não são descrições da natureza ou declarações sobre a
realidade última; visto que os cientistas de fato não têm nenhum
conhecimento das entidades naturais que discutem; e visto que é altamente
provável que todas as teorias científicas estejam erradas, a ciência não pode
insistir que Deus e a moralidade são irreais. A objeção de Frank a esse
argumento é completamente irrelevante.
Bridgman e Sullivan já foram citados como tendendo ao ceticismo
científico. A eles poderiam ser somados vários cientistas, inclusive Frank,
que admitem que preferências estéticas — particularmente a respeito da
simplicidade matemática ─ determinam as equações mais gerais que um
cientista aceita. Nenhuma descoberta da verdade física está envolvida; é
meramente uma questão de beleza e elegância.
A estética não é o único determinante não observacional da lei física. C.
West Churchman, de forma alguma um cético, escreve:
A questão de fato mais simples na ciência requer, mesmo para uma aproximação, um
juízo de valor… a ciência da ética (como todos os principais ramos da ciência) é
básica [itálico seu] para o significado de qualquer questão que o cientista
experimental possa levantar.[31]
Objeções ao operacionalismo
Reconhecidamente, a teoria do operacionalismo e suas implicações céticas
não são universalmente aceitas pelos filósofos e cientistas do século XX.
Vários autores tentam manter alguma forma atenuada de dogmatismo. A. R.
Hall insiste que a ciência lida com
entidades materiais na natureza,… distingue firmemente entre teorias confirmadas por
múltiplas evidências, hipóteses, e especulações não confirmadas. Ela apresenta não
um retrato possível ou mesmo plausível da natureza, mas um retrato no qual todos os
fatos disponíveis recebem sua posição lógica e ordenada.[32]
Embora o restante do livro seja informativo e interessante, Hall
parece se apoiar na confiança ingênua e não faz nenhuma tentativa de lidar
com os argumentos céticos.
Hans Reichenbach, previamente citado, faz melhor. O capítulo sobre
racionalismo e empirismo em Modern Philosophy of Science se estende até
certo ponto na defesa da atitude antiga para com a ciência. Em resposta a
Hume, Reichenbach desenvolve dois pontos. Primeiro, ele redefine
conhecimento e verdade para preservar o “conhecimento” na ciência. Poderia
talvez ser argumentado que o que ele agora toma como “conhecimento” não
está longe do ceticismo. Mas o segundo ponto pode ser tratado mais
rapidamente. O autor parece interpretar a força dos argumentos de Hume
como se apenas lançassem dúvida sobre a acurácia das previsões relativas ao
futuro (142). Essa é uma interpretação manifestamente inadequada de Hume.
A filosofia de Hume também descarta todas as induções e generalizações do
passado.
Há dois outros autores que lidam com o operacionalismo de frente e
em detalhes. É necessário, portanto, considerar seriamente as objeções de A.
Cornelius Benjamin e Ernest Nagel.
O professor Benjamin (Operationism, 1955) faz uma crítica refletida
e abrangente de Bridgman. Dos dois principais elementos dessa crítica, um
acusa Bridgman de inconsistência em questões menores, enquanto o outro
rejeita a teoria na sua forma mais generalizada.
Quanto às questões menores, Benjamin cita as definições
inconsistentes (ou pelo menos não relacionadas entre si) do seu método. Há
um sentido estrito do termo operação, referindo-se à medição por varas
métricas, e um sentido mais amplo incluindo operações mentais, isto é, de
lápis e papel. O fracasso de Bridgman em distinguir as operações simbólicas
das não simbólicas, seu fracasso em classificar as operações (ou mesmo de
arrolar seus tipos exaustivamente) ─ Benjamim toma essas coisas como
sendo uma confusão fatal.
Gustav Bergmann também percebe essa dificuldade:
Embora as operações no sentido relevante sejam manipulações e nada mais, os
“operacionistas” viam operações por toda parte. Num extremo, as observações do
cientista eram adornadas para serem espécies de operações; no outro, suas atividades
verbais e computacionais eram, como assim chamadas operações simbólicas,
arrebanhadas dentro do mesmo curral. Esse uso completamente não específico de
“operação” (ou de qualquer palavra) não apenas é inútil; é também confuso.[33]
A continuação dessa objeção por Bergmann especifica John Dewey
como outro exemplo. Contudo, não é evidente que se trata de uma falha tão
fatal e irremediável quanto Benjamin pensa. John Dewey pode ser confuso, e
Bridgman pode ter sido inconsistente. De fato, parece que ele foi, porque
além da sua afirmação principal, “O conceito é sinônimo das correspondentes
operações”, ele também disse “O aspecto operacional de forma alguma é o
único aspecto de significados”. No entanto, essa não é uma objeção fatal e
final ao operacionalismo, pois confusões são evitáveis e inconsistências são
removíveis.
Ora, não é de surpreender que a primeira obra de Bridgman, The Logic
of Modern Physics (1927), contenha várias infelicidades menores. Mesmo
numa obra posterior, em que responde diretamente a Benjamin (The Way
Things Are, 37-38), ele não aborda plenamente as críticas. Mas o significado
disso é de pouca importância para a presente finalidade, e mesmo talvez para
Bridgman também, porque, por um lado, os detalhes menores podem ser
ajustados e tornados harmoniosos, enquanto que, por outro lado, a crítica se
aplica a uma teoria estendida e generalizada do operacionalismo que deixa o
domínio mais estreito da física e se funde com a epistemologia geral.
Benjamin reconhece que Bridgman se exime de qualquer teoria geral de
conhecimento e se restringe ostensivamente à física e sua técnica. Mas,
afirma o crítico, postulados epistemológicos subjazem essa visão restrita,
mesmo que Bridgman não os afirme. Sobre este ponto, Benjamin está
totalmente certo. Nós também reconhecemos que num lugar Bridgman
realmente afirma um relativismo epistemológico geral, e que, como Benjamin
alega, ele e seus seguidores são inclinados ao pragmatismo e positivismo
lógico. Benjamin certamente tem razão. Mas é um ponto que pode ser
evitado, indubitavelmente em oposição às inclinações de Bridgman, ao se
insistir na visão mais estreita do operacionalismo e combinando-a com uma
epistemologia externa a ambos os autores.
Vamos, portanto, limitar nosso argumento para as objeções específicas
de Benjamin à forma mais estreita de operacionalismo. Ele sustenta que a
tese “Os conceitos são sinônimos das operações físicas” é refutado de forma
muito simples: ele é falso como uma descrição das técnicas, fútil como uma
proposta para o futuro e patentemente absurdo!
Por que, exatamente, Benjamin declara que o operacionalismo é falso e
fútil, não é fácil ver, a menos que seja porque ele inclui esses dois pontos sob
a rubrica do “patentemente absurdo”. Nesse terceiro ponto, Benjamin
argumenta que cada operação é um evento singular, datável, e não pode ser
repetido. Assim, não é possível duas operações darem o mesmo conceito.
Portanto, ao se medir uma mesa com uma vara métrica, haveria diferentes
conceitos ─ não meramente diferentes comprimentos, mas diferentes
conceitos de comprimento ─ cada vez que a mesa fosse medida, ainda que
pela mesma vara métrica. E a maioria das pessoas concorda que isso é
patentemente absurdo.
De forma muito clara, no entanto, esse absurdo não é o significado de
Bridgman. Nessas várias tentativas de medir a mesa, uma vara métrica é
sempre usada. Embora os resultados em centímetros possam diferir, o método
ou operação é o mesmo, e, portanto, há apenas um conceito de comprimento
envolvido. Somente quando varas métricas são substituídas por microscópios
eletrônicos ou outros instrumentos um conceito diferente aparece. E isso não
é patentemente absurdo.
Em vez de considerar a descrição de técnicas e mostrar que o
operacionalismo por esse motivo é falso, a objeção de Benjamin não
concerne realmente ao operacionalismo como uma teoria estreita da física,
mas como uma epistemologia geral. Pois é neste contexto que Benjamin
acusa Bridgman de uma ênfase exagerada na particularidade. Bridgman, ao
fazer das operações eventos singulares, datáveis e não repetíveis, não
forneceu, na opinião de Benjamin, nenhum método de desenvolver conceitos
abstratos a partir dos experimentos singulares. Em outras palavras, Bridgman
é um nominalista extremo: não há nada similar em quaisquer duas aplicações
de uma mesma vara métrica. Ora, o problema dos universais é,
evidentemente, um problema epistemológico substancial; mas isso
dificilmente pode ser uma razão suficiente para reivindicar que o
operacionalismo é falso como uma descrição das técnicas na física. Que seja
admitido que Bridgman, o físico, é fraco em epistemologia; porém, o método
de medição por varas métricas é, todavia, um conceito universal ou abstrato
distinguível de técnicas microscópicas que dão origem a um conceito
diferente de comprimento.
Benjamim também repete o reductio ad absurdum de Franz Adler. Para
definir Cn some o número de horas que um homem dorme numa dada noite
ao comprimento do seu nariz, mais ou menos 1 se ele gosta ou não gosta de
fígado frito, etc.; repita as mensurações toda segunda-feira até onde puder, e
manipule as figuras em alguma fórmula matemática. Assim o conceito de Cn
é um conceito científico cuidadosamente concebido.
Muito espirituoso, mas isso não é um reductio ad absurdum do
operacionalismo. Se ele reduz qualquer coisa ao absurdo, é toda a ciência que
ele torna absurda. Até mesmo no newtonianismo mais estrito, não há
nenhuma garantia contra multiplicar o diâmetro da Terra pela periodicidade
das marés, dividindo por pi e correlacionando o resultado com a velocidade
da luz na água e no ar. Ambos os exemplos são absurdos no sentido de
inutilidade. E o operacionalista, tão facilmente como o newtoniano, pode
abandonar esses experimentos e tentar encontrar outros conceitos mais úteis.
Passar pela crítica de Benjamin é outro tema mais claramente expresso
pelo professor Nagel. Ele tem a ver com a objetividade, o verdadeiro valor
das leis científicas e a referência delas à natureza. Nagel observa (The
Structure of Science, 137) que os proponentes do instrumentalismo ou
operacionalismo acreditam assim que as teorias científicas revelam ser temas
impróprios para as caracterizações de verdadeiro e falso. Tal é
reconhecidamente o argumento dessa monografia. Nagel então acrescenta
que não existe nenhuma incompatibilidade necessária entre dizer que uma
teoria é verdadeira e dizer que ela é útil. Isso nós também admitimos. Mas é
algo irrelevante, pois a questão básica é se uma teoria científica pode ser
verdadeira. O problema principal é enfrentado no sentido oposto. É este:
Visto que, como foi mostrado, as leis da física não podem ser verdadeiras ─
isto, verdadeiras como descrições de como uma natureza independente
funciona ─, qual então é o seu status? O operacionalismo ou
instrumentalismo responde essa pergunta.
A falha na crítica tanto de Benjamin como de Nagel é a sua segurança
indelével de que a ciência deve ser verdadeira e deve compelir o assentimento
de todos os investigadores sem preconceitos. Assim, Nagel segue a dizer que
os operacionalistas não concordam em seus relatos dos “objetos científicos”,
tais como elétrons e ondas de luz, que são ostensivamente postulados pelas
teorias microscópicas. Se isso é uma objeção sólida ao operacionalismo, deve
se aplicar aos cientistas não operacionalistas também, pois estes também
divergem em seus relatos dos elétrons e das ondas de luz. Então Nagel
acrescenta: “Mas o ponto adicional [não é um ponto adicional, mas o mesmo,
sempre de novo] também pode ser feito de que está longe de ser claro como,
nesta visão, esses ‘objetos científicos’ podem ser tidos como coisas
fisicamente existentes” (140). Mas quem disse isso? Não foi Bridgman. Nem
essa monografia. Os elétrons e as ondas de luz não são coisas fisicamente
existentes; são elementos de um conjunto de instruções sobre como operar
em um laboratório. Ora, se algum operacionalista indiferente discutiu a
questão de se átomos existem e concluiu que eles existem, como Nagel
sugere, essa inconsistência infeliz em alguns poucos autores não significa
uma refutação de toda a teoria.
Conclusão
O que é Ciência?
De interesse pessoal, nada mais a acrescentar. A ciência é legítima e
importante, assim como real e generalizada. Esse julgamento, contudo,
levanta a seguinte questão: o que é ciência? Qual é a natureza e função da
experimentação em laboratório? Será que ela, por silogismos válidos, pode
suportar uma cosmovisão mecanicista, banir Deus do Universo e reduzir a
oração à meditação sobre outros assuntos?
Essas perguntas são na verdade questões de interesse apologético,
mas as respostas só vêm mediante uma análise filosófica técnica.
Infelizmente, um ensaio breve como este só poderá cobrir um pouco do
assunto. Portanto, o behaviorismo, a evolução e muitas outras coisas mais
precisam ser omitidos para podermos nos concentrar num assunto — física
— com maior profundidade. Essa limitação pode ser de certa forma
justificada porque a biologia depende da física e os vários pontos de vista
sobre a ciência básica alteram profundamente todas as disciplinas que dela
dependem. Portanto, após uma breve descrição de alguns desenvolvimentos
históricos, a análise do procedimento adotado em laboratório e da formulação
das leis físicas levará às conclusões aqui propostas.
Como a pesquisa histórica também deve ser breve, não há por que
focar a era pré-newtoniana. Usando o trabalho de Galileu e Kepler, Sir Isaac
Newton estabeleceu princípios que nortearam os avanços científicos por dois
séculos. De 1686 (ou tão logo os cientistas puderam ler o Principia
Mathematica) até aproximadamente 1900, toda a física estava baseada em
certas definições e leis básicas, das quais os seguintes exemplos são
especialmente importantes:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si mesmo e por sua própria
natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa…
O espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa
externa, permanece sempre similar e imóvel.
Movimento absoluto é a translação de um corpo de um espaço absoluto para
outro…
O método experimental
Ciência e cristianismo
Dois exemplos dessa conclusão negativa devem ser agora explicados; e então
deve ser feita uma declaração sobre o valor ou importância da ciência, se ela
é sempre falsa.
Os dois exemplos dessa conclusão negativa objetivam enfatizar que
nenhuma conclusão metafísica ou teológica é possível. Embora o argumento
tenha mostrado que a ciência não pode afirmar o mecanismo, igualmente se
segue que ela tampouco pode afirmar o indeterminismo. Por volta de 1930,
Heisenberg convenceu o mundo de que se os seus experimentos sobre
partículas usassem suficiente luz para localizar o objeto, a velocidade dele
não poderia ser determinada, porque a própria energia da luz afetava o objeto.
Por outro lado, se a luz fosse tênue o bastante para não interferir na
velocidade, o objeto não poderia ser localizado. Mas a partir desse trabalho
científico admirável, Heisenberg chegou à conclusão de que o mecanismo é
falso e o indeterminismo é verdadeiro. Essa inferência é inválida.[48] A
incapacidade do cientista de construir um experimento que possa determinar
tanto a velocidade como a posição certamente não dá nenhuma informação
sobre as leis ainda desconhecidas das partículas infinitesimais. Ou, no que diz
respeito a isso, a incapacidade do cientista torna incerto se a natureza é de
fato constituída de partículas, ou se é um continuum. O resultado é zero; nem
positivo, nem negativo.
Alguns apologistas cristãos, embora reconheçam que esse resultado
destrói todos os argumentos científicos contra os milagres, ainda podem
defender o mecanismo científico porque a segunda lei da termodinâmica
parece provar a doutrina de uma criação no passado finito e refutar a doutrina
da eternidade do Universo. No entanto, se é impossível medir com precisão
uma linha, e se uma série de áreas sobre um gráfico fornece um número
infinito de equações que se pode escolher, a segunda lei da termodinâmica,
juntamente com todas as demais, se torna tentativa e falsa.
Suponha que um cientista, por um breve instante na sua vida, esteja
na costa da praia observando a maré baixando. O nível da água desce um
metro em 12 horas, ou em 12 bilhões de anos. Ele conclui que a maré não
pode estar baixando desde a eternidade, pois se assim o fosse, a água já teria
alcançado seu nível mais baixo milhões de anos antes daquele momento de
observação. Evidentemente, é filosoficamente impossível a maré subir da
mesma forma que desce; ou não?
Agora, o cientista termodinâmico observou alguns sistemas de
energia, poucos em número e no máximo pelo período de algumas poucas
vidas. Ele viu o refluxo e, sem nunca ter visto uma maré subindo, registrou
alguns pontos sobre um gráfico. Eles se parecem com uma linha, mas um
matemático pode muito bem ligá-los por uma perturbadora curva senoidal. O
cientista vive na era do refluxo; numa era futura, as diferenças de energia
voltarão a aumentar.
Talvez um exemplo simplificado e artificial possa tornar mais claro
como uma série de números pode acomodar uma variedade grande, mesmo
infinita, de equações. Suponhamos que o primeiro ponto esteja em 3, o
segundo ponto em 9 e o terceiro em 19.[49] Agora, suponha a experimentação
que termine com o número 9. A experimentação deve sempre terminar em
algum lugar, pois do contrário nenhum momento seria deixado para formular
uma lei. Se, então, o último experimento desse o número 9, a lei poderia ser e
— em vista da antipatia do cientista pelas complicações de Rube Goldberg —
seria x = 3n. O primeiro número é 3, o segundo é 3 à segunda potência e o
terceiro será extrapolado no gráfico e predito como 27.
Mas neste exemplo a experimentação não parou em 9. O cientista
seguiu para a sua terceira média, 19. Portanto, x = 3n é refutado. Uma nova
fórmula deve ser concebida. Bem, o cientista tem um número infinito de
escolhas, das quais duas são:
O valor da Ciência
O público em geral, incluindo os teólogos conservadores e alguns cientistas,
podem rejeitar essa tese do ensaio com uma repulsa irracional; mas caso não
o façam, certamente irão perguntar — e é uma pergunta legítima: “Se a
ciência é sempre falsa, que valor ela tem?”. A ciência tem feito maravilhas.
Mesmo a cura do câncer ainda não estando ao nosso alcance, nós pusemos
homens na Lua. Como poderiam leis falsas ter produzido essas maravilhas?
A resposta é que uma lei não precisa ser verdadeira para ser útil. Leis
científicas agora universalmente reconhecidas como falsas amiúde foram
muitas úteis. Por exemplo, nenhum astrônomo contemporâneo aceita a teoria
geocêntrica de Ptolomeu. Todavia, mesmo depois de Copérnico ter se
apropriado indevidamente do sistema heliocêntrico de Aristarco e Platão, o
sistema ptolomaico ainda era capaz de predizer as posições dos planetas com
maior precisão que a teoria copernicana; e assim, as leis de Ptolomeu eram
mais úteis para essas predições, quaisquer que fossem as utilidades destas. Da
mesma forma, a teoria de que campos eletromagnéticos existem é agora
negada, pelo menos por alguns cientistas; mas ninguém nega que essa teoria
falsa ajudou bastante no avanço da utilização da eletricidade.
Para aliviar o sofrimento daqueles que se cansam com física, outro
exemplo — mais interessante — pode ser tomado da zoologia ou medicina
veterinária. No século XIX, a febre do leite nas vacas era uma temível doença
com morbidade estimada em 90%. Após a guerra franco-prussiana, Pasteur
propôs a teoria da doença por germes e curou casos de antraz e raiva. Então
um veterinário brilhante pensou consigo mesmo: germes causam doenças;
logo, se eu injetar um antisséptico nos úberes das vacas e matar os germes, as
vacas ficarão bem. Ele fez isso; as vacas se recuperaram, ele publicou suas
descobertas e a mortalidade rapidamente caiu de 90% para 30%. Ele e outros
argumentaram, então, que isso provava ainda mais a verdade da teoria da
doença por germes.
Mas certo dia uma vaca telefonou para o seu veterinário para ele vir
imediatamente, ou ela morreria. Ele imediatamente encilhou seu mustangue e
a 60 MPH (mudpuddles per hedgerow)[50] logo chegou ao destino. Mas então,
quando abriu sua valise preta, descobriu que lamentavelmente havia
esquecido de trazer nela uma provisão de antisséptico. Felizmente, algumas
vacas ainda morreram; e como nem a vaca, nem o fazendeiro podia dizer a
diferença, eles jamais saberiam que ele havia injetado água destilada em vez
de Lugol. Para a surpresa dele, a vaca ficou bem.
Tendo uma mente científica, ele continuou a injetar água destilada
nas outras vacas, resultando em que tantas ou mais vacas se recuperaram. Ele
publicou suas descobertas; e outros veterinários investigadores tentaram
injetar ar comprimido, com resultados ainda melhores. Mas o que dizer,
então, da teoria da doença por germes? Água destilada e ar comprimido não
matam germes.[51] O ponto é que a teoria dos germes, agora provada falsa
com respeito à febre do leite, foi, todavia, muito útil na cura das vacas.
Portanto, a utilidade da ciência pode ser defendida até mesmo quando se
afirma a sua falsidade.
Agora, em conclusão: a ciência é sempre incapaz de produzir um
argumento válido contra a existência de Deus, contra a ocorrência de
milagres, incluindo a revelação sobrenatural, e contra a vida além-túmulo. O
autor[52] do artigo sobre “Ateísmo” na Enciclopédia de Filosofia baseia os
argumentos no problema do mal; outros autores podem tentar provar o
ateísmo sobre outras bases. Este artigo diz respeito à física; e a física — e
seus desdobramentos da química e biologia — é totalmente, totalmente
incompetente, tanto positiva como negativamente, para fazer qualquer
pronunciamento metafísico ou teológico. A ciência é falsa, mas muitas vezes
útil.
[1]
Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times, Avon Books, 1971, 504.
[2]
Popper Selections, editado por David Miller, Princeton University Press, 1985, 90, 91, 121; a ênfase
é de Popper.
[3]
Conjectures and Refutations, Harper and Row, 1968, 151.
[4]
Ibid., 192.
[5]
Hans Werner Bartsch, ed., Kerygma and Myth, Harper & Brothers, 1961, 214-215.
[6]
Para complicar o assunto ainda mais, considere o argumento de 206b20ss. Aristóteles afirma que a
magnitude infinita não pode existir mesmo potencialmente, pois não existe um infinito real. Aqui a não
existência de uma realidade é usada para provar a não existência de uma potencialidade. Isso funciona
suficientemente bem no caso usual da estátua, mas se essa interpretação está correta, ela torna o
segundo sentido totalmente impossível.
[7] Para as dificuldades na teoria do impulso e o hiato entre ela e a teoria posterior da inércia, veja A.
R. Hall, The Scientific Revolution, 77-80.
[8]
Nature and Nature’s laws lay hid in night / God said, Let Newton be! and all was light.
[9] Compare com Pierre Duhem, Le Système du Monde, III, 231-498.
[10] Florian Cajori, Newton’s Principia, 1934, Apêndice, 632ss.
[11]
The Meaning of Human History, 1947, 99.
[12] Herbert Butterfield, The Origin of Modern Science, 67.
[13] A definição de mecânica dada por Laplace, embora expressa de forma bastante simples,
dificilmente pode ser aperfeiçoada. Discussões contemporâneas tentam agora ser mais técnicas ou, pelo
menos, mais pedantes. A frase “lei processo” entrou em uso, e o mecanicismo é definido como a teoria
segundo a qual toda explicação científica toma a forma de leis processo. Mas, em primeiro lugar, o
termo lei processo é menos amplamente compreendido do que o termo lei matemática. E, segundo,
mesmo Gustav Bergmann, que prefere a palavra processo, admite que “mesmo quando conhecemos
processos, como é o caso na Física, a lei não é realmente afirmada dessa forma, mas, como referi antes,
como um sistema de equações diferenciais (Philosophy of Science, 93). Assim, parece satisfatório
definir mecanicismo como a teoria que sustenta que o Universo consiste de partículas cujos
movimentos podem ser descritos e cujas posições futuras podem, portanto, ser preditas por equações
diferenciais. Por outro lado, o mecanicismo é negado quando é dito que as menores partículas são
individualmente imprevisíveis; em cujo caso, seu comportamento é descritível somente por leis
estatísticas.
[14]
Aram Vartanian, editor 1960, 180, 189.
[15]
Force and Matter, edição inglesa, 1891, 8, 14-19, 58-66, 75-81, 242-243.
[16] A History of Science, 445.
[17]
The Riddle of the Universe, 1901, 225.
[18]
E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science, 236.
[19] Mysticism and Logic, 47, 56.
[20]
Karl Pearson, Grammar and Science, 6, 14, 24.
[21]
Science, 73:217-225, 1931; The Scientific Monthly, 59:85-95, 1944.
[22] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 136, 149.
[23] O físico usa outras médias também. A média geométrica, usada na dupla pesagem, parece ser
menos arbitrária; mas na verdade depende da teoria a alavanca, que por sua vez foi obtida da forma
descrita. Há também a média harmônica e o desvio padrão. O último inclui um número quadrado,
quadrado por causa da teoria dos quadrados mínimos. Mas poder-se-ia ter os números ao cubo e aplicá-
los a uma teoria dos cubos mínimos.
[24]
Science of Mechanics, 1942, 280.
[25] Modern Philosophy of Science, 50.
[26]
Science of Mechanics, 272.
[27] The Theory of Motion, According to Newton, Leibniz, and Huyghens, 52.
[28] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 46-47, fornece ainda outro exemplo do
fracasso dos cientistas em se beneficiar da análise filosófica: “É irônico”, diz ele, “que Newton, que tão
imensamente enriqueceu a ciência com suas descobertas físicas, tenha ao mesmo tempo em grande
parte impedido o desenvolvimento do fundamento conceitual dela… A teoria da mecânica de Newton
atrasou a análise do espaço e do tempo por mais de dois séculos, não obstante o fato de Leibniz, que era
seu contemporâneo, ter demonstrado uma compreensão muito mais profunda da natureza do espaço e
do tempo… A injustiça da história vai ainda mais longe… As teorias [de Leibniz] parecem ter sido
esquecidas pelos cientistas e preservadas apenas pelos historiadores da filosofia… Mach, o primeiro
relativista, da nova era… não sabia nada das objeções bem fundamentadas de Leibniz a Newton, e fez
apenas alguns poucos comentários ingênuos sobre ele. Até mesmo a solução de Einstein, indo muito
além de Mach, tomou a ‘mecânica clássica’ de Newton como seu ponto de partida sem fazer qualquer
referência a Leibniz e Huyghens”. Também se poderia mencionar a declaração de Percy Bridgman em
The Way Things Are (134): “A visão de que pode ser conceitualmente ilegítimo estender
indefinidamente o mundo que nos é revelado pela instrumentação [como fez Lorentz na sua teoria do
elétron] é uma visão que nós devemos à teoria quântica recente”. Não, não é. É a antiga falácia lógica
da composição e divisão, revelada aos estudantes em manuais de lógica elementar.
[29]
Fusão das palavras wave (onda) e particle (partícula) para representar entidades possuindo
simultaneamente as propriedades de onda e partícula. [N. do T.]
[30]
O caso da adição de velocidades fornece uma refutação facilmente compreendida da tentativa de
reabilitar Newton e a descoberta da verdade absoluta. Tem sido dito que as leis mais recentes são
simplesmente descrições mais precisas, e que as leis anteriores são casos especiais deduzíveis das leis
mais gerais descobertas posteriormente. Morris R. Cohen, The Meaning of Human History, 85-86, tem
isso da seguinte forma: “Podemos nós formular uma proposição universal precisa (isto é, uma sem
qualquer exceção) que nos capacite a dizer o que é relevante e o que é irrelevante para todos esses
movimentos? A lei da gravitação faz precisamente isso… Outra lei, como a de Einstein, pode substitui-
la como uma descrição mais precisa, mas essa outra lei terá de incluir a verdade da mais antiga sob
determinadas condições”. Cohen também especifica as leis da luz como exemplos. Mas Cohen está
equivocado. A formula v1 + v2 = V (isto é, um homem que anda a 3 mph dentro de um trem viajando a
60 mph está se movendo a 63 mph) não pode ser matematicamente deduzida a partir de e como um
caso especial de:
Claro, o quadrado da velocidade da luz é uma quantidade negligenciável em se tratando de andar dentro
de um trem; mas essa não é a consideração pela qual uma equação é determinada como um caso
especial de outra.
[31]
Theory of Experimental Inference, vii.
[32]
The Scientific Revolution, xi.
[33]
Philosophy of Science, 58.
[34]
Enquiry, Seção IV, Parte I.
[35] Este ensaio apareceu originalmente em Horizons of Science, Carl F. H. Henry, editor, 1978.
[36]
A. Motte, tradutor, e F. Cajori, editor, Mathematical Principles of Natural Philosophy, 1946.
[37]
Hans Reichenbach, “The Philosophical Significance of the Theory of Relativity”, em Albert
Einstein Philosopher-Scientist, Paul A. Schilpp, editor, 1949, 299ss. Veja também Reichenbach, Die
Beweglehre bei Newton Leibniz und Huyghens, 1924, e Philosophic Foundation of Quantum
Mechanics, 1944.
[38] J. W. N. Sullivan, The Limitations of Science, [1933] 1957. Veja também Henri Poincaré, Science
et Methode, Paris, 1927, e seus dois volumes sucessivos.
[39] Fusão dos termos wave e particle no plural para representar entidades possuindo simultaneamente
as propriedades de onda e partícula. [N. do T.]
[40] W. K. Clifford, The Common Sense of the Exact Sciences, 1946; Karl Pearson, Grammar of
Science, 1911, 6, 14, 24; A. J. Carlson, “Science and the Supernatural”, Science, 73 (1931): 217-225;
reimpresso em The Scientific Monthly, 59 (1944): 85-95.
[41]
Pearson, Grammar of Science, 6, 14, 24.
[42] A. J. Carlson, “Science and the Supernatural”.
[43] Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science, 1959, 136, 149.
[44]
Philipp Frank, Philosophy of Science, 1962, 90.
[45]
Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth, 1961, 4.
[46]
Rudolf Bultmann, Jesus Christ and Mythology, 1958, 36-38.
[47]
Reader’s Digest, Agosto de 1972, 28.
[48] Para uma discussão técnica, veja C. T. Ruddick, “On the Contingency of Natural Law”, The
Monist (Julho, 1932), 330-383.
[49] Morris R. Cohen e Ernest Nagel fornecem esse exemplo em An Introduction to Logic and
Scientific Method, 1934, 209ss., embora Nagel, em seus livros posteriores, rejeite a implicação do
operacionalismo.
[50]
Literalmente, em inglês, “poças de lama por cerca viva”. O autor faz um trocadilho com “milhas
por hora”, a unidade de velocidade representada por MPH. [N. do T.]
[51]
O leitor pode verificar se a febre do leite é agora curada com injeções de cálcio no pescoço da vaca.
[52]
Paul Edwards, “Atheism”, The Encyclopedia of Philosophy, 1967, Volume I, 174-190.