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Direito Civil e Processual Civil

II – DO REGISTO PREDIAL

1 – FUNÇÃO E OBJECTO

A caracterização do registo predial passa necessariamente pela referência aos seus


fins; desde logo porque o registo predial não é – em tese – o único registo público
possível de prédios existentes num dado território 119.

Diz o art. 1º do Código do Registo Predial Português 120 que o registo predial se
destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios 121, tendo
em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. É portanto essa a função
essencial do registo predial – a de dar a conhecer ao público os direitos reais sobre
coisas imóveis.

Revela-se assim que o registo predial não tem qualquer índole constitutiva, mas
que o seu escopo é basicamente publicitário, de finalidade meramente declarativa
quanto à situação jurídica já pré-existente 122.

O registo predial cumpre a sua função servido por pessoal especializado – os


conservadores e funcionários auxiliares – distribuídos por circunscrições
territoriais, que recebe e qualifica documentos e pratica actos em suportes
documentais próprios – as tradicionalmente chamadas tábuas 123.

Em suma é o seguinte o funcionamento daquele registo: em cada Conservatória do


Registo Predial, e por cada prédio cujos direitos reais se entende publicitar, há
uma ficha individual que contém a sua descrição física, económica e fiscal; há
depois as inscrições de factos constitutivos, modificativos, transmissivos ou extintivos
dos direitos reais, incluindo as acções judiciais que tenham esse objectivo, a
alteração de algum registo já efectuado e as sentenças proferidas no final dessas
acções124, inscrições todas feitas por referência a cada uma dessas descrições.

119 Em Portugal existem, por exemplo, ainda as matrizes prediais, registos dos prédios organizados pelas
autoridades fiscais, para os fins que lhes são próprios.
120 Aprov pelo DL nº 224/84 6 Jul, e já alterado por diversos diplomas subsequentes.

121 Não de todos os imóveis, sublinhe-se.

122 Sendo dessa forma que o registo realiza a sua função de contribuir para a realização do direito material.

123 Os suportes legais onde é feita a inscrição tabular eram, no direito português, anteriormente, os livros

e são, actualmente, as fichas de registo.


124 São os factos, as acções e as decisões judiciais elencadas nos arts. 2º e 3º Cód Reg Pred Port.

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O meio pelo qual o registo predial assegura depois a sua função de publicidade é
através da faculdade, reconhecida a toda a pessoa 125, de poder pedir cetidões dos
actos de registo e dos documentos arquivados, bem como de obter informações
verbais ou escritas sobre o conteúdo de uns e de outros.

O objecto do registo predial é, então, constituído por factos, estes eleitos pela lei
com recurso aos seus efeitos jurídicos.

A lei não cura da inscrição directa dos direitos cuja publicidade visa assegurar, fá-
lo indirectamente, determinando a inscrição de factos que estão na base dos direitos
em causa. Conhecidos estes, é fácil deduzir a categoria do direito real a conhecer.
E esses factos – elencados no Cód Reg Pred – são todos – em princípio – os que
possam interferir na compleição dos direitos reais.

2 – ESTRUTURA TABULAR: DESCRIÇÃO E INSCRIÇÕES PREDIAIS


Diz-se que o registo predial realiza a sua função publicitária mediante uma
estrutura tabular para sublinhar que o faz através da aposição de actos em suportes
documentais ou tábuas – entenda-se, em fichas de registo 126.

Os actos praticados nas fichas são as descrições e inscrições prediais.

A descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal do prédio 127.É
aposta na face da ficha de registo.

A inscrição visa definir a situação jurídica do prédio, mediante extracto dos factos a
ele referentes; e é sempre lavrada com referência a uma descrição 128. É aposta no
verso da ficha de registo.

Já dissemos que os factos a inscrever são eleitos pela lei com recurso aos seus
efeitos jurídicos. É um aspecto fundamental: os efeitos do registo referem-se a
esses factos, não a outros; nomeadamente, os efeitos do registo não abrangem as
características dos prédios constates da descrição.

3 – PRINCÍPIO DO TRATO SUCESSIVO


A efectuação de cada registo de aquisição depende do registo prévio de aquisição
por parte do transmitente. Cada aquisição é um elo de uma cadeia e só é
definitivamente acolhido nessa cadeia se quem nele figura como transmitente
estiver acolhido como titular do direito transmitido.

125 No art. 104º do Cód Reg Pred.


126 V arts. 22º alín b) e 23º Cód Reg Pred.
127 V art. 79º nº 1 Cód Reg Pred.

128 V art. 91º nºs 1 e 2 Cód Reg Pred.

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Nisto consiste o princípio de registo conhecido como do trato sucessivo 129.

Por exemplo, pretendendo-se registar a compra e venda de um prédio realizada


por A a favor de B, o registo só é possível se A figurar no registo como
proprietário. E se B, posteriormente, quiser hipotecar o prédio, só poderá registar
quando esteja definitivamente inscrito como proprietário.

Assim, só é juridicamente viável o registo de factos que estejam conformes com as


situações já registadas. Como efeito deste princípio, o registo apresenta uma
sucessão de factos interligados pelos sujeitos que neles intervêm. Donde a ideia de
trato sucessivo ou contínuo.

4 – EFEITOS DO REGISTO; PRESUNÇÃO LEGAL DOS DIREITOS


DERIVADOS DO REGISTO

Um primeiro efeito dos registos é a publicidade em si mesma, isto é, independente


de qualquer efeito jurídico específico. Os registos dão conhecimento à comunidade
dos factos que deles são objecto, conhecimento esse que é relevante para os mais
variados fins. É o efeito enunciativo do registo.

Há depois o chamado efeito constitutivo, que no direito português é excepcional, e


que se traduz em casos em que a própria constituição ou transmissão do direito
depende da existência do registo. É o caso da hipoteca, pois o art. 4º nº 2 Cód Reg
Pred e o art. 687º Cód Civ dizem que a eficácia dos factos constitutivos da hipoteca
depende, mesmo entre as partes, da realização do registo – o que parece significar
claramente que o registo da hipoteca tem natureza constitutiva. Ainda a propósito
dos efeitos constitutivos do registo no direito português é de assinalar a hipótese
do art. 17º nº 2 Cód Reg Pred, que parece ser um caso de efeito aquisitivo, e de
efeito aquisitivo gerado pelo mero registo, já que a lei, na situação aí em causa,
parece abstrair dos actos jurídicos anteriores ao registo. A situação aí regulada é a
de um registo nulo – por força do disposto no art. 16º CRP – ter servido de base à
aquisição de direitos por um terceiro, tendo tal aquisição sido feita a título oneroso
e de boa fé; para esse caso, dispõe a lei que os direitos desse terceiro se manterão,
apesar da nulidade do registo, se este for anterior ao registo da acção de nulidade.

Efeito do registo predial é também o de oponibilidade a terceiros. O registo é


condição de eficácia para com terceiros. É o que resulta do art. 5º nº 1 Cód Reg
Pred ao dizer que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros

129 Consagrado no art. 34º Cód Reg Pred. De resto, o art. 9º deste diploma já determinava que os factos
de que resultem transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem, em
geral, ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se
adquire o direito ou contra o qual se constitui o encargo.

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depois da data do respectivo registo 130. Porém, a noção de terceiro, para este
efeito, não é pacífica e foi objecto de decisões uniformizadoras de jurisprudência
contraditórias 131, vindo a ser firmada essa noção, por via legislativa, através do DL
nº 533/99 11 Dez, num acrescentado nº 4 ao cit art. 5º CRP 132. Significa-se que, hoje,
o adquirente de um direito real sujeito a registo pode opô-lo à generalidade das pessoas,
mesmo não registado; todavia, só pela realização do registo fica protegido contra a
possibilidade de outra pessoa adquirir do mesmo alienante um direito incompatível.

Há também um efeito de legitimação. O art. 9º CRP determina que os factos de que


resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis descritos
no registo predial não podem ser titulados sem que os bens em causa estejam
definitivamente inscritos a favor da pessoa que aliena ou que constitui o encargo.
O art. 54º do Cód Notariado Português determina que, por via de regra, não
podem ser lavrados instrumentos de constituição ou transmissão de direitos sobre
prédios se os mesmos não estiverem inscritos a favor dos constituinte ou alienante
do direito. Tanto basta para perceber que, no direito português, a transmissão – e a
constituição – de direitos sobre prédios registados depende de estar efectuada a
inscrição registral de aquisição a favor do alienante.

Finalmente, há o efeito presuntivo da existência do direito. O registo definitivo


constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos
precisos termos em que o registo o define 133. Quem tem um direito registado a seu
favor presume-se titular desse direito enquanto o registo estiver em vigor.

Nos termos do art. 349º Cód Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador
tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. O art. 350º explica
que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela
conduz – nº 1 –, podendo as presunções legais ser ilididas por prova em contrário134,
excepto nos casos em que a lei o proibir 135. Ou seja, as presunções são, em
princípio, ilidíveis – iuris tantum – e assim se deve entender também que a presunção
derivada do registo admite prova em contrário. Essa prova em contrário derivará
de um de dois factores: ou da demonstração de um vício do registo 136 ou da
demonstração de que o facto registado é inválido ou insuficiente para servir de
base ao registo 137. Ali fala-se em invalidade registal; aqui em invalidade substantiva.

130 Com as excepções elencadas no nº 2 do mesmo artigo.


131 Acs STJ 15/97 de 20 Mai 97 in DR I-A de 4 Jul 97 e 3/99 de 18 Mai 99 in DR I-A de 10Jul 99.
132 Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

133 V art. 7º Cód Reg Pred.

134 Presunções iuris tantum.

135 Presunções iuris et de iure.

136 V arts. 14º e seguintes do Cód Reg Pred.

137 V art. 13º Cód Reg Pred.

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Exemplificando:

A improvisa um título de aquisição do prédio X e obtém de um funcionário


incompetente uma inscrição a seu favor – a invalidade é registal.

B apresenta um título aquisitivo do prédio Y perfeitamente genuíno e obtém


uma inscrição conforme com todos os princípios do registo. No entanto, o
negócio de base fora celebrado com coacção (art. 256º Cód Civ Português) 138 –
a invalidade é substantiva.

Seja como for, enquanto não for provada e reconhecida em tribunal alguma das
referidas invalidades, opera a presunção derivada do registo. Do ponto de vista
processual, o ónus da prova da invalidade – que poderá ser extremamente difícil –
assiste ao contraditor do beneficiário da inscrição.

5 – IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DOS ACTOS DE REGISTO

Os factos comprovados pelo registo – que fazem, como vimos, revelar direitos
reais – podem, como todos, ser impugnados, de per se, em acção judicial. Impõe é a
lei que, simultaneamente, haja de ser pedido o cancelamento do respectivo registo
139. Consequência legal, quando tal pedido se mostre necessário e não tiver sido

formulado, é a acção não ter seguimento, após os articulados 140. Vislumbramos


aqui uma primeira forma de impugnação judicial do registo, induzida pela lei, na
sequência da impugnação substantiva do direito real registado 141.

O registo pode estar enfermado de um vício de nulidade se, por exemplo, for falso
ou tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto
registado, ou quando tiver sido lavrado com violação do princípio do trato
sucessivo 142. Em tal caso, a invocação da nulidade pressupõe uma acção judicial
que a tenha por objecto e a declare, por decisão transitada em julgado 143; e
constitui um outro caso de impugnação judicial.

138 O que não é controlável pelo Conservador.


139 É o art. 8º nº 1 CRP, que se justifica pelo natural desejo de manter a coincidência entre a realidade
substantiva e a registal.
140 Art. 8º nº 2 CRP.

141 O cancelamento do registo é, nestes casos, sempre uma consequência da procedência do pedido em

que se peça se reconheça que o direito pertence a quem não é o titular inscrito; daí que a
jurisprudência venha a flexibilizar aquele normativo, entendendo que, ainda que expressamente
omitido, haja de considerar-se o mesmo como implicitamente efectuado, de modo a viabilizar que a
sentença ordene o cancelamento do registo – v Ac STJ de 22 Jan 98 in CJ (STJ) VI-1-26.
142 As causas de nulidade do registo são as elencadas no art. 16º CRP.

143 V art. 17º nº 1 CRP.

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