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E OUTROS CONTOS
Newton Moreno
Recife
2016
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Agradeço
Aos membros do Coletivo Angu de Teatro por terem sido
os primeiros a acreditar neste livro.
Aos meus amigos pacientes leitores.
E dedico este livro aos meus sobrinhos,
Eduarda e Alexandre.
Que a ópera da vida lhes seja bela!
PREFÁCIO
O DONO DA VOZ
MARCELINO FREIRE
“A vida é uma ópera maravilhosa, só que dói.”
Joseph Campbell
SUMÁRIO
ÓPERA 9
AMÁLIA 13
SURPRESA 17
A LÍNGUA 21
A GAITADA 24
ESTIO 27
UMA HISTÓRIA QUE ALGUÉM ME CONTOU 31
O COMUNICADO INTERNO 35
O PRIMEIRO CASAL 38
NEGA SÔNIA 42
VIRGEM 46
AMANHECIDO 48
DUAS CRIANÇAS 52
LUZ 57
MEDEA 59
JOÃO E ROSALINDA 64
SEM SANGUE 67
O LIVRO 70
A ESPERA 85
A DESPEDIDA 88
A CALIGRAFIA DA METÁFORA 91
O TROFÉU 95
O CANTO 97
TU NUNCA SABERÁS O QUE É O AMOR 100
RESSURREIÇÃO 104
ÓPERA E OUTROS CONTOS
ÓPERA
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
AMÁLIA
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
SURPRESA
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
A LÍNGUA
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A GAITADA
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ESTIO
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O COMUNICADO INTERNO
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
CI – COMUNICADO INTERNO
Nº 3432/1999
Alfredo Tavares
Supervisor Júnior
Depto. de Contas a Pagar
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O PRIMEIRO CASAL
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NEGA SÔNIA
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VIRGEM
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AMANHECIDO
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DUAS CRIANÇAS
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LUZ
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escolhe.
Como se um artista recrutasse seu público à porta do
teatro, pagando-lhe para que assistisse à peça. A notícia
correu mundo. Rápido.
Uns chegam a Luz: “Você é a puta velha que paga a
quem lhe der uma gozada?”.
No primeiro mês, Luz transou mais que todas as
mocinhas. Tudo que é tamanho, cor, sotaque, posição.
Com o tempo, Luz já dispensava todos que não
ameaçavam um orgasmo.
Na verdade, está sempre escrito na cara.
Ficava a dúvida: e se, em lugar de sexo, esse novo
homem lhe trouxer o amor?
Com o tempo, Luz aumentou a recompensa.
Dobrou, triplicou, quadruplicou. E veio o medo de
morrer sem lograr êxito clitoridiano.
Gritava sob o sol de dezembro quente: “Não tem mais
homem nesta cidade. Eu não posso morrer sem homem.
Eu só quero uma foda. A última!”.
Luz completa hoje 85 anos.
Luz só quer uma foda.
Uma única.
Que a lembre das boas metidas do passado.
Uma única para fazê-la lembrar do prazer que lhe
norteou a existência.
Gozar para lembrar sobre o que construiu sua vida.
E talvez, depois, acender um cigarro e morrer em paz.
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
MEDEA
OU
HÁ UM PRESÍDIO FEMININO NA CIDADE DE SÃO PAULO
CONSTRUÍDO ÀS MARGENS DE UM RIO MORTO.
NESTE CONVENTO NEGRO, HÁ UMA ALA DE DETENTAS
MANTIDAS ISOLADAS DAS OUTRAS MULHERES ALI
PRESAS. ESSA QUASE DEZENA DE CRIMINOSAS
MATOU SEUS PRÓPRIOS FILHOS.
NA MAIORIA DOS CASOS, DECLARAM QUE O FIZERAM
PELOS SEUS MARIDOS, AMANTES, MACHOS.
SE FOSSEM ENJAULADAS COM AS OUTRAS
MULHERES, SERIAM EXECUTADAS NA PRIMEIRA
NOITE. DIZEM QUE, NESSA ALA DE MÃES ASSASSINAS,
O PEITO PRANTEIA COLOSTRO ESPESSO E AMARGO E
OS GRITOS REVERBERAM EM SEUS VENTRES COMO
TAMBORES ANCESTRAIS. DIZEM QUE A MULHER
VIRGEM QUE ALI ENTRAR FICARÁ ESTÉRIL.
DIZEM QUE A DOR ESTAMPADA EM SEUS ROSTOS
PODE NOS CEGAR.
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E me cortei.
Derramei meus filhos para dentro da terra.
Nossa jaula é separada das outras mulheres. A morte
que trazemos em nosso rosto, nenhuma delas suporta
ver. Se nos misturam, elas nos matam. Nossa guerra
começou na cama. Nós matamos com o coração em
chamas na mão. Nós arrancamos lascas de dor de nós
mesmas para vingarmo-nos do Deus Amor.
Deus Amor que soprou a nuvem de veneno que me
conduziu às rochas.
Amor? Tua mão dilacerante e inclemente não me
alcança mais.
Meu leite é um leite morto. Nenhuma vida encontra
alimento em meu seio. Só sei fazer uma água infértil que
nem a sede mata.
Eu nunca mais terei uma prole.
Não há maternidade possível depois deste câncer.
Nosso cárcere é a noite sem fim do nosso luto por nós
mesmas imposto.
Essas que urram foram mães e amantes, estão aqui
porque não são mais mães nem amantes.
Guardei sob o manto de minha condenação os gritos
de horror de meu homem.
Eu liberto sua voz destroçada para me fortalecer.
Quando eu apertei o seu coração com a imagem da
cria sacrificada.
Quero essa dor. Quero que ele sinta essa dor. Essa!
Sou a fera cujo veneno mata a si mesma.
Eu me mordo e faço inimigo sangrar.
Eu não fiz o que queriam, eu desobedeci.
Sou a invertida, a errada.
Traí o modelo que fizeram de mim.
Tirei meu coração, o pus do avesso e o devolvi para
dentro do meu peito.
E ele ainda bate.
Esta sou eu. Me chamam Medea.
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JOÃO E ROSALINDA
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SEM SANGUE
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O LIVRO
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
Foi assim que fui perdendo meu medo dos livros. Até
hoje.
Porque este livro seria diferente.
Hoje meu pai entrou em meu quarto com um pacote
envolto em papel azul-celeste.
O pacote amedrontava pela extensão e peso. Mas
irradiava uma luz cor de céu.
A luminosidade do invólucro era apenas o impacto
inicial.
Era o livro.
Trazia um mistério consigo. Era sério aceitar aquele
livro, acomodá-lo em minhas mãos.
“Ele vai doer um pouco”, disse-me meu pai.
Ele carregava, como quem carrega um bebê, uma
lágrima em seu olhar. A dor cintila em seus olhos e me
deixa com sede de sorvê-la e aceitá-la. Ele tenta ser
rápido para que eu não perceba sua visitante inesperada.
Mas eu a olho como um pingente precioso e na lágrima
eu vejo minha figura refletida, possivelmente, pela última
vez.
Foi sério para ele entregar aquele livro.
Sabíamos todos, naquela casa, que fui diagnosticado
com doença degenerativa na córnea. Como muitos em
minha família, eu tinha pressa em ver o mundo. Tenho
pressa.
Cada família com suas heranças. Esta é minha parte.
Sem latifúndios ou hipotecas.
Serei um turista cego. Que país conhecerá um turista
cego? Como guardará suas impressões da viagem? Mas
não é assim que somos postos nos sonhos? Passaporte
para além da pálpebra.
Cego, cegarei em breve. Logo. Talvez em minutos. Até
o fim desta noite, eu cegarei.
Este livro é um membro da família.
Aquele que todos os meus antepassados de infortúnio
compartilharam.
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
Voo.
Fui obrigado a seguir os pássaros em meu quarto.
Os pássaros ninam meus olhos.
Na pausa, derrubo minha cabeça cansada por sobre
o livro. Encosto meu nariz em sua pele.
O livro, descoberto, livre do papel azul-celeste, emana
agora um aroma morno, um cheiro de novo mundo.
Tipo de aroma que devem ter provado os bandeirantes
em várzeas paulistanas ou os holandeses em índias
pernambucanas. Eu me lembro do desembarque em um
aeroporto, num outro clima, num outro continente.
A tinta vermelha da capa tinha ares de sangue.
Abre outra porta, iniciando outro rito.
Com o faro sigo o livro.
Rastreio primeiro, leio depois.
Este livro é assim: feito para subverter a ordem, mudar
o rumo, virar do avesso, desmantelar.
A primeira sensação é a de fumaça, a de perigo.
O perfume inaugural a ser identificado é o de meu pai.
Sua colônia brava, sua pele cansada, suada de muito
trabalho, suada de muitos filhos para alimentar.
Sua colônia vai misturando-se a outras colônias e
peles.
Velho, bolorento, mofado, pertencera a outros e,
mágico, traz o perfume deles todos.
As páginas e seu odor quente, de incomodar as
narinas. Fazendo cócegas nariz adentro.
O livro por debaixo do braço, fedido de mãos
ensebadas, aprisionando alguma essência de flores, o
livro e o mapa dos cheiros.
Mulheres e homens, crianças e anciãos.
Seus rostos, expressões, idades, aos poucos ganham
meu cérebro.
Chego farejando à última página que tocaram minha
prima e meu tataravô.
Lá suas impressões digitais tocam uma vírgula.
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A ESPERA
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A DESPEDIDA
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A CALIGRAFIA DA METÁFORA
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O TROFÉU
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médico.
Achava que tudo era só tristeza. Ser triste é a primeira
causa de morte no planeta.
Tem gente que ri disso.
Ficou triste quando chegou ao consultório: não se
trataria com um ginecologista.
Ficou alegre quando sentiu as mãos do médico
percorrerem seu corpo.
Percorreram por horas, fazendo Pedro quase perder
os sentidos.
Finda a consulta, o médico tinha algo a lhe dizer.
Grave: “Pedro...”.
“Petra.”
“Petra.”
“Eu sei. Eu sei que não sou mulher, mas...”, choramingou
Pedro.
“Você tem câncer na mama direita.”
“O quê? Câncer? Eu? Na mama?”, choramingou
Pedro para depois ressurgir num rompante de risos.
“Eu disse que era mulher. Na mama. Igual a minha
tia.”
Despencou consultório afora em desvairada
gargalhada de mulher à beira da morte.
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O CANTO
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RESSURREIÇÃO
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Um cheiro de pão assado quebrou a janela e forçou
a manhã. Eu ainda navegava do sonho ao sol, sem ter
muitas certezas se queria amanhecer. Não sabia se já
havia cumprido minha missão sonho adentro. Indecisa,
bocejei desabando em olhos abertos que autorizavam
o dia a começar. Subi os degraus para fora da cama
enfeitiçada por aquele aroma. Aroma familiar, morno,
seguro, que só minha mãe sabia criar no caldeirão de
seu forno, abrindo as chaves da porta do sono de todos
naquela casa. O que me intrigava para além da escolha
certa das cores e casacos que o outono exigiria era quem
estava a cozinhar. Minha mãe não estava mais entre nós
há cinco anos, logo quem reproduzia com tanta maestria
seu feitiço aromático? A fome e a curiosidade aceleraram
roupa, bidê e remédios. Avancei pelo corredor e vi meu
pai na porta da cozinha, sentado no chão, olhando
fixamente para a mesa vazia. Acudi o homem, erguendo-o
até a cadeira da mesinha de café. Ele não dizia nada,
tinha o olhar teso. A boca aberta procurando palavras que
haviam fugido para bem longe dali. Talvez a lembrança
desse aroma o tenha descompensado. Traquinagem do
irmão mais velho querendo surpreender a todos? A porta
da cozinha que dá para o quintal ameaçou abrir. Meu
pai saltou da mesa até atrás da geladeira. Eu fui ao seu
socorro quando ouvi. A música. A mesma em que a mãe
se apoiava toda manhã para reunir coragem e enfrentar
seu dia, seu tanque, seu forno. A voz. A mesma em que
inscrevia as mais belas palavras da língua para descrever
meus atos, minhas falhas, meus medos, meus dias. Em
que lugar do sonho fui presa? Mas não vi indícios de
âncoras. Era o dia que deveria ser. O calendário era claro.
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
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Meu pai ficou doze horas preso no quarto. A essa
altura, a mãe já tinha a casa pronta para receber elogios.
Tudo no seu ritmo e rigor. Era como se ela tivesse feito isto
diariamente nos cinco anos em que ela estava... longe. Ela
não sabia onde tinha andado, não se recordava de nada,
nem do momento de sua morte, nem do que se passara
no outro lugar que estava habitando. Nada. Cansei de
indagar. Um silêncio generoso dos ruídos de sua memória.
Lembrava tudo cinco anos antes. Tudo. Meu aniversário
de 15 anos, o casamento, as brigas com a irmã. Eu peguei
algumas fotos, inclusive do dia do seu velório. Depois
pensei: quem teve a ideia de tirar fotos de tantos rostos
tristes? A mãe desfilou o olhar pelas fotos, reconhecendo
os parentes, perguntando como eles estavam. Não foi
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[3]
Os primeiros dias.
A casa estava devendo a ela. Desfalcada de seus
objetos, roupas e até mesmo travesseiro. O que eu
consegui na despensa e na garagem, eu ressuscitei. Os
vestidos foram “customizados” pelas traças. Demos todas
as suas roupas, e ela ficara sem nada. Meus vestidos
ficavam pequenos. Ela pediu que eu comprasse alguma
peça nova de roupa na esquina. Lá fui eu. Entrava na loja
que sempre forneceu vestidos para minha mãe. E como
esconder que procurava peças que compraria para ela?
Seu tamanho era diferente do meu. Eu afirmei que era
um presente para uma tia. A vendedora, velha amiga de
todos nós, consultou meus olhos procurando saudades.
E achou. Eu tinha um choro sambando delicadamente na
pálpebra. Ela me tocou o braço como quem me salva de
uma queda. “Eu já fiz isto, querida, comprei roupas para
minha falecida mãe.” E era isto. Nossos sábados tinham
esta mesma rotina: comprar roupas juntas. Eu chorava
pensando: “Será que terei esses sábados de volta?”. A
vendedora me consolava: “Você não terá esses sábados
de volta, mas eu estou aqui para o que você precisar”.
Na volta para casa, sorrateira, eu investigava as casas
vizinhas para saber se seus falecidos entes estavam
também visitando-os. Fui na mais certeira, o velório
mais recente. Na Dona Selma, nem sinal de gáudio e
cores. Ainda estava tingida de luto, escondendo dentes
e cabisbaixa, depois que seu marido se foi. Ela me
capturou enquanto eu sondava pegadas com notícias de
mortos pelo seu jardim. Com uma palavra me conduziu
para dentro de sua casa. Eu aceitei o chá que ela me
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Minha tia entrou em casa e foi direto ao quarto. Movida
por alguma intuição, porque ninguém a convocou. Minha
mãe dormia, soneca após pratos lavados. A irmã reeditou
a entrada no quarto de cinco anos atrás para lhe fechar os
olhos e dar um último beijo. Desta vez, era o contrário. A
mãe abriu os olhos, seguido de sorriso. “Foi assim mesmo
que eu sonhei esta noite.” A tia não resistiu à visão da
irmã. Seu coração parou. Minha mãe então chorou, mas
não muito. “Quem sabe ela faça como eu e volte?”
Não quis ir ao enterro. Todos nós compreendemos.
[5]
Mãe percebia que havia mais tristeza que no passado
entre a mobília da casa. Precisava livrar-se dela como
quem cria estratégias para livrar a casa de cupins e
goteiras. Abriu primeiro a minha gaveta. A mãe escolheu
a hora mais silenciosa do dia, livrou-se de moscas, ruídos,
qualquer interferência, queria-nos sós.
A filha, eu, estava escondendo lágrimas sutis enquanto
provava o vestido de casamento. Já havia decidido usar o
vestido da mãe. Não esperava que ela pudesse ajudar-me
a ajustá-lo. E lá estava, a mãe aos meus pés, organizando
a barra. E me disse: “Você não o ama”. Ela tinha razão.
Então por que eu deveria casar-me? Não desviou o olhar
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[6]
Depois, ela pediu que o pai a escutasse. Sabia
que ele não a olhava com amor porque a olhava com
vergonha. Onde a vergonha reina, repousa pouco
espaço o respeito. Pediu para que ele a ouvisse. Nós
entendemos prontamente que deveríamos sair da casa.
Como quem tira um espinho de animal ferido, ela
começou. O animal nem sempre sabe por que se feriu, se
aquela pessoa quer ajudá-lo ou machucá-lo ainda mais,
sofre em agonia silenciosa o toque, o encontro, o cuidado.
Meu pai tinha medo de ser cuidado. Fazia seus próprios
curativos. Minha mãe não aguentou ver o sangue que
escorria. Veio em sua ajuda. Disse-lhe com elegância que
não precisava olhar para o chão toda vez que a via. Não
precisava dormir no chão, deixando-a sozinha na cama.
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[7]
Aos outros, ela curou: com o filho, ela era quem
precisava de bênção.
Estava, todos estes dias, arregimentando forças para
a conversa mais decisiva. A tristeza que o filho trazia nos
olhos era em parte sua culpa. Quando sentiu-se mais
preparada, pediu que o chamasse. Escolheu a poltrona e
passou a madrugada ali a esperá-lo. O carro dele pousou
na garagem e ela trincava os dentes para que o coração
não lhe escapasse. Meu irmão tinha um olhar de devoto
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[8]
Estávamos eu, meu pai e meu irmão, aguardando
pela exumação do cadáver. Havíamos solicitado à
administração do cemitério desde seu retorno e finalmente
marcaram a data. Teria alguém sido enterrado em seu
lugar? Quem? Precisávamos desvendar essa ideia
maluca que nos corroía. Mas os funcionários ficaram mais
surpresos que nós. Não havia nada no caixão de minha
mãe. Ossos, restos, roupas, migalhas de piquenique de
vermes, nada. O caixão estava vazio como se nunca
corpo ou alma o tivessem habitado. E agora?
Enquanto caminhávamos de volta ao carro,
assistimos famílias desabarem. Foi quando nos atingiu
uma sensação de conforto. Nós a tínhamos de volta. Do
que estávamos reclamando? Do quê? Ter minha mãe de
novo. Então começamos a acelerar o passo para chegar
em nossa casa. Uma súbita insegurança. E se ela tiver
sumido? Se tiver ido embora? Corremos a casa inteira
e nada. Nada. De repente ela nos surpreende. Estava
no quintal, debulhando milho. Dedos que emprestavam
da espiga sabor e colorido ouro para nosso jantar. Um a
um, envolvemos minha mãe. Como nunca fizemos antes.
Naquele instante a tarde estacionou num púrpura que
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ÓPERA E OUTROS CONTOS
[9]
Dias depois, ela soprou as velinhas com fôlego de
menina. Contando os anos que ficou fora seriam 84 anos,
mas ela não comemorou o aniversário de 80, 81 , 82 e 83
anos. Então fizemos cinco bolos e compramos velinhas
com todas essas idades. Ela aceitou. Fez cinco pedidos,
mas não contou nenhum, dá má sorte. Eu pedia para
que a tivéssemos aos 85 anos. Ela acalmou minha ânsia.
“Nunca se sabe o dia de amanhã, não é mesmo?”
[10]
Acordou mais cedo no outro dia. Sabia que tinha que
ir. Não sabia explicar por quê, mas sabia que tinha que
ir. Sabia que tinha que ir. Do mesmo jeito que sabia que
tinha que retornar e assim o fez. Não olhava a casa com
nostalgia, mas, sim, com sensação de dever cumprido.
Todos estão mais animados, então ela pode ir. Beijou
os porta-retratos. Limpou, varreu, habitou o quintal com
sua música. Como quem sabe que fará uma viagem,
deixou lista de compras na geladeira. Um lar é uma coisa
preciosa, ela o sabia. Mas ela o teve. Cuidou de seus
filhotes, de seu parceiro, de seu ninho. Era sua função, era
sua missão fazê-los felizes. Agradeceu a uma imagem de
Maria que frequentava cozinha. Muitos não tiveram sua
família no mundo. Agora Maria seguiria olhando por eles.
Assim ela pediu em sua última prece. Ela acreditava em
reza como quem acredita em receita, em diploma, em lei.
Sorriu vitoriosa e se foi.
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Textos Newton Moreno
Revisão Consultexto
Diagramação Marcio Sá