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ÓPERA

E OUTROS CONTOS

Newton Moreno

Recife
2016
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Agradeço
Aos membros do Coletivo Angu de Teatro por terem sido
os primeiros a acreditar neste livro.
Aos meus amigos pacientes leitores.
E dedico este livro aos meus sobrinhos,
Eduarda e Alexandre.
Que a ópera da vida lhes seja bela!
PREFÁCIO

O DONO DA VOZ

Há muito que eu queria ver Newton Moreno soltando


a voz. Sua voz narrativa, digo. Literária, em livro. Coisa
que ele já faz, como dramaturgo, tão brilhantemente.
Nos gritos e gemidos. E desejos soltos pelo palco.
Newton é puro teatro. Criador e observador de uma
realidade que, finalmente, ganha volume. Um livro, este,
que já nasce grande. Embora a maioria dos contos
reunidos não fale de nascimento, mas de aborto. De
rebentos perdidos. Da falência múltipla dos órgãos. E das
instituições. Famílias formadas por múltiplos membros.
Poucos são os autores que cuidam disso em
nossa literatura. Explico: os contos que Newton
Moreno nos conta são transgêneros. Crias para além
das crias. Das convenções, criações. Liberdade,
abrindo as asas — e as garras — sobre nós, sempre.
Negas, negos. Travecos, héteros. Viúvos, ninfetos.
Todo tipo de gente, pessoa, personagem que,
humanamente, ao abrirmos as páginas (cortinas),
vem morar em nosso quarto. Deitar em nossa
cama, redonda. Na redoma de nossos sentimentos.
Uma obra feita “para subverter a ordem, mudar o
rumo, virar do avesso, desmantelar”, como ele mesmo
escreve no conto intitulado Livro. Estão lá, neste
retumbante monólogo, todos os avisos e arrepios. O
medo que sentimos diante do novo. Do diferente. De
uma leitura nada fácil. E, por isso mesmo, necessária.
Abra a sua alma leitora. E o seu ouvido leitor. Desde já,
sem pestanejar. Fique ligado e ligada ao barulho das
rodoviárias. Ao som das televisões ligadas nos pequenos
hotéis, pelas estradas. Ao uivo, nos velórios, das almas
penadas. Aos cachorros, uns por cima dos outros, no cio.
E, sobretudo, atento e atenta para os espelhos
trincados. Quando a nossa imagem lá dentro não é,
de fato, a que queremos, eis o baque. Uma verdadeira
“Ópera” feita de ruídos. E de duro silêncio — esse que,
após fechar o livro, fica em nós, reverberando por muito
tempo. Tantos íntimos e fundos questionamentos.
Obrigado por nos alertar do perigo que estamos
correndo, alto e bom som, Newton Moreno!

MARCELINO FREIRE
“A vida é uma ópera maravilhosa, só que dói.”
Joseph Campbell
SUMÁRIO

ÓPERA 9
AMÁLIA 13
SURPRESA 17
A LÍNGUA 21
A GAITADA 24
ESTIO 27
UMA HISTÓRIA QUE ALGUÉM ME CONTOU 31
O COMUNICADO INTERNO 35
O PRIMEIRO CASAL 38
NEGA SÔNIA 42
VIRGEM 46
AMANHECIDO 48
DUAS CRIANÇAS 52
LUZ 57
MEDEA 59
JOÃO E ROSALINDA 64
SEM SANGUE 67
O LIVRO 70
A ESPERA 85
A DESPEDIDA 88
A CALIGRAFIA DA METÁFORA 91
O TROFÉU 95
O CANTO 97
TU NUNCA SABERÁS O QUE É O AMOR 100
RESSURREIÇÃO 104
ÓPERA E OUTROS CONTOS

ÓPERA

Era Sexta-feira da Paixão. A cidade inteira celebrava


a bravura de Cristo. Dia santo. Época de passagem e
libertação. Rodolfo também queria uma mudança na sua
vida. Queria marcar nesse dia uma nova fase. Vivera só
para si. Tinha decidido: encontraria seu homem nesta
Páscoa.
Há horas, deslizava pelas esquinas quase desertas do
centro. Selecionava, discretamente, seu anjo libertador.
Mesmo no feriado, os anjos trabalham.
Há dez anos, ninguém tocava no seu corpo. Ninguém
tinha feito nada por merecê-lo. Rodolfo queria dar a
algum deles a chance de fazê-lo. Paulo parecia merecer.
Era um belo jovem moreno dançando passos fortes
como o flamenco. Vestia apenas um coat felpudo e botas
igualmente felpudas. Tinha suas técnicas de venda. Ao
se aproximar, ele abria o casaco para o cliente que, por
dois segundos, via seu pinto fantasiado de coelhinho da
páscoa, carregando na cestinha seus dois ovos.
“Feliz Páscoa.” Para que jargão melhor? Rodolfo
encantou-se pelo rapaz. Comovido, começou a cantar
uma ária da ópera preferida. Era cantor. Lírico. Ali, no meio
da rua vazia, sua voz de tenor e seus anos de solfejo e
diafragma estavam entregues a essa declaração sincera.
Nunca cantara tão bem. Paulo calou-lhe a boca com um
beijo e com uma ameaça: “Não fode pro meu lado. Senão

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a polícia baixa aqui. Se quiser alguma coisa, R$ 50,00; se


não, cai fora”.
Rodolfo negociou seu amor: era preciso. Tinha que
se aproximar para depois fazê-lo entender do que se
tratava. Mal sabia Paulo, talvez este fosse seu último
cliente. Pagou-lhe pelo feriado inteiro. Paixão, Aleluia e
Páscoa. Foram ao seu apartamento. Precisava de tempo
para convencê-lo de seus sentimentos. Educou-lhe os
ouvidos com todas as mais belas óperas. Cantaria até
que entendesse a dimensão, a entrega, a força do que
sentia. Se fosse preciso comporia uma nova ária.
Nenhuma palavra. Só a música poderia fazê-lo.
Nenhum sexo. Primeira vez que alguém paga só pelos
meus ouvidos, pensava Paulo. Puccini, Verdi, Gomes,
Mozart alimentavam o ninho de amor. No apartamento,
sortido com muito chocolate, notas dificílimas eram
alcançadas. Partituras empoeiradas, tidas como
impossíveis e audaciosas, eram enfrentadas. Todos os
grandes papéis de tenores, sopranos, contraltos, mezzos,
baixos, barítonos, ligeiros, dramáticos, profundos, todas as
vozes do mundo lhe eram possíveis. Lençóis, turbantes,
túnicas, mantos, coroas adornavam-lhe as composições.
No domingo, já rouco, quase afônico, suspirou algo. Paulo
não entendeu. Chegou junto. “Me possua”, cantarolou,
afinadíssimo. “Sim”, respondeu Paulo, empostadamente
jocoso. Não havia mais espaço para dúvida, Paulo era
seu homem. Seu e de quem mais pagasse.
Paulo jamais deixaria a rua. Prometeu, dissimulado,
pensar na oferta de casamento. Quantas ofertas como

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

essa já não recebeu? Mentira. Paulo adorava seu ofício.


No dia seguinte, Rodolfo quase perdeu uma
apresentação, esperando um telefonema. Correu para a
igreja, onde a noiva teimava em esperar pelo cantor para
começar a cerimônia. Tentou colocar-se despercebido ao
lado do órgão. Toda a igreja esperava-o. Interrompeu duas
vezes All I Ask of You em prantos. Do casamento, voou
para a esquina de Paulo e não o encontrou. Teimou em
esperar até o sol vencer no horizonte. Com tinta vermelha,
escreveu na calçada onde trabalhava: “Paulo, eu te
amo. R”. Ele lhe ligou: “Quer foder com minha freguesia,
é?”. Vitória. Ele ligou. Conseguiu, pela metade do preço,
marcar um jantar. Paulo foi chegando e pedindo dinheiro.
Devorou o frango assado. Arrotou sonoro e pôs para fora
o pinto. “Vem. Vem pegar sobremesa, vem.” Meu Deus,
Rodolfo amava aquele homem.
Meses se passaram e continuava a encontrá-lo.
Tinha se tornado quase secretário, mesmo sem ter
sido contratado. Orientava-o nas roupas, onde aplicar
o dinheiro, levava lanches de madrugada na esquina,
acompanhava-o até a casa de um cliente mais distante,
sortia-o de camisinhas. Paulo, mais manso e confiante,
aceitava como uma bênção os cuidados que recebia e
só. Sexo, pago. Nenhuma intimidade. Era um cliente e um
amigo.
No inverno, Paulo frequentava um cinema pornô no
centro. Lá descolava algum dinheiro de dia e trabalhava
nas poltronas mesmo. Rodolfo, obviamente, assistia a
tudo. A distância, cúmplice, apaixonado, mas, acima de

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tudo, orgulhoso. Era bonito ver o seu homem envolvido


no seu ofício. Aprendeu a ter orgulho dele. Vibrava com a
cara de satisfação dos clientes ao levantarem da poltrona.
De intervalos em intervalos, abastecia-o com seu bolo de
cenoura e chá quente. Limpava-o, trazia até um estoque
diferente de cuecas caso quisesse trocar-se. Sua Páscoa
mudou tudo por dentro. Acreditava no prazer daquele
homem.
Um dia, no cinema, o inesperado. Rodolfo fora
tomado por um michê. Um senhor de peruca perguntou-
-lhe o preço. Mudo, olhou para os lados, pedindo socorro.
Não conseguia falar, reagir, nada. O moço começava a
vasculhar por dentro do seu casaco. Curioso, chegou
rápido às suas nádegas. Insinuava-se na direção de um
beijo. Um soco desacordou esse senhor.
Rodolfo chorou de emoção quando percebeu que
Paulo tinha desferido o golpe. Não disseram nada um
ao outro. Nem precisava. Rodolfo só não conseguia
parar de chorar. Saíram da plateia. Paulo até emprestou
um lenço. Qualquer coisa a ser dita poderia estragar
tudo. Em meses, esse foi o primeiro gesto de Paulo que
demonstrava sentimentos por ele. Demoraram alguns
minutos sentados na sala de espera do cinema. Rodolfo
devolveu-lhe o lenço e apontou um velho cliente que
fazia sinais. Paulo foi ao seu encontro e Rodolfo, ainda
chorando, enxugava suas últimas lágrimas em uma das
cuecas.

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

AMÁLIA

Amália entrou no consultório odontológico do seu


primo. Deslizou diáfana até os instrumentos. Escavou
gavetas, evitando, ao máximo, que o metal a denunciasse.
Encontrou a seringa, faltava o líquido. O olfato sentenciou
o esconderijo da anestesia. Descobriu uma destreza e
técnica para o crime surpreendentes: um minuto e a
injeção estava pronta. Libertou a mama esquerda. Marcou
com o batom o ponto certo. Aplicou--se. A anestesia
foi desaparecendo para dentro dela. As lâmpadas
fosforescentes começaram a ameaçar luz. E Amália só
queria acalmar seu coração. Súbito, seu primo arrancou-
lhe o brinquedo, massageando-a no peito, tudo isso num
grito. Abraçou-a e Amália, naquele instante, começava a
amá-lo.
Nasceu com essa vocação para o amor. Foi o dom
que lhe coube. Deus mandou Amália com esse músculo
anômalo. Amava a todos. Saía amando. Mal acomodava
um mancebo nos lençóis do corpo e pescava outro objeto
para sua afeição. Era sua rotina. Acordava para o amor.
Alguns evitavam seus braços, outros a confundiam com
puta. Mas o tempo do amor de Amália por ti era sincero,
entregue, genuíno, firme, como se fosse para sempre,
mas não era.
O exercício que seu órgão se impunha era constante.
Seu coração não parava. Acreditou que a anestesia lhe

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daria pelo menos alguns segundos de tranquilidade, mas


seu primo chegou...
Isso era profissão de Jesus Cristo; Maria de Nazaré
talvez. Tinha medo de recusar essa cruz, Deus se zanga.
Amália, quando rezava, renegava essa via-crúcis; pedia
clemência, pedia outra missão, mas não adiantava. Que
fique bem entendido: o amor de Amália tinha todos os
caprichos do de Maria Madalena. Desejava. Carne, carne
também. Amava daquele jeito que alma e carne importam
o mesmo tanto. Não se distingue um do outro. Que nem
baião de dois; o arroz tinha gosto de feijão e o feijão
parecia arroz. Inevitável era a fome.
Amália fez raios X do coração de todos os possíveis
ângulos. Queria entendê-lo. Investigar sua espessura, a
urgência de seu sangue, a ânsia de seu batimento, a teia
de suas artérias, o clamor das veias, a fábrica de tanto
afeto. Ampliou as chapas até dimensões satisfatórias e
pendurou na parede da sala. Começou a estudar onde
acomodava tanta gente. Procurou, microscópicas, as
marcas deixadas, as pegadas, as trilhas, os restos, as
bandeiras fincadas, beijos na posta de carne, as peças
de roupa esquecidas, os bilhetes de despedida. Dormia
olhando para aquele mapa de Marte gigantesco, como
astronauta que se prepara para viagem. Será que Amália
um dia viria a conhecer seu coração?
O problema é que Amália tinha esses sonhos do
grande príncipe. O único. O próximo será o último? Será
que tem fim a busca? Ou sua sina era mambembar de
cama em cama?

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

Queria filhos que se parecessem com os pais para


identificar, dia a dia, o que ficara de seu na criança e o
que viera dele. Investir sua existência nas horas de um
só homem. Se internar numa cozinha, aprendendo os
alimentos para enfeitiçar seu marido com seus temperos.
Recolher as palavras mais doces de um dicionário para
depositá-las no seu ouvido à noite. Ensaiar a vida, como
num espetáculo, para arrancar-lhe risos e lágrimas.
Obrigá-lo a dormir e acordar a seu lado, sem fazer o
menor esforço e como se não houvesse outro lugar no
mundo para estar.
Quando criança ainda, sua avó segredou-lhe: “A
gente nasce com o coração de outro e passa a vida
procurando o dono para devolver”. Tanta história para
fazer menino dormir e ela conta justo essa. Cresceu com
essa responsabilidade no peito. Cresceu com o peito
imenso.
Amália percorreu todos os prometidos. Noiva na sexta,
amante no sábado, concubina no domingo, namorada na
segunda, paquera na terça, flerte na quarta, primeira-dama
na quinta e a semana recomeçava, o mês recomeçava, o
ano recomeçava.
Até que, um dia, entendeu: é pelos olhos que o pecado
se move. E se ficasse cega? Quando encontrasse aquele,
o definitivo, se cegaria. Estaria confinada à imagem
desse homem. Não vazaria mais desejo pelos olhos.
Melhor: oferecer-se-ia cega, colocaria seu destino no tato.
Controlaria a válvula. Seu homem, quando viesse, teria a
certeza de sua fidelidade: cego não trai.

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Se ele se cegasse seria uma masmorra de felicidade.


Ficariam presos um na suposta imagem do outro. Se
amariam por dentro. Nenhum lugar poderia ser mais
seguro. Um leito de amor sem olhos. Um lar. Um único. De
tão comovida com a descoberta, ela chorou, pedindo que
as lágrimas lavassem as tintas de sua visão, apagando
sua retina. O que não aconteceu. Então Amália vendeu
suas córneas, clandestina. Tinha pressa. Ganhou bom
dinheiro. Sentou-se numa praça e lá se encontra até hoje,
esperando como uma flor espera um pólen, como uma
tecla espera a música, com o coração na mão, há exatos
quarenta anos.

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SURPRESA

Nunca um cão relutou tanto para ir ao veterinário. O


mais estranho é que não seria internado, sacrificado ou
vacinado. Estava a caminho do seu primeiro cruzamento.
Surpresa era seu nome. Otávio o recebeu há dois anos,
no seu décimo quarto aniversário. Belo pastor alemão de
pelo quase todo branco. Chegara o momento pelo qual
tantos outros espécimes ansiavam e, aparentemente,
Surpresa desprezava. O pai atribuía tudo ao nervosismo
da primeira vez. Otávio sabia que havia algo mais. Desde
ontem o cão não tocava a vasilha de comida. Lutou
bravamente pra entrar no carro. Gania. O veterinário foi
claro: tem que cruzar. Otávio segurava-lhe as patas como
que solidário. Torcia por Surpresa. Acontecia entre ele e o
cão aquele amor que às vezes não ocorre entre homens.
O médico o esperava com tudo pronto. O quartinho
do consultório com uma bela cadela pastora alemã com
uma expressão bastante ansiosa. Cheia de expectativas,
arfando descontrolada pela sala, imprimindo por todo
lugar os líquidos de seus focinho e língua. Otávio sentia-
-se um cafetão. Ao lado do pai e de um profissional da
medicina. Três cafetões. Tudo pelo bem da raça. Assim
como acontece com homens adultos e prostitutas.
Só que o dinheiro ficava todo com o dono da clínica.
Surpresa ainda dirigiu um último olhar de clemência
em sua direção. O veterinário praticamente empurrara

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o cão sala adentro. Passaram a chave e ouviam suas


unhas cavarem uma saída daquela prisão na porta. O
que se seguiu ninguém conseguiria descrever. Um latido
ensurdecedor. De repente, Surpresa virara adulto. Um
dobermann enfurecido incorporou no pobre animal. Um
minuto de tolerância, e a dona da cadela desesperou
em direção à maçaneta. Abriu a porta e a bela pastora
saiu ganindo clínica afora, ganhando a rua. E sua dona
atrás. Atônitos, esperamos a saída de Surpresa, que
correu para perto de Otávio. E ali ficou. Nada aconteceu.
Talvez não tivessem sintonizado. Tinha que ser a cadela
certa. Escolheriam novas candidatas. Os três cafetões
conversavam sobre o fracasso de sua empreitada
conjugal e não perceberam que Surpresa deslizou para
a sala ao lado. Quando o procuraram, encontraram-no a
cheirar e lamber outro animal. O veterinário comentou,
ainda ingenuamente: “Encontrou um amiguinho”. Em
seguida, Surpresa começou a tentar enrabá-lo. “Não,
Surpresa, você se enganou. Este é menino como você.” Um
pequeno passo e o cão rosnou, lembrando o dobermann
que há pouco o possuíra. O veterinário congelou, só o
outro pastor fugiu. E foi um custo tirar Surpresa daquele
lugar repleto de cães. Machos.
Num último teste, soltaram-no no canil e, um a um,
Surpresa engraçou-se com todos os machos, pulando as
jaulas das fêmeas. Estava confirmado.
O retorno para casa foi de um silêncio sepulcral. O
pai sentia-se constrangido até com as lambidas do cão.
Já não conseguia o mesmo carinho. Não sabia sequer

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

se queria o filho tão apegado ao cão. Surpresa sempre


se dera melhor com os homens da família. O pai, Otávio,
seu primo, enfim, delirava por um cafuné de qualquer
um deles. Oferecia a barriga sem nenhum embaraço.
Entregava-se matreiro aos carinhos masculinos. Mas ser
gay?
Em casa, só a irmã conseguiu se divertir: “Isso
acontece nas melhores famílias”. O pai falou em vendê-
-lo. Otávio foi firme em mantê-lo em casa. Evitavam
falar sobre o assunto. Os vizinhos perguntavam e eles
mentiam. Surpresa amuou. Alguma coisa não era mais
a mesma. Comia menos. Otávio preocupou-se. Queria
seu cão de volta. Maldita hora essa do cio que sempre
complica tudo. O que mais importava era a felicidade
de Surpresa. Decidiu arranjar-lhe um namorado. Antes
disso, o pai tentou reverter as tendências do rapaz e
comprou duas pastoras para casa. As brigas eram tantas
que teve que vendê-las por um terço do preço pelo qual
comprara. Enquanto isso, Otávio colocou anúncio no
jornal: “Cão gay procura cão gay. Tenho pastor dois anos
pedigree procura cão macho nas mesmas condições
para cruzamento”. Chegaram muitas cartas. Alguns até
produziam foto colagens de cães de saias e maquiados.
Meses se passaram e Surpresa, sozinho como um número
indivisível. Todos na casa, a essa altura, trabalhavam na
leitura e seleção das cartas. Menos o pai. A maioria das
cartas era gozação. Marcavam um encontro e levavam
até presente para o pretendente. Mas quando chegavam
ao local, nada. Um cartão indecente e, às vezes, ameaças.

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Na escola, os garotos sofriam retaliações. Os pais foram


chamados para uma conversa com a diretora.
Uma noite, um ganido triste acordou Otávio. Preso
no portão da frente, um cão malhado de raça indefinida
trincava as presas de frio. Surpresa encostado no seu
corpo tentava protegê-lo do frio. Tinha um bilhete preso à
coleira.
“Cuidem bem de meu cão. Ele tem o mesmo problema
que o seu. Meu pai quer sacrificá-lo. Nós não sabemos o
que fazer com ele. Lucas. P.S.: Prometo vir um dia visitá-lo.
Obrigado.”
Otávio, com mãos de botânico, plantou uma cama de
casal na garagem. Cúmplice, retirou-se. Naquela noite,
não dormiu: pensou no amor como uma coisa importante.
Seguiu-se uma rotina de crescente harmonia. Dormiam,
passeavam, comiam juntos. Comeram juntos o bolo de
carne envenenado que jogaram no quintal.
Foram enterrados juntos. Ao lado da garagem onde
se conheceram. Toda a família esteve presente. Até os
parentes do interior. Seu pai comprou coroa de flores.
Sua mãe usou luto. Seu primo quase uivava de tanta
dor.
Fizeram cortejo pela cidade, anunciaram no jornal e
celebraram missa.
Naquela noite, Otávio não dormiu: pensou no amor
como uma coisa importante.

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

A LÍNGUA

Ela foi trancafiada num casebre pela própria mãe.


Nesse dia, quase todos os moradores acompanharam
quando a mãe arrancou-a de sua casa e arrastava-a,
sujando-a de barro, em direção ao seu claustro. Claustro
imposto pelo seu sangue e pelos padres. Não suportavam
mais tantas reclamações.
A mãe a conduzia como a um porco ao sacrifício.
Ela alternava gritos de desespero, esganiçados, que
perfuravam a tranquilidade de toda a cidade, com
momentos de altivez desafiadora, como um mártir que
carregava a verdade até o cadafalso.
Chegando ao local, a mãe falou em língua de pragas
e usou o próprio cuspe como um lacre ao desferir a chave
no ventre daquela fechadura como quem atira em um
condenado.
Sua filha era uma moça linda, os olhos mais lindos
de toda a região. Olhos cor de Deus, poderias pensar. As
mulheres a acusavam de olhar com luxúria e desejo para
seus maridos, seus filhos e, o pior, seus amantes. Sim, os
encontros aconteceram. Vários foram os testemunhos.
O casebre em que a mãe a enterrava era pequeno e
vestido de uma madeira que, certamente, a faria sofrer
com o frio que se anunciava. Pensaram: ela logo definha,
não deve durar sete luas.
Mas ela durou bastante. Alguns se aproximavam para

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se certificar de seu final.


Ela abria a única janela que lhe permitiram e sempre
se punha maquiada e temperada com os cheiros do
diabo. E dali gritava a todos que passavam os segredos
das melhores famílias de lá.
Sempre aos domingos. Antes ou após a missa.
Como se fosse atração turística.
Como ela sabia de tanto? Se vivia presa, como numa
jaula, sem ir à escola, ao culto, ao médico. Tudo que
precisava era levado até ela.
O fato é que ela contava a todos que passavam as
falências, as doenças, as malcriações, os filhos bastardos.
Berrou para a filha do médico Mendes que seu marido
engravidou sua prima.
No dia seguinte, soube-se do rompimento do noivado
e que a prima havia sido enviada a um internato perto da
capital.
Todos mudavam os rumos, faziam percursos mais
longos para fugir às revelações ácidas e sulfurosas da
menina. Só podia ser confidente do coisa-ruim. Quem lhe
soprava tantas sujeiras familiares com tamanho rigor e
precisão?
Muitos pediam sua língua.
Pediam que a mãe a cortasse em praça pública para
que não houvesse dúvidas.
A mãe não conseguia acalmar seu verbo quente, sua
língua arisca.
A mãe decidiu levá-la para outro lugar.
Quando ela se foi, não se sabe se para internato,

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

se para hospício, dizem alguns, talvez para a execução;


entraram no casebre e descobriram, por baixo de sua
cama, um buraco.
Os mais devotos pensaram logo que era um atalho
para o coisa-ruim, uma gaveta do inferno, um portal por
onde ele vinha lhe soprar os segredos da cidade inteira.
Houve quem dissesse que o buraco tinha um hálito
sulfuroso, arrotando um ar viscoso vez ou outra.
Em verdade, vos digo, o buraco tinha veias
subterrâneas, túneis que conduziam às casas de muitas
senhoras respeitadas. De lá, à noite, saíam seus filhos,
maridos e amantes e algumas moçoilas e a visitavam.
Deste modo então, ela ficou confidente das coisas
escusas, escuras, dos moradores.
Quem cavou?
Os homens se diziam inocentes. Ela não parecia ter
forças para tal. Mas a gente se vira em dois quando o
desejo não se aguenta dentro de nós, não é mesmo?
Alguns atribuíam tudo à ação do demo, senhor
das terras profundas que administrava aquela rede
subterrânea, um metrô de injúrias e traições.
Os advogados trabalharam muito após sua saída.
Muitos casamentos foram desfeitos, alguns filhos
deserdados e, o pior, muitos amantes abandonados.
Tem veneno que não adianta represar.

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A GAITADA

Sábado, promessa de folia momesca na cidade do


meu Recife. Sabrina, que trabalha de faxineira na casa
de vereadores, encontrou suas amigas para assistir de
camarote (uma quitinete mofada do centro) ao desfile de
desvairios e desabafos carnavalescos.
Louca para se contaminar de esperança na fantasia
ardente do povo.
De longe, o colorido espontâneo dos passistas eram
ondas surpreendentes de harmonia popular. E ainda não
despontavam, na avenida, as agremiações, os blocos, os
caboclinhos.
Mas tinha os homem. “Os homem.” Era assim que ela
falava.
Sempre aquelas costas de bronze molhado. Costas
receptivas ao sol de um fevereiro macho e festivo. Costas
que pediam um afago, um lanho, uma mordida, uma
língua safada.
Sabrina inaugurava-se duas vezes nesta festa: a roupa
da Branca de Neve e sua nova dentadura.
Dentes e sonhos novos. Lançaria sorrisos mortais,
iscas de resina branca reluzente por trás da moldura meiga.
Sorriso que prometia um conto de fadas nordestino. Quem
sabe um anão bem equipado, sacudido, não quisesse
escalar esse monte “albino” de doçura...
No décimo andar, elas armavam estratégias de magia

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

marota para baixar na avenida.


Quando, na explosão de uma gaitada farta, resposta
a uma piada indecente, Sabrina viu seu sorriso de cem
reais alçar voo e sumir no colorido da avenida. Seu sorriso
despencou do décimo andar. Esparramou-se perdido
por entre os foliões da Avenida Conde da Boa Vista. A
dentadura caía gargalhando, um sorriso planando sobre
palhaços, putas e arlequins.
Caiu na cabeça de um careca e foi rolando pela
avenida como se intentasse evoluir no passo. Um super-
-homem barrigudo gritou: “Tá chovendo alegria”.
“São Pedro mandando felicidade dos altos.”
Brados carregados de cachaça.
A dentadura escorregava de mão em mão como
se tivesse pressa em esfregar-se no povo e sujar-se de
euforia ou morder um naco de cada um.
Nos altos, Sabrina tapou a dentição seca e entregou-
-se ao choro. Suas amigas arrastavam-na até a rua.
Devolveriam a alegria à amiga.
Desceram numa urgência e tragicidade que não lhes
permitiram curtir o sucesso de seus trajes faceiros.
“Alguém viu uma dentadura?”
Quatro “ladies” da farra orgiástica buscando uma
dentadura alada manchada de batom.
E se encontrassem a dentadura pisada?
Seria mais uma alegria perdida, machucada,
estropiada. E se alguém pisoteasse a chance de
casamento, de namoro ou de uma glória das partes
baixas da pobre Sabrina?

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Pobre Sabrina, fadada a ficar tapando o rosto,


escondendo o vazio; afinal de contas, o Carnaval tem que
acabar.
Mas e se a dentadura estivesse nas mãos de um
recifense imenso, travestido de anão, com joelhos ao
chão, fingindo ter metade da altura verdadeira?
Se a tivesse guardado como um sapato de borralheira?
Procurando a dona daquele sorriso, encontra rosto de
confete e lágrimas de nossa heroína.
“Meu nome é Zangado, mas hoje eu vim brincar de
Feliz.”
E, nesse momento, ele rasga a fantasia, ergue-se até
seus dois metros e algo mais de altura.
Ela abre a boca para beijá-lo, mas não sem antes
receber o sorriso de volta.
Foi esta a história que eu imaginei quando eu os
vi passando por mim e sumirem-se para dentro de um
maracatu.
Reis coroados da folia...

26
ÓPERA E OUTROS CONTOS

ESTIO

Doze pessoas numa sala, velando um pedaço de


madeira escura, protegiam-se do outono. Uma cerimônia
morna. Graças ao aquecimento interno. Velório de rico,
segundo o zelador. Sem muita conversa, poucos choros,
um ou dois soluços sinceros. Em funeral, sempre se flagra
um ator escondido, produzindo uma emoção de fachada.
E havia muitos neste. Cecília, a viúva, desolada, sentada
num canto, longe do morto, descobrira algo que lhe deixara
triste. Tão triste que ficou sem ação. “O amor não era a
coisa mais importante do mundo.” Pensou que, no dia da
morte de Giacomo, se mataria. Pensou que não poderia
viver sem amor. Mas Cecília não derramara uma lágrima.
Não sentia falta. Não tinha mais nem vontade de vê-lo.
Ensaiou de tantas maneiras seus escândalos de viúva
despedaçada pela dor, para nada. Apostou suas fichas
no amor. E, de repente, parecia tanto por tão pouco. Viveu
para o exercício de uma coisa que não lhe pertencia. Não
sabia o que fazer em seguida. Perdeu o norte, o eixo, o
equilíbrio. Mordeu-se de raiva de Deus. Sentiu-se lograda.
Poderia viver sem seu marido. Poderia muito bem viver
sem Giacomo. Tinha aquela sensação de queda sem fim
como uma ideologia evaporando. Trinta anos, buscando
essa epifania, buscando entender seu sentido e receber
a graça dessa revelação. Cecília morreu junto. Assim que
se sentia. Poderiam até levá-la em seu lugar. Velavam a

27
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ela. Sem o saber, aquelas doze pessoas tinham vindo ao


seu enterro. Fora educada para isso. Mulher e mãe. Mãe
natural não poderia ser.
Aos treze anos, teve problemas no útero. Quase
morre. Era mulher demais. Ouviu seus pais conversarem
no quarto: “Não pode ter filhos, meu querido. Ela nunca
será mãe”. Choraram juntos, e nunca tinha visto seus pais
emocionarem-se antes. Recolheu todas as bonecas e
enterrou-as no quintal. Cerimonial discreto e solitário. Mas
não se enganaria. Chorou até ficar velha. Amadureceu
no susto. Mãe não seria. Restava-lhe amar. Virou mulher
numa madrugada. Seus pais se assustaram, mas melhor
assim.
Semanas depois, tinha namorado. Aos homens que
se seguiram, sempre repetiu: “Eu sou estéril, você me
quer?”. Aí é que todos queriam mesmo. Não engravidaria.
Pretendentes não lhe faltavam. Mas qual construiria um
lar com uma esposa infértil, oca? Qual construiria uma
família sem filhos? Procurou no olhar de muitos homens
essa resposta. Giacomo a trouxe.
Era missa do Ciclo Junino. Giacomo, sentado duas
fileiras atrás, desafinava alto na tentativa de chamar a
atenção. Cecília perdoava um canto esganiçado, mas
imbuído de fé. Nem olhava para trás. A missa prosseguia
e Giacomo ganhava espaço aproximando-se. Tinha uma
estratégia.
Esperava aquele momento na missa quando o padre
diz: “Demo-nos as mãos para rezar o Pai-nosso”. Giacomo
inaugurou naquele instante uma série de encontros entre

28
ÓPERA E OUTROS CONTOS

aquelas peles. Cecília olhou bem nos olhos dele. Rezou


com mais ardor: agora acreditava no Senhor. Demoraram
um minuto após a oração para largar as mãos. Conheciam
a estrutura da missa, aguardavam ansiosos outro
momento precioso. “Saudemo-nos uns aos outros como
Deus nos saudou.” Grudaram. Abraçaram-se, obscenos
para uma missa. Uma velhinha insistia em cumprimentá-
-la, mas, sempre que tentava, encontrava-a ainda ocupada
nos braços de Giacomo. Foi essa velhinha quem decidiu
cutucá-los, recuperando-os para a cerimônia. Um ímã.
Uma tensão. A eucaristia. Seguiram um atrás do outro na
fila, esperando a bênção final. Cecília recebeu a hóstia.
Giacomo o fez em seguida. Retornavam para seus lugares,
quando seus olhares cruzaram-se de novo. A hóstia ainda
derretia em suas bocas e se beijaram. O corpo de Deus e
aqueles corpos se misturaram num consentimento forte
e inapelável. Fora assim pelo menos aos olhos de Cecília.
Naquela época, parecia que era para sempre; vai ver,
naquela época, era. Mas agora...
Subitamente, uma senhora elegante e alta abre
a porta da sala. Prende a atenção de todos por um
instante. Lança-se sobre o caixão. Desaba num pranto
enlameado de rouge e sombra. Cobre metade do morto
com sua manta negra. “Meu Deus, meu Deus.” Agarrava-
se à madeira como se fosse o corpo e alisava-a como se
conhecesse bem aquelas formas. Era sincera. Contrastava
com a inércia de Cecília e o péssimo teatro dos outros.
Uma emoção tão forte, capaz de arrancar mais lágrimas
que o morto.

29
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“Por quê? Por quê?” Arranhava o caixão com enormes


unhas vermelhas. Postiças. Uma das unhas ficara cravada
na madeira. Convulsionou até desequilibrar dos seus saltos
altos. Seria uma amante? Se fosse, Cecília a invejava. Um
homem serviu-lhe água. “Obrigada. Obrigada.” Trêmula,
retirou os óculos escuros e caminhou até a cabeceira
do caixão. Parecia ter medo de ver aquele rosto sem
vida. Parava, recolhia o resto de coragem e seguia. De
repente, parou. Parou tudo. Pasma, olhava para o morto,
como que procurando alguma coisa. Só então dirigiu o
olhar para os presentes. “Desculpem-me. Desculpem-me.
Errei de sala. Errei de sala.” Dizia isso e ,envergonhada,
caminhava para a porta. “Pensei que fosse... fosse...”
Desapareceu, gritando: “Lorenzo, Lorenzo”.
Depois que ela saiu, qualquer outra manifestação
pareceria uma mixórdia. Mas ao mesmo tempo crescera
a sensação de que algo tinha que acontecer. Aquele
silêncio denunciava um descaso acintoso pelo morto.
Deselegante. Aquela mulher estabelecera um novo
padrão. Tentaram acelerar a respiração para provocar
choro, espremiam os globos oculares, beliscavam-se,
abraçavam-se caricatos. Em instantes, um circo estava
montado.
Cecília ficou quieta. Muitos olhavam-na cobrando
sofrimento. Tinha problemas mais sérios como sabemos.
Concentrou-se neles. Soltou um longo suspiro. Que era
pouco, mas era o que tinha.

30
ÓPERA E OUTROS CONTOS

UMA HISTÓRIA QUE ALGUÉM ME CONTOU

Uma negra bêbada tropeçou para dentro do metrô.


Testou seus superpoderes, tentando se equilibrar com o
vagão em movimento. Parecia surfar no ar já contaminado
de seu bafo. Desafiava-nos com sua ousadia alcoólatra.
Todos. Tenho certeza de que todos torciam por sua queda.
Ela resistia e ria, zombando de nossas caras. Parecia-nos
impossível para uma mulher tão alcoolizada manter-
-se de pé. Era uma questão de honra: tinha que cair.
Iniciamos uma vibração silenciosa. Ela gargalhava. Uma
voz antipática e sonolenta anunciou a próxima estação.
A negra vitoriosa sentou-se. Conseguiu completar o
percurso de uma estação a outra sem ameaçar tocar o
chão. Esnobou. Nem nos olhou na cara. Mas começou
a falar. Alto. Amplificada. Não abria os olhos e soava por
todo o vagão. Decidiu nos comunicar tudo que pensava
do mundo. Suas opiniões, estado d’alma, mal-estar físico,
seu iminente vômito, os litros de cerveja, as marcas de
cerveja, os rótulos das cervejas. A negra tagarelava e se
calou apenas quando vomitou. Estabelecendo assim uma
trincheira-oceano. Migramos todos para o outro canto do
vagão, deixando-a só.
Uma poça fétida. Um minuto sem a sua voz. O que
parecia uma dádiva. Hospedou-se, por fim, na última
cadeira. Tudo levava a crer que iria dormir. Braços
cruzados, pernas esticadas, olhos fechados, cabeça

31
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inclinada. Aguardávamos o ronco. Esticávamos mesmo o


ouvido para checar se dormia ou não. Uma velhinha deu
dois passos para ver de perto, tapando o nariz.
“Eu não dormi.” Renasceu sonora e expulsou a velhinha
de volta a sua cadeira. “Sabia que minha mãe era negra e
a mãe dela e a mãe da mãe dela?” Só então percebi suas
tranças afro. Pareceu-me bonita. Duas oitavas abaixo,
cantou alguma coisa em yoruba. Disse que não sabia
a tradução. Disse que sua alma se perdia nas notas da
canção. Como um disco em rotação alterada, iniciou uma
narrativa. Tínhamos a impressão de que não conseguiria
a frase seguinte. Mas partiu confiante e mágica como os
bons contadores de histórias.
Era uma vez a África.
Negros que corriam protegidos pelo sol. Amavam-se
como negros e uns aos outros. Numa cidade do Atlântico,
seus antepassados se casaram.
Homem e mulher de grande beleza.
Bentos pelos orixás, tementes a cada movimento da
natureza. Da folha frágil que voava ao solo ao mais furioso
trovão.
Foram colhidos na noite de suas alegrias pelos
homens sem cor. Isentos de sol. Os que descobriram que
negro vale dinheiro. Ceifaram metade da aldeia. A mulher,
evidentemente parideira, queriam levá-la. Acorrentaram-
-na à noite. Na madrugada, transportariam fêmeas que
gestariam dividendos para seu capital. Astuto, o homem
invadiu o cativeiro. Libertou-a, mandando-a para a floresta.
Vestiu seus panos. Envolveu-se no disfarce. Foi em seu

32
ÓPERA E OUTROS CONTOS

lugar. A esposa quis segui-lo. Mas sua mãe amarrou-a à


África numa árvore espessa. Cimentou-lhe os pés com
cordas. Impediu que se atirasse no barco para ir junto. Ele
viajou envolto em seu cheiro.
Negros e negros eram semeados ao mar. Doentes,
fétidos, raquíticos, loucos. Alguns choravam tanto que
eles jogavam nas águas. Não aguentavam a insânia de
suas dores. Mulheres deram cria no meio do esterco e
dos cadáveres. Ele não largou seus panos. Desceu neste
país e guardou sua alegria para o dia em que conseguisse
voltar. Não sorriu desde então. Esperou pela alforria.
Sobreviveu anos sob outro sol e chibata. Sem sorrir.
Liberto pela nova lei, queria voltar. Ofereceu seus
préstimos para trabalhar num navio. Limparia, lavaria,
cozinharia, remaria. De pouco valem os braços de um velho
cansado. Navios e navios partiam e nenhum o aceitava.
Clandestino, atirou-se a uma embarcação. Ocultou-se, no
porão, comendo restos de lixo, enfrentou o Atlântico para
poder voltar a sorrir. Seus dentes nem estavam mais lá.
Mas ele sorria ao sentir na brisa um cheiro de África. O
canto dos pássaros, o céu, a cor da água, o sol. Quando,
ao longe, já se via terra, atirou-se ao mar. Tinha pressa.
Desembarcou junto com o dia na praia. Andou o litoral até
chegar a sua aldeia. Estava mudada, mais vazia, alguns
pescadores, alguns homens sem cor. Nenhum conhecido
a princípio.
A saudade baixou como um raio de tempestade:
poderia tirar a vida de um incauto. Perguntou por sua
mulher, por sua família, por seus amigos. Muitos foram

33
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levados para o outro lado do oceano. Mas a mãe


sobrevivera. Encravada numa cama no núcleo da África.
Num berço da selva, ungida pelos encantados, cantava
seus filhos perdidos e pedia para não sofrer mais.
Estava fraca do coração. Ele não sabia o que fazer. E
se ela morresse ao vê-lo? Mas foi ela quem veio até ele.
Pressentiu sua chegada. Arrumou-se contra a velhice.
Abraçou-o como uma raiz envolve a terra. Elogiou sua
força. Ele perguntou por sua mulher. A mãe calou num
suspiro, por onde vazou sua alegria.
“Ela fugiu para te encontrar. Entregou-se aos piratas.
Foi na tua direção e morreu no mar. Iemanjá me confirmou.
Iemanjá nanou essa filha. Desceu com ela para o fundo
do mar para fazer um carinho. Conduziu com um cafuné
até o outro lado.”
Foi até este ponto que ela conseguiu chegar. Agora
o ronco estrondoso enterrava-a no sono. Minha estação
se anunciava na voz antipática do metrô. A negra dormia.
Eu não poderia lhe agradecer. A velhinha recolheu as
lágrimas no rosto. O homem desapareceu para dentro
do seu casaco. Eu queria acordá-la para ouvir mais ou
para me redimir do meu comportamento anterior. Mas
havia algo extremamente justo naquele sono. Como um
troféu. Como um repouso. Como uma vitória. De alguém
que tem que cruzar um Atlântico todos os dias para aguar
seus mortos e entender quem é.
Desci.
Em algum lugar do outro lado do mar.

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

O COMUNICADO INTERNO

Ela nunca come carne.


Observou Alfredo, no refeitório da firma.
Salada, feijão, arroz, farinha, mas nunca carne.
Conhecia a disposição da comida no prato que
montava. O arroz fazia a cama esponjosa e alva, o feijão
derramava-se por sobre, a farinha disfarçava a mistura
lamacenta e a salada adornava, como uma moldura de
fortes cores, o prato. Poderia servi-la. Poderia guarnecer
o garfo ricamente e depositá-lo na boca mais vegetariana
e suculenta do mundo. Tanta carne para nenhuma
carne. Sabia todas as reentrâncias, dobras, pelinhos que
margeavam, sinais no canto como uma assinatura do
artista, sabia tudo, enfim, sobre aquela boca. Empenhava-
-se no estudo. Babava no seu almoço. E, como de costume,
mal comia.
Alfredo encontrava-se completamente enfeitiçado
pela Srta. Maria Rosa, funcionária do mesmo
departamento, mas alocada dez computadores à sua
frente. Próxima da máquina de ponto e do bebedouro.
Quantos contorcionismos para ver-lhe a face a cada
dia. Por entre metros e metros de papel, telas e telas de
monitores, homens de terno e office boys.
“Ecumênica! Unânime!”, implodiam os elogios e
galanteios dentro dele como azia. Há meses. Uma azia
alimentada pela incompetência em se aproximar. Alfredo

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nasceu para dentro. Seus vetores todos voltados para o


umbigo. Parecia até que os traços do seu rosto convergiam
para o nariz como se quisessem se enterrar nele mesmo.
Tímido. Uma ilha. Também, poderiam muito bem contratar
surdos-mudos para quase todos os cargos daquela sala.
Assina, carimba, registra, digita, copia, arquiva.
Mal se comunicavam naquele escritório. Eram tantos
pagamentos, cheques, transferências bancárias, números
de contas, cobranças, muita concentração era necessária.
Amava-a de um jeito que, se ela fosse estéril, ainda assim,
far-lhe-ia um filho.
E o tempo corria, frustrando-o. E se o amor for embora?
Cansar de tanta pasmaceira, e se for? Procurar um outro
contador que tenha atitude? Que faça por merecer toda
a beleza de Maria Rosa? E a destreza com que preenchia
os cheques e notificações de cobrança?
Decidiu pedi-la em casamento.
Sem demora. A alforria.
De si mesmo e do seu sentimento.
Dentro, guardado, ruminando, gestando, no núcleo, o
pedido. O amor no centro de um ninho. Que venha a lava.
Poria para fora. Liberto. Solto. Como seria o seu amor
agora que ele existiria? Seu amor posto para fora de si?

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

CI – COMUNICADO INTERNO
Nº 3432/1999

DE: Departamento de Contas a Pagar


PARA: Todos os Departamentos
REF.: Srta. Maria Rosa de Souza Peixoto

Comunicamos que estamos completamente


apaixonados pela referida funcionária e aproveitamos
a oportunidade para pedir sua mão em casamento.
Nós a amamos.

Alfredo Tavares
Supervisor Júnior
Depto. de Contas a Pagar

Lançou cópias por toda a empresa. Todos os gerentes,


supervisores, chefes de seção, contadores e até office
boys receberam.
E não é que eles se casaram?
E que ela era estéril?
E que ele fez-lhe um filho?
E que o amor sempre se impõe e quebra a casca?

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O PRIMEIRO CASAL

A madrugada varava o pulôver. Cortava


impiedosamente a carne de Alexandre. Quatro horas
da manhã e ele já estava esperando o ônibus para uma
jornada de três horas e meia. O mesmo tempo de um voo
Recife-São Paulo. Tinha lido no jornal. “Recife-São Paulo
em 6 vezes sem juros, em três horas e meia.”
O frio arrancava-lhe sangue dos lábios, que sugava,
matando a sede.
O pulôver parecia tão bom, era o melhor do seu
guarda-roupa. Engodo. Era apenas o mais vistoso. Bela
falsificação que resistia aos olhares incautos, mas não a
uma madrugada de frio como aquela.
Alexandre queria manter seu melhor aspecto.
Barbeou-se, lavou-se (mesmo no frio), colônia, anticaspa,
até escovou dentes. Coisa que detestava. Impressionou
naquelas três conduções que pegou. Mas impressionaria
apenas naqueles lugares. Tinha queixo de pobre.
Indiscutível aparência de quem precisa mais dos músculos
e de alguma crença cega para sobreviver.
Fez o que pôde. Sapato engraxado. Velho e engraxado.
Nada pior que sapato velho engraxado porque o faz
parecer mais velho. Ele tentou. A ocasião merecia.
Chegaria às sete e meia. Teria tempo de comprar
algumas frutas na barraca da esquina. Só abririam
para visitação às oito horas. Compraria as mexericas
de sempre, as maçãs e belo cacho de banana-nanica.
Levaria uma pera. Para comemorar o dia de hoje. Uma
pera embrulhada em papel azul-celeste. Fresca da feira.
Um carinho especial.
Tinha medo que repórteres estivessem na porta,
esperando-o. Não queria alarde, fotos, notícias nos
jornais; na firma, ninguém poderia saber. Fora advertido

38
ÓPERA E OUTROS CONTOS

de que tudo isso poderia acontecer. Não queria. Torcia


para que não viessem. De qualquer maneira, escondeu-
-se na esquina.
De tocaia. Espionando para ver se algum jornalista
chegava. Às oito, em ponto, abriram o portão. Cauteloso,
cobriu o rosto com um gorro de lã e foi.
Acelerou para não ser pego. Entrou na penitenciária.
Um guarda esperava-o com um sorriso no canto da
boca. Interrogou-o com as perguntas de sempre, mas,
desta vez, tinha uma gargalhada presa na garganta.
Constrangeu-o até onde pôde. Depois liberou.
Um outro guarda o escoltou prisão adentro. Este
parecia ter-lhe nojo. Mal encostava nele. Mal olhava. Era
econômico, lacônico, distante.
Entrou para revista. Um terceiro guarda fez com que
se despisse. Pediu para agachar. Ouviu as mastigadas do
guarda e levantou o olhar. Encontrou-lhe de pau para fora,
duro, envolto no papel azul-celeste com que embrulhara
a pera.
“Rápido e em silêncio.” Poderia morder-lhe o sexo pela
raiz, como ele fazia com a pera. Preferiu terminar tudo
em paz, para que não o expulsassem de lá. Fez o guarda
gozar. “Vai fazer igual no seu assassino, vai?” Alexandre
cuspiu tudo fora, seguido de um vômito que desabou nos
pés do oficial.
Saiu da revista com ruge na cara, maquiado com a
estampa do soco que levara.
Grades, grades, grades. Ouviu um eco nos corredores:
“noivinha, noivinha...”.
Outros guardas apareciam no caminho, quase todos
intimidadores. Um mostrou-lhe o pinto duro por sobre a
calça. Outro passou-lhe o porrete na bunda. Teve medo
de ser violado. Homens se masturbavam nas celas por
que passava.
Tudo isso porque, durante meses, lutou pelo direito de
visita íntima ao seu companheiro, Adolfo, e agora estava

39
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preparado para dormir ao lado dele.


Por alguns minutos, depois de cinco anos. Uma cama.
Na verdade, Adolfo, o prisioneiro, gostava de mulher.
Estava para casar com Rosinha. Um dia, um rapaz
dirigindo um Jeep, distraiu-se ao olhar para uma moça
em trajes mínimos, atropelando Adolfo e imobilizando-o
por um ano numa cama de hospital. Quando teve alta, a
noiva havia sumido, contraiu dívidas assustadoras e teve
os movimentos das pernas reduzidos.
Desesperou na busca de Rosinha, sua prometida.
Flagrou Rosinha com outro. Cravou-lhe o corpo de bala.
O dela. Poupara o macho, já desenvolvera a essa altura
uma simpatia pelo espécime. Na sua cabeça, a culpa era
sempre delas. Poupara até o motorista que o acidentou.
Corneado, falido, aleijado e assassino. Tudo por causa da
minissaia de uma putinha de bairro. Nunca mais pensou
em mulher. Tomou nojo. Decidiu cavar o paradeiro
da putinha que causara o acidente. Precisava vingar-
-se. Quebrou-lhe os ossos em várias partes para depois
engessá-la por inteiro até o sufocamento. Inscreveu no
gesso: “Aqui jaz a última puta da minha vida”.
Encontrou Alexandre num cemitério. Uma amiga de
Alexandre já o havia aconselhado a caçar homens nos
cemitérios. Sempre tem uns viúvos desconsolados. Pôs
os olhos em Adolfo, manco, com as rosas roxas, a arrumar
a lápide de sua falecida Rosinha. Trocaram duas palavras,
e a polícia dava voz de prisão. Alexandre seguiu-o até a
porta do camburão, até o julgamento, até a primeira visita,
até hoje.
Alexandre não encolheu em um dia sequer sua
medida. Esparramou seu desejo. Lambuzou na cara de
todos que amava. Cada domingo, cada Natal, Sexta-Feira
Santa. Adolfo foi esmagado por tanta atenção. Pediu para
tê-lo. Como os outros têm suas fêmeas.
“É uma pessoa boa, a gente pega carinho, se aninha.”
Repetia em voz alta na cela, no refeitório, para si mesmo,

40
ÓPERA E OUTROS CONTOS

para sua culpa. Na prisão, não havia outro assunto.


“Quando que a noiva vem?”
Alguns detentos pensaram em matar Adolfo. A direção
separou-o. Isolaram-no em outra ala. Comiam-se uns aos
outros nas jaulas, mas como aceitar a legitimação do afeto
de dois homens? Afinal, seria o primeiro casal de homens
a copular sob o teto do Sistema Penitenciário Brasileiro?
Seria. Num quarto a alguns metros, protegidos pela lei, no
mesmo local em que suas esposas os aliviavam.
Alexandre sentia que ralentavam ao máximo seu
encontro. Queriam intimidá-lo. Fazer com que cada
passo custasse muito caro. Tudo para que desistisse.
Desencorajá-lo. Aquele encontro às vistas de todos eram
núpcias aceitas socialmente. Mal sabiam que era também
uma lua de mel. Alexandre e Adolfo nunca haviam dormido
juntos. Será que Adolfo conseguiria? Tinha uma outra
prisão dentro dele. Nunca tinha dormido com um homem.
Os guardas, derrotados, chegavam ao quarto.
Alexandre dirigiu-se à porta como quem dá passos ao
altar. Parou na entrada e, ao som dos xingamentos dos
presos, jogou as frutas para trás, arremessando o buquê.
As frutas se espatifaram no chão e calaram a todos.
Alexandre recolhia a cauda do vestido. A porta se fechava.
Convidados ou não, todos presenciaram sua cerimônia
de casamento.
Fora do quarto, as libidos explodiam, dinamitavam,
corroíam de curiosidade presos e carcereiros. Lei e crime.
Fora e dentro das celas. Um perigo iminente pairava. Eles
sabiam que aquele não seria o primeiro e único casal
a transar dentro do presídio. A partir de agora muitos o
fariam. Dentro do quarto, não podemos entrar.
Aquele território pertence à intimidade da primeira
noite. Ao assassino e ao contínuo.
O que aconteceu lá dentro, não nos cabe contar.
Fica para ser respondido por cada um no silêncio que
se segue ao ponto final.

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NEGA SÔNIA

Nega Sônia nasceu preta.


Nasceu à noite.
Nasceu flamengo.
Nasceu num barraco no morro.
Nasceu no berço dos clichês afrodescendentes
brasileiros. Seu nome era Sônia, mas todos a chamavam
de Nega ou Nega Sônia. Viveu por anos a alegria de ser
negra, porque nasceu sem medo de ser preta também.
Seus pais não são como esse povo que vive falando para
o filho na barriga: “Olha, você vai ter que ser forte, viu?
Este mundo não é pros preto”. Não. Nasceu consciente e
sem fraqueza. Nasceu de ponta-cabeça erguida, escura,
reluzente, enlameada de vermelho denso, vermelho
tenso, espesso, quase preto. Nega Sônia veio para ser
mulher de raça. Foi ficando moleca arredondada, robusta,
com quatro anos já sambava com as irmãs mais velhas.
Parecia que Nega Sônia subia morro acima seu destino
cor de ébano tropical. Mas Nega Sônia, que nasceu preta,
foi ficando branca.
O que ninguém entendia eram aqueles pontinhos
brancos que foram crescendo, crescendo, crescendo. A
mãe achou que passava logo, mas não. Pano branco,
mancha de praia, coisa sem demora de ficar no corpo.
Cada pequena mancha branca derramava-se sobre o
corpo da menina como uma lava a tomar o corpo todo de
Nega. No aniversário de 15 anos, Nega pediu para usar
manga comprida com receio da retaliação dos amigos e
flertes. Os braços estavam tomados. Aí começou o medo
de Nega Sônia. E se ficar branca? A mãe chorou; o pai,
não. O médico não entendia por que o vitiligo era tão
forte em Nega. Caminhava com uma voracidade incrível,
tomando hemisfério norte e sul e, por fim, ameaçando-

42
ÓPERA E OUTROS CONTOS

-lhe o rosto. Nega Sônia tinha esperança de que o rosto


lhe fosse poupado. O rosto ao menos. O rosto preto
que aprendera a adornar com brincos de prata, batons
de bronze, tiaras coloridas, fivelas brancas. O rosto em
que estudou desde pequena a beleza da maturidade. A
Nega, que alimentou nos desenhos ao espelho o desejo
da fêmea, afundava num mar de pele traidora e pálida,
quase rosada, invadindo seu rosto.
E assim Nega Sônia, que nasceu preta, ficou branca
de vez.
E consumia-se de vergonha de sair de casa e
enfrentar os amigos. Mudou de bairro e foi para casa da
tia, por uns tempos, até ver se a cor voltava ou a alegria
voltava. Lá, todo mundo, menos a tia, a conheceu branca.
Tinha menos pudor em sair à rua, fazer amigos, escola,
o que fosse. Foi substituir a tia na casa da patroa dela.
Ficou uma semana como doméstica. Ficou o suficiente
para ouvir: “Que branca ajeitadinha, faz serviço que nem
as pretas da casa”.
O que doeu mais? Naquela hora, ser chamada
de branca. Doeu de macerar lágrimas de seus olhos.
Lágrimas que ela torcia que lavassem sua tinta clara.
Fugiu para o jardim para chorar escondida, mas quando
o jardineiro chegou junto, doeu de novo, mas da beleza
do que ele dizia.
“Quem rega as pranta sou eu. Guarde suas águas
para sua flor de formosura, que eu estou vendo as pétalas
dela de dentro de seus olhos.”
Tudo que aquele homem dizia era poesia para Nega.
Ele falava tão bonito que parecia outro idioma, que as
palavras mudavam de lugar, de sentido, de sexo. Como
se ela precisasse de um professor de português para
acompanhar sua fala. Começou a trabalhar na casa só
para ficar junto dele. O jardineiro.
“Você tem jardim demais dentro da alma, vou cuidar
dele, posso?”

43
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Nega, que nasceu preta e hoje é branca, ficou


translúcida de tanto amor.
Amor. Quem diria, hein, Nega Sônia? Branca, ficou
pálida, o sangue lhe fugiu.
“Mas ele não me conhece direito. Não sabe quem eu
sou por baixo dessa armadura de vitiligo. Não sabe que
nasci Nega Sônia. Mas se ele me amou branca...”
Pensava.
“Dá vontade de pintar um desenho de pássaro em
você, um desenho de sol, um desenho de um pedaço
bonito da natureza nessa sua brancura de pele.”
“...ele vai me amar como sou, ou como estou.”
E, de repente, Nega Sônia descobriu como ficar
mais linda noutro tom. Imprimiu outros adornos. Batom
vermelho, blusa mais escura, voltou a ser mulher. Sua
beleza superava a casca que a doença lhe trouxe.
Um dia, ele plantava um lírio com o testemunho
adocicado de Nega e disse:
“Quer virar um lírio meu?”
“Eu já sou.”
“Quer morar comigo? Casar? Comigo?”
Nega Sônia desmaiou. Acordou com o jardineiro
abanando-a com um copo-de-leite.
“Mas há coisa sobre meu passado...”
“Quem não errou? Quem?”
Beijou-a.
Na mesma semana, um recado chegou de casa.
O remédio que ela pedira esperava por ela no posto
médico. O remédio que a devolveria para Nega Sônia. O
tratamento iria começar. Tinha um noivo e agora teria a si
mesma de volta. A tia fez festa, a mãe mandou chamar.
Decidiu fazer uma surpresa. O jardineiro.
“Vou viajar, pedir a bênção de meus pais e volto para
tu conhecer a verdadeira Sônia.”
O jardineiro sofreu com a despedida, chorou e disse,
desta vez de um jeito bem simples: “Eu amo você. Volte”.

44
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Ela foi e tomou todas as doses possíveis do remédio.


Foi ficando negra, negra, negra. O rosto foi o primeiro lugar
de onde a peste branca fugiu. E o seu sorriso funcionava
melhor na moldura noturna. Nega Sônia brilhava era
assim. Desenterrou da gaveta os brincos de prata, os
batons de bronze, as fivelas. Os collants cor de gelo, tudo
que endeusava sua beleza africana. Nega Sônia voltava.
Inteira. Pronta. Disse: “Pai, mãe, agora que voltei a ser eu
mesma, vou buscar o amor”.
Foi. Desceu o morro. Rebolando muito. Fez-se uma
trilha sonora para seus movimentos. Escura, seu quadril
aumentava. Tudo impressão da Nega, mas e daí?
Nega Sônia que nasceu preta e ficou branca de
vitiligo, achou-se de novo na cor de origem.
Agora, o jardineiro.
“Cheguei.”
O jardineiro saltou para um beijo em Nega, mas...
“Quem te queimou?”
Nega Sônia explicou tudo, e ele chorou.
Ela tentou um agrado, mas ele deu-lhe um safanão
que arrancou o brinco de prata e disse, desta vez de um
jeito bem simples: “Você me enganou. Pintou-se de branca
para me seduzir. Quer macho idiota, fique com sua raça.
Eu não gosto de sua cor”.
Machucou o jardim da patroa inteiro quando saiu
correndo assustado consigo mesmo.
Nega Sônia empalideceu (mas não tanto) e, quando
ia chorar, olhou-se no espelho-d’água da fonte. Viu Nega
Sônia de volta.
As lágrimas, que já contornavam os cílios, voltaram
para dentro para aguar a flor de formosura que tinha nela.
Tinha muito jardim dentro da alma.
Levantou-se, catou uns lírios para combinar com o
rosto devolvido.
E saiu à procura de um morro para subir rebolando,
rebolando muito.

45
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VIRGEM

O Rio de Janeiro e seus vapores.


O Catete, o buraco mais quente do mundo.
Todos estavam a um grau de perder o juízo.
O verão e seus artigos de luxo: sombras de árvores,
lojas com ar-condicionado, leques feitos de jornal, cubos
e cubos de gelo.
Marcos tinha vindo ao Rio para descobrir o sexo. Na
cidade onde morava, quase divisa com Minas, o prazer
ainda não tinha chegado. Lugar atrasado.
Planejou a viagem com cautela. Reservou um
quartinho num hotel mal-ajambrado, mas vizinho à loja
que queria visitar.
Mal chegou, jogou malas pelo quarto e saiu rápido às
compras.
A carne tem suas urgências.
Marcos entrou na loja e ordenou: “Por favor, modelo
GE 23”.
A atendente trouxe o pacote. Pagou-lhe o devido,
tremendo. Tinha o dinheiro embrulhado, amassado num
bolo de notas miúdas e gastas.
Corria pelas ruas do Rio, excitado. Parecia que o chão
lhe queimava os pés.
Saltava, ameaçando um voo.
Fechou a porta do quarto, empurrou cadeiras contra
o tranco, pôs camisa para tapar o buraco da fechadura.
Queria total privacidade.
Aumentou o volume do rádio para não ouvir seu
coração batendo.
Despiu-se dirigindo olhares tímidos, mas sensuais,
para o pacote. Engatinhavam assim seus primeiros
passos da sedução.
Rasgou o embrulho com os dentes — ouviu dizer que

46
ÓPERA E OUTROS CONTOS

este tipo de coisa era sexy.


Gritava de vez em quando, estridente, licencioso uivo.
Seus vapores aqueciam o Rio ainda mais. Sua
pequena contribuição ao clima local. Cuspiu o último
pedaço de papel e começou a lamber, já completamente
desfigurado, o vibrador de veias salientes.
A esta altura já era outra pessoa.
Outra pessoa, mas estava só.
E pôs as pilhas novas com a cumplicidade picante de
quem põe a camisinha no ser amado. Ligou o vibrador
e segurou-o com força até chacoalharem na mesma
intensidade.
Depois desceu lentamente, ganhando intimidade
entre o falo de plástico e seu reto.
Movia-se, desconcertado e eufórico, como o passista
em destaque no carro abre-alas do Carnaval.
Porque era época de Carnaval.
Ah, sim. A música, na rádio, dizia algo assim:
“Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós...”.

47
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AMANHECIDO

Eu retornei à rodoviária com menos tralha do que


quando cheguei.
Eu arribei aqui com para mais de vinte embrulho e
sacola, mas hoje eu voltava mais vazia de coisas.
É que, quando eu vim, eu trouxe o mundo.
Trouxe até pedaço de terra do sertão onde nasci para
cá. Caso eu caísse enferma/sentisse muito aperto de
saudade, eu abria o saquinho e cheirava minha terra.
Eu guardo até hoje.
E adubo com um pranto ou outro para sentir o perfume
da terra molhada.
Mas, para voltar, eu levava bem menos do que eu
trouxe.
É que, quando eu vim, eu trouxe uma casa mobiliada
dentro das malas.
Casa para mim e para meu marido.
Meu marido que se perdeu nesta cidade tentando um
emprego e dinheiro que pudesse sustentar nós dois lá
onde nascemos.
Ele veio num ano, e dois anos depois eu vim atrás
dele. Mas ele se perdeu de mim.
Eu não achei. Quando eu baixei no endereço da última
carta que ele me mandou, ninguém sabia dele por lá. E eu
a procurar por ele e nada.
Mãe dizia que ele me largou ou Deus me tirou.
Eu fiquei me perguntando por dez anos, olhando em
cada construção de obra, em cada guarita de prédio, em
cada motorista de ônibus.
Meus dias livres eram dias para achar meu marido
nesse mar de gente desterrada.
O fato é que eu não achei.
Achei então que o melhor era voltar.
Cansei, sabe?

48
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Cansei, mas só um pouco.


Porque quem sabe ele não foi para o sertão e lá está a
me caçar de sítio em sítio, de cerca em cerca e de açude
em açude.
Todo na esperança de me ver.
Achei por bem voltar até que...
Até que, do alto-falante da rodoviária, meu marido
ressuscitou para mim.
A mulher falou bem assim: “Senhor Amanhecido de
Souza Pereira, por favor, comparecer ao guichê 23 da
Estação Borborema”.
Era o nome dele. Não tinha dúvida. Com um nome
desses, como ter dúvidas? Era ele.
Amanhecido. A mãe pôs esse nome porque ele
demorou uma madrugada inteira para se decidir nascer.
Romper o dia, ele desabou junto do ventre dela.
Eu fiquei a ponto do desmaio, mas não desmaiei
porque eu tinha que pôr perna a serviço de chegar logo
naquele guichê. Olhe, eu subi feito uma cabrita fugindo do
abate. Saltei por cima de tanta da gente.
A fila era imensa e eu olhava cada homem na fila,
buscando Amanhecido. Ele não estava. Eu implorei para
a moça para ela me atender logo, mas eu tive que esperar
a fila andar direitinho.
Nessas horas, o povo daqui é lento. Demorou e eu na
espera de Amanhecido. Aqui ele não veio, eu não cacei o
perfume dele na atmosfera aqui presente. Eu carregava
a camisa dele para me lembrar do amor e me ajudar na
busca. Que nem aqueles cão de polícia faz.
Ele deve estar vindo para a fila. Eu aprumei o cabelo.
Me pus bela.
Menino, dez anos depois, eu e Amanhecido.
Quando chegou minha vez, ela disse.
“Ele não compareceu ainda, senhora.” Parecia Deus
dizendo: “vá embora”.
“E cadê ele?”

49
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“Vá até o portão de embarque, talvez ele esteja lá. Ele


esqueceu este saco, devolva a seu marido.”
Era Deus mudando de ideia, ele estava aqui.
Eu voei com aquele saco plástico na mão.
Parecia uma sem juízo naquela rodoviária.
“Amanhecido, Amanhecido”, e o povo a me olhar.
No tal do portão, o povo estava todo dentro do ônibus.
“Moça, aqui não dá para entrar. Cadê seu bilhete?”
“É que meu marido está aí dentro, eu preciso entregar
esse pacote para ele.”
O motorista entrou e chamou.
Eu doida para pular para dentro daquela porta.
“Tem algum Amanhecido aqui dentro?”
Voltou e disse que não tinha.
“Espere aqui no cantinho, dona. Não chegaram todos
os passageiros.”
Eu esperei.
Já tinha me acostumado a esperar.
Dentro do saco, só uma garrafa de água e um
sanduíche de queijo. Encostei o focinho para tentar achar
uma pegada dele ali, mas nada.
Será que ele mudou o perfume?
Será que seria outro Amanhecido?
Será que ele desistiu de viajar?
O ônibus ligou o motor, e eu olhando para o alto-
falante para ouvir uma pista de Deus.
Chegou um moço, duas senhoras e uma criança e,
por fim, um casal.
Um casal.
Será que ele desistiu e ficou para procurar eu?
Minha amiga me disse que ele estava no ônibus, me
reconheceu e se calou.
Eu não acredito.
Eu confiei.
Já tinha me acostumado a confiar.
A mulher tinha dito bem assim: “Senhor Amanhecido

50
ÓPERA E OUTROS CONTOS

de Souza Pereira, por favor, comparecer ao guichê 23 da


Estação Borborema”.
Era o nome dele. Parecia Deus dizendo: “Fique. Vá
não”.
Ele ainda está perdido nesta cidade-mundo. Ele ainda.
Eu e ele ainda. Eu fiquei ali com minha passagem na mão
e considerando.
Um pé no sertão, outro no asfalto.
Eu fiquei entre, sabe?
Rezei um pouco para saber para onde ir e me ajoelhei
na direção de um alto-falante.

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DUAS CRIANÇAS

A esposa deveria estar sorrindo. Pensava o marido.


Esta não era apenas mais uma visita de rotina ao orfanato.
Não, desta vez eles tinham avançado muito em direção
ao filho. Tinham investido noites e lágrimas neste sonho.
Ela é uma mulher loira por volta dos trinta; ele, um
homem negro, mesma faixa. Já tinham passado por
delicadas situações em função da diferença marcada
nas peles. Mas o que os atormentava era ser apontado na
rua como o casal que não consegue engravidar. A mulher
perdeu dois bebês. Mas a criança sempre foi um desejo,
um projeto, uma caderneta da poupança, um quarto
amontoado de livros e caixas, um porta-retrato vazio, um
fantasma com muitos nomes e nenhum passado. Os pais
os apoiaram quando anunciaram a adoção. Sede de
netos. Urgência em amassar alguma semente em suas
mãos, pensar que algo ficaria, alguém sustentando seu
álbum de família e seu sobrenome.
Não é fácil emprestar um filhote largado por fêmea
desconhecida. Neste caso, trazido ainda úmido em
placenta regurgitada e negada. Um filhote que não teve a
teta é mais arisco? Do ventre ao abismo do abandono. Era
preciso muito afeto para anular o efeito destruidor de uma
teta que lhe foi negada. Mas eles se sentiam preparados.
Pelo menos assim pensou o marido.
Mas o marido assiste intrigado o silêncio envolver sua
esposa como erva daninha, costurando-lhe os lábios.
Cobrindo-lhe o corpo, a euforia, o sorriso e o pior: o olhar.
Ela escondia o olhar dele. Isto era o que realmente o
preocupava.
O menino tinha sido escolhido há meses. Idas e
vindas. Papéis de todas as cores. Finais de semana no
orfanato em festas e aniversários e febres ocasionais.

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

Psicólogas e oficiais de justiça. Dinheiro de advogado.


Muitos toques na pele do garoto. Para ir deixando algum
perfume e colecionar seu suor, sua temperatura, seus
medos, seus ossos e curvas. O marido precisa descobrir
por que a mulher escureceu assim.
Ele exige alegria e transparência. Ela tenta saídas.
Seria a proximidade da chegada da criança? Desvão
de mãe antes do parto. Dores de parto que ela não terá.
Nervosismo de não se saber experiente para cuidar de
uma criança. E muitas outras desculpas saíram de sua
boca sem que se desse conta de que exagerara na lista
de causas para seu inesperado mau humor. E tudo em
cinco minutos. Cinco minutos esparramando palavras
encontraram seu final em um lamaçal. Musgo e ranho
e vergonha. Encharcou o vestido. Ele não era represa
para tamanha desmedida. Deixou. Depois, com um lenço
que retirou do bolso, educou-lhe os olhos da esposa o
caminho até os seus olhos. Eles aprenderam. E ela disse
então: “Eu me encantei por outra criança”.
Tudo aconteceu tão repentinamente. Nas duas últimas
semanas, a outra criança lhe sorria, e ela não conseguia
esquecê-la um minuto sequer. Algum estranho laço se
formava. Ela se aproximou, perguntou nome, idade, deu
colo e recebeu braços como um colar que acordavam seu
pescoço para uma sensação inédita de afeto. A criança
pedia-lhe beijos como quem pede hóstias, algodão-doce
e misericórdia. Atravessava-lhe a noite inteira o rosto dela
quando se despediu. Não pensava mais no outro menino,
só naquela nova criança. Estava feliz, mas tinha pavor de
estraçalhar o outro menino. Como fingir se não era mais a
ele que amava como filho? E ver que o marido estava tão
apegado ao garoto a cada visita.
O marido.
Por que ela não falou antes disso? Após todo um
circo de berços e assinaturas, como mudar? O marido tão
surpreso como numa revelação de gravidez. O que dizer

53
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à outra criança? O que dizer aos funcionários? Dar uma


impressão de insegurança aos oficiais de adoção? E ele?
O que ele sente pelo primeiro filho? Sim, ele aprendeu o
menino. Aprendeu a pensar sua vida com ele.
O marido, ainda tonto, diz que eles não podem ter
duas crianças agora, nem seria possível legalmente, mas,
no futuro, quem sabe? Ela finge se conformar. Sabe que
não jogou como todos esperavam. Quem sabe depois
deste não se crie espaço para o próximo? Ela destroçou o
lenço de papel no que restou de seu rosto. Parecia outra.
Era outra.
Ele, curioso, quer saber qual é a criança. Ela não
quer continuar a discussão. Ele avança. Ela não diz
claramente, mas acaba descrevendo o menino. O marido
faz conexões rápidas, recupera imagens dela com um
garoto. Ele diz saber quem é. O menino pelo qual ela
se diz tão encantada é um menino loiro. Ele sabe bem
porque só dois ou três são loiros no berçário, embarcação
negreira. Ele interrompe o tempo. O espanto frequenta o
espelho à sua frente. A criança que estava sendo trazida
para o lar deles era uma criança negra.
“Por que o loiro?”
Ela é fisgada pela pergunta. Percebe que ele rachou
em algum lugar. Está estudando erupções e fermentando
bílis. Já tinham passado por isso antes. A diferença. Mas
essa dor tinha sido devastada após os abortos. Ela diz que
é apenas afeto e nada além disso.
Tarde demais. O marido já duvida. Samba nos
cômodos da casa, não sabe onde ficar, onde pertence,
onde sobra. Arde. Talvez a nova criança, o loiro, seja um
aviso. Um alerta tardio, mas ao qual se deve agradecer.
Eis que alguém abre a porta aos demônios, e um
mamute caminha por sua casa sem a menor cerimônia,
derrubando portas e móveis. Ela tenta salvar o marido,
exorcizá-lo, recuperar alguma temperança, e nada. A fera
visita-o. Há uma urgência de raiva passeando em sua

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ÓPERA E OUTROS CONTOS

boca. Um sangramento. Ele precisa machucar.


“Minha mãe dizia que mulheres não sustentam no
ventre filhos que não querem.”
Ela alcança-lhe o rosto com a mão em riste. Ele
assume o sangue em ebulição sem tentar minimizar
seu efeito. Aceita-o. Então disparam, vomitam, arrotam,
estraçalham, atiram. As palavras não conseguem chegar
ao ouvido um do outro porque se colidem no meio do
caminho. São tiros de gente ferida e assustada quando
se aproximam da verdade. A verdade estava cochilando
esse tempo todo e agora fere. O casamento já não é mais
o mesmo casamento que antes do aborto.
Ele decide que só deixará suas mãos ao redor do
pescoço dela quando a matar. Mas não o faz. Liberta-a.
No chão, ela pede silêncio. Eles tentam. Deixam que o
silêncio fique à vontade entre seus corpos exaustos como
um terceiro elemento da relação. Mas de pouco adianta.
Ele não consegue mais adormecer a sombra. Não
esperava que ele lhe dissesse algo tão cruel assim. Ele
não esperava que ela lhe dissesse algo tão cruel assim.
Ele marcha mundo afora. Bate a porta sem que
saibamos se é para sempre ou não.
Sozinha, ela marcha para o quarto da criança. E
confessa. Baixinho, porque tem nojo de si. Mas confessa.
Ama mais a criança loira. Quer que aquele seja seu quarto.
Quer ninar. Quer seus cachos loiros em suas mãos. Seria
um monstro? Seria menos mãe?
A campainha. O funcionário do serviço de adoção
entra, mas ainda sem o menino. Quer trazê-lo para
o primeiro final de semana assistido. O teste. Mas o
funcionário percebe que ela está só e tentando camuflar
a queda que o casal sofreu há poucos minutos. O
funcionário pergunta se pode subir com a criança.
Ela pede para contar um sonho que teve ontem.
O funcionário não entende, mas não lhe é permitido
escolher. Ela começa.

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“Eu sonhei ontem. Ou tive um pesadelo. Talvez seja


melhor chamar de pesadelo. Eu ia ao berço de meu filho.
Mas não havia colchão, havia terra. Terra morna, cheirosa
e úmida. Meu filho não estava lá, e eu desesperava, golfava
e grunhia. De repente, um choro acorrentado. Onde? Um
choro mofado dentro da terra. Reagi com a rapidez das
mães em situações como essa. Eu metia as mãos na terra
e encontrei... um crânio. Uma pequena caveira enterrada
nesse berço. Uma caveira de criança. Mas uma caveira
de cor negra.”

56
ÓPERA E OUTROS CONTOS

LUZ

Luz tinha uns 80 anos.


Luz largava-se nos pilares da estação que lhe
emprestara o nome. Puta de fama. Teve tantos clientes
quantos passageiros tiveram os trens.
O rosto esticado, quase duplicado em sua extensão
epidérmica, fazia-lhe gastar o dobro em maquiagem. A
carne cede com o tempo, e Luz não dispensava nem um
centímetro de seu rosto sem pó.
A saia mínima não cobria a anágua.
A anágua não cobria as varizes.
Por que puta tão velha?
Por que velha tão puta?
Há quem não se lembre da própria avó ao penetrá-la?
Se bem que os homens sempre se esquecem das
mulheres da família quando se esfregam com putas. É
para isso que elas existem. Esquecer-se das mulheres da
família.
Juntou dinheiro. Muito, em anos de profissão. Queria
ter um futuro seguro. Casa, poupança, plano de saúde.
Vivia bem num sobrado discreto no Jardim Irene.
Luz só não conseguia mais sentir prazer. Nem quando
se tocava.
Se havia uma parte dela que conhecia bem era
aquela. Nada, nem um frêmito, um suspiro, cócegas,
nada. Seu clitóris paralítico. Se lhe enfiassem uma agulha,
inerte ficaria.
Aí, neste momento, envelhecer ficou difícil.
Por isso, hoje ela paga para que transem com ela.
Fica na porta da estação, oferecendo quantia razoável.
Àquele que conseguir levá-la ao clímax, parte da fortuna
que levantou na lida.
Hoje Luz é puta por cima da carne seca. A puta que

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escolhe.
Como se um artista recrutasse seu público à porta do
teatro, pagando-lhe para que assistisse à peça. A notícia
correu mundo. Rápido.
Uns chegam a Luz: “Você é a puta velha que paga a
quem lhe der uma gozada?”.
No primeiro mês, Luz transou mais que todas as
mocinhas. Tudo que é tamanho, cor, sotaque, posição.
Com o tempo, Luz já dispensava todos que não
ameaçavam um orgasmo.
Na verdade, está sempre escrito na cara.
Ficava a dúvida: e se, em lugar de sexo, esse novo
homem lhe trouxer o amor?
Com o tempo, Luz aumentou a recompensa.
Dobrou, triplicou, quadruplicou. E veio o medo de
morrer sem lograr êxito clitoridiano.
Gritava sob o sol de dezembro quente: “Não tem mais
homem nesta cidade. Eu não posso morrer sem homem.
Eu só quero uma foda. A última!”.
Luz completa hoje 85 anos.
Luz só quer uma foda.
Uma única.
Que a lembre das boas metidas do passado.
Uma única para fazê-la lembrar do prazer que lhe
norteou a existência.
Gozar para lembrar sobre o que construiu sua vida.
E talvez, depois, acender um cigarro e morrer em paz.

58
ÓPERA E OUTROS CONTOS

MEDEA
OU
HÁ UM PRESÍDIO FEMININO NA CIDADE DE SÃO PAULO
CONSTRUÍDO ÀS MARGENS DE UM RIO MORTO.
NESTE CONVENTO NEGRO, HÁ UMA ALA DE DETENTAS
MANTIDAS ISOLADAS DAS OUTRAS MULHERES ALI
PRESAS. ESSA QUASE DEZENA DE CRIMINOSAS
MATOU SEUS PRÓPRIOS FILHOS.
NA MAIORIA DOS CASOS, DECLARAM QUE O FIZERAM
PELOS SEUS MARIDOS, AMANTES, MACHOS.
SE FOSSEM ENJAULADAS COM AS OUTRAS
MULHERES, SERIAM EXECUTADAS NA PRIMEIRA
NOITE. DIZEM QUE, NESSA ALA DE MÃES ASSASSINAS,
O PEITO PRANTEIA COLOSTRO ESPESSO E AMARGO E
OS GRITOS REVERBERAM EM SEUS VENTRES COMO
TAMBORES ANCESTRAIS. DIZEM QUE A MULHER
VIRGEM QUE ALI ENTRAR FICARÁ ESTÉRIL.
DIZEM QUE A DOR ESTAMPADA EM SEUS ROSTOS
PODE NOS CEGAR.

Neste lugar, só as mulheres que devolveram aos céus


o que eles nos mandaram de graça.
O amor e o ódio.
Na noite do bote, encostei lábios de crianças em meu
peito e alimentei.
Alimentei enquanto sufocava-as com minhas garras
doídas de fêmea feia, suja, nordestina, abandonada.
Meus filhos me puseram aqui quando eu arranquei
num grito a voz do pai deles.
Mudo, não fará promessas a fêmea nenhuma.
Quando eu fatiei sua carne em lâminas cruas da
minha vingança.
E ofereci sangue à terra, cavando, com as patas, um
ventre no chão batido do meu barraco.

59
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E me cortei.
Derramei meus filhos para dentro da terra.
Nossa jaula é separada das outras mulheres. A morte
que trazemos em nosso rosto, nenhuma delas suporta
ver. Se nos misturam, elas nos matam. Nossa guerra
começou na cama. Nós matamos com o coração em
chamas na mão. Nós arrancamos lascas de dor de nós
mesmas para vingarmo-nos do Deus Amor.
Deus Amor que soprou a nuvem de veneno que me
conduziu às rochas.
Amor? Tua mão dilacerante e inclemente não me
alcança mais.
Meu leite é um leite morto. Nenhuma vida encontra
alimento em meu seio. Só sei fazer uma água infértil que
nem a sede mata.
Eu nunca mais terei uma prole.
Não há maternidade possível depois deste câncer.
Nosso cárcere é a noite sem fim do nosso luto por nós
mesmas imposto.
Essas que urram foram mães e amantes, estão aqui
porque não são mais mães nem amantes.
Guardei sob o manto de minha condenação os gritos
de horror de meu homem.
Eu liberto sua voz destroçada para me fortalecer.
Quando eu apertei o seu coração com a imagem da
cria sacrificada.
Quero essa dor. Quero que ele sinta essa dor. Essa!
Sou a fera cujo veneno mata a si mesma.
Eu me mordo e faço inimigo sangrar.
Eu não fiz o que queriam, eu desobedeci.
Sou a invertida, a errada.
Traí o modelo que fizeram de mim.
Tirei meu coração, o pus do avesso e o devolvi para
dentro do meu peito.
E ele ainda bate.
Esta sou eu. Me chamam Medea.

60
ÓPERA E OUTROS CONTOS

No sertão da minha infância, as cabras baliam meu


nome.
Baliam meu destino no eco duro da seca.
O deserto ensinando a dor eterna da terra.
A terra balindo meu nome, nome de tragédia.
Esta sou eu. Me chamam Medea.
Sempre fui muito feia para os afetos.
Minha mãe desconfiou das promessas daquele
homem que me tirou à força dos braços dela.
Eu vim de longe, onde voz tem outra cor.
Ele mudou minha fala, meu cabelo, quis mudar meu
nome.
Tinha vergonha.
Ele me fez abandonar meu trono agreste, a matriarca,
a soberana.
Na fuga, deixei cair a coroa.
Deixei enterrar a matriarca, a grande mãe, chegou o
tempo do homem.
Nunca mais o terço na noite do padroeiro.
Nunca mais o caboclo meu rei no despacho da mata.
Nunca mais as visagens dos mortos.
Ele arrancou-me do norte e me jogou num barraco da
favela.
Me fez traficar pó e ouro em meu rabo. Me alimentou
de erva.
Eu fui depósito de tudo que ele me pediu.
Eu caguei uma fortuna de fumo para meu macho.
Ele me cuspiu o beijo de outra fêmea na cara.
Esfregou seu sexo grande dentro dela e de mim.
Eu senti o cheiro dela no sexo dele!
Ele a pôs prenha.
Buchuda de sua ninhada.
Ele deixou-me o barraco e os filhos com fome para
casar-se com aquela puta carioca.
E nos muros do meu barraco escreveram: “Vá embora,
nordestina!”.

61
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Eu taquei fogo na cauda do vestido de noiva.


Pus fogo na puta carioca do meu marido.
E, enquanto o fogo apagava ela com sua fome, eu
gritava: “Fui eu que caguei fumo para ele durante anos”.
Durante anos, parindo fumo e filhos. Por ele. Fumo e
filhos.
Eu volto. Volto cavando um túnel até minha terra.
Fujo rastejando uma fuga deste claustro com fedor
de fêmea. Com as unhas, cavo um atalho até meu açude
seco.
Volto para minha herança índia, para o velório infindo
de meu pai, que matei de desgosto.
“Morra, velho feiticeiro. Meu homem veio me libertar.”
Volto para o corpo deste pai exposto aos urubus,
derramado nos braço do mandacaru.
Com os jornais do sul, que escreveram o sobrenome
paraibano de meu sangue nas páginas policiais. Meu pai
morreu ao ler seu nome. A única palavra que sabia ler.
Seu nome.
Morreu rasgando o jornal com o coração murcho. O
coração dele diminuiu.
Assim minha gente geme meu erro. Todos os dias.
Querem ser lembrados dos meus passos traiçoeiros.
Cospem na casa em que vivi, cospem nas minhas
pegadas, cospem em quem diz meu nome.
Volto para a mandinga cabocla, para a umbanda
escura, para a bruxa sertaneja que eu era.
Sou vergonha, sou antônimo, meu nome faz sombra.
Minha família foi escorraçada, rota, currada.
Medea é o nome das crianças mortas.
Esta cidade seca, eu afundei com meu nome.
Com meu amor. Amor? Tua mão dilacerante não me
alcança mais. Enquanto eu caminhava até meus filhos,
os animais saíam do meu caminho. Cães, pássaros, bois,
todos sabiam o tamanho da vingança que eu carregava
comigo. Respeitaram o vento gélido que me empurrava

62
ÓPERA E OUTROS CONTOS

até lá. Viam que minha sombra trazia outros exércitos. Só


um exército para me dar tanta força. Eu estava montada
na minha certeza. Eu arrancava meus cabelos e construía
uma rédea para domar a besta que cavalgava. Eu e
minhas fúrias.
Meus filhos.
Eles estavam ali, aninhados na sua ignorância.
No berço deles, que seria sepultura, no sono que em
breve seria eterno, e acordaram com o ranger de meus
dentes, com o relinchar do meu peito, com os gemidos
abafados de meu pranto. Pranto que evaporava rápido ao
encontrar meu rosto febril.
Eles olharam doces, como quem sabe que era
uma despedida. Uma flor saiu de suas bocas e eles me
entregaram. E ainda assim eu os sufoquei. Com mãos
de abutre, sangrando lágrimas, eu expulsei todo o ar de
seus pulmões, desisti seus corações, espremi a sua seiva.
Deixei-os flácidos como postas de carne abatida. Frutos
ressecados quando a ave sugou-lhe a essência. Eram
livros de páginas em branco... em vermelho... vazias. Se
pudesse os enterraria em meu ventre. E foi assim que
eu os pari para dentro da terra. E foi assim que, viva,
presenciei o dia de minha própria morte. Foi assim, viva,
que eu morri.
Eu rastreio no faro os ossos de minhas vítimas.
Cavo até alcançar a cova deles.
Cavo até perder as unhas e as garras.
Cavo até esquecer a voz daquele homem, rastejando
pele adentro pelo meu corpo.
Tirem este homem da minha carne!
Vou caminhar pelos túneis da Terra e procurar o que
restou de mim.
Que a Terra me engula, me trague, me aceite.
Mãe, me aceita de volta, de volta. Mãe! Foi quando a
terra me sussurrou algo. Rompeu do chão uma boca de
concreto imensa e lançou suavemente: “Perdão”.

63
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JOÃO E ROSALINDA

Ela apagava o brilho dos seus olhos escuros


lentamente. Uma negra linda que acabara de receber sua
carta de alforria. Nem bem completou um mês que ela
podia respirar com o peito livre, com direito a todo o ar do
mundo. Finalmente, com direito a todo ar do mundo. E o
mundo lhe escapava aos poucos.
Rosalinda era o nome dessa mulher que me
emprestava um pouco de sua alegria liberta. Eu era um
escravo não alforriado que prestava serviço para o dono
da pensão onde Rosalinda vivia e trabalhava. Ela sabia
que eu era das esfregações com os moços. Gostava das
partes do homem. Era menina escondida por trás do
corpo seco de mestiço.
Rosalinda recebia homens. Era mulher de empréstimos
da carne. Serviço dos gozos. Meninotes de engenho,
rapazes das famílias, sinhás, senhores de bigode branco.
Homens e artigos afins.
E Rosalinda me contava tudo.
E eu, que nunca com homem, sonhava um quando
de mulher pelo prazer de Rosalinda.
“Você é sequinho. Tem ancas e rebolado. Vai usar
este quadril e fazer homem branco sorrir muito.”
Mas Rosalinda decidiu se apaixonar.
E não foi decisão muito sábia. Nem falo da cor do
mancebo, distinta da sua, mas de seu afeto preso distante
da vista humana. Foi Rosalinda benquerer gente que não
nasceu com vocação para essa arte. Dividir e partilhar.
Um homem que se perdia no horizonte e carregava o
coração dela.
E, sem o coração, ela amofinou.
“Diga a todos que morri de amor. É bonito.”
Ela apagava o brilho dos seus olhos escuros

64
ÓPERA E OUTROS CONTOS

lentamente e eu teria que enterrar minha amiga.


Mas onde? Com que dinheiro?
Cavei um buraco no quintal da pensão.
Rezei tudo que nunca rezei em vida e não quis pensar
no mundo sem a alegria da negra liberta.
Só quando eu arrumei seu quarto, fui no embalo de
um choro. Foi saudade saindo dos poros. Foi soluço de
não conseguir dizer nem o nome dela. Foi dor presente
por algo que falta. Dor que vinha preencher o quarto.
E, quando eu parei de não respirar, eu me vi enxugando
o rosto em seu vestido. Vestido com cheiro dos homens
de Rosalinda.
Eu fiz Rosalinda viver de novo.
Pus sua roupa e aceitei meus quadris, minha cintura,
minhas coxas fêmeas.
Era justo como eu sonhava.
Pus pó no rosto, lenço no cabelo, brinco e salto.
Eu pus Rosalinda em contato com minha pele. E ela
respondia. Ela sorria na minha boca. Ela abriu a porta do
espelho e me abraçou o corpo inteiro.
Me deu um abraço bem justo na minha pele.
O perfume.
O perfume misturava com o meu.
A vontade era gritar para os homens na rua: “Ela
voltou”.
Mas, era verdade, ela voltou.
Ela pode ter terminado naquele quintal, mas eu
começava nela.
O primeiro passo calçado em seu salto era um
batismo.
Eu podia.
Eu cacei a carta de alforria.
Eu podia receber quem eu quisesse naquele quarto
de pensão.
Eu podia seguir carreira.
Me deu uma coisa de asas nas ideias.

65
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Eu nunca tinha sentido essas coisas de poder decidir


coisas, mas com aquela carta...
Eu vi um moço entrar na pensão dissimulando que
buscava a moça que se prostituía.
Recebi-o com minhas condições.
Só fazia aquelas coisas com as partes de trás porque
dava mais prazer, porque não podia pegar filho, porque
queria e ele não iria se arrepender se assim fosse.
Usei boca e mão como Rosalinda ensinava e bastou.
Não podia deixar que ninguém tocasse minha carne
mais masculina.
Ele nem se importou, só queria meu cheiro vibrando
em suas narinas. Só de me ter, beijando seu sexo, o
homem se entregou.
Depois desse primeiro, pensei: “Por que não outros?”.
Não senti tanta dor de largar minha pele. Senti mais
dor quando larguei Rosalinda.
Deitava as roupas de Rosalinda na cama e falava com
ela.
“Eu volto logo, assim que escurecer.”
Desci e avisei a todos que ela estava adoentada, mas
continuaria atendendo mais à noite.
Segui para meus afazeres de funcionário na
hospedaria...
Decidi seguir assim... eu e Rosalinda...
Homem preso à luz do sol, negra liberta com a bênção
da lua...

66
ÓPERA E OUTROS CONTOS

SEM SANGUE

De todos os presentes ao redor do caixão do pai, ela


era a única que não chorava.
Viúva, tios, avó e inclusive os filhos homens, todos
rendiam-se aos soluços para a despedida daquele
patriarca. Mas ela não. Como uma esfinge de mármore
áspero, não cedia em momento algum à demonstração
de dor. Contudo, mantinha-se firme ao lado do defunto e
não deixava nenhuma mosca pousar perto de seu corpo.
Fuzilava todas as moscas que se aproximavam com sua
mão, resguardando a imagem de seu pai. A mãe ofereceu-
-se para tanger os insetos e ficar de guarda no seu posto,
mas ela não quis. O olhar de sua mãe dizia: “Permita-se
desabar no meu banco e deixar as pernas fraquejarem
um pouco”.
Ela devolveu a mãe para seu banco e seguiu
determinada a decidir que no rosto de seu pai só as águas
de sua família, nada mais pousaria.
O pai foi nova vítima de um ciclo rubro de vinganças
entre as duas dinastias mais endogâmicas da região. De
tempos em tempos, alguém caía perfurado por uma bala
seca que vinha da caatinga.
Ali os parentes dividiam um mesmo pensamento:
chegou a hora de acontecer a reunião para decidir quem
vai efetuar a vingança.
O caixão espetacularizava o rito das despedidas em
um cômodo, e, no outro, os homens se reuniam.
Os homens da família estavam dispostos ao lado
da fotografia do morto. Todos chegavam e beijavam-lhe
a face no quadro. Até o momento em que ela entrou na
sala.
Disse por que estava ali.
Queria ser a pessoa da família a realizar a vingança,

67
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mas eles não aceitariam que uma mulher o fizesse. Nunca


uma mulher o fizera.
Na verdade, ninguém aqui tinha mais ódio no peito
que ela.
A discussão ainda se seguiria pelos dias em que o
velório estava sendo celebrado na casa.
Anunciou para a família: “Fechei meu corpo, não
sangro mais”.
Assim, subitamente, ela parou de menstruar.
Fazia parte de sua preparação para a vingança. Ela
comandava qualquer fluxo de sangue em seu corpo.
Ela se cortava e não saía sangue de si.
Como num pacto para que seu sangue não se
mostrasse fraco, ela o dominava.
O tio tentou cortá-la, mas ela não sangrou.
Os empregados da casa fugiram com medo. Será
que ela está morta? Será um fantasma?
Aonde foi seu sangue? Dizem que é amaldiçoada.
Chamaram místicos, espíritas, médicos para ver a
mulher que não sangra. Nenhuma gota. Completa greve
de líquidos.
Ainda assim decidiram-se pelo primo. Não adiantou
mostrar técnicas de administração de seus líquidos.
O que não imaginavam é que, na madrugada que
antecedeu a viagem do primo, ela o prendeu. Embebedou
e amarrou-o no curral abandonado. Assumiu seu lugar.
Agora o sertão era ela.
Estava montada no seu destino. Bastava garrar olhos
no homem que atirou em seu pai e vingá-lo com a pontaria
mais certeira.
E assim foi.
Aguardou o momento exato em que ele estava
sozinho, saindo de um puteiro ermo.
Quando estava em distâncias de tiro certeiro, teve um
susto.
Havia ensaiado muitas palavras para o ritual da

68
ÓPERA E OUTROS CONTOS

vingança contínua e cíclica, como os índios, como nos


filmes mudos, como nos cordéis mais sangrentos.
Mas, naquele momento, não havia palavra em sua
boca. Sua boca oca como o sertão. Seca.
Os olhos encantados pela beleza do homem à sua
frente. Tremia toda de paixão. Como um raio inesperado
de tempestade temporã. Um medo que não avisa. Chega
e pronto.
Seria isto possível?
Apaixonar-se pelo matador de seu pai?
Queria dar um tiro no próprio peito, como que em
reprimenda ao coração voluntarioso que a oferecia a
tamanho ridículo. Fracassar na vingança do pai e conviver
com um afeto pelo algoz de sua família?
Porque afeto assim é traiçoeiro demais. Ele chega e
não avisa quando vai embora. Pode durar a vida toda.
Coisa incômoda, hospedeiro desavisado e espaçoso.
Seria um castigo, um presságio, que a vingança é
prato indigesto.
Não tinha tempo para essas sensações...
Atirou.
Nem olhou para trás. Não viu se acertou peito ou
cabeça. Ouviu o corpo desabar.
Decidiu cavalgar pelo sertão. Sem destino. Não
poderia mais voltar para casa.
Fez com que a notícia da vingança chegasse à família.
Cumpriu sua sina.
Gritou e pediu que alguém da outra família lhe atirasse
logo, acelerando o ciclo das vinganças. Na esperança
que a morte resolva toda a dor que carrega dentro dela.
Tormenta na vista, horizonte marejado...
Sentiu de repente algo molhado na sela...

69
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O LIVRO

Na verdade, fazendo um retrospecto, eu sempre tive


respeito e quase medo na presença de um livro.
Num livro, pensava eu, cabe uma existência; numa
biblioteca, uma humanidade. Via suas páginas como
rostos que mudam de humor a cada dia.
Aos poucos, pude entender o livro como um novo
amigo que me era apresentado pela capa e se despedia
para seu destino de prateleiras, ao final de leitura. As
prateleiras, um espaço híbrido, meio altar, meio jazigo. Ali,
ficam cozinhando todas as histórias e ideias, num vapor
de mofo, traças e espera. Até que alguém o ressuscite.
Eu me perguntava: “Lá, em fricção com outros tantos
títulos, sobre o que será que eles conversam? Que tráfico
de palavras, surdamente, deve urdir novas histórias?”.
Eu, como um fantasma, escondia-me embaixo da
escrivaninha e usurpava um pouco de suas conversações
e fofocas para tecer minhas próprias histórias, para
oferecer alimento à fera da imaginação, desesperada
fera que rugia impiedosa dentro de mim, numa demanda
voraz por comida.
Imaginava que eles, os livros, miravam a mim,
agindo minha letra sob o caderno como quem
testemunhava o nascimento, ou a cópula, de
uma nova criatura de papel e sonhos. Devem ter
pensado: “Ele prepara um novo companheiro”.
Sim, eu pensava em ser escritor.
“Se eu escrever um livro, quando eu for depositá-lo
na prateleira, eu o farei como um pai que leva o filho à
escola pela primeira vez. Temor e orgulho. Não o lançarei
em qualquer lugar, perto de qualquer edição, escolherei
o espaço certo, como o pintor estuda a cor exata na sua
aquarela”.

70
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Foi assim que fui perdendo meu medo dos livros. Até
hoje.
Porque este livro seria diferente.
Hoje meu pai entrou em meu quarto com um pacote
envolto em papel azul-celeste.
O pacote amedrontava pela extensão e peso. Mas
irradiava uma luz cor de céu.
A luminosidade do invólucro era apenas o impacto
inicial.
Era o livro.
Trazia um mistério consigo. Era sério aceitar aquele
livro, acomodá-lo em minhas mãos.
“Ele vai doer um pouco”, disse-me meu pai.
Ele carregava, como quem carrega um bebê, uma
lágrima em seu olhar. A dor cintila em seus olhos e me
deixa com sede de sorvê-la e aceitá-la. Ele tenta ser
rápido para que eu não perceba sua visitante inesperada.
Mas eu a olho como um pingente precioso e na lágrima
eu vejo minha figura refletida, possivelmente, pela última
vez.
Foi sério para ele entregar aquele livro.
Sabíamos todos, naquela casa, que fui diagnosticado
com doença degenerativa na córnea. Como muitos em
minha família, eu tinha pressa em ver o mundo. Tenho
pressa.
Cada família com suas heranças. Esta é minha parte.
Sem latifúndios ou hipotecas.
Serei um turista cego. Que país conhecerá um turista
cego? Como guardará suas impressões da viagem? Mas
não é assim que somos postos nos sonhos? Passaporte
para além da pálpebra.
Cego, cegarei em breve. Logo. Talvez em minutos. Até
o fim desta noite, eu cegarei.
Este livro é um membro da família.
Aquele que todos os meus antepassados de infortúnio
compartilharam.

71
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Será também o meu último. Foi com este livro que


eles se despediram da luz.
Por isto tão velho, roto, gasto. Posso sentir a aflição
com que o seguraram meu tio, meu tataravô, minha prima
de terceiro grau. Estão impressos no livro. A ansiedade.
A dúvida. Lembro quando assisti clandestinamente a
cerimônia de meu tio.
Eu devia estar em meu quarto, abraçado por colchas,
mas corri para o corredor e vi quando meu avô fez com
meu tio exatamente o que meu pai fez comigo.
Tinha a mesma lágrima. A mesma dor hereditária.
Meu avô disse: “Hora de fechar os olhos para se
conhecer o íntimo das ideias”.
Eu não sei se eles terminaram a leitura.
Tento negociar com meu pai. Prazos. Faço promessas,
indico outros parentes que podem envergar esta espada,
este fardo, seu comando de cavalarias.
Minha tia na masmorra de sua solteirice que exala um
cheiro de desesperança e fim. Porque não ela que é mais
feia e mais só?
Meu pai sabe que tem que cumprir o ritual, traz o
livro. Ele, sempre ele. Sinto a nostalgia em seus olhos das
outras cerimônias que realizou.
Meu pai caminha passos de sacerdócio.
É um homem de cocar, túnica e coroa. É rei, mas
chora.
Mas é chegada minha vez.
Meu nome foi sorteado e eleito. Meu nome está
inscrito no oráculo, na frente e no verso de sua língua.
Sou o único nome que ele sabe pronunciar.
Penso com uma rapidez para a qual não adestrei
meu cérebro: haveria algum lugar seguro onde eu me
esconda? Algum espaço nesta casa em que possa fugir
do olhar agudo de meu pai?
Fujo ganhando intimidade com as quinas e sótãos
e becos daquele lugar. Pensando enganá-lo, retorno ao

72
ÓPERA E OUTROS CONTOS

meu quarto. Tento cavar túneis embaixo de meus lençóis,


grutas entre meus travesseiros, construir barreiras de
invisibilidade para que a sentença não me ache. Mas,
com um radar preciso de quem sabe farejar sua própria
carne, meu pai abre a porta. Inútil. A voz de meu pai me
acha com o peso de sua responsabilidade. Conclama à
batalha como se dissesse “honre seu sangue”.
Meu pai, austero, como o patriarca que nunca fora,
deposita o livro como quem anuncia a maturidade.
O mundo daqui para frente será outro.
Meu pai sentencia, com um beijo sobre meus olhos, a
despedida.
Quero me desculpar com ele, mas não sei minha
culpa.
Meu pai trancou a porta com pesar. Sabe que só
voltará a abri-la quando eu não puder mais vê-lo. Meu pai.
O último de meu sangue que eu verei.
Agora só eu e meu algoz nesta passagem.
Vou conseguir? Vou perder a visão antes de terminar
a leitura? Será que vou perder a visão de um olho e,
depois, do outro? Será que a crueldade caminhará com
parcimônia e calma pelo meu novo corpo? Por que este
livro? O que tem de especial? Qual o final? Qual sua
história? Em que capítulo me cegará? Na retina pisca
uma dúvida: por que este livro me cegará?
Por que esta estranha sentença: ver para depois
cegar?
Fecho os olhos e não enxergo nada além do escuro.
O escuro. Um amigo?
E se eu quiser esmurrar esta parede para irromper
fachos de luz. Rasgar. Sentiria perderem-se no ar, na
atmosfera negra que me cerca, meus punhos fechados.
Percebo-me menos livre.
Sobra-me o arrependimento de não ter visto mais
coisas.
Coisas que me aconselharam.

73
NewtoN MoreNo

O que é feito dos poemas que não foram escritos


quando o poeta morre?
Pensei na angústia do escritor ao final do poema e
com a tinta rareando, brigando com o tinteiro, sacudindo
a caneta. Como uma mãe num parto interrompido.
Estancado no meio do corpo do bebê, entre o útero e o
mundo.
O bebê chorando e ela em suspensão entre a cria e o
aborto, entre a beleza e a extinção.
Eu, cego! Até a última página, cego!
Decido-me por recusar veementemente esta oferenda.
Com um certeiro NÃO empurro o livro para o outro
lado da sala. Longe de mim.
Repito NÃO em todos os idiomas que conheço e vou
devolvendo o livro para uma distância segura. Mas ele
retorna. O livro sempre retorna.
Sinto seu bafo em minha nuca.
Sentir-me assim, rendido, é uma constatação
dolorosa. Caí num lugar de tristeza que desconhecia.
Músculos desistidos, olhar preso ao chão por âncoras
molhadas, a voz e o corpo exaustos não ofereciam mais
perigo ao livro.
Uma não vontade de qualquer movimento.
Sinto-me só.
A tristeza tem um aperto de mão frio.
Lentamente, sinto um tremor se inaugurar na planta
do pé. Vibram as conexões ósseas e musculares, como
um vulcão de insegurança que vai ganhando meu corpo.
Convulsiono em um choro sísmico. O corpo está sem
rédeas. Balança ao sabor desta sensação de despreparo
para este desafio. A carne samba. Sou forçado ao chão
e imprimo minhas unhas nas paredes na vã tentativa de
equilibrar-me. Não há como articular nenhum pedido de
socorro. Só a espera para que tudo se acalme. Ali, ao lado,
o livro espera. Inerte, a terra não treme para ele.
Assim como chegou rapidamente, o terremoto se vai.

74
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Sinto-me só, mas ainda mais leve.


E é como se o livro esperasse por tudo isso.
Horror!
Sangro minha garganta de tanto negá-lo aos berros.
Cuspo sangue de revolta e medo.
Uma violência de fonemas explode em minha
garganta. Digo coisas de uma crueldade inédita em
minha boca. Mal começamos a relação e este livro já tem
poderes de arrancar palavras com gosto de pus, como se
extirpasse algo doente da minha carne em algum febril
exercício de cura. Sou apresentado às minhas palavras
plantadas no mangue, vestidas de lodo. Coloco-as para
desfilar pelo bloco, no meio do salão, despudoradas,
suadas, com barba por fazer. Palavras que só com esforço
pude assumir como minhas.
O livro como que as recebe impassível, inalterado.
Parece que ele já esperava minha reação, é como se
ele me pedisse esta purgação.
Quase que condição intransponível se eu quiser
continuar a viagem.
O vômito me deixou mais leve, mas não com menos
medo.
Quando não posso mais falar nada porque estou
exausto de sons, atiro objetos, lanço dardos, móveis, lama.
Penso que é o enterro em entulhos do meu desprezo.
Mas, seguro de si e de sua missão naquela noite,
o Livro ressurge lento e cortante com estratégias de
serpente. Desenha seu corpo sinuosamente em minha
direção. Deixa um rastro de possíveis venenos e peçonha.
Vem cobrar sua vitória.
Coloca-se empedernido e colossal entre mim e a
parede de meu quarto.
Sinto seu bafo em minha nuca.
O horror!!
Eu, com certeza, serei apresentado a novos fantasmas.
Nesta nova morada de sol escuro e estrelas murchas, eu

75
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conhecerei meus monstros que vez ou outra dançavam


em meus sonhos.
Quantas sombras podem habitar minha sombra?
Quais as surpresas deste casulo?
Eu posso sentir minhas pernas vergarem-se como
se novo abalo sísmico se insinuasse pela terra. Um suor
metálico que tem cheiro de sangue e fim.
O suor caminha pelo meu corpo como se fossem
serpentes aguadas ou insetos viscosos. Eu não tenho
gritos para dar. Toda dor está presa nas paredes deste
corpo.
Uma fragilidade monstruosa. É assim que me sinto
mergulhado numa fragilidade monstruosa. Como um
graveto de carne. Um graveto de carne prestes a ser
lançado numa fogueira que ele nem sequer pode enxergar.
Não posso ver a beleza do fogo que vai me consumir.
Qualquer passo em falso pode ser minha morte. Se houver
um jardim de armadilhas e minas, eu nada posso fazer.
Estes pensamentos se aproximam de mim como
se me pedissem para efetuarmos uma ciranda. Os
pensamentos mais negros querem dançar comigo.
Eu nem me limpo mais porque não tenho controle
sobre meu corpo. O odor de pânico, as secreções, os
dejetos, as excreções, todos são expelidos e constroem
uma masmorra vertiginosa, uma casca azeda, uma prisão.
Onde o medo é meu figurino. A única peça de roupa que
me cabe. Ajustada e de corte clássico e impecável. O
medo. Nesta espera, eu terei que envergar esta roupagem
enquanto uma borracha imensa me apagará os olhos.
Não! Não! Não!
Sinto seu bafo em minha nuca.
Não há fuga. Eu terei que enfrentá-lo. Enfrentá-lo sim,
ser vencido não. Com que armas posso tentar ludibriá-lo?
E assim desatar o nó de minha cegueira iminente, fazer
com que o destino se arrependa. Era como se um mentor
soprasse em meu ouvido para me fingir de rendido e

76
ÓPERA E OUTROS CONTOS

ceder às vontades soberanas do inimigo.


Mas tudo apenas para estudá-lo de perto, saber-lhe
as fraquezas e no momento certo arrancar-lhe páginas e
incinerar seu coração. É também uma estratégia que um
anjo protetor me sugeria.
Hei de encontrar esta fortaleza.
Quando este livro menos esperar, mordo-lhe letra e
tinta e desvio-me do final que ele me propõe.
Decidido isto, aproximo-me dele.
Deixamos espaço para o constrangimento, não
fingimos a estranheza ácida daqueles instantes primeiros.
Desconfio dele de início. Uns dez minutos. Rodeio o
livro como um caubói enfrentando seu vilão. Ameaçando
um duelo. Olho-o com uma pergunta indigesta.
Começo a leitura.
Leio, desvairado, uma dezena de páginas rapidamente.
Desfrutar cada página com medo da última linha, da
última sílaba, da última letra.
Tropeço em gagueiras e ignorâncias da língua.
Calma.
Para que correr? Pressa é uma raiva que se tem do
tempo.
Respiro. Lento, vou me acostumando com o livro.
Livros, por excelência, são objetos/criaturas da espera.
São tecidos com temperança e perseguem a
imortalidade.
Tocá-los é tocar uma ideia concreta de tempo.
Eu me acalmo ao dizer isto em voz alta para mim
mesmo.
E, lento, vou me acostumando com o livro.
Talvez ele queira que eu busque outro tipo de
entendimento.
Talvez a ideia seja abandonar a ideia.
Eu rio. E minha gargalhada me dá arrepios.
Começo a sentir coisas inusitadas.
Sigo brincando com as páginas e as palavras e

77
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percebo que seguro o livro de um modo diferente. É como


se eu tivesse a sensação de segurar minha irmã no berço,
meu cachorro, um pássaro ferido. Não digo que sinto o
sangue e o coração do objeto em questão, mas sinto o
objeto em questão.
As folhas são grossas e pesadas. Requerem vigor
e coragem para virá-las e consumi-las. A palavra talvez
fosse envergá-las.
A espessura educa-me o tato, cumprindo sua função
de guia supremo na escuridão que me aborda. Áspera
folha. Suave folha. Um primeiro aprendizado. Rasgos de
impressão. Relevos e letras impressas com força. Sinto o calor
daquelas palavras. Uma em especial aquece-me os dedos.
Vou e volto em sua caligrafia por uma dezena de
vezes.
Percepção. Começo com a majestade do P maiúsculo,
a sinuosidade maliciosa do e, estranho a passagem de r
a c, recupero maliciosa relação com o e e penso que o P
maiúsculo é mais atraente que o p minúsculo, acho de
um refinamento a possibilidade do cê-cedilha e termino
retumbante explorando o casamento sonoro de a, o e til.
Esta palavra me acende para a leitura das outras.
Percorro letra, til e cedilha; toda a família. Sigo apertando
a mão de cada uma delas.
É uma maratona poder virar uma página. Exige tempo
sair de uma e passar para outra. Tenho que conhecê-la
bem, fazer perguntas, ganhar uma certa intimidade. E o
livro é imenso. É a reeducação, uma nova grafia, uma
caligrafia, uma outra gramática. Sensorial, emotiva, viva.
Minha nova vista tinha cãibras. De hoje em diante,
aquecerei meus dedos para aventura do ensinamento.
Alongarei, esticarei, balançarei ao vento, até senti-los
pulsando de curiosidade.
Quando percebo o silêncio. O quarto quieto.
Atravesso-o de canto a canto com o ouvido.
Nem uma mosca. Longe, um grilo. Um grilo... cada

78
ÓPERA E OUTROS CONTOS

vez... mais... longe...


Nem uma mosca.
Só quando viro a página, ocupo o quarto com
algum som. Vou e volto à página, brincando na fronteira.
Administro o ritmo, mestre da bateria desta madrugada.
Subitamente, as palavras mudam de lugar.
Pode ser a cegueira confundindo-me a retina, mas
não, eram as palavras caçoando de mim. Elas querem
brincar como um cão que esconde a meia do dono, que
balança gravetos, que o acorda com o focinho frio. As
palavras querendo brincar comigo. Eu havia deixado uma
palavra num canto, numa construção de frase e ela volta
surpreendente na página posterior. Volto a página de trás
e ela não está mais lá. Ficamos neste jogo de esconde-
-esconde. Eu virando subitamente as páginas para
capturar aquela fugitiva zombeteira que me trapaceia os
olhos. Quero pegá-la no flagra.
E, óbvio, ideia nenhuma se deixa aprisionar.
Súbito, agarro uma palavra. Juro que não escolhi,
peguei a primeira. No livro, ainda muda, aguardando sua
vez, bem tímida mesmo, está a escolhida. Retumbante.
Digo a primeira vez. Um susto.
Falo e vejo a palavra ricocheteando pelo cômodo.
Driblar móveis, luminárias, cortinas. De um lado a outro,
até dissipar-se no ar e na minha memória.
O movimento. Tenho que me esquivar de tanta
agilidade.
Peço mais uma ao livro. Ele me dá: pingue-pongue.
Esta dura quase uma hora até se cansar e pedir
repouso. Isto porque a disse uma só vez. Depois, um
tiroteio.
Palavras sacudidas.
“Papagaio”, “zumbido”, “catástrofe”, “cacatua”.
“Ziguezagueando com um bumerangue.” (Outra boa
palavra. Guardo-a para depois.)
E se eu as combinasse? Será que se chocariam? Ou

79
NewtoN MoreNo

reproduziriam sons outros até me ensurdecer?


Arrisco.
“Ziguezagueando um retumbante bumerangue.”
Não funciona. Elas duelam, brigam, gritam umas com
as outras. Tenho que encontrar combinações mais felizes.
Palavras-irmãs. Feitas para soarem juntas.
Mas o livro me permite a generosidade da citação.
Menciona um poema de minha infância a título de
exemplo. Peço licença ao livro-guia e lanço:
“Em ronco que aterra
berra o sapo-boi:
— Meu pai foi à guerra!
— Não foi? — Foi! — Não foi!”1.
Instantaneamente, um pântano instala-se em meu
quarto. Sapos sugeridos no poema tornam-se reais. Eu os
vejo. Saltando de uma palavra a outra. Sapos apoiando-
-se numa palavra para voar na direção da outra. Outras
palavras, eles capturam com a língua, arrotando-as
segundos depois. É uma orquestra de arrotos da língua
portuguesa.
Os sapos cantores arrotando minha língua.
Palavras voando sonoras pelo meu quarto.
Canto e danço as páginas que se seguem.
Rumbas, marchas, polcas, valsas, sambas.
Aí a voz me falta.
Os sons fazem minha cabeça zumbir.
Eu estou suado e exaurido de minhas tentativas de
me desviar. Uma palavra me atinge.
Uma palavra que tem salto curto, mas pede um
silêncio após ser dita.
Voo.
Pausa.
Digam comigo e depois obedeçam ao silêncio que a
palavra exige.
_________________________
¹ Trecho do poema OS SAPOS, de Manuel Bandeira.

80
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Voo.
Fui obrigado a seguir os pássaros em meu quarto.
Os pássaros ninam meus olhos.
Na pausa, derrubo minha cabeça cansada por sobre
o livro. Encosto meu nariz em sua pele.
O livro, descoberto, livre do papel azul-celeste, emana
agora um aroma morno, um cheiro de novo mundo.
Tipo de aroma que devem ter provado os bandeirantes
em várzeas paulistanas ou os holandeses em índias
pernambucanas. Eu me lembro do desembarque em um
aeroporto, num outro clima, num outro continente.
A tinta vermelha da capa tinha ares de sangue.
Abre outra porta, iniciando outro rito.
Com o faro sigo o livro.
Rastreio primeiro, leio depois.
Este livro é assim: feito para subverter a ordem, mudar
o rumo, virar do avesso, desmantelar.
A primeira sensação é a de fumaça, a de perigo.
O perfume inaugural a ser identificado é o de meu pai.
Sua colônia brava, sua pele cansada, suada de muito
trabalho, suada de muitos filhos para alimentar.
Sua colônia vai misturando-se a outras colônias e
peles.
Velho, bolorento, mofado, pertencera a outros e,
mágico, traz o perfume deles todos.
As páginas e seu odor quente, de incomodar as
narinas. Fazendo cócegas nariz adentro.
O livro por debaixo do braço, fedido de mãos
ensebadas, aprisionando alguma essência de flores, o
livro e o mapa dos cheiros.
Mulheres e homens, crianças e anciãos.
Seus rostos, expressões, idades, aos poucos ganham
meu cérebro.
Chego farejando à última página que tocaram minha
prima e meu tataravô.
Lá suas impressões digitais tocam uma vírgula.

81
NewtoN MoreNo

Lambo, discretamente, esta vírgula.


Imprimindo um ponto em minha língua.
E vou tecendo comentários sobre seu sabor.
Tenho que descobrir o gosto de tudo aquilo. As
palavras tenras, as palavras cruas.
Numa mordida econômica, descubro que o
personagem central tem cinco páginas de incompreensões
e angústias abismais, tomo suas dores e as devoro
lentamente.
Mastigando-o e imaginando-o.
Incorporando pigmento e grafite.
É uma incorporação, uma cerimônia de posse.
Beijo, mordo, lambo, chupo, sugo.
Deformo o objeto e a mim mesmo.
O livro me possui, me galopa.
O livro me escancara outros livros e histórias.
Num fluxo contínuo a minha vontade, a minha saliva.
Lembro das palavras de infância, de livros gastos,
livros de baú. Sei o sabor de contos de fadas, Dickens,
Lobato.
Passeio da puberdade à adolescência, despertando-
-me o apetite pela memória.
Apetite.
São tantos levantes de emoções que eu estou doído.
É carne, santo Deus, é carne.
Em diversos momentos, sou acometido por arrepios,
frêmitos e ereções.
Isto em algum lugar do meu corpo é literatura.
Fico tímido. Envergonhado que me vejam vestido e
abarrotado de outras felicidades (a dos sentidos).
Resolvo parir uma palavra só minha. Ninguém no
mundo conhecedor de minha obra. Esta, minha exclusiva
companheira, inédita, meu feto subversivo. A palavra
minha.
Meu tesouro que espreita enterrado no miolo,
arquitetando o romper da pele, querendo se arrancar

82
ÓPERA E OUTROS CONTOS

de mim. Próximo do nascimento desta palavra pura, eu


sinto que palavras pesadas escondem-se entre os ossos,
gestando artrites e osteoporoses. Aquelas de significados
tristes.
Será que esta nova palavra vai gostar de mim?
Ânsia extrema de não articular um idioma estrangeiro ou
de um bebê que se esgoela em sons sem a certeza de
comunicação.
Palavras rasgando a pele e sendo minhas. Chora sons
inéditos. Improvável, esta palavra suspende o mundo,
pede que eu o organize, diferente. Meu deus, ser mãe! E
pai!
Minha barriga expande-se e náuseas navegam
minhas vontades.
Começo a sentir agora as dores do meu parto. Ai, o
verbo que explode as carnes. O verbo que me expõe o
ventre.
Ainda molhada de líquidos da alma, eu a embrulho
nos meus braços.
Qual a palavra? Não digo o nome.
Crie a sua, esta é só minha.
Ordeno que ela olhe para mim. Mas nenhum sorriso e
choro corriqueiro.
Ela rosna para mim. A palavra ameaça uma mordida,
mas eu a domo. Alcanço a embocadura na iminência de
mastigar-me o cérebro. Abro a boca da palavra e vejo os
dentes, toco hálito, acaricio a língua. Bocarra de vulvas
úmidas e pegajosas.
Olhar a palavra por dentro da boca. Sentir-lhe o morno
arroto e a saliva que se derrete porque vai te morder.
De repente, a palavra some.
Desintegra-se nas minhas garras. Vejo que alguém
bate à porta. E ouço alguém repetindo várias vezes a
minha exclusiva palavra. Alguém rouba na espreita da
porta. Não é mais minha.
E agora?

83
NewtoN MoreNo

Meu único rebento. Minha última cria antes do reino


das trevas. Meu lírio de fonemas.
Eu fico analfabeto de textos trágicos e recomeço o
mapa do mundo com pureza de dores.
Ainda ensopado dos líquidos do meu parto, o livro
anuncia sua presença. Mergulho minha mão em suas
entranhas. As últimas páginas aproximam-se.
Perco a noção de quanto tempo estou aqui. Sinto o
livro caminhar para o seu fim, sem qualquer sentimento
amedrontado, fragilizado, autocomiserado. Sou um rei
coroado sobre os portais de minha existência expandida.
Sinto-me o dobro, o triplo, o quádruplo.
Recebendo cada palavra que meu amigo me
proporciona.
Dialogo com cada uma delas de maneira tão física
que meu corpo exaure-se.
Acho mesmo que, nesta hora, brilha.
Irradia algo (a palavra “irradiar” irradia algo quando
dita, já notaram?).
E as estrelas? Sentirei saudade de vê-las?
Todas as estrelas que à noite gritam luminosas
clamando por nossa atenção. Elas querem nossos olhos,
querem também que lhes demos um nome. Quantas
estrelas ainda sem nome? E o exercício sadio de olhar para
o alto e recuperar o infinito. Mas agora, no meu quadro
escuro, eu sou o infinito e a imensidão. Posso todas as
cores sob este fundo escuro. (Tempo bem rápido.)
A luz faz silêncio.
Deve ser manhã.
O sol. Sentirei saudades do sol?
O aroma é de orvalho. O mormaço me abraça a pele.
O ar pesa diferente.
Deve ser manhã.
Digo “deve ser” porque não enxergo nada. Nada.
Apenas sinto o livro fazendo cócegas em minhas
pegadas.

84
ÓPERA E OUTROS CONTOS

A ESPERA

No meio do Carnaval, a Morte baixou entre nós.


Quase foi atropelada por um carro alegórico.
Estava cansada de milênios de solidão e soube que
a festa da carne deixava todos os homens afoitos por
afetos, safadezas, intimidades. Estava carente, mas de
um sentimento mais inédito. Uns poucos suicidas —
realmente convictos — já haviam feito juras sinceras. Mas
estas juras eram mais frequentes em séculos passados.
A maioria dos que se jogavam em seus braços antes da
permissão divina o fazia por desespero e insânia, e não
pelo elo incondicional. Ela queria o toque apaixonado de
um mortal. Queria um homem. Ninguém aguenta viver
sem a interferência do cupido, nem mesmo a Morte. Tinha
descido de cauda, manto, foice, parecia uma fantasia.
De forma que não levantou suspeitas e, assim, ensaiou
samba, frevo e piscava para vários mancebos. Conseguiu
um pouco de toque, lambidas e fluidos; mas ninguém
estava interessado em assumir compromisso com a
mascarada. Afinal era uma fúria da carne, delírios de
Momo, romances que duravam a passagem de um bloco,
o tempo de um frevo, o álcool de uma garrafa. Ninguém
por ali tinha ganas de compromisso, noivados, fidelidades
compridas. A Morte juntou-se ao coro de outras tantas
mortais, largadas no amanhecer, chorando confetes de
abandono, enxugando-as com serpentinas.
Dias depois desabou num baile dançante da terceira
idade. Já que todos ali estavam quase a beijá-la, pensou
se não poderiam adiantar um selinho em meio a valsas
e boleros. Suas músicas preferidas. Sim, a Morte tinha
adoração por boleros. Não tangos, réquiens, marchas
fúnebres. Gostava de boleros. Era bolero que ouvia em
seus dias de folga, bordando enxovais em seus sonhos.

85
NewtoN MoreNo

Grande dançarina, largava-se no salão, impressionando


em seus passos firmes para dama de tão avançada idade.
Mas ali estavam todos a fugir dela, buscando, em quadris
gastos e perucas densamente escurecidas, um último
sopro de vida. Uma resistência. Quase uma revolta. Um
baile assim, aprendeu a morte, é um motim. Acontece que
vários presentes já a tinham visto em visitas ao hospital,
os “ressuscitados da medicina”, os que contaram com
a prorrogação dada pelos Altos. Uma dezena já tinha
sido apresentada a ela. Ao descobrirem sua verdadeira
identidade, foi expulsa. Nunca fora tão xingada. Atirada no
meio da rua pelo exército centenário. Mas identificou uma
senhora como a próxima na sua agenda de semana e, ao
seu lado, seu companheiro.
Veio ao funeral dessa senhora; não de olho nela, mas
no marido, agora desocupado. Mas chegou muito cedo,
ainda estava em tinta fresca e molhada seu coração,
saudoso de sua esposa. Não caberia nesse coração
sequer um colesterol, um stent, nada, só pungia de
saudades. O viúvo desconsolado deixou-se envolver pela
elegante senhora de vestido negro, mas, em meio aos
afagos, chorava e se devolvia ao caixão, não conseguia
afastar-se dos lábios da esposa. Como numa súplica para
ser levado junto de sua amada. A Morte assim sorveu seu
pranto adocicado de saudade. E não matou sua sede, ao
contrário criou uma vontade ainda maior de provar desse
sentimento.
Intrigava a nossa protagonista por que os vivos não
conseguiam amá-la. A vida deles seria tão melhor se eles
aprendessem a fazê-lo. Apagariam o medo de seus dias,
economizariam análises e terapias e promessas. Sentou-
-se e derramou uma lágrima e, ao cair no chão, sua água
não queimou nem secou a terra. De sua lágrima nasceu
uma flor. Amor-perfeito. E foi assim que a flor foi criada.
Deus concedeu à Morte o benefício só dessa criação, ela
que era senhora das destruições.

86
ÓPERA E OUTROS CONTOS

Um moço que passava por lá, vendo sua tristeza,


colheu a flor e lhe entregou. Ela foi logo avisando quem
era. O moço não fugiu como era de se esperar; antes
de ver a Morte, via o amor. Todo sentimento deve ser
respeitado, até mesmo o dessa natureza. Então o moço
decidiu amá-la, porque viver um amor vale tudo, vale até
mesmo perder a vida. A Morte ficou tão comovida que
recusou sua oferta de imediato, mas prometeu vir buscá-
-lo vestida de noiva. Ele prometeu fidelidade e assim o fez.
Décadas, e ele não se entregou a ninguém. Sorriu
quando o médico o sentenciou a algumas semanas. E
sorria até no caixão, impressionando toda a família.
A Morte no hospital veio buscá-lo em uma carruagem
mágica, vestida de branco, com buquê de lírios. Lá, ele
descobriu que tinha uma filha. Sim, esta foi a história do
homem que deu à Morte uma filha chamada Esperança.
Subiram recém-casados, e a lua de mel foi tão boa que
por uma semana ninguém faleceu na face da Terra.

87
NewtoN MoreNo

A DESPEDIDA

Ele se colocou na frente das duas cadeiras de balanço.


Pai e mãe estavam ruminando a ceia e esperando
o que de tão importante o filho tinha vindo lhes dizer.
Desabou-se da capital até a quase fronteira com o inferno
nordestino. A mãe estava desconfiada, o pai já havia
desistido de considerar problema. Estava esvaziado,
esgotado, avizinhado da morte. Só queria um balanço,
um arroto temperado, meio morno, e um cochilo na brisa
da noite. Mas o filho solicitava uma palestra, um encontro
familiar, uma ágora na margem do lar.
Olhou os dois e disse: “Eu vim aqui para vocês se
despedirem de mim. Digam adeus a este Agenor, porque
ele não vai existir mais”.
A mãe deu salto querendo agarrar um anjo incauto
na nuvem mais baixa. Para pedir ajuda a um santo. Tocar
em Jesus. “Tu vai se findar, menino?” Conjecturou sobre
suicídio. Não havia criado filho, bento na figura do Cristo,
para ser frouxo de desapear da existência assim fácil.
O pai tomou outra estrada. “Ele quer ir pro estrangeiro?
O que tá pra lá da cerca grande, né, fio? Onde o povo não
alcança a beleza do português e machuca a boca com
aquela fala grosseira. Se ele quer ir porque tem mai futuro,
deixe, mulé.”
Agenor destruiu as duas teses. Devolveu sua mãe
para a cadeira e esperou até seu coração sossegar. O
pai ainda estava no mesmo compasso do balanço com o
rigor de cronômetro.
“Agenor vai embora amanhã e quem vai voltar aqui
para ver vocês é Ângela.”
Quem é Ângela? A esposa? A filha dele? O pai e a
mãe encurralados na dúvida.
“Hoje é meu último dia como homem, mãe. Amanhã,

88
ÓPERA E OUTROS CONTOS

eu entro num hospital e assino Agenor pela última vez.


Quando eu tiver saído de lá, eu serei Ângela.”
A mãe já tinha gasto toda energia no salto anterior.
Deixou que a boca escancarada demonstrasse seu
choque.
O filho foi lá dentro buscar água para os dois.
Eles não se falaram. Só se olharam. O pai foi
arregalando os olhos ao se contaminar do horror que
pousou no rosto da esposa. Foi entendendo a gravidade
da notícia através da reação dela.
Agenor voltou com copo cheio e suas roupas. Queria
queimar tudo na frente deles. Fechar o ritual. Toque de
mestre deste velório de corpo presente.
“Eu acho justo que vocês se despeçam de mim, porque
não terão mais o filho que criaram. Podem acariciar, falar,
ralhar, cheirar Agenor que lhes pertenceu durante 30
anos; amanhã Ângela será minha vida. E ela me pertence.
Eu começo amanhã, mãe.”
O pai calmamente deslizou cinto para fora da calça,
como quem vai matar uma mosca e não quer espantá-
-la. Queria acertar o couro de Agenor. Mas a idade
tirana congelou seus músculos. A mãe deixou-se em
lágrimas. Foi gotejando enquanto Agenor prosseguia o
cerimonial de sua revelação. As moscas nunca tiveram
tanta segurança em se incrustar em suas peles. Eram
dois bonecos de carne inertes. O sangue em ebulição.
O peito arfando. Os olhos da mãe desejando-se rios. E
nenhum movimento. Algumas imagens da criança que
Agenor fora. As imagens viajavam da mente de um para a
mente do outro. Como se saltassem. Como se pedissem
emprestado um ao outro. Só por um segundo.
O parto, o primogênito, o batismo, a queda, a cura,
o medo do boi brabo, a folia da primeira festa, o berreiro
para ficar na escola, o jogo, a morte do avô que rendeu
noites insones, a prova, o ônibus. O ônibus que o levou
para o mundo. O pai chorando no banheiro para que ele

89
NewtoN MoreNo

não ouvisse. Mas ele ouviu. A mãe chorando uma semana


inteira, querendo mesmo que ele ouvisse o choro. E ele
fugia dela. O ônibus. Foi ali que Agenor começou a morrer.
E hoje se enterrava diante deles. Usar um luto? Sair na rua?
E quando Ângela chegar? O que fazer? Abraçar? Fechar
a porta? E se Ângela não vier visitá-los? E se Ângela não
resistir à operação? Alívio? Culpa? Como reconhecer o
filho no manto feminino que encobrirá Ângela? A mãe
poderia rasgar a pele toda, exigindo que ela devolvesse
seu filho de volta. Cavoucar todos os tecidos. Cavar na
carne exposta até encontrar onde ele escondeu o pênis.
Ela o quer de volta. Ela quer Agenor de volta.
Agenor pediu o álbum de retratos. Para queimar junto
com suas roupas. Não há razão mais para preservar
nada. A mãe não entregou. Agenor contentou-se com as
roupas. Fez bela fogueira em calçada habituada a fogos
juninos.
Agenor se olhou no espelho pela última vez. Só
voltaria a se procurar num espelho quando pudesse
encontrar Ângela. Fez isso e lançou o espelho na fogueira.
Na esperança de que ele levasse para sempre sua antiga
imagem, seu antigo nome, sua antiga dor.
Pai e mãe perceberam então sua condição fadada ao
abate. O golpe já havia sido dado. Só podiam se despedir.
Agenor tomou aquela paralisia como uma aceitação.
Beijou a mão dos dois, pedindo a bênção. Só então as
moscas foram ameaçadas.
Alguns vizinhos abandonaram a televisão. Agenor fez
questão de se despedir de um por um dos vizinhos. O pai
e a mãe ficaram ali enquanto ele batia na porta deles. A
lua testemunhou quando a mãe estendeu a mão e o pai a
segurou. Uma intimidade que não tinham há anos.

90
ÓPERA E OUTROS CONTOS

A CALIGRAFIA DA METÁFORA

Primeiro a gente sente a rudeza dos traços de cada


letra. Caleja-se até entendê-las. Não discute com elas
nem com o traçado do caderno de caligrafia. Opera.
Labuta. Arruma-as na ponta dos seus dedos. Afiadas como
cana para o cortador, de sol a sol, as palavras racham e
cicatrizam a pele. Sem ter a menor noção do que elas
podem te trazer no futuro, as buscamos. Tempos depois,
descobrimos que a função mais bela deste alfabeto é
servir à poesia. Este é o reinado, majestosa missão, cume
ensolarado, a medalha olímpica. Como o alfabeto deve
ficar feliz quando está a serviço de um poema. A vibração
das letrinhas impressas em um belo livro. Trincam-se de
regozijo. Encontram-se em casa. Aí inicia-se um novo
modo de amar as palavras — e também temê-las.
Eu aprendi tudo isso com meu avô. Não só o meu
desejo pelo português. O meu desejo de voo nas penas
da palavra. O meu desejo de ter dedos de lápis, unhas
de grafite e viver imprimindo poesias em toda superfície
terrena. Todo segundo deve ser consumido na caça ao
susto do poema. Desmascarar a poesia que ri de nossa
cara porque, óbvia e caprichosa, a poesia mora em tudo.
Ande com cuidado pelo mundo para não esmagar a
possibilidade do poema. Desavisados, pisamos nela; e
quem primeiro me alertou disto foi meu avô.
Toda grande descoberta se inicia com dor. E assim foi
conosco. Meu avô foi depositado pelos meus tios na porta
de casa, como um pacote de lixo. Estavam exaustos de
limpar suas fraldas e vê-lo deseducando-se dos nomes e
rostos de toda a família. Estágio avançado de demência.
Meu avô chegou em minha casa recém-nascido. Um
cheiro de maternidade, talco, desconhecer, ignorância
madrugando no cueiro. Minha mãe o pegou no colo. Deu

91
NewtoN MoreNo

de mamar e pôs para dormir. Sim, a velhice é uma religião


(de poucos adeptos). O porto mais difícil da rota. O lugar
em que se põem à prova a fé, a gratidão e a força.
Nunca fomos próximos. Somos carne, sim, fomos
mesma carne, mas nunca mesmo verbo, desejo,
vontade. Até que aqueles dias me deram meu avô e seu
esquecimento.
“Quanto tempo o senhor vai ficar aqui?” Ele me
respondeu: “Até depois”.
Após o colégio, além do dever de casa, eu é que ficava
de olho em meu avô. Mas o avô, que era sisudo e mandão,
mudou. Está como criança e precisa de cuidado constante.
Eu era o seu vigia do turno da tarde. Soube depois que era
sua parte do dia favorita. Uma dessas tardes, ele lançava
palavras em minha direção que não me faziam o menor
sentido. Elas batiam no meu cérebro e caíam no chão.
Eu tinha que pegá-las novamente, jogá-las para dentro da
cabeça, chacoalhar e nada. Quebra-cabeça incompleto.
Meu avô não desistia de mim, era como se soubesse
que repousava, sob minha insensibilidade paquidérmica,
alguma alma de albatroz. E lançava mais e mais.
Quando entendeu que eu não funcionava a distância,
forçou uma caminhada até onde eu lia.
Na caminhada trôpega do avô, chão vira equilíbrio
ou queda. Eu me joguei em seu socorro, agarrando-o.
Apontava para o livro e dizia universo. E fez tremendo
esforço para piscar um dos olhos. Me pus de ponta-
-cabeça e pude educar-me em seu dialeto. E, toda tarde,
meu avô aproximava-se com uma surpresa ensaiando-
-se em sua boca, como quem vai regurgitar um pássaro.
A depender do efeito e dosagem do medicamento, ele
caía. Eu o amparava, então fui logo alçado à categoria
de pegadas. E, assim, eu tinha me tornado as pegadas
de quem veio antes de mim. E a aula prosseguia. Mãe
era salvação. Sapato vira rua. Dia vira milagre. Noite
vira dúvida. Memória era cupim. As palavras para o avô

92
ÓPERA E OUTROS CONTOS

mudam de lugar, de roupa, de sexo e sentido. E eu fui


aprendendo poesia revisitando as palavras ao avesso do
avô. Foi assim que eu fui graduado em metáforas, com a
língua bisturi de meu amado avô.
Mas, além de me entender com a partitura de suas
palavras, tínhamos também que passear. Ele exigia. E o
que ele queria fazer pelas ruas? Tive medo de que fugisse.
Mas ele já havia me ganho com sua brincadeira alquímica
e tornava-se impossível negar-lhe o pedido. Saíamos
então pelos bairros próximos. Ele caminhava com olhos
bem atentos como que em busca, olhos de caçador, olhos
de quem fareja perigos e alimento. Ganhava novo fôlego
e solicitava horas de caminhada. E foi então que entendi
o porquê. Quando ele encontrava uma palavra escrita de
forma errada, uma aberração qualquer da nossa língua,
num letreiro ou pichação, imediatamente se punha a
apagar aquela palavra com o que tivesse à mão. Cuspe,
unhas, rasgava tecidos da camisa, tudo na tentativa de
salvar o português amarrotado e violado pelas paredes
da cidade.
“Vende-se casas”, “entrar pra dentro”, “venda à prazo”,
“venda à fiado”.
Seus anos de professor de português e literatura
não abandonaram os desvãos de seu cérebro. Era isso
o que seu juízo gelatina tinha lhe deixado de presente.
Um golpe de misericórdia da doença. Lá repousava
o mesmo defensor e guerreiro do português casto,
puro, condicionado em regras e ângulos. Isto, ele não
perdoava; só machucava a palavra para dar-lhe asas; não
na excelência da regra, na ossatura, na espinhela. Tinha
horror a quem a deixava assim descabelada, mal posta,
borrada, sangrando. A quem não cuidava dela com a uma
dama. Grafias, concordâncias, clareza. Com o tempo,
eu levava tinta para remendarmos os crimes cometidos
contra a língua. Meu avô armazenava a borracha que eu
fornecia. Naquela hora em que ele salvava seu idioma de

93
NewtoN MoreNo

agonizante exposição pública, ele parecia curado, no eixo,


consciente. Mas era só assinar sua obra e o olhar apagava-
se novamente. Assim fizemos curativos em quase toda a
vizinhança, enfrentando a injúria de alguns, a gozação de
outros e poucos aplausos, ainda que muito emocionados.
Enfermeiro e enfermo de tanta paixão que babava de meu
avô. Sua febre retilínea, obstinada, inconclusa me tomava.
Era um doente e estava agradecido. Aceitei o contágio.
Aceitei sua febre que fervia meu cérebro de rimas.
Em meu avô conviviam a ruptura e a ordem. Gesso e
loucura. Jaula e asa. Este foi o mapa de nossa amizade.
Até o dia quando o avô virou liberdade.
E não precisava mais das minhas tardes.
Mesmo trinta anos após esta despedida, eu ainda não
alcancei uma palavra para meu avô... verso inacabado
com o qual acordo e durmo.
O que fiz foi seguir circulando pela cidade, curando
algumas fachadas. O que fiz foi ter a coragem de perseguir
a poesia. E faço desta minha herança. De dia, organizo o
idioma pelas esquinas analfabetas, incultas; à noite, sou
do devaneio das palavras, desabotoo-as, despetalando-
-as, rearranjando-as como a demência infantil e senil e
mágica de meu avô.

94
ÓPERA E OUTROS CONTOS

O TROFÉU

Pedro era um rapaz que roubava o mênstruo de sua prima


em latas de lixo, experimentando-os em sua pele pubiana.
Encostava o sangue ainda quente de seu útero ao redor
de seu pinto. Instalava absorvente sob calcinha e sorria. Se
sujava de fêmea. “Sujo feito mulher”, dizia. Mulher se suja
mensalmente. Nesses dias reinava no colégio. Sua prima
sorumbática de cólicas; mas ele, rainha das atenções.
O sangue dela lhe dava vida. Era nesse vampirismo
adolescente que se fortaleceu a certeza de ser menina.
Mocinha. Poliana. Menstruada.
“Menstruei”, soltava inconsequente às amigas.
“Não, hoje não vou nadar, eu tô naqueles dias.”
“Você é menino, Pedro.”
“Petra. A professora erra meu nome.”
“Você é homem.”
“Sou mulher, sou tão mulher que vou morrer num
parto. Que Deus me faça morrer num parto.”
Dizia sem medir a força das suas palavras.
Achava que quem lhe apontasse para o pinto era seu
inimigo de morte. Arrancava qualquer pelo ou sinal de
masculinidade que se impusesse.
Para ele, o tempo era seu maior inimigo. Crescer só
tem dois caminhos. O dele era masculino. Encher um
paletó. Chutar bolas na lama. Gostar de gritar “Gol” até
perder a voz. Ser duro. Ter pelo. Ter barba.
A barba. A barba era a forca que lhe espetava todas
as manhãs. “Por que nascem lâminas da minha pele? Por
que nascem?” O peito lhe doía tanto nesses dias cruéis de
ser homem.
O peito doía-lhe como se uma mulher estivesse
rasgando-lhe a casca.
O peito lhe doía tanto que a mãe sentenciou-o ao

95
NewtoN MoreNo

médico.
Achava que tudo era só tristeza. Ser triste é a primeira
causa de morte no planeta.
Tem gente que ri disso.
Ficou triste quando chegou ao consultório: não se
trataria com um ginecologista.
Ficou alegre quando sentiu as mãos do médico
percorrerem seu corpo.
Percorreram por horas, fazendo Pedro quase perder
os sentidos.
Finda a consulta, o médico tinha algo a lhe dizer.
Grave: “Pedro...”.
“Petra.”
“Petra.”
“Eu sei. Eu sei que não sou mulher, mas...”, choramingou
Pedro.
“Você tem câncer na mama direita.”
“O quê? Câncer? Eu? Na mama?”, choramingou
Pedro para depois ressurgir num rompante de risos.
“Eu disse que era mulher. Na mama. Igual a minha
tia.”
Despencou consultório afora em desvairada
gargalhada de mulher à beira da morte.

96
ÓPERA E OUTROS CONTOS

O CANTO

Uma moça pertencia a uma família rica, da nobreza.


Digo pertencia porque é o termo mais adequado. Sua
vontade era propriedade daquele clã. A mãe a tratava
como objeto, uma peça da prataria de sua enorme
mansão. Manipulava a menina desde criança como um
fantoche, estudando qual vestido lhe cairia melhor, qual
corte de cabelo, qual perfume, qual palavra, qual deus.
Criada como uma boneca, a menina fermentava um
segredo por baixo de seus organdis e rendas.
Ela cantava de forma melodiosa e encantadora, mas
cantava com voz de homem. Gutural, baixo profundo, voz
de um grande cantor de ópera.
Num corpo de meio metro, traços finos, olhos claros e
curvas quase de menina.
Era uma voz de trovão, ainda que afinado, preciso e
encantador.
Como tem medo e vergonha do que possam fazer
com ela, ela sai de madrugada para o meio do bosque e
ali canta para os bichos. A menina só consegue mostrar
seu dom para os animais. Corujas, lobos, toda fauna
noturna se aquieta e escuta.
Ela canta a noite toda, tamanha é sua necessidade
de cantar. Só volta quando o dia ameaça raiar e, mesmo
assim, oferece tudo que possui para que a lua se esqueça
de caminhar.
Mas sua mãe, curiosa com as olheiras grotescas
de sua amada filha, quer investigar seu sono. A mãe a
segue um dia e então descobre o homenzarrão que se
esconde em suas cordas vocais. Pensa que é feitiço, que
é maldição, bruxaria lançada contra sua família. Volta ao
palácio muda. Arquiteta, solitária, estratégias para livrar a
filha desta sina.

97
NewtoN MoreNo

No outro dia, ela manda machucar, emudecer suas


cordas vocais. Antes muda que cantando como um
homem.
A menina esbraveja e clama para que a mãe não
castre sua voz. De tantos gritos, decidem mandá-la para
um sanatório, preparando-a para a intervenção.
Um dia antes de mandá-la para a operação, ela se
apresenta no hospício. Sua última vontade.
Canta durante um dia inteiro, sem interrupção.
Cura os loucos e enlouquece os médicos e sãos.
Os doentes por um momento medicam os médicos
que pulam, babam, rasgam-se com sua voz. Os que
sobreviveram a este concerto, afirmam que foi a única vez
que Deus se materializou na Terra desde sua criação.
Mas, após o concerto, caiu em estado de catatonia
absoluta e nunca mais despertou.
Na mansão, nos dias que se seguiram, tudo continuava
opulento e abundante, menos as palavras. Um silêncio
crudelíssimo. Mas era tudo que lhes restava.
Até o dia em apareceu na mansão um moço em
um carro imponente. Desceu como quem baixa a uma
carruagem, caminhou como quem plana sobre um tapete
vermelho e cumprimentou-os como quem verga manto
e coroa. Viajara do outro lado do país só para conhecer
a filha deles. Descreveu-se como filho de uma linhagem
de nobres e donos de boa parte de fortuna do país. Os
pais, após todo o receituário de mesuras e protocolos e
formalidades, disseram-lhe que a filha havia falecido e que
os médicos, na falta de melhor definição, diagnosticaram
que ela morrera de tristeza.
O rapaz caiu em silêncio.
Os pais não respeitaram muito a dor do moço e lhe
lançaram a pergunta. Afinal, por que a filha deles?
O rapaz soube da arte musical da menina. Soube que
sua voz era divina, mas de timbre masculino.
E pensou que juntos poderiam formar um belo par

98
ÓPERA E OUTROS CONTOS

nos acordes e no casamento. Então o rapaz se colocou


no piano e anunciou que cantaria para seus anfitriões.
Daí por diante o que se diz é que ele cantou a noite
inteira, mas com uma bela voz de soprano, aguda e com
volteios femininos. Se fechassem os olhos, pensariam
que uma cantora estava se apresentando. Diz-se também
que os pais choraram durante todo o concerto.

99
NewtoN MoreNo

TU NUNCA SABERÁS O QUE É O AMOR

Josué estava esperando-os do lado de fora da casa.


Arma em punho, carregada, raivosa. Quase com vida
própria. Assim que eles entrassem em casa, Josué atiraria
nos dois. Duas sementes letais a colher-lhes a vida.
Lembrava, durante a espera, o que sua mãe lhe contara
no leito de morte. E, como sua mãe agonizara de câncer
por dois anos, todo dia ela repetia a história. Não tinha
como esquecer.
Um dia depois de nascer, ainda no berço, ao lado da
cama de sua mãe, Josué sofrera uma praga. Praga jurada
pela amante rejeitada de seu pai. Sueli arrombara a porta
do quarto da maternidade. Bradava para todo o hospital
ouvir:
“Estêvão, seu energúmeno, tu me negaste um filho e
deste para essa mulher. Escuta, nefasto! Estêvão, este teu
filho nunca saberá o que é o amor! Ouviste, criança? Tu
nunca saberás o que é o amor de uma mulher!”.
Fora arrastada para fora pelos guardas. Josué berrava
no berço. Sua vida fora o eco destes gritos.
Crescera na dúvida. Nos encontros afetivos mais
frutíferos, surgia-lhe a incerteza. Geralmente, a pulga
coçava-lhe no meio de um beijo. Murchavam os lábios,
descobriam-se as imperfeições da acompanhante: um
hálito ácido e cortante, uma espinha vergonhosamente
erigida na ponta do queixo, um gosto inexplicável por Ray
Conniff. Tinha esse fantasma preso à sola de seu sapato.
Quando se tomava por certo o casamento, Josué recuava.
A passos de caranguejo, sem se decidir se quer ou não
se banhar na espuma do mar. Assim, com trinta anos,
fartara-se de iguarias amorosas múltiplas, mas era como
se nunca tivesse beijado alguém. O estômago vazio, a
alma espaçosa, uma bandeira hasteada a meio pau, para

100
ÓPERA E OUTROS CONTOS

um luto encenado. Perdia o dia só de olhar para o armário


cheio de lençol de solteiro. A cama estreita deprimia-o. O
único travesseiro constrangia-o. Só familiares nos porta-
-retratos.
No vestiário do clube, depois do futebol, em pleno
banho, iluminou-se. Eu só tive mulher. A praga foi pensada
para mulher. Veio de mulher por causa de outra mulher.
E se meu amor vier de um homem. Como não pensara
antes? Reeducar-se-ia. E começou ali mesmo. Como
que renascido, detalhou seu olhar na galeria de homens
nus, pintos camuflados de pelo e sabão. No começo,
não percebia onde estava o belo. Aprenderia a beleza
do macho, estimularia o desejo por um igual. Jogou
fora todas as revistas de mulheres nuas. Doeu muito
no começo. Doeu muito desapegar-se dos pôsteres da
Playboy. Agenda recheada de telefones de mulheres. São
quinze anos de carreira jogados fora afinal. É um exercício
doloroso virar gay, até para quem nasceu gay. Deslocava-
-se para um bairro distante para comprar revistas do
gênero. Tentava camuflar embaraçosamente. Para
estudar. No início, fez as perguntas erradas de sempre: O
que é? Como fala? Como anda? O que come? Um mês
de tentativas depois, compreendeu que poderia ser o
mesmo sem montar personagens. O mesmo. O Josué. O
que vai ao futebol, trabalha no escritório, mija de pé, coça
o saco. Bastava isto: frequentar os bares e boates certos
e, quando acontecesse, seria maravilhoso. Demorou, mas
conseguira desvendar a esfinge que aquela amante traída
do seu pai lhe impingira. Quanta injustiça: o pai pega uma
dona e a praga acaba com a pobre criança.
Josué respirava diferente até. Entrava esperança em
seus pulmões.
Quatro meses se passaram até que encontrou Inácio.
Difícil aceitar o efeito da barba na pele. Difícil entender
como dançar. Difícil decidir como ficar íntimo de uma
cueca. Difícil encaixar um homem nos seus braços. Difícil

101
NewtoN MoreNo

decidir onde. Mas fez tudo isso.


Nunca tinha olhado um pinto tão de perto. E sabe
que era bonito. Desencapou o pinto de Inácio, observou-
lhe ganhando espaço, pressionando seus dedos para
fora. Sentia o sangue acelerado nas veias desenhadas
em azul e cinza. Sentia a pele macia deslizando sob
aquela arquitetura rígida de carne. A esponja da glande
espremida entre seus dedos. Sentia-se homenageado
com tudo aquilo que Inácio construíra para o seu único
testemunho. Percebeu que seu pau também estava duro.
Aquela curiosidade infantil excitava Inácio ao máximo.
Poderia, sim, desejar um homem.
Amava. A novidade naquela manhã morna de
segunda-feira era que amava. E amou Inácio até o mês
passado. Muito. Com direito a porta-retrato, cama nova
e enxoval. Mas um telefonema denunciou o fim do seu
casamento:
“Josué, acabou. Eu encontrei outra pessoa. Não dá
mais. Um abraço”.
Um abraço? Pela secretária eletrônica. E Inácio
desapareceu. Um dia, uma semana, um mês.
Seguiu-o e descobriu para onde ia todo final de
expediente. Era lá que esperava agora. Uma casinha de
subúrbio desbotada e com cara de mofo. Arma em punho,
nervosa, raivosa, quase com vida própria. O ódio conferia-
-lhe outro brilho.
Inácio surgia num linho impecável. Abria o portão e
saboreava uma rosa. Tinha um quinhão do sol daquela
tarde preso no sorriso. Ele estava feliz. Era a pior
constatação para Josué.
A porta fora aberta e uma boca insidiosa aprisionava
sua língua. Engoliu seco, saudoso. Era uma mulher. Josué
só percebeu minutos depois. O vestido foi se desenhando
na retina, os cabelos longos, o volume dos seios. Sua cólera
obstinou-o. Um minuto e já batia à porta. Ela veio atendê-
-lo, abotoando a blusa. Josué perguntou: “Ele te ama?”.

102
ÓPERA E OUTROS CONTOS

O único tiro acertara no peito dela. Um tiro certeiro no


coração. Inácio, correndo do interior do quarto, parecia
um quadro expressionista. Não tocava o corpo dela; tocá-
-lo era ter que acreditar. Josué jogou-se em seus braços,
beijando-o muito. Pode-se dizer que pretendia transar com
ele ali. Inácio, depois de minutos de inércia, simplesmente
tomou-lhe a arma. Josué nem sequer imaginou o perigo
que corria. Na sua cabeça, Inácio jamais atiraria.
“Bicha escrota.”
Inácio gritava-lhe sob a tempestade de balas que
chacoalhavam seu corpo:
“Sua bicha escrota, tu nunca saberás o que é amor de
uma mulher.”
E despencou num choro que tem durado décadas.

103
NewtoN MoreNo

RESSURREIÇÃO

[1]
Um cheiro de pão assado quebrou a janela e forçou
a manhã. Eu ainda navegava do sonho ao sol, sem ter
muitas certezas se queria amanhecer. Não sabia se já
havia cumprido minha missão sonho adentro. Indecisa,
bocejei desabando em olhos abertos que autorizavam
o dia a começar. Subi os degraus para fora da cama
enfeitiçada por aquele aroma. Aroma familiar, morno,
seguro, que só minha mãe sabia criar no caldeirão de
seu forno, abrindo as chaves da porta do sono de todos
naquela casa. O que me intrigava para além da escolha
certa das cores e casacos que o outono exigiria era quem
estava a cozinhar. Minha mãe não estava mais entre nós
há cinco anos, logo quem reproduzia com tanta maestria
seu feitiço aromático? A fome e a curiosidade aceleraram
roupa, bidê e remédios. Avancei pelo corredor e vi meu
pai na porta da cozinha, sentado no chão, olhando
fixamente para a mesa vazia. Acudi o homem, erguendo-o
até a cadeira da mesinha de café. Ele não dizia nada,
tinha o olhar teso. A boca aberta procurando palavras que
haviam fugido para bem longe dali. Talvez a lembrança
desse aroma o tenha descompensado. Traquinagem do
irmão mais velho querendo surpreender a todos? A porta
da cozinha que dá para o quintal ameaçou abrir. Meu
pai saltou da mesa até atrás da geladeira. Eu fui ao seu
socorro quando ouvi. A música. A mesma em que a mãe
se apoiava toda manhã para reunir coragem e enfrentar
seu dia, seu tanque, seu forno. A voz. A mesma em que
inscrevia as mais belas palavras da língua para descrever
meus atos, minhas falhas, meus medos, meus dias. Em
que lugar do sonho fui presa? Mas não vi indícios de
âncoras. Era o dia que deveria ser. O calendário era claro.

104
ÓPERA E OUTROS CONTOS

O rádio-relógio era claro. O horror no rosto de meu pai era


claro. A porta bailou imprecisa porque alguém carregava
roupas, vindo do varal. Era ela. Minha mãe. Meu pai, num
grito, sumiu, rumando para seu quarto. Bateu a porta.
Deixou-me a arena. Eu e minha mãe. Eu me dirigia àquela
figura frágil, um pouco mais velha do que eu lembrava,
carregando uma trouxa de panos e cantando. Jogou-os
ao chão e foi atender ao chamado do forno. Pães cobertos
de queijo e presunto fumegavam, pedindo aprovação e
carinho. Ela retirou-os e colocou sobre a mesa. Conduziu-
me à minha cadeira e me autorizou a uma bela garfada.
Eu obedeci. Se fosse sonho ou não, eu provaria de seu
prato cuidadosamente polido e podado para mim. Mas,
antes que pudesse comer, levantei-me num átimo. Caso
sua imagem sumisse não queria deixar de abraçá-la.
Ela me recebeu como uma nuvem deve receber anjos
distraídos. Me absorveu na sua bruma, esponja materna,
cornucópia do amor. Eu deixei seu vestido molhado com
alguma parte de mim e olhei seu rosto. Eu disse então:
“Mãe, você está morta”.

[2]
Meu pai ficou doze horas preso no quarto. A essa
altura, a mãe já tinha a casa pronta para receber elogios.
Tudo no seu ritmo e rigor. Era como se ela tivesse feito isto
diariamente nos cinco anos em que ela estava... longe. Ela
não sabia onde tinha andado, não se recordava de nada,
nem do momento de sua morte, nem do que se passara
no outro lugar que estava habitando. Nada. Cansei de
indagar. Um silêncio generoso dos ruídos de sua memória.
Lembrava tudo cinco anos antes. Tudo. Meu aniversário
de 15 anos, o casamento, as brigas com a irmã. Eu peguei
algumas fotos, inclusive do dia do seu velório. Depois
pensei: quem teve a ideia de tirar fotos de tantos rostos
tristes? A mãe desfilou o olhar pelas fotos, reconhecendo
os parentes, perguntando como eles estavam. Não foi

105
NewtoN MoreNo

confortável avisá-la do falecimento de alguns. Ela deveria


saber mais sobre morte que eu. Ela suspirou, na certa
como quem pensava: “Em breve, eles voltam também”.
Foi aí que eu gargalhei. Porque me ocorreu: e se todos
voltassem? Meu Deus, a família reunida até a primeira
semente. Parentes que nem conheci. Meu avô! Meu
tataravô!
Meu irmão chegou em casa com um buquê de flores.
Não sei se era o mais apropriado dos presentes para a
ocasião. Mas ele o trouxe. Minha mãe assumiu sua face
mais densa até então. Enrijeceu como um cão de faro
aguçado. Não sabia o que dizer, falar, nada. Minha mãe
não conseguia prender olhos em seu filho. Foi ele que
andou até ela, vendendo bravura, mas, no último passo,
desmaiou.
Acordou com seu chá e cafuné. Meu irmão não
perguntava muito. Sentia. Percebi que ele fazia o certo.
Ficamos juntos, os três. Meu irmão a cada segundo
precisava tocá-la. Confirmá-la. Tê-la. Em onda, chocava-
-se à sua carne como o mar pertencendo à praia. A mãe
deixava, e ele em meio a tantos apertos, fungadas e beijos.
Mas ela suava medo e não disse nada durante todo o
tempo em que meu irmão esteve conosco. Até que se
despediu de seu afeto e sede, indo em direção à cozinha.
Quando o pai dormia, ainda trancado no seu quarto, e
o irmão cochilava no sofá, eu pensava o que fazer. Avisar
a família? Não até terem certeza de que ela veio para ficar.
Imagina avisar os parentes distantes para virem visitar a
mãe no feriado. Sim, a mãe que enterraram juntos, sob
grossa chuva e vento afiado. E eles chegam e ela não
está e o que nós faremos? O que dizer? Melhor silenciar.
Aceitar o que aquela manhã nos trouxe: nossa mãe de
volta. Além do que, como explicar o que não cabia em
nosso juízo? Decidi, como criminosa óbvia, esconder
o corpo. Nossa mãe não deveria sair de casa. Não até
provar que veio para ficar. Nesse momento a mãe

106
ÓPERA E OUTROS CONTOS

retornou e devolveu para mim o santinho distribuído no


seu velório. Recriminou a escolha da foto. Separou para
nós a foto que quer que usemos no futuro. Se isso voltar a
acontecer. Voltou tranquila para sua cozinha.

[3]
Os primeiros dias.
A casa estava devendo a ela. Desfalcada de seus
objetos, roupas e até mesmo travesseiro. O que eu
consegui na despensa e na garagem, eu ressuscitei. Os
vestidos foram “customizados” pelas traças. Demos todas
as suas roupas, e ela ficara sem nada. Meus vestidos
ficavam pequenos. Ela pediu que eu comprasse alguma
peça nova de roupa na esquina. Lá fui eu. Entrava na loja
que sempre forneceu vestidos para minha mãe. E como
esconder que procurava peças que compraria para ela?
Seu tamanho era diferente do meu. Eu afirmei que era
um presente para uma tia. A vendedora, velha amiga de
todos nós, consultou meus olhos procurando saudades.
E achou. Eu tinha um choro sambando delicadamente na
pálpebra. Ela me tocou o braço como quem me salva de
uma queda. “Eu já fiz isto, querida, comprei roupas para
minha falecida mãe.” E era isto. Nossos sábados tinham
esta mesma rotina: comprar roupas juntas. Eu chorava
pensando: “Será que terei esses sábados de volta?”. A
vendedora me consolava: “Você não terá esses sábados
de volta, mas eu estou aqui para o que você precisar”.
Na volta para casa, sorrateira, eu investigava as casas
vizinhas para saber se seus falecidos entes estavam
também visitando-os. Fui na mais certeira, o velório
mais recente. Na Dona Selma, nem sinal de gáudio e
cores. Ainda estava tingida de luto, escondendo dentes
e cabisbaixa, depois que seu marido se foi. Ela me
capturou enquanto eu sondava pegadas com notícias de
mortos pelo seu jardim. Com uma palavra me conduziu
para dentro de sua casa. Eu aceitei o chá que ela me

107
NewtoN MoreNo

ofereceu. Esticava o pescoço para ver algum sinal de


visitantes inesperados e nada. Ela notou meu interesse
no retrato do marido. “Eu sei o que você quer perguntar.”
Assustei-me. “Seria bom, não é?, se eles retornassem vez
em quando para uma visita. Um final de semana com a
família. Não é pedir para desmorrer de vez, só dar uma
pausa na despedida. Uma folga para tanta dor. Ai como
eu queria férias da saudade.” Eu me senti culpada. Estava
ali ao lado, podendo acessar todos os desejos de Dona
Selma.

[4]
Minha tia entrou em casa e foi direto ao quarto. Movida
por alguma intuição, porque ninguém a convocou. Minha
mãe dormia, soneca após pratos lavados. A irmã reeditou
a entrada no quarto de cinco anos atrás para lhe fechar os
olhos e dar um último beijo. Desta vez, era o contrário. A
mãe abriu os olhos, seguido de sorriso. “Foi assim mesmo
que eu sonhei esta noite.” A tia não resistiu à visão da
irmã. Seu coração parou. Minha mãe então chorou, mas
não muito. “Quem sabe ela faça como eu e volte?”
Não quis ir ao enterro. Todos nós compreendemos.

[5]
Mãe percebia que havia mais tristeza que no passado
entre a mobília da casa. Precisava livrar-se dela como
quem cria estratégias para livrar a casa de cupins e
goteiras. Abriu primeiro a minha gaveta. A mãe escolheu
a hora mais silenciosa do dia, livrou-se de moscas, ruídos,
qualquer interferência, queria-nos sós.
A filha, eu, estava escondendo lágrimas sutis enquanto
provava o vestido de casamento. Já havia decidido usar o
vestido da mãe. Não esperava que ela pudesse ajudar-me
a ajustá-lo. E lá estava, a mãe aos meus pés, organizando
a barra. E me disse: “Você não o ama”. Ela tinha razão.
Então por que eu deveria casar-me? Não desviou o olhar

108
ÓPERA E OUTROS CONTOS

da agulha enquanto salvava minha vida e a do meu


noivo e provavelmente a dos meus filhos. Ali na base de
montanha, como uma raiz que transbordava do tecido,
refletiu que casamento por medo de morrer sozinha só
pode levar a uma solidão maior. Quem me obrigava?
Eu mesma. Em sua época, sim, casamentos não eram
escolhas, eram jogos de azar. Ela não tinha armas
para esses jogos, mas Deus apiedou-se dela e eis que
terminou nas mãos de um homem a quem quis amar. Ela
olhou para o rapaz que seu pai trouxe para jantar e sabia
que tudo daria certo. Não seria a maior história de amor
do século, mas tudo daria certo. Mas qual era a minha
desculpa? Nenhuma. Nem gravidez, nem promessas
entre famílias, nem interesse financeiro. Apenas medo
de morrer só. Sempre esse medo de morrer só. A mãe
disse com autoridade suprema: “morrer só, todos nós
morremos”. Deu uma mordida na linha, assinando seu
trabalho e saiu. Deixou-me olhando para o espelho vazio
como uma manequim involuntária. Eu voltei a sorrir (a ser
só) depois daquele dia.

[6]
Depois, ela pediu que o pai a escutasse. Sabia
que ele não a olhava com amor porque a olhava com
vergonha. Onde a vergonha reina, repousa pouco
espaço o respeito. Pediu para que ele a ouvisse. Nós
entendemos prontamente que deveríamos sair da casa.
Como quem tira um espinho de animal ferido, ela
começou. O animal nem sempre sabe por que se feriu, se
aquela pessoa quer ajudá-lo ou machucá-lo ainda mais,
sofre em agonia silenciosa o toque, o encontro, o cuidado.
Meu pai tinha medo de ser cuidado. Fazia seus próprios
curativos. Minha mãe não aguentou ver o sangue que
escorria. Veio em sua ajuda. Disse-lhe com elegância que
não precisava olhar para o chão toda vez que a via. Não
precisava dormir no chão, deixando-a sozinha na cama.

109
NewtoN MoreNo

Nem precisava calar-se como se não tivesse mais direito


a dizer o que pensava. Ela o perdoava. Sabia o nome da
outra há muito tempo. Pode ter se esquecido do que foi sua
vida ou sua morte nestes cinco anos, mas não esqueceu
que a outra existia. O pai envelheceu décadas em cinco
anos porque o consumia a culpa de não ter lhe contado
antes. Ela merecia saber disso, não podia ter partido sem
saber. Mas o que aquela mulher estava lhe dizendo como
quem salpica mezinhas no ferimento do filhote é que está
tudo perdoado. O silêncio. O sexo que a outra desfrutou.
As noites em que a mãe fingiu ver televisão à sua espera,
interessada nos capítulos folhetinescos. E, assim como
eu, ele pode voltar a sorrir. Ela pede, ele responde. E, ali,
ele conseguiu um sorriso. Amplo sorriso de canto a canto
do rosto. Os músculos foram vagarosos ao construir
este sorriso porque estavam hibernando alegrias há
cinco anos. Desenferrujou a alegria. Quando chegamos,
trazendo um bolo da padaria, encontramos o pai com a
cabeça em seu colo. Ela deslizava seus dedos no mar
de seus cabelos. Provando da temperatura de seu mar
prateado. Como num rio em noite de lua intensa. Minha
mãe deitada nas margens do meu pai, procurando pela
lua em seus cachos grisalhos. Deixamos o bolo para a
manhã seguinte. Eles dormiram ali onde o rio encontra o
mar.

[7]
Aos outros, ela curou: com o filho, ela era quem
precisava de bênção.
Estava, todos estes dias, arregimentando forças para
a conversa mais decisiva. A tristeza que o filho trazia nos
olhos era em parte sua culpa. Quando sentiu-se mais
preparada, pediu que o chamasse. Escolheu a poltrona e
passou a madrugada ali a esperá-lo. O carro dele pousou
na garagem e ela trincava os dentes para que o coração
não lhe escapasse. Meu irmão tinha um olhar de devoto

110
ÓPERA E OUTROS CONTOS

em procissão para com minha mãe. Ela não conseguia


ainda receber a fé que ele exalava. Mas começou a
desabrochar sua agonia aos olhos atentos do meu irmão.
Começou revelando que havia perdido a primeira
criança que esperava e pensou que nunca mais poderia
suportar perder outro. Se algo acontecesse a esse
novo filho, quem a salvaria do precipício? No aborto
involuntário, ela conheceu o inferno. Sabia o que era dor.
Havia ouvido falar da dor, mas só a conheceu naquele dia.
Em seu ventre, disse um doutor, não se criavam raízes.
Poderiam escorregar mais anjos. Tentou se cortar, se
ferir, se terminar. Tentou o que pôde. Quando conseguiu
voltar a se olhar no espelho, pediu ao marido que não a
engravidasse mais, porque não suportaria a lembrança
daqueles dias. Mas ela engravidou. Tudo de muito risco,
um grito, um susto, um cão bravo e poderia ser mais uma
despedida. Como acumular intimidades com uma criatura
que talvez não pudesse conhecer? Um luto antes do
nascimento. Nunca mais a mesma válvula da tormenta,
nunca mais o mesmo mundo ingrato a lhe sufocar a festa,
nunca mais. O irmão compreendera a natureza de seu
testemunho só neste momento.
Decidiu terminar o suplício. Não contou ao marido. Foi
carregando uma dúvida, voltaria carregando apenas a si
mesma. Naquele instante, achou que suportaria a culpa.
Maleta na mão, ela rumou a um médico que lhe prometeu
rápida recuperação e sigilo. Mas, quando chegou ao
local, sentiu-se, aí sim, covarde. Desistiu. Tinha que lutar
pela criança. E, se esta criança também escorresse pelos
lençóis, lavaria o sangue com as lágrimas e rezaria pelo
anjo que enfeitava o céu. Será que temos o direito de fugir
da dor? Voltou para casa. Fez jantar. Não contou nada ao
marido e escolheram o nome dele naquela noite.
Terminou com olhos cimentados ao chão. Ré, afoita,
indefesa, estava entregue ao veredito. Foi o momento
mais difícil desse retorno. As pernas obrigaram-na ao

111
NewtoN MoreNo

sofá. O sangue empedrou, a boca secou, desidratou, sem


salivas, sem palavras. Agora o veredito. Meu irmão. O que
eu poderia não ter conhecido. O que poderia nem ter sido.
O que ela gerou e quase matou.
O filho encostou a boca em seu ouvido e disse apenas:
“A senhora vai ser avó”.
Foi então que ela se permitiu as lágrimas.
Meu irmão provou algumas. Confessou depois que
tinham um gosto doce, como que açucarado, algodão-
-doce líquido, néctar de fruta madura. A mãe não desistiu
de seu sorriso enquanto chorava. Estava sendo abraçada
pelo perdão.

[8]
Estávamos eu, meu pai e meu irmão, aguardando
pela exumação do cadáver. Havíamos solicitado à
administração do cemitério desde seu retorno e finalmente
marcaram a data. Teria alguém sido enterrado em seu
lugar? Quem? Precisávamos desvendar essa ideia
maluca que nos corroía. Mas os funcionários ficaram mais
surpresos que nós. Não havia nada no caixão de minha
mãe. Ossos, restos, roupas, migalhas de piquenique de
vermes, nada. O caixão estava vazio como se nunca
corpo ou alma o tivessem habitado. E agora?
Enquanto caminhávamos de volta ao carro,
assistimos famílias desabarem. Foi quando nos atingiu
uma sensação de conforto. Nós a tínhamos de volta. Do
que estávamos reclamando? Do quê? Ter minha mãe de
novo. Então começamos a acelerar o passo para chegar
em nossa casa. Uma súbita insegurança. E se ela tiver
sumido? Se tiver ido embora? Corremos a casa inteira
e nada. Nada. De repente ela nos surpreende. Estava
no quintal, debulhando milho. Dedos que emprestavam
da espiga sabor e colorido ouro para nosso jantar. Um a
um, envolvemos minha mãe. Como nunca fizemos antes.
Naquele instante a tarde estacionou num púrpura que

112
ÓPERA E OUTROS CONTOS

venceu todas as cores. Minha mãe, sim, muito mais sábia


depois de sua volta, soube aceitar. Que atrase o jantar.
Que atrase a noite. Que atrase a morte. Nada poderia
ser mais importante que pertencer àquele abraço, em
pertencer à minha mãe. Morta-viva-ressuscitada de mãos
cor de ouro, tocando como Midas nossos rostos dourados
de sorrisos.

[9]
Dias depois, ela soprou as velinhas com fôlego de
menina. Contando os anos que ficou fora seriam 84 anos,
mas ela não comemorou o aniversário de 80, 81 , 82 e 83
anos. Então fizemos cinco bolos e compramos velinhas
com todas essas idades. Ela aceitou. Fez cinco pedidos,
mas não contou nenhum, dá má sorte. Eu pedia para
que a tivéssemos aos 85 anos. Ela acalmou minha ânsia.
“Nunca se sabe o dia de amanhã, não é mesmo?”

[10]
Acordou mais cedo no outro dia. Sabia que tinha que
ir. Não sabia explicar por quê, mas sabia que tinha que
ir. Sabia que tinha que ir. Do mesmo jeito que sabia que
tinha que retornar e assim o fez. Não olhava a casa com
nostalgia, mas, sim, com sensação de dever cumprido.
Todos estão mais animados, então ela pode ir. Beijou
os porta-retratos. Limpou, varreu, habitou o quintal com
sua música. Como quem sabe que fará uma viagem,
deixou lista de compras na geladeira. Um lar é uma coisa
preciosa, ela o sabia. Mas ela o teve. Cuidou de seus
filhotes, de seu parceiro, de seu ninho. Era sua função, era
sua missão fazê-los felizes. Agradeceu a uma imagem de
Maria que frequentava cozinha. Muitos não tiveram sua
família no mundo. Agora Maria seguiria olhando por eles.
Assim ela pediu em sua última prece. Ela acreditava em
reza como quem acredita em receita, em diploma, em lei.
Sorriu vitoriosa e se foi.

113
NewtoN MoreNo

Mas deixou a casa em ordem.


O café da manhã pronto. Percebemos logo sua
ausência. Fomos nos sentando à mesa, um a um, sem
lágrimas nem berros de fogo de artifício. Eu, que havia
aprendido a fazer aquele pão assado com queijo e
presunto, restituí parte de sua herança ao nosso lar. Lar que
minha mãe reconstruiu quando voltou temporariamente
de sua morte.

114
Textos Newton Moreno

Produção executiva Daniella Varjal

Revisão Consultexto

Diagramação Marcio Sá

Projeto gráfico Bruno Parmera

Pré-impressão e Gráfica FacForm


impressão

Este livro foi composto em Kalinga, corpo 11 / título


12, e impresso em Polén Soft 80 g/m² (miolo) e Duo
Design 300 g/m² (capa), em maio de 2016.
Incentivo:

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