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Amor em

Vermelho
Porque vermelho em excesso dói.
De Júlia Vieira.
O fim foi como o começo. De maneira trágica.

Um pub encardido. Algumas vozes paralelas, uma música forte de fundo e uma luz escassa, saída
de algum holofote enferrujado perto do palco de madeira gasta. Pessoas sem rumo, sem começo, sem fim.
Conversas entupidas de estupidez. Alguns comentários banais, deploráveis... Outros, relevantes.

Eu não esperava encontrá-la ali. Mulher de tal porte não tinha aparência de quem gostava de pubs,
muito menos um naquela situação precária. Mulher como aquela gostavam de glamour, mordomia e de
homens ricos. Não copos sórdidos e porcos a comendo com os olhos. Ela não era mulher para aquilo. Ela
simplesmente não era.

... Ou pelo menos, era o que eu achava.

Ela tinha os cabelos ruivos compridos presos em um rabo-de-cavalo no alto da cabeça. Seus olhos
amendoados brilhavam entediados em direção à taça de Martini que segurava na mão esquerda, e seu corpo
esguio era bronzeado, bronzeado sem ser laranja. Era caramelo, como se ela estivesse sempre embaixo do
sol.
Havia uma cereja dentro de sua taça boiando em meio ao álcool destilado, a qual ela catou com o
dedo mindinho e colocou na boca. Seus lábios eram vermelhos e brilhosos, combinando com a fruta, e me
perguntei por algum tempo se havia como ela ter os tingido com a cereja do Martini.

Tudo em Dulce seria vulgar, se Dulce não fosse Dulce.

“Você demorou”, ela o cumprimentou ao me ver passar, num ar blasé.


“Eu sei”.

Eu não pediria desculpas, não havia o porquê. Dulce não era uma mulher de perdões, desculpa ou
explicação. Ela não acreditaria se eu dissesse que alguns minutos antes de encontrá-la naquela imundície,
travava um dilema comigo mesmo para decidir se iria ou não ao seu encontro. Fora uma briga com causa
perdida, eu bem sabia. Não havia escrúpulos que conseguisse me manter longe daquela mulher. Ela era toda
perfeita, do jeito dela.

... Perfeitamente perversa.

Não havia batalha para ser posta em pauta. A guerra havia sido ganhada. Ela era a vencedora.
Comandara as batalhas, elaborara cada artimanha, me fizera cair em seus pés, entregue, rendido,
loucamente apaixonado. Ela era a ganhadora. Ela sempre conseguia o que queria.

“Não gosto de esperar”, com os olhos me obrigou a sentar. “Você bem o sabe”.
“Não sei muito de você, Dulce. Acho que nem mesma você sabe muito bem...”

Aquelas eram as minhas defesas. Tentar jogar contra ela os seus poucos defeitos perfeitos. Suas
armaduras perfeitas. Suas imperfeições perfeitas...
O meu ato de rebeldia a fez sorrir de modo extasiante, mostrando a seqüência de dentes brancos
perfeitos, que entravam em contraste com a sua pele dourada e os seus lábios avermelhados. Ela deveria
saber muito bem do meu incomodo perante a sua presença. Deveria saber – ou melhor, sabia – o que
causava em mim. Meus olhos dançavam de paixão quando miravam a minha musa, e eles me entregavam,
me sentenciavam.

“Sou um mistério”, ela deu uma risada suja. “Sei que você odeia mistérios”.
“Você não sabe. Também não conhece muito de mim...”
“E você conhece?”
“Não. Você me confundiu.”

Não era a resposta que ela gostaria de escutar.


Notei como ela se moveu de maneira desconfortável na cadeira, fazendo seu vestido curto roçar em
suas coxas e se elevar um pouco, tornando a me colocar incomodado. Eu podia sentir os olhares sobre ela.
Podia sentir aqueles olhares imundos sobre a minha musa. O ódio se elevava pois Dulce o fazia para me
provocar. Para provar que o poder da situação estava fixo em suas mãos.
Mirei suas mãos, não sei muito bem o motivo. Pus-me a observar seu esmalte vermelho-sangue e
sorri diante daquela visão.
Dulce era toda vermelho, e vermelho em excesso doía.

“Para que me trouxe até aqui?”, resmunguei, tomando o Martini que ela até então tragava goles singelos e
dando um pouco de álcool aos meus lábios. “Seu maridinho prepotente a cansou outra vez?”
“Não fale assim de Charles.”
“Falo como eu quiser.”
Não entendia como Dulce ainda surtava quando criticava o homem com qual era casada. Sei que
era respeito, e não amor. Ah, não, estava longe de ser amor. Mas ainda não compreendia como
demonstrava respeito por um homem ao qual ela mesma traía... Muitas vezes.
Ele era tudo o que eu não era.
Charles era rico, enquanto eu era um pobre pintor sem ter onde cair morto. Sem fundos, sem
garantias, sem reservas. Charles morava em uma mansão no subúrbio da cidade. Eu precisava dar meu
sangue para conseguir pagar o minúsculo e empoeirado apartamento sobre a escola de música em uma
esquina mal habitada. Charles abusava de mordomos, motoristas e empregadas para mimá-lo. Eu possuía a
mim mesmo e a um gato idoso, que até então não possuía um nome, pois não me via no direito de nomeá-
lo. Eu não era ninguém para aquilo. Charles possuía um currículo excelente. Advogado formado em Oxford,
ou Harvard, ou qualquer escola de milionários. Eu possuía somente alguns pinceis puídos e tintas quase
secas. Charles era velho, e todos sabem que mulheres se interessam pelos velhos, mas dormem com os
novos... E, pelo menos aquilo, eu era. Era novo. Transpirava juventude ainda, mesmo no auge dos meus
vinte e três anos. Tinha saúde, agilidade e reflexo, coisa que a vida tirava aos poucos daquele velho ridículo,
que beirava os seus setenta e dois...
Mas, o meu verdadeiro desgosto era que Charles possuía Dulce a qualquer hora, e, eu, somente
aproveitava dos poucos momentos em que ela dedicava para mim, quando tinha vontade e – ou – precisava
de sexo.
Sexo de verdade. Não sexo com um cadáver.

“Para que me ligou, Dulce?”, repeti a pergunta, daquela vez, mais firme.
“Precisava falar com você”.
“Se procura sexo, não estou disposto no momento.”

Feria-me dizer tal coisa.


Para mim, Dulce não era sexo. Dulce era amor, paixão, obsessão. Era desejo, cru e nu. Era loucura;
pintura. Dulce para mim era a tinta vermelha. A mais viva, mais ofuscante, mais rica. Toda ela, toda Dulce,
toda em vermelho.
Dulce era a minha cor favorita.
Dulce era a cor do meu tormento.

“Não estou procurando sexo”, parou de falar e procurou um cigarro em sua bolsa minúscula, encontrando-o
logo e levando aos seus lábios berrantes, “Não por hora.”
“Então o que você quer?”

Movimento involuntário era aquele que eu sempre realizava perto dela. Sem ter noção do que fazia,
me debrucei um pouco sobre a mesa, aproximando minhas narinas daquela pele do Diabo, sentindo o seu
cheiro tão costumeiro e único misturando com o odor nauseante do ambiente em que nos encontrávamos.
Dulce cheirava a nicotina e rosas. Rosas vermelhas, é claro.
Era o seu cheiro próprio. Acredito que mesmo se esfregasse sua pele com bucha de arame, aquele
odor nostálgico não sairia. Cheirava a nicotina sendo queimada. Cheirava as rosas de um grande jardim na
primavera. Cheirava a Dulce, somente a ela.

“Já disse, preciso falar com você.”


“Então fale... Não tenho muito tempo.”
“Ah, você tem.”

Ah, eu tinha.
Tinha qualquer coisa que ela pedisse. Qualquer coisa.

“Vá direto ao que importa, Dulce.”


“Ok...”, e ela me deu aquele sorriso perverso e disse, com simplicidade, uma única frase.

... Duas palavras, treze letras. O suficiente para me estraçalhar.

“Estou morrendo.”

Dei um sorriso, desacreditando no que ouvira.


Era claro que ela não estava morrendo. Dulce não poderia morrer. Ela não poderia.

“Não, você não está”, revidei.


“Sim, eu estou.”
“Não.”
“Porque você nunca acredita em mim? Que merda, Christopher, pelo menos uma vez escute o que estou
falando!”

Permaneci sorrindo de maneira débil, balançando a cabeça para todos os lados e negando a
realidade que ela colocara sobre a mesa, de maneira tão comum.
Dulce não poderia estar morrendo. Não, mesmo.

“Olhe”, vi que ela retirava um papel amassado da pequena bolsa e atirava sobre a mesa, perto do saleiro e
do cinzeiro, esperando, com o olhar, eu criar coragem para pegá-lo. “Pegue logo!”

Estiquei os dedos, com calmaria exagerada, tomando o papel amarelo em minhas mãos e abrindo-o
da mesma maneira que o pegara. Fingi percorrer meus olhos pela folha, não querendo ler o que estava
escrito, e ela sabia que eu estava interpretando uma leitura, pois o tomou de meus dedos e resmungou:
“Câncer e Tuberculose... Cômico não? Tenho uma e ganhei outra de brinde.”
Fora a única vez em minha vida que senti vontade de bater em uma mulher. A única vez – ou
melhor, segundos – que tive vontade de esmurrar o rosto perfeito de Dulce, queimando em ódio por tais
palavras.
Ela estava morrendo. E estava se divertindo.

“Quanto tempo?”
“Quanto tempo o que?”, perguntou sabendo do que se tratava, mas querendo fugir da resposta.
“Quanto tempo você... Têm?”

Palavras. Tão idiotas. Nunca são o necessário para demonstrar os sentimentos. Nunca são
necessárias para nada. Um olhar vale mais do que o dicionário por inteiro. Um olhar valeu muito mais do
que a minha própria vida.

“Um dia, dois dias? Alguns meses? Alguns anos? Quem sabe?”, ela deu outra risada fraca, mas ainda
mostrando o deboche a sua vida. “Viva rápido e morra cedo, Christopher. Esse foi o dilema de vários
gênios.”
“Você não é um gênio, Dulce”, falei, vacilando assustadoramente com a tonalidade de minha voz.

Oh, eu estava apavorado.

“Você não me conhece, Christopher. Lembre-se que eu sou um mistério...”

E outra vez ela riu.


Aquela risada demoníaca, perversa... Vermelha.

“Você não pode morrer.”


“Ah, eu posso sim.”

E aquele fora o meu maior erro: acreditar que Dulce era imortal.

Segundo.

“Charles”, murmurei, “Ele pode pagar um médico que a salve.”


“E você acredita mesmo em salvação?”

O seu corpo nu dela roçou em minhas costas igualmente desnudas, fazendo um sorriso irônico
escapar de meus lábios, vendo que no final das contas, ela me conhecia.

Ligeiras contrações percorriam sua perna quando eu encostei meu braço nela de propósito,
querendo irremediavelmente ver como ela reagiria ao meu toque, e acariciei de leve com as costas das mãos
o espaço entre o seu joelho e o colchão gasto. Murmurei alguma coisa sem sentido algum, alguma palavra
perdida que viera em minha mente enquanto ela ainda esperava a minha resposta, e eu sabia que ela não
gostava de esperar.

“Não acredito em Deus. Não acredito em milagres. Não acredito em salvação”, sussurrava como se
lhe contasse algum segredo sujo, mas me deliciava com o sorriso sincero dela para mim, somente para mim.
“Acredito em amor. Acredito em vermelho. Acredito no que sinto por você...”

Aos poucos foi relaxando sob minha leve carícia enquanto eu estava mais tenso que qualquer coisa
na face da Terra – todos os meus músculos enrijecidos como se eu tivesse levado um choque... Mas ela se
tornava fraca a minha caricia, respirando mais devagar que antes e apoiando a mão sobre a perna que eu
não alcançava, fincando as unhas nela devagar quando eu aumentava a pressão de meu toque.
Minha cabeça estava totalmente dependente de meu corpo e eu pensava em milhares de coisas ao
mesmo tempo, mas principalmente no ponto latejante em que grande parte de meu sangue se encontrava.
Num momento inesperado, cantarolei “Arcando com as conseqüências, se usando de eloqüências, e
sorrindo”. Dulce sorria para o vazio e cada movimento seu fazia com que eu aperfeiçoasse o sistema de
correspondência tátil entre a ferocidade amordaçada prestes a explodir dentro de mim e a beleza de seu
corpo por baixo do lençol encardido.
O que de início era uma deliciosa distensão de minhas raízes mais profundas transformou-se em um
formigamento incandescente, que atingia naquele segundo o estado de absoluta segurança e
irreversibilidade que não é encontrado na vida consciente. Não havia mais nada a temer...

... Ou talvez houvesse, mas em minha cabeça, Dulce ainda era eterna. Dulce sempre seria eterna.

A carne é fraca. A tentação nos move. O ciclo se repete. Não há barreiras que não possam ser
transpostas nem amores que durem à ignorância. Não encontrava sentido em ver suas roupas ao lado das
minhas e em nossa nudez me sentir inferior. Podia ser mais alto, mais gatuno, mais privilegiado.
No final, a carne continuava sendo fraca. E nos meus lençóis sujos ela se enrolava como uma
rainha. Nos sonhos, a plebe se mistura. E sua superioridade se desmancha como os nós de seus cabelos
vermelhos. Muito vermelho.
No escuro, os tons de pele eram iguais.
No escuro, a vida e a morte eram apenas sonho e pesadelo.

“Você deveria começar a acreditar em Deus.”


Dulce falou para mim, enquanto andava envolta do lençol pelo pequeno cômodo ao qual eu
costumava chamar de moradia, e ao qual ela chamava de: “Vermelho”. Ela não me encarava, nem ao
menos se importava com o meu olhar nervoso para o fumo que ela levava pendente na boca, somente
deslizava pelo chão de madeira com seus pés descalços, cantarolando alguma música antiquada em francês
e indo em direção ao meu trabalho.
Ela adorava os meus quadros, pelo que me dizia.
Fora por aquelas telas ridículas que nos conhecemos. Fora por aqueles rabiscos insolentes e pobres
em detalhes que vivíamos aquele turbilhão de conflitos internos naquela noite.
Por aquelas malditas telas.

“Vermelho. Vermelho. Vermelho. Vermelho... Acabaram as outras tintas, querido?”, ela me perguntou
enquanto analisava todas as telas, todas as pinturas e a única cor presente.
“Não”, respondi, “Não vejo graça nas outras cores.”
“O mundo tem mais de uma cor, Christopher. Vermelho é apenas uma delas...”
“Vermelho é a única cor que eu preciso”, disse outra vez, sabendo do que nós conversávamos.
“Você é tolo”, sorriu para mim e continuou: “Acredite em Deus, querido. Simplesmente, acredite.”

A consciência de que nada daquilo poderia se tornar real nunca me abandonara, por mais que eu
respirasse o seu doce perfume, imaginando se algum dia eu poderia viver sem aquilo. Eu tinha que viver
sem aquilo, pelo meu futuro, pela minha sanidade.

Aquele era o meu tormento, o limiar entre minhas necessidades e minhas obrigações. É claro que
as obrigações sempre venciam aquele combate interno, eu tinha consciência de quem ela era, e não perdi
por um minuto, a perspectiva das coisas. Outro motivo que me fizera manter o mínimo de sanidade era
saber que eu jamais teria forças para lutar por aquilo, eu simplesmente não jogaria fora a vida dela toda
estruturada para fazê-la viver o impensado. Eu era covarde demais para isso, sem contar que ela riria de
minha cara se lhe oferecesse o pouco que tinha. Ela riria com gosto, pois ela era cruel...

... E talvez não tivéssemos mais tempo para construir uma vida nova.

Não conheço os motivos que a levavam para os meus braços, conhecia apenas os seus poucos
sentimentos, embora, para ser sincero, não me importasse muito com eles. Se eram apenas eles os
responsáveis pelos nossos encontros, não saberia dizer, mas ela sempre ia até mim e aquilo era tudo o que
eu precisava, não tinha espaço em minha mente para cogitar o que a levava até mim, apenas me
contentava com o fato de que ela estava ao meu lado naquelas noites secretas.

Não levar em conta os seus sentimentos, era algo extremamente egoísta a se fazer, mas eu
simplesmente não podia evitar ser assim. Não conseguia me preocupar com sentimentos de outra pessoa,
era uma deficiência minha, talvez, mas, em minha defesa, afirmo que já estava saturado o suficiente,
levando em conta apenas os meus sentimento. Eu teria definitivamente enlouquecido se questionasse tão
arduamente os sentimentos dela por mim, quanto questionava os meus por ela.

Se fosse um delírio, era mais uma das questões que permanecia sem resposta para mim, não que
fizesse diferença, já que contrariando toda a lógica, eu precisava dela perto de mim, fosse qual fosse o
motivo.

“Você deveria expô-los”, se referiu aos meus quadros.


“Ninguém os compraria.”
“Eu os compraria.”
“Charles não deixaria você pendurá-los em nenhum dos cômodos da mansão...”
“Não compraria para pendurá-los na mansão. Compraria para pendurá-los aqui.”
“Para isso você não precisa comprá-los, Dulce. Basta, simplesmente, pregá-los.”
“Não é tão fácil assim, querido. Nada é fácil assim. Se a vida se resumisse a um martelo, um prego
e a uma parede, todos teriam condições de vivê-la perfeitamente bem.”

Não entendi ao que ela se referia por hora, mas em seguida daqueles dizeres, Dulce caminhou até
sua bolsa, abrindo-a e retirando um maço de notas amareladas, colocando-as em cima de um móvel
qualquer e ascendo outro cigarro, sem nem ao menos mudar a expressão.

“Quero que os pendure aqui. Todos. E quero que você faça mais quadros. Use outras cores. Eu
gosto de azul. E, com o dinheiro que eu paguei pelos seus primeiros quadros, quero que você faça uma
exposição para os novos... Mas não quero que você venda os que estão aqui. Esses quadros são nossos.”
“Sim.”
“E quero que você seja feliz, Christopher. Outras pessoas irão admirar o seu trabalho. Talvez não
admirem o excesso de vermelho, mas dos quadros, tenho certeza que sim”, e ela sorriu de uma maneira que
nunca havia sorrido... Sorrira de maneira doce. Sorrira para mim com aquele sorriso único. Aquele sorriso
era meu. Era o meu sorrido Dulce. “Quero também que você use outras cores. Use um pouco do dinheiro
para comprar novas tintas. Azul, amarelo... Só não compre laranja porque eu não gosto”, prosseguiu
falando, sorrindo e não percebendo o brilho cegante de seus olhos. “Quando eu morrer, faça uma tela para
mim. Não de mim, mas para mim. Uma tela sem meu nome. Não quero que saibam que ela era para mim.”

E eu, tolo, respondi: “Você é imortal.”

E ela, rindo, se apoiou para me beijar na boca.


Seu beijo tinha gosto de despedida.
Terceiro

E senti suas mãos sobre as minhas. Já não segura minhas lágrimas. A diferença de nosso modo de
ver as coisas como elas eram só me tornava mais vulnerável e não queria ser fraco perto de você sim. Você
me abraçava em silêncio, enquanto eu acompanhava o caixão com uma garoa esparsa, abençoando seu
caminho ao leito do cemitério, a sete pés do chão.
Eu sempre a amei demais, e deste erro é o que me restou. A grama molhada fazia barulho
enquanto as pessoas andavam e o cortejo fúnebre parava em frente a um jardim de rosas. Sempre foi sua
flor favorita. O jardim, naquela hora, estava nu, com flores retorcidas e melancólicas, como a chuva que nos
abraçava no seu funeral.

Você partira, e eu estava sozinho, como sempre fora.


O fim fora como o começo. De maneira trágica.

Eu não fora um bom amante ou um bom companheiro. Talvez fora um bom guerreiro para levar
aquela guerra interna tão adiante, mas não existiriam mais guerras. Não sou um escritor impecável, muito
menos um poeta. Não sei usar palavras. Não gosto de palavras. Elas machucam, queimam, doem. Elas estão
tão enfiadas em nossa carne que somos completamente dependentes dela. Malditas palavras. Maldito
vermelho.
Não sou um bom pintor. Não pintei Monalisas nem anjos. Não pintei o céu nem desgraças. Não
pintei flores nem desamores. Não pintei guerras ou sorrisos.
Eu pintei você.

Pintei você, com todos os traços, todos os moldes, todas as curvas, todos os jeitos, todas as cores.
Pintei você em todos os lugares, em todas as telas, em todas as folhas, em todos os momentos. Eu pintei
você.
Poderia falar que todas as palavras me lembram você, mas não gosto delas, enquanto isso, eu amei
você. Posso falar que todos os lugares me lembram você, mas há lugares sujos e nauseantes como aquele
pub, o último lugar que nós fomos, e eles não me lembram você, porque você cheirava a rosas. A nicotina
de rosas. Poderia falar que todas as coisas me lembram você, mas estaria mentindo, pois existiam coisas
que meus olhos não enxergavam, e tudo o que eu enxergava era você...

Mas eu poderia dizer que todas as cores eram você.


O meu amor era você.
Você era toda vermelha, e eu era todo você.
Você era toda vermelha, e vermelho em excesso doía.
Doía.

E o único quando que pintei, não de você, mas para você, está pendurado sobre a minha nova
cama do meu novo apartamento. Nomeei-o de Amor em Vermelho e não preciso explicar o porque.

Em minha primeira exposição, dada por você, esse quadro foi o destaque. O mais comentado, o mais
polêmico, o mais adorado. Também não me causou surpresa. Era, igual aos outros, um quadro para você,
mas a única diferença é que, mesmo chamando Amor em Vermelho, aquele era o único quadro com outras
cores...

... Todas as cores, menos laranja, porque você não gostava.

E não se preocupe, Dulce, ninguém saberá que é você, eu prometo... Mas, ainda sim, você, para mim, será
imortal.

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