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17/09/2021 15:00 A fonte da criação

A fonte da criação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de fevereiro de 2015

Toda verdade que se espalha por muitos ouvidos logo se torna um lugar-comum,
uma fórmula repetida mecanicamente, esvaziada da sua substância intuitiva
originária. É ainda uma verdade “material”, mas não “formal”, diriam os
escolásticos — isto é, um conteúdo verdadeiro apreendido de maneira falsa.

O conhecimento da verdade, no seu sentido pleno, material e formal ao mesmo


tempo, é um privilégio da consciência individual humana. Pode ser repassada de
um indivíduo a outros, mas cada um tem de fazer por si mesmo o esforço de
apreendê-la. Não existe verdade comunitária.

Todo professor confirma isso diariamente. Um aluno isolado pode compreender a


explicação que escapa totalmente ao resto da classe, mas é impossível que a classe
como um todo apreenda algo que nenhum dos seus membros entendeu
individualmente.

A civilização inteira do Ocidente nasce com a proclamação dessa ideia: Abraão


guarda no segredo da sua alma a instrução que recebeu de Deus. Moisés sobe
sozinho ao Monte Sinai. Cristo no alto da cruz encarna a Verdade solitária,
incompreensível aos que O rodeavam – até mesmo, em determinada medida, aos
seus discípulos mais próximos.

Em ciência, a colaboração entre vários pesquisadores prossegue no escuro até que


um deles enxergue o que os outros não enxergaram.

Ninguém em volta compreende o que se passa na alma do artista quando ele


transfigura a pedra informe na Pietà ou as palavras do dicionário na Divina
Comédia.

No entanto, é certo que a consciência individual, para chegar a essas alturas,


precisa da ajuda da comunidade, que a protege, a estimula e a nutre de
conhecimentos até que ela possa alçar seu voo solitário. E mesmo então ela
continua precisando do diálogo com outras consciências, nas quais se reconhece e
das quais se distingue pouco a pouco na individualidade irredutível da sua solidão
criadora.

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A tensão entre a independência individual e a participação numa comunidade de


inteligências afins é um dos traços mais constantes da História ocidental. Sócrates
busca sua audiência entre os jovens da aristocracia ateniense, mas foge dela
quando eles, na sua fragilidade de moços, repousam da filosofia, entregando-se a
jogos e prazeres indignos de um filósofo.

Sto. Tomás adestra sua inteligência nas disputas universitárias, mas, quando
obtém por fim as respostas mais altas que desejava, sabe que vai levá-las sozinho
para a vida eterna, sem poder dizer mais uma palavra sequer. Goethe busca a
perfeição do caráter na agitação do mundo, mas a do talento na solidão.

O equilíbrio dinâmico esboroa-se, porém, quando a atividade intelectual e criativa


se padroniza ao ponto de identificar-se com a participação numa determinada
categoria profissional.

William Faulkner ou Henry Miller ririam se alguém lhes pedisse um currículo


universitário ou uma carteira sindical de escritor. Hoje, nos EUA, a literatura, para
não falar da filosofia, foi quase que integralmente absorvida pelas profissões
universitárias correspondentes.

Por isso não há mais nenhum Henry Miller ou William Faulkner, apenas uma
profusão de talentos médios ou sofríveis. Nenhum aprendizado universitário
substituirá jamais a densa experiência da vida, as “impressões autênticas” de que
falava Saul Bellow.

Por isso mesmo, o que há de mais vigoroso na literatura americana das últimas
décadas vem de tipos marginais e extravagantes, como John Kennedy Toole ou
Hubert Selby Junior. E Thomas Pynchon salvou seu talento ao escapar da carreira
acadêmica a que tudo parecia destiná-lo.

Na França, o caso de Emil Cioran é exemplar. Talvez o mais poderoso artista da


língua francesa na segunda metade do século XX, nasceu na Romênia e, ao fugir
para Paris, evitou cuidadosamente não só meter-se ali em instituições acadêmicas,
mas exorcizou toda identidade profissional concebível: durante décadas viveu
espremido num sótão, comendo diariamente no restaurante da Aliança Francesa e
renovando ilegalmente, até à velhice, uma bolsa de jovem estudante.

Justamente na época em que o governo Pompidou seduzia a intelectualidade


inteira com cargos universitários, enquadrando até os rebeldes de 68 e
estrangulando com um cordão de ouro o mais animado ambiente de debates que já
existiu, ele se manteve ferozmente à margem de toda vida oficial, recusando até
mesmo prêmios literários.

No Brasil, é notório que a crítica literária morreu ao ser absorvida pela


universidade. Com ela, foi para o túmulo também a literatura de ficção. E décadas
de empombadíssima filosofia universitária não nos deram um Mário Ferreira dos
Santos, um Vilém Flusser, um Vicente Ferreira da Silva, um Miguel Reale, que
nada deveram à universidade. O exemplo brasileiro ilustra com perfeição o
aforisma de Nicolás Gomez Dávila: “Un diploma de dentista es respetable, pero
uno de filósofo es grotesco.”

Sim, um escritor, um pensador, um artista precisa de companheiros, de diálogo.


Mas nada substitui os encontros espontâneos, os círculos de convivência informal,
a amizade fundada na comunidade de sonhos e valores, longe de todo
enquadramento burocrático, de toda organização profissional. O tipo de convívio
que não estrangula a individualidade no garrote vil dos regulamentos e dos planos
de carreira, mas a preza e estimula.

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Foi justamente nesses círculos que se formou a mais talentosa geração de


escritores que o nosso país já produziu, aquela que ingressou na vida literária na
década de 30 e dominou o panorama até os anos 70 do século XX. Tudo o que
veio depois, trazido nos braços da universidade, é lixo em comparação.

Quando Bellow definiu a missão do escritor como o registro das “impressões


autênticas”, e Martin Amis como “a luta contra o clichê”, disseram ambos a
mesma coisa: só o apego irredutível à liberdade da consciência individual, contra
todo compromisso deformante, liga um ser humano à fonte da experiência viva de
onde nasce toda grande literatura, toda grande arte, todo grande pensamento.

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