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9
Gênero,
Masculinidades
e Violência
CRISTIAN S. PAIVA
Copyright © 2020 by Fundação Demócrito Rocha
Raymundo Netto
Gerente Editorial e de Projetos
Marisa Ferreira
Coordenadora de Cursos
Joel Bruno
Designer Instrucional
Leila Paiva
Coordenadora de Conteúdo
Raymundo Netto
Coordenador Editorial
Andrea Araujo
Editora de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita
Designer
Daniela Nogueira
Revisora
Carlus Campos
Ilustrador
Luísa Duavy
Produtora
Fernando Diego
Analista de Marketing
1
#JusticaPorMariFerrer.
A MÍNIMA
A crítica feminista, acumulada pelo me- e mulheres, adultos e crianças, estudada
nos nos últimos 50 anos, produziu riquís- por Norbert Elias, ajuda-nos a entender
simo aporte de conhecimento sobre as discursos de teor conservadores que produ-
DIFERENÇA: mulheres, induzindo também amplas trans-
formações políticas na cidadania de mulhe-
zem pânico social sobre o fim da família, so-
bre a ameaça de sexualização das crianças,
MULHERES E res e revelando dimensões invisibilizadas de
opressão no que diz respeito à vida familiar/
alimentando o combate à autonomia das
mulheres, ao reconhecimento da cidadania
HOMENS conjugal, ao corpo, à maternidade, à vida sexual e, com isso, reintroduzindo pautas
A
profissional etc. A epistemologia feminista masculinistas e machistas. Ainda que em
ajudou a produzir uma nova imagem sobre meio a retrocessos e resistências conserva-
proposta deste texto é de refletir,
o feminino na cultura e sobre a inserção da dores, é inegável a profunda transformação
a partir de um olhar de gênero,
mulher na sociedade. Ou seja, as mulheres na vida pessoal e social de mulheres.
sobre homens e masculinidade
passaram por um profundo trabalho de re- No que concerne à sociedade brasileira,
– melhor seria dizer as masculini-
flexão e de crítica sobre si mesmas e sobre com traços estruturais de patriarcalismo,
dades, como veremos a seguir –, ferramenta
as situações sociais que as subalterniza(va) classismo, machismo e racismo, a agenda
conceitual útil para poder pensar suas inter-
m e mobilizaram-se no sentido de avançar democrática encontra-se tensionada, numa
secções com a violência doméstica.
em termos de sua capacidade de agir. nova configuração de forças entre socieda-
Retomamos, então, a questão da “mí-
O sociólogo britânico Anthony Giddens de e Estado. E, no que importa ao interesse
nima diferença” entre homens e mulheres,
afirma que devemos aos movimentos de de discutir relacional e contextualmente a(s)
entre masculinidade e feminilidade, ques-
mulheres e feministas e aos movimentos masculinidade(s) e a questão da democra-
tão antiga e problematizada de diferentes
gay e lésbico (hoje diríamos LGBTQI+) uma cia emocional, poderíamos indagar: como
maneiras ao longo da história, ainda que
transformação socio-histórica profunda no anda a balança de equilíbrio de poder nas
com algumas persistências, especialmente
sentindo de ampliação da exigência demo- relações interpessoais? O trabalho político
aquela relacionada à submissão das mu-
crática a dimensões tidas como “irrelevan- de coletivos de mulheres que recusam uma
lheres à ordem patriarcal nas sociedades,
tes politicamente”, tais como: sexualidade, “essência” universal e imutável do feminino
já bastante discutida por diversas autoras
intimidade, aspirações emocionais, relação (essa suposta essência traduzida prosaica-
(desde uma perspectiva da crítica ao pa-
entre pais e filhos (poderíamos acrescentar: mente na piada maldosa da “bela, recatada
triarcado até as contemporâneas análises
questões relativas à raça, ao imperativo da e do lar”) ficou no meio do caminho? Somos
descoloniais e contracoloniais). Entender a
beleza etc.). Essa transformação da inti- homens e mulheres com sentimentos e as-
violência contra as mulheres, em sua mul-
pirações “modernas”? Reinventamos nos-
tiplicidade de manifestações, exige-nos, midade caminharia rumo a uma democra-
sas expectativas? Somos arcaicos? Abrimos
portanto, uma compreensão relacional cia emocional, “uma total democratização
mão das histórias de contos de fada, habita-
do sistema de sexo-gênero (para utilizar do domínio interpessoal, de maneira plena-
dos por princesas e príncipes?
os termos da antropóloga Gayle Rubin), em mente compatível com a democracia na es-
E quanto aos homens? O que fizeram de
que homens e mulheres são socializados e fera pública” (p. 11). Essa mudança no equi-
si? Que identidades masculinas e perfis de
vivem suas experiências como sujeitos. líbrio da balança de poder entre homens
masculinidade encontramos na sociedade?
NASCE
estruturais nas sociedades e, em especial,
na sociedade brasileira. Em outras palavras,
MULHER,
pensar a produção do masculino e do femi-
nino enquanto tecnologias de gênero nos
permite elucidar conexões entre práticas,
TORNA- valores, representações incorporadas nas
nossas vidas pessoais enquanto homens
F
designação da nossa anatomia. E nascer
eita essa sucinta e indispensável homem ou mulher no mundo faz toda a
articulação com as transformações diferença. Então, anatomia, socialização SAIBA MAIS
socio-históricas no âmbito das lu- e normas culturais internalizadas operam
A socióloga Eva Illouz (2014) analisou
tas de mulheres, vamos falar agora imbricadamente, com o pressuposto da
uma versão modernizada desse mito do
sobre alguns mecanismos de produção de cis-heteronormatividade. Deve ser por isso
príncipe encantado no contexto da so-
diferença social baseados na diferença se- que, lembra-nos o pai da psicanálise, de to-
ciedade globalizada, neoliberal e hipe-
xual, isto é, como se constroem, de modo das as espécies animais, a espécie humana
rindividualista a partir do sucesso mun-
binário e diferencial, as socializações, as é aquela que repetida e persistentemente
dial do livro Cinquenta tons de cinza, da
aprendizagens do desejo e as performances se interroga e se equivoca sobre esse “ser
escritora E. L. James.
de gênero relacionadas ao masculino e ao homem” e “ser mulher”. E, em diferentes
A autora sugere que a trama envol-
feminino. De modo que só é possível falar contextos socio-históricos, há uma cota de
vendo o contrato de submissão assinado
de masculino e masculinidade a partir da sofrimento e vulnerabilidade associados
por Anastacia a Christian Grey (encarna-
construção relacional com o feminino e a aos homens e às mulheres.
ção do príncipe irresistível), consumido
feminilidade (estes tomados, historicamen- Para esta conversa sobre homens e mas-
por milhões de leitoras no mundo intei-
te, como polo negativo da relação, vere- culinidades, retomemos a afirmação da
ro, nos oferece uma boa lente para ana-
mos adiante). Dizendo de outra forma, não escritora francesa Simone de Beauvoir, que
lisar a gramática emocional da contem-
há uma essência da masculinidade assim “não se nasce mulher, torna-se”, para ex-
poraneidade, permeada por aspirações
como não há uma essência da feminilidade. pandi-la, e dizer que também “não se nasce
emocionais profundamente tradicionais
Portanto, falar sobre homens e mas- homem, torna-se”, em muitos casos a duras
nos relacionamentos amorosos.
culinidades é falar sobre as tecnologias penas (a despeito da série de privilégios cul-
de gênero (Lauretis, 1994) que produzem turais previstos de antemão para o homem).
e consolidam culturalmente as diferenças Assim, o ser homem e o ser mulher, longe
de sexo-gênero, mediante a internalização de serem dados a priori, são construções so-
de pressupostos normativos que passam ciais incorporadas pelos indivíduos a partir
a reger o cotidiano das vidas de homens e de um processo contínuo e quase invisível
A
de regulação e aprendizagem sobre o que
fazer do corpo, que sentimentos convém prendemos a pensar as diferenças
experimentar, como relacionar-se com a se- entre masculino e feminino como
xualidade, mas também a que expectativas estritamente binárias, excluden-
sociais atender, que projetos biográficos es- tes e marcadas por evidências,
colher (desde a escolha de um esporte, de sendo qualquer indefinição ou travessia en-
uma carreira profissional até a relação com tre os polos da masculinidade e da femini-
a violência, a saúde e a doença). lidade sentida como ameaçadora à ordem
Além de ser construção social, a produção sexual e, por isso, interditada. Como expli-
de masculinidade e feminilidade é diferencial, car a persistência desse esquema binarista,
ou seja, há um estoque de aprendizagens e em que o masculino aparece como referên-
experiências previstas pela cultura para cada cia positiva e privilegiada?
um dos sexos/gêneros. Essa socialização di- O sociólogo e antropólogo Pierre Bour-
ferencial e binária, imposta pela norma so- dieu, no livro A dominação masculina, nos
ciossexual dominante, opera desde cedo na convida a pensar a questão da permanên-
vida dos indivíduos, de tal modo que nos pa- cia e da mudança da ordem sexual, partin-
recem naturais, universais, inquestionáveis. O do de sua experiência de pesquisa em uma
psicanalista francês Jacques Lacan recorre à sociedade tradicional do norte da África,
alegoria da “segregação urinária”: desde pe- a sociedade cabila. Nessa sociedade, “as
quenas, diante do banheiro, as crianças têm diferenças sexuais permanecem imersas
de relacionar as iniciais H e M, escritas à porta no conjunto das oposições que organizam
dos banheiros – a ordem simbólica reduzida a todo o cosmos, os atributos e atos sexuais
essas duas letras –, a seus destinos sexuados. se vêem sobrecarregados de determina-
Desde então, homens e mulheres cumprem ções antropológicas e cosmológicas” (p.
seus destinos diferenciados. 15). É como se as oposições percebidas na
Não seria mais assim? O exemplo do relação com os eventos físicos da natureza
banheiro é exemplar ao revelar a profunda (quente/frio, duro/mole, seco/úmido, direi-
articulação entre necessidades fisiológicas ta/esquerda, forte/fraco, fora/dentro, dia/
e normas socioculturais (educativas, políti- noite etc. Ver esquema a seguir) servissem
cas e até jurídicas) assim como ao revelar as de matriz para pensar a diferença entre
ansiedades, inseguranças e reivindicações homem/mulher, masculino/feminino, con-
contemporâneas sobre esse ser homem e ferindo à oposição sexual inteligibilidade e
ser mulher. O que mudou? necessidade objetiva.
P
ara o autor francês, o estudo so- ciente androcêntrico, do qual é extrema-
bre a sociedade cabila nos permi- mente difícil se desembaraçar.
te compreender como se produz Podemos sentir a força desse processo
um trabalho de naturalização e de naturalização e eternização do prima-
eternização da ordem sociossexual, com do da masculinidade ao longo da história a
persistências nas sociedades atuais. A cons- partir de diversos exemplos, que constituem
trução socio-histórica dos corpos torna-se o que o historiador Alain Corbin (2013), cha-
imperceptível, eternizando as estruturas da ma de “tradição imemorável da virilidade”,
divisão sexual e social (que são, no entanto, associando-se o vir a numerosas qualidades
produzidas histórica e socialmente). Isso se entrecruzadas: “ascendência sexual mistu-
dá por meio de um trabalho psicossomá- rada à ascendência psicológica, força física
à força moral, coragem e ‘grandeza’ acom-
tico de incorporação de formas de pensa-
panhando força e vigor”. Mesmo que, hoje,
mento, esquemas de sensibilidade e siste-
com as reivindicações à igualdade e com a
mas de moralidade baseados no primado
exigência democrática na esfera da vida pes-
da masculinidade e que persistem na forma soal, mencionadas no início do nosso texto,
como os indivíduos, homens e mulheres, se a superioridade do macho e a “autoridade”
relacionam com seus corpos, seus desejos do homem sobre a mulher não saberiam ter
e seu julgamento, baseados num incons- mais qualquer fundamento.
T
emos agora elementos para en- sociossexual dela decorrente, porque tal
tender como a discussão sobre conceito permitia revelar aquilo que estava
o masculino e a masculinidade “encoberto”, “naturalizado”, “entranhado” na
surgiu, digamos, tardiamente, se cosmologia falocêntrica da dominação mas-
comparada à problematização produzida culina. Contra a ideia de um sexo já dado pela
pelas mulheres sobre sua condição social natureza, portanto universal e imutável, o
e sobre o feminino na cultura, assim como conceito de gênero mostra que corpos, sexos
por gays e lésbicas, condenados à invisibi- e sujeitos sexuados são criações históricas,
lidade pela norma sexual heterocêntrica. artefatos culturais. Segundo a definição da
Esses coletivos, subalternizados por uma historiadora Joan Scott (1995), gênero é um
ordem sexual tradicional, orientada pela conceito que nos permite analisar “a organi-
dominação masculina naturalizada, ma- zação social da diferença sexual”; o gênero “é
terializada no controle do corpo das mu- o conhecimento que estabelece significados
lheres e na divisão hierárquica do trabalho para diferenças corporais”.
sociossexual, na condenação de desejos e A antropóloga Gayle Rubin, na mesma
afetos não binários e não heterossexuais, direção, passa a falar no par: sistema sexo-
realizaram (ainda realizam, aliás) um gran- -gênero, definindo-o como “o conjunto de
de trabalho de subversão dessa ordem se- acordos sobre os quais a sociedade trans-
xual, historicizando seus pressupostos e forma a sexualidade biológica em produtos
mecanismos. Aquilo que se mostrava como da atividade humana, e nos quais essas
“natural”, “universal”, “essência”, “instinto”, necessidades sexuais transformadas são
“conforme a vontade Deus” etc., só se re- satisfeitas” (RUBIN, 1975). Daí a potência
vestia dessas características por causa de crítica desses conceitos, pois eles revelam
um constante e imperceptível processo de os mecanismos de “eternização do arbitrá-
fabricação social de corpos e de sujei- rio” (expressão de Bourdieu), que estão na
ção psíquica, em que meninos e meninas, origem da norma sociossexual hegemônica
homens e mulheres eram socializados num que faz a dominação masculina parecer le-
sistema de gêneros binarista, masculinista, gítima e natural. Também é por causa disso
patriarcal e racializado. que o conceito de gênero é combatido pelo
O conceito de gênero revelou-se útil pensamento conservador, porque desesta-
como categoria de análise histórica e de biliza o sistema de sujeição e de privilégios
crítica à dominação masculina e da ordem em que se assenta a sociedade machista.
P
à sexualidade (com o modelo do macho Há um consenso entre os estudiosos da ara encerrar, destacamos alguns
predador), mas também em performances masculinidade e da identidade masculina tópicos relevantes para acompa-
de hiperatividade, agressividade e contro- de que, embora útil, o modelo analítico da nhar o debate, em curso na socie-
le sobre a dor corporal e o sofrimento, por masculinidade hegemônica precisa avan- dade brasileira, sobre identidades
exemplo, nos esportes, uma vez que, segun- çar no sentido de incorporar a perspectiva masculinas e masculinidades.
do a antropóloga, “é pela violência contra das masculinidades múltiplas, produzi-
si mesmo que se faz a masculinidade”. E, das a partir de diferentes ordens de gênero Masculinidades brasileiras
se formos pensar os processos de consti- contextualizadas. Recentemente, as pesqui- Os estudos sobre masculinidades no Bra-
tuição de identidades masculinas levando sas tentam incorporar ao estudo das identi- sil, desde os estudos de Gilberto Freyre sobre
em conta os processos de exclusão socio- dades masculinas novas perspectivas, pen- sociedade patriarcal brasileira a partir do sé-
econômica e de racialização no Brasil, po- sando a articulação de marcadores sociais culo XVIII até os estudos de antropologia urba-
deremos ver como se potencializa a relação da diferença como dimensões relevantes na da segunda metade do século XX, apresen-
entre identidades masculinas e a violência, para se pensar as masculinidades (especial- tam a permanência de modelos tradicionais
seja a partir da inserção de meninos e ho- mente classe e raça), assim novas episte- associados às identidades masculinas, incor-
mens jovens negros e pobres nas redes do mologias forjadas a partir de contextos não porados a outras dimensões da vida social e
tráfico de drogas e na criminalidade, seja a ocidentais (teorias descoloniais e contraco- política do País (tais como o machismo, o ra-
partir da humilhação social e da exclusão loniais) para se pensar dinâmicas de gênero cismo e a desigualdade de classe). A partir da
de direitos sociais básicos, como habitação, e sexualidade. Também é digno de menção, década de 1970, algumas pesquisas põem em
saúde e emprego, sentidas como ataques à nessas novas teorizações sobre identidades destaque a ascendência de modelos de sexo-
honra e à dignidade, seja a partir de práti- masculinas, a produção de pesquisas que -gênero mais igualitários, relacionados a dois
cas de racismo institucional e da violência lançam luzes sobre masculinidades lésbi- contextos específicos:
policial, induzindo à vergonha e à desuma- cas e transmasculinidades (por exemplo, 1. O das identidades homossexuais mas-
nização de adolescentes e homens negros citamos os trabalhos de Halberstam, Pre- culinas, por exemplo, o estudo de Carmen
(vidas facilmente encarceradas e matáveis). ciado e Ávila, citados nas referências). Dora Guimarães sobre a cultura homossexual
ILUSTRADOR
CARLUS CAMPOS
Artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal
O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda
várias técnicas como: xilogravura, pintura,
infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou
revistas nacionais importantes como a Caros
Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica
ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo,
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
APOIO PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO