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Dahlia

biografia da Família
amília Cordeiro
ordeiro C
Cipriano
ipriano

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Antônio Cordeiro Sobrinho
Cristiano Cordeiro Cipriano
Organizadores

Dahlia
biografia da Família Cordeiro Cipriano

2021

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Agradecimentos

A o nosso Deus, pois sem sua permissão nenhuma realiza-


ção se concretizaria.
Em Deus também acreditamos que nossos irmãos Valter e
Tânia também são autores deste livro… seja por meio de fatos,
no pulsar das nossas veias e principalmente por meio do pulsar
espiritual.
Mas especialmente expressamos sentimento por duas
pessoas que jamais devem ser esquecidas e terão nossa eterna
gratidão, pois sem eles essas reminiscências jamais poderiam
ser contadas: Mãe, Pai, obrigado por tudo.

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Sumário

Apresentação........................................................................................13
Mensagem Inicial — Vera (a primogênita)......................................15
Primeira Parte
Temas
“Vaga lembrança”................................................................................19
Década de 60........................................................................................20
As Casas................................................................................................22
Primeira Casa em Parada de Lucas...............................................22
Segunda Casa em Parada de Lucas................................................23
Terceira Casa em Parada de Lucas.................................................23
A Casa em Pavuna...........................................................................23
A Casa de Villar dos Teles – São João de Meriti..........................25
As Casas de Éden em São João de Meriti
Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada).................................25
Segunda Casa – Rua Araci..............................................................26
Terceira Casa – Rua Caldas Novas.................................................28
Quarta e Última Casa – Rua Anápolis.......................................... 31
Colégio Botafogo.................................................................................36
As Aulas no Botafogo......................................................................36
Globo de Ouro.....................................................................................39
Conversões...........................................................................................40
Os Convites para ser Crente...........................................................40
Deus na Minha Vida........................................................................44
“Todo Homem Precisa de Uma Mãe”...............................................47
O Melhor Momento: a Companhia da Minha Mãe....................50

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Tânia.....................................................................................................54
Dedicado a Tânia.............................................................................54
Cristina.................................................................................................64
“O terrível dia da viagem”..................................................................70
A Partida para o Ceará....................................................................70
O Dia da Partida..............................................................................73
Valdo.....................................................................................................77
Parte II
As Memórias
Lembranças da Vera............................................................................83
Anos 60. Mais sobre as Casas.........................................................83
Trabalhos do Pai...............................................................................86
Década de 70.....................................................................................86
Tia Fátima.........................................................................................88
Segunda Mãe.....................................................................................88
Os Casamentos.................................................................................89
Minha Mãe........................................................................................89
Cristina..............................................................................................90
O Pai..................................................................................................92
“Achei Desnecessário”........................................................................94
Lembranças do Vânio.........................................................................95
Primeira Casa em Parada de Lucas...............................................95
Segunda Casa em Parada de Lucas................................................96
Em Parada de Lucas.........................................................................98
A Casa em Pavuna...........................................................................98
Villar dos Teles.................................................................................99
Éden.................................................................................................100
Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada)...............................100
Segunda Casa – Rua Araci............................................................102
Terceira Casa ..................................................................................104
Quarta e Última Casa — Rua Anápolis......................................105
Lembranças da Vaninha...................................................................106
A Religião........................................................................................106
Uma Cicatriz na Cabeça................................................................107

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

A Avó Julia......................................................................................107
Tia Fátima e Haroldo.....................................................................108
Adeus, Inocência............................................................................108
As Escolas........................................................................................109
Os Últimos Dias com Minha Mãe...............................................109
Os Últimos Dias com Meu Pai.....................................................109
Sobre a Tânia.................................................................................. 110
Meu Casamento.............................................................................. 111
Lembranças da Vanda...................................................................... 114
A Partir de 1963............................................................................. 114
As Casas e o Rio Pavuna............................................................... 115
Casa da Pavuna.............................................................................. 115
Casa da Rua da Padaria Queimada............................................. 117
Casa da Rua Araci.......................................................................... 119
A Doença do Valter e Tânia..........................................................121
Casa da Rua Caldas Novas............................................................124
Casa na Rua Anápolis....................................................................125
Início da Vida Espiritual...............................................................126
Sou Professora................................................................................127
A Batalha Espiritual.......................................................................127
Meu Primeiro Casamento............................................................. 131
Meu Segundo Casamento.............................................................134
Lembranças do Jorge.........................................................................135
A Casa da Rua Caldas Novas........................................................135
Motoqueiro Rodoviário.................................................................135
O Mobral.........................................................................................136
O Catecismo....................................................................................137
Os Trabalhos na Adolescência......................................................137
O Time Anápolis............................................................................138
O Serviço Militar...........................................................................139
Roni Alzi..........................................................................................139
Trabalhos em Agostinho Porto....................................................139
A Volta da Família.........................................................................140
Meu Casamento..............................................................................140

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

A Morte do Pai...............................................................................140
A Morte da Tânia...........................................................................140
Lembranças do Antônio................................................................... 141
Iniciado em 18-5-2019...................................................................141
Idos de 1974….................................................................................142
As Visitas da Eliane.......................................................................146
As Viagens do Pai para o Ceará................................................... 147
Campanhas Eleitorais....................................................................148
Mobral.............................................................................................148
Igreja Católica. Paróquia Nossa Senhora das Graças................149
1976 — O Último Natal na Rua Caldas Novas..........................150
Rua Anápolis, nº 214, 1976 — Última Semana do Ano!...........151
1977 — Um Ano Feliz!..................................................................152
1978..................................................................................................153
1979..................................................................................................153
1980..................................................................................................154
“Vem vamos embora que esperar não é saber…”.......................154
1987..................................................................................................163
1989..................................................................................................165
1990..................................................................................................165
A Morte um Destino Duro...........................................................179
Lembranças do Wilson.....................................................................183
Anos 80 — Primeiras Lembranças..............................................183
As Festas de Fim de Ano...............................................................184
As Visitas Chatas............................................................................185
Os Trabalhos Domésticos de Nossa Mãe....................................185
As Brincadeiras..............................................................................185
A Catequese....................................................................................187
Roupas.............................................................................................187
Escola...............................................................................................188
Brigas na Rua..................................................................................188
O Carnaval......................................................................................189
1989 — A Viagem para o Ceará ..................................................189
A Casa..............................................................................................189

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

O Trabalho na Casa de Tolerância............................................... 191


As Escolas........................................................................................ 191
Nossos Alimentos...........................................................................192
Parentes...........................................................................................192
As Brincadeiras..............................................................................193
Dias de Tristeza e o Retorno do Valdo........................................194
As Festas de Fim de Ano...............................................................194
1991 — Adeus, Acaraú, a Partida para Fortaleza......................194
Nosso Avô, o Silai...........................................................................195
As Brincadeiras..............................................................................196
O Casa Blanca.................................................................................197
A Tia Té...........................................................................................198
Gincana ..........................................................................................198
As Festas e Danças.........................................................................198
A Barraca do Tchêss.......................................................................199
A Fábrica de Castanhas.................................................................199
Fortaleza Esporte Clube................................................................200
O Contato com a Família no Rio.................................................200
A Tia Rosalina................................................................................200
1994 — O Retorno para o Rio......................................................200
O Alistamento Militar...................................................................201
Os Trabalhos...................................................................................201
O Assalto.........................................................................................202
As Farras.........................................................................................203
1999..................................................................................................203
2005..................................................................................................204
Lembranças do Cristiano.................................................................207
1978 a 1989......................................................................................207
O Relacionamento Pai e Filho......................................................213
O Engajamento............................................................................... 214
Os Estudos....................................................................................... 214
Dona Nazaré e Eu..........................................................................215
Exílio? Talvez..................................................................................215
1997 — O Militarismo................................................................... 216

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

1999 — Conversão......................................................................... 218


2002 — O Casamento.................................................................... 219
1989 — A Partida: O retorno à terra natal ou rumo ao lugar
desconhecido?!?..............................................................................222
A Chegada no Acaraú....................................................................224
A Casa..............................................................................................224
As Escolas........................................................................................227
As Crianças Também Trabalham................................................228
A Profissão Mais Antiga................................................................229
Alguns Momentos Bons................................................................229
Vamos para Fortaleza....................................................................231
Fevereiro de 1991............................................................................232
As Escolas em Messejana .............................................................233
Os Trabalhos...................................................................................233
A Convivência................................................................................233
Dois Ensaios para Voltar para o Rio de Janeiro.........................234
O Entretenimento..........................................................................235
SECB — Sociedade Esportiva Casa Blanca.................................235
De Volta pra Casa...........................................................................237
As Primeiras Impressões Pós-Chegada.......................................238
Lembranças do Daniel......................................................................240
1982 .................................................................................................240
Fui em Acaraú quando era Pequeno............................................241
Tia Fátima e Tio Ivo.......................................................................242
Gostar do Michael Jackson Custou Caro....................................242
As Brincadeiras Inesquecíveis......................................................243
...ERA O MAIS QUERIDO DO PAI...........................................248
Os Primeiros Contatos com a Escola...........................................250
1989 — A Viagem..........................................................................250
(...) Acaraú.......................................................................................250
1991 — Messejana — Fortaleza....................................................255
Meu Relacionamento com a Tia Teonísia...................................258
1994 — A Volta para o Rio...........................................................259
Mensagem Final — Daniel (o caçula).........................................261

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Apresentação

E
ste é o livro da família Cordeiro Cipriano. Chama-se
Dahlia porque faz referência a sentimentos que vão ao
encontro do propósito de todos que contribuíram para
construção deste material.
Dahlia simboliza união, persistência e perseverança, esses
foram ingredientes que constituíram a alma deste projeto que
nasceu não se sabe exatamente como e quando, mas ao longo
dos últimos meses foi tomando corpo e forma.
Permitam-me destacar uma pessoa que foi exemplo de per-
sistência e perseverança durante o processo de construção desta
biografia, esmerando-se a fim de efetivar o projeto. Estou falando
do nosso irmão Cristiano, que se dedicou fazendo transcrições,
motivando, exigindo, entrevistando, articulando, preparando a
arte e reprodução gráfica. Seu denodo foi o elo entre os irmãos
para que pudéssemos construir nossa biografia.
Dahlia, à semelhança da ancestralidade dos Astecas, re-
monta à nossa história pregressa, coisas guardadas no recôn-
dito de nossos corações. Nosso livro é uma colcha de retalhos
de narrativas, semelhante àquelas colchas que a Dona Vanilda
fazia… um mosaico assimétrico, mas que aos poucos revela uma
tessitura, revela-se como arte.
A biografia da família Cordeiro Cipriano é uma proposta
para a posteridade, da mesma forma que nós — protagonistas
das histórias — voltamo-nos para os fatos narrados como forma
de nos reconhecermos e refletirmos acerca de nós mesmos, igual-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

mente nossos descendentes poderão encontrar nesta biografia


um lócus de experiência e que esperamos lhes sejam úteis.
O leitor encontrará neste livro narrativas que poderão pro-
vocar alegria, tristeza, espanto, admiração, além de desvendar
curiosidades sobre nossa família e também um acervo de arquivos
de imagens. Espera-se que durante a leitura de nossa biografia
instale-se no leitor a sutileza e a grandeza de uma dahlia, a fim
de que enxergue com os olhos e compreenda com o coração.

Antônio Cordeiro Sobrinho

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Mensagem Inicial — Vera
(a primogênita)

A gradeço a Deus por ser da família e desejo proteção para


todos.
Nunca desista dos seus sonhos e projetos, talvez por achar
que o tempo não estará a seu favor. Não deixe o desânimo tomar
conta do seu ser. Seja confiante, não seja fraco. Caso não acon-
tecer, não fique frustrado e derrotado, seja forte e não desista.
Supere os obstáculos e siga em frente, pois o tempo passa sem
nós percebermos.
Jamais desista!

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Primeir a Parte

Temas

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“Vaga lembrança”

P
ouco sabemos sobre o início da nossa família: como nossos
pais se conheceram, detalhes sobre o casamento deles…
para obtermos mais informações teríamos de ter contri-
buição de testemunhas contemporâneas a eles. Os comentários
apresentados são recortes de conversas com nossos pais.
“Apesar de ter nascido no Ceará e morado meus primei-
ros anos, não tenho recordações, apenas vagas lembranças de
quando viemos para o Rio, como, por exemplo, pessoas, ônibus
e a viagem.
Nosso pai já tinha vindo para o Rio, juntamente com o Seu
Zé, de pau-de-arara para trabalhar e depois de se estabilizar
tomou providências para que viéssemos morar com ele.”
(Vera)

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Década de 60


Nossa história começa quando eu era pequeno e comentei
com minha mãe para saber se era real, se tinha acontecido
isso. Ela perguntou como eu me lembrava disso.
Lembro-me de que estava numa rede junto com um senhor
que balançava a rede e minha mãe disse que era nosso avô, pai
dela. Depois disso, não me lembro de como chegamos ao Rio,
nem da viagem. Sei que chegamos ao Rio e meu pai veio antes
para trabalhar junto com o Seu Zé e moravam em Copacabana
a trabalho.”
(Vânio)

“… Isto posto, volto a falar sobre o passado no Ceará a par-


tir de informações que obtive da boca de minha mãe. Segundo
a dona Vanilda, o nosso pai trabalhava na produção de tijolos
e pelo que ela falava eram aqueles tijolos meio que artesanais,
feitos em formas.
A vinda do pai para o Rio de Janeiro aconteceu — segundo
a mãe contava — por causa da carestia, quando ela era mais nova
ela usava muito esta palavra ‘carestia’. Nosso pai veio para o Rio
de Janeiro em um pau-de-arara e deixou a promessa de retornar
para buscar nossa mãe e os filhos, no caso, a Vera e o Vânio.”
“Certa vez, nos últimos anos de nossa mãe, eu perguntei
por que ela havia casado tão cedo, aos dezessete anos, e tive
como resposta ‘não tinha nada pra fazer’. Aliás, falar acerca dos

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

primeiros anos do casamento dos nossos pais será tarefa para a


Vera e o Vânio, já que são os primeiros filhos e por esse motivo
poderão acrescentar fatos que não testemunhamos.”
(Marco)

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As Casas

“Já morei em tanta casa que nem me lembro mais,


eu moro com os meus pais…”

A
qui estão os relatos acerca das casas que moramos,
como se trata de fatos que ocorreram até 1976, ano que
aconteceu a última mudança, na casa onde a família
definitivamente se estabeleceu, apenas teremos recortes das in-
formações transmitidas pelos filhos: Vera, Vânio, Vânia, Vanda,
Jorge e Marco.
“Chegando ao Rio, fomos morar numa Casa em Parada
de Lucas, numa avenida. Era como uma quitinete e o banheiro
separado da casa, onde tínhamos que ir até o fundo da avenida.
Minhas memórias são muito vagas dessa época, mas me lembro
de que além de mim tinha uma criança, que seria o Vânio.
Depois dessa casa, muitas outras sequenciaram nossas
vidas, como a casa em Vigário Geral, Jardim Metrópole, onde
moramos por muito tempo e onde nasceu a Vaninha.”
(Vera)

Primeira Casa em Parada de Lucas


“Arrumou uma casa para morarmos em Parada de Lucas,
na comunidade. Lembro-me de que, quando chegamos, teve uma
chuva de vento muito forte. A casa era de janela de madeira. A

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

porta tinha uma madeira de travessão para travar. A chuva foi


tão forte que balançava a janela, que se abriu, e a chuva entrava.”
(Vânio)

Segunda Casa em Parada de Lucas


“Depois disso, vem a lembrança de outra casa, agora na
parte de baixo, fora da comunidade. Essa casa tinha uma divi-
são, a casa de um lado e uma cerca que separava um chiqueiro
de porcos, mas sem nenhum animal, só o mal cheiro. Mesmo
assim, brincamos por tudo ali.”
(Vânio)

Terceira Casa em Parada de Lucas


“Fomos morar em outra casa, onde dividíamos com uma
senhora. A divisão era feita somente com um guarda-roupa em
que a maior parte da casa ficava com a gente, pois éramos em
maior quantidade. Como não tinha muito espaço na casa, colocá-
vamos cadeiras em cima do guarda roupa e tirávamos somente
quando precisava.”
(Vânio)

A Casa em Pavuna
O caminhão chegou com nossa mudança nessa nova casa
e minha contribuição era carregar as cadeiras na cabeça. Mora-
mos por um bom tempo nessa casa. Nos fundos da casa, após o
quintal, ficava o Rio Pavuna. Gostávamos de atravessar a cerca
e ver a água passar na beira do rio.
(Vânio)

23

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

***
“Depois da Pavuna, nos mudamos para Éden e moramos
na casa da rua da padaria queimada, porém, antes da mudança,
um episódio marcante foi a enchente que aconteceu.”
(Vera)

“A primeira casa que guardo lembrança é a da Pavuna,


mas tenho poucas recordações, apenas me lembro do Rio Pa-
vuna, onde ficava à beira do rio catando lixo que servisse para
brincar, como bonecas velhas, revistas tipo fotonovela e também
caça-palavras. Isso acontecia quase todos os dias, pois adorava
ficar à beira do rio.”
(Vaninha)

“Depois disso, minhas recordações ficam mais vivas na


casa de Pavuna, pois gostava muito daquela casa, porque ela
tinha um quintal que não era grande, mas existia um jardim
na lateral da casa, de frente para a porta da sala. Nesse jardim
tinha uma flor amarela muito linda que me faz detalhar até
hoje sua beleza. Fiquei tão impressionada que procurei saber
que flor era aquela, mas ninguém sabia, até que surgiu uma
pessoa e me falou que o nome daquela flor era dahlia. (...) Nessa
casa de Pavuna, guardo boas lembranças, porque lá tinha uma
escola que amei estudar, chamada Max Fleiuss. De início, quem
estudou por lá foram a Vera e o Vânio e, de vez em quando, a
gente acompanhava e ficava encantada com todo aquele espaço,
até que chegou a minha vez e a da Vaninha de estudar nessa
escola. Amava ficar lá, pois a gente só brincava e havia muitas
bonecas e brinquedos interessantes. Eu e Vaninha fizemos o
jardim da infância juntas, na mesma sala, dividindo a mesma
carteira, fazendo os trabalhos de pintura e artesanatos com vela
e giz de cera derretido.”
(Vanda)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Sobre as casas em que moramos, lembro-me da casa de


Pavuna. Uma vez choveu muito e começou a encher as ruas. A
água da chuva começou a entrar na casa e subir gradativamente.
Alguém me colocou em cima da geladeira porque eu estava com
muito medo.”
(Jorge)

A Casa de Villar dos Teles – São João de Meriti


“Num dos rompantes de nosso pai, chegou a hora de mais
uma mudança de casa. Depois de muito tempo nessa casa, ele
veio e falou para arrumarmos as coisas, pois íamos nos mudar.
No dia seguinte, no meio do expediente, chegou nosso pai com
um caminhão aberto, verde e branco, escrito em laranja Super-
mercado Sendas, local onde trabalhava. Partimos rumo a Villar
dos Teles, uma casa até melhor, de laje, mas ficamos pouquíssimo
tempo, acho que somente uma semana. Quando abria o portão
da casa, sempre procurávamos o que iríamos frequentar por ali
e nossas referências sempre eram as igrejas, só que a igreja era
bem longe dali.”
(Vânio)

“No período em que moramos em Jardim Metrópole, fiquei


muito doente, chegando a ser desenganada pelos médicos, pois
naquela época não havia muitos recursos e tudo era bem difícil.”
(Vera)

As Casas de Éden em São João de Meriti


Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada)
“Acredito que uma semana depois de chegarmos em Villar
dos Telles, nova mudança súbita surgiu. Como das outras vezes,
o caminhão chegou e a mudança aconteceu levando tudo. O

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

destino era Éden, cujo nome não me lembro (Rua da Padaria


Queimada).”
(Vânio)

“O medo tomou conta de todos e nossa vó começou a re-


zar, pedindo intercessão para que a chuva parasse, até que foi
diminuindo e assim a tempestade cessou. Quando nosso pai
chegou, a vó foi falar com ele que não tinha condições de conti-
nuar naquela casa, pois poderia acontecer algo pior. Foi quando
começou a procura por outra casa e achou a primeira casa em
Éden, na Rua da Padaria Queimada.”
(Vera)

“Com a mudança, próxima parada, Éden – São João de Meriti


(de acordo com relatos do Vânio, antes teve a casa de Villar dos
Teles, que moraram pouco mais de uma semana). Viemos morar
numa casa próximo à Padaria Queimada. Era uma casa numa vila
com três casas, a nossa era a do meio. A casa dos fundos era a
mais bonita. Na casa da frente tinha uma família de pretos e tinha
uma menina que fez amizade com a gente e nos emprestava suas
belas bonecas, já que as nossas eram de plástico, duras e feias.”
(Vanda)

Segunda Casa – Rua Araci

“Nesse momento de nossas vidas já éramos muitos irmãos:


Vera, eu, Vânia, Vanda, Tânia, Jorge, Valter e o mais novo, Marco.
Nosso pai, junto com o Seu Zé, conseguiu comprar um terreno
com uma casa grande e outra de um único cômodo nos fundos
na Rua Araci. Ficamos na casa da frente e a família Vaz ficou na
casa dos fundos e depois foram aumentando a casa com cômodos
de madeira. Também tivemos que fazer reformas na casa para
atender a toda a família. Nossa avó dormia numa cama, a gente
se arrumava em esteiras no chão e eu dormia no sofá da sala.
Aos poucos fomos comprando algumas camas.”
(Vânio)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Depois da casa da Rua da Padaria Queimada, mudamos


para a Rua Araci. No mesmo terreno onde morávamos, também
tinha a casa da família da Dona Nazaré.”
(Vera)

“Quando chegamos, a casa tinha muito mato. Não havia


luz, água só no poço e o banheiro ficava fora de casa, tinha medo
de ir até lá. Minha mãe teve que capinar tudo.”
(Vaninha)

“Antes de nos mudarmos, nossa mãe foi com nosso pai


ver a casa e nos relatou que tinha um matagal e nosso pai teve
que levar um facão para poder fazer uma passagem. Lembro
que nossa mãe nos levou para conhecer e, além de mim, tinha
o Vânio e mais alguém de quem não me recordo. Chegando
lá, teve que aumentar a passagem e novamente nossa mãe e o
Vânio usaram um facão para fazer o caminho. Até chegar na
casa, havia um corredor e nossa mãe tratou de limpar todo o
corredor e acabar com aqueles matos. Em frente à casa tinha
um pé de amêndoa enorme e abaixo da árvore havia um poço.
Era uma casa com todos os cômodos pequenos, com 2 quartos,
sala, cozinha e um banheiro fora da casa, nos fundos do quintal.
Arrumamos a casa e preparamos tudo para a mudança, que seria
num sábado à noite. A casa estava sem eletricidade e nosso pai
falou que providenciaria, mas não fez e entramos sem luz. Para
amenizar, nosso pai arranjou um lampião e assim passamos a
primeira noite. Ao amanhecer, estavam todos com o nariz preto
e foi motivo de risos e brincadeiras.”
(Vanda)

“Não tenho muitas recordações das casas, mas sei que mo-
ramos numa casa na rua da padaria queimada e na Rua Araci.
Também não me lembro das mudanças”
(Jorge)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Terceira Casa – Rua Caldas Novas

“Apesar de nosso pai ter comprado a casa da Rua Araci,


ainda faltavam algumas prestações para quitar. Então, mais uma
vez, ele resolveu desistir da casa e voltar para o aluguel, mudando
para uma casa na Rua Caldas Novas. A casa era grande, com
três quartos, cozinha, banheiro e sala de jantar.
Nessa casa a família já estava maior: Vera, eu, Vânia, Van-
da, Tânia, Jorge, Marco e o mais novo, Valdo. Depois nasceu a
Cristina.”
(Vânio)

“A casa da Caldas Novas era a casa dos meus sonhos e até


hoje quando estou por perto, passo pela rua só para rever aquela
casa. Queria que meu pai tivesse comprado essa casa, pois teve
essa oportunidade. Nesse período, nosso pai trabalhava no Sen-
das e fez um acordo e o dinheiro seria para comprar um imóvel.
Minha mãe até falou para comprar essa casa, pois também estava
à venda. Todos queriam continuar morando ali, mas meu pai
resolveu procurar em outro lugar. Como nos fundos do quintal
tinha uma barreira, ele achava que em algum momento podia
desabar e soterrar todo mundo, por isso não quis comprar essa
casa.”
(Vera)

“Um espetáculo de casa e foi muito bom o período que


moramos lá. Casa grande e bonita. Foi nessa casa que o Valdo
nasceu, era um bebê lindo e hoje se tornou um grande homem.
Quando faltava luz, brincávamos na rua e os meninos pegavam
tanajura para comer.”
(Vaninha)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Seu Zé comprou a casa da Rua Araci, mas meu pai não,


além do aluguel ter aumentado. Chegou a hora de nova mudan-
ça. Nossa mãe começou a procurar uma nova casa. Eu, minha
mãe e mais alguém estávamos juntos, andando. Passamos pela
barreira, subimos uma rua e ficamos tentando adivinhar qual
casa seria. Olhamos uma casa grande e bonita, mas logo nossos
olhos se atentaram para outras, porque aquela casa grande não
parecia estar em nossas condições. Para nossa surpresa, nossa
mãe parou em frente àquela casa e pegou uma chave para abrir
o portão. Sem acreditar, meu interior saltava de alegria, pois
aquela nova casa parecia ser um sonho. Uma casa com escadas,
como aquelas que víamos nas novelas. De entrada tinha uma
varanda na frente. Ao entrar, minha visão era de um palácio,
de tão grande e bonito que era aquele novo lar. Paredes bonitas,
pintadas, sala ampla com uma janela enorme, sala de estar (pa-
lavras do Vânio), três quartos, um corredor, banheiro e cozinha
grande com armário de concreto, pia e balcão grande, um quintal
enorme que se tornou nosso mundo mágico. Em frente à casa
tinha uma cisterna que se tornou outro local onde brincamos
muito. Também tinha um pé de abacate, onde o Vânio fez uma
árvore na casa, adaptando com escadas para os menores terem
acesso. Nos fundos tinha o tanque de roupa que as águas caiam
e corriam por um caminho feito chegava até a frente da casa e
aproveitávamos para simular um córrego e colocávamos nossos
barquinhos de papel para serem levados pelas águas.”
(Vanda)

“… mas na casa da Rua Caldas Novas 198, tenho memórias


boas e ruins. Destaco como momento bom, dentre as brincadeiras
que fazíamos, quando faltava luz e os meus irmãos mais velhos
começavam a contar histórias para nos assustar sobre fantasmas
e, de repente, ouviam-se barulhos de correntes pelo quintal,
deixando a gente com medo e apavorados.”
(Jorge)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

“Voltando ao dia da mudança para Caldas Novas, lembro


que a Vaninha me acordou, me pegou no colo e trocou minha
roupa; eu via naquilo uma certa urgência incomum e havia muita
movimentação, mas não sabia por qual razão”
“… quando cheguei na nova casa, na rua Caldas Novas n°
198, cheguei de caminhão junto com as mudanças, parece que
tinha chovido de madrugada ou na noite anterior, naqueles dias
eu era o caçula, mas isso não demoraria muito para mudar… Ao
chegar à casa, lembro-me de que vi um gato branco que estava
por lá em cima de algo que não me lembro o que era e depois
saiu, esse gato e a música ficaram marcados na minha memó-
ria, bem como a parte de trás da casa, o barranco com mato, o
barranco estava molhado. A casa era bonita, mas só tive essa
noção de beleza bem depois, e acho que só a tive por causa dos
comentários da Vera, Vânio e Vanda…” (A música era: Sentados
à beira do caminho.)
(Marco)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Casa da Rua Caldas Nova – foto atual. O barranco nos fundos da casa da
Caldas Nova – da esquerda para direita: Jorge, Valdo no colo, mãe e Marco
atrás da mãe.

Quarta e Última Casa – Rua Anápolis

“Nosso pai trabalhou durante muitos anos no Sendas. Com


isso, conseguiu em fazer um acordo onde o Sendas o demitiu
e depois o admitiu. Nessa transação, ele conseguiu um bom
dinheiro e conseguiu pagar a prestação da última casa na Rua
Anápolis, que ainda existe e alguns de nós residimos até hoje.
Aqui se completaram os doze irmãos: Vera, Vânio, Vânia,
Vanda, Tânia, Jorge, Marco, Valdo, Cristina. Nesta casa nasceram
Wilson, Cristiano e Daniel.
Nesse local havia duas casas, em uma delas morava uma
senhora que pagava aluguel para nosso pai e isso contribuía
para pagar a prestação de forma suave. Depois ela saiu da casa e
àquele espaço demos o nome de Botafogo, uma escolinha nossa
onde os mais velhos ensinavam os mais novos a ler e escrever.
Nessa casa completei meus 18 anos, fui para o quartel e me
tornei um homem.”
(Vânio)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Valdo, Ivo e Vânio

Vânio no quartel

Valdo, Cristiano, Vânio e Cristina

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“No final de 76 aconteceu a última mudança. Foi difícil se


habituar à nova casa comprada pelo meu pai na Rua Anápolis.
Muitas vezes passava direto pela Anápolis e ia parar na Caldas
Novas de tão acostumada que estava com a casa antiga. Nin-
guém gostava daquela casa nova e só o tempo nos fez acostumar.
Hoje, ao passar pela casa da Caldas Novas, vejo que não houve
desabamento algum como meu pai previu e que a nossa casa
dos sonhos poderia ter sido nossa.”

(Vera)

“Essa é a última e atual casa em que alguns de nós moram


até hoje. Lembro-me de algumas brincadeiras a que demos con-
tinuidade, como brincar na rua quando faltava luz para pegar
vagalumes e passar na roupa para poder brilhar como o inseto.”

(Vaninha)

“Fato! Dessa vez nosso pai comprou uma casa bem próxima
de onde morávamos, na Rua Anápolis. Como era perto, fomos
levando aos poucos os itens mais leves, deixando o pesado para
levar no caminhão do Menga. Confesso que não gostei da mudan-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

ça porque nossa casa grande, um palácio, nosso mundo mágico,


enfim, tudo isso teria que ficar para trás. A casa nova era bem
pequena, tudo minúsculo, sem janelas no quarto. O sofá que o
Zé Maria havia comprado para sua casa e acabou deixando para
a gente não coube na nova casa e acabou no quintal. Toda noite
eu chorava, deprimida com a casa sem janelas no quarto, sem
ver o Sol iluminando tudo, trazendo luz, alegria e cor dentro
de casa. Amo acordar, abrir a janela e ver a luz do Sol entrar,
proporciona-me grande satisfação.
Sem espaço até para camas, tivemos que nos acomodar no
chão mesmo, só deu para colocar uma cama onde a Vera dormia,
e o Vânio dormia no sofá da sala. Assim foram nossos primeiros
dias na casa nova.
Na verdade, nosso pai comprou o imóvel e havia duas casas,
além do quintal na frente. Ficamos morando na casa menor e ao
lado tinha a casa maior, onde morava uma família que não me
recordo quem eram. Apesar de a casa maior ser nossa, houve
um acordo para essa família continuar morando por um deter-
minado período. Sabíamos que a casa era grande porque fomos
convidados pelos vizinhos certa vez para uma festa e pudemos
ver que era bem maior que a nossa.”
(Vanda)

“Realizamos a mudança para a nova casa, para mim fora


traumatizante: a casa, o cheiro de mofo onde tinha o fogão a
lenha, o quintal estreito (na época o quintal era dividido por
uma cerca de ripas) e a realidade de saber que a casa do lado
era mais bonita que a nossa casa, essa casa também era nossa,
mas não podíamos morar nela porque estava alugada até 1979
para a família da Dona Teresa com seus netos: Sônia, Eduardo
e Carlos, com os quais futuramente teríamos laços de amizade,
principalmente com o Dudu, com quem o Valdo tem grande
proximidade até hoje.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Quando nos instalamos nessa última semana do ano, ocor-


reu também a internação da nossa mãe na maternidade para o
nascimento do Wilson.”
(Marco)

Entrada da casa da Rua Anápolis – foto atual

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Colégio Botafogo

O Colégio Botafogo foi uma “brincadeira séria” que, além de


proporcionar entretenimento, produziu saberes:

As Aulas no Botafogo
“Nesta época criamos o Colégio Botafogo, era continuação
do “Colégio Trepei na Goiabeira”, antes que pensem saliência,
eu explico — inclusive naquela época o verbo trepei nem tinha
a conotação que tem hoje, foi inventado depois ou pelo menos
não era popularizado como é atualmente — sobre o nome da…
vou chamar “agremiação” esse nome vem de uma música que
aprendemos no grupo escolar:

‘Trepei na Goiabeira e fiz uma gangorra,


com galhos bem baixinhos pra eu me balançar
E quando me chamaram para refeição
Diz que eu já vou
Trá-lá-lá-lá
Diz que eu já vou
Trá-lá-lá-lá
Ah, seu eu pudesse no campo viver
A minha vida seria um prazer.
Trepei na goiabeira…’

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Então o Botafogo foi uma continuação da outra escola. O


‘Trepei’ ficava no quartinho onde hoje tem um espaço desativa-
do e o Botafogo é a casa da Silvânia com a Amanda. Chama-se
Botafogo porque era uma tendência da família todos serem
torcedores do Botafogo por causa do nosso pai que era botafo-
guense, porém quase ninguém seguiu, até porque o Botafogo
não ganhava títulos e assim permaneceu por 20 anos.
Mas o Colégio Botafogo durou anos, o Jorge sempre foi o
diretor da escola, mas também dava aula, a Tânia foi a professora
mais atuante da escola, eu dei algumas aulas, mas quem segu-
rava a peteca eram o Jorge e a Tânia. A escola tinha tudo, tinha
uniforme com desenho do símbolo do Botafogo no bolso, tinha
merenda, tinha sinal, o sinal a gente pegava um ferro e davas
umas porradas no botijão, a merenda era variada: torresmo de
gordura com farinha, farinha com açúcar, bolo de farinha com
água e açúcar, cajá verde picadinho com água e açúcar, refresco
de Qsuco. Os irmãos mais velhos não gostavam do Botafogo,
achavam brincadeira ridícula, teve uma vez que nós arrumamos
direitinho, estava bonitinho, então eles foram lá e desmontaram
tudo, jogaram tudo no chão… mas nós refizemos tudo, mesmo
com receio de que destruíssem novamente, mas não retornaram.

“Bico calado
Toma cuidado
O homem vem aí!… o homem vem aí!… o homem vem aí!…
(Passaredo. Chico Buarque)

No Botafogo ‘formaram-se’: Valdo, Wilson, Cristiano, Daniel


e até a Cristina. Valdo, Wilson e Cristiano iniciaram os estudos
na primeira série regular devidamente alfabetizados. O Valdo
estudou no Botafogo da primeira à quarta série e depois teve de
ficar repetindo, porque os professores só conheciam conteúdo
do antigo primário. Quando o Valdo entrou para a escola de
verdade, queriam colocá-lo na segunda série porque ele já sabia
tudo, a mãe que não deixou.”
(Marco)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

“Outra lembrança eram as aulas no Botafogo, atual casa da


Amanda e Silvânia. Não tínhamos o costume de fazer maternal
e jardim de infância, como hoje em dia. Eram essas aulas que
tínhamos brincando, nosso maternal. Começávamos a estudar
já na primeira série, já sabendo ler e escrever, graças às aulas no
Botafogo, pois nossa mãe sempre fazia os irmãos mais velhos
ensinarem aos mais novos. Até a Cristina participava das aulas,
chegando a fazer algumas atividades como fazer letras, cobrir,
ligar letras ou desenhos iguais. As merendas também não falta-
vam e entre as refeições tinha o saudoso cajá picado com açúcar.
(Wilson)

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Globo de Ouro

G
lobo de ouro foi uma brincadeira divertida que acon-
tecia no quarto e à noite, trata-se de imitações de um
programa de apresentação de artistas cujas músicas fa-
ziam sucesso nas emissoras de rádio.
“Outra lembrança lúdica que fiquei encantado foi quando
meus irmãos criaram o nosso Globo de Ouro, que acontecia no
nosso quarto. Com o quarto todo escuro, o palco do show era a
beliche, a iluminação era feita com velas na lata de leite em pó,
as outras camas eram o local da plateia e cada um deles cantava
uma música e a gente (os menores) avaliavam quem seria o ven-
cedor. Foge à memória, mas acho que o Jorge venceu, cantando
uma música do Fabio Junior ou Roberto Carlos.”
(Cristiano)

“Saltando por esses anos da década de 80 é possível se


recordar de tantos registros bons. Um deles foi a brincadeira
de reproduzir o programa Globo de Ouro, já mencionado pelo
Cristiano. Tudo era bom, até dar a hora do meu pai chegar, pois
rapidamente tudo era desmontado para não dar motivo de briga.
Essas atitudes dele só faziam com que os filhos se afastassem
cada vez mais dele, mesmo eu, que tinha uma maior intimidade,
passei a ter medo.”
(Daniel)

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Conversões

“Uma das coisas mais importantes da minha vida”


(Jorge)

T
odos da família são originalmente católicos, formados
batizados, seguindo a tradição familiar e imposta pelos
pais, contudo alguns filhos optaram por outro caminho
religioso e aqui estão registrados:

Os Convites para ser Crente

“Nesse período também veio minha frustração com a Igreja


Católica. Passei a dividir os trabalhos com outra menina de nome
Cátia. Percebi que começaram a me descartar e valorizar a outra
menina. Com essa decepção, parei de dar catecismo, comecei a
me afastar até parar de ir. Nesse momento, meu empenho se
direcionou somente à escola.
Conheci na escola a Luciane, que era evangélica e sempre
me convidava para ir à igreja dela, assim como recebi convite
da minha amiga Sirlene, que também era crente, mas nunca
tive interesse, por me considerar católica. Havia também uma
professora de música na escola que percebia que me observava
muito. Achava estranho tudo aquilo!
Junto com a Luciene, que também fora reprovada, no último
ano ela me chamou para conversar algo sério. Relembrou que
já tinha falado comigo algumas vezes e eu sempre me esquivei,

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

mas dessa vez ela mudou o tom de suas palavras e falou: ‘o Se-
nhor quer te dar um livramento muito grande, mas é necessário
que você vá à casa dEle. Amanhã tem culto à tarde e estou mais
uma vez te convidando para ir comigo à igreja. O Senhor quer
falar contigo e ai de você de não o ouvir’. Nesse dia, não tivemos
aula devido à reunião dos professores. Ao ouvir essas palavras,
a sensação foi de medo e alegria na mesma intensidade. Depois
dessa intimação, só restou confirmar às 15h00 do dia seguinte
estar nesse culto. Combinamos de nos encontrar em frente ao
CIEP João Bosco às 14h30.
Antes do encontro, é importante lembrar que, por quase
um ano, tive períodos conturbados em minha vida. De início,
comecei a sentir sono. Quando a vontade vinha, sentia também
medo, porque era um sono depressivo. Também estava associada
a uma grande desmotivação na vida, uma falta de prazer em fazer
qualquer coisa, fosse assistir a um filme ou novela, ouvir uma
música, por exemplo. Febres e dores abdominais eram comuns
nesse período, chegando a me curvar de dor até que cessasse.
Depois veio a ânsia de vômito, logo que a dor passava. Sentia
que minha barriga e seios inchavam, mas depois sumia.
No dia marcado, fui fazer as coisas de casa e quase me
esqueci do encontro, só lembrando já às 13h30. Quando lembrei
que tinha que sair, senti um desânimo muito grande, somado a
um cansaço inesperado, o corpo começou a pesar e um sono veio
repentinamente. Deitei no sofá para dormir, mas subitamente as
palavras da minha amiga voltaram a mim, como se algo muito
ruim pudesse acontecer. Levantei às pressas para procurar a
roupa para sair, mas os sintomas continuavam sobre mim. Deitei
novamente, sendo vencida pelo cansaço e pelo sono. De novo,
lembrei das palavras e num impulso fui tomar banho lutando com
aquela exaustão. Até que consegui sair de casa e fui ao encontro
marcado, mas minha amiga já tinha partido, pois com tudo isso,
acabei me atrasando. Determinada a não desistir, lembrei-me do
endereço que ela já havia me passado em outra ocasião e segui
rumo à igreja na Rua Délio Guaraná. Andei por quase toda a rua
e não conseguia enxergar a igreja. Depois de tanto empecilho,

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

consegui visualizar uma placa: ADUD — Assembleia de Deus


dos Últimos Dias. Entrei, participei do culto, levantei minhas
mãos e aceitei Jesus. Recebi oração e saí da igreja com o coração
leve, cheio de alegria e paz. Flutuei pelo caminho até chegar em
casa. Essa paz me acompanhou por toda a semana e nada tirou
essa sensação. No dia seguinte, encontrei minha amiga e fiquei
aguardando que ela tocasse no assunto para receber o convite
mais uma vez, mas não aconteceu e também meu orgulho não
deu o braço a torcer. A sensação de paz foi se esvaindo e a par-
tir daí tudo mudou em minha vida. Comecei a mudar minhas
atitudes, até nas vestimentas.”
(Vanda)

“Uma das coisas mais importantes que aconteceram em


minha vida foi minha conversão, onde me entreguei de corpo,
alma e espírito para o meu Deus. Entregar minha vida para Jesus
foi o acontecimento, pois sem Ele nada sou.”
(Jorge)

“… Voltando para minha sequência cronológica, quero


falar de 1996 e 1997. Acredito que todo indivíduo tem um per-
curso traçado por ele mesmo e nessa caminhada a pessoa faz
opções, mas o caminho é um só. Então quero tratar acerca da
questão espiritual e seus mistérios. No final de 1995 ingressei na
AMORC (antiga e mística ordem rosacruz), uma instituição que
se denomina escola de filosofia mística, onde me envolvi com
misticismo, entretanto em 97 começou a acontecer algo interno
em mim e por isso eu digo que uma coisa leva a outra e espero
que entendam. Minha presença na ordem e seus rituais foram
secretos, guardei silêncio e não contava o que fazia, minha mãe
ficava indignada, conquanto confiasse em mim.
Mas teve um dia, na parte externa da AMORC, quando
olhava para a rua, vi um casal, uma família — não me lembro
direito — e eles estavam indo para igreja e aquela cena casou-me

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

grande ‘inveja’. Este sentimento melancólico foi reforçado por


algumas leituras que fiz na biblioteca da loja e essas leituras me
desagradaram, estou falando dos livros A vida mística de Cristo
e As doutrinas secretas de Jesus, livros que hoje são facilmente
encontrados na internet. Nada contra evangelhos apócrifos,
sabendo filtrar são bons, mas naquele momento não caiu bem.
Outra situação que provocou ‘inveja’ e admiração foi quando
em um dia de semana eu estava aguardando o trem passar pela
cancela — onde hoje tem o Supermarket, antes foi Supermercados
Extra, mas naquela época era do Sendas — quando uma pessoa
quis se suicidar, esperou o trem se movimentar e ficou parada
na linha férrea, nesta hora um homem ainda jovem, com calça
e camisa social caracterizado como evangélico se atracou com o
suicida, fez força e não deixou aquela pessoa se matar. Alguém
que estava chegando viu a confusão e perguntou para um camelô
o que estava acontecendo?! E o vendedor ambulante respondeu
‘o cara queria se matar e o crente não deixou’. Essa frase, que
indiretamente eu ouvi, somada à cena que presenciei foi, para
mim, como uma evangelização, foi a última vez que fui evange-
lizado, porquanto acredito que muitas pessoas durante a minha
vida me evangelizaram, porém aquela situação que presenciei
foi a culminância, na verdade o Espírito Santo já estava falando
ao meu coração e estava chegando a hora.
Ouvindo rádio melodia, era dia de semana e tarde cin-
zenta. Alguém estava dando entrevista e esta pessoa falou o
que eu queria, a saber: como se faz para se entregar a Jesus?
E a pessoa disse assim: ‘Basta você parar o que está fazendo,
ajoelhar-se e dizer que o aceita’. Achava que seria mais com-
plicado, devia ter uns rituais, ler uns livros… mas nada disso
era preciso. Naquela tarde eu me ajoelhei atrás da porta do
quarto e não me lembro as palavras que pensei, apenas chorei,
foi nesse dia, cuja data não sei, tampouco a hora, mas foi nesse
dia que teve festa no céu!
Semanas depois estive na loja rosacruz e entreguei tudo
o que eu tinha deles, educadamente falei que não estava mais
interessado e deixei de ser membro da ordem.

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Eu me converti antes do Jorge, mas fiquei em silêncio, fiz
conforme a parábola do homem que sabia que havia um tesouro
no terreno e comprou o terreno. Já o Jorge fez questão de contar
pra todo mundo e perturbou o juízo de todos ouvindo rádio alto
e falando sobre o assunto.
Eu encontrei a Igreja Nova Vida em outubro de 1997, no
mesmo mês em que eu seria iniciado em primeiro grau na Ordem
Rosacruz, se lá estivesse, até hoje eu certamente seria mestre ho-
norável e talvez um maçom. Entrei para a Igreja Nova Vida em
97 e me batizei em 98, levei 3 anos para ler a Bíblia toda e assim
fiz porque queria aprender, anos depois intensifiquei a leitura e
já li o livro sagrado mais de uma dezena de vezes.
Batizei-me na Igreja Pentecostal Nova Vida, onde fiquei por
6 anos, depois estive na Igreja Batista Nova Filadélfia, onde estive
por 6 anos e depois fui para a Igreja Presbiteriana do Brasil, onde
estou desde 2009. Na caminhada escolhi o novo e vivo caminho”.
(Marco)

Deus na Minha Vida


“Quando criança não tinha expectativa de vida, achando
que meu destino seria incerto, devido às condições precárias
em que vivíamos, mas Deus resgatou minha esperança e hoje
sou livre dessas condições, com muitos sonhos, desejos e um
propósito trilhado por Deus em minha vida.
Só me resta ser feliz, pois Deus é o dono da minha vida
e vivo para lhe servir. Sou diácono e sirvo na casa do Senhor.
Agradeço a Deus por tudo que fui, por tudo que sou e pelo
que serei. Sou grato também por toda minha família, mesmo
não sendo perfeita, mas é essa a família que Deus me deu e que
amo muito, mesmo que a distância queira nos separar, o amor
tudo supera.”
(Wilson)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Enquanto servia, não deixava os estudos de lado e nesse


período estava destinado a me tornar sargento e fazia cursinhos
preparatórios para alcançar meu objetivo. Numa noite, Valdo,
que gostava de curtir baladas, me chamou para largar um pouco
os estudos e sair com ele. Estava precisando espairecer e aceitei
o convite. Fomos juntos para a extinta Choperia Tropical em
Irajá, onde ele encontraria uma menina com quem ele estava
se relacionando. Ela levou sua irmã que tinha terminado o
namoro naquele dia e fomos apresentados. De início, não me
interessei, além de conhecer o ex dela, mas depois de algumas
cervejas, o interesse surgiu e, bêbado, comecei a investir. Não
sei exatamente o que falei, devido a muitas doses, mas sei que
não consegui nada.
Alguns meses se passaram, Valdo continuava com aquela
menina e marcamos de retornar naquela choperia. A irmã con-
tinuava solteira e, dessa vez, de cara limpa, conversamos um
pouco até acontecer e acabamos ficando naquela noite. O tempo
passou, Valdo continuava com aquela menina e no natal de 1998
ele ligou para desejar felicitações. Acabei pegando o telefone
para desejar feliz natal a Elaine. Conversamos um pouco mais
e ela me convidou para ir à sua casa no dia seguinte, pois teria
um churrasco. Conforme combinado, fui à Penha e ficamos
mais uma vez. Conheci sua família e a partir desse momento
iniciamos um namoro.
Tínhamos muitas coisas e objetivos em comum. Conver-
sávamos sobre tudo, inclusive religião. Contei de minhas expe-
riências de criança e do que passei no quartel e ela me falou as
dela, de passar por muitas igrejas, de quando criança visitar o
centro espírita que seu tio era dono, mas estava visitando uma
igreja que lhe fazia muito bem. Combinamos de visitar juntos
e na primeira visita aquela sensação dos encontros do quartel
reacendeu de forma intensa. Aquele homem pregando parecia
que trazia um recado de Deus para mim. Foi nesse dia que tive-
mos nossa experiência de ouvir Jesus falar conosco e, juntos, eu
e Elaine nos convertemos. A partir daí, estar na Nova Vida de

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Olaria era nosso maior desejo. Trabalhamos muito nessa igreja,


em vários ministérios, onde servimos por dez anos.”
(Cristiano)

“Por fim, ressalto que a estrutura que tive, sendo levado


e guiado desde pequeno, não seria outra senão oportunamente
ter meu encontro com Deus. A Igreja Universal do Reino de
Deus tornou-se uma mãe espiritual para mim. Nela obtive meu
crescimento espiritual, me batizando nas águas e no fogo. Hoje
sou obreiro há 18 anos, convertido há mais 20 anos. Poderia ser
outra história contada, mas em Jesus posso contar essa história.
Da mesma forma, uma nova história pode ser contada por todo
aquele que acredita no nosso Senhor Jesus Cristo.”
(Daniel)

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“Todo Homem Precisa de Uma Mãe”

Em memória

N este tema teremos uma breve homenagem para Dona Va-


nilda, a matriarca:
“Não tenho nenhuma recordação ruim com ela, só lembran-
ças boas, mesmo com as surras que levei na infância, sabia que
ela agia para corrigir meus erros. Por isso, não guardo nenhum
rancor, só boas recordações.”
(Vaninha)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

“Jamais vou me esquecer dessa pessoa que fez de tudo para


educar todos nós e nos dar o melhor que podia.”
(Jorge)

“Como toda criança, eu prestava muita atenção nos en-


sinamentos da minha mãe, ela nos reunia à tarde e enquanto
desenvolvia alguma tarefa nos ensinava coisas da igreja, neste
contexto são indeléveis as músicas que ela cantava: ‘Sabe, Senhor,
o que eu tenho é tão pouco pra dar, mas este pouco nós quere-
mos com os irmãos compartilhar, sabemos que é difícil os bens
compartilhar, mas como a tua graça, Senhor queremos dar…” e
também “mãezinha, eu quero te ver lá no céu”; esta música me
dava medo só de pensar em perdê-la.”
(Marco)

“A emoção aflora ao falar dessa mulher. Tantos adjetivos


para declarar e ainda assim não são suficientes para mostrar sua
grandeza. Guerreira, heroína, humilde, forte, de um domínio
próprio invejável e que amava incondicionalmente. Só me resta
agradecer a Deus por ser um de seus filhos. Amo.
Seus pais eram João Soares (Silai) e Francisca Damásia,
e eram de uma família de 8 irmãos (Teonísia, Fátima, Vanilde,
Antônio, Rosalina, Ivo, Dalila e Aurila). Perguntei uma vez se
ela havia conhecido seus avós e ela disse que não, mas sua mãe
dizia que a avó foi escrava. Sobre meu avô Silai, também não se
tem muita informação sobre seu parentesco, pois foi adotado.
O que ele dizia é que seu pai adotivo era marinheiro e ele não
gostava de viver com esse pai, então fugiu de casa.
Minha mãe gostava de acordar cedo, ligar o som no rá-
dio-relógio e ouvir músicas sertanejas, como O Fio de Cabelo, de
Chitãozinho e Chororó ou As Andorinhas, do Trio Parada Dura.
Ela me acordava para ir para a escola e eu ouvia essas músicas,
sentindo o cheiro do café da manhã. Como a escola era perto, foi
comigo a primeira vez e ensinou o caminho e os cuidados que

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

tinha que tomar para atravessar as ruas. Foram poucas vezes,


mas aconteceu de ela ter um dinheiro sobrando e comprava
perto da escola um biscoito de minha preferência para levar e
comer no recreio.
Triste e chorando? Quase não vi. Lembro-me do dia em que
ela recebeu a notícia de que sua mãe havia falecido. Nesse mesmo
dia, nascia o Adriano, filho da Vaninha, mais um de seus netos.
Nesse dia ela ficou triste e chorou. Estava sentada no banco de
madeira no nosso quintal. Sentei ao seu lado e os sentimentos
dela pareciam estar confusos. Ela então balbuciou: morte e vida
Severina. Talvez fosse comum usar essa frase no Nordeste, pois
é um livro de poema do escritor pernambucano João Cabral de
Melo Neto, escrito entre 1954 e 1955. Também pode ser devido
um especial que passou na Globo nessa década sobre o livro.
Foi o único dia em que a vi fraquejar.
Disposição ela tinha, e muita. Trabalhou toda sua vida para
nos tornar o que somos hoje. Preocupava-se com nossa educa-
ção e corria atrás de escolas dando oportunidade para todos. A
religião também era um dos fundamentos de nossa família e ela
fazia questão de nos levar às missas e estudar catecismo na igreja.
A diabetes e as falhas no coração foram os motivos de sua
partida. A dor na alma sinto até hoje com sua falta, ao mesmo
tempo em que me fortalece para remoer todas essas lembranças
e manter viva sua memória para sempre através destes escritos.
Não estava preparado para sua morte, mas ela sabia que
a sua vez estava próxima. Pouco mais de um ano antes, minha
mãe veio à minha casa, no meu aniversário, já estava casado e
conversamos um pouco. Ela perguntou quando viria seu neto.
Respondi para ela ter calma porque não estava com pressa. Ela
disse que se demorasse talvez não conhecesse. Ouvir aquilo me
trouxe medo.
Depois disso, nossos encontros foram bem tortuosos. Meus
olhos viam com o passar do tempo minha mãe ficando cada vez
mais abatida, emagrecendo, e a doença tomando conta daquela
pessoa tão forte, agora tão fraca, impotente àquela doença atroz.

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Tive alguns encontros em hospitais em que se internava porque
ela não estava bem. Algumas vezes a acompanhei ao hospital,
chegando a carregá-la nos braços. Uma experiência que jamais
vou esquecer foi quando ela teve que ir para o Hospital de Bon-
sucesso e fui visitá-la. Ao chegar, minha mãe estava aguardando
para ser atendida, percebi que ela estava fora de si, não falava,
seus olhos estavam longe, sem nenhuma reação. Passei aquele
dia e a noite com ela. Olhei para sua mão e tinha um papel
amassado que ela não soltou. Quando precisou ir ao banheiro,
Elaine a acompanhou e teve que deixar seus pertences comigo
e foi quando deixou o papel. Ao abrir, era um desenho que sua
neta Amanda tinha feito delas duas. Seu amor pela família, pe-
los netos, ainda estava ali, mesmo lhe faltando lucidez, mesmo
passando por toda aquela provação. Que mulher…
Cada vitória conquistada, cada sonho realizado é como se
minha mãe estivesse junto comigo e lamento que ela não possa
estar fisicamente conosco, pois só posso agradecer por tudo que
Deus nos permitiu superar, sendo certo que os méritos foram
motivados por uma única pessoa. Quando olho para trás para
enxergar onde tudo começou, vejo minha mãe, minha heroína,
ora eu em seu colo, ora segurando suas mãos, ora ela em meus
braços. Só tenho a agradecer por ser filho desta que tanto fez por
mim. Sinto sua falta!”
(Cristiano)

O Melhor Momento: a Companhia da Minha Mãe

“Nossa mãe era a primeira a levantar e vez ou outra quando


acordava cedo ela já estava lá, ouvindo o rádio-relógio, músicas
sertanejas, preparando comida para meu pai levar na marmita.
Depois ia lavar roupas ou passar roupas ou estar na máquina de
costura. Levantava-se de madrugada para “não deixar serviço
para última hora”.
Outro momento bom era ir à casa da Dona Romilda em
sua companhia. Não tínhamos telefone fixo, então recebíamos

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

muita ligação no telefone dessa senhora quando meu pai viajava.


Nessa casa, havia encontros de novena da igreja e minha mãe
me levava. Um dia, a caminho da casa, andei próximo de uma
vala na rua e acabei caindo e me sujando todo. Mesmo assim, aos
prantos, queria acompanhá-la, mas ela disse: “Sujo desse jeito
você não vai.” Tive que voltar para casa. Gostava de participar
desses encontros.
Na hora de dormir, gostava de ficar no canto da cama dos
meus pais ou no meio deles. Numa de muitas noites em que dei-
tei com eles recebemos a visita de uma barata que passou sobre
eles. Vi a barata, mas não reagi, nem saí do lugar. A barata veio e
passou sobre meu rosto, entrando em minha boca e saindo logo.
Comecei a gritar, dizendo que a barata passou na minha boca. De
imediato, minha mãe me levou na cozinha e lavou minha boca.
Depois voltamos para cama, mas pedi para a mãe para ligar o
circulador quadrado para me ajudar a dormir.
Antes de dormir, era o momento de rezar. No quarto,
diante daquela imagem de cerâmica de José, Maria e o Menino
Jesus, me ensinava do jeito dela a falar com Deus, através do Pai
Nosso e Ave Maria. Assim aprendi quem era Deus, quem era
Jesus, ensino que ela passava da maneira como tinha aprendido
com seus pais.
Acredito que até os meus três anos de idade não conseguia
largar o ‘mama’, que chamava de bui. Quando pedia o bui, meus
irmãos ficavam zombando de mim, pois já estava muito grande
para mamar. Ela dava um jeito e me cobria com um lençol para
esconder e poder mamar sossegado, até alguém puxar o pano
e tornarem a zoar de mim. Numa madrugada, procurei o peito
para mamar. De repente, minha mãe se levantou e disse que ia
ali. Foi no quintal, pegou algumas folhas (ervas), socou e passou
o suco no bico do peito. Depois retornou ao quarto e se deitou.
Estava à sua espera para continuar no bui, mas senti algo dife-
rente. Estava muito amargo e comecei a cuspir. A partir desse
momento larguei de vez o bui, acreditando que a partir daquele
dia seria sempre aquele gosto.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Sempre acompanhava minha mãe quando ia à igreja. Al-


gumas vezes íamos à Igreja de São Sebastião e na missa tocou
a música Segura na mão de Deus. Ao sair da missa, estava tendo
atendimento à comunidade no Brizolão (CIEP João Bosco) e mi-
nha mãe me levou para aplicação de flúor. No caminho de casa,
sem entender a letra da canção, perguntei à minha mãe como
podia segurar na mão de Deus? Ela me respondeu que bastava
eu acreditar e confiar, que quando tivesse algum problema era
só segurar e pedir para Deus segurar na mão que ia passar. Essa
lição eu nunca mais esqueci, pois somente com Deus consegui-
mos vencer as adversidades.
Estar junto de minha mãe era o melhor momento. Poderia
estar assistindo aos meus desenhos preferidos que eu largava
tudo para ir com ela onde fosse. Em outra ocasião, estava pas-
sando Jaspion ou Changeman e ela falou que ia para a igreja.
Queria muito ficar assistindo mais um episódio, mas optei em
sair de frente da TV para acompanhá-la. Normalmente dormia
durante a missa, mas entendia que tinha que estar com ela. Al-
gumas vezes, vínhamos de carona com Seu Henrique e Dona
Romilda. Aproveitava o carro para ir dormindo e chegando em
casa, mesmo acordado, fingia estar dormindo para ser levado
em seus braços.
Minha mãe era uma guerreira. Suportou muita coisa. Nunca
nos abandonou. Era meu porto seguro. Eu me arrependo, pois
quando adolescente respondi a ela de forma ríspida e ignorante.
Quando tinha dúvidas sempre esperava a resposta dela. Qual-
quer coisa que acontecesse comigo buscava tirar dela explicações.
Quando ela partiu senti muita falta, pois a referência, a voz que
me direcionava não estava comigo para me amparar e aliviar
meus medos. Sou muito grato a Deus pela mãe que tive.”
(Daniel)

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A avó com alguns de seus netos

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Tânia

Em memória

Dedicado a Tânia

“A Tânia era uma pessoa muito fechada e após o falecimento


de nossa mãe comecei a me aproximar mais dela, mas tive que
ser insistente porque ela não era de conversar. Nos seus aniversá-
rios marcava presença e sempre levava uma lembrança, pois ela
sempre reclamava que todos se esqueciam do aniversário dela.
Tentando aproximação, dei a ela umas sementes de planta para
ela cultivar, expliquei como ela faria e que na semana seguinte

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

voltaria para ver o resultado. Na semana seguinte, retornei e


perguntei sobre a planta e ela trouxe aquela muda que estava
crescendo e brincamos com esse momento e cultivo de uma nova
intimidade que crescia entre nós. Mais um enfarto, mais uma
morte e a Tânia se despediu de nós. Sua morte me fez refletir
e tive minhas crises de consciência com relação a não estar tão
presente, talvez pudesse ter ajudo mais.”
(Vera)

Da esquerda para direita: Antônio, Tatiana, Vera e Tânia

“A Tânia sempre foi uma menina tranquila, não conversava


muito. Depois que nossa mãe faleceu, Tânia teve que assumir as
responsabilidades da casa, o que era feito de maneira peculiar e
do jeito dela. Sua doença também foi repentina e inesperada. Ela
quando se queixava de dor na barriga, a Vanda fazia um chá de
boldo que ela tomava e logo ficava boa. Nesse dia ela reclamou
de dor na barriga e estava vomitando. Então o tratamento foi o
mesmo.
Saí para trabalhar e quando retornei fui vê-la para saber se
tinha melhorado. Quando a vi me desesperei, pois a encontrei

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

totalmente diferente. Estava pálida, com os olhos esbugalhados,


sem conseguir falar direito e suando muito. Chamei minhas filhas
para ver se era só impressão minha, mas elas tiveram o mesmo
espanto. A Vanda tentou dar banho nela, mas ela não conseguia
se levantar do sofá. Com muito custo, conseguiu chegar até o
banheiro e durante o banho desmaiou. Minhas filhas Paulinha
e Luana foram socorrer e a tiraram do banheiro. Corri e chamei
o Marco, que trouxe o Seu Moreira e a levou para o hospital. No
dia seguinte, depois de duas paradas cardíacas, não conseguiu
resistir e também partiu muito cedo. É uma lembrança muito
triste que só é possível esquecer ao recordar de nossa infância
tão feliz e de muitas brincadeiras.”
(Vaninha)

Da esquerda para direita: Antônio, Vânia, Cristina e Tânia

“Inesperada foi sua morte, trazendo tristeza para todos.


Tânia estava bem e de repente veio seu falecimento. Creio que
ainda não era seu momento, apesar de que Deus sabe de todas
as coisas.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Quando me lembro dela, logo vem à memória o fato de


quando ela estava namorando e ninguém sabia, até que ela foi
vista e nossa mãe ficou sabendo. Estavam os dois dentro do
carro do rapaz e minha mãe os surpreendeu, colocou o rapaz
para correr e ele nunca mais voltou”.
(Jorge)

“As minhas lembranças sobre a Tânia durante o período da


nossa infância são lembranças de uma criança normal, brincáva-
mos juntos, conversávamos normalmente. Contudo naquela época
já havia sequelas referentes à doença que a atingiu. Para mim,
em particular, não havia diferenças entre nós, para minha faixa
etária o entendimento estava perfeitamente aceitável. Entretanto
seu cognitivo não acompanhava sua idade cronológica, tanto é
que cursamos juntos — no mesmo ano — a 1ª série.
Ela não passou da 3ª série no estudo regular, mais adiante
cursou supletivo na igreja de São Sebastião, porque abandonou
os estudos e ficou muitos anos sem voltar a estudar. Para nossos
pais o entendimento é que não tinha jeito, não adiantava forçar,
ela não era normal.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Essa defasagem da Tânia rendia-lhe alguns problemas, a


começar pelos apelidos que recebia dentro de casa. Os irmãos
mais velhos a chamavam de B-A, museu, musa, e todos os outros
irmãos reproduziam o escárnio. Essa coisa de colocar apelido
pejorativo vem de longe e continuou até o Daniel.
Os apelidos a deixavam muito irritada, ela reclamava e
chorava muito. Seu destino foram as atividades domésticas.
Reclamava muito das tarefas e com razão, porque não foi uma
opção, um destino puramente machista que lhe foi imposto. No
acomodar das coisas tornou-se um braço da nossa mãe, com
quem dividia os trabalhos dentro de casa.
No Ceará percebi que a Tânia encontrou um ambiente
pacificado pra ela quando conheceu Liduína, as duas termina-
vam os trabalhos de casa e ficavam conversando horas e horas,
geralmente futilidades da TV, mas ali houve uma conexão que
deixava a Tânia feliz.
Ao retornar para o Rio, deu continuidade ao seu marasmo
e seu mundinho próprio, guardando as roupas que não deixava
ninguém usar. Nos últimos tempos estava demasiadamente afe-
tada pelos transtornos psiquiátricos. Digo que ela, a Cristina e o
pai formavam um triunvirato para azucrinar a cabeça da minha
mãe. Quando o pai estava bêbado, se juntava com a Cristina,
quando o pai estava ausente, a Cristina ficava pacificada e en-
tão entrava em cena a Tânia perturbando a paz da minha mãe.
Após a morte da mãe, aí que tudo desandou. Com o tratamento
psiquiátrico, tornou-se “sustentável”. Teve um período até bom,
sob influência da Ana Cláudia passou a frequentar as aulas de
artesanato e educação física para o pessoal da terceira idade na
Igreja Presbiteriana, frequentava os cultos e festividades (trazia
sacolinha pra levar as comidas, pra me matar de vergonha) ficou
reconhecida pelas senhoras que até hoje perguntam pela Cristina.
Nesses últimos anos esteve bastante presente aqui em
casa inúmeras vezes, sempre que, aos domingos, fazíamos algo
diferente aqui em casa chamávamos a Tânia, ela virou amiga
da Maria Vitória, Vitória gostava muito de brincar com a Tânia,

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fazia a festa no cabelo dela, colocava ela até pra andar de skate…
duas crianças!
No dia do aniversário da Cláudia em 2016 ela esteve aqui,
até mexemos com ela porque ela estava comendo muitas bestei-
ras. Eu fazia as compras pra ela e na mesma semana ela comia
todas as coisas doces ou gordurosas.
Uma semana antes de ela falecer eu estive lá em sua casa,
mas não entrei, parei na janela, ela estava sentada no sofá, de
costas pra mim, perguntei se estava tudo bem e ela só balançou
a cabeça, estava de ovo virado.
Para minha surpresa, aconteceu de ela passar mal quando
me acionaram e eu não desconfiava da gravidade. Tânia mor-
reu no dia do meu aniversário, no leito da enfermaria, naquela
manhã, ela me deu parabéns, eu ri sem graça e agradeci, ela
perguntou se a casa estava fechada e disse que aquela dor que
ela estava sentindo só passava quando ela tomava chá. A Tânia
não era de reclamar de dores, suportava calada e se comportou
assim durante muitos anos.
Durante os anos de 2014, 2015 e 2016, nós realizamos ora-
ções às sextas-feiras na casa dela, era impreterível, a Vitória me
acompanhava em todas, às vezes a Cláudia, o Daniel algumas
vezes. Mas foram 3 anos de orações que, eu tenho certeza, pro-
porcionaram paz ao coração da Tânia. Aproveitávamos essas
orações para comemorarmos o aniversário dela ou da Cristina,
Páscoa, Natal meio antecipado. Foram bons momentos!
Deixamos a Tânia na UTI e fomos tentar transferência
para ela, fomos ao plantão judiciário do TJ. Eu, Vânia e Cláudia.
A Cláudia estava conversando com o juiz, porque ele já estava
autorizando a transferência, quando o Valdo avisou sobre o fa-
lecimento, a Cláudia estava no lado de dentro do fórum e eu lá
fora, liguei pra ela, contei o desfecho e pedi pra ela, ao sair, não
contar para a Vaninha, porque eu não sabia qual seria a reação,
se ela ia passar mal, e como iríamos socorrê-la ali na praça XV,
quando a Cláudia saiu já estava com o choro controlado.

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Mesmo sob muita chuva, todas as senhoras da igreja que


conheciam a Tânia estavam no dia do seu sepultamento. Ter-
minou ali a história cuja trajetória foi de poucas alegrias, talvez
ela apenas tivesse alegria quando mergulhava no seu mundo
inventado, talvez nas fugas da realidade a Tânia se realizava,
realizações que não sabemos mensurar, coisa dela com o eterno.”
(Antônio)

Antônio, Tânia e Cristina

“Dedicar parte desta biografia com minhas recordações


sobre essa pessoa é um lisonjeio, tamanha importância teve para
mim, um dos filhos mais novos, e penso que até para minha mãe
que, por muitas vezes, a substituiu.
Já tive a oportunidade de registrar que a Tânia, junto com
a Vanda e Vaninha, foi como uma mãe para mim, isso quando
minha mãe estava atarefada com seus trabalhos de lavadeira ou
passadeira ou costureira e nos serviços domésticos. Eram elas
que cuidavam de mim, dando banho, trocando roupas, dando
comida, colocando para dormir. Como não enxergar na Tânia
a figura de uma mãe? Como não ver a força de minha mãe re-
fletindo nela por muitas vezes. Não se casou, não gerou filhos,
mas a maternidade estava nela. Uma pessoa doce, afetuosa,
que gostava de assistir às novelas, filmes, saber das fofocas dos
famosos, até brincar com a gente.

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Com um pouco mais de idade, não foi difícil perceber que


o comportamento social da Tânia a diferenciava de nós. Ela
gostava de conversar, mas se bloqueava, ficando introspectiva,
tinha complexo de inferioridade e baixa autoestima. Tudo isso
está relacionado ao fato de ela ter sido diagnosticada com esqui-
zofrenia, uma descoberta tardia. Além disso, na infância esteve
muito doente com meningite, quase perdendo sua vida. Também
tinha a superproteção de minha mãe sobre ela, que não fazia
por mal, mas, temendo suas incapacidades, a impedia de sair
sozinha. Com tudo isso, não deixou de exercer papel relevante
no decorrer dessas memórias.
Esse transtorno a impediu de evoluir nos estudos, estag-
nando na quarta série, atual quinto ano de ensino fundamental.
Mesmo assim, tentou algumas vezes, já adulta, retornar aos
estudos. Participei de seu esforço, auxiliando nas matérias da
escola e atividades de casa. Percebia que quando a ensinava
hoje, ela até entendia o assunto, mas no dia seguinte tinha que
recomeçar.
Quando chegou o momento de irmos para o Acaraú, apesar
de ser uma mulher adulta, suas limitações a impediram de expor
sua vontade de ficar no Rio, não restando outra possibilidade,
senão nos acompanhar, ainda mais que era dependente dos meus
pais. Dentre nós, certamente foi uma das que mais sofreu e toda
noite seu choro não nos deixava esquecer, acompanhando-a em
prantos por tamanha angústia que estávamos passando. Nesse
momento ela passou a ser a guardiã da Cristina e do Daniel,
enquanto eu, Wilson, Valdo por um período, pai e mãe estavam
trabalhando, era a Tânia quem assumia a responsabilidade so-
bre os dois. Querendo ou não estar nessa posição, tornou-se um
braço forte de minha mãe.
Por um curto período conheceu uma das cidades mais
lindas do Ceará, Jericoacoara. Trabalhou na casa da Eliane, filha
da D. Nazaré, mas não admitia receber ordens da “amiga”, não
demorando muito tempo para voltar a tomar conta da Cristina,
como de costume.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Nesse período, acabou se interessando por um rapaz, vi-


zinho nosso de nome Geraldo. Um simples cumprimento com
sorriso foi suficiente para se apaixonar. Suas tímidas intenções
foram frustradas quando o rapaz apareceu com uma namorada.
Ela chorou e sofreu por aquele amor não correspondido.
Apesar de não ter vivido com ela seus momentos de infância
(temos uma diferença de 13 anos), considero o período em que
moramos em Fortaleza a fase mais feliz que ela viveu. Além de
nossa tia Teonísia tê-la acolhido, dando espaço em seu quarto,
também teve a amizade de nossa prima Liduína. As duas torna-
ram-se inseparáveis, ficavam o dia inteiro juntas conversando e
até brincando. Como o Daniel já tinha seus 10 anos, as respon-
sabilidades da Tânia eram mais com a Cristina, enquanto minha
mãe estava ausente, trabalhando. Percebia que essa obrigação
já não era um peso para ela, que fazia sem reclamar. Quando
chegou o momento de voltarmos para o Rio, a Tânia foi a única
a se recusar, querendo ficar morando com a tia. Mais uma vez,
sem voz, retornou ao Rio conosco.
A Cristina passou a ser não só sua responsabilidade, mas
quem fazia companhia para ela depois que minha mãe partiu.
Foi a partir desse momento que vi os delírios esquizofrênicos
aflorarem. Com todos os irmãos casados e mesmo com parte da
família morando ao seu redor, é possível que a solidão e a falta
de nossa mãe tenham colaborado com os transtornos.
Lamento sua morte tão intempestiva! O infarto a tirou
de nós abruptamente. Ela, que achou que aquele incômodo era
apenas uma dor de barriga. Tentou tratar com as plantas e ervas
que nossa mãe nos dava. Tão inocente. Certamente, a Tina foi
quem mais sentiu sua falta e sua companhia, pois juntas passa-
ram muitos anos. Prefiro abraçar sua pureza e ficar com o lúdico,
acreditar que ela já não aguentava tanta saudade, antecipou-se e
nos abandonou, só para ficar juntinho da minha mãe.”
(Cristiano)

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Tânia e Cristina

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Cristina

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“O terrível dia da viagem”

(Vanda)

A Partida para o Ceará

A
qui estão as lembranças referentes à viagem de parte
da família para o Ceará, passagem em que se registram
demasiados relatos, porque foi um momento demasia-
damente triste e que selou profundas mudanças:
“A partida da minha mãe com meus irmãozinhos foi muito
triste. Ela foi convencida e enganada pelo meu pai para ir ao seu
encontro.
No dia da partida, o Duque, nosso cachorro, chorava pela
falta das crianças e durante dias ficou triste naquele portão es-
perando que eles voltassem e acabava chorando com ele.
A Vanda acabou assumindo toda a responsabilidade da
casa, tendo que arrumar a casa, fazer comida e ir para a escola.
Antes ela tinha a mãe para fazer tudo, mas teve que se virar e
aprender a duras penas. No início algumas panelas de arroz se
queimaram, marcas de ferro quente nas roupas, mas conseguiu se
superar. Ainda tinha a Escola Aydano de Almeida, em Nilópolis,
que ela fazia o percurso de Éden até seu destino caminhando,
pois não tinha dinheiro de passagem.”

(Vânia)

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Com a formação a caminho, juntando-se a esses convites


inusitados, começou a surgir uma ideia de nova mudança, mas
dessa vez a mudança seria ainda mais traumatizante, pois era
para fora do Rio. A ideia inicial era de todos irem juntos para o
Ceará, já que nesse período nosso pai já tinha viajado e queria
que todos fossem morar onde ele estava. De imediato, falei que
não iria, sendo reforçado e ganhando força essa decisão com
a recusa do Jorge e do Marco. Vera, Vânio e Vaninha já eram
casados. Minha mãe não teve outra escolha senão aceitar nossa
decisão, mas resolveu ir e levar os menores e a Tânia. Os dias
que antecederam essa partida foram tristes, de sensação de
despedida. Meu desejo e esperança era que nossa mãe desistis-
se, mas isso não aconteceu até chegar o terrível dia da viagem.
Tanto para os que ficariam quanto para os que partiriam, foi um
momento muito doloroso, menos para o pequeno Daniel, que
estava empolgado e contando as horas para esse dia, deixando
todos raivosos. Ele aprontava e agradava nosso pai, era o xodó.
Dormimos tarde para acordar cedo, arrumando as baga-
gens e lanches, pois a viagem era longa, de dois dias. Também
era perceptível a preocupação da minha mãe com 4 crianças, 1
adolescente e só a Tânia para ajudar.
Chegou a hora de partir. Fomos todos para o ponto de
ônibus Éden X Central, da empresa Mageli, que na época era ao
lado da igreja matriz. Chegamos na rodoviária e ficamos à espe-
ra do ônibus, até que o Itapemirim apareceu, eles embarcaram,
acenamos com lágrimas até eles sumirem.
Voltamos para casa, estava vazia, um domingo estranho e
diferente, almoçamos e esse dia passou. No dia seguinte o vazio
continuou, mas era um dia comum de trabalho para o Jorge e
o Marco e escola para mim. Quando voltei da escola foi a pior
sensação, pois não havia crianças brincando, o vazio continua-
va. Então fui me ocupar e fazer a janta. Os outros dias foram
ainda piores, porque ao abrir a porta, não via ninguém, então só
restava chorar de saudade, preocupação. Foi um primeiro mês
turbulento. Um pingo de alegria surgia em meio às lágrimas
somente quando a Vaninha chegava com o Adriano. Algum

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

tempo depois, começou a obra de sua casa em parte do quintal,


vindo morar aqui, amenizando um pouco mais aquele vazio.
A primeira carta de minha mãe chegou e junto veio um
misto de alegria e tristeza. Alegria por receber notícias deles e
tristeza por eles estarem tão longe. Dessa forma, sempre que
recebíamos notícias o sentimento confuso era o mesmo. Até o dia
que o Valdo retornou, seis meses depois, trazendo um prenúncio
de esperança de um possível retorno dos demais. Futuramente,
se concretiza esse retorno com o próprio Valdo levantando seus
esforços para trazer todos de volta.
Nosso primeiro Natal sem os outros foi esquisito. Em par-
ticular, era uma das festas que mais gostava. Tivemos a presença
da Vera e família, mas ainda estava incompleto, faltava alguma
coisa para se festejar. Foi um Natal pela metade.”
(Vanda)

“Fiquei muito triste quando parte da família foi para o


Ceará, pois apesar de a família ser grande, éramos muito unidos
nas brincadeiras, onde aprontávamos muito, e quando os doze
se dividiram surgiu uma tristeza profunda.”
(Jorge)

“Em 89 a mãe decidiu voltar para o Ceará, depois de dé-


cadas a mãe voltava pro Ceará. A mãe abandonou o trabalho
que ela tinha conseguido e estava indo muito bem no serviço,
estava jovem, com cinquenta anos, lembro que ela corria, subia
no muro, era muito disposta.
Então ela anunciou que ia para o Ceará, só ficaria no Rio
quem fosse maior de 18 anos, exceto a Tânia, porque nunca lhe
fora dada autonomia para isso. No começo eu achei interessante
a ideia, enfim ficaria livre, afinal de contas eu achava que tinha
a cabeça no lugar. A mãe começou os preparativos para viagem,
o pai mandou o dinheiro.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

O Dia da Partida
Este dia certamente foi um dos dias mais difíceis das
nossas vidas. Foi um dia de domingo, acordamos cedo porque
ainda havia coisas pra arrumar, no sábado fomos dormir tarde
arrumando as coisas e no domingo ainda havia o que fazer. Eles
levaram muitas coisas, levaram até o aparelho de som. Lembro-
me de que eu havia pedido há alguns dias a receita de um chá
milagroso que me tirava das crises de garganta e ela escreveu
como se fazia o chá, escreveu em um pedaço de papel de forma
muito improvisada e eu o guardei durante alguns anos.
E saímos, fomos de Mageli, levamos inúmeros volumes,
acho que todo mundo foi para a rodoviária. A rodoviária não
era como é hoje, era largada, feia e bagunçada. Descemos com
muito custo para a plataforma… até ali tudo bem! Até ali eu es-
tava vivendo uma experiência de liberdade. Não me lembro das
últimas palavras da mãe nem com quem ela falou, não lembro se
ela me beijou, só lembro da hora que o ônibus partiu! o Cristiano
foi para o fundo do ônibus e nos olhava pelo vidro do ônibus e
ele chorava descontroladamente! Foi de rasgar o coração ver o
Cristiano chorando daquele jeito, me desconstruiu por dentro.
Não tenho como descrever aquele momento e não me emocionar,
pois aquela imagem do Cristiano no fundo do carro me dilace-
rou! Não sei se minha mãe chorou, não me lembro das reações
dela, os meninos devem contar, ver aquele ônibus partindo só
tem comparação com o luto quando perdi a nossa mãe.
Ao chegar em casa eu fui para o quarto e fiquei na cama
que era da minha mãe e chorei, chorei a tarde inteira, chorava
descontroladamente, choro que me dava um vazio e um arre-
pendimento por não ter pregado contra aquela mudança, eu não
fiz nada pra mudar! Eu chorei até me esvaziar. Naquela mesma
noite a Vânia foi lá pra casa para dormir lá em casa e levou o
Adriano e ele corria na sala e aquela criança brincando distraiu
meu coração, que estava cansado de chorar. A Vânia e o Paulo
passaram muitos finais de semana com a gente, acho que era pra
dar apoio moral, eu gostava muito da presença deles, realmente

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

eu me senti muito desorientado sem minha mãe, apesar dos 19


anos eu era muito novo. Mas vida que segue! Lembro-me de que
naqueles dias eu e o Jorge ouvíamos muito no rádio o programa
da impecável maré mansa, ouvíamos pra distrair, eu era crítico
ácido dos programas Jaspion e Chaves e passei a assisti-los, as-
sisti a todos os episódios, inclusive as reprises (depois voltei ao
normal), mas passei a assistir por saudade.”

(Marco)

“Como já foi dito em outra ocasião, o período em que morei


no Ceará foi muito difícil. A verdade é que não gosto de lembrar
porque foi traumatizante, com muito sofrimento, somando a
saudade do restante da família que era tamanha. Hoje brinco
ao dizer que ficamos exilados, mas a sensação pode ser pareci-
da. Talvez seja também o mesmo motivo do Valdo não querer
resgatar suas memórias.
A lembrança da despedida na rodoviária foi cruel e ficava
martelando na cabeça por muitas noites. Por alguns momentos
senti raiva de meu pai, por ter omitido muita informação para
nos fazer estar junto dele. Trabalhamos muito para ter muito
pouco e ver minha mãe envelhecer de tanto trabalhar foi o pior
de toda essa experiência sofrida.”
(Cristiano)

“Nosso pai morava no Rio, mas seu coração sempre esteve


no Ceará. Por algumas vezes viajou para lá e sempre dizia que era
lá onde se sentia bem, respirava melhor, até o dia que resolveu
ir de vez e depois nos levar.
A viagem foi até divertida, mas ao chegar no Acaraú foi
tudo muito estranho. Mesmo chegando à noite e com chuva, foi
possível perceber que o lugar era feio. Fomos recebidos ao som
de sapos e rãs e piorou ainda mais as impressões ao chegar na

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

casa. Uma casa feita de pau a pique, com um banheiro no fundo


do quintal a uns 50 metros e um quintal coberto de mato.”
(Wilson)

“Nos preparativos para a viagem, lembro-me de ir com


minha mãe ao mercado comprar algumas coisas para levar. Fi-
cava sentado dentro do carrinho de compras recebendo aqueles
biscoitos e outras mercadorias que seriam levadas para consumo
durante o percurso. Para mim, tudo aquilo que estava aconte-
cendo seria uma preparação para algo grande, tipo uma festa, e
me deixava em euforia.
No dia de ir embora, não me lembro de muita gente, mas
lembro de muitas malas saindo em direção ao portão. O Duque
(nosso cachorro) já estava agitado, percebendo o que estava
acontecendo. Alguém o segurou para a gente sair, o portão foi
fechado e ele ficou batendo e latindo muito, querendo ir conosco.
Fomos descendo a rua e vi a tristeza nos rostos do Cristiano e
do Wilson, mas eu estava muito alegre em direção a algo bom.
Pegamos o Éden X Central e na janela do ônibus consegui ver o
reflexo das lágrimas do Cristiano e ficava sem entender o porquê
de tanta tristeza. Pedi logo para minha mãe sacar um daqueles
biscoitos da compra. Chegamos à rodoviária e pegamos outro
ônibus, no qual estaríamos por toda a viagem.
Teve algumas paradas pelo caminho e numa dessas paramos
para tomar banho e sempre tive medo de tomar banho sozinho.
Então estava sempre com o Cristiano. Vem à memória um banheiro
com desenhos de índio na parede e ficamos brincando no box de
um deles, tentando subir pelas paredes. Enquanto o ônibus não
saía, aproveitava para brincar nos balanços das praças.”
(Daniel)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

“A melhor das notícias” (Daniel)

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Valdo

N
este tema temos algumas narrativas referentes ao re-
torno da família para o Rio de Janeiro e neste contexto
destacamos a importância do Valdo como protagonista
de um fato mais do que marcante.
“Ao retornar, vi uma figura nova, O Valdo… que não é nem
de longe este Valdo de hoje, era outro Valdo, não era a mesma
pessoa que ficou aqui quando fui para o Ceará, o Valdo de hoje
é id, o Valdo de 1993 era superego, uma pessoa circunspecta e
meditabundo. Certamente devo ter agradecido a ele pela ajuda
(a despeito das divergências) ao pagar minha passagem para
retornar, Valdo vivia uma fase de poucas palavras, mas desde
que cheguei ele me adiantou que traria todos de volta. Inclusive,
é uma questão de reconhecimento e gratidão por causa desse
gesto do Valdo, tenho certeza de que Cristiano, Wilson e Daniel
estarão reconhecendo a importância dele em 1994 e é uma re-
verência justa digna da nossa gratidão, dou-lhe a comparação
(guardada a proporção) com o rei Ciro, que permitiu que o povo
hebreu retornasse para sua terra. Valdo, seu gesto estará sempre
em nossas mentes e em nossos corações. Nunca nos esquece-
remos de sua atitude, seu desprendimento, o que você fez está
para além do simbolismo, você provocou mudança profunda
e positiva no destino da sua família. Seremos gratos enquanto
estivermos vivos!”
(Marco)

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

“Depois de muitas trocas de cartas e ligações, soubemos


que o Valdo estava reservando dinheiro que recebeu no quartel
para nos enviar e nos trazer de volta para o Rio. Essa notícia rea-
cendeu minha esperança, pois já estava me conformando a ficar
no Ceará e só voltar quando começasse a trabalhar. A verdade é
que o Valdo sabia exatamente o que a gente havia passado, pois
esteve conosco e as notícias se concretizaram. Ficou a saudade
do que deixamos para trás, mas a felicidade de voltar para casa
era maior.”
(Wilson)

“Eu sempre serei grato a um irmão meu, por ter visto du-
rante alguns meses parte da nossa angústia e, num gesto nobre,
abriu mão de suas prioridades e nos fez primazia, nos trazendo
de volta pra casa. Obrigado, Valdo!”
(Cristiano)

“Três anos se passaram e recebemos a melhor das notícias.


O Valdo estava no quartel e recebeu um extra que nos enviou
para que pudéssemos retornar para casa. Ele, que veio conosco
e ficou por alguns meses no Acaraú, voltou para casa com a
promessa que nos traria também de volta para casa. Sua pro-
messa foi cumprida e hoje tenho grande consideração por esse
meu irmão.”
(Daniel)

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Parte II

As Memórias

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N
esta segunda parte do livro estão as lembranças de to-
dos os irmãos. As narrativas registram fatos peculiares
dos autores. Os textos estão em ordem decrescente de
antiguidade: Vera, Vânio, Vânia, Vanda, Jorge, Antônio, Wil-
son, Cristiano e Daniel.

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Lembranças da Vera

Anos 60. Mais sobre as Casas

N
o período em que moramos em Jardim Metrópole, fi-
quei muito doente, chegando a ser desenganada pelos
médicos, pois naquela época não havia muitos recur-
sos e tudo era bem difícil. Minha mãe, no desespero, fazia tudo
que lhe indicavam, como garrafadas e até me levar em centro

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

espírita. Enquanto minha mãe me levava ao centro espírita,


Dona Nazaré ficava tomando conta dos meus irmãos, Vânio e
Vaninha. Assim fiquei curada e minha mãe associava a cura
com os trabalhos feitos em mim no centro espírita, mas creio
que os créditos dessa cura se deram mais pela fé da minha mãe
e não por qualquer outro motivo.
Assim como nossos pais, a família Vaz (Seu Zé, Dona
Nazaré e seus filhos Fátima, Arimar, Gorete, Eugênio, Sussu,
Eliane e Ritinha) também fez a mudança para o Rio. Alguns
filhos nasceram no Ceará e outros no Rio.
Devido à doença que tive, acabei atrasando os estudos e
quando já morávamos na Pavuna, comecei a estudar no Max
Fleiuss, uma das melhores escolas públicas da região até hoje.
Apesar do atraso na idade, já sabia ler e escrever, então fiz um
teste e consegui iniciar os estudos no segundo ano.
Depois da Pavuna, nos mudamos para Éden e moramos
na Casa da Rua da Padaria Queimada. Porém, antes da mudan-
ça, um episódio marcante foi a enchente que aconteceu. Nesse
período nossa Avó Júlia morava conosco. Com a chuva forte, o
Rio Pavuna transbordou, causando a enchente, onde tivemos
que subir na mesa e nos móveis mais altos.
Mesmo morando em Éden, eu e o Vânio continuamos es-
tudando no Max Fleiuss, na Pavuna. Dias depois da mudança,
soubemos pela televisão que houve uma nova enchente, ainda
pior, em que as casas foram cobertas de água e pessoas morreram.
A vó deu graças a Deus pela mudança que ocorreu a tempo de
não participarmos dessa catástrofe.
Depois da casa da Rua da Padaria Queimada, mudamos
para a Rua Araci. No mesmo terreno onde morávamos, também
tinha a casa da família da Dona Nazaré. Foi no período em que
moramos nessa casa que ocorreu a morte do Valtinho. Valter e
Tânia ficaram doentes e com o passar dos dias foi agravando e
minha mãe decidiu levá-los ao hospital, tendo que ficar internados
com pneumonia. Passando um tempo, a Tânia melhorou e teve
alta, mas o Valter só piorava até não resistir e falecer.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Nossa avó Júlia continuava morando com a gente e ela não


gostava muito daquele local. Dizia que os acontecimentos ruins
que ocorriam com a família se deviam ao fato de aquele terreno
ter sido um cemitério no passado, assim ela ficou sabendo. Outros
disseram para ela que ali foi um centro espírita. Por esse motivo,
nosso pai voltou a procurar outra casa para morarmos.
Nesse período, já éramos oito irmãos e eu não gostava dessa
ideia de tantos filhos. Eram intervalos curtos e quando percebia
já estava minha mãe grávida mais uma vez e isso me incomo-
dava. De início ficava com raiva e me sentia triste porque sabia
que parte das obrigações sobraria para mim, mas depois que um
irmão nascia, acabava me apegando e cuidando da criança. Via
minha mãe indo para a reunião da escola com aquele barrigão e
me fazia refletir o porquê de tantos filhos e pensava que quando
chegasse a minha vez não iria ter filhos. Certo dia, perguntei à
minha mãe:
— Por que a senhora vive grávida?
Sua resposta foi:
— Quando você casar, vai saber.
Continuei indagando:
— Tudo bem casar, mas por que tantos filhos e um atrás
do outro?
A mãe respondeu:
— Isso não é assunto para você e vamos parar com essa
conversa.
Percebia que ela não gostava de tocar no assunto e só me
restava ficar triste com a situação. Mais tarde, já com meus 16
anos, fui entender um pouco. Ela dizia que passava mal com
anticoncepcional e ficava por isso mesmo. Percebia também que
ela tinha um pouco de vergonha em falar sobre isso. A piada da
falta de televisão pode ser usada, pois até o nascimento da Vanda
(quarto filho) não tivemos, depois veio a primeira TV, mas não
funcionava devido à energia ser fraca e só após o nascimento
do Jorge (sexto filho) que conseguimos assistir à televisão. Nes-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

ses períodos de pouca iluminação, usávamos lamparinas para


reforçar dentro de casa.

Trabalhos do Pai
Não me recordo de outros empregos do meu pai antes do
Sendas, onde trabalhou por vinte anos.

Década de 70
Certa vez, em conversa com minha mãe, perguntei o motivo
de ter saído do Ceará e vindo para o Rio e ela respondeu que a
vida era muito difícil e aqui no Rio diziam que a vida seria mais
fácil, o que não aconteceu, pois as dificuldades continuavam. Ela
tinha vontade de voltar para sua terra.
Na década de 70 fomos morar na casa da Rua Caldas No-
vas. Nesse período lembro-me de que fui no programa Cassino
do Chacrinha. O programa sorteava escolas para participar da
gravação do programa que passava na antiga TV Tupi, situada
na Urca. Por duas vezes o Colégio Fluminense foi sorteado para
participar do programa e pude estar no auditório e ver de perto
artistas como o Sidnei Magal. Apesar de nossos pais não permi-
tirem esses tipos de passeios, dessas vezes consegui ir, inclusive
no retorno, quando o ônibus chegava ao colégio, meu pai estava
lá à minha espera, pois era tarde da noite. Era raro meu pai ir
me buscar em algum lugar, mas aconteceu e até teve um diálogo
querendo saber como foi o programa, mas nada além disso, pois
ele era de poucas falas.
Episódios ruins que me lembro enquanto moramos na
Caldas Novas era quando tinha alguma festa, o evento ainda
estava no início, mesmo sendo perto de casa, meu pai mandava
um dos meus irmãos me chamarem para voltar e ainda nem
havia ultrapassado das 21h00.
Outra ocasião em que fui impedida de sair foi na minha
formatura do ensino fundamental, antigo primeiro grau. Com-
prado o vestido azul de cetim, foi o escolhido por mim, seguindo
a moda da época, além de ser minha cor predileta. Durante a

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

semana teve a cerimônia dos formandos e no sábado seria o


tão esperado baile de formatura. Chegando a hora, já estava
toda pronta e arrumada, minhas amigas Rosete e Rita foram
me chamar, mas sem motivo algum, meu pai não permitiu. É
possível que neste dia meu pai estivesse tomado pelo álcool e,
como minha mãe dizia, ele ficava de “ovo virado”. A mãe da
Rosete tentou conversar com ele e explicar que íamos de carro,
em segurança, mas ele foi irredutível. Passei aquela noite toda
chorando e o dia seguinte a raiva me consumia.
Acredito que meu pai tinha algum problema ou medo da
noite. Como exemplo, teve momentos em que pedi a ele durante
o dia para ir ao cinema e ele autorizava, mas quando estava se
aproximava da hora de sair e ele percebia que já havia anoitecido,
meu pai não me permitia sair. Por muitas vezes saí escondida,
mentindo que iria à missa para poder estar no baile que acontecia
no Colégio Fluminense, período das discotecas. Certa vez, perdi
a hora da missa conversando com minhas amigas e quando me
dei conta, tive que sair às pressas e meu pai foi me procurar no
baile, mas nos desencontramos. Ele acabou me encontrando no
caminho de casa e brigou muito, dizendo que me deixaria de
castigo. Não sei como ele permitiu, mas estudei à noite, apesar
de algumas vezes, se passasse do horário, meu pai mandava
meus irmãos irem me buscar, me deixando com muita vergonha
e raiva. Essas proibições, querer ter determinadas coisas e não
ter, tudo isso me deixava muito revoltada.
Já como momentos bons e de descontração foi quando
estudei no Colégio Fluminense, através de bolsa que meu pai
conseguiu com o Artur Sendas, e participei da banda da escola.
Meu ensino médio foi todo nessa escola e passava muito tempo
envolvida com a banda, até para me refugiar dos problemas de
casa.
Nossas festas de natal sempre foram marcantes, mas nessa
época lembro que teve um vinho muito doce e bebi muito. Só
percebi que havia bebido muito quando baixei minha cabeça e
tudo começou a rodar e não lembro o que aconteceu a seguir,
somente que alguém me colocou na cama.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Tia Fátima
Tia Fátima morou conosco, mas era uma pessoa muito fe-
chada, não tinha abertura, a não ser para seu filho Haroldo. Por
isso, a Vaninha implicava com ela, mexendo nos pertences dela
só para chatear. Apesar de saber que alguém tinha bagunçado
suas coisas, não reclamava com nossa mãe, apenas resmungava
para si.

Da esquerda para a direita: mãe, Wilson (segurando a mão), Marco atrás


do Wilson, Tia Fátima com Cristiano no colo, Ivo agachado, Haroldo e
Ricardo deitado (enteado do Zé Maria)

Segunda Mãe

Na ausência de minha mãe, eu tomava as rédeas da casa,


dando um toque pessoal nas refeições, mudando os temperos e
a forma de cozinhar. Aprendi com minha mãe a cozinhar, mas
só em vê-la fazendo, pois ela nunca teve tempo para me ensinar.
Então enquanto ela estava lavando roupas ou com as crianças,
sentia pena de tantas tarefas e acabava assumindo a cozinha
para ajudar. Mesmo quando já estava casada e com filhos, não

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

gostava de deixar meus filhos com ela porque já tinha muitas


responsabilidades e queria evitar trazer mais trabalhos para ela.
Nossa mãe partia mais uma vez para o hospital, pois Wilson
estava chegando. Para as festas iríamos fazer um pato e sem a
minha mãe, eu e Dona Rita, amiga de minha mãe, tomamos a
frente da cozinha. Dona Rita matou o pato e o preparou, assim
como as rabanadas.
No ano seguinte seria meu último ano no ensino médio,
porém houve um imprevisto. Como meu pai rompeu com o
Sendas, a bolsa também acabou e sem esse recurso meu pai
não teve condições financeiras de arcar com as mensalidades
do Fluminense para mim e para o Vânio. Ouvi meu pai conver-
sando com minha mãe sobre isso e avisando que teríamos que
abandonar os estudos. A notícia veio como um balde de água fria,
pois minha intenção era terminar o ensino médio e seguir em
frente, mas abandonar os estudos não estava nos meus planos.
Foi uma das coisas mais tristes que aconteceram em minha vida.
Já era outubro e estava com nota suficiente para ser aprovada,
mas com o abandono ficou inviável, além de deixarmos algumas
mensalidades pendentes. Depois, quando o Vânio começou a
trabalhar, conseguiu quitar nossa dívida na escola.

Os Casamentos
Depois veio meu primeiro casamento com Orlando, onde
tive quatro filhos, Orlando (Dinho), Fernando, Tatiana e Bruno
e depois de 10 anos ele veio a falecer. Depois de alguns anos de
luto me casei novamente e constitui nova família com o Luís e
tive duas filhas, Rosana e Débora. Na verdade, deveriam ser sete
filhos, mas a última gravidez não chegou ao final. Meu primo-
gênito também faleceu.

Minha Mãe
Nos últimos anos de minha mãe percebi que ela estava
preparando sua despedida. Ela separava o domingo para visitar
os filhos e netos que moravam perto, revezando seus domingos

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

para as visitas. Uma maior preocupação de minha mãe, inclusive


vez ou outra falava, era sobre partir e deixar a Cristina. Nas suas
visitas conversamos muito sobre tudo e ela fazia suas queixas
sobre as bebidas do nosso pai, falava dos casamentos dos outros
filhos e logo voltava ao assunto de Deus a levar e ela deixar a
Cristina. Cheguei até a falar que ela não deveria se preocupar
porque ainda ia viver muito, mas ela trazia suas relíquias:
— Estamos aqui para ser semente e não raiz.

Planta com mais de 40 anos plantada pela mãe

Cristina
Sobre a Cristina, lembro-me da minha mãe grávida e ela
com seis meses, caiu pelas escadas da casa da Caldas Novas.
Como estávamos na escola, ninguém viu, então foi acudida pela
vizinha. Nessa semana da queda era semana de pré-natal e ela
foi ao médico e relatou o ocorrido. Fez uns exames e a princípio
estava tudo normal. Porém, devido à queda, o médico disse que
era possível que a criança apresentasse algum sintoma no futuro,

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

a partir dos três anos. Talvez o medo do meu pai em comprar


aquela casa também tenha sido por essas coisas, pois o Valdo
caiu naquela escada e o Jorge por duas vezes se machucou nas
grades do muro.

As Visitas da Minha Mãe, a Última Visita

Quando minha mãe me visitava, o Bruno sempre a acom-


panhava até em casa quando ela ia embora, mas na última visita,
por algum motivo ele não a acompanhou e ficou intrigado. Então
o tranquilizei e falei que na próxima visita ele recompensaria,
mas não houve mais visitas.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

No domingo que antecedeu sua morte, não seria a minha


visita, mas independentemente disso, eu também a visitava e
algo me dizia que deveria lhe ver. Então me organizei, cedo iria
à igreja e depois passaria para ver minha mãe. Entretanto, não
deu para ir ao culto das sete e fui às nove. Como o culto terminou
tarde, quase hora do almoço e tendo muitos afazeres, fui direto
para casa e resolvi deixar para lhe visitar no dia seguinte. Aquele
domingo foi para mim angustiante, pois não me conformava em
não conseguir visitar minha mãe. No dia seguinte, bem cedo,
levantei-me e comecei a me arrumar para visitar minha mãe.
Nesse mesmo momento, ouço alguém me chamar no portão.
Comentei com o Nando que tinha alguém chamando no portão.
Novamente a pessoa chamou pelo meu nome e percebi que era
a Vaninha. Ela entrou e falei que estava me preparando para ir
até minha mãe, mas a Vaninha logo disse que estava ali porque
tinha uma notícia ruim para me contar. Perguntei o que houve
e sem rodeios ela informou sobre o falecimento. Durante muito
tempo fiquei com esse conflito de não ter feito aquela visita para
me despedir.

O Pai

Após a morte da nossa mãe, passei a ter maior contato com


meu pai. Por várias vezes ele me visitou também. Os diálogos
que faltaram a vida toda, nos seus últimos dias não faltaram;
conversas de que iria para o Ceará e não voltaria mais, me fez
uma proposta de morar na casa depois que ele fosse embora, mas
como já tinha minha casa, não havia motivos para tal mudança.
Mesmo assim ele insistia e me dava um tempo para pensar. Ao
passarem-se uns dias, ele voltava para saber se tinha uma res-
posta favorável a ele.
Então ele foi para o Ceará, passou uma temporada por lá,
mas, como sempre, voltou. Na sua última viagem, quando retor-
nou, já não estava bem. Quando fui lhe visitar, ele se queixou de
dores no estômago. No ano em que faleceu, meu pai me visitou
duas vezes e nessas visitas continuava se queixando das dores.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Ofereci remédio, mas ele disse que já estava tomando algum


medicamento e que iria ao posto de saúde.
Preocupada com aquelas dores do meu pai, passei a fazer
visitas frequentes. Quando não podia ir, pedia para o Nando
visitar e sondar. Houve uma vez em que meu pai não estava
bem e se perdeu na rua. Nesse dia fiz visita à noite para saber se
estava bem, mas ele falou que só estava cansado. Numa dessas,
fui visitá-lo pela manhã para saber se estava bem e, ao chegar
lá, perguntei para a Tânia sobre ele e ela falou que meu pai es-
tava sentado no sofá. Achei estranho, pois ele não usava o sofá.
Ao chegar à sala, ele estava sentado, cabisbaixo, sentindo muita
dor. Foi quando chamamos a emergência e o Samu chegou,
mas nesse momento, meu pai se levantou, apertou a mão dos
médicos e disse que estava bem. Então foram embora alegando
que o tratamento dele seria ambulatorial. Depois disso, voltou
a passar mal e teve que ir para o hospital, mas já era tarde, não
resistiu ao infarto e faleceu.

Em memória

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“Achei Desnecessário”

E
ntre tudo que vivemos, ressalto um momento de crise em
nossa família nos anos 90. O Vânio era casado com a Ro-
sinha. Apesar de ter um relacionamento tranquilo com
a Rosinha, não tolerava certas provocações e meu destempero
não me deixava calar. Houve um desentendimento entre nós
e no calor do momento acabamos partindo para a agressão fí-
sica, rolando pelo quintal. O problema entre nós foi resolvido
ali, mas insatisfeita, a Rosinha foi fazer queixa de mim para o
Vânio. Tomando as dores da esposa, o Vânio chegou e quis ti-
rar satisfação comigo, querendo partir para agressão, tendo que
ser segurado pelos irmãos para lhe conter. Achei desnecessário
tudo aquilo, a intromissão dele e depois disso criou-se um dis-
tanciamento até hoje, pois não deveria ter tomado partido.
[Vânio se arrepende de ter tomado tal atitude]

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Lembranças do Vânio

Década de 60

Primeira Casa em Parada de Lucas

N
essa mesma casa, outra lembrança foi quando meu
pai foi à feira junto com Seu Zé e Seu Raimundo, seus
conterrâneos. Então ele me levou junto com eles. Como
tinha receio dos amigos por não conhecer e não ter contato,

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

senti uma vontade de fazer xixi, mas não avisei e também não
consegui segurar e acabei me urinando. Eles ficaram me zoan-
do de mijão. Não me lembro se me levaram para casa ou se
continuamos na feira.

Segunda Casa em Parada de Lucas


Depois disso, vem a lembrança de outra casa, agora na
parte de baixo, fora da comunidade. Essa casa tinha uma divi-
são, a casa de um lado e uma cerca que separava um chiqueiro
de porcos, mas sem nenhum animal, só o mal cheiro. Mesmo
assim, brincamos por tudo ali.
Todo lugar que morávamos, tinha que ter uma igreja ca-
tólica por perto. Isso era fundamental. Nessa casa tinha uma
igreja perto e lembro que a Vera ia fazer catecismo para fazer a
primeira comunhão. Eu a acompanhava e ficava ouvindo. Em
casa, minha mãe tomava lição para a Vera e numa dessas eu
ficava atento. Numa dessas, a Vera não soube responder uma
pergunta e eu acabei respondendo certo. Minha mãe achou
estranho e fez outras perguntas e respondi a todas. Minha mãe
prontamente falou ao padre que eu estava apto a fazer a primeira
comunhão porque dominava todo o livro de catecismo. O padre
não acreditou, pois eu tinha 5 anos de idade. O padre resolveu
fazer uma sabatina e fui respondendo tudo, inclusive rezas, terço.
Foi aí que o padre, com alegria, pois era um menino de 5 anos,
disse para preparar a minha roupa, pois também iria fazer a
primeira comunhão. A roupa da Vera estava quase pronta, mas
a minha não tinha nada. Tinha que comprar calça, camisa, cinto,
sapato branco, terço, catecismo da primeira comunhão. Meu pai
não se empolgou muito para comprar, mas depois de um sonho
resolveu comprar tudo quase em cima da hora.
Chegando o dia, primeira comunhão realizada, comes e
bebes, não me lembro se o pai estava presente, depois viemos
para casa.
Meu pai colocou uns tijolos da casa até o portão porque
choveu e o quintal alagou para poder sair para trabalhar.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

À noite escutávamos o apito dos policiais na rua que se


comunicavam. Minha mãe ficava na máquina costurando, en-
quanto a gente ficava brincando. Por volta das 19h00 já tínhamos
jantado e já era hora de dormir. Minha mãe ficava acordada cos-
turando esperando nosso pai chegar do trabalho. Eu, às vezes,
me segurava no sono pra não a deixar sozinha. Quando ela saía
da máquina, aproveitava para brincar na roda da máquina.
Numa certa noite, minha mãe sentiu um cheiro forte de
maconha, ouviu passos e percebeu que tinha alguém no quin-
tal. Minha mãe, para mostrar que não estava sozinha em casa,
simulou uma conversa com meu pai para mostrar que tinha
homem em casa, do tipo: “Vai lá fora, homem preguiçoso, levanta
dessa cama para ver o que está acontecendo.” Isso para fazer
com que a pessoa que estava lá fora fosse embora. Por volta das
21h00 era a hora que nosso pai realmente chegava, mas para nós,
que jantávamos e dormíamos cedo, parecia que ele chegava de
madrugada.
Durante o dia nessa casa, fazíamos muitas brincadeiras.
Quando meu pai estava em casa nos finais de semana, era raro,
mas ele brincava com a gente. Deitado no sofá, numa dessas
brincadeiras, nos prendia com as pernas e quem ficava preso
gritava pros outros ajudarem a se soltar. Nessa casa éramos 3
irmãos, Vera, eu e a mais nova, Vânia, que chorava quando ele
a prendia com as pernas nas brincadeiras.
Um dia meu pai estava trabalhando e quase não o víamos,
pois ele saía cedo e quando chegava, à noite, estávamos dor-
mindo. Numa das brincadeiras, sem querer empurrei a Vânia
do muro e ela acabou quebrando o braço. Minha mãe a levou
para o hospital e ela voltou com o braço engessado. Fiquei com
aquela preocupação do que aconteceria comigo quando ela
chegasse, pois fui o responsável por aquele acidente. Por sorte,
quando ela chegou só falou aquela frase que todos conhecemos:
“Viu o que acontece com essas ‘brincadeiras estúpidas?’” Por
sorte foi só isso, não apanhei nem fiquei de castigo. Mas ainda
faltava o veredito do meu pai quando chegasse. Será que me
acordaria e me colocaria de castigo de joelhos no milho ou

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

com uma cadeira na cabeça? Outra vez a sorte estava do meu


lado, pois minha mãe não contou detalhes do que aconteceu
ao meu pai, apenas comentou que estávamos brincando e ela
caiu e quebrou o braço.
Além da igreja, que frequentávamos muito, inclusive nas
quermesses com enfeites de bandeirinhas, barracas e palanque,
havia aqueles leilões de objetos doados para ajudar na manu-
tenção da igreja.

Em Parada de Lucas
Numa de nossas brincadeiras acabei esbarrando no guar-
da-roupas e derrubando uma dessas cadeiras que caiu sobre
minha cabeça, vindo a cortar e sangrar. Minha mãe veio com seu
remédio que sempre usou nesses casos: pó de café para estancar
o sangue. Assim foi em todos os machucados que tive e por isso
tenho várias cicatrizes na cabeça.
Essa senhora que dividia com a gente essa casa era rezadeira
e quando nos machucávamos, torcia o pé era a ela que nossa mãe
recorria e ela fazia rezas, jogava fumaça até melhorar.

A Casa em Pavuna
Perto de nós, na mesma rua, dois portões após o nosso, estava
uma família que já mencionamos anteriormente — família Vaz
com Dona Nazaré, Seu Zé e seus filhos. Nossa mãe, sempre que
possível, ia até lá conversar. Na casa deles tinha um pé de abiu,
onde o filho deles, Eugênio, ficava trepado comendo a fruta. Foi
quando aprendi a subir em árvore compartilhando das frutas.
Nessa casa foi quando tivemos nossa primeira televisão
“Admiral”, que pra nós era o máximo. Quando foi ligada pela
primeira vez estava passando o filme Jim da Selva, com a maca-
ca Chita. Vendo aquele animal, tentei encostar ao animal, mas
percebi que não era possível, pois tinha um vidro e que também
não tinha perigo de a Chita atravessar a tela. À noite era a hora
das novelas e esse momento era só dos adultos, crianças ficavam
no quarto.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Em Pavuna fui para a escola pela primeira vez. A Vera


também estava matriculada na mesma escola, chamada Max
Fleiuss, só que eu no jardim de infância. Na sala havia muitos
brinquedos, mas o que mais gostava era de desenhar, onde me
aprimorei nisso.
Fim de semana era certo ir para a Igreja de Santo Antônio
em frente de casa. Também por trás da igreja tinha o convento
de freiras que frequentávamos e participávamos do coral para
participar nas missas. Tínhamos um uniforme diferenciado: o
meu tinha uma fita amarela e medalha; da Vera era uma faixa
mais larga de cor azul. Acho que a diferença das cores das faixas
era o tempo.
Aos jogos da Copa do Mundo de 1970 assistimos nessa
casa. Os colegas do meu pai e vizinhos estavam lá assistindo aos
jogos. Arimar, um dos filhos do Seu Zé, adorava uma “pelada”
na rua. Quando a mãe dele pedia pra ir no mercado comprar
alguma coisa, sempre demorava a trazer a encomenda e quando
sua mãe o procurava estava ele jogando bola. Aí voltava para
casa apanhando, mas ainda assim, isso não o impedia de jogar
aquela pelada seja onde for.

Villar dos Teles


Houve uma chuva muito forte que alagou tudo e o Rio
Pavuna transbordou. Os moradores do local ficaram desabriga-
dos, inclusive a família Vaz, sofrendo até acidentes, mas graças
a Deus, todos se salvaram trepados em árvores ou por cima de
guarda-roupas. Sabendo disso, através da rádio, nosso pai foi
procurar saber como estavam. Soube que estavam todos viven-
do num cômodo bem pequeno, sobrevivendo de doações, pois
tinham perdido tudo.
Nesse período da década de 60, dentre as lembranças, vale
destacar que nossa mãe dava aulas em casa para crianças, ensi-
nando a ler e escrever. Com rigor, aqueles que faziam bagunça
ela deixava de castigo atrás da porta e eu supervisionava com
prazer os castigos.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Nesse período, nosso pai também resolveu estudar e


fazer o Mobral. Como não sabia ler e escrever, ele saia a noite
do trabalho e ia pra escola. Trazia as lições de casa e não sa-
bendo as lições eu e a Vera o ajudava. Depois que aprendeu
a ler, escrever e fazer contas e recebeu o diploma, parou por
aí seus estudos.

Éden

Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada)

Acredito que uma semana depois de chegarmos em Villar


dos Telles, nova mudança súbita surgiu. Como das outras vezes,
o caminhão chegou e a mudança aconteceu levando tudo. O
destino era Éden, rua da Padaria Queimada.
Eu e a Vera continuamos estudando na Pavuna. A Vera
estudava de manhã e eu à tarde. Nossa diferença escolar era de 3
anos. A família já havia crescido um pouco mais, com a Vera, eu,
Vânia, Vanda, Tânia e o mais novo, Jorge. Não tínhamos dinheiro
de passagem completo para os dois. Então, a Vera ia e voltava de
ônibus e eu ia e voltava a pé. Falei pra minha mãe que já sabia o
caminho e, às vezes, sem acreditar, ela me encontrava no meio
do caminho. Eu ficava observando os ônibus que faziam o meu
itinerário, na esperança que eles pudessem parar e me oferecer
carona, o que nunca aconteceu e eu também nunca pedi.
Nessa casa foi quando conhecemos nossa Avó Julia, mãe de
nosso pai. Ela estava doente, com problemas na coluna, onde não
conseguia se levantar sozinha. Nosso pai foi buscá-la no Acaraú
para se tratar aqui no Rio. Quando ela passava mal, os médicos
do Sendas vinham até nossa casa medicá-la e com o tempo foi
melhorando. Na verdade, acredito que nossa avó fazia um pouco
de manhã, de implicância com nossa mãe.
Uma das boas lembranças de nossa avó são as histórias
que ela contava de mula sem cabeça, mulher do padre, crian-
ças que morriam pagãs e enterravam e se ouvia o choro delas.
Quando isso acontecia, tinha que ir até o local onde a criança

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

estava enterrada e fazer o batismo com água salgada. Por não


saber o nome da criança, se fosse menino o chamava: José, eu
te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Se fosse menina a chamava de Maria e fazia o mesmo ritual. Só
assim para o choro cessar. Ela chegou a dizer que um homem,
não tendo água salgada, fez o batismo com a própria urina. Fi-
cávamos ouvindo tudo aquilo com muita atenção, acreditando
em tudo aquilo.
A família Vaz já morava por ali por perto, na Rua Délio
Guaraná, e nossa avó, sempre que podia, visitava Dona Nazaré e
ficava o dia inteiro, só retornando no final da tarde. Como tinha
uma feira perto, passava na xepa da feira e nos trazia muitas
frutas que ganhava.
Nessa época, até faltava dinheiro, mas não passamos fome.
Além da xepa de nossa avó, nosso pai ganhava muitas frutas e
biscoitos que o Artur Sendas distribuía entre os funcionários
e chegava em casa com uma caixa grande com uma fartura de
alimentos.
No período em que nossa avó esteve conosco, lembro-me de
um momento em que ela ajudou a curar um vizinho que também
trabalhava no Sendas. Acredito que ele estava com tuberculose,
pois estava muito magro e tossia muito. Lembro-me de que os
médicos já o tinham desacreditado. Então nossa avó, vendo
aquela situação, foi até ele e lhe ofereceu ajuda. Perguntou a ele
se tomaria uma garrafada (medicina popular de combinações de
plantas medicinais), caso ela fizesse. Ele aceitou, já que iria lhe
fazer bem. Ela passou a receita do que ele precisaria comprar:
algumas dúzias de limão, 3 dúzias de ovos e 7 quilos de açú-
car. Assim foi feito e todos nós pudemos participar da criação
daquele medicamento, espremendo os limões, até os filhos da
Dona Nazaré ajudaram. Deu um caldeirão de limão, que depois
acrescentou os ovos, cobriu e colocou debaixo de um móvel e
ficou por 7 dias. Depois retirou, coou já com as cascas de ovos
dissolvidas. Colocou no fogo para ferver e acrescentou açúcar.
No final deu 7 garrafas e deu para aquele senhor. Sobraram 3
garrafas que ficaram para nós. Aquilo era muito bom e deu uma

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

sustança em todos nós. Aquele senhor, conforme foi tomando 3


vezes ao dia, no passar do tempo víamos a melhora significativa
dele. Tempo depois, os médicos do Sendas retornaram à casa da-
quele vizinho para consultá-lo. Durante a consulta perceberam a
melhora e quiseram saber o que tinha acontecido. Então ele falou
da garrafada, mostrou ao médico e este, admirado, pediu para
dar os parabéns pela iniciativa de nossa avó. Outro dia, fui na
Casas Bahia e encontrei aquele senhor vivo, que me reconheceu
e tivemos uma conversa amistosa.
Ainda nessa casa, lembro-me das brincadeiras na rua, das
brincadeiras de fazer comida em latas no quintal, junto com os
filhos desse vizinho, das visitas na casa da Dona Nazaré, fosse
para brincar com seus filhos ou para chamá-la para avisar que
minha mãe estava para dar à luz a mais um filho.
Enquanto minha mãe e Dona Nazaré iam pra maternidade,
de lá ligavam pro nosso pai que saía cedo do trabalho. Era com
nosso pai que ficávamos enquanto nossa mãe estava no hospital.
Ele quem fazia nosso almoço com muito exagero, com aquele
prato de “peão”. Por exemplo, enquanto nossa mãe dava metade
de uma sardinha pra nós, com ele ganhávamos duas sardinhas.
A quantidade era maior e mesmo assim comíamos tudo.
Outro acontecimento marcado em minhas memórias en-
quanto nossa avó esteve conosco, foi num sábado quando meu
pai foi jogar baralho na casa do Seu Zé com minha mãe e eu os
acompanhei. Minha avó ficou com os demais em casa. Nesse
dia, acabou o gás e minha mãe deixou feijão cozinhando num
fogão jacaré (fogão à base de querosene, onde dos pavios saía a
chama) e pediu para nossa avó ficar de olho. Quando retornamos,
vimos fumaça na casa toda e aquele cheiro de feijão queimado.
Ao entrar na casa, vimos que nossa avó estava com as crianças
dormindo no quarto de portas fechadas, nem viu o ocorrido.

Segunda Casa – Rua Araci


Depois de algum tempo, nossa avó resolve voltar para sua
casa e, nas férias, nosso pai a leva de volta a Acaraú.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Como sempre, as brincadeiras também marcaram nossa


infância junto com os filhos da Dona Nazaré que também
eram muitos: Eugênio, Arimar, Gorete, Fátima, Sussu, Eliane
e Ritinha.
Tivemos momentos de alegria e tristezas nessa casa. Ali
comemoramos os 15 anos da Vera com uma festinha feita por
nosso pai. Foi também nesta casa que choramos quando a Tânia
e o Valter ficaram doentes com meningite e tiveram que ficar
internados. Nossos pais sempre iam visitar e ficávamos sempre
na expectativa deles voltarem com os dois, mas voltavam sozi-
nhos. Na última visita eles não estavam sós, traziam com eles a
Tânia. O Valter não resistiu à doença e partiu. A Tânia contava
que durante a internação, quando estava com fome, ela pedia
comida e bebida, já ele não. Quando podia ela ia até ele e dava
comida, água, mas a cada dia que passava ele ficava mais fraco
e por isso não resistiu.
Nesse dia, eu estava na casa do Samuel, vizinho e colega
do Colégio Fluminense. Estava lá no quintal jogando bola. Nesse
domingo triste chegou a notícia do óbito. Eles foram ao enterro,
mas eu não quis por não gostar de cemitério.
Dentre as brincadeiras que fazíamos, uma que se destaca
era brincar de patinete (carrinho de rolimã). Inventei um patinete
com freio de madeira e fui pro alto da rua. Comecei a descer a
rua até que vi um caminhão vindo em minha direção. Fiquei
tranquilo e acionei o freio, só que com a fricção da roda, o freio
de madeira não resistiu e partiu. Como não tinha opção, desci a
ladeira, mesmo com o caminhão se aproximando. Minha mãe, que
estava no portão, só deu tempo de colocar as mãos na cabeça. Por
sorte, consegui passar ao lado, mas bem próximo do caminhão.
Não sofri nenhum arranhão na descida, só depois. Minha mãe
me deu uma surra e ainda quebrou o carrinho.
Em uma outra ocasião, enquanto brincava por ali, meu
pai chegou, me chamou e me pôs de castigo. Não entendi o
porquê, nem minha mãe quis saber o motivo. Como não tinha
motivo nenhum, após ele dormir, minha mãe foi me tirar do

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

castigo e eu falei que ficaria. Assim dormi ali até a hora de ir


pra escola no dia seguinte. Esses castigos se repetiram comigo
e com os outros sem nenhum motivo. Isso acontecia quando
ele estava bêbado.

Terceira Casa
Quando o Zé Maria, sobrinho do nosso pai, veio do Ceará
para o Rio, foi morar conosco e dividiu o sofá comigo. Como
eu era mijão, quando a gente acordava, ele estava todo mijado
também. O tempo passou, Zé Maria conseguiu arrumar um
trabalho de porteiro e conseguiu arrumar um lugar para ficar.
Muitas brincadeiras fazem parte das minhas lembranças
também nesta casa. Em especial era um carrinho que tínhamos.
Minha vontade era dirigir aquele carrinho, mas como era gran-
de, não cabia. Só me restava empurrar o carrinho para os meus
irmãos menores, dizendo que era o carro do Batman e isso me
enchia de satisfação. Ficava contando as horas para sair da escola
e brincar de empurrar aquele carrinho.
As “brincadeiras estúpidas” sempre resistiram e eram
umas das melhores. Fazia balanços na árvore de amêndoas e
colocava meus irmãos para se balançar, mas como eram peque-
nos acabavam se machucando. Foi nessa casa onde o Jorge se
acidentou por duas vezes. Brincando no muro que tinha uma
cerca de ferros pontudos, escorregou e espetou o ferro no peito,
parando por duas vezes no hospital.
As crianças estudavam no Maurício Brum, algumas pela
manhã, outras à tarde. Os maiores levavam os menores pra
escola. A Vaninha levava e buscava a Tânia, mas sempre que ia
demorava muito a voltar, e pra buscar a mesma coisa. Sempre
que saía se arrumava toda. Até que um vizinho me contou que
viu a Vaninha numa rua aos beijos com o vizinho que morava
em frente à nossa casa. Tive que contar para minha mãe, que lhe
deu uma surra e a proibiu de ir buscar a Tânia.
Foi nessa casa que levei minha primeira namorada para
conhecer a família.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Quarta e Última Casa — Rua Anápolis


Além das lembranças comentadas anteriormente, um dos
muitos episódios que aconteceram nessa casa e no qual me
envolvi diretamente foi uma briga entre nossos pais. Quando
meu pai bebia, arrumava motivos para brigar e criar confusão,
além de colocar os filhos de castigo. Numa dessas, quando meu
pai estava meio violento, partiu para cima de minha mãe, que
estava grávida do Daniel, empurrando-a; e foi quando me meti e
enfrentei meu pai. Acho que ele não esperava nenhuma reação,
acabou recuando e, sem falar nada, foi pra rua.

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Lembranças da Vaninha

A Religião

P
or falta de opção, não saía da igreja. Gostava de chegar
cedo para a missa e às sete horas da manhã já estava pre-
sente e só retornava para casa em torno das dez horas. Fiz
catequese, primeira comunhão, crisma e depois fui catequista e
fiz parte do coral da igreja. Quando se aproximava das festas de
fim de ano começavam os ensaios. Como eu e a Vanda não can-
távamos bem, fazíamos parte do terceiro grupo, considerado o
mais fraco. Às vésperas do Natal, como os ensaios terminavam

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

bem tarde, sempre vinha alguém nos buscar, acredito ser o Vâ-
nio quem se encarregava dessa função.

Vanda e Vaninha na festa junina da igreja

Uma Cicatriz na Cabeça


Até hoje tenho uma cicatriz na cabeça por causa de um
furúnculo enorme que apareceu e que me deu muita febre. Mi-
nha mãe precisou chamar três amigas para poder me segurar e
conseguirem espremer aquele caroço inflamado. Lembro-me de
que quando começaram a mexer, mordi a mão da minha mãe
por sentir tanta dor.

A Avó Julia
Não tenho boas recordações de nossa avó Julia. Era uma
pessoa chata, antipática e desleixada. Nós a tratávamos bem e
só recebíamos desgosto. Minha mãe arrumava a casa e ela logo
sujava tudo. No local da casa onde costumava ficar, minha mãe
colocava uma lata com areia para que ela usasse para cuspir, mas
talvez por implicância, cuspia e escarrava no chão. Lembro-me
de que quem agia da mesma maneira era nosso pai, filho dela.
A impressão que tenho era que me odiava, e também o Jorge,
pois vivia me beliscando sem motivo algum.

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Tia Fátima e Haroldo


Geralmente quando chega um parente em sua casa, traz
consigo alegria, mas no caso deles, para mim, foi o contrário. Tia
Fátima só tinha olhos para o Haroldo, não demonstrava carinho
algum por nós e tudo que ela comprava era para ele e nada para
nós. Enquanto nós passávamos sufoco para ter o mínimo, o garoto
exibia biscoitos caros e tudo do bom e do melhor. De tanta comida
ficou até gordinho. Quando a raiva por toda aquela situação me
consumia, no momento em que eles se ausentavam, entrava no
quarto, pegava os biscoitos e comia escondida para minha mãe
não saber e me bater. Até hoje tenho antipatia por ele.
Atualmente ela mora sozinha, aparenta ter problemas
neurológicos, sem asseio e seu filho não a quer morando com
ele e está procurando uma casa de repouso.

Adeus, Inocência
Havia um rapaz, nosso vizinho, com os seus 25 anos, usuá-
rio de drogas e eu o achava parecido com o cantor Fábio Junior.
Com apenas 11 anos, fiquei encantada por aquele rapaz, que me
seduziu, e achei que estava namorando. Ele pediu para nosso
namoro ficar em segredo e ninguém podia saber.
Eu era uma criança, boba e inocente, sem noção alguma.
Minha mãe não conversava sobre escorrer sangue entre minhas
pernas. Falei com minha mãe e ela só me mandou forrar. En-
tregou-me um pedaço de pano e mandou colocar no fundo da
calcinha, não me falou nada mais além disso.
O rapaz marcou encontros às escondidas comigo. Quase
todos os dias nos encontrávamos entre a lateral da casa, no muro
que dividia nossa casa na Rua Caldas Novas e uma igreja por
onde ele entrava e assim era nosso “namoro”.
Então, certa vez, o rapaz me chamou para ir à sua casa.
Saí pelos fundos da casa e fui ao encontro dele. Ao chegar, vi
que estava fumando maconha. Conversamos um pouco e logo
me beijou. Depois disso não me lembro exatamente de como
aconteceu, só sei que despertei ao ouvir minha mãe gritando

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

por mim. Tentei correr para encontrar minha mãe, mas ele pediu
para esperar um pouco, pegou um pano e limpou o que escorria
entre minhas pernas.
Ao chegar em casa, minha mãe me perguntou onde estava,
mas não falei. Tomei uma surra que me deixou muito machuca-
da. Depois percebi que, mesmo tendo me limpado na casa dele,
ainda tinha sangue nos meus pés.

As Escolas
Eu e Vanda sempre estudamos juntas e no período de pro-
vas, eu dava um jeito para sentar atrás dela para conseguir colar
e a Vanda sempre deixava sua prova à vista e eu conseguia colar
tudo. Assim consegui chegar até a oitava série (ensino funda-
mental). Penso que sem ela não conseguiria ter ido muito longe.
Estudamos da quinta à oitava série na Escola Castro Al-
ves. O uniforme era ridículo. A saia do uniforme que minha
mãe fazia era enorme, até o meio das pernas. A Vanda não via
problemas e usava assim mesmo, mas eu não. Quando saía de
casa, no caminho para a escola, enrolava a saia acima do joelho,
deixando bem curta, e me sentia linda.

Os Últimos Dias com Minha Mãe


Foram bons momentos, até descobrir a diabetes que a
deixou em alguns momentos doente e abatida e estava sempre
indo para o hospital. Depois descobriu problemas no coração.
Enquanto ela tentava se cuidar, nosso pai a recriminava e dizia
que ela estava de frescura. Algumas vezes, quando ela ligava
para avisar que ficaria internada no hospital, ouvi meu pai dizer:
“Tomara que ela morra.”

Os Últimos Dias com Meu Pai


Após o falecimento de minha mãe, nosso pai era uma
pessoa triste e se sentia sozinho. Quando estava nos botequins
bebendo, comentava por lá que os filhos o abandonaram e que
enquanto a mãe estava viva eles sempre visitavam, mas agora

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

não aparecem mais e que a impressão era que ele havia morrido
junto com ela.
Eu era a única que morava no quintal, então, junto com
o Paulo, conversamos muito com ele nesse período. Como ele
morava com a Tânia e ela não tinha manejo como dona de casa,
suas roupas estavam sempre encardidas, como ele acordava
cedo, fazia seu próprio café. Algumas vezes me pediu para lavar
suas roupas.
Era nítida a falta de nossa mãe para ele e acredito que ele
lembrou muito de tudo que ela fez por ele e se arrependeu do
que fez com ela. Ainda assim, ele a destratou muito enquanto
casados. Lembro-me de quando ela engravidou na menopausa
do Daniel e numa discussão ele quis agredi-la, mas foi impedido
pelo Vânio. Depois disso, passou a destratar o Vânio, assim como
fazia comigo e com o Jorge.
Em seus últimos dias, já em decorrência da doença que se
agravava, teve uma perda de memória. Estava em Nilópolis e
não soube voltar para casa, sendo encontrado numa rua alguns
bairros depois por um vizinho que o levou para casa. Chegou
se queixando de dor no peito e, no dia seguinte, quando foi para
o hospital, não resistiu ao infarto e morreu.

Sobre a Tânia
A Tânia sempre foi uma menina tranquila, não conversava
muito. Depois que nossa mãe faleceu, Tânia teve que assumir as
responsabilidades da casa, o que era feito de maneira peculiar e
do jeito dela. Sua doença também foi repentina e inesperada. Ela,
quando se queixava de dor na barriga, a Vanda fazia um chá de
boldo que ela tomava e logo ficava boa. Nesse dia ela reclamou
de dor na barriga e estava vomitando. Então o tratamento foi o
mesmo.
Saí para trabalhar e quando retornei fui vê-la para saber se
tinha melhorado. Quando a vi, me desesperei, pois a encontrei
totalmente diferente. Estava pálida, com os olhos esbugalhados,
sem conseguir falar direito e suando muito. Chamei minhas filhas

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para ver se era só impressão minha, mas elas tiveram o mesmo


espanto. A Vanda tentou dar banho nela, mas ela não conseguia
se levantar do sofá. Com muito custo, conseguiu chegar até o
banheiro e durante o banho desmaiou. Minhas filhas Paulinha
e Luana foram socorrer e a tiraram do banheiro. Corri e chamei
o Marco, que trouxe o Seu Moreira e a levou para o hospital. No
dia seguinte, depois de duas paradas cardíacas, não conseguiu
resistir e também partiu muito cedo. É uma lembrança muito
triste que só é possível esquecer ao nos recordarmos de nossa
infância tão feliz e de muitas brincadeiras.

Meu Casamento
Conheci o Paulo quando trabalhei em São Mateus, numa
fábrica de bolsas. Ele trabalhava numa padaria e morava ali
perto. Começamos a namorar e como passei a chegar tarde em
casa, minha mãe começou a reclamar. Então resolvi assumir o
namoro e o Paulo foi até minha casa para me pedir em namoro
aos meus pais, mas eles não aceitaram. Indignada com esse
impedimento, no dia seguinte peguei algumas peças de roupa
e fui embora morar com o Paulo.
Um mês depois fiquei grávida e Adriano, meu primogê-
nito, nasceu. Quando informei a gravidez a meus pais, eles não
aceitaram e ficaram brigados comigo.
Como tenho muitos irmãos, sempre tive meus favoritos,
que são o Vânio e o Cristiano, mesmo surgindo umas desavenças
entre nós. O Cristiano me ajudou muito na criação do Adriano.
Ele ficava alguns dias em minha casa e me ajudava nas tarefas e
com meu filho. Considero-o como um pai para meu filho. Depois
comecei a levar o Daniel também, porque ele ficava pedindo.
Comecei a levar os dois, também para aliviar os castigos do
Cristiano pelo meu pai. Num natal, os dois estavam comigo e
meu pai foi visitar e quis levar o Daniel para casa, mas ele não
quis voltar com o pai, mesmo ele insistindo muito.
Quando o Adriano fez um ano, oficializei meu casamento
com o Paulo, mas para agradar minha mãe, que ficava insistindo
por esse casamento, ainda mais com um filho. Então fizemos o

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

enlace no civil e religioso. Fizemos uma festinha junto com o


aniversário do Adriano. A madrinha do meu filho até quis me
presentear com o vestido de noiva, mas minha mãe fez questão
de fazer o meu vestido. Não gostei do modelo porque ficou um
pouco largo e era da cor rosa, disse minha mãe que não podia ser
branco pois eu já tinha um filho, não era mais virgem. Durante
a festa, caiu uma chuva e os convidados tiveram que entrar na
nossa pequena e humilde casa para se protegerem.
Assim, tive mais quatro filhos, Paulinha, Ricardo, Luan e
Luana e vivemos juntos por 32 anos. Atualmente estamos sepa-
rados, mas somos amigos, dividindo a mesma casa, mas cada
um seguindo sua vida.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Nestas fotos estão: Pai, Vaninha, Mãe, Adriano (no colo) e Paulo

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Lembranças da Vanda

A Partir de 1963

A
credito firmemente que tenho memória do ano que nas-
ci, meus primeiros meses. Ainda bebê, no colo da minha
mãe, que estava sentada provavelmente no quintal de
nossa casa. Havia outras pessoas no quintal, algumas cadeiras,
uns sentados, outros em pé, provavelmente bebendo, todos os
detalhes de que não me recordo.
Quando vem a lembrança do que vou relatar, chega à memória
como se fosse um sonho em preto e branco. Como eu e a Vaninha

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

nascemos em tempos próximos, ficava sempre observando minha


irmã, admirando-a, já que ela era mais velha e a mais próxima
de mim em faixa etária. Enquanto todos conversavam naquele
quintal, eu estava lá, no colo, só olhando a Vaninha que estava
sentada e de repente se levantou e, como toda criança pequena,
foi se apoiando nos braços da cadeira, olhou para todos, largou-se
da cadeira e foi. Nesse momento meu coração disparou e parecia
que só eu via o que estava acontecendo, ninguém se atentou
para o que viria a seguir. Vaninha começava a dar os primeiros
passos e eu fui a primeira testemunha, até que alguém gritou:
“A Vaninha está andando!” A partir daí, toda atenção se voltou
pra ela, acompanhado de muitos risos e alegria. Esse episódio
ficou marcado em minhas primeiras memórias.

As Casas e o Rio Pavuna

Inicialmente, sei que moramos em algumas casas, mas me


recordo apenas de situações. Lembro-me de uma casa que tinha
um poço com um boneco de madeira e tinha uma família de
negros. Teve outra casa que moramos pouquíssimo tempo, tanto
que a mudança ficou do jeito que chegou, pois já sabíamos que
não ficaríamos muito tempo ali (de acordo com os relatos do
Vânio, essas casas podem ser uma das três de Parada de Lucas).

Casa da Pavuna
Atrás da casa passava o Rio Pavuna, então se fôssemos
até o fundo do quintal, depois passando por um matagal, logo
chegávamos à beira do rio. Naquela época, o rio já estava sujo,
poluído. Mesmo assim, as crianças da rua entravam em nosso
quintal para fazer esse caminho até chegar ao rio para brincar
e tomar banho. Eu gostava de ir pra lá, mas só para admirar a
correnteza fluindo, trazendo aquele som das águas, o barulho
da água era que me atraía. Mas entrar nunca, tinha nojo e medo
de entrar e a correnteza me levar, então nunca me atrevi a entrar
naquelas águas. Sobre o som das águas, sempre gostei muito,
sendo a correnteza do rio, o barulho do mar, o som da chuva.
Ouvir aquele som me fazia gastar tempo à beira daquele rio, só

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

apreciando. Nossa mãe não deixava a gente ficar no rio, mas a


gente ia escondida e isso vinha acompanhado de muita adrena-
lina e emoção. Como sempre, eu e Vaninha estávamos sempre
juntas, até na beira do rio. Na verdade, nossa mãe sabia onde a
gente estava, mas não permitia para não dar muita liberdade e
criar limitação.
Certa vez, acredito que tinha chovido, tinha muita lama no
quintal, então não dava para ir até o rio, pois podia ser perigoso.
Não estava presente, mas de repente começou um alvoroço e dis-
seram que apareceu uma cobra no quintal e nossa mãe a matou.
O comentário era que naquela casa sempre houve cobras pelo
quintal e subindo pelo telhado e isso trazia um pouco de medo.
Apesar de todo frenesi em começar a estudar no Max
Fleiuss, fiquei totalmente desmotivada em ir porque minha vida
sofreria uma mudança, uma nova rotina, então não queria ir
na escola, mas outra parte de mim, mais curiosa, queria muito
desbravar o desconhecido. A parte de mim que não queria ir
viu uma oportunidade no momento de entrada e saída dos alu-
nos. Aproveitando a turma que saía, sem pensar muito, saí da
minha fila e me juntei à fila de alunos que estavam saindo e fui
embora sozinha. Quando saí da escola que veio a preocupação
de saber ir para casa sozinha, junto com medo e insegurança,
até enxergar a Igreja de Santo Antônio, que frequentávamos.
Chegando à igreja, logo veio a lembrança do caminho até che-
gar em casa. Minha mãe achou estranho, mas expliquei que
as crianças estavam saindo e vim junto. Estava tudo bem em
casa, até o inspetor da escola bater no portão. Conversou com
minha mãe, mas parece que ficou tudo bem porque ela não
falou nada. No dia seguinte voltei pra escola normalmente,
mas dessa vez com muitos olhos e fiscalização sobre mim até
me acostumar de vez com a escola.
Na Páscoa, os alunos ganharam um ovo (ou bombom) e a
professora veio distribuindo para todos, mas algo me dizia que
não era para mim aquele presente, pois ninguém me dava nada,
então fiquei conformada em ver os outros recebendo a lembran-
ça de Páscoa. Vi que também estavam recebendo um envelope

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

junto com o mimo e isso me chamou mais atenção. Percebi que


alguns abriram e dentro continha os trabalhos feitos em sala de
aula. Então a expectativa me tomou conta, ao saber que poderia
receber meus trabalhos. Todo mundo recebeu, menos eu, então
voltou aquele sentimento de que não ganharia nada, voltando
a trabalhar o conformismo, mas tudo chegou ao fim quando,
por último, chegou a minha vez e meu coração ficou extasiado
de alegria. Confesso que meu interesse era mais no envelope do
que na lembrança de Páscoa que veio como bônus.
Não me recordo por quanto tempo estudamos naquela
escola, mas logo surgiu um burburinho em casa, vozes abafa-
das, mas ficou claro depois que nós sairíamos da escola porque,
mais uma vez, uma mudança estava para acontecer. Durante
muito tempo, guardei boas lembranças da escola e sempre que
passava em Pavuna, procurava com os olhos, mas nunca mais
retornei ali.

Casa da Rua da Padaria Queimada


Meu sonho era ter uma boneca Suzy que dobrava os braços
e pernas e tinha cabelo, mas esse sonho ficava guardado comigo,
pois sabia que nossa mãe só tinha condição de dar aquela bo-
neca de plástico e eu reconhecia seu esforço e não queria vê-la
magoada, muito menos frustrada. Nessas condições, éramos
felizes com o que tínhamos.
A menina da casa da frente era nossa amiga, até chegar
outra menina da casa grande dos fundos, pois nos trocava e nos
ignorava para brincar com essa outra. Essa outra até nos tratava
normal, mas a menina da casa da frente nos tratava friamente
quando se juntavam. Eu e Vaninha percebíamos o desprezo, mas
não ligávamos porque tínhamos uma à outra pra fazer companhia,
até o dia em que ela nos destratou, então paramos de conversar
e brincar com ela. Parece que a mãe da menina percebeu e a fez
nos pedir desculpas, então voltamos a ser amigas desde então,
apesar de ela continuar com a amizade por conveniência.
Sobre minha impressão sobre essa casa, não gostava muito
do local, achava que na casa tinha um clima estranho. Acredito

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

que a família da casa grande era de macumbeiros. Meu espírito


não se agradava daquele local, sentia algo ruim. Na frente da
nossa casa havia um barracão que acredito ser de macumba, mas
nunca vi ninguém entrar. Ao tentar espiar por dentro, não se via
nada, só escuridão. Em frente havia uma árvore e fizeram um
balanço para as crianças brincarem, não me recordo se foi o Vânio
ou meu pai. Só que, como o balanço era na rua, não gostava de
ficar lá quando tinha muitas crianças. Por ser reservada, gostava
de brincar à vontade quando não tinha ninguém e assim podia
brincar e meditar, falar com Deus e isso já era o costume que
nossa mãe nos passou. Dessa forma, no balanço, gastava tempo
conversando com Deus, contando sobre essas meninas, pedindo
pela salvação da família de macumbeiros.
Certa vez, já estava para anoitecer e permaneci brincando
no balanço, mesmo não gostando muito devido ser próximo do
barracão e sentia algo ruim, um pouco de medo, como se tivesse
algo errado. Nesse dia, inesperadamente ouvi uma voz rouca,
vindo de dentro daquele lugar que não consegui discernir o que
sussurrou em minha direção e nem precisou muito, pois tratei
de correr dali pra dentro de casa e não comentei com ninguém
sobre isso até hoje.
Nesse período, eu e Vaninha estudamos numa escola perto
de casa, mas era no morro e sempre que íamos pra escola encon-
trávamos no caminho a professora, e essa aproximação causou
inveja entre os outros alunos que começaram a nos destratar.
Por esse motivo, começamos a mudar o horário de ir pra escola
para não chegar junto com a professora, só que o atraso nas aulas
chamou a atenção e logo nossa mãe foi chamada para conversar,
o que acarretou num sermão e voltamos ao horário normal, sem
conseguir evitar os encontros com a professora outra vez. Por
isso, em certa ocasião, meu bom comportamento e educação
serviram para atrair positivamente a atenção dos professores e
negativamente para os alunos. Uma menina chegou a mim e disse
que estaria me esperando na saída. Essa informação se espalhou,
chegando aos ouvidos da direção, que chamou a mim e a menina
para nos dar sermão, por causa da suposta briga que aconteceria
na saída. Saí da sala sem entender o que estava acontecendo e

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

só depois que encontrei um inspetor e ele me explicou sobre a


briga e quis entender o motivo de estar envolvida em confusão.
Depois que me expliquei, o inspetor percebeu que eu estava de
inocente e passou para a direção a verdade dos fatos.
Depois dessa escola, fomos estudar no Maurício Brum e
não gostava muito porque era longe e o Vânio tinha que nos
levar e o caminho era pelas pedras e trilhos da linha do trem.
Mais uma vez, eu e Vaninha estudamos juntas, na mesma turma,
dividindo a mesma carteira, sempre juntas.
Nossa Vó Julia morou conosco nessa casa, na verdade desde
a casa anterior. Ela era um pouco estranha, parecia não gostar
muito da gente, tinha seus netos prediletos. Nesse período, nossa
mãe engravidou mais uma vez e junto com sua amiga Nazaré,
saiu para dar vida a mais uma criança. Enquanto isso, ficamos
com a Vó Julia e Vera, que já era uma adolescente. Ficar sem mi-
nha mãe não era legal e me deixava mal com sua ausência, um
pouco apreensiva, ainda mais por três dias, mas tudo passava
quando ela retornava e de longe avistava sua presença com mais
um irmão nos braços. Depois que ela chegava em casa é que
nosso pai ia montar o berço, talvez uma tradição e o dia todo era
de visitas e presentes para conhecer o Marco, novo membro da
família. Era um bebê lindo, bem diferente da gente, pois nasceu
com o cabelo loiro e a pele mais clara que a nossa. O Jorge ainda
era pequeno, também tinha sua formosura, mas, diferentemente
do Marco, tinha mais melanina e cabelo preto.

Casa da Rua Araci


Eu, Vaninha e Vera fomos para a igreja e nossa mãe ficou
em casa, dando continuidade à organização da casa. Por um
lado, foi bom morar na Rua Araci, pois era bem próximo da
igreja, onde saindo da rua, dobrávamos a esquina à direita e já
visualizávamos a igreja. A falta de energia na casa durou alguns
dias, alguns dias na companhia do lampião, até nosso pai pro-
videnciar o conserto.
Os dias posteriores foram de muito trabalho para tornar
aquele local mais aconchegante, tanto no interior da casa para

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

finalizar a organização dos móveis depois da mudança quanto


no quintal que ainda tinha muito mato e foi preciso capinar.
Vera, nossa irmã mais velha, tratou de preparar um local para
colocar plantas e flores. Por onde ela passava e encontrava uma
planta interessante, pegava uma muda para plantar. Além das
árvores frutíferas que havia no quintal, as plantas e flores fo-
ram dando um novo visual e ao passar do tempo, a Vera criou
um lindo jardim com flores diversas: girassol, copo-de-leite,
rosas vermelhas, brancas e outras plantas. Quem nos visitava
percebia a beleza daquele jardim feito pela Vera e que nossa
mãe não hesitava em apontar com orgulho para a responsável.
Depois o Vânio fez sua participação, criando dois balanços
e um banco com algumas madeiras que foram deixadas no
quintal. Apesar dos vizinhos nos dizerem que a casa era mal
assombrada, com as reformas e retoques que demos, amava
muito morar ali. Gostava de ficar deitada sobre um pano na
grama junto com meus irmãos.
Nesta casa, tivemos o prazer de morar no mesmo quintal
com a família Vaz, pois as crianças das duas famílias se juntavam
para fazer as brincadeiras mais diversas possíveis. Foi nessa casa
que aprendi a subir na laje do banheiro que era no quintal e ficava
por muito tempo mais perto do céu, fazendo minhas reflexões
com Deus. Depois o Eugênio me ensinou a pular da laje. Ficar no
balanço também era uma das minhas preferências, mas era um
balancear contido, diferente do Vânio, que se balançava muito
alto. As árvores criavam sombras por todo o quintal e era muito
bom sentir aquele frescor.
O tempo passou e pela oitava vez nossa mãe engravidou e
nasceu o Valter. Vem-me à memória que nesse parto nossa mãe
não voltou bem do hospital. Pelos sintomas que ela apresentava,
hoje podemos perceber que se tratava de depressão pós-parto.
Ainda mais com o Jorge fazendo bagunça, despertava nela ner-
vosismo, assustava-se à toa, gritava. Nossa vó, apesar de sua
estranheza, foi quem cuidou dela nesse período, junto com Dona
Nazaré. Em minhas reflexões com Deus, pedi a cura dela, e com
a melhora, sempre me voltava a Ele para agradecer.

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A Doença do Valter e Tânia

Valtinho também era uma criança linda e amada que cres-


ceu conosco, mas se abateu uma doença sobre ele e Tânia. Os
dois tiveram que ir pro hospital e foi um dia muito triste, pois
minha mãe voltou sem eles, que ficaram internados.
Eu e Tânia tínhamos muito atritos, mas nesse momento a
falta era grande. Demoraram um tempo internados no hospital,
até que um dia a Tânia retornou, mas o Valtinho não, porque
estava muito doente ainda. A Tânia chegou bem debilitada,
sem forças até para ficar em pé e não voltou a mesma pessoa,
além do cabelo que estava raspado. Ela tinha um cabelo casta-
nho lindo, parecido com da nossa mãe. Quando cresceu, ficou
crespo. Percebi que ela voltou traumatizada, meio com pânico,
assustando-se e vendo coisas, gritando com medo de suas vi-
sões. Chorava e ria à toa. Ver tudo isso era de doer o coração.
Tínhamos que acompanhá-la para ir ao banheiro para evitar de
ela cair. Tentava reanimá-la, fazendo brincadeiras, até conseguir
roubar um sorriso, mas confesso que, às vezes, perdia a paciência.
Certa vez ela me viu no balanço e percebi que queria ficar junto
a mim. Levantou-se sozinha para ir ao meu encontro, sabia que
ela precisaria de mim para andar, mas não me importei. Deu
alguns passos e caiu de rosto no chão. Fiquei com muito remorso
por não ter ajudado por preguiça. Nosso pai dizia que tudo isso
passaria, que era devido à doença, mas o tempo passou e alguns
sintomas se fizeram presentes por toda sua vida.
Infelizmente, poucos dias depois do retorno da Tânia, o
Valter ficou internado sozinho, a doença se agravou e ele não
resistiu e perdemos nosso irmãozinho.
Nossa vó fumava cachimbo e nos pedia para ir numa ven-
dinha comprar fumo. Era nesse lugar que comprávamos nossos
doces. Também era ali onde nosso pai parava para beber.
Conhecemos também, enquanto moramos nesta casa, uma
prima de nosso pai chamada Teresa, mas conhecíamos como
Teca. Veio do Ceará e trabalhava como doméstica e vez ou outra
recebíamos sua visita. Sempre que aparecia, vinha acompanhada

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de um namorado diferente. Gostávamos dela, principalmente por


trazer presentes. Ela foi a madrinha do Marco, então os presentes
dele eram sempre melhores.
Outro parente que nos visitava era o Menga, que tinha uma
forma bem estranha de cumprimentar as crianças. Apertava o
nosso nariz e dobrava. Era um gesto que nenhum de nós gostava,
pois doía muito, então sempre fugíamos dele. Apesar disso, era
uma pessoa bem legal e era o homem das nossas mudanças. Por
ter um caminhão, sempre que ele aparecia com aquele caminhão,
sabia que poderia ser uma nova mudança.
Na Rua Araci tinha muitas crianças e começamos a nos
enturmar e brincar com eles de todos os piques que existe. Nes-
sa rua, o Vânio fez o patinete com as rodas que a Teca trouxe.
Eugênio também fez o dele e os dois desciam juntos do alto da
rua com seus carrinhos. O patinete feito pelo Vânio era grande,
já pensando em levar os irmãos, e era muito gostosa aquela
sensação de descer a rua no carrinho de madeira. Ele sempre
pensava em brincadeiras coletivas, chegou a fazer uma gangorra,
mesmo não sendo do agrado de nossa mãe. Diversão não faltou
pra gente enquanto moramos nessa saudosa rua.
A escola nesse período continuou sendo o Maurício Brum,
onde estudava eu, Vaninha, Vânio e Vera. Lembro-me de que a
gente não tinha uniforme, e nossa mãe só pôde comprar uniforme
para um filho. Depois ela conseguiu comprar mais um unifor-
me, faltando o meu e da Vaninha. Então a diretora da escola, D.
Regina, começou a impedir alunos de estudarem sem uniforme
e nos fez perder a matrícula. Nossa mãe teve que ir conversar
com a diretora e explicar a situação, mas ela foi implacável e
não nos permitiu assistir às aulas sem uniforme. Ficamos muito
tempo sem estudar. Foi quando nossa mãe resolveu tomar uma
atitude e reclamar na Secretaria de Educação, que souberam do
ocorrido e chamaram a diretora para conversar e ser chamada
a sua atenção. Então fez nova matrícula e como o tempo passou,
nossa mãe conseguiu comprar os uniformes. Voltamos a estudar
e ficamos no foco da escola, sendo chamados de “Os Cipria-
nos”. Diretores e professores passaram a ser orgulhar de nós,

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pois éramos educados, estudiosos, comportamento exemplar.


Depois os outros também começaram a estudar lá: Tânia, Jorge
e Marco. Na verdade, todos os irmãos estudaram nesta escola,
exceto o Daniel.
O tempo passou, Seu Zé começou a fazer sua casa aos poucos
até ficar pronta por completa. A parceria entre Seu Zé e nosso
pai era de muito tempo, assim como D. Nazaré com nossa mãe.
Um cobrindo o outro, um ajudando o outro, um acompanhando
o outro e compartilhando de alegrias e tristezas.
Como sempre, eu e Vaninha sempre estávamos juntas e
muitas brincadeiras eram só entre mim e ela, mesmo o Jorge
tentando interferir na nossa parceria. Um dia, acho que D. Nazaré
pediu pra gente ser aproximar mais da Eliane e brincar com ela,
então eu e Vaninha fomos para a casa dela brincar de boneca,
fazer companhia, já que a Ritinha, sua irmã de idade aproxima-
da, era ou tornou-se deficiente física e mental. Tentamos fazer
amizade com Eliane, mas ela era bem reservada, mesmo assim
montamos uma casinha e deixamos uma boneca na casinha e
saímos para fazer compras para a casinha. Quando retornamos,
a boneca tinha uma meleca enorme grudada no nariz. Na mesma
hora, não pensei duas vezes e gritei: “Jorge!!!” Tinha certeza de
que fora ele quem aprontara aquilo. Fiquei com muito nojo e com
vontade de vomitar, aliás tenho essa reação de repulsa à nojeira
até hoje. Fui reclamar com nossa mãe, mas ela nada fez porque
a gente não tinha provas de que o Jorge tinha feito aquela coisa
nojenta. A raiva subiu e a brincadeira acabou.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Jorge e Vanda

Casa da Rua Caldas Novas

Foi também nessa casa que conhecemos nosso primo Zé


Maria, tio Ivo, tia Fátima e o Haroldo, filho adotivo de nossa tia.
Zé Maria ficou um tempo morando conosco, até encontrar um
trabalho e se estabilizar. Nesse período, nosso pai, com ciúmes,
começou a implicar com nosso primo. Por isso, assim que arrumou
um emprego, tratou de morar no trabalho. Ele era uma pessoa
muita reservada, diferente do tio Ivo, que era muito divertido.
Tio Ivo morava em São Paulo e de vez em quando vinha nos
visitar, trazia presentes e nos contava as novidades que acon-
teciam por lá. Depois chegou a tia Fátima e se achávamos o Zé
Maria reservado, não conseguimos nos identificar com nossa tia,
pois é uma pessoa introvertida. Sobre o Haroldo, inicialmente
tivemos uma certa aversão. Primeiro ficamos sabendo que nossa
tia o criava no Ceará e foi avisada pelo nosso tio Ivo que, caso
viesse para o Rio, não seria legal trazer o menino, pois a nossa
casa era grande, mas já tinha muita gente. Através de carta, nossa
mãe fez o mesmo pedido para não trazer. Sem dar ouvidos, tia
Fátima veio para o Rio e trouxe o garoto, contrariando a todos,
e por isso houve essa antipatia, mesmo percebendo depois que
o menino era um bom garoto.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Foi nessa casa também que acabou a parceria Vaninha e


Vanda sempre juntas. Como no Maurício Brum o ensino era até a
quarta série (quinto ano do ensino fundamental), fomos estudar
o restante do ensino fundamental na Escola Castro Alves. De
início, continuamos dividindo a mesma carteira, até a Vaninha
dar um basta. Ela falou que não queria ficar a vida toda grudada
em mim, pois queria conhecer pessoas novas, novas amizades
e colada comigo não dava mais. Fiquei magoada, mas entendi
que cada uma precisava do seu espaço. Foi quando conheci a
Sirlene, que passou a se sentar comigo e fizemos amizade até o
fim do ensino fundamental.
Assim convivemos todos juntos, até chegar mais um irmão.
Já tinha nascido o Valdo e agora estava chegando a Cristina.
Fiquei feliz com a chegada dela porque até então estávamos
empatadas com os meninos. Já tinham 4 meninos e 4 meninas.
Com a chegada da Cristina, as mulheres passaram a ser maioria
na família (por pouco tempo).
O Menga começou a aparecer, vem mudança por aí...

Casa na Rua Anápolis


Na casa pequena ainda foi preciso abrir mais espaço, pois
Wilson estava chegando. Uma rede que nosso pai trouxe do
Ceará era colocada em frente da casa e o Wilson ficava o dia
todo sendo balançado pela tia Fátima, que amava cuidar dele.
Lembro-me de que seu nascimento foi para mim um dia muito
triste e marcante, pois prestes da virada do ano (76/77), um mo-
mento para nós onde sempre festejamos, nossa mãe teve que se
ausentar para trazer Wilson ao mundo. Ficar sem minha mãe
nesse momento era insuportável.
Dois anos se passaram ainda nessa casa e mais um irmão
estava chegando, dessa vez era o Cristiano.
Passado um tempo, nosso pai pediu a casa e começou uma
reforma. Nesse tempo, a Vera já namorava o Orlando e ele era
pedreiro, então foi ele quem fez os reparos, pinturas, e depois

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

disso entramos na casa. As acomodações eram bem melhores,


mas seguimos com o quarto sem janelas.
Acabei me acostumando com a casa, vendo seus pontos
positivos, que eram o tamanho e o quintal enorme, cheio de ár-
vores e frutos, era minha nova paixão. Como já era adolescente,
o quintal passou a ser o mundo mágico dos mais novos. Passei a
ter preferências por outras coisas, como o interesse em ler livros,
por influência da Sirlene.
Nesse período, os meninos faziam muito jogo de futebol
no quintal. Não gostava muito, até ver uma foto do Zico com
seus 14 anos, um rapaz bonito, foi meu primeiro crush. Toda a
informação que encontrava sobre o jogador era de meu interesse,
acabando por me inteirar no futebol, daí começou minha torcida
para o Flamengo, causando revolta na família, até então de bo-
tafoguenses por influência do nosso pai. Mas essa empolgação
toda durou até a partida do Zico para a Itália, fazendo com que a
paixão embarcasse junto, pois fiquei muito triste e decepcionada
quando ele deu adeus ao Flamengo. O amor era vidro e se que-
brou. Para se ter ideia de quanto era tiete, por minha influência,
Zico foi uma das primeiras palavras ditas pelo Daniel, o último
dos irmãos, o filho de número 12.

Início da Vida Espiritual

Deixando essa fase para trás (referente à conversão), passei a


me dedicar à minha vida espiritual, envolvendo-me em trabalhos
na igreja católica. Assim, fui catequista, depois coordenadora
das catequistas e depois fui voluntária para trabalhar numa
congregação que se formava, chamada São Sebastião. Isso se
deu devido ao desejo da Diocese em querer ampliar o número
de igrejas na região, pois só tinha a matriz, Nossa Senhora das
Graças, colocando em prática os trabalhos nessa congregação.
Foi quando houve o convite para membros que morassem perto
se voluntariarem para o trabalho. Dona Albertina, Seu Mario
e Seu Paulo fizeram o convite, despertando imediato interesse
na Vaninha, que me chamou logo depois, e fui por insistência.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Depois outras congregações abriram como no Grande Rio, Vila


Norma, Castelinho e Bacia.

Sou Professora
Ser professora sempre foi uma paixão que namorei por muito
tempo. Uma das nossas brincadeiras de infância era brincar de
escolinha e era o dia todo. Na casa da Rua Caldas Novas, por um
tempo teve um quarto vazio, até nossa tia Fátima chegar. Nosso
pai trouxe uma lousa e colocamos naquele quarto, arrumando
tudo para se tornar uma sala de aula para alunos invisíveis.
As aulas que tinha na escola eram reproduzidas nesta sala de
aula. Depois o Marco passou a ser o primeiro aluno, até nossa
tia chegar.
Minha mãe, sabendo do meu sonho, resolveu com seus
próprios esforços pagar uma escola particular para que eu viesse
a me formar no magistério. Como já tinha mais de 20 anos, fiquei
constrangida em aceitar, mas ela praticamente me obrigou a me
matricular. Por sorte, uma amiga da igreja, chamada Otília, que
também fez o ensino médio de formação de professores e tinha
alguns contatos, conseguiu me encaixar numa das concorridas
vagas de uma escola pública chamada Aydano de Almeida,
em Nilópolis. A boa notícia veio com grande alegria para mim
e para minha mãe, podia perceber em seus olhos a satisfação.
Não podia deixar que pagasse uma escola particular pra mim,
tinha que compensar de alguma maneira tamanho esforço de
minha mãe, pois gastava seu dia lavando roupas. De qualquer
forma ela contribuiu com os uniformes. Com muito sacrifício,
consegui concluir o ensino médio.

A Batalha Espiritual
Com a partida de parte da família não fiquei tão bem, che-
gando a ser reprovada na escola nesse ano. Tive que me adaptar
a uma nova turma, fazer novas amizades e fui me arrastando e
com muito sacrifício consegui terminar o ensino médio.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Depois da minha conversão, os sintomas passaram a se


tornar mais frequentes. Em 91 conclui o ensino médio e já era
Natal. Tive febre dias antes, só melhorando no Natal, mas não
pude comemorar devidamente, pois acabara de me recuperar.
No Ano Novo estava bem melhor. Paulo me trouxe um copo de
cerveja, mas o cheiro não me agradou, sentindo até um mal-estar.
Não consegui beber nada, nem a caipirinha, nem vinho, nada.
Nos primeiros dias de 92 comecei a ter sensações estranhas.
Comecei a ter insônia e quando dormia tinha pesadelos. Certo
dia, tomei banho de madrugada para me preparar para dormir.
Peguei um hidratante e ao passar no corpo senti gelar em meu
corpo. Aquele frio começou pelos pés e começou a subir pelas
minhas pernas. O pânico tomou conta e corri para o quarto,
deitei na cama e comecei a rezar. Cobri-me para dormir e nesse
momento aquele frio começou a se espalhar pelo corpo, subin-
do pela cintura, tronco até eu sentir a frieza por todo o corpo.
Tentei chamar pelo Valdo, mas percebi que minha voz estava
bem distante. Meu coração disparou. Coloquei minhas mãos
nas pernas, mas involuntariamente não me obedeciam. Rezei
Ave-Maria e a sensação só aumentava. Comecei o Creio em Deus
Pai e nada melhorava. Rezei o Pai-Nosso e aquela sensação parou
momentaneamente. Repetidas vezes comecei a pedir: “Livrai-me
de todo mal!” Dessa forma, tudo aquilo foi se acalmando até se
esvair de vez. Meu corpo começou a aquecer até voltar a sentir
meu corpo novamente. Permaneci orando e agradecendo a Deus
até o sono vir bem tranquilo.
No dia seguinte procurei um médico em Nilópolis para
saber o que estava acontecendo. Enquanto estava na fila à es-
pera do médico, eis que surge uma emergência e o médico vai
prestar atendimento, deixando-me na espera. Nesse ínterim,
surge um crente fazendo evangelismo com folheto. Pensei:
“Lá vêm os crentes!” Virei o rosto. Percebendo minha reação,
distribuiu para todos os presentes, menos para mim. Ele vai
embora em direção à saída do hospital, mas decide parar, voltar
e vir em minha direção. Meu coração dispara. Ele me entrega
o folheto e diz: “O Senhor te deu um grande livramento”, e
pede para eu procurar Deus. Lembrei-me das palavras da

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

minha amiga e olhei para o folheto com as palavras de Isaías


55, que em seu título diz: “Todo povo é convidado a procurar
a salvação.” Aquele rapaz continuou dizendo que Deus queria
me curar de uma enfermidade, da mesma forma que operava
no passado, basta querer que Ele irá operar hoje. Com essas
palavras, refleti que não precisava esperar o médico, bastava
procurar Jesus. Saí do consultório médico rodeada novamente
daquela paz de outrora.
Resolvi imediatamente procurar pela Luciene e contar
todas as experiências que tive. Ela se alegrou com minha con-
versão. Foi quando comecei a caminhar na ADUD e aprender
mais sobre Deus. Na verdade, estava buscando uma certeza do
que realmente eu queria. Resolvi não contar para ninguém para
não sofrer influência, então não comentei com meus irmãos se
seria evangélica ou se voltaria para o catolicismo. Adquiri co-
nhecimento lendo a Bíblia, passei a orar e jejuar e as mudanças
começaram a surgir por dentro e por fora. Soube depois que,
devido às minhas saídas, a Vaninha chegou a me seguir para
saber para onde eu estava indo. Aí meu segredo acabou e meus
irmãos vieram me indagar para saber da minha boca o que estava
acontecendo. Contei tudo o que estava acontecendo em minha
nova vida. Sofri discordâncias da parte deles, mas segui firme
com Deus. A partir daí comecei a me enquadrar nas doutrinas
da igreja, focada nas leituras bíblicas, com orações e jejuns.
Apesar de toda minha aproximação em Deus, na madrugada
aquelas sensações tornaram a me cercar. Orava até aquela sensa-
ção ir embora. Só que aquela presença maligna começou a ficar
mais forte, deixando-me com medo, e eu tentava lutar contra tudo
isso. Percebo hoje que tudo que passei era necessário, afinal, para
obter o grande livramento, seria preciso conseguir as armaduras
de Deus. Como era iniciante tentava, mas não sabia como lutar.
As invertidas demoníacas se intensificavam até me vencer pelo
cansaço e comecei a parar de lutar. Os pesadelos se tornaram
frequentes, imobilizando-me na cama. Vencida, comecei a perder
o controle do meu corpo e minha mente. Passei a ouvir vozes e
passos. Uma noite, deitada para dormir, começava a manifestação.
Ouvia alguém caminhando pelo teto, barulho de terra caindo do

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

alto, um frio começava me cercar. Deitada, vi uma linha vinda


do teto e caindo em minha direção até chegar à minha testa. O
medo tomava conta. As vozes começaram a se manifestar e eu
perdia o controle. Foi a partir daí que meus irmãos começaram a
visualizar as manifestações que aconteciam comigo. Quando eu
estava sã, gritava, tentava lutar, quando não, fazia coisas que não
competiam a mim. Rotinas da casa, como cozinhar um simples
ovo, eram deturpadas e vinha uma visão com grandes chamas
de fogo; se ia fechar a janela, acabava quebrando.
Minha mente estava tomada o tempo todo e nos momentos
de sobriedade a sensação era de profunda angústia. Sentia-me
muito mal com tudo isso e sabia onde podia me livrar de toda
essa situação, mas meus irmãos não me deixavam ir para a igreja,
pois acreditavam que foi lá que tudo começou. Então comecei a
fugir, despistando a vigilância dos meus irmãos e participando
dos cultos. À tarde, estava o culto rolando e percebi que o Vânio
estava lá. Começou a me chamar para ir embora e eu me neguei
por algumas vezes, até ele tentar me levar à força. Percebendo
o que estava acontecendo, o irmão Jurandir, líder dos jovens na
época e que foi meu conselheiro, conversou comigo e falou para
acompanhar meu irmão. Depois fiquei sabendo que o pastor
levantou um clamor e pediu para a igreja entrar em jejum pela
minha vida nesse dia.
A vigilância se reforçou e em dias de muita opressão, em
que as vozes ameaçavam de morte minha vida e de minha fa-
mília, tentei por algumas vezes fugir para estar na igreja, mas
era sempre alcançada por eles, que me levavam de volta para
casa. Os comentários deles até hoje é de que eu estava querendo
cometer suicídio.
Até que a Rosinha disse que o que eu tinha era um encosto
de espírito obsessor e que eu precisava ir à macumba fazer um
tratamento espiritual. Imediatamente recusei tal ideia, até que foi
feita uma proposta de fazer o tratamento e em troca poderia ir
aos cultos e até morar lá se eu quisesse. Nessas condições aceitei
o acordo e fui levada até o terreiro. Chegando lá, o pai de santo
conversou comigo, explicou o trabalho que seria feito e perguntou

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

se eu estava ciente. Respondi que não queria e informei o acordo


que tinha feito. Inicialmente, ele se recusou, pois teria que ser
algo espontâneo. Mas depois de bastante conversarem e dizer
que o pagamento já tinha se realizado, então acabou fazendo
sem minha vontade. Deram-me um banho com “água suja” com
roupa e tudo e depois, do lado de fora, jogou sobre mim algumas
coisas e retornei para casa.
Depois disso, as coisas foram retornando à sua normalidade,
comecei a fazer a rotina da casa e fui cobrar o acordo que fiz.
Não tendo outra saída, retornei à igreja e pouco tempo depois
fiz da igreja minha morada. Até hoje eles acreditam que minha
libertação se deu devido ao tratamento feito na macumba. Entre-
tanto, continuei com os problemas, mesmo morando na igreja,
onde foi feito um processo de libertação espiritual, sendo sempre
acompanhada pela Andreia. Continuei cometendo vários atos
sem lembrar nada, ficando até sem comer. Isso perdurou por um
longo período, até se dissipar de vez e ter de volta meu domínio
próprio. A partir daí, iniciei a reintegração na igreja, dividindo as
tarefas domésticas e retomei minha busca espiritual, alcançando
o grande livramento dado pelo Senhor.

Meu Primeiro Casamento

Viver em busca do meu desenvolvimento espiritual era o


que eu mais queria. Viver dentro da igreja foi uma grande con-
quista e auxílio para esse meu objetivo. A paixão foi arrebatadora
pelo modelo e estrutura de trabalho desenvolvido pela ADUD.
A ideia de viver como os apóstolos de Jesus era apaixonante e,
assim, optei por viver e prosseguir como no período do minis-
tério de Cristo na Terra.
Nesse período conheci o Carlinhos, namoramos, noivamos
e casamos. A igreja providenciou tudo, a festa, cerimônia, o que
precisamos foi dado pela igreja. Em outubro de 1995 nos casa-
mos e escolhemos continuar morando em um quarto na igreja.
Confesso que essa vontade de continuar morando na igreja era
mais minha que do Carlos. Um dos meus desejos era ver minha
família se formar e crescer dentro da igreja.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Esquerda para direita: Cristiano, Tânia, Daniel, Vaninha, Ricardo, mãe,


Valdo, Vanda, Carlos e Marco

Antes de nos casarmos, esporadicamente Carlos ficava


doente, com febre, tosse, chegando até a ficar de cama. Em julho
do ano seguinte ao nosso casamento, veio ao mundo meu filho
Misael. Nesse mesmo período também começaram a se agra-
var os sintomas já conhecidos sobre o Carlos. Nosso trabalho
com evangelismo nos presídios, hospitais, orfanatos, lares que
necessitavam de oração, acabavam sendo interrompidos devido
a essa enfermidade, com recaídas constantes, o trabalho já não
era mais possível de ser realizado, pois a doença o deixava cada
vez mais abatido e fraco.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Chegando ao extremo, o pastor resolveu levá-lo ao médico


para ter uma resposta científica do que era essa doença. Foi atra-
vés dessa atitude que foi diagnosticado essa doença. Carlos era
portador do HIV, deixando toda a igreja perplexa, afinal eu estava
casada e tinha um filho com ele, tendo grandes possibilidades
de sermos também portadores do vírus. Exames foram feitos e
descobriu-se que eu e meu filho não tínhamos nos contaminado.
Três anos depois do diagnóstico, Carlos veio a falecer, dei-
xando Misael e eu sozinhos. Foi um período bem difícil, pois
conheci a dor da separação. Sempre ouvi falar dessa dor, mas
não tinha vivenciado, até que ela me encontrou e me fez sentir
na alma. Guardei o luto durante quatro anos, sentindo sua falta,
guardando sua memória em mim.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Meu Segundo Casamento


... Foi quando conheci o Albano e novamente me casei em
2001 e é com ele que estou até hoje e juntos ajudamos um ao
outro, aguardando a vinda do Senhor.

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Lembranças do Jorge

A Casa da Rua Caldas Novas


(...) Também tinha brincadeiras nas árvores que o Vânio
amarrava cordas e fazia casa nas árvores. Já momentos ruins,
um deles foi quando a Vaninha se envolveu com um vizinho
viciado e por esse motivo apanhou muito.

Motoqueiro Rodoviário
Sabíamos que nossos pais não tinham condições de nos
dar brinquedos porque eram muitos filhos. Também não seria
justo dar presente para um e os outros não terem. Um brinquedo

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

que ganhei, não me lembro de quem, mas que tinha muita esti-
ma, era meu motoqueiro rodoviário. Era meu único brinquedo
e para onde ia me fazia companhia. Num dia, minha mãe fez
uma faxina na casa e ela costumava jogar o lixo num poço que
tinha nos fundos do quintal da casa. Nesse momento, senti falta
do motoqueiro e fui procurar, então de tanto vasculhar só res-
tou procurar no poço. Lá estava o motoqueiro rodoviário, todo
queimado no poço, fiquei muito triste e arrasado.
Outra coisa que fazíamos era esperar o pai chegar porque
ele sempre trazia alguma coisa para nós, tipo doce, bolo e nesse
dia ele demorou muito a chegar. Fiquei ansioso e subi no muro
para esperá-lo. Neste muro tinha umas grades pontiagudas, en-
tão, quando subi, fiquei olhando para a rua tentando ver se meu
pai chegava, mas acabei me encurvando demais e escorregando
e uma daquelas pontas cravou em meu peito e fiquei preso até
alguém me tirar. Um vizinho que tinha carro me levou para o
hospital. Lembro-me de que, chegando lá, fui informado que
tinha que levar uns pontos e ser anestesiado, então não foi fácil
deixar os procedimentos serem feitos, sendo preciso alguns
enfermeiros me segurarem para conseguirem dar os pontos e
fazer o curativo.
Acredito que no período em que a tia Fátima e o Haroldo
moraram conosco, fomos muito injustos, principalmente com o
Haroldo, que só queria brincar com a gente, mas não tínhamos
nenhuma simpatia por ele e por esse motivo que as brigas co-
meçavam, como implicar, chutar os brinquedos, puxar a porta,
enfim, chamar a atenção.
Eu sempre fui uma criança muito arteira, então por várias
vezes minha mãe me colocava de castigo com uma cadeira na
cabeça, e ela dizia que eu estava assistindo televisão, enquanto
meus irmãos ficavam rindo dessa situação.

O Mobral
Sobre o Movimento de Alfabetização Brasileira — MOBRAL
—, estudei nesse período e lembro-me de que para chegar ao
local tinha que passar pelo Fabrício, um cachorro de rua que eu

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

tinha pavor e sempre que tinha que chegar na casa me escorava


pelo muro, bem devagar para o cachorro não me perceber até
entrar na casa da Dona Lurdinha.

O Catecismo
Gostava de estar nas aulas de catequese, mas tinha o Sr.
Paulo, que era muito rígido e queria que fizéssemos tudo do jeito e
da forma dele e se não fosse feito, não faltava sermão nem castigo.
Também estudei no Maurício Brum e nesse período ocor-
reu um fato que me deixou marcado. A direção da escola pediu
que todos os alunos trouxessem água de casa porque a água da
escola estava suja, a fim de evitar alguma doença. Como sempre,
existiam uns alunos que se achavam os donos da escola, não
levavam água e queriam beber da nossa. Numa ocasião, esses
alunos pediram a minha água e a do Marco, mas nós resolve-
mos não ceder e por esse motivo ameaçaram nos surrar quando
saíssemos da escola. Então quando o sinal tocava para ir embora,
nós dois saíamos correndo para impedir as agressões. Num certo
dia fomos cercados pelos garotos e não conseguimos evitar, le-
vamos uma surra com muitos chutes, sobrando até para nossas
mochilas e merendeiras. Numa outra vez escapamos por pouco
de outra surra. Como de costume, corremos muito até chegar à
barreira e quando os garotos estavam se aproximando, também
chegou nossa mãe que, de longe, deu uns gritos, e os garotos
foram embora e nunca mais mexeram com a gente.
Uma ocasião inesperada aconteceu comigo e minha mãe.
Ela lavava roupa e foi fazer a entrega e eu a acompanhei. No
meio do caminho apareceu um sujeito com uma faca na mão.
A gente não sabia se era ladrão ou não, mas nós dois corremos
muito até nos distanciarmos dele. Depois fiquei lembrando do
ocorrido e rindo da situação.

Os Trabalhos na Adolescência
Teve um momento em que vendi picolé nas ruas, no Colé-
gio Fluminense e no Campo do Éden. Era bem tranquilo, menos
no Colégio Fluminense, onde tinham uns alunos folgados que

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

sempre que me viam queriam tomar meu isopor e os picolés,


então tinha que fugir deles ou me esconder.
Como todos podem perceber, nossa família é grande e é
certo que as dificuldades para trazer o sustento para casa eram
uma realidade. Meu pai trabalhava, minha mãe fazia uns bicos
e ainda assim não era suficiente. Por muitas vezes, flagrei meu
pai e minha mãe chorando pelos cantos porque não tinham o
que pôr na mesa para os filhos. Então, para ajudar a família,
comecei a fazer carreto no supermercado, assim como vender
picolé nas ruas e depois vender jornal nas bancas de Éden ou
na Central do Brasil.
Nesse período em que vendia jornal, certa vez decidi ir
de bicicleta. Peguei a Caloi do Vânio sem pedir e saí ainda de
madrugada. No caminho fui abordado por um rapaz que colo-
cou um revólver 38 na minha cabeça, pedindo a bicicleta. Saí da
bicicleta sem olhar para trás e o ladrão levou a bicicleta. Só me
restou voltar para casa e dar a notícia para o Vânio, que ficou
com muita raiva.
Existiu um jogador de futebol que as pessoas diziam que
eu tinha semelhança física com esse atleta e acabaram me apeli-
dando de Major, devido às partidas de futebol que aconteceram
no time Anápolis, apelido que dura até hoje.

O Time Anápolis
O Anápolis, como já dito, foi um time que criamos e eu era
jogador e técnico e gostava muito de fazer parte. Houve um time
que era nosso rival, de nome Flamenguinho, e tinha o Charles,
que era um craque, mas nosso time também tinha dois craques
que competiam à altura, nosso irmão Valdo e o Marquinho, nosso
colega. Foi uma época muito boa e de muitas recordações. Um
episódio de que lembro foi que, em algumas partidas, o Marco
era escalado para o jogo e o time estava todo empenhado em
ganhar, fazendo sua parte. Então foi lançada a bola na área para
o Marco, que chegou a driblar o goleiro, mas quando estava de
frente para o gol conseguia chutar para fora, deixando todo o
time revoltado com todo o esforço jogado fora.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

O Serviço Militar
Ao completar 18 anos, servi o Exército e foi um momento
de aprendizado. Fiquei um ano e depois pedi a baixa, mesmo
com o Capitão, para quem era subordinado, insistindo para eu
ficar e tentar carreira. Hoje tenho um certo arrependimento de
não ter seguido seus conselhos.

Roni Alzi
Trabalhei por um período numa fábrica de vidros (Roni
Alzi Vidros Científicos) em Bonsucesso e foi bom ter adquirido
essa experiência. Uma pena ter fechado as duas fábricas, após
decretar falência devido ao Plano Collor, onde o dinheiro de
muitas empresas ficou impedido de ser retirado, o que ocasionou
uma demissão em massa, deixando muitos desempregados.

Trabalhos em Agostinho Porto


Houve um momento em que comprei uma carrocinha de
cachorro-quente e tive um ponto em Agostinho Porto em que
tive bastantes clientes. Faltou maturidade de minha parte, pois
cheguei a pagar garotos para me substituírem para não fazer

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

nada e ficar em casa, sem necessidade alguma. Acabei vendendo


o ponto e abandonando essa oportunidade.
Depois comecei a trabalhar numa padaria em Agostinho
Porto e também foi uma experiência agradável, não fosse o fato
de o dono da padaria tentar me enrolar e também outros funcio-
nários com a promessa de assinar nossa carteira de trabalho, o
que nunca aconteceu. Fiquei três anos trabalhando e aguardando
essa promessa até decidir não mais esperar e sair.

A Volta da Família
Foi nesse período em que trabalhei nessa padaria que
aconteceu o retorno de parte da família que tinha partido para
o Ceará e que deixou a mim e aos que ficaram muito felizes, pois
todos estariam juntos outra vez recomeçando nosso relaciona-
mento familiar.

Meu Casamento
Casar com a Rose foi minha melhor escolha e decisão e
hoje desfruto das bênçãos de Deus com nossa união.

A Morte do Pai
Da mesma forma, perder meu pai poucos anos depois foi
muito triste, pois foi uma pessoa importante para nós e para
nossa criação.

A Morte da Tânia
Inesperada foi sua morte, trazendo tristeza para todos. Tânia
estava bem e de repente veio seu falecimento. Creio que ainda
não era seu momento, apesar de Deus saber de todas as coisas.
Quando me lembro dela, logo vem à memória um fato de
quando ela estava namorando e ninguém sabia, até que ela foi
vista e nossa mãe ficou sabendo. Estavam os dois dentro do carro
do rapaz e minha mãe os surpreendeu e colocou o rapaz para
correr e ele nunca mais voltou.

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Lembranças do Antônio

Iniciado em 18-5-2019

A
ideia de registrar em forma de biografia a existência da
família Cordeiro Cipriano surgiu a partir da convergên-
cia e desejo de todos nós, irmãos. Afinal uma família

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

composta por tantos filhos e netos merece que seja patenteada


e que sirva como literatura para a posteridade.
Na falta de metodologia, eu optei por descrever reminis-
cências de forma datadas, e, nesse caso eu deveria ter realizado
essa tarefa há alguns anos, visto que a idade avançou e minha
memória me trai.
A partir de agora, início o trabalho:

Idos de 1974…

Como mencionei, escreverei nossa história a partir das


minhas memórias e a farei de maneira datada, portanto ficará
um hiato de aproximadamente 20 anos e espero que seja desfeito
com os relatos de outros irmãos mais velhos.
Sobre o passado da mãe e do pai, ainda no Ceará… inclusive
quero registrar que nunca fui de chamar meus pais de mamãe
e papai… nem eu, nem nenhum de nós. De fato, até hoje não
sou adepto desse costume de chamar as pessoas no diminutivo.
Chamar a Vânia de Vaninha é um exercício forçoso, chamo por
convenção, mas confesso que faço com considerável esforço.
Falando sobre meus irmãos mais velhos, estes eram referên-
cias para mim: lembro que eu seguia — literalmente — muito o
Vânio e ele não gostava e me expulsava, admirava muito a Vera,
mas não era uma figura que me fizesse sentir vontade de ficar
perto o tempo todo, ainda que gostasse da presença dela, mas com
ela não rolava muitas brincadeiras, era mais séria. A Vanda, esta
requisitava com mais frequência a minha presença, lembro-me
de que ela fazia questão de me ensinar coisas, como foi o caso do
“pelo sinal” (pelo sinal da santa cruz…), falava muito de religião
e apontava muito para o céu, e talvez por isso eu admire muito
os mistérios do céu. Acho que a minhas irmãs brincavam de dar
aula e me pegaram para aluno. Este hábito totalmente lúdico
foi a gênese do espírito perscrutador que existe em mim, bem
como gosto pela pesquisa (lia muito a enciclopédia O saber em
cores), depois pela leitura de um modo geral e posso dizer que
estas coisas foram o carnegão da literatura e do gosto acadêmico.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Certamente essa prática, ainda que infantilizada, aguçou o meu


desejo por conhecimento. Por isso que sou convicto de que toda
criança deveria aprender filosofia desde a tenra infância, mas
esse é um pensamento pessoal e nada mais. Falando em filosofia,
quero registrar que o livro O poder do pensamento positivo ainda
existe, sou guardião dele desde sempre.
Outra coisa muito comum naquela época eram as brinca-
deiras, geralmente à tarde, mas também à noite, depois da novela
das sete, e era muito mágico, quase sempre eu ficava pra café com
leite e eu não gostava, mas quando me colocavam na brincadeira
normalmente, pra valer, eu me sentia cansado, era trabalhoso.
Também me lembro de todos nós — até aquele momento éramos
sete — sentados à noite assistindo às programações da TV: tinha
novela das seis, depois desenho animado (acho que se chamava
TV globinho) Tom e Jerry, depois a das sete, depois quintal depois
novela das oito com a janta, depois eu não sei… sei que havia as
novelas das dez que sempre eram excepcionais.
À noite, quando estava próximo do nosso pai chegar, havia
grande expectativa, muitas vezes ficávamos no quintal, sobre
esse assunto o Jorge tem uma experiência e eu prefiro que ele
mesmo conte.
Ainda sobre as brincadeiras, convém lembrar as brincadeiras
à tarde sob a liderança do Vânio, quando se realizavam as brin-
cadeiras denominadas pela mãe como “brincadeiras ignorantes”,
eu tenho memórias de muitas e as mais marcantes eram as que
envolviam os balanços que eram feitos sob a amendoeira, quan-
do me via nas alturas, acima do muro do vizinho por causa do
forte impulso que nos levava para cima do muro, minhas mãos
suando e a convicção plena de que eu podia tudo, menos largar
aquelas cordas, e era horrível. Eram muitas as brincadeiras na
casa da Caldas Novas, inclusive nas chuvas, dando voltas na
casa, os tombos, as feridas… o execrável mertiolate.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Valdo, Marco, Vanda, Haroldo, Vaninha, Tânia e Cristina no colo

Nas noites sem luz também tinha as histórias de fantasma,


as combinações da Vera com o Vânio e ele arrastando corren-
tes no lado de fora da casa para pensarmos que era fantasma.
Próximo da nossa casa havia um terreno baldio, onde em uma
dessas tardes, todos, menos eu, se embrenharam no mato para
— segundo eles — fazer armadilhas. Nesse dia não me levaram,
mas eu queria ter ido.
Um dia a nossa mãe anunciou que uma irmã dela viria
morar conosco e traria um menino que ela criava. Estava falan-
do da tia Fátima e o Haroldo, que estavam vindo do Ceará para
viver no Rio fazendo o mesmo caminho dos nossos pais e de
muitos e muitos nordestinos e nortistas que para aqui vieram. Eu
particularmente gostei da ideia e comecei a sonhar e imaginar
como ela seria, achava que seria bonita, imaginava que teria a
cara da Regina Duarte, porque a Regina Duarte era uma das
mulheres mais bonitas do Brasil naquela época. Lembro-me de
quando eles chegaram, era uma tarde nublada e provavelmente

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

um domingo, já que o meu pai estava em casa. Quanto à expec-


tativa de ver a Regina Duarte, obviamente converteu-se numa
frustração. Ainda é nítido para mim o olhar do Haroldo para
mim: cabelo liso, cortado, penteado, lábios cerrados, camisa de
cor lavanda com botões, o pai carregando a mala verde, mala
esta que a tia guardou durante muitos anos. De minha parte
não houve quebra de gelo, fiquei indiferente ao Haroldo e ele a
nós. Eles passaram a ocupar o quarto que ficava desocupado,
a casa tinha três quartos. Eles faziam coisas engraçadas para
nós e isso provocava grande deboche de nossa parte. Deve ter
sido muito difícil para eles. Lembro-me de que a tia colocava
um cobertor na cabeça para lavar roupa a despeito do sol que
estivesse fazendo, era aquele “cobertor paraíba”. Ela apagava
assoprando o fogo do fogão, o que provocava muita gargalhada
dos meus irmãos mais velhos, na minha cabeça até que fazia
sentido, já que eu algumas vezes pensei nessa opção. O Haroldo
mostrava-se embriagado com as pipas no céu, ele não disfarçava,
ficava horas olhado para o céu, apoiando a cabeça com as mãos
cruzadas — igual quando a pessoa se rende e põe as mãos na
cabeça —, apoiando a parte de trás da sua cabeça cearense, e
naquela posição ficava admirando o céu de pipas. Além disso,
ele tinha grande habilidade de fazer uma percussão com os dois
dedos indicadores batendo no tórax e isto fazia bastante sucesso
lá em casa, principalmente com os mais velhos. Lembro-me de
que isso — e o fato de ele ser mais velho — provocava em mim
muito ciúme, principalmente quando Ivo e o Zé Maria estavam
presentes, o Haroldo era mais bem aceito nos encontros do que
eu, que era apenas uma criança de quatro, cinco ou seis anos.
A rejeição era tanta que o Natal de 1976 foi horrível para mim,
que crise existencial e de rejeição eu passei. Nossa! Como eu
sofri! Lembro-me também de que o Haroldo tinha a habilidade
de atirar o chinelo por meio de um chute, fazia movimento de
chute e lançava o chinelo e era certeiro o “projétil”.
Havia muita rivalidade contra o Haroldo. Ele ficava parado
na porta do quarto observando a gente brincar e isto era motivo
de rixas. Teve um episódio muito chato envolvendo quase todos
nós e a tia, acho que era uma musiquinha que cantávamos e

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envolvia o nome dela, não me lembro ao certo, mas sei que era
algo objetivando humilhá-los e sei que a coisa foi de um jeito
que a tia acabou chorando. Nesta ocasião a mãe agiu chamando
a atenção de todos nós, a mãe brigou muito. Eu me senti muito
culpado, não gostei de ter participado daquela maldade. A partir
daquele dia, paramos de sacaneá-los constantemente, mas as
maldades em relação a eles sempre existiram em muitas formas.
Não sei se eles tinham culpa, mas sei que tínhamos vantagem e
abusávamos por conta disso.
Nesse dia que a mãe brigou, foi o mesmo dia que a mãe me
ensinou a pegar no garfo. Eu lembro, porque depois que tudo
acabou eu estava sentado no chão almoçando, minha mãe estava
passando e me mostrou como pegar no garfo e ficou marcado
aquele ato. Mas fico pensando o quanto foi difícil para eles saírem
da terra natal deles para viver aqui na cidade grande. Hoje eu
tenho essa reflexão, mas na época que eles vieram eu fui muito
mal para o Haroldo e a tia Fátima e fui ruim para eles durante
alguns anos. Certamente agia assim porque tinha exemplos
errados. Confesso que pensar sobre essa época causa-me um
“senso de remorso” e compaixão.

As Visitas da Eliane
Certamente mais alguém além de mim deverá falar alguma
coisa sobre a Eliane, uma das filhas da Dona Nazaré. Aliás, te-
mos de falar sobre a Eliane bem como de toda a família da dona
Nazaré com o seu Zé: Eugênio, Gorete, Fátima, Arimar, Sussu
(de cujo nome não me lembro), Eliane e Ritinha, que é especial.
De cada um da família da dona Nazaré, certamente temos
alguma história para contarmos, mas nesta parte dos meus re-
latos dedico espaço para falar sobre a Eliane. Ainda que conste
que a Fátima seja minha madrinha, contudo não havia muita
aproximação entre mim e ela. Inclusive ao falar sobre madri-
nha, eu também tinha outra madrinha por quem, de fato, eu
nutria sentimento de afilhado porque ela me adulava como tal,
chamava-se Teresa.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Mas voltemos à Eliane, não sei que tipo de adulto a Eliane


se tornou, mas quando criança era uma pessoa muito agradável,
com a qual eu gostava de estar próximo tanto quando estava
em nossa casa quanto quando estávamos na casa dela ou na
igreja.
Quando a dona Nazaré nos visitava na rua Caldas Novas,
as brincadeiras rolavam solta, havia perfeita interação entre nós,
crianças, eram momentos de extrema felicidade. Quero regis-
trar que fui eu que coloquei meleca no nariz da boneca quando
as meninas estavam todas juntas sentadas no chão do quintal
brincando com as bonecas, eu estava junto e teve um momento
que todas elas saíram para fazer alguma coisa e foi quando eu
olhei para as bonecas e achei que ia ser legal botar meleca no
nariz de uma das bonecas. Quando retornaram ficaram muito
irritadas e colocaram a culpa no Jorge, ele não apanhou por isso
e eu fiquei na minha.
Na igreja católica de Éden a Eliane era meio líder, inclusive
houve uma situação, uma atividade que envolvia diversas apre-
sentações. Naquela época a igreja católica tinha no salão um palco
muito bem estruturado e facilitava bastante as apresentações.
Para falar sobre isso eu darei um salto até 1981, quando um
grupo da igreja chamado MEJ (movimento eucarístico jovem)
fez uma apresentação — dentre tantas apresentações realizadas
naquele dia — que parodiava uma personagem do Chico Anysio
chamado painho, que era um pai de santo. Na apresentação a
Eliane interpretava o painho e o público morria de tanto rir, a
gente olhava de cima do palco e via o povo gargalhando. Nes-
sa apresentação, eu participei, escolhido pela Eliane, então fiz
uma ponta quando fui o “namorado” do painho, a pessoa com
quem o Chico terminava o quadro levando um namorado para a
“chimbunguia”. Foi muito engraçado, o auditório se esvaiu de rir!

As Viagens do Pai para o Ceará


Era muito comum na década de 70 o pai viajar para o Ceará
para rever a família. Nessas viagens sempre ia sozinho, minha
mãe só conseguiu ir em duas oportunidades, em 1978 com o Ivo

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e em 1986 novamente com o Ivo, nas duas oportunidades o pai


também esteve presente na viagem.
Lembro-me de que em uma dessas viagens, ao retornar,
ele trouxe quantidade enorme de camarões e farinha de trigo,
farinha de goma (teve até uma situação em que estávamos todos
na sala e o Valdo foi sozinho na cozinha, encheu a boca de fari-
nha de goma e foi para a sala com a boca lotada daquela farinha
cheia de fermento) e outras iguarias, aliás, camarões ele trouxe
em duas oportunidades e em grande quantidade.

Campanhas Eleitorais
Uma lembrança muito entediante eram as campanhas
eleitorais na época da ditadura militar, como se sabe, como a
história mostra havia apenas dois partidos: Arena e MDB. Na
campanha na TV os candidatos não falavam e apenas aparecia
uma foto com o nome da pessoa, um locutor apresentava os
nomes e um fundo instrumental geralmente com um clássico
na música brasileira como Aquarela Brasileira ou obra de Carlos
Gomes. Na rua a campanha eleitoral era como nos dias de hoje,
carros nas ruas e muitos santinhos.
A título de informação, essa modalidade de campanha
eleitoral perdurou até 1982, sendo que em 82 participaram outros
partidos (PDS, PMDB, PTB, PDT e PT) e o voto era vinculado,
isto é, se votasse no governador de um partido, teria de votar em
todos os candidatos do mesmo partido. Lembrando: não havia
eleição para presidente, sob a justificativa de que o povo não
sabia votar. Era o tacão da ditadura, governo Geisel.

Mobral
Movimento Brasileiro de Alfabetização, esse era o nome
que se dava ao programa de alfabetização no governo Geisel
para adultos e crianças, nada mais era que um arremedo de
alfabetização que apenas criava “alfabetizados funcionais”.
As aulas aconteciam próximo da casa onde morávamos,
era um local improvisado no fundo da casa da professora, Dona

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Lourdinha. Antes já tínhamos aprendido o alfabeto e tabuada


que nos foram ensinados por nossa mãe.
No Mobral tínhamos aulas todos os dias, tínhamos apostilas.
Estudávamos eu, o Jorge e o Haroldo, no caso o Haroldo tinha
um tipo de estudo mais avançado, por causa da idade.
No Mobral eu gostava de estudar, não gostava da hora da
entrada e da saída por causa de um cachorro chamado Fabrício,
que ficava preso na coleira, mas o limite da coleira permitia que
ele latisse bem perto de nós e aquilo era um suplício diário. No
final nós já estávamos nos acostumando com o vira-lata.
Como disse, houve um ensino anterior ao Mobral e foi
realizado pela nossa mãe: alfabeto, vogais, consoantes, famí-
lias silábicas. O Jorge tinha mais dificuldade para aprender e
por isso apanhava mais porque a nossa mãe ensinava batendo,
principalmente quando ensinava tabuada, no caso da tabuada,
apanhávamos juntos.

Igreja Católica. Paróquia Nossa Senhora das Graças


Esta igreja faz parte importante de nossas reminiscências,
porquanto foi cenário de muitos acontecimentos, uma vez que
foi nessa igreja que muitos de nós fomos batizados, crismados e
casados. Além disso, era um lugar comum para nossa família,
onde fomos catequizados.
Para falar sobre catecismo, obrigatoriamente temos de
falar da figura do sr. Paulo, havia outros, sr. Gomercindo era
um exemplo, vendia material escolar e frequentava nossa casa,
contudo sr. Paulo era uma figura de retórica (Gilberto Gil que
usa esta expressão). Seu Paulo nos catequizava com severa disci-
plina, frequentava nossa casa, era emblemático. Seu Paulo dava
aula para turmas gigantes, 30, 50 alunos ou mais, sem exageros.
Minha primeira comunhão aconteceu em 1981, ainda que
eu tivesse iniciado muito cedo, possivelmente em 1976 ou antes
(sobre esse assunto, eu me lembro de quando pedi para minha
mãe me levar para a igreja também: foi em um domingo quando
olhamos por cima do muro e todos meus irmãos estavam voltan-

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do da missa das 9 da manhã. Pedi pra ir e depois me arrependi


porque não podíamos faltar). Voltando à primeira comunhão,
aconteceram mudanças na igreja e modificaram a metodologia
de ensino, dividiram em períodos e eu fiquei limitado por causa
da idade. Inclusive no primeiro período eu fui aluno mais do
que exemplar, mas não por meu mérito, é que a Vaninha era
catequista do primeiro período na parte da manhã e eu era
do mesmo período que ela dava aula e minha aula era à tarde
e ela dava a cola da aula e eu respondia tudo, os coleguinhas
ficavam maravilhados, mas no ano seguinte a Vânia continuou
dando aula para o primeiro período e eu passei para o período
seguinte. Foi um desastre! Minha catequista chamava-se Selma
e ficou conosco nos dois períodos.

1976 — O Último Natal na Rua Caldas Novas

“mil, novecentos e setenta e seis,


Tanto tempo faz que ele morreu
O mundo se modificou
Mas ninguém jamais o esqueceu…”
(Antônio Marcos – o cantor)

Em 76 passamos o último Natal na casa da rua Caldas


Novas, para mim a última semana foi um misto de expectativa
e melancolia, uma vez que todos nós gostávamos muito da casa.
Na minha compreensão de criança, o que provocou a mudança
foi porque o proprietário da casa permitiu que algumas pessoas
fossem visitar o imóvel que pretendiam alugar e o fez quando
ainda estávamos morando na casa, quando o meu pai soube ele
deu aquele show, habitual ataque de pelanca, tinha até razão…
mas mudar por causa disso?! Claro que não foi!
Então aconteceu o último Natal, eu não gostei porque eu
não conseguia comer as coisas da ceia como eu queria. Após o
Natal, durante a última semana do ano iniciamos a mudança
para a rua Anápolis, levamos muitas coisas nas mãos, levamos

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inclusive os dois patos pretos que o pai estava criando e que seria
o cardápio da festa na comemoração do ano novo, que aconteceu
no endereço novo. Os patos ficaram no quartinho, um cômodo no
lado externo da casa, onde em 78 seria o local onde brincaríamos
de escola, cujo nome era “Trepei na goiabeira”, mais adiante falo
sobre isto. Mudamos para nova casa e inicia-se outro episódio!

Rua Anápolis, nº 214, 1976 — Última Semana do Ano!


Nossa mãe estava na maternidade e por isso os preparativos
para o ano novo ficaram a cargo da Vera. O pai executou os patos
e a passagem de ano seria com esse cardápio: pato com macarrão.
Para fazer as comidas, tivemos a ajuda da Dona Rita,
nossa vizinha na Caldas Novas, pessoa para a qual nossa mãe
fazia costuras e para cada uma de suas filhas e suas roupas nós
servíamos de manequim: eu servia de manequim da Inês (eu
odiava aquilo) e o Valdo manequim da Lúcia (ele odiava mais
do que eu porque além de manequim o Valdo estava prometido
para casar com a Lúcia).
Mas a Dona Rita ajudou a Vera e a nossa vizinha estava
mandando pra caramba naquele dia 31 de dezembro de 1976. Eu
tive de ir várias vezes na casa da dona Rita para buscar bacias
ou ingredientes que estavam faltando para a preparação das
comidas.
Enfim a comida ficou pronta, aliás, muito saborosa, demo-
rou pra caramba pra ficar pronta, mas ficou muito gostosa, eu
comi duas vezes dois pratos cheios que a Vera propositalmente
preparou para mim porque a concorrência estava grande, uma
vez que a família da Dona Rita também estava presente na co-
memoração. Lembro-me de que eu comi, estava deitado no chão
do quintal, na frente da porta de entrada da casa (a casa tinha
entrada única) junto com as outras crianças, lembro-me de que
eu estava deitado olhando para o céu… estava muito estrelado…
depois eu dormi… acordei em 1 de janeiro de 77, o Wilson tinha
nascido, agora éramos dez filhos, 5 meninas e 5 meninos, Wilson
chegou pra empatar a parada, o time estava formado, mas ainda
faltava o goleiro e o ponta-esquerda. Em alguns dias chegou o

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Wilson e com ele tudo de novo e eu estava habituado: talco pom


pom, alfinete, fraldas no varal…
Os primeiros meses na nova casa foram acompanhados
por mais um bebê, sendo que nessa casa muitas coisas eram
desfavoráveis, a telha era de amianto, portanto a casa era extre-
mamente quente, lembro-me de que eu andava sempre suado,
aliás todos nós sofríamos com o suor, eu tinha muitas brotoejas.
A cozinha era um forno, dormíamos apinhados nos quartos e
na sala, muitas baratas, a presença de camundongos, era comum
ver os bichinhos passeando pelos caibros do telhado. O barulho
da chuva no telhado de amianto era algo inédito. A casa anterior
era bonita, a casa nova era feia, “Narciso achou feio o que não era
espelho e a mente apavorou o que ainda não era mesmo velho,
nada do que era antes.”

1977 — Um Ano Feliz!


Se alguém me pergunta qual foi o melhor ano de minha
vida, eu digo que foi em 1977, posso até avaliar pelo viés místico,
cabalístico, mas prefiro avaliar pelo viés onírico (dos sonhos),
por causa da pujança infantil que aquele ano representou: as
músicas de Sidney Magal, As frenéticas, Martinho da Vila e seu
sonho sonhado (versos de Drummond musicados), a música
Sonhos, de Peninha, ano em que morreu Charlie Chaplin, ano
que começou o Sítio do Picapau Amarelo, a última história do
ano foi o pássaro Roca e ficamos muito interessados. Falando
em Sítio, na casa da rua Anápolis sempre tivemos criação de
bichos: gatos, cachorros e muitas galinhas e frangos nos quais
colocávamos nomes e cada um tinha o seu, eles também que-
bravam o galho indo parar nos pratos. Era divertido lidar com
o cotidiano das galinhas.
Setenta e sete foi o ano que comecei a estudar, eu Jorge
e Tânia cursávamos a 1ª série juntos no mesmo ano por causa
de alguns problemas e eu não sei por qual razão eles estavam
atrasados nos estudos.
No primeiro dia de aula fomos juntos para a escola, o
grupo Alfredo Maurício Brum, mais conhecido como “Grupo”.

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Estávamos todos no quintal arrumados, era moda colocar a


calça por dentro das meias para ficar como se fossem botas,
todos fizeram isso e eu fiz também. Ao chegar à escola, eu não
entendia como funcionavam as coisas e entrei em qualquer
fila quando chamaram meu nome, entrei na fila e na sala da 4ª
série, quando fui descoberto os outros alunos curtiram muito
com minha cara.

1978
Em 1978 tivemos a chegada do Cristiano, aquele que nós
chamávamos de “raspa de tacho”, porque teve uma novela em
que chamavam de raspa de tacho a criança que seria o último
filho de um casal de certa idade, entretanto o Cristiano não foi o
último filho, este título ficou para o Daniel. Cristiano nasceu no
mesmo ano que a mãe esteve visitando o Ceará (não lembro se o
pai foi junto). Certamente o Ivo não gostava daquela situação de
o pai sempre visitar seus familiares e nunca levava nossa mãe,
não sei afirmar se era esse o argumento que o fez levar sua irmã,
mas certamente considerava chata aquela situação. Foi também
nessa época que iniciou o envolvimento do Ivo com a família da
augusta com quem ele se casou alguns anos depois.

1979
Neste ano fazia muito sucesso a música Não chore mais uma
versão feita pelo Gilberto Gil, além da música Geni e o Zepelim
e outras do mesmo autor. Também foi o ano da novela Cabocla,
inclusive o Cristiano gostava muito da música tema da novela,
até cantou na praça de Éden, cantou pra quem quisesse ouvir.
Lembro-me de que em 1979 havia uma previsão de fim do
mundo, uma profecia que prometia um dilúvio. No mesmo ano
caiu os pedaços do satélite Skylab, o que gerou enorme expecta-
tiva no mundo todo, se bem me lembro caiu um pedaço no mar
de Santa Catarina. No mesmo ano eu e o Jorge vendemos picolé
na rua, principalmente na entrada do colégio Fluminense. Na
escola, 78 e 79 foram anos de muita confusão, o Jorge se metia
em brigas e sobrava para mim e para a Tânia.

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1980
Ano da morte de Lennon. E também teve as Olimpíadas
de Moscou, a primeira com boicote porque os Estados Unidos
e aliados não quiseram participar porque era na antiga União
Soviética (URSS). O Brasil ficou neutro, era briga de cachorro
grande. O Brasil em pleno regime militar não foi complacente
com os americanos, não aceitou o boicote e participou dos jogos.
Sob inspiração das Olimpíadas, teve um domingo, na parte
da tarde, em que o Vânio inventou uma brincadeira querendo
imitar a competição de salto com vara. Ao que parece, segundo
explicaram, as pessoas corriam com a vara e ele segurava a vara
de bambu para dar altura e quando eu fui tentar eu caí, ou não
me posicionei para descer em pé ou ele não aguentou não equi-
librou… não sei afirmar porque na queda eu bati a cabeça e não
me lembro do que aconteceu, sei que no dia seguinte, olhando o
bambu no chão, me vinham algumas impressões, mas lembrar
do que aconteceu realmente, até hoje não me lembro. Naquele
domingo após o ocorrido eu dormi, acordei no final da tarde
assustado, porque queria ir à igreja, pois naquele mesmo dia o
bispo da diocese, dom Adriano Hipólito, visitaria Éden. Acordei
com as costas raladas e muita dor na cabeça, perguntei o que tinha
acontecido e foi quando soube o que ocorreu, perdi a memória
sobre o acidente na brincadeira sem graça, brincadeira que me
rendeu dor de cabeça durante meses e fiquei cuspindo sangue
durante alguns dias. Todo mundo acha essa história engraçada,
menos eu.

“Vem vamos embora que esperar não é saber…”


Em 1980 aconteceu o atentado na Catedral de Nova Iguaçu,
grupos paramilitares que não aceitavam o fim do regime militar
puseram uma bomba próximo ao altar da catedral, também nesse
período sequestraram Dom Adriano, espancaram e o deixaram
nu, pintado de vermelho, na Rodovia Dutra, em episódio ante-
rior colocaram uma bomba debaixo do seu carro na porta da
CNBB. Dom Adriano era contra a ditadura militar e denunciava
o esquadrão da morte, sabe-se que muitos torturadores também

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

faziam parte desse grupo armado. É até engraçado hoje em dia


as pessoas querendo regime militar e achando interessante as
milícias. E o bonde da história continua seguindo!
Diante desses ocorridos, a igreja, mesmo com medo, se
mobilizava, e eu com nove anos participava de uma passeata
cantando Pra não dizer que eu não falei das flores, de Geraldo Van-
dré. Ali nasceu o esquerdista que sou até hoje, sempre contra a
injustiça e a covardia.
Também foi nessa época que iniciamos a prática de ajudar
em casa, aliás, eu passei a fazer o que todos já faziam: varrer
quintal, encher garrafas d’água, molhar as plantas; e para isto
existia uma escala que a Vera organizou. Todos nós sempre ti-
vemos afazeres, mas a partir desse ano ficou mais organizado.
Em 81 a Vera foi morar com o Orlando e meu último ano
no Maurício Brum foi um ano bacana, desses anos que a gente
chama de anos dourados, eu era 100% dedicado aos estudos.
Gostei muito dos Natais dos anos 80, 81 e 82, foram marcantes.
1982, ano da copa e da guerra da Malvinas, inclusive nes-
sa época o Vânio recebeu um telegrama escrito em espanhol,
o convidando para participar da guerra, proposta obviamente
rejeitada pela mãe. Se esse telegrama tivesse sido guardado seria
um interessante documento para este livro.
Em 82, fui estudar no Castro Alves e neste mesmo ano
nasceu o Daniel, minha mãe sentia muita vergonha de ter tido
mais um filho, meu pai era muito zoado na rua porque tinha
mais de 50 anos e ele gostava da zoação, fazia cara de safado.
Quem escolheu o nome do Daniel foi a Vanda, a inspiração veio
de uma série que assistíamos à tarde, chamava-se Os grandes heróis
da Bíblia, mas também porque ela conhecia a história porque eu
lembro que ela ficava contando.
Foi em 82 que criamos o time de futebol, o Anápolis. O
designer da camisa foi ideia minha, inspirado no filme Fuga para
Vitória, estrelado por Pelé, Stallone e outros. No filme as listras
verticais eram azuis e vermelhas, no Anápolis eram apenas azuis,
duas listras verticais azuis no lado esquerdo com um círculo na

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altura do peito escrito Anápolis. A mãe deu dinheiro pra comprar


a tinta — que era azul-celeste — e o Vânio as pintou. Até hoje
o Anápolis é lembrado por muitos dos meninos daquela época.
1983 “Oh quem vem lá é o grão-vizir… ninguém sabe se
ele vai zangar ou rir, quando o califa vai sair, quando o cali-
fa vai dormir quem manda em tudo é o grão-vizir…”, quem
lembra?!…
Em 83 nosso pai ficou desempregado, demitido da FIAT, e
ele tinha mais de 50 anos. Naquela altura nossos pais já tinham
quitado a compra da casa, no último dia que a mãe pagou, ela
voltou comentando, estava muito aliviada, não comentou sorrindo,
falou com rosto de quem trabalhou muito para conseguir aquilo.
Foi em 83 que a mãe passou a lavar roupa para conseguir
algum dinheiro, embora ela já fizesse isso em 80, 81 para Goreth,
no entanto naquele ano a necessidade aumentou muito. Para
não ficar parado o pai aceitou trabalhar na garagem da empresa
de ônibus Aliança, pintando ônibus, mas o dinheiro era bem
pouquinho. Teve uma vez que ele estava no horário de almoço e
estava comendo o que tinha para comer, era caldo de feijão com
farinha, igual uma sopa rala. Ele estava almoçando na mesa da
cozinha, cheguei perto e ele estava chorando.

“guerreiros são pessoas


são fortes, são frágeis
guerreiros são meninos
no fundo do peito” (Fagner)

Posso definir 83 como um ano de muita fome, chegamos


a ficar uma semana praticamente sem realizar as refeições ou
comendo de forma muito precária. Proteína animal passou a ser
coisa muito rara. Eu lembrava de anos anteriores, quando nossa
mãe reclamava porque jogávamos comida no lixo, lembro-me
de que era uma pilha de pratos com comida que ia para o lixo.
Certa vez, quando fui colocar o prato na pia, ouvi minha mãe
falando: “Vocês jogam comida no lixo, enquanto na minha terra

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

as pessoas passam carestia…”; eu não imaginava que ia aprender


o significado dessa palavra de forma tão doída, eu ia para escola
sem tomar café e sentia muita dor de cabeça, por causa disso eu
guardava comigo uma embalagem de café para ficar cheirando
escondido e isso era um placebo para a dor de cabeça.
Nessa época tudo em nossa casa era racionado: biscoitos
eram contados e divididos irmãmente, tudo era contado de forma
democrática e às vezes proporcional. Foi nessa época que o Jorge
passou a fazer carretos no Real, eu admirava muito a iniciativa
do Jorge, eu fiz um ou dois carretos, mas eu achava muito pesa-
do para mim. O Jorge ralou tanto que ficou doente, tudo que ele
comia, ele cuspia. Foi a partir dessa época ele começou a vender
jornal, ele trabalhava todo dia, eu trabalhava apenas nas férias
semestrais e assim trabalhei em 83, 84 e no verão de 85.
Em 84 as coisas melhoraram um pouco, mas ainda havia
dificuldades. Em um desses anos, 83, 84, eu me lembro de que
eu achei na rua — em um dia de chuva fina — um anel e levei
pra casa, era de ouro e rendeu algum dinheiro e por causa dele
pudemos comer bem por alguns dias.
Nesse ano é que começou a aparecer o talento de Ayrton
Senna e todo o país começou a se empolgar com as corridas de
Fórmula 1, nascia um ídolo que marcaria uma geração, a geração
traumatizada pela derrota de 82, logicamente estou falando de
mim, Valdo, Jorge e Tânia.
Começou 1985 e lá fomos nós vender jornal em janeiro, eu
vendi em janeiro e no frio de junho, acho que foi nessa época
que o Valdo encarou essa de vender jornais, as pessoas falavam
acerca daquele garoto muito pequeno vendendo jornal, ele mal
aguentava o maço de jornal em dia de domingo, aliás nem eu
aguentava direito, era o maior sofrimento. Na primeira vez que
ele vendeu eu fui com ele, o Xerém e o seu Armando (Xerém era
o responsável da banca de jornal que ficava na praça de Éden
e sr. Armando era o brucutu, dono da banca); seu Armando só
aparecia aos domingos. O primeiro dia do Valdo foi em um do-
mingo, fomos de ônibus por causa do peso, lembro-me de que
ele tinha bastante dificuldade… fiquei com ele naquele dia, um

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

domingo de muito sol, vendemos jornal na padaria queimada,


onde passou a ser o ponto dele.
Vender jornal era muito cansativo porque tínhamos de
acordar de madrugada de segunda a segunda, eu sentia muita
fome, muitas vezes não aguentava e tirava dinheiro da venda
dos jornais para comer alguma coisa. Mas esse trabalho era
bom por causa das notícias, lia tudo, principalmente esporte,
depois o restante, a época o presidente dos Estados Unidos era
o Ronald Reagan e a moda era inventar mísseis de longo alcance
e já se falava de guerra espacial, uso de satélites para impedir
a chegada de mísseis intercontinentais. Acompanhei também o
sofrimento do Tancredo Neves. Concomitante a isso, já estava
me preparando para entrar para a FEEM, as muitas reuniões que
a minha mãe tinha de participar até eu iniciar o curso e depois
ser encaminhado para o trabalho.
Foi nesse ano que, numa tarde, quando nossa mãe estava
na reunião da FEEM, eu Jorge e Valdo estávamos jogando bola
no quintal, o Valdo driblou o Jorge e o Jorge de maldade deu
de tronco no Valdo e aplicou o gesto pretendendo derrubá-lo e
conseguiu, e na queda o Valdo deslocou o braço! Era um desses
dias nublados, cinzentos. Ficamos desesperados, peguei uma
pequena tábua e tentei apoiar o braço dele. Resolvi levá-lo para
onde a mãe estava em reunião da FEEM, a FEEM ficava em um
prédio da Rotary Clube próximo ao social Clube em São João
de Meriti. Levei o Valdo pra lá, pedi pra chamar a minha mãe e
ficamos esperando na calçada do portão, quando ela chegou e
viu o Valdo com o braço quebrado ela não pensou duas vezes e
deu uma sessão de tapas nele, eu achei que ia apanhar também,
mas o privilégio foi todo do Valdo, acho até que ele esqueceu que
estava com o braço quebrado de tanto que apanhou. Ela voltou
para reunião e avisou que tinha de ir embora, pegou o Valdo e
foi para o P.U. de São Mateus (onde hoje é o SASE). Eu voltei a
pé pra casa porque só tinha passagem para ida. No caminho eu
ficava pensando, imaginava que o Jorge estaria dominado pelo
remorso e sofrendo por causa da atitude, ao chegar em casa fui
procurar o algoz, quando vi o safado dormindo, “o homem mal
dorme o sono dos justos”.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Antes de falar do meu primeiro trabalho por meio do pro-


grama patrulheiro da FEEM, quero lembrar de uma atividade
interessante desenvolvida pela igreja católica, uma peça de teatro
chamada Missa leiga, cujos ensaios aconteciam à noite e nós
acompanhávamos sempre. Missa Leiga fora uma peça de tea-
tro da década de 70 proibida pela censura militar. Os jovens da
igreja católica da paróquia de São Sebastião ensaiaram durante
semanas a peça teatral no salão da igreja de Nossa Senhora das
Graças. Era uma peça muito interessante, muito questionadora
das mazelas da sociedade, carregada de conteúdo, coadunava
espiritualidade com temática social. Os ensaios, as apresentações,
foram marcantes, nos proporcionado uma experiência religiosa
e cultural muito divertida e enriquecedora.
Voltando ao assunto trabalho, os primeiros meses de 85
foram de preparação para ingressar nos estágios, esse período
coincidiu com a via crucis do Tancredo Neves no hospital, su-
plício que culminou com a morte no dia 21 de abril.
Terminei a preparação em maio e fui encaminhado para
trabalhar em uma das lojas do Sendas supermercados. Fiquei na
filial da praça da matriz: o primeiro dia foi sofrível, ficamos (eu e
os outros garotos) a manhã toda aguardando encaminhamento
que só saiu depois de uma hora da tarde e todos nós estávamos
virados de fome. Na verdade, fiquei bastante decepcionado por-
que eu tive bom desempenho nas aulas e, segundo a promessa
da assistente social, quem obtivesse nota alta seria encaminhado
para trabalhar em bancos (caixa econômica ou BANERJ), mas
a assistente social sra. Ana Jussara, disse que por enquanto eu
ficaria no supermercado para não ficar sem trabalhar. Fomos
encaminhados para o mercado e no mesmo dia começamos o
serviço, eu estava com muita fome, estava apenas com o café da
manhã no estômago e quando chegou a hora do lanche eu comi
oito pães de 50g com margarina e café, lembro-me como se fosse
hoje, a fome era imensa, cotidianamente eu comia 1 pedaço de
pão, mas naquele dia comi oito. Aliás, no quesito comilança, o
Sendas proporcionou ao meu estômago o estado de saciado em
toda plenitude: nos almoços eu exagerava, comia muito mesmo,
não tinha tempo ruim, afinal de contas eu tinha 15 anos e a fome

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

era de adolescente. Aquele trabalho era sacrificante porque eu


saía da escola às 12h00, corria em casa — eu estudava no colégio
Castro Alves, 5 longos quarteirões distantes de casa —, largava
o material escolar, pegava o ônibus e chegava 12h40 ou 12h45,
meu expediente iniciava às 12h00, mesma hora que terminavam
as aulas e não tinha como negociar outro horário, porque era o
último horário, de 12h00 às 20h00, mas saíamos às 21h00, tudo
isso para ganhar 75% do salário mínimo, os outros 25% ficavam
numa caderneta de poupança que eu só poderia sacar quando
fizesse 18 anos. Eu nem ficava com o dinheiro, entregava tudo
para minha mãe e ela ia me dando o dinheiro da passagem
(naquela época não existia vale-transporte, que foi inventado
alguns anos depois pelo governo Sarney), ficava muito feliz em
ajudar a minha casa, conforme um dia havia desejado.
Fiquei no Sendas até fevereiro de 1986, quando aquela
filial fechou para obras e eu fui encaminhado para fábrica de
máquinas de escrever, a Hamington. Fui o único do Sendas a
ser enviado para Hamington, lá trabalhei até 1987, na linha de
produção montando cartuchos de máquina de escrever eletrônica,
24 cartuchos por hora; pegava às 07h00 e saía às 17h00 (nesta
fase, quando acordava bem cedo, nos marcou ter de ouvir a rá-
dio relógio e a programação da madrugada e uma musiquinha
que cantava todo dia “as andorinhas voltaram…”), eu estudava
à noite no colégio Bandeirantes junto com a Vanda, o salário
da Hamington pagava as nossas mensalidades, naquele ano eu
reprovei nos estudos… eu não aguentei o tranco. Naquele ano,
durante muitos meses todos estavam sem emprego em casa,
inclusive o pai, minha mãe falou pra mim que o dinheiro que
eu ganhava era o dinheiro que estava sustentando a casa, mas
o comentário para mim não teve significado porque eu não li-
gava pra dinheiro, gostava mesmo é de ficar admirado com as
letras das músicas do Chico Buarque, tanto é que foi nesse anos
que eu comprei o primeiro disco dele, um disco comemorativo
de 20 anos, no disco tinha uma dedicatória do jornalista Sérgio
Cabral (o pai).
Na Hamington a alimentação era bem substancial, por isso
eu não comia os pães, eu guardava, e também não comia os doces

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

da sobremesa porque colocava dentro dos pães, fazia isso porque


pensava nos meninos, Valdo, Wilson, Cristiano e a Cristina, me
incomodava saber que eu estava me alimentando bem e eles não.
Muito inocente eu! Não ligava para dinheiro, gostava das letras
do Chico Buarque, conheci um colega cujo nome não lembro,
mas o chamávamos de Nem e este gostava de Caetano Veloso e
junto com um outro colega chamado Sandro ficava cantarolando
Vaca profana, o Nem disse que o Caetano não fazia música com
refrão, segundo ele o Caetano falou que refrões são perda de
tempo, o tempo que se fica repetindo refrões podia dizer outras
coisas, então comecei a gostar do Caetano também, 1986 foi o
ano do programa mensal Chico & Caetano, o que foi sopa no
mel, consolidou a lógica: 16 anos, formação da personalidade
+ Chico Buarque (que eu curtia desde criança: Geni e Zepelim,
olhos nos olhos, o que será que será…) + Caetano Veloso e seu viés
filosófico = ao que eu sou hoje. Sem contar a política, reprovei
na escola também porque ficava querendo ver Brizola e Darcy
Ribeiro nos comícios e as histórias da década de 60 e 70, enfim,
estava dominado pelo idealismo.
Também foi em 1986 que passou por aqui no planeta o
cometa Halley, cometa que passava na órbita da Terra de 70 em
70 anos. Acontecimento que me motivou a comprar uma luneta,
antes eu já tinha um binóculo. Quanto ao cometa ninguém sabe
ninguém viu, lembro-me de que nos dias em que ficaria visível
foram dias nublados, mas apesar do tempo não estar propício,
o fato é que a passagem do cometa não atendeu às expectativas
no mundo inteiro, já que o Halley, na antiguidade, quando pas-
sava pela Terra assombrava o mundo, havia relatos de que no
passado praticamente passava muito perto mesmo. Mas foi um
acontecimento que mobilizou o mundo todo.
Nesse ano aconteceu a eleição para Assembleia Nacional
Constituinte e eu acompanhei bem esse período, pois já estava
engajado na militância política. Antes teve a copa do México,
aquela que o Zico perdeu o pênalti. Meses antes da copa tive-
ram os amistosos e um desses aconteceu com a presença do
Zé Maria e sua família lá em casa, pois já estavam da viagem
marcada para o Pará e já estavam sem casa para morar, porque

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

o Zé Maria era zelador de prédio na zona sul do Rio e tinham


entregado o imóvel. Eles viajaram e infelizmente nunca mais
tivemos notícias, existe grande possibilidade de o Zé Maria e
a Maria não estarem vivos. Resta saber como estão o Paulinho
e os outros, de cujos nomes não me lembro, lembro-me apenas
da Daniele, mas o casal possuía dois filhos do Zé Maria e mais
dois enteados.
Também foi nesse ano, durante a copa de 86, que eu come-
cei a perder a audição do ouvido direito, foi um processo muito
doloroso antes de perder 80% da audição. Eu assisti àquele jogo
em que o Maradona driblou meio time e fez o gol, mas nem me
entusiasmei porque estava sentindo muita dor de ouvido.
Ainda falando sobre futebol, foi em 86 que eu comprei
uma chuteira para o Valdo, comprei em Madureira, eu era
convencido de que o Valdo era um craque nato, de fato ele é
e sempre será, é um dom que Deus lhe deu. Umas das lem-
branças que temos do Valdo na Caldas Novas era de um bebê
que mal andava, mas vivia agarrado com uma bola, com cinco
anos ele já mostrava as habilidades e a proeza de chutar com
as duas pernas, as facilidades para os dribles e os elogios dos
adultos. Eu processava as informações e na hora das peladas
no quintal eu e o Jorge enfiávamos a porrada nele. Após tê-lo
presenteado com as chuteiras eu o levei ao campo do Botafogo,
quando ele treinava em Marechal Hermes. Eu perguntei aos
colegas da Hamington como fazia para chegar lá e fomos ao
clube em um sábado. Chegando lá, assistimos a um pouco do
treinamento, para quem acompanha futebol saberá de quem
estou falando: estavam no treino o goleiro Paulo Sérgio, os
meio-campo alemão e Berg e o lateral Josimar. Quando che-
gamos no estádio eu falei para o Valdo: “Eu trouxe você aqui,
agora se você quer saber como faz pra treinar aqui você vai
lá nos caras e pergunta.” Eu falei isso e não botei muita fé e
fiquei assistindo ao treino quando daqui a pouco vem o Valdo
com um papel na mão dizendo onde e quando ele tinha de se
apresentar. Fiquei surpreso porque era apenas um teste e eu
teria de me inteirar, mas deu tudo certo e saímos de lá com a
informação. Pensando nos dias de hoje concluo que a mãe era

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muito louca, deixar um filho de dezesseis anos ir para um lugar


que não conhece com a responsabilidade de levar outro menor
de 12 anos pra resolver um assunto de adulto! Deus protege!
Era outra época! Como essa história do Valdo no Botafogo são
detalhes que o Valdo poderia contar.

1987
Neste ano eu saí da Hamington e fui para o Banerj.
Eu pedi pra sair da Hamington e fui encaminhado para o
Banerj. Eu fiz minha mãe reivindicar uma promessa da assis-
tente social, porque no curso de formação eu tinha tido bom
desempenho.
O fato é que acabei conseguindo o encaminhamento. A
minha ida para o BANERJ foi, para mim, aquilo que o Caetano
cantava “É chegada a hora da reeducação de alguém, do Pai,
do Filho, do Espírito Santo amém”. Fui trabalhar no centro da
cidade, na sede do BANERJ, na gerência de câmbio, lugar onde
conheci muita gente interessante, conversas que estavam muito
para além de Éden, São João, zona norte, que eram os meios onde
eu circulava. Lembrando novamente Caetano, foram “outras
palavras”.
A ideia era sempre a mesma, ajudar a casa, ajudar a meus
pais e nesse sentido ajudei bastante porque o BANERJ oferecia
muitos benefícios para os estagiários. Por coincidência, minha
esposa Ana Cláudia também foi estagiária FEEM no BANERJ.
Nesse banco eu aprendi e fui motivado e quis ser um funcio-
nário público.
Eu gostava do pessoal do banco e eles gostavam de mim. Eu
acho que eles achavam engraçado o fato de eu ser um militante
político. Chamavam-me de pivete subversivo.
Outra curiosidade sobre essa época foi o fato de eu ter
colocado uma lâmpada no quintal lá de casa, o que nos per-
mitiu jogar bola à noite e também fizemos pela primeira vez a
comemoração do natal no lado de fora da casa; a partir daquele
ano todos natais aconteceram no quintal. No inverno desse ano,

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quando o pai estava desempregado e ficava bastante em casa, ele


fazia uma pequena fogueira no quintal onde colocava uma velha
panela esquentando água para quem ia tomar banho, lembro
que eu chegava da escola à noite e tinha uma panela com água
esquentando na brasa, quebrava o galho no frio.
Em 1987 eu entrei para o PT de São João e conheci um grande
amigo sr. Valdevido, eu tinha 17 anos e ele 51, mas eu gostava
muito de conversar com ele, aliás naquela época eu preferia as
pessoas com mais idade para lidar.
O ano seguinte começou com muito calor e a tradicional
falta d’água, lembro que em um domingo à noite, provavelmente
27 de fevereiro, nós pegamos água no poço de uma vizinha na
mesma rua que moramos, no dia 28 comecei a trabalhar numa
agência de viagem, foi meu primeiro emprego de carteira assina-
da, na verdade quem assinou minha carteira foi uma instituição
beneficente chamada São Martinho, na Lapa, instituição que Ana
Cláudia também conheceu.
Foi uma experiência muito interessante, porque tive contato
com meninos e meninas que moravam nas ruas, quando conheci
a realidade dura deles, o que reafirmou minhas posições ideo-
lógicas a favor daqueles que são iguais a mim e em condições
piores do que a minha. Não é apenas uma visão de solidariedade,
mais do que isso era e é uma postura a favor da justiça.
Nesse mesmo ano mudaram-se para o quintal o Vânio e
a Rosinha e passaram a morar onde foi durante muitos anos o
valoroso colégio Botafogo, onde hoje moram as queridas Silvânia
e Amanda.
Naquele ano aconteceu o último natal com todos juntos,
menos o pai, porque já estava no Ceará. O amigo oculto daquele
final de ano foi do seguinte modo: os adultos tiravam o nome de
uma criança, então os adultos presentearam as crianças.
Sobre presentes de natal, lembro-me aqui de um comen-
tário do Valdo sobre os presentes de natal que ele ganhava, ele
disse que os presentes eram tão ruins que as roupas rasgavam
em poucos meses ou semanas.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

1989
Em 1989, a despeito de estar com o coração sangrando por
causa da divisão na família, eu busquei formas de esquecer o
trauma que estávamos vivendo, foi nesse ano que aconteceu a
primeira eleição pra presidente, eu entrei na campanha com for-
ça total, participei de tudo, vi de perto Barbosa Lima Sobrinho,
o Jurista Sobral Pinto (baixinho do tamanho do Jorge) e tive
o prazer e honra de ver o Cavaleiro da Esperança Luís Carlos
Prestes. A campanha do Lula foi uma das coisas mais bonitas
de que participei e da qual me orgulho. Sem medo de ser feliz!!!

1990

Neste ano o Paulo resolveu construir sua casa na parte


do terreno que o pai havia vendido para ele quando foi para
o Ceará em 1988. O Paulo já não podia continuar morando em
Engenheiro Belford e resolveu construir sua casa.
Na semana que começaram a derrubar as árvores, eu o Jorge
e o Valdo jogamos nosso último futebol, era no meio da semana e
em um dia nublado. Não foi nada combinado, mas naquela tarde
brincamos pela última vez, jogamos revezando quem ficava no
gol. Fizemos conforme fazíamos desde os primórdios, sendo que
nós três jogávamos na outra parte do quintal, nós não tínhamos
uma bola, improvisávamos ou com saco cheio de papel ou com
uma cabeça de um boneco da turma da Mônica, acho que era o
Cebolinha, aquela cabeça de boneco serviu de bola durante um
bom tempo.
Então jogamos aquele futebol melancólico, sem adrenalina,
apenas simbólico, terminamos quando começou a escurecer sob
um fino chuvisco. Em pensar que na década de 80 jogávamos
muito ali, são indeléveis os jogos sob forte chuva de verão, quanto
mais forte fosse a chuva, mais gostosa era a brincadeira em meio
aos trovões e raios.
Eu não vi quando arrancaram as árvores, eu estava traba-
lhando e quando cheguei só encontrei o vazio. Não existia mais
o pé de ameixa, amora, os dois de goiaba, tinha uma com fruto

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

desconhecido, tinha de jambo, e principalmente o pé de cajá onde


passamos nossas infâncias pendurados. A dona Joana, nossa
vizinha, disse que ela assistiu a um crime, ficou inconformada
com o fim das árvores, 89 e 90 foram anos de perdas.
Em 1990 foi meu último emprego com carteira assinada
sem ser por meio de concurso e o foi o ano da guerra contra o
Iraque, porque o Iraque invadiu o Kwait. No ano seguinte fiquei
desempregado e assim fiquei por alguns anos. Também em 1991
que aconteceu o surto da Vanda e esta história deve ser conta-
da por ela, só digo que foram dias esquisitos e eu sentia muita
compaixão por ela. Teve uma noite que acordei de madrugada
e ela estava entre a minha cama e a cama do Jorge com as mãos
próximas de nós, mas sem encostar em nós, e o Jorge em pé, ves-
tido com uma jaqueta do exército que ele tinha, com um cinto na
mão, brigando com ela e às vezes batia nela com o cinto. Muito
triste aquela cena. A casa vivia suja e suja de lama, era um entra
e sai de pessoas pra orar, gente de igrejas que eu não conhecia,
gente da macumba, gente de tudo quanto era vertente religiosa.
Era uma casa sem orientação. A Vanda foi amarrada, trancada
no quarto… no dia que ela mordeu a mão de uma senhora ela
estava com as mãos amarradas no chão do quintal. O objetivo
dela era penas um: fugir para ir para a igreja do pastor Marcos.
Um detalhe, ela ficou muitos dias sem comer, ficou duas semanas
sem se alimentar ou se alimentando muito mal. Conversando
com o sr. Valdevino, ele me disse que o padre João quis fazer
exorcismo nela, mas não deixaram. Posteriormente estive na
catedral de Duque de Caxias e tentei conversar sobre o assunto
com ele, mas senti que ele não quis dar detalhes.
Nesse mesmo ano eu fiz as viagens ao Paraguai e um
pedaço da Argentina para comprar muambas. Eram viagens
de que eu não gostava por diversos motivos, um deles era o
fato de ter pouco dinheiro para comer e no ônibus tinha de
ouvir música sertaneja durante 20 horas na ida e mais 20 horas
retornando. Odeio música sertaneja, ontem, hoje e sempre…
por favor, não confundir música sertaneja com os clássicos do
interior do Brasil.

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Em novembro de 91 foi o ano que o Orlando faleceu, uma


história trágica. A partir desse episódio a Vera foi morar lá em
casa. Antes do ocorrido com o Orlando, eles (a família completa)
ficaram morando lá em casa durante alguns meses quando o
Bruno nasceu. Voltaram a morar conosco e desta vez definitiva-
mente, ou melhor, alguns anos. Passamos dificuldade naquele
ano e no início do ano seguinte.
Em 1992 eu decidi e pedi para minha mãe para ir para o
Ceará, fiz isso por causa da baixa estima. Em alguns aspectos
foi bom, em outras coisas foi ruim. Depois que a mãe disse que
eu podia ir eu meio que me arrependi de ter pedido pra ir, mas
mesmo assim eu parti para aquilo que na minha cabeça era um
“autoexílio”.
O Jorge estava desempregado e tinha comprado uma carro-
ça de cachorro quente e eu estava empenhado naquele negócio,
mas não via muito ânimo por parte do Jorge. Semanas depois
eu fui embora.
Fui para o Ceará, estava muito melancólico, viajei à noite,
quando saí do Rio, naqueles dias, tocava nas rádios uma mú-
sica nova do Djavan e eu gostava muito dessa música porque
me fazia lembrar do Rio de Janeiro, a música a que me refiro
chama-se Outono.
Levei meu violão para o Ceará, conheci um cara muito baca-
na no ônibus e ele tocava muito violão, ele passou a viagem toda
tocando para os viajantes, eu não sabia tocar nada, só conhecia
os acordes dos hinos que aprendi nas aulas da Assembleia de
Deus, igreja do pastor Armando, pessoa séria e digna da minha
admiração até hoje.
Quando cheguei no Ceará, acho que era um domingo à
noite, lembro-me de que o pai foi me buscar, o pai e mais alguém
de quem eu não me lembro. Sei que a minha mãe estava muito
feliz por eu estar ali, menos eu.
Rever os meninos foi muito estranho porque eles estavam
muito diferentes, Wilson comprido com sotaque carregadíssimo,
Daniel estava totalmente cearense. Daniel era o mais engraçado,

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

estava usando uma camisa lilás de botão e falava com voz de


bebê. A Tânia não deu bola pra mim, o pai ficou na dele.
A casa da tia Teonísia surpreendeu pela aparência, eu es-
perava uma casa feia, mas até que era bonitinha, tinha varanda
com grades, gramado na frente, jardim, era um espaço bacaninha
porque eu esperava coisa bem pior. Naqueles primeiros dias
chovia muito, foi quando eu aprendi o que era inverno no Nor-
deste, porque os períodos de chuva no Nordeste acontecem no
outono e por isso eles chamam de inverno, não adianta discutir
com eles e querer dar aula porque era inverno e fim de papo.

Em Messejana: Tia Rosalina e seu neto (não nasceu quando moramos com
elas), Nalbia, Tia Teonísia e Liduína

Como disse, eu estava muito melancólico e considerava uma


grande bobagem ter ido para o Ceará, eu não gostei, “chamei de
mal gosto o que eu vi, de mal gosto o mal gosto”, eu execrava tudo.
Fiquei lá apenas um ano e dois meses com muitos conflitos com
a dona Teonísia, nossa tia. Depois que saí de lá viramos amigos
de telefone, conversamos bastante por telefone, principalmente
depois que ela teve ataque cardíaco. Era engraçado a situação
de vassalagem que a Liduína tinha em relação a ela. Minha mãe
tinha o maior cuidado ao lidar com ela porque morava de favor.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Ver a minha mãe morando de favor era algo que me deixava in-
conformado. Para minha família era reservado o lado dos fundos
da casa. Alguém dormia nos fundos da casa com o nosso avô
João Soares o “Silai”. Silai sofria muito com as câimbras nos pés,
nossa mãe era quem cuidava dele e ele não lembrava quem era
ela e a chamava de lavadeira. Silai não era chegado num banho,
tomava banho raramente, às vezes semanalmente, às vezes de
quinze em quinze dias e mesmo assim reclamando muito. Às
vezes Silai se masturbava e passava mal, enquanto estive lá ele
foi parar no hospital duas vezes. Teve também uma internação
quando ficou uns dias no hospital, um desses dias, inclusive, eu
fiquei no hospital para fazer companhia para minha mãe.
A imagem forte que tenho de minha mãe durante aqueles
meses em Fortaleza era a de uma pessoa envelhecida, em três
anos minha mãe se consumiu… ficava lavando roupa agachada
no fundo da casa, a água que ela usava ficava em um recipiente
que chamavam de tina e a mãe usava uma madeira com a qual
ela literalmente batia nas roupas. Era uma cena triste aquele labor
e que me causava grande frustração porque se somavam com a
minha inoperância, desocupação que não era por desídia, mas que
me feria. Por isso que devo me compadecer dos desempregados...
“um homem se humilha se castram seus sonhos, seu sonho é
sua vida e a vida é o trabalho, e sem o seu trabalho um homem
não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”. (Fagner)
Enquanto estive no Ceará tentei pelo menos ser útil: nas
compras, pequenas obras, ao comprar gás, que era distante. Eu
queria trabalhar, mas enquanto estive lá não arrumei emprego.
O desentendimento que tive com minha tia foi por porque ela
inventou uma carrocinha de doce e queria que eu ficasse ven-
dendo, mas eu não queria aquilo. Ficava lá comendo os doces e
tentando fumar e nunca conseguia e me engasgava toda hora,
foi quando aprendi o que é cigarro forte e cigarro suave, mas
nunca gostei daquela porcaria. Muito diferente dos hábitos etíli-
cos, no Rio bebia cerveja, chopinho na Lapa, em casa bebia umas
caipirinhas que eu gostava muito. No Ceará estava bebendo ca-
chaça, cachaça com limão, com Coca-Cola (samba), mas sempre
bebendo cachaça.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Foi numa manhã que o Wilson me apresentou aquele


que se tornou meu grande amigo de Fortaleza: o Luizinho. Eu
e Luizinho tínhamos o mesmo gosto pra música e ambos não
sabíamos tocar violão, mas vivíamos agarrados nos nossos vio-
lões, dois pregos querendo ser músicos. Luizinho era um cara
muito legal, Luizinho estudava o segundo grau à noite e trazia
livros para eu ler, livros que ele pegava na biblioteca da escola
e assim fiquei municiado de livros naquela época. Luizinho e
seu irmão Maurício trabalhavam na rádio Casablanca, estive na
rádio quando fui assistir ao show do Caetano no parque do cocó,
mas foi cancelado e aconteceu no dia seguinte.
Durante o período que estive em Fortaleza ocorreu uma
situação muito preocupante para todos nós, porque o pai teve
uma séria crise de coluna, coluna travada e ficou uma semana
sem conseguir levantar, fiquei muito angustiado, pois vinha dele
a fonte de renda por força do seu trabalho e eu naquele contexto
era uma pessoa absolutamente inoperante, não tinha nenhuma
fonte de renda, tampouco tinha perspectiva. Enfim, um dia ele
conseguiu levantar feito um Lázaro e retomou sua vida.
São muitos os momentos que vivi com aquela parte da mi-
nha família em Fortaleza, certamente Wilson, Cristiano e Daniel
fornecerão outros registros que completam o meu testemunho,
contudo pretendo, “pra frentemente” — como dia Odorico Para-
guaçu, personagem de Paulo Gracindo em O bem-amado — es-
crever minhas memórias onde deixarei minhas particularidades.
Chegou a hora de sair do Ceará.
Minha estadia foi por curto período, um ano e dois meses,
e neste tempo eu fiz muito registros por carta a fim de deixar
a outra parte da família inteirada acerca da realidade que se
vivia em Messejana. Nas cartas sempre enfatizei o meu des-
contentamento bem como a situação de dificuldade, certa pri-
vação desnecessária que nós vivíamos no Ceará, possivelmente
esses relatos mobilizaram o Valdo. O Valdo estava trabalhando
como militar na Aeronáutica e em julho de 93 ele ligou para os
vizinhos de onde morávamos e avisou que ia enviar dinheiro
pra eu voltar. A verdade é que eu realmente iria voltar, porque

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naquela época o presidente Itamar Franco liberou o saque das


contas inativas do FGTS, acredito que tenha sido a primeira vez
que tinham liberado os resíduos de juros das contas inativas,
porém não tenho certeza de que nunca antes na história deste
país isso tenha acontecido. O fato é que por conta da liberação
dessa graninha eu conseguiria voltar para o Rio, entretanto o
Valdo se antecipou e eu lhe prometi que quando pudesse sacar
o dinheiro eu lhe daria como forma de restituição e foi o que eu
fiz ainda naquele ano.
Naqueles últimos dias em Messejana eu fiz o tratamento
de um dente e este dente não ficou legal, aliás, em fortaleza tive
condição de fazer bastantes coisas nos dentistas, tinha de acordar
cedo pra pegar número, mas valia a pena, contudo esse último
dente não ficou bom e eu sentia muita dor dente naqueles dias
e convivi com esse problema nesse dente durante muito tempo,
a título de informação o dente ainda existe!
“Mas olha vejam só já estou gostando de vocês, a ventura que
nem esta eu nunca experimentei, o que eu queria mesmo era ir
com vocês, mas já que eu não posso boa viagem! até outra vez!”.
(Plunct plact zoom/carimbador maluco — Raul Seixas).
Meus últimos dias em Messejana foram dias melancólicos
porque eu já não sabia se queria ir embora por vários motivos,
porque gostei das pessoas, por causa dos meus pais, por causa
de muitas coisas, mas estas coisas pesaram menos que a lição
de vida: “não se deve guardar lixo debaixo do tapete porque
eles ficarão te esperando e um dia temos de retirá-los de lá”. As
conversas com minha mãe foram restauradoras psicologicamente
falando, mas ainda havia mais conhecimento para adquirir.
No dia que fui embora coincidiu com uma comemoração
de amigos do Luizinho na casa dele, estive lá durante alguns
momentos quando ganhei um banho de ovos, poucas horas
depois fui embora, foi uma saída meio bagunçada, o cantor de
forró Ivan Peter me levou em seu carro até a rodoviária (Ivan
Peter era quem afinava o meu violão de tempos em tempos e eu
ajudei o filho dele algumas vezes como explicador dos deveres
da escola dele, porque algumas coisas o filho do Peter não en-

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tendia), antes de sair minha mãe me obrigou a me despedir da


minha tia, porque eu era muito rebelde e queria fazer desfeita.
O pai me levou até a rodoviária… durante o tempo que estive
em Fortaleza não tive nenhum desentendimento com o meu pai,
tampouco ele me tratou com reservas, ao contrário, conversamos
muitas vezes e sinto muito por não ter podido ajudá-los muito
naqueles meses que estive no Ceará. Novamente a saudade, mas
agora tinha grande esperança de que os veria em breve!
Chegando ao Rio e desembarcando naquele agosto, tive
grande estranhamento saudoso: os morros que no Ceará não tem,
as pessoas pretas, quase todo mundo preto. Não me lembro de
muita euforia com a minha chegada, foi apenas uma chegada,
quem se mostrava muito animado era o Dinho, o Dinho fazia
muitas perguntas.
Para o Valdo eu ajudei muito na obra daquela casa onde
ele ia morar, lembro que o ajudei bastante na obra daquela casa
na parte de cima da rua Anápolis, aliás, eu gostava muito do
ex-sogro dele — de cujo nome eu não me lembro — e o velho
também gostava de mim, trabalhamos muito naquela obra.
Noventa e quatro foi um ano inesquecível por causa do
advento do plano Real quando 2.750 URV’S viraram 1 Real e
acabou com a inflação, a minha geração viveu consumida pela
inflação e ela estava aniquilada, 1 Real chegou a valer mais do
que 1 dólar, imagina só?!
Naquele tempo o Valdo anunciou o retorno, ele me levou
quando enviou o dinheiro para o Ceará, ele enviou pelos correios.
E foi em 1994 que nossos pais voltaram do Ceará. O que
mais chamava a atenção era o Daniel com cabelo de guerreiro
de Pai José. A mãe rindo à toa com sorriso desfalcado dizendo
que estava na casa dela e pedindo para beber caldo de feijão,
a Vera lhe serviu caldo de feijão no copo e ela bebeu como se
fosse água. Foi engraçado. O retorno não foi fácil, gerou muita
dificuldade e brigas, foi complicada a acomodação.
Ao regressarem, os meninos foram estudar em escolas
públicas, o Cristiano estudou no CIEP São João Bosco e teve um

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

dia que ele, ao chegar da escola, me informou que na escola dele


havia uma grande biblioteca, então me tornei sócio atleta da bi-
blioteca, até hoje ainda possuo a carteirinha daquela biblioteca,
onde li muitos clássicos de 94 a 98.
Em 98 passei no concurso da COMLURB controle de veto-
res, concomitantemente também passei para a FAETEC, mas só
fui chamado em 2002, fui para a FAETEC na pretensão de ficar
pouco tempo porque tinha sido aprovado na ELETRONUCLEAR,
mas não pude ficar porque concluí o ensino médio em dezem-
bro de 2000 e o edital exigia ter concluído em outubro daquele
ano, foi uma grande frustração para mim e para minha mãe, ela
ficou muito eufórica com aquela possibilidade, ela dizia que eu
passei para PETROBRAS, muito ingênua. Segundo as palavras
do Daniel aquele tempo que trabalhei na COMLURB foi o mais
benéfico para minha mãe, de fato sempre fui uma pessoa da casa
e dividia meus benefícios com ela.
Em 2002 eu fui para a FAETEC, particularmente para
mim foi bom porque saí da rua, trabalhar na zona Oeste na
rua é muito perigoso, entrei em todas as favelas daquela área,
sem contar o calor de Bangu. Financeiramente trabalhar na
FAETEC foi um desastre, principalmente para minha mãe,
porque praticamente parei de dar dinheiro para ela. Na FAE-
TEC não trabalhava tanto e estudava mais, tinha duas folgas
por semana, fora os recessos, fiz vários concursos e passei no
vestibular graças à disponibilidade que a FAETEC me dava,
sem contar os jovens que ajudei a ingressar na instituição e os
que conseguiam emprego.
A partir de 2004 passou a acontecer uma coisa interessante
comigo, eu sentia muita vontade de sair do trabalho e voltar pra
casa pra conversar com a minha mãe. Achava estranho aquilo,
mas também não ficava me questionando muito. Nos dias que
ficava em casa eu estudava muito, contudo sempre programava
uma horinha pra escutar minha mãe, às vezes o meu pai tam-
bém. Em 2005 a mãe acreditou que podia aposentar-se, o pai o
quanto pôde colocou água dizendo que ela não ia conseguir, mas
ela perseverou e conseguiu o benefício dela, aliás, nossos pais

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

viraram fãs do Lula, bônus para mim, que aos 17 anos dizia que
o PT podia mudar o país. Nosso pai disse que o Lula erradicou a
fome em Acaraú. Podem não gostar do que estou falando, aceito
argumentos, mas tem de conhecer história, caso contrário vira
torcida de novela.
Dos últimos anos considero os anos 2004, 2005 e 2006 os
mais marcantes da década, pois eram anos que eu gostava de
ficar em casa, ouvi muito o padre Marcelo Rossi, manhãs da
Globo com Antônio Carlos e Loureiro Neto. Em 2006 fiz cirur-
gia no maxilar e tenho sentimento de incomensurável gratidão
pela minha mãe quando cuidou de mim. Em 2007 começaram
os momentos difíceis.
Em 2007 eu estava em um curso pré-vestibular e neste cur-
so eu ficava sábado o dia inteiro. Teve um dia que eu cheguei,
entrei em casa e estava tudo em silêncio, fui ao quintal e a Vânia
me chamou para contar que o pai tinha agredido fisicamente a
mãe. Eu voltei para dentro de casa tomado de ódio e fui na di-
reção dele agredindo com palavras e disposto para o que desse
e viesse, o chamei de covarde que merecia uma cadeia, ofendi
muito meu pai, ele também me ofendeu, senti muita raiva da-
quele velho. No dia seguinte fui para a igreja, nessa época era
membro da Batista Nova Filadelphia e de lá estava disposto a
ir para a delegacia, já que eu tinha entrado em contato com os
irmãos e não tive retorno satisfatório. Porém resolvi fazer o que
nunca tinha feito na vida, pedi para ser atendido no gabinete
pastoral e conversei com o pastor Eli Alves de Souza, homem de
grande sabedoria, que me acalmou, mas as semanas que vieram
não foram fáceis porque o convívio ficou insuportável. Conversei
com minha mãe sobre esses assuntos, o comportamento do pai,
e ela me contou uma história, quando eles chegaram no Rio o
pai só comprava roupas pra ele, então teve um momento que
ela passou a usar a mesma roupa todo dia e foi quando ele foi
perguntar porque ela estava daquele jeito e ela disse que estava
como mendiga porque achava que ele queria que fosse daquele
jeito, minha mãe foi muito humilhada pelo meu pai, humilhada
até o último dia de vida.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Um dia cheguei do trabalho e soube que a mãe estava


passando mal, fui no quarto e ela estava tremendo muito, tentei
medicar, mas ela passou a noite toda daquele jeito. Na manhã do
dia seguinte eu e a Vânia a levamos para o hospital, quem nos
levou foi o sr. Moreira, taxista, e até hoje somos amigos.
No hospital Juscelino constatou-se que o rim da mãe es-
tava fraco e que precisávamos levá-la para um hospital grande
e a levei para Bonsucesso, minha mãe estava desorientada e eu
desesperado, a Elisa foi comigo, chegando lá a recepção lotada
e as recepcionistas mandando esperar, minha mãe tremendo
de frio, morrendo, e os funcionários dizendo pra esperar, nessa
hora a Elisa começou a fazer um escândalo naquela recepção,
encostou no balcão e começou a esbravejar; nessa hora minha
mãe se levantou tremendo e caminhou na direção da enfer-
maria e então obrigatoriamente ela foi atendida, ficou o tempo
todo desorientada, chamava a doutora Frida (doutora Frida era
a médica com a qual ela se tratava em São João de Meriti), eu
liguei para a doutora que me operou e eu sabia que ela estava
em Bonsucesso e ela me ajudou, mandou um colega dela, um
mineiro que nos acalmou e se inteirou do que estava acontecendo
e se colocou à disposição para qualquer coisa, a mãe demorou
a melhorar e ficou o tempo todo numa cadeira, chegou à noite
e os irmãos apareceram, estava muito frio naquela noite. Voltei
pra casa, mas tive dificuldade para dormir, ficava pensando “eu
estou aqui me protegendo do frio enquanto minha mãe estava
numa cadeira”, eu orava e chorava debaixo das cobertas, nesse
dia lembrava muito de uma canção do Sérgio Lopes e que o
Daniel gostava de ouvir.

“Quando eu tentar
Te esquecer
E confiar no meu querer
Me faz lembrar
De onde eu vim
E que o Senhor
Me trouxe até aqui

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Quando eu tentar
Fazer uma canção
E me faltar
A mesma inspiração
Me faz lembrar
Que nada posso ser
Se da Tua graça eu não depender
Me faz lembrar
Daquelas madrugadas de oração
E das lágrimas no chão
E que o tempo ao passar
Vai tentando apagar do coração
Me faz lembrar
Onde eu deixei o meu primeiro amor
Se for preciso eu vou recomeçar
Mas confesso que dependo do Senhor.”

Aquele dia foi uma madrugada de oração, ou como disse


minha mãe em uma das tantas noites que passava mal, são
“noites traiçoeiras”. Achei que ia perder minha mãe, mas no dia
seguinte ela voltou para casa, mas não voltou legal, a coisa boa
foi o fato de ter conseguido criar um prontuário e a partir dali
poderia continuar se tratando no Hospital de Bonsucesso.
Ela iniciou o tratamento dela e eu acompanhei todas as
idas aos médicos, deixei o trabalho e estudos em segundo plano.
Teve um dia que ela não estava bem, perguntei se ela queria
ir ao médico e ela disse que sim e pediu que fossemos para
o Hospital Geral. Foi atendida sem pressa, fez exames a noite
toda, ela ficou na cadeira, mas não precisava levantar porque eu
ficava em todas as filas de exame para ela. De madrugada ela
quis tomar café escondida, fomos na rua e tomamos café numa
das barraquinhas que ficavam no lado de fora do hospital, ela
tomou café e comeu biscoito de polvilho e me perguntava por-
que eu não estava comendo e eu disse que não estava com fome,
mas na verdade estava preocupado porque já estávamos muitas
horas longe, amanheceu o dia e fui informado de que ela ficaria

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

internada, quando a deixei ela já estava na enfermaria, porém


continuava na cadeira, ela me mandava embora pra casa e eu
dizendo que ia ficar, só fui embora depois que disseram que eu
não poderia mais ficar. Naquela ocasião fui muito indagado e
criticado por ter levado a mãe para aquele hospital, mas não foi
escolha minha, foi decisão dela. Nossa mãe ficou 15 dias naquele
hospital, ficava desesperada com o número de mortes diárias,
quando eu a visitava ela quase não falava, mas quando outros
visitavam ela dialogava e até se emocionava, às vezes acho que
ela estava meio de saco cheio de me ver e queria ver outros, foi
por isso que no Dia dos Pais daquele ano eu fui na casa de quase
todo mundo para perguntar se queriam visitá-la, o único que
aceitou foi o Jorge. Durante aquelas semanas eu saía do trabalho
e evitava voltar pra casa e ficava assistindo cultos nas igrejas,
valia qualquer igreja que retardasse a minha chegada em casa
porque não queria encarar o sr. Zé.
Enfim, a mãe teve alta, eu e o Valdo fomos buscá-la, vol-
tamos de ônibus, maior calor de 3 horas e a mãe querendo
esperar o ônibus no meio do sol, não queria ficar na sombra,
ela estava louca pra pegar sol. Após a alta ela continuou tendo
problemas porque estava retendo muito líquido, problema que
ficou atenuando quando conseguiu consulta com nefrologista.
Lembro-me bastante dessa primeira consulta com nefrologista,
porque foi quando ela foi muito bem diagnosticada, por mais
de um profissional inclusive, falaram que aquela doutora que a
atendeu era referência em nefrologia. Nessa consulta eles falaram
que ela estava inchando porque o rim não estava trabalhando
direito, prescreveram um medicamento que funcionou muito
bem, a mãe emagreceu e passou a ter mais mobilidade e me
deixou confiante. O retorno daquela consulta foi complicado
porque ela não conseguia caminhar por causa dos problemas
de circulação, quando estávamos chegando em casa atravessa-
mos a linha férrea e o pai também estava chegando vindo pela
barreira, ele parou de longe olhou e seguiu caminho nos igno-
rando, olhei para o rosto da minha mãe e li o desapontamento,
ainda assim seguimos, chegando em casa ela queixou-se muito
de estar sentindo cãibra, fiz massagem nos seus pés, o que me

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

fez lembrar dela fazendo massagem nos pés do pai dela, quando
morava em Messejana.
Os meses seguintes foram de tratamento, eu que aplicava a
insulina nela, no início foi complicado, errei bastante até acertar
as espetadas. Eu ficava otimista porque percebia as melhoras. Saía
bastante com minha mãe para as consultas, mas para algumas
coisas ela tinha autonomia, contudo eu sempre ligava para saber
como estava indo, se estava voltando se estava tudo bem. Teve
uma vez que ela estava chegando em casa e eu estava ao portão
e o abria para ela e estava enrolando linha de pipa em alguma
coisa, eu perguntei o que era aquilo e ela disse:
“É linha de pipa que achei na rua, lembrei de você e do
Jorge e trouxe para o Ricardo”. Ela fez o comentário e imedia-
tamente me lembrei das inúmeras vezes que ela trazia linha
de pipa para brincarmos, já que comprar sequer um “dezinho”
era algo complicado para nossa realidade. Inclusive, durante as
nossas saídas aos médicos ela comprava doce pra mim como se
eu fosse uma criança, eu entendi que aquilo era uma curtição e
eu aceitava de bom grado. No fundo sentia que havia algo tênue
e que estava na iminência de se desfazer.
Seguindo o tratamento ela fez um exame, ecocardiograma,
quando foi constatado que ela estava com o 0coração grande. Ela
saiu desolada daquela consulta, ainda nos corredores ela falou
“Eu sei porque eu fiquei assim!”, eu ouvi sem comentar. Ao
longo dos meses percebia que ela ficava em oração, ouvia muito
o Padre Marcelo e tinha um momento específico do programa
dele em que ele fazia orações direcionadas, então ela fechava
os olhos com força e colocava as duas mãos em cima do peito.
Eu respeitava muito aquele momento, eu respeitava muito a fé
da minha mãe. No fim de 2007 eu comprei um CD do André
Valadão, neste disco ele gravou clássicos e eu os ouvia muito
naquelas semanas e percebi que tinha um hino que chamava
a atenção de nossa mãe, Mais perto eu quero estar. Certa vez eu
a vi ouvindo esse hino, sentada no sofá e olhando pela janela
na direção do céu. Eu entendia o que ela estava fazendo. Certa
vez, estávamos sozinhos na sala quando ela resolveu comentar:

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

“Eu sou um zero à esquerda, melhor morrer”, então eu contestei


aquela história de zero à esquerda e falei: “Vai morrer nada não,
vai ficar aí 200 anos!”, ela riu e acabou o assunto.
No Natal e Ano Novo fiquei receoso de que fosse melancó-
lico para ela, mas foi menos ruim do que imaginava. O Daniel
apareceu com Joanita e a Ester, eu ficava aliviado quando havia
presenças porque sei que ela gostava. O último Dia das Mães fui
eu que planejei, inclusive a costela bovina, que ficou muito boa,
todos estiveram lá e proporcionaram momentos de felicidade
para ela.
Eu sei que falam muito sobre a minha presença ao lado
da minha mãe, principalmente nessa fase final, mas acreditem,
para mim foi um grande privilégio porque eu realmente tinha
disponibilidade para ficar com a minha mãe e sei que tinha
mais tempo do que qualquer um dos outros filhos, não pensa-
va duas vezes antes de faltar ao trabalho para ficar com ela, ela
dizia que estava bem, mas eu sentia que não e ficava em casa,
mesmo quando ia trabalhar eu ligava duas vezes por dia para
saber como estava. Foi um privilégio que Deus quis me dar e me
deu. Louvado seja Deus por isso!. “Honre seu pai e sua mãe”,
primeiro mandamento com promessa.

A Morte um Destino Duro


No dia 27 de julho de 2008, domingo, eu resolvi visitar a
igreja Presbiteriana de São Mateus, naquele dia o pastor pregou
sobre O Salmo 23 e me chamou a atenção sua explicação sobre a
frase “ainda que eu andasse pela sombra da morte…”
Após o culto voltei caminhando para Éden e pensando
sobre a mensagem. Chegando em casa a minha mãe estava me
esperando para tomar banho e dormir, porque era uma regra que
ela tinha criado pra si, só dormir depois que o último chegasse
e como eu vivia com ela então eu era o último, conversamos
sobre alguma coisa que não lembro e após o banho entrou no
quarto, quando estava fechando a porta para se recolher ela
abriu novamente colocou o rosto pra fora como quem queria falar
algo e mudou de ideia, eu estava em pé na frente da televisão e

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perguntei se ela queria falar algo, ela balançou a cabeça dizendo


que não e fechou a porta.
De madrugada, quase de manhã, o pai foi no meu quar-
to, me acordou dizendo: “A tua mãe não está bem”, na mesma
hora dei um pulo do alto da beliche e corri, cheguei no quarto
a chamei várias vezes, a chamei no ouvido dela, tentei sentir a
pulsação, o coração e estava tudo parado, então olhei para ele e
disse: “Ela foi embora”. Corri e chamei a Silvânia pra conferir
comigo e ela apenas balançou a cabeça confirmando o que eu já
sabia, tudo indica que a Silvânia chamou a Elisa e por ai vai…
só me lembro de que liguei para o Cristiano e avisei, quem me
atendeu foi a Elaine.
No dia anterior ela tinha visitado o Daniel para ver a
Ester, dizem que ao chegar ela brincou no quintal, parece que
pulou corda... foi o que ouvi sobre o fim de tarde e início de
noite dela.
Alguns anos depois surgiu uma história de que o pai ti-
nha esbofeteado nossa mãe naquele domingo 28, e que ela caiu
e o útero saiu do corpo e teve de ser colocado de volta, esse fato
parece que foi presenciado pela Léia, a vizinha da frente, essa
história nos foi contada pela Vânia. Segundo essa vizinha que a
socorreu, ela teria chorado e dito que não aguentava mais. Nesse
dia mencionado, eu acordei cedo, lembro-me muito bem, nós
assistimos ao globo rural juntos, lembro-me até da reportagem
que mostrava como se fazia queijo na Escócia. Eu levantei, ela
estava tomando café e eu perguntei se estava tudo bem e ela
balançou a cabeça dizendo que sim. Sei que naquele domingo
as coisas não estavam boas porque Seu Zé na hora do almoço
jogou o prato de comida no chão, mas ficou calado e eu falei
comigo mesmo “até quando vai durar isto?”. Lembro-me que o
dinheiro era pouquinho e tínhamos dificuldades nesse sentido,
no sábado 27 eu estava na sala e os dois na cozinha e escutei o
pai perguntando quando ela receberia e ela respondeu que era
na segunda-feira. Após a morte ele ficou muito interessado em
sacar o dinheiro, mas não conseguiu porque não dei a senha
correta pra ele, eu saquei o dinheiro e eu direcionei os gastos.

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Impreterivelmente um mês depois da morte de nossa mãe


eu saí de casa depois de 30 anos e fui morar sozinho.
Na sequência dos anos após a morte da Dona Vanilda
ocorreram um turbilhão de coisas: coisas de estudo, de trabalho,
novos concursos, novos trabalhos… eu, que considerava desne-
cessária uma faculdade, fui aprovado em uma e fui parar na sala
de aula, sou professor e continuo estudando (minha cachaça).
Tive a perda do meu pai… após a morte da mãe passamos
a ter uma relação cordata… ele e as suas viagens e deixando
Tânia e Cristina sob a minha responsabilidade, o pai tinha
aquele histórico de doenças que não tratava porque não tinha
paciência para procurar médicos. Um dia antes de ele morrer,
ele sumiu, se perdeu e foi encontrado, naquele mesmo dia eu
pensei comigo mesmo “tenho de dar total assistência para o pai”,
mas no dia seguinte veio o quadro de piora. Naquela ocasião,
2012, eu já estava com casamento marcado com Ana Cláudia,
entretanto eu o assumiria tal qual fiz com minha mãe e tenho
certeza que a Cláudia ia entender, uma vez que nós temos perfeita
compreensão da necessidade que os pais têm e de que os filhos
devem ampará-los. Infelizmente ele faleceu.
Mais adiante, em dezembro, eu e Ana Cláudia nos casa-
mos e estamos juntos enfrentando as dificuldades, mas também
aproveitando os sabores da vida. Estamos em 2021, em plena
pandemia, e no meio de muitas incertezas e perdas, mas com
muitas convicções e fé em Deus! porque “Tudo passa, mas o
amor de Deus permanece.

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Lembranças do Wilson

Anos 80 — Primeiras Lembranças

N
ão me lembro das datas exatas, mas sei que entre meus
5 a 6 anos, eu e o Cristiano só andávamos pelados,
brincando de escorregar no chão quando estava mo-
lhado e ficar deslizando. Parar de andar pelado só aconteceu
porque a Rosinha (namorada do Vânio), quando ia nos visitar,
mexia conosco dizendo que ia pegar o nosso “lulu”. Também
começamos a crescer e passamos a sentir vergonha e assim dei-
xamos de ser os pelados do quintal.

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Batismo do Wilson: Padre Rocha, Consuelo (madrinha),


Pai e Mãe

As Festas de Fim de Ano


Antes das festas tinham as preparações. Nós, os menores,
gostávamos de toda aquela bagunça. Pintávamos a casa, nossa
mãe passava cera no chão e esse trabalho era mais uma brinca-
deira para nós, que escorregávamos em cima do pano de chão
para dar brilho, tudo isso embalados nos discos do Roberto
Carlos. Tudo era resultado de um trabalho de meses antes, onde
se comprava refrigerantes, vinho e outras coisas que, para não
serem consumidas, eram armazenadas sobre o lambri de madeira
do quarto dos nossos pais. Às vezes, devido ao calor, algumas
garrafas estouravam, mas isso não nos impedia de festejar. Como
disse, trabalhávamos para que as festas acontecessem e, para isso,
vendíamos coisas antigas no ferro velho para contribuir com
as compras. Os irmãos mais velhos e que estavam trabalhando
se reuniam e faziam uma lista para dividir o que cada um iria
contribuir. Também faziam um amigo oculto com os nomes das
crianças da família para dar presentes no natal.
O ápice eram as noites de Natal e Ano Novo, quando esta-
vam todos juntos deixando o quintal cheio. Via a satisfação no
rosto de nossa mãe, que preparava tudo e todos os detalhes com
muito carinho e com prazer colocava todas as comidas e bebidas
numa mesa grande, improvisada no quintal.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Como faço aniversário no último dia do ano, teve um ano


que me dei um presente, quando juntei uns trocados até conse-
guir alcançar o valor do brinquedo que queria.

As Visitas Chatas
Eu deveria ter uns 8 anos e não gostava quando nossos pais
iam nas casas de alguns amigos e nos levavam. Um cara chato
era o Menga, pois toda vez que nos encontrava apertava nosso
nariz. Outro chato era um filho da Dona Nazaré, que quando
nos encontrava, ficava esticando os elásticos que usávamos no
braço. A malandragem era tirar o elástico e esconder no bolso
para ele não puxar.

Os Trabalhos Domésticos de Nossa Mãe


Fazia brincadeira com os tapetes que nossa mãe pegava a
trabalho para lavar e ficávamos escorregando neles enquanto
ensaboados. Ruim era ver nossa mãe entregar as roupas lavadas
e passadas, colocando uma trouxa de roupa enorme na cabeça
e outra na mão. Quase sempre a acompanhava e, às vezes, era
preciso mais de uma viagem.

As Brincadeiras
Nós não precisávamos de brinquedos para nos divertir,
pois inventávamos nossos próprios brinquedos. Brincávamos de
andar pelo alto sem pisar no chão, futebol, fazíamos carrinhos
de lata, perna de pau, patinete e tudo isso dentro do quintal. Até
com as manilhas das obras de pavimentação da rua, algumas
ficaram no nosso quintal e serviram para nossas brincadeiras.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Cristina e Wilson

Lamentava não poder brincar na rua, pois nossos pais não


deixavam, mas hoje entendo essa postura. Às vezes, ter uma
criação livre sem imposição traz consequências ruins. Quem
sabe se tivéssemos essa liberdade não seríamos o que somos hoje
ou sequer estaríamos vivos para poder contar nossa história,
assim como muitos conhecidos nossos que hoje não estão mais
vivos. Creio que, apesar de pouco estudo, restou sabedoria para
nossos pais.
Nos dias de chuva, as brincadeiras eram dentro de casa
mesmo e a guerra de elástico começava entre as cabanas que
fazíamos com lençóis nos beliches. Ou as brincadeiras de luta,
onde o Valdo me deu um soco nas costas que fiquei sem ar, nem
conseguia chorar. Eram as famosas brincadeiras estúpidas, ditas
por nossa mãe.
Além das brincadeiras tinha apreço por alguns afazeres
como lavar meus tênis, costurar minhas roupas e fazer desenhos.
Sobre os desenhos, quando precisava fazer algum para trabalhos
da escola, fazia o meu e também de quem precisasse. O pai dizia
que eu era um bobo, pois fazia as capas de trabalho para mim
e para o Cristiano. Uma vez, o Cristiano precisou fazer o mapa

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

do Brasil, mas não pude ajudar porque o pai não deixou fazer,
disse que estava me explorando. Sobre as costuras, até tentei usar
a máquina de costura, mas a mãe não deixava usar, somente
passar a linha na agulha, mas isso não podia ajudar porque não
enxergava bem. Na última festa caipira de que participei, antes
de viajar, a roupa foi produzida por mim mesmo, onde costurei
os retalhos e fiz um coração que coloquei nos fundos da calça.

A Catequese
Confesso que não gostava de ir à missa aos domingos nem
à catequese aos sábados, mas a mãe e a Vanda nos obrigavam
a ir e, às vezes, contrariado ia chorando, mas hoje dou graças a
Deus de elas terem me obrigado a conhecer mais de Deus e ser
o que me tornei, vendo como a mão de Deus, através da minha
mãe sobre a minha vida.
Com doze anos já passei a gostar de estar na igreja e foi
quando fiz a primeira comunhão. Passei a ajudar a preparar as
barracas para festa junina e faltou pouco para me tornar profes-
sor de catequese, chegando até a fazer o curso de catequistas na
Igreja Matriz para ser auxiliar, mas não dei continuidade devido
à viagem para o Ceará.

Roupas
Roupas para esses eventos também eram um problema.
Lembro-me de que a camisa que usei na primeira comunhão
era a mesma para casamentos, batismos ou outra festa qualquer.
Para ir à igreja também não tinha sapatos e arrumaram uns pa-
res, mas era maior que meu número, talvez trazidos pela Vanda
de seu trabalho ou pela tia Fátima. Usava roupas de qualquer
tamanho, grande ou pequena, onde tinha que ficar encolhendo
a barriga para a roupa caber em mim.
Havia uma calça azul-caneta que eu gostava muito e já
estava muito apertada e quase não usava sunga. Um dia fui
para a igreja com essa calça e chegando em casa, ao tirar, o zíper
agarrou na pele do meu pênis, não conseguindo tirar, trazendo

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

muita dor e constrangimento, pois tive que ir até minha mãe


pedir ajuda, o que para mim foi traumatizante.

Escola
Aos 7 anos comecei a estudar no Maurício Brum. Lembro-
-me de minha mãe todo dia me acordando para ir junto com
ela para a escola. Ela acordava cedo e ouvia o rádio-relógio
para não perder o horário e sempre tocava as mesmas músicas,
como O Fio de Cabelo, de Chitãozinho e Chororó. Sempre quem
ia me buscar era o Marco e eu até já sabia que estava no final da
aula, pois o Marco subia no pé de amêndoa que tinha em frente
ao portão da escola e, da sala onde estudava, conseguia vê-lo
na árvore pela janela. A mãe só me buscava nos dias em que a
escola dava leite e vitamina em pó. Também recebíamos sopa
em pó que minha mãe pegava numa igreja evangélica, perto do
supermercado Duro na Queda.
Por volta de 10 a 11 anos passamos por alguns apuros
quando tínhamos que ir para a escola. Eu e o Cristiano não po-
díamos estudar no mesmo horário, pois nós usávamos o mesmo
uniforme e, às vezes, tínhamos que trocar o sapato e camisa na
rua. Algumas vezes, o Guê, nosso colega, nos flagrou fazendo a
troca e “zoava” da gente.
Na terceira série minha mãe não deixou a escola me apro-
var, pois em conversa com a diretora do Maurício Brum, soube
que eu seria aprovado com notas baixas, então me fez repetir a
série. A verdade é que eu não gostava de estudar, preferia ficar
soltando pipa. Com 12 anos mudei de escola e fui estudar no
Lourenço Filho, na quinta série. Gostei de estudar lá porque ia
com o Valdo, mas percebia que ele não gostava muito da minha
companhia, pois preferia ir fazendo bagunça com seus amigos,
como o Eduardo da Rua Morrinhos e outros.

Brigas na Rua
Nessa idade, nossa mãe já permitia que brincássemos na
rua, mas com horário marcado para entrar. Algumas dessas vezes
fomos interrompidos pelos parentes da Tininha que apareciam

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

somente para implicar conosco. Numa dessas vezes, o Guê surgiu


para implicar e meu sangue esquentou, não aguentei e acabei
empurrando-o e fazendo-o cair dentro da vala que tinha perto de
nosso portão. Outra briga foi com o Dudu, filho da Dona Joana,
que veio me “zoar” por alguma coisa e, não suportando, peguei
o pião que estava brincando e acertei na cara dele e o prego do
pião deixou um furo no rosto dele e o sangue escorreu sobre o
rosto. Briguei também com o Marcelo, irmão do Dudu, jogando-o
na vala, assim como fiz com o Guê.

O Carnaval
Com essa idade, já andava por alguns lugares sozinho, ia
ao mercado comprar pão, ia até a Praça de Éden e no carnaval,
acho que o Dudu, filho da Dona Marivan, me deu uma fantasia
de bate-bola. A fantasia já estava pequena para mim, mas usei
assim mesmo, colocando um meião até a canela para minhas per-
nas não aparecerem e assim ia pular meu carnaval. As crianças
quando me viam nas ruas, ficavam me chamando de bolinha
preta porque a fantasia era amarela com bolinhas pretas.

1989 — A Viagem para o Ceará

A Casa
Quando chegamos em Acaraú, onde íamos morar, vimos
que a casa só tinha um quarto com uma cama de casal, onde
nossos pais ficariam. Nós, os outros que foram morar lá, tivemos
que dormir na sala e em tucuns (rede artesanal feita de tiras
de retalhos), tendo que dormir dois irmãos em cada rede. Essa
rede, geralmente, é usada para descansar ou tirar um cochilo,
mas para dormir todos os dias e ainda dividir com outra pessoa
é o maior desconforto.
Devido à mata, apareciam muitos bichos estranhos que não
estavam em nosso habitual, como piolho de cobra, conhecido
como lacraia, mas de tamanho e proporção grandes e gambás
que apareciam nos telhados e no banheiro. Como esses bichos
apareciam à noite, tudo que tínhamos de fazer no banheiro

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

fazíamos antes de anoitecer, pois além desses bichos, podíamos


encontrar alguma cobra no meio do caminho.
Nos dias que sucederam, nosso pai saía para procurar algum
trabalho com um amigo dele de pintura e nós ficávamos em casa
com nossa mãe. Ela resolveu capinar todo aquele quintal enorme,
pois os matos estavam tão altos que cobriam a gente. Apesar de
não saber capinar, somente nossa mãe, ajudamos do nosso jeito
e depois de alguns dias podíamos ver toda a extensão do terre-
no, além de poder enxergar as casas ao redor. Nossa mãe falava
que o terreno já foi ainda maior, sendo todo o quarteirão da rua
pertencente aos nossos avôs, mas aos poucos foram vendendo
partes do terreno. Ao perceber que tinha terminado de capinar
tudo, percebemos que os primeiros lugares onde capinamos, já
estavam crescendo mato novamente. Então fiz um campinho de
futebol para brincarmos e evitar que o mato crescesse. Como não
tínhamos bola, criamos uma com panos e meia.
A falta de água também era um problema e tínhamos que
buscar no poço dos vizinhos, mas não servia para beber. Então
começamos a buscar numa caixa d’água que tinha na rua para
a comunidade (chamavam de chafariz). Nossa mãe carregava
três baldes d’água, um equilibrado na cabeça e outros dois em
cada mão e nós também, mas cada um com um balde. Sempre
que nossa mãe passava com os baldes, havia um velhinho que
ficava no seu portão que ao admirar a força de nossa mãe dizia:
“Ô mulher pra ter força no cangote”. Dizia minha mãe que esse
senhor tinha um parentesco com o Haroldo.
Quando viajamos, levei as rodas do patinete, o que nos
ajudou bastante, pois fiz o patinete e usava para carregar água,
colocando dois baldes. Ao ver nossa invenção, o pessoal ficava
curioso para saber o que era aquilo, pois nunca tinham visto. E
por falar em curiosidade, nossa pipa era uma novidade para eles.
Na falta de bambu, improvisei com a tala de coqueiro e quando
coloquei no alto, tateando no ar, deixava todos impressionados
com o movimento da pipa e diziam que ela ficava rebolando e
mergulhando.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Tudo que levamos que tinha valor foi vendido pelo pai.
Só ficaram as roupas, algumas delas nem saíram de caixas
de papelão, por não ter ocasião onde usar. O ferro de passar
não foi vendido, apesar de não funcionar devido à voltagem,
mas nossa mãe improvisava, esquentando o ferro de passar
na brasa.
Passávamos mais tempo no quintal que dentro de casa,
pois havia muitas árvores frutíferas como caju, seriguela, jambo,
abacate, mamão, cajá, goiaba, banana e limão. O pé de limão
era enorme e tinha muito limão, mas era difícil pegar os frutos,
pois seus galhos espinhentos cobriam a árvore até o chão. Então
para ter acesso aos limões que caiam, coloquei madeiras para
suspender os galhos da árvore e assim pudemos entrar debaixo
da árvore e colher os limões.

O Trabalho na Casa de Tolerância


Era tanto limão que começamos a vender para o Careca,
nosso vizinho que tinha um prostíbulo. Além da venda de limões,
aceitei também abastecer seu bar, carregando água para encher
seus reservatórios em troca de uns trocados. Depois aumentou um
pouco mais os trocados para mim e Cristiano, pois começamos
a abastecer os reservatórios do bar e dos banheiros dos quartos
das “meninas”. Algumas vezes acabei flagrando uma delas nua,
que, sem nenhum pudor, me chamou para entrar e abastecer de
água o banheiro enquanto ela tomava seu banho. Toda vez que
o Careca precisava de limão ou água, nos chamava da cerca que
separava os terrenos e, por não lembrar nossos nomes, gritava:
Gandão! Pequeno! Água! Limão!

As Escolas
Nossos pais conseguiram vagas em escolas públicas (Tomaz
Pompeu de Souza Brasil) para mim e para o Valdo. O Cristiano,
por falta de vaga, só conseguiu em escola particular (Ginásio
São José), mas com bolsa de estudo. Saber a hora de ir para a
escola também era um problema, pois quase ninguém possuía e

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

só nosso pai tinha relógio de pulso, mas como trabalhava ficava


inviável saber as horas enquanto ele não estivesse em casa. Então
pegamos um dia o relógio do pai e resolvemos nos orientar pela
sombra do sol, fazendo marcações no chão para saber a hora de
tomar banho, almoçar e sair de casa.
Fiz uma mesa e um banco de madeira que usava para
estudar, deixando um pouco mais distante da casa e enquanto
estava concentrado nos estudos fui surpreendido por uma cobra
coral, que vi a tempo de chegar em mim, acredito que foi mais
um livramento em minha vida.

Nossos Alimentos
Graças a Deus não passamos necessidade para nos ali-
mentar, até porque o quintal era repleto de diversos frutos. A
farinha também é um alimento barato e as famílias tinham
costume de comprar sacas de 50 kg. Nós também começamos
a adaptar nossos alimentos com o grão como farinha com açú-
car, farinha com leite e açúcar, farinha com café, farinha com
banana e açúcar, farinha com goiaba e açúcar, essa última foi
ideia do Valdo. Sempre que possível, aos domingos nossos pais
tentavam fazer uma refeição especial. Ou era frango caipira
com pirão ou mocotó com bastante tutano com pirão. Comia
e depois ficava fazendo a digestão sobre uma esteira de palha
no quintal, sentindo aquela moleza no corpo, comum depois
de comer muito algo tão pesado.

Parentes
A irmã do nosso pai morava numa avenida e tinha muitos
netos que moravam por ali, onde também morou minha avó Ju-
lia até sua morte. Um outro irmão do pai, tio Assis, morava um
pouco mais distante, do outro lado de um rio. Era interessante
visitá-lo, tínhamos que retornar antes de anoitecer, pois atraves-
sávamos a seco, mas à noite o rio enchia e em algumas visitas
que saímos tarde pudemos ver as águas brotando do chão e o
rio se tornar caudaloso.

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As Brincadeiras
Como sempre gostei de inventar coisas, resolvi construir
uma cabana de palha no quintal para brincarmos e até que ficou
bem legal e todos chegaram a entrar, inclusive a Tânia e a Cristina.
Assim como no Rio, brincamos muito nas árvores, atra-
vessando de uma para a outra sem pisar no chão. Certa vez,
enquanto brincava, nossa mãe varreu parte do terreno, juntou
as folhas e queimou enquanto por cima dos galhos passáva-
mos sobre o fogo, só que pisei num galho fraco que quebrou e
cai de costas no chão, entre a fogueira e um tronco de árvore
cortada. Vejo que a mão de Deus agiu naquele momento, pois
poderia ter acontecido uma fatalidade, mas as misericórdias
do Senhor se renovam a cada dia. Fui levado para casa e a
mãe me deu um copo de suco de saião, que bebi de uma vez,
sem sentir o gosto.
As músicas preferidas eram forró e brega e a galera, depois
de embriagada, dançava sozinha ou com vassouras, em frente
aos bares ouvindo aquelas músicas. Um desses que se empolga-
va era um garoto conhecido como Tité, que adorava a lambada
do Beto Barbosa e dançava com um jumento, inclusive as más
línguas diziam que ele tinha um caso com o jegue.
No período em que vivemos no Acaraú, frequentamos uma
instituição chamada CSU — Centro Social Urbano —, onde ser-
viam lanche e almoço, além de muitas brincadeiras, com esporte e
lazer. Jogava futebol, basquete e queimada. Como eu e o Cristiano
jogávamos bem a queimada, na hora de escolher os times todos
queriam nos escolher e me apelidaram de bola de fogo, devido às
marcas que deixava no corpo dos adversários com a bola. Além
disso, tínhamos facilidade de agarrar as bolas. Para as crianças
maiores, estimulavam com tarefas para ajudarem nas despesas
de suas casas. As meninas tinham aula e faziam pinturas em
pano de prato e toalhas para vender. Eu comecei a vender doce
nas ruas e aproveitava os sepultamentos para vender doce aos
visitantes do cemitério próximo da instituição. Depois comecei a
vender sacolé. O Valdo, enquanto esteve lá, também frequentou
e jogava futebol, sendo bem quisto pelo pessoal por jogar bem,

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inclusive uma monitora de nome Rochelia demonstrou certo


interesse por ele.
Além das vendas da instituição, consegui em uma padaria
bolos para vender e buscava picolé na carrocinha.

Dias de Tristeza e o Retorno do Valdo


Quando viajamos, trouxemos conosco a vitrola e alguns
discos, tentamos usar, mas não funcionou porque a voltagem
era 110v e lá a voltagem era 220v. Então o Valdo pegava as letras
dos discos e ficávamos cantando acapella misturada a choro e
lágrimas. Nós, os menores, até nos distraíamos, mas o Valdo não
conseguia superar e dava pena de ver seu sofrimento.
Não conseguindo se adaptar e sofrer demasiadamente, a mãe
conhecia uma família em que os pais estavam encaminhando o
filho para o Rio e foi assim que nossa mãe tomou providências
e o Valdo conseguiu retornar na companhia desse rapaz. Foi
muito triste ver meu irmão partindo, mas Deus sabe de todas
as coisas, pois, mais tarde, esse que retornava providenciou o
retorno de todos alguns anos depois.

As Festas de Fim de Ano


Ao chegar ao fim do ano era outro momento triste, pois as
recordações das nossas festas no Rio eram inevitáveis, onde se
lembrava da família toda reunida. Era outra realidade, apesar
de nossos pais não deixarem passar em branco, nossa festa se
resumia a um frango assado, farofa, vinho e suco, sem mesa,
numa esteira de palha sobre o chão. Depois, não restando mais
opção, íamos todos dormir.

1991 — Adeus, Acaraú, a Partida para Fortaleza


Nossa estadia em Acaraú já estava muito massacrante,
pois todos não aguentavam mais viver naquela situação tão
humilhante, até o dia que o pai providenciou um caminhoneiro
que faria um frete para Fortaleza e assim nos mudamos para

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Messejana. Não sabia ao certo, mas a mãe e o pai combinaram


tudo com nossa tia Teonísia.
Deus é bom o tempo todo, pois no dia da mudança, um
providencial apagão se acometeu em parte do bairro que morá-
vamos. Oportunamente, saímos às escuras com vasilhas, trouxas,
caixas, tudo nas mãos e cabeça, trilhando um longo e cansativo
caminho até o local combinado para pegar o pau de arara. Todo
cansaço não disfarçava nossa felicidade em estar dando adeus
àquele lugar que já não nos fazia bem. Junto à carga que o ca-
minhão levava estávamos todos nós, protegidos sob uma lona
e assim foi a viagem para Fortaleza. Disfarçamos como uma
diversão infantil, mas a verdade era que estávamos passando
mais uma vez por outra situação humilhante.
Chegamos em Fortaleza, casa da tia Teonísia. A estadia era
bem melhor e poderia ser uma boa convivência e boa acomo-
dação, pois a casa era grande, um jardim à frente, quintal nos
fundos. Nos primeiros dias fomos bem recebidos por nossa tia e
primas. Porém, com o percurso do tempo, vimos que erramos na
constatação. Nossa tia agia como um general, tentando mandar
em tudo e em todos, tentando controlar até nossas brincadeiras
e amizades. A televisão só podia ser ligada se ela estivesse em
casa e assistir ao canal e programas que ela queria. Às vezes
ligávamos escondidos e bem baixinho para ela não ouvir, pois
dormíamos na sala, mas se ela aparecesse a gente desligava e
fingia estar dormindo.
Em um quarto dormiam nossos pais, Daniel e Cristina.
A Tânia dormia no quarto da nossa tia com uma prima. Eu e
Cristiano dormimos por um período num quartinho com nosso
avô, depois fomos para a sala.

Nosso Avô, o Silai


Nosso avô era um velhinho bem assanhado que na hora
de dormir ficava com as mãos nas partes. Era chatinho, mas
às vezes brincalhão. Se alguém bocejasse, por exemplo, ele
abria os braços e dizia que era para não o engolir. Seu nome
era João, mas todos o chamavam de Silai, não sei o porquê

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

do apelido. Às vezes, fugia de mansinho para a rua e pedia


cigarro a quem passasse e tragava rapidamente para não ser
flagrado. Também gostava de cortejar as meninas, se fazia de
bom velhinho e quando as garotas o abraçavam se aproveitava
da situação para passar a mão nelas. Para não fugir, fumar e
passar mal, o portão estava sempre trancado com chaves e ele
ficava como prisioneiro nas grades do portão, olhando para a
rua, se empolgando quando as vizinhas saíam com roupas de
academia e ele fazia questão de chamar, fazer alguma brinca-
deira e falar alguma graça.

As Brincadeiras
Fizemos muitas amizades, onde brincamos muito, fazendo
torneio de futebol de botão na travessa onde morávamos e pas-
samos a jogar bola também ali, até aglomerar de crianças e não
ser mais possível brincar na travessa. Então direcionamos nosso
futebol para um terreno que havia na rua, onde as pessoas jogavam
lixo. Limpamos, capinamos e fizemos um campinho de futebol
e vôlei, dando o nome do campo de Catingão, em homenagem
ao mau cheiro de lixo. Começamos a criar torneios de futebol e
vôlei e a notícia logo se espalhou pelas ruas vizinhas e reuniu
muita gente para jogar. Sobre os jogos de vôlei, começamos a
fazer times contra as outras ruas, mas sempre perdemos, pois
jogávamos com a rede de qualquer jeito e eles a colocavam na
altura padrão.
Uma vez apareceram uns garotos desconhecidos para jogar
vôlei conosco e no meio da partida houve uma confusão e eles
se juntaram para me bater, mas fugi para casa e eles ficaram na
rua me esperando. Como a noite iria dançar caipira na escola,
o pai foi nos levar e acabei não dançando, pois o pai queria ir
embora e já estava bem tarde.
Outra vez, também no Catingão, enquanto jogava, acabei
pisando num vidro e tive um corte feio. Fui para casa e a mãe
tirou o vidro, lavou a ferida com água, vinagre, limão, sal e café,
uma verdadeira salada. Deixou uma banda de limão em cima do
corte e enrolou com gaze. Aquilo tudo queimava e ardia muito.

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Formei um time de futebol, onde eu mesmo pintei as camisas


de algodão brancas. As formas dos números e letras fiz com o
plástico de raio x, pintei o número atrás de preto, na frente havia
uma faixa vermelha (igual à camisa da seleção do Peru), uma
estrela azul no peito e na faixa escrito UNIÃO, nome do time.
A maioria do tempo livre usávamos para jogar futebol, e
local não faltava. Além dos campos, havia as quadras das escolas
e uma granja que a gente jogava à noite, mas como era longe,
íamos de caminhão.
Também fiz muitas pipas, rabiolas e cerol para vender,
pois eles gostavam e sabiam soltar pipas da mesma maneira que
brincávamos no Rio.
Por duas vezes fugi da escola, nunca tinha feito antes,
para acompanhar o Eduardo Magrão até o centro de Fortaleza.
Fomos na loja do pai dele para comprar camisas para nosso time
e depois íamos numa pizzaria lanchar, foi quando comi pela
primeira vez uma pizza.

O Casa Blanca
Depois, observando que tinham bons atletas, tivemos a
ideia de formar um time de futebol de nome Casa Blanca. Mas,
antes disso, usamos um uniforme amarelo que o Eduardo (Dudu
Magrão) comprou que chamamos de Brasileirinho. Os treinos
eram no campo oficial que tinha em frente ao José de Barcelos,
escola onde estudava. O técnico era o Cícero e assim começamos
a jogar com os times locais. Um time que era um dos melhores da
região, chamado Barcelona, jogou contra nós e vencemos. Então
pediram revanche e perderam novamente. Um dos jogadores
desse time (o Hugo) saiu e pediu para entrar no nosso time.
Nesse tempo, o Marco já morava conosco.
Cícero conseguiu inscrever o time em campeonatos oficiais
e jogamos em dois, mas eu, devido à idade, não pude participar,
somente o Cristiano que era menor, depois que eu falsifiquei
sua certidão, diminuindo sua idade. Um dos campeonatos que
jogamos foi no Estádio PV (Presidente Vargas).

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

A Tia Té
Passamos por algumas situações embaraçosas com nossa tia
Té. Como exemplo, todo sábado, os meninos estavam no portão
chamando para treinar e num dia ela se meteu e disse que eu
estava dormindo, mas ouvi e gritei que estava indo, deixando-a
sem graça.
Teve um episódio do relógio que ela emprestou à nossa
mãe. Quando se aproximava do aniversário de nossa mãe, a tia
pediu para nós pegarmos o relógio escondido, pois iria levar
para limpar, trocar o vidro e deixar novo para darmos de pre-
sente. Nossa mãe, sentindo falta do relógio, desconfiou da gente
e pediu para darmos conta do paradeiro e bateu em mim e no
Cristiano por causa disso. A tia viu a situação toda acontecendo
e ficou em silêncio, deixando a gente ser punido. No aniversário
entregamos o presente numa caixinha para nossa mãe, que nos
abraçou e perguntou por que não falamos nada. Então contamos
todo o ocorrido.

Gincana
Um passatempo que fizemos e ficou marcado foi uma
gincana na rua, onde foram divididos os participantes em dois
grupos para fazerem as provas. Uma das provas foi recriar a
Escolinha do Professor Raimundo e o papel que recebi para
interpretar foi o Nerson da Capitinga, uma cena que foi bem
aceita pela galera que assistia.

As Festas e Danças
Tínhamos um grupo de amigos da rua que sempre estáva-
mos juntos, inventando curtições, como festas americanas. Nessas
festas, convidávamos as meninas para participar. A intenção era
chamar para dançar e talvez conseguir uma paquera. Até ganhei
uma fita de músicas que ouvia escondido no som da tia Té. Nossa
prima Nálbia, filha da tia Rosalina, era nossa cúmplice, ajudava
a gente a pegar o som. Nessas festas tinha uma menina que se
interessou por mim e os meninos colocavam “pilha” para a gente

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dançar e acabamos dançando juntos. Dancei por educação e para


não fazer desfeita, mas não tinha nenhum interesse na menina,
mas depois disso, toda festa era a mesma “zoação”.
Outro lugar que frequentamos bastante foi o Pau de Arara,
uma casa de show de forró. Até ensaiar alguns passos na rua a
gente fazia para não fazer feio. O Cícero era um dos mais ani-
mados e quem tentava nos ensinar.
Nessas casas de forró, percebemos que sempre tinham
ambulantes vendendo coisas do lado de fora, então tentamos
entrar nessa. Eu, Cristiano e mais dois amigos (Jorge Henrique e
Nataniel) resolvemos vender café e caldo de carne nas portarias
em dias de festa. O pai do Jorge Henrique era taxista e nos locais
distantes nos levava e ia trabalhar, só retornando pela manhã
para nos buscar. A noite foi longa, pois não conseguimos ven-
der quase nada, ficamos com sono e frio, sem poder ir embora,
enquanto nossa carona não chegasse.

A Barraca do Tchêss
Tinha uns amigos que se reuniam na calçada da rua para
tocar violão, bebendo vodka com Coca-Cola. O Marco, enquan-
to morou em Fortaleza, se juntou aos violeiros nessas noites de
música e bebidas.
Então esses amigos resolveram abrir um negócio. Compra-
ram uma armação de barraca para vender caipirinhas de sabores
diversos, dando o nome de Barraca do Tchêss. Sabiam que eu
desenhava, compraram o pano que cobriria a barraca e pediram
para fazer um rosto e da sua boca saia o nome da barraca.

A Fábrica de Castanhas
Aprendi a andar de bicicleta de um amigo chamado Fran-
cisco. Algumas vezes, peguei emprestada para levar o almoço
da minha tia Rosalina em seu trabalho. Mesmo inseguro, pega-
va a bicicleta e atravessava a BR 116 para chegar na fábrica de
castanhas. Nessa mesma fábrica, nossa mãe tentou emprego e
nós nos revezamos durante o dia na fila e o Marco ficou toda a

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

noite para de manhã nossa mãe chegar e ter um dos primeiros


locais na fila para conseguir uma vaga. Todo esforço foi em vão,
pois a idade a desqualificou.

Fortaleza Esporte Clube


Eu, Eduardo magrão e Paulinho fomos ao centro de trei-
namento do Fortaleza para participar de uma peneira e tentar
vaga no time infantil. Chegando lá soubemos que não haveria o
evento e decidimos não perder viagem e ficamos andando pela
sede e conhecendo o espaço.

O Contato com a Família no Rio


Quase toda semana a mãe ligava do orelhão para meus
irmãos no Rio. Ela sempre mandava cartas e eu também apro-
veitava o envelope para mandar a minha, no intuito de trocar
notícias. Confesso que ficava triste quando recebia as cartas do
Rio e não tinha nenhuma resposta pra mim. Uma vez fiz uns
pedidos e chegaram alguns brinquedos e pipas.

A Tia Rosalina
Quando não queríamos ficar na casa da Tia Té, íamos para
a casa de nossa outra tia Rosa. Ela era muito divertida e a gente
se sentia mais à vontade com ela, inclusive algumas vezes dor-
míamos em sua casa. Era uma casa pequena, humilde, ainda em
construção, mas com tudo isso, era um local que nos sentíamos
bem. Como não tinha luz no banheiro, fiz uma “gambiarra”
levando luz da cozinha para o banheiro que acendia os dois
cômodos juntos, só para não ficar no escuro. Nálbia, filha da tia
Rosa, também era bastante alegre e me ensinava a dançar.

1994 — O Retorno para o Rio


(...) Chegando ao Rio, achei tudo muito diferente, uma casa
ocupava o espaço do quintal que era nosso campo. Era a casa
da Vaninha. Também achei tudo pequeno e tinha lembranças
da casa ser maior e mais espaçosa. Talvez se deva ao fato de que

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

quando morei no Rio, era pequeno e achava tudo grande, mas


agora, com meus quase 18 anos, achava tudo em menor proporção.
Fui estudar na Escola Pública João Cardoso, em Nilópolis,
e arrumei um trabalho numa fábrica de laje na Rua 3, Vila Nor-
ma, onde fiquei por quase um ano. O trabalho era bem pesado,
descarregando tijolos, virando concreto, fazendo vigas e fazendo
as entregas. O Marco também trabalhou lá, mas só ficou uma
semana. Nosso vizinho Sandro (Boniek) ficou comigo e no final
do ano, o dono da fábrica nos pagou com cheque pré-datado para
o próximo ano e ficamos o período de festas tentando sacar, mas
sem sorte. Apesar de ser evangélico, o dono da fábrica maltratava
o cavalo que fazia entregas na carroça.

O Alistamento Militar
Chegou o momento do alistamento militar. Queria servir
na Aeronáutica, como o Valdo, ou na Marinha. Porém, como
fiquei muito tempo fora do Rio, não sabia onde deveria ir me
alistar. Então o Vânio se ofereceu a me ajudar e me indicou um
conhecido que estava fazendo campanha política na Vila Norma,
levando os jovens até o local de alistamento. Informei a ele meu
interesse pelas duas forças e fui levado para Vilar dos Telles.
Depois de fazer o alistamento e ter assinado, percebi que era
para o Exército, ficando chateado e frustrado por não ser minha
opção. Apesar de tudo isso, a vontade de ingressar numa das
Forças era maior, então fui encaminhado para me apresentar para
os testes e exames no REI — Regimento Escola de Infantaria —,
em Deodoro. Depois de todas as etapas, fui informado sobre o
excesso de contingente. Conversei e mostrei meu interesse em
ficar e me pediram para aguardar. Então voltaram com a infor-
mação que só restava vaga para PQD — Paraquedista. Reafirmei
o interesse, mas foi em vão, pois as vagas também se esgotaram.

Os Trabalhos
Não conseguindo servir no Exército, comecei a procurar
emprego. A oportunidade surgiu no Supermercado Real (atual
Supermarket), no Jardim Metrópole. Por lá fiz alguns amigos,

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um deles foi o Sandro (padrinho da minha filha Amanda) e


juntos aprontamos em festas e pagodes, até num bar ao lado do
emprego chegamos a fazer roda de samba. Por lá adquiri expe-
riência profissional e deixei de ser um menino inexperiente e me
tornei homem. No supermercado também começaram a surgir
as paqueras e namorei uma operadora de caixa.
Teve uma garota que se interessou por mim e me convidou
para visitar sua igreja, até para participar de um retiro espiritual.
Acredito que ela queria que eu me convertesse para namorar
comigo. Hoje vejo que naquele momento Deus já trabalhava em
minha vida.
Entre os amigos, formamos um grupo de três rapazes e
combinamos de cada um visitar a igreja do outro. Visitei as
igrejas evangélicas deles, mas quando tiveram que visitar a mi-
nha (igreja católica), se recusaram dizendo que não entravam
em igrejas que adoram imagens. Sem entender, falei que nunca
mais voltaria à igreja deles.

O Assalto
As igrejas dos meus amigos ficavam em Belford Roxo,
uma no Barro Vermelho e a outra no Gogó da Ema. Voltando
para casa, tinha o costume de descer do ônibus ou no centro de
São João ou em Agostinho Porto. Nesse dia, resolvi descer em
Agostinho Porto, na entrada da Rua Délio Guaraná. Ao descer
do ônibus, percebi que um homem desceu em seguida. Quan-
do o ônibus deu partida, senti que ele apertou o passo para se
aproximar. Encostou uma arma nas minhas costas e pediu para
que eu andasse sem olhar para trás. Pediu que eu atravessasse a
rua e entrasse em um buraco da linha do trem. Tentei questionar
e saber o que ele queria e disse que iria me matar, que precisa-
va me matar senão ele quem morreria e me chamava por um
outro nome. Avisei que eu não era quem ele procurava e pedi
para ver meu documento de identidade, mas ele se recusava a
acreditar que era meu aquele documento. Pediu para eu deitar
no chão para me matar. Fiquei com o rosto no chão e percebi
que ele analisava meu documento. Então jogou tudo no chão.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Orei enquanto esperava o homem fazer alguma coisa, até que


o silêncio tomou conta daquele lugar. Olhei e já não tinha mais
ninguém. Recolhi meus pertences e observei que ele levou todo
meu dinheiro que estava separado para comprar uma máquina
de costura nova para minha mãe. Desnorteado, caminhei até
chegar em casa todo sujo de lama. Ao chegar, fui direto para o
banheiro tomar banho, sem que ninguém percebesse, inclusive
minha mãe, pois tinha medo de contar e ela passar mal. Quando
contei o ocorrido para o pessoal do trabalho, disseram que foi
livramento de Deus e hoje concordo que Deus estava cuidando
de mim.

As Farras
Depois do expediente sempre tinha uma bagunça e bebe-
deira para participar. Rolaram também algumas excursões que
organizei, inclusive o Valdo e o Cristiano participaram.
Do Jardim Metrópole fui para a Ilha do Governador e as
farras continuaram. Estive em festa no Morro do Dendê, no meio
de bandidos armados e fogueteiros, mas não tinha perigo, pois
eles nos conheciam e sabiam que trabalhávamos no supermercado.
Até o intervalo do almoço usávamos para fazer alguma
coisa, no caso, jogar futebol num campo próximo, com chuva ou
sol, nada nos impedia. Foram tempos de muita loucura.

1999
Na loja do Jardim Metrópole fiquei durante quatro anos,
até ser transferido, junto com o Sandro, para a loja da Ilha do
Governador. Lá conheci a Silvânia e começamos a namorar, mas
ela tinha uma melhor amiga que cismou comigo e, por trás da
amiga, tentava de todas as formas se envolver comigo. Com
a Silvânia tive um relacionamento e um ano depois nasceu a
Amanda.
Minha filha era minha felicidade. Entretanto, com o passar
do tempo, a relação com a mãe da minha filha não andava bem.
Algumas coisas que ambos fizeram não foram legais e isso co-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

laborou para um desgaste emocional. Começamos a viver como


dois amigos, até que resolvi sair de casa.

Amanda

2005
O tempo passou e conheci Fabiana, a mulher que se tornou
minha esposa, com quem escolhi viver e amar muito. Através
dela passei a enxergar a vida com outros olhos e conheci Deus
em sua intimidade, aquele que sempre esteve comigo me pro-
tegendo e guardando. Há 15 anos sou casado com Fabiana, a
quem tanto amo.
Para minha felicidade se tornar plena, falta a aproxima-
ção da minha filha, que acabamos nos afastando por toda sua
adolescência e juventude. Sempre quis ser um pai melhor para
não me comparar ao meu pai, mas sinto que minha ausência
me tornou pior, mas creio que ainda há tempo, pois enquanto
houver vida, há esperança.
Atualmente vejo o meu pai com outros olhos e percebo
que tudo que ele fez foi para ficar junto de nós, mesmo de um

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

jeito estranho. Boas lembranças dele quando fazia caipirinha,


comprava cerveja, tudo para ficarmos juntos.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Fabiana, Wilson, mãe e pai

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Lembranças do Cristiano

1978 a 1989

A
princípio darei início às lembranças até os meus 11
anos, momento da ruptura da família. Saltarei a cro-
nologia para registrar minhas memórias coletivas até
dias atuais. Depois retorno ao período de 1989 a 1994, período
em que vivemos no Ceará que considero a pior fase que nossa
família viveu.
Minha lembrança mais remota é de um colo, uma mama-
deira e uma música para ninar: “eu tanto ouvia falar de ti, por
isso hoje estou aqui…”; era a Vanda, minha irmã, cuidando de

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

mim. Sua companhia se fez presente sempre em minha infância,


seja em casa, seja acompanhando-a para ir à missa na Igreja de
São Sebastião, onde frequentei, estudei catequese, fiz minha
primeira comunhão aos 10 anos junto com o Wilson e ajudei
como catequista nas aulas de catecismo. Adorava acompanhá-la
nas reuniões, nos ensaios da Missa Leiga, ensaios de caipira nas
festas juninas, onde também participei da caipira das crianças,
nas aulas no jardim de infância nas escolas em que ela dava
aula. Foram momentos marcantes que ainda estão frescos na
memória, como se todos esses anos passados fossem ontem. A
Vanda foi também quem me alfabetizou e tudo que precisava
aprender numa escola de jardim não foi preciso, pois tive em
casa. Quando fui para a escola estava pronto, inclusive juntando
algumas sílabas.
Soube que a escolha do meu nome foi sugestão da Vera,
inspirada no personagem do Francisco Cuoco na novela Selva
de Pedra. Posso dizer que tive sorte, pois nosso tio Ivo tinha su-
gerido Christian Gray e com certeza não era por causa do filme
50 Tons de Cinza que nem existia, mas por causa do nome de
uma revista de cosméticos. Na época esse nome certamente seria
motivo suficiente para sofrer muito bullying.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Como de costume, fui batizado pequeno na igreja católica,


mas como nossa mãe queria que os padrinhos fossem sua irmã
mais velha e seu esposo, viajamos para Fortaleza-CE para meu
batismo sob as bênçãos da tia Teonísia e marido.

Em fortaleza: Tia Teonísia, mãe e Cristiano

Vaninha, Vanda e Tânia eram as minhas três mães/irmãs.


Enquanto nossa mãe estava certamente na labuta ou lavando
roupas ou passando roupas ou costurando, era com elas que eu
passava a maior parte do tempo. Essas três marias, ainda adoles-
centes, já colocavam em prática a maternidade, pois cuidavam
e ajudavam na criação dos irmãos, principalmente dos ainda
pequenos: eu ainda bebê, Wilson (2 anos) e Cristina (3 anos).
Wilson e Cristina eram meus irmãos mais próximos, que
me acompanhavam nas brincadeiras pelo nosso quintal da casa
da Rua Anápolis (a última casa até os dias atuais), correndo
atrás da Carina (nossa cachorra) e dos gatos Mimi e Nonô. À
tarde, tomávamos banho, trocávamos de roupa e ficávamos os
três sentados no portão pegando sol, olhando-o se pôr e vendo
desenhos que se formavam nas nuvens. Também tinha a criação
de galinhas que ficavam no Botafogo e que nossa mãe, com suas
simpatias, fazia eu ou o Wilson ficarmos pelados para colocar os

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

ovos que alguma das galinhas chocaria para nascerem pintinhos


com o pescoço pelado.
Valdo, Marco e Jorge já estudavam e por isso não estavam
o tempo todo com a gente, além disso, lembro-me de que, ainda
adolescentes, começaram a trabalhar em bancas de jornal para
ajudar nas despesas de casa. Também eram eles que jogavam
futebol no quintal com alguns amigos da rua e depois criaram
o time Anápolis, além de organizarem várias brincadeiras legais
das quais pude participar.
Por falar em brincadeiras, como não me lembrar do nosso
imenso quintal, que se transformava em nosso mundo mágico?
Monteiro Lobato nos fazia viajar nas histórias contadas no Sítio
do Picapau Amarelo e, por vezes, reproduzíamos no balanço
no meio do quintal, até cair no mundo de Robson Cruzoé ou
no Labirinto do Minotauro ou no Reino Encantado das Águas.
Depois teve a fase das corridas de perna de pau, atravessar o
quintal com obstáculos sem pisar no chão e, assim, a gente abu-
sava da criatividade.
Com o desenvolver da patologia, Cristina foi ficando cada
vez mais reticente, o que naturalmente criou um afastamento
entre nós, principalmente nas brincadeiras de infância, o que
ocasionou uma aproximação maior entre mim e Wilson. Nós
dois nos tornamos parceiros nas criações dos patinetes (carrinho
de rolimã), jerequinhos (pipa de papel), balanços, subida em ár-
vores e muitas outras brincadeiras. Essa parceria se prolongou
por anos e, mais tarde (já no Ceará), juntos criamos meios para
ganhar dinheiro e contribuir nas despesas de casa, como fazer
pipas para vender ou vender doces nas ruas. Também criamos
o União, time de futebol inspirado pelas Olimpíadas de 92 e em
nossas lembranças do Anápolis, criado por nossos irmãos. Por
um tempo chegamos a estudar juntos em algumas séries, então
juntos também estudávamos para as provas.
Uma família grande, com 12 filhos, tem suas peculiarida-
des. Voltando às recordações mais longínquas, eventualmente
recebíamos visita de uma mulher muito bonita, amiga de escola
da Vanda e Vaninha. Na verdade, era assim que eu pensava, mas

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

essa pessoa não era uma simples amiga das minhas irmãs, era a
primogênita dentre os 12 irmãos, nossa irmã Vera. Logo que nasci
ela se casou com Orlando e por isso minha intuição e percep-
ção afetiva falha inicialmente em reconhecer nossa irmandade.
Essa dúvida aos poucos se dissipou, principalmente quando
ela chegava com meus sobrinhos Dinho, Nando e Tati e juntos
brincávamos naquele quintal como se fôssemos todos irmãos.
Outro que, devido ao hiato de tempo entre nossos nasci-
mentos, tive pouco contato nos primeiros anos de idade era o
Vânio. Enquanto eu começava a andar, ele ingressava nas forças
armadas. Vem à recordação ele namorando com a Rosinha,
com quem gostava muito de estar por perto porque entrava
nas nossas brincadeiras. Com ela noivou e lembro-me de ir ao
seu casamento.

Nosso tio Ivo morou um tempo conosco, na verdade no


quartinho, e me recordo de estar deitado no seu quarto, ouvindo
música com volume no máximo, bem perto da sua vitrola e de
suas caixas de som potentes. Depois ele foi embora e nossa tia
Fátima o substituiu junto com o Haroldo, seu filho de coração.
[Ivo nos visitava desde a Casa da Rua Araci, mas nesse período
eu ainda não era nascido].

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Não sei até quando, mas sei que mamei durante muito tempo,
talvez até os 3 anos, e isso trouxe incômodo nos meus irmãos,
até começarem a tentar me tirar do peito. Tinha vergonha, mas
a vontade de ficar no colo da minha mãe mamando era maior.
Somente o “homem do cigarro” me tirava dali, porque morria
de medo. Era uma máscara horrível de um homem com cigarro
que alguém usava e aparecia na porta ou nas janelas quando eu
estava mamando. Até hoje não sei quem era, desconfio do Vânio,
Haroldo ou tio Ivo, mas podia ser qualquer um.
Eu tinha meus 3 anos quando nossa mãe engravidou e
acabou com minha pretensão de ser o caçula. Daniel nasceu,
ocupando definitivamente esse título. Mas antes de ele nascer,
houve um episódio que ficou para sempre cicatrizado em mim.
Enquanto nossa mãe estava grávida, num determinado domingo
nosso pai comprou uns refrigerantes e nesse tempo as garrafas
eram de vidro. Então ele chegou e colocou as garrafas na mesa,
pois seriam servidas durante o almoço. A vontade de tomar o
refrigerante era tamanha que fiquei grudado na mesa à espera,
mas como era pequeno, não conseguia ver as garrafas, então
resolvi me apoiar na mesa. O inevitável aconteceu, pois a mesa
balançou, uma garrafa caiu no chão e se quebrou. A pressão do
gás fez com que os vidros quebrados se espalhassem com força,
acertando e cortando minha perna esquerda. Devido à gravi-
dez de minha mãe, quem me levou ao hospital foi a Vaninha e
Baixinho, seu namorado. Como disse, a lembrança e a cicatriz
carrego até hoje.
Inicialmente, Daniel foi o que ocupou o meu lugar, era
esse meu sentimento. Depois, com seu crescimento, tornou-se
o substituto da Cristina no antigo trio e, juntos com Wilson,
aprontamos muito no Rio, depois Acaraú e Fortaleza. Quando
chegou seu momento de alfabetizar, fui eu quem ensinou as
primeiras lições de como escrever seu nome, contas, leitura
e os exercícios de casa. Confesso que era bem complicado
porque ele era muito mimado e chorava para não estudar e
nosso pai, por vezes, me impedia de ensinar para atender aos
caprichos dele.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Assistir a filmes e a desenhos era uns dos melhores entrete-


nimentos. Gostava de ficar assistindo aos filmes dos Trapalhões
e podia reprisar todo ano que daria audiência, mas o que mais
me atraía era Os Saltimbancos Trapalhões, talvez por ser musical, já
era apreciador do Chico Buarque sem saber quem era. O Mágico
de Oz também era um dos preferidos. Lembro-me de ver filmes
do Elvis Presley e do Roberto Carlos por conterem músicas,
mas não curtia muito, só ficava ali pra estar na companhia dos
irmãos. Depois veio o tempo dos desenhos japoneses na extinta
TV Manchete, no programa Clube da Criança, apresentado pela
Angélica. Daniel, eu e Wilson interrompíamos tudo para acom-
panhar cada episódio do Jaspion, Changeman, Flashman, Jiraya,
Black Came Rider, Jiban, Lionman, Metalder e Maskman.
Dia 27 de setembro é dia de Cosme e Damião. Aqui no Rio
essa data se tornou manifestação cultural. Todo ano era certo
eu com meus irmãos corrermos pelas ruas de Éden para pegar
doces o dia inteiro. Quando era perto de casa, levávamos até a
Cristina. Se fosse longe e quem estivesse dando aquele saqui-
nho de doces não nos conhecesse, usávamos da malandragem
carioca para pegar mais de um saco de doces, era uma criança
com camisa e outra sem camisa. No final do dia, juntando todos
os sacos, conseguíamos encher uma bacia grande.
Dos amigos de infância mais próximos, alguns são im-
portantes lembrar. Jaqueline, filha da nossa vizinha Lourdes e
Hamilton, foi minha paixão de infância. Adorava brincar com
ela, ir a seus aniversários, ouvir seus discos do Balão Mágico
e Trem da Alegria e esperar suas visitas nas festas de final do
ano. Depois chegou a família da Dona Marivan e seus filhos
Dudu, Janaína e a pequena Natália andaram e brincaram muito
conosco. Saindo da Rua Morrinhos e vindo morar em frente a
nós, chegaram Fábio, Marcelo e Dudu Pequeno.

O Relacionamento Pai e Filho


Jacó tinha 12 filhos, mas ele tinha aqueles a quem mais amava.
A predileção é encontrada até na Bíblia e não seria diferente numa
família de 12 filhos como a nossa. Era velada, mas perceptível,

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

apesar de não se falar dos favoritos explicitamente. Apesar de


eu ser o 11º como José, não estava na lista dos bem quistos. Isso
me incomodava, principalmente quando as demonstrações de
afeto se revelavam em castigos injustificáveis quando meu pai
chegava. Incômodo maior era ver meu pai quase sempre embria-
gado e esse era o motivo dos castigos. Foram raras as vezes que
me lembro dele sóbrio em minha infância. As brigas com minha
mãe eram constantes. Confesso que sentia um alívio quando ele
viajava. Merecidamente, levei um tapa de minha mãe quando
num dia seguinte aos castigos, após uma dessas brigas, sugeri
que ela se separasse do meu pai. Apesar de ser uma presa fácil
para meu pai descontar suas doses de cachaça, não cabia a mim
essa decisão, muito menos sugerir.

O Engajamento
Acompanhar os mais velhos sempre foi um prazer pra mim.
Em 1988, Marco e Vanda começaram a se envolver na política
e apoiar o PT na candidatura de um prefeito (Ernani Coelho)
e uma vereadora (Lia). Quando tinha reunião, era certa minha
presença e ficava ouvindo tudo aquilo mesmo sem entender, mas
me sentia atraído. O contexto de tal atração somente se evidenciou
no ensino médio, já morando de volta no Rio (1994), quando tive
um trabalho de sociologia para entregar e a tarefa era ler trechos
do livro O Capital, de Karl Marx. Quando entendi o marxismo,
aquela atração da infância logo se descortinou, ao descobrir
a luta de classes, a organização política dos trabalhadores (as
saudosas reuniões do PT), o que me levou a um posicionamento
esquerdista, de igualdade social.

Os Estudos
De 1986 a 1988, como meus irmãos, estudei no Maurício
Brum (1a, 2a e 3a séries). Com a mudança para Acaraú, por falta
de vagas, estudei numa escola particular, chamada Ginásio São
José (4a e 5a séries — 1989 e 1990). Depois viajamos para Fortaleza
e estudei em escola pública novamente — Escola José de Barce-
los (6a, 7a e 8a séries — 1991 a 1993). Voltando para o Rio, estudei

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

o ensino médio no Brizolão — GP Paulo Pontes (1994–1996).


Interrompi os estudos (servi a Aeronáutica de 1997 a 2002) e só
voltei em 2007, onde fiz o curso de Direito e me formei em 2014,
trabalhando na área jurídica até o momento.

Dona Nazaré e Eu
No período em que moramos no Acaraú (1989 a 1991), vale
lembrar da Dona Nazaré. Ela se tornou uma pessoa importante
na cidade. Além de ser uma ministra na igreja, as pessoas mais
humildes sempre lhe procuravam pedindo ajuda. Ela tinha um
trabalho assistencialista, distribuindo aos necessitados tickets
para compra de leite, tickets para compra de gás de cozinha e
distribuição de cestas básicas. Por um período ela pediu para
nossa mãe para enviar um de nós para ajudá-la nessas tarefas
e minha mãe pediu para eu ajudar. Fui para a casa dela e de lá
fomos para o fórum para fazer cadastro de alguns moradores para
controle nas distribuições. Às vezes, sua filha Fátima viajava e
ela ficava sozinha com a Ritinha e eu ia para sua casa para fazer
companhia, já que Seu Zé ainda estava no Rio. Muitas vezes a
acompanhei em trabalhos no campo, entrando nos sertões mais
humildes da cidade para cadastrar famílias e crianças que nem
certidões de nascimento tinham, levava também uma balança
(tipo rede) para pesar as crianças e ver se o peso condizia com
sua idade ou se estava desnutrida. Foi um trabalho de aprendi-
zado, vendo de perto famílias em situação de miséria e que viam
esperança quando essa senhora chegava até eles.

Exílio? Talvez

(...) Sim, melhorou quando formos para Fortaleza, mas a


falta de liberdade, de ter nosso espaço, morar na casa de terceiros,
mesmo sendo uma tia, não amenizou a vontade de reencontrar
toda a família mais uma vez. O Marco foi morar com a gente um
período em Fortaleza, acho que também foi enganado para estar
junto a nós, mas certamente ele contará melhor esse episódio.
E depois de quatro anos e dez meses, estava de volta à casa
da Rua Anápolis. A casa já não era a mesma, o tempo também

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

a envelheceu. O Duque, nosso cachorro depois da Carina, era


jovem quando partimos e agora já estava bem velhinho. Parte
do quintal serviu de espaço para a casa da Vaninha. A família
tinha crescido e via muitos sobrinhos correndo pelo quintal,
que agora era só a metade. Outros desafios surgiam. Bora viver?

1997 — O Militarismo
Em conversas de infância, vendo nossos irmãos mais velhos
(Vânio e Jorge) indo para o quartel, sempre ficávamos planejan-
do em qual das três forças armadas serviríamos e sempre tive
simpatia pelo uniforme azul da Aeronáutica.
Esquecendo as conversas de garoto, antes dos 18 anos estava
focado em entrar em alguma das forças, não importava qual se-
ria, até mesmo pra voltar a colaborar nas finanças de casa. Então
fiz prova para entrar no Colégio Naval, mas não consegui nota
suficiente. Não desisti e tentei novamente, agora para Aprendiz
de Marinheiro e dessa vez fui aprovado. Comecei a primeira
fase de avaliações médicas e logo fui reprovado.
Em 1996 era o ano que completaria 18 anos e tinha que me
alistar. Meu irmão Valdo serviu na FAB durante seis anos e no
seu final de tempo de serviço chegou minha vez. Conversamos
e combinamos de me alistar na Aeronáutica e se fosse apto para
servir, me indicaria aos seus superiores para me puxar e trabalhar
no mesmo quartel onde ele servia. Nesse ano estava terminando
o ensino médio também. Na Base Aérea do Galeão fiz os testes
físicos e exames e fui apto para ingressar na FAB. Designaram-me
para o recrutamento na Base Aérea de Santa Cruz, onde fiquei
por seis meses. O ano terminou, concluí o ensino médio e nos
primeiros dias de 1997 estava a caminho de Santa Cruz. Durante
esse período, como não tinha dinheiro de passagem para voltar
todos os dias para casa, tornei-me residente e só voltava para casa
nos finais de semana, se não estivesse de serviço. Em junho foi a
formatura e uma semana depois, a primeira turma de 97 estava
se separando, cada um seguindo seu destino. Com a indicação
do Valdo, fui servir no PAMB — Parque de Material Bélico do

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

RJ —, onde fiquei por quatro anos, sendo o primeiro ano junto


com meu irmão Valdo, que finalizava seu tempo de serviço.

Em Santa Cruz, por algumas noites, fui convidado por


alguns colegas para participar de cultos que eles organizaram.
Nesse momento ouvi pela primeira vez aquelas músicas que fa-
lavam com minha alma, uma sensação diferente e que me fazia
sentir um alívio no coração. Foram experiências que ainda não
tinha sentido enquanto passei por todo tempo que frequentei as
igrejas católicas, mas não passou das sensações. No PAMB tam-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

bém recebi esses convites para participar dos cultos e aqueles e


outros louvores voltavam a mexer com meu íntimo. As palavras
que os colegas traziam começavam a fazer mais sentido e falar
com meu espírito.

1999 — Conversão
Enquanto servia, não deixava os estudos de lado e nesse
período estava destinado a me tornar sargento e fazia cursinhos
preparatórios para alcançar meu objetivo. Numa noite, Valdo, que
gostava de curtir baladas, me chamou para largar um pouco os
estudos e sair com ele. Estava precisando espairecer e aceitei o
convite. Fomos juntos para a extinta Choperia Tropical em Irajá,
onde ele encontraria uma menina com quem ele estava se relacio-
nando. Ela levou sua irmã que tinha terminado namoro naquele
dia e fomos apresentados. De início, não me interessei, além de
conhecer o ex dela, mas depois de algumas cervejas, o interesse
surgiu e, bêbado, comecei a investir. Não sei exatamente o que
falei devido às muitas doses, mas sei que não consegui nada.
Alguns meses se passaram, Valdo continuava com aquela
menina e marcamos de retornar mais uma vez naquela choperia.
A irmã continuava solteira e, dessa vez, de cara limpa, conversa-
mos um pouco e até aconteceu, acabamos ficando naquela noite.
O tempo passou, Valdo continuava com aquela menina e no
Natal de 1998 ele ligou para desejar felicitações. Acabei pegando
o telefone para desejar feliz natal para a Elaine. Conversamos
um pouco mais e ela me convidou para ir à sua casa no dia
seguinte, pois teria um churrasco. Conforme combinado, fui à
Penha e ficamos mais uma vez. Conheci sua família e a partir
desse momento iniciamos um namoro.
Tínhamos muitas coisas e objetivos em comum. Conversá-
vamos sobre tudo, inclusive religião. Contei de minhas experiên-
cias de criança e do que passei no quartel e ela me falou as dela,
de passar por muitas igrejas, de quando criança visitar o centro
espírita que seu tio era dono, mas estava visitando uma igreja
e lhe fazia muito bem. Combinamos de visitar juntos e na pri-
meira visita aquela sensação dos encontros do quartel reacendeu

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

de forma intensa. Aquele homem pregando parecia que trazia


um recado de Deus para mim. Foi nesse dia que tivemos nossa
experiência de ouvir Jesus falar conosco e, juntos, eu e Elaine
nos convertemos. A partir daí, estar na Nova Vida de Olaria era
nosso maior desejo. Trabalhamos muito nessa igreja, em vários
ministérios, onde servimos por dez anos.

2002 — O Casamento
Elaine é minha parceira, minha confidente, meu tudo, meu
amor. Sempre apoiamos um ao outro e acredito que assim deve
ser um casamento. Quando a conheci, ela estava totalmente
desmotivada com os estudos. Incentivei-a a retomar e assim
ela concluiu o ensino médio. Já casados, começamos juntos a
faculdade, eu fazendo Direito e ela Serviço Social. Ela se formou
primeiro, depois chegou a minha vez. Estar ao seu lado até hoje
é um presente de Deus para mim. Eu te amo!
Meu namoro durou dois anos e houve a certeza de que
nossa relação deveria seguir adiante e que devíamos alicerçar
essa união, em 2001 ficamos noivos. Minha mãe esteve junto de
nós nesse dia, junto com os pais da Elaine, e simbolizamos esse
momento com alianças.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Os preparativos para o casamento já estavam em anda-


mento, comprando enxoval, móveis e eletrodomésticos, além
da procura por um lugar para morar. No dia 28 de setembro de

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

2002 fizemos, pela manhã, nossa cerimônia de casamento, um


dia inesquecível. Quem da família pôde estar presente naquele
sábado compareceu, junto com toda a família da Elaine e amigos
mais próximos que testemunharam desse dia.

Pai, Elaine, Cristiano e mãe

O ano que trago essas memórias é 2020 e até este dia estamos
juntos e seguimos caminhando. No início do casamento tínhamos
planos de ter um casal de filhos, mas os planos de Deus são maio-
res que os nossos. Descobrimos que Elaine tem endometriose, o
que dificultava para engravidar. Como os endométrios estavam
bem agressivos, ela passou por cirurgia, perdendo uma trompa
e um ovário, mas isso não a impedia de uma futura gravidez.
O tratamento foi feito à base de medicamentos e a cura veio. O
médico diagnosticou e recomendou que, para uma futura gravi-
dez, seria ideal uma inseminação artificial, pois se tentássemos
parar com os medicamentos para uma reprodução tradicional,
os endométrios poderiam voltar. Então optamos por não tentar
nada, pois já estávamos acostumados a viver um para o outro
e decidimos não ter filhos. Hoje vivemos bem nessa escolha e
seguimos com outros sonhos, realizando nossas metas, no amor
que nos envolve e que nos une.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

...
Doze irmãos e quatorze sonhos, cada um com uma missão
a cumprir e que juntos contam por aqui suas histórias, com a
visão particular dos acontecimentos de nossa família. A sauda-
de dos três que nos deixaram é grande, mas suas vidas estarão
sempre conosco, sendo escritas saudosamente por onze mãos.

1989 — A Partida: O retorno à terra natal ou rumo ao


lugar desconhecido?!?
Abril de 1989. Família dividida, corações apertados, lágri-
mas nos olhos. Esse dia foi marcante para toda a família, um
divisor de águas: aqueles que ficaram teriam de ser mais fortes
e independentes; os que foram embora teriam de se adaptar a
um lugar totalmente novo e desconhecido.
Voltando um pouco no tempo, nosso pai estava se sentindo
doente e ele acreditava que isso se dava ao fato de estar numa
cidade grande, onde o clima não era favorável e precisava de ar
puro, sem correria, sem o “stress” do dia a dia. Ele acordava cedo,
pegava condução lotada, saía para trabalhar e passava mal com
tudo isso. Tanto tempo morando no Rio de Janeiro e parece que
não se acostumara com a rotina de uma metrópole.
Nosso pai, em algumas conversas com nossa mãe, lembrava
com muito saudosismo da cidade onde nasceu e cresceu. Acaraú
é um município do estado do Ceará, localizando-se a 238 km de
Fortaleza e a 01h30 de Jericoacoara. O desejo de retornar à cidade
natal era latente e entre as conversas com amigos contemporâneos,
sempre se falava em retornar, e assim aconteceu.
Família, emprego, casa, tudo ficou pra trás e ele foi em-
bora para Acaraú, depois de brigas e desavenças. O objetivo
dele era que todos fossem embora com ele. Venderia a casa,
deixaria tudo para realizar seu sonho, mas não foi assim. Nos-
sa mãe não o apoiou, pois muitos dos filhos já eram maiores
de idade, alguns casados, com suas vidas construídas, e não
concordaram em largar tudo e partir. A casa não foi vendida
conforme nosso pai queria, então sendo contrariado, resolveu
ir embora sozinho.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Apesar dessa falta, a família continuou levando sua vida


como de costume. De tempo em tempo nosso pai ligava para
uma vizinha, que chamava nossa mãe, que corria para atendê-lo
e gastavam tempo conversando, a saber novidades de lá, a levar
notícias de cá e no final das conversas nosso pai sempre fazia o
convite: irmos embora para ficar com ele. Alguns dos filhos eram
bem pequenos, o caçula Daniel, por exemplo, sempre perguntava
pelo pai, pois eram bem próximos. Acreditamos que nossa mãe,
além de sentir saudades do marido, tinha a preocupação dos
filhos serem criados longe do pai e isso poderia não ser saudável
para a criação deles, principalmente dos menores.
Aquele convite “vem ficar comigo” com o tempo se con-
cretizava e não era como ir a uma festa de casamento, uma
festa de formatura ou uma festa qualquer. O convite era triste,
pois junto vinha a mudança, o recomeço, o rompimento, a
saudade.
Sempre que nosso pai ligava, só dizia coisas boas, que es-
tava trabalhando, que tinha uma casa deixada por sua mãe de
herança e que se fôssemos embora teríamos um lugar pra ficar.
Era possível perceber que essa ideia gerava grande comoção
no coração de nossa mãe, que cada vez mais estava inclinada a
tomar uma decisão final.
Pela maneira romantizada que nossos pais contavam do
lugar de suas origens, para nós, principalmente as crianças,
soava como história de faz de conta, um lugar bucólico, tipo
uma fazenda, com muitos animais para brincar e ser feliz, mas
a realidade poderia ser bem diferente e não passar de fábulas
com um final.
No final de 1988 nossa mãe tomou a decisão, ir embora
morar com nosso pai na casa que ele herdou no Acaraú. Foi uma
conversa triste, pois teria que decidir quem iria e quem ficaria.
Daniel, Cristiano, Wilson, Cristina e Valdo, que eram menores,
estavam certos de ir. A Tânia, que apesar de ser adulta, era de-
pendente da minha mãe por motivos óbvios, também entrou na
lista dos que iam. Vanda, Jorge e Marco trabalhavam e tinham
suas vidas em decurso e resolveram ficar. Vera, Vânio e Vânia já

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

eram casados, com famílias constituídas, filhos, não precisavam


entrar nessa lista.

A Chegada no Acaraú
Ir de ônibus do Rio de Janeiro para o Ceará é uma aven-
tura. São dois dias de viagem, cortando cidades do Espírito
Santo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco até chegar ao Ceará.
Foram dias tristes dentro daquele ônibus para os que foram.
Por mais que o panorama visto da janela pudesse ser lindo, com
os encantos de cada cidade que passavam aos nossos olhos, a
lágrima e a saudade sempre prevaleciam. Assim foi por todo o
percurso até o paradeiro. Dois dias se passaram e chegamos a
Fortaleza, cidade que mais tarde será outro lugar de moradia.
O ônibus encostou-se à plataforma e nosso pai estava lá à nossa
espera. Pegamos outro ônibus, agora juntos com nosso pai com
destino a Acaraú. Pelo menos mais 5 horas aproximadamente
até chegar à cidade.
Já era noite quando, enfim, chegamos em Acaraú. Como
é uma cidade de interior, não tem rodoviária, os ônibus param
numa rua. Pegamos uma caminhonete que nos deixou próximos
do destino final, Rua Manoel Sales, vulgarmente conhecida como
a rua dos cabarés. Paramos em frente a um bar do Sr. Malaquias
e dali até a casa fizemos o percurso andando. Logo que desce-
mos da caminhonete ficamos espantados com um som até então
desconhecido, era o coaxar de muitos sapos num brejo.

A Casa
O local onde fixaríamos residência era a primeira mentira
de nosso pai. A casa que herdou de sua mãe já estava ocupada
por uma de suas sobrinhas, uma família com muitos filhos.
Ele não conseguiu pedir para desocupar a casa, mas teve outra
ideia. A casa que era dos nossos avós, pais de nossa mãe, estava
“livre”, tinha somente uma tia nossa com a filha. Foi nessa casa
que passamos os próximos 1 ano e 10 meses.
Chegando na casa, conhecemos a tia Aurila e sua filha
Euriane. Era uma mulher só, semblante triste, vivia de costuras.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Alguns anos atrás havia se separado, na verdade fugido de casa


das agressões e tentativa de morte de seu ex. O único lugar que
restou para ela morar após a separação foi aquela casa. Enquanto
foi casada, se achou no direito e vendeu grande parte do terreno
dos nossos avós, comprometendo uma divisão por igual desse
bem da família, inclusive ficando sem direito nenhum num
momento em que fosse partilhar essa herança.
A casa era muito precária, feita de pau a pique com barro.
Tinha um quarto, sala e cozinha. O banheiro ficava separado
da casa, no quintal, costume das cidades pequenas do Norte e
Nordeste naquela época.
Éramos 8 pessoas e mais 2 que já estavam naquela casa tão
pequena. Fomos decidir como seria pra dormir. Nosso pai havia
dito que tinha providenciado tudo. Tinha uma cama de casal que
ficou para nossos pais. Nossa tia e sua filha tinham suas redes.
Nosso pai disse que rede era cara, então comprou 3 tucuns (tipo
de rede vazada, podendo ser feita de palha ou tecido), cada rede
para dois, que deviam ser distribuídas na sala. A decepção e
frustração se juntavam à saudade de casa e as primeiras noites
só podiam ser acompanhadas de muito choro.
Como chegamos à noite, não pudemos nos atentar aos
detalhes do lugar. No dia seguinte deparamos com a realidade.
A casa não tinha nada, a não ser aquela cama de casal e um
guarda-roupa antigo que era usado por nossa tia. Nossas coisas
ficaram onde já estavam: caixas, bolsas e sacolas. Sem televisão,
sem geladeira, sem fogão, lavar roupa dentro de bacia. A casa
tinha luz, mas não tinha água encanada. Havia um grande barril
que era onde depositávamos água para beber. O quintal era um
terreno enorme com muitas árvores e uma mata densa. O ba-
nheiro ficava distante uns 15 metros da casa e tinha uma trilha
para se chegar lá. Nossa mãe improvisou na cozinha um fogão a
lenha. Era só isso. A precariedade era tanta que não nos restava
outra coisa senão todos arregaçarmos as mangas e trabalhar.
Primeiro tivemos que dar um jeito naquele terreno. Toda
aquela mata atraía muitos insetos e animais. Desmatamos e
capinamos, podamos as árvores até se tornar um lugar decente.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Aproveitamos madeiras e juntamos para se tornar lenha. Apro-


veitamos parte do local para fazer um campo de futebol, onde
recebemos muitos garotos e primos para brincar e jogar bola.
A falta de água era outro problema a ser vencido. Come-
çamos buscando água de poço de uma prima distante. A casa
era próxima, mas como nós pegávamos muita água pra encher
todos os reservatórios para beber, cozinhar, lavar roupa, tomar
banho, eram várias idas e vindas carregando água e percebemos
que nossa presença incomodava. Então resolvemos mudar de
local para abastecer. Como a maioria das casas não possuía água
encanada, e isso era um luxo destinado à elite local, a prefeitura
espalhava por determinados pontos da cidade chafarizes, que
eram um tipo de cisterna com várias torneiras onde a popula-
ção poderia usar e abastecer suas casas. Essa rua possuía um
chafariz, mas ficava distante, uns 300 metros de distância, e foi
desse reservatório que passamos a utilizar por todo o tempo
que moramos.
Nossa mãe colocava seu balde na cabeça e ia equilibrando
até chegar em casa, como um costume de infância. Lavava rou-
pas de cócoras, pois não havia um tanque. Cortava lenha dos
troncos de árvores e quando não tinha mais no quintal íamos
pelos terrenos vazios à procura de lenhas para abastecer a casa.
Foi um tempo muito difícil para todos, mas o tempo foi mais
cruel com ela. Para nós foram 1 ano e 10 meses e deixamos de
ver umas novelas, tipo Que Rei Sou Eu, Top Model, Tieta, a Copa
de 90, a morte do Cazuza. Para nossa mãe, as perdas foram mais
profundas e o tempo foi feroz. Era uma mulher forte, mas sua
força não conseguiu suportar as marcas do tempo, que ficaram
registradas em seu semblante e em seu porte físico. A impressão
era de que havia passado 5 anos.
O emprego do nosso pai também era parte de suas fanta-
sias. Não tinha emprego com carteira assinada, e sim trabalhos
como pintor de carros em algumas oficinas, às vezes pintor de
casas, mas o dinheiro era muito pouco pra tantas bocas. Nossa
mãe, além de todo esse trabalho doméstico pesado, arrumava
costuras para ajudar nas despesas.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Levamos uma vitrola e essa foi a nossa diversão nos pri-


meiros dias. Ouvíamos nossos discos, RPM, Legião Urbana,
Michael Jackson, e viramos atração da vizinhança. Essas músicas
não eram do costume local, então eles perguntavam se tínhamos
Beto Barbosa ou algum forró. Essa alegria durou pouco tempo
porque nosso pai vendeu o aparelho.
O Valdo participou de tudo isso, mas como estava com 17
anos e não se conformava em ficar naquele local vendo todo esse
sofrimento, ficou somente por 4 meses. Um rapaz estava indo
para o Rio de Janeiro e essa foi a deixa para ele retornar, depois
de muito insistir. Antes disso, porém, teve seus perrengues.
Nosso pai arrumou um trabalho para ele. Levar lavagem para
os porcos de um amigo. Só que para chegar ao local era uma
jornada, tinha que atravessar andando por um rio e tinha que ser
rápido enquanto a maré estava baixa, pois o rio podia se tornar
caudaloso e ele se afogar. O Valdo foi embora, sim, não só pelo
seu inconformismo, mas cremos que Deus tinha lhe reservado
uma missão maior, que veremos mais tarde.

As Escolas
A matrícula nas escolas também foi mais uma mentira que
nosso pai garantiu como certa para nossa mãe. Como foi dito
antes, o ano letivo nas escolas do Nordeste começa em fevereiro
e chegamos na cidade em abril. O Valdo e o Wilson nossa mãe
conseguiu matricular, mas o Cristiano e o Daniel não.
Valdo e Wilson conseguiram se matricular na Escola Tomaz
Pompeu de Sousa Brasil, conhecido com Grupo Novo. A outra
escola pública mais antiga da região era conhecida como Grupo
Velho, onde nossa mãe estudou e tentou matricular Cristiano
e Daniel.
Como o Daniel completaria 7 anos, nossa mãe resolveu
colocá-lo numa explicadora onde todas as crianças da região
passavam antes de se efetivar numa escola. Essa explicadora era
prima de nossa mãe. Sua metodologia de ensino passava longe
do método Paulo Freire, era o antigo ensino à palmatória. Em

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resumo, Daniel tomou muita palmada na mão e não conseguiu


se adaptar, muito menos aprender algo.
Já para o Cristiano, nossa mãe não conseguiu vaga em
nenhuma escola pública. Então foi numa escola particular, cha-
mada Ginásio São José. Conversou com a diretora sobre nossa
história e ela se sensibilizou. Lembrou do sobrenome e disse
que as famílias tinham um parentesco, mesmo que distante.
Foi assim que concedeu uma bolsa de estudos. No ano seguinte
Wilson também foi estudar lá e o Daniel começou a estudar no
Grupo Novo.

As Crianças Também Trabalham

Como o dinheiro que nosso pai ganhava nos “bicos” era


pouco e as costuras de nossa mãe também, as crianças come-
çaram a ajudar a trazer o sustento para casa. Nossa mãe fazia
cocada e vendiam na escola e em eventos religiosos ou políticos
na região. Depois começaram a vender bolo nas ruas de uma
fábrica de bolo. Depois começaram a pegar carrocinha de pi-
colé e vendiam nas ruas. Depois começaram a vender sacolé
nas ruas para o CSU — Centro Social Urbano —, de que fala-
remos a seguir. Também recolheram latas e ossos para vender.
Também, sempre que chamados pelo Careca, nosso vizinho,
buscavam água para abastecer os recipientes do seu negócio,
um cabaré. Esses trabalhos ajudaram a comprar os uniformes
da escola, livros, pagar as mensalidades da escola e auxiliar
nas despesas de casa.
A Tânia também chegou a trabalhar. Foi para Jijoca de
Jericoacoara, uma das praias mais lindas do Ceará. Lá foi tra-
balhar como empregada na casa da Eliane, uma amiga de in-
fância do Rio e que nesse período estava casada e morava nessa
cidade. Ela pertencia à família Vaz, que compartilhou conosco
grande parte dessa história. Assim como nós, a família também
estava dividida, parte morando no Rio e parte retornou para
o Ceará até hoje. Seus pais eram D. Nazaré e Seu Zé, amigos

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

de nossos pais. Juntos, Cipriano e Vaz, como já dito, tiveram


muitas histórias. Talvez ir trabalhar na casa de uma amiga de
infância como empregada não tenha sido uma boa ideia e não
demorou muito tempo para voltar a tomar conta da Cristina,
como de costume.

A Profissão Mais Antiga


Como dito, morávamos na rua dos cabarés, onde havia
vários bordéis por toda a rua. Ao lado do terreno onde moráva-
mos, tinha um. Nós brincávamos por todo o quintal, subindo nas
muitas árvores que tinham e sempre vimos aquelas mulheres
nuas tomando banho ou até exercendo seu ofício. Nossa inocên-
cia ficou naquele quintal. Entre tantos bordéis, tinha para todos
os gostos, até senhoras de idade. Foi assim que conhecemos a
Chica Velha, uma senhora branca, de olhos azuis, que mais tarde
soubemos que era a mãe biológica do Haroldo, que foi dado para
ser criado e levado para o Rio de Janeiro pela Tia Fátima, ainda
pequeno, e assim viveu e foi criado entre nós.
No bordel do Careca, Cristiano e Wilson passaram a tra-
balhar para abastecer seus recipientes do bar e dos quartos das
“meninas”. Às vezes os quartos estavam vazios, outras vezes elas
estavam presentes nos esperando com as águas para tomarem
seus banhos, mas nunca passou disso, pois eram dois adolescen-
tes de 11 e 13 anos, apesar de terem recebido o convite tentador.

Alguns Momentos Bons


Apesar da dura vida que passamos, houve alguns momentos
de boa recordação. Conhecemos muitos primos, então pessoas
para brincar não faltavam. Quando visitávamos a Tia Araci,
nosso pai apontava para muitas crianças brincando na rua e
dizia que todos ou quase todos eram nossos primos e ficávamos
espantados. Ela morava na antiga casa de nossa avó Júlia e do avô
Antônio. Nas casas vizinhas moravam as filhas dela que eram
casadas e tinham muitos filhos. Uma dessas casas era a que foi
deixada de herança para o nosso pai e que uma das filhas da
Tia Araci tomou posse.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Já o Tio Assis, irmãos de nosso pai, filho do avô Antônio


com outra mulher, era pastor de ovelhas, mas muitas ele só
cuidava pra outros donos. Morava num bairro distante onde o
saneamento não tinha chegado, não tinha luz nem água. A casa
era toda de palha, sua água era de poço, bem barrenta. Era um
lugar isolado, cheio de carnaubeiras e durante o dia havia um
córrego de água, mas a noite se tornava um rio, então tínhamos
que voltar para casa antes do rio encher. Como era um local
aberto, sempre tinha uma brisa batendo nas árvores fazendo
uma linda paisagem. Quem mais curtia ir para aqueles lados
era a Cristina. Depois que atravessávamos uma espécie de ponte
feita de pedras e barros, nossa mãe soltava a mão dela e ela saía
correndo feliz da vida. Era o momento só dela. Ficávamos só
olhando pra onde ela ia pra depois chamar e acertar o caminho.
Ela só parava e voltava se via algum boi ou ovelha ou algum
animal qualquer no caminho.
Os açudes e córregos também eram uma diversão à parte.
Sempre que podia a gente corria para os açudes. Houve vezes
que a gente se esquecia das carrocinhas de picolés perdendo a
hora brincando nesses balneários. O único açude que não íamos
muito era um perto do cemitério porque lá morreu afogado um
menino, amigo do Daniel. Diziam que a mãe d’água o puxou
pro fundo. Verdade ou não, melhor não arriscar.
O cemitério era lindo, cada mausoléu mais bonito que o
outro. Uns dos mais simples e humildes eram da Júlia Tomas
de Aquino Cipriano, mãe do nosso pai e Francisca Damásia
Cordeiro Ferreira, mãe da nossa avó. Um dos eventos “trash”
que curtíamos sem medo era ir à procissão da igreja no dia dos
finados até o cemitério todo ornamentado e iluminado com velas.
O CSU — Centro Social Urbano — era como um clube
da prefeitura que prestava assistência para as crianças locais.
Funcionava de segunda a sexta. Lá havia monitores que se re-
vezavam em dois turnos com as crianças. Quem estudava de
manhã frequentava à tarde e vice-versa. Era enorme, com quadra
de futebol coberta, campo de futebol, parquinho para os meno-
res, salas para ajudar as crianças nos deveres da escola, dança,

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

vestiários e serviam café da manhã, almoço e, à tarde, lanche.


Participamos ativamente desse local. Chegou um momento que
eles começaram a vender sacolé e doces e colocavam as crianças
interessadas para vender os produtos. Cristiano e Wilson foram
os primeiros a entrarem nessa e as outras crianças, seguindo o
exemplo, quiseram participar e assim saía um grupo grande de
crianças de bermuda vermelha e camisa branca se espalhando
pela cidade vendendo essas mercadorias com horário de retorno
certo para o almoço e depois irem para suas casas e escolas. Da-
niel era pequeno e só ficava na escolinha chorando porque ficava
sem a gente ou chorando porque não queria tomar banho com
as outras crianças nem deixar as monitoras tirarem sua roupa.
Demorou um tempo pra ele se adaptar.
Das poucas vezes que nosso pai ficava sóbrio, foi possível
aproveitar essa rara oportunidade onde todos deitavam numa
esteira no quintal e ficávamos à noite olhando para aquele céu
todo estrelado, ouvindo os contos que ele ouviu de nossa vó,
como mula sem cabeça, lobisomem, serpente com asas, as crian-
ças pagãs que morriam e ficavam chorando no cemitério com o
dedo para fora da terra por não terem se batizado e até de uma
passagem do Lampião e seu cangaço por aquela região.

Vamos para Fortaleza


Morar com nossa Tia Aurila, dividindo aquela pequena
casa com ela, nunca foi uma boa ideia. Além do mais, ela achava
que era dona e que nossa mãe não tinha mais direitos porque
foi embora para o Rio de Janeiro. As brigas dela com meu pai
estavam insustentáveis, a convivência insuportável.
Foi quando nosso tio, esposo da Tia Teonísia, veio a fale-
cer. Nosso pai foi até Fortaleza para visitar e saber o que tinha
acontecido. Também contou à nossa tia o que estava acontecendo
na casa antiga do nosso avô em dividir a casa com a nossa outra
Tia Aurila. Então ela convidou a todos para irem morar com
ela, nosso avô Silai e com a Liduína, uma prima nossa, filha de
uma outra tia, a Rosalina. Era uma casa com dois quartos e um
de empregada. Tia Té deu ao nosso pai uns relógios de ouro

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

do nosso falecido tio para vender e comprar as passagens para


irmos para Fortaleza.
Ele chegou no Acaraú animado com essa notícia e disse
que já tinha até visto as escolas pra gente. Começaram os prepa-
rativos para nossa partida. Nosso pai vendeu os relógios, mas o
que conseguiu não era suficiente para passagens. Enquanto isso
começamos a arrumar caixas e arrumar nossas coisas porque
a qualquer momento seria a hora de partir. Começando a anoi-
tecer, nosso pai chegou da rua com a notícia que íamos embora
naquela noite. Tinha arrumado um caminhão que estava indo
para Fortaleza e o dinheiro que arrumou dos relógios pagou o
caminhoneiro para nos deixar no nosso destino. Faltou luz na
cidade naquele dia. Despedimo-nos dos mais próximos e com
trouxas de roupa, sacolas e caixas fomos até a casa de uma pri-
ma nossa, sobrinha do nosso pai, pois o caminhoneiro morava
perto dela. De madrugada fomos acordados, subimos todos na
carroceria e partimos rumo a Fortaleza, no pau-de-arara, meio
de transporte irregular, tão conhecido pelos nordestinos.

Fevereiro de 1991
Depois de 1 ano e 10 meses, deixamos Acaraú para viver
em Messejana, Fortaleza. Por volta de 07h00 chegamos na Rua
Santa Ângela, Travessa Coracy, nº 21, casa da Tia Teonísia. Em
Messejana, vivemos os próximos 3 anos até nosso retorno ao
Rio de Janeiro.
Após partirmos de Acaraú, não retornamos mais, exceto
nosso pai, que voltou para vender a parte do terreno que nossa
mãe tinha direito, uma demonstração para nossa tia Aurila de
quem realmente ainda tinha herança garantida, uma vez que sua
parte já tinha sido vendida. Pouco mais de um ano, nossa tia Té
também foi ao Acaraú para tratar da venda de todo o terreno, parte
dos demais irmãos para que fosse dividido. Wilson, Cristiano e
Daniel foram junto com ela para visitar os primos e amigos que
lá deixaram. O terreno foi vendido, porém a parte da tia Fátima
foi doada para a tia Aurila, e ela fez sua nova casa. Hoje aquele
grande terreno que outrora contou um pouco de nossa história,

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

de nossas brincadeiras de infância, de desafios, já não faz mais


parte de nós, dos bens da família Nunes Cordeiro.

As Escolas em Messejana
Como dito, nosso pai havia mencionado que tinha consegui-
do escolas para todos, inclusive a escola do Daniel era especial.
Depois de acomodados, nossa mãe foi logo atrás das escolas para
não perdermos as matrículas. Wilson e Cristiano conseguiram
se matricular e estudar juntos na mesma escola José de Barcelos.
Já a tal escola especial do Daniel era nossa prima Nálbia, que
daria aulas em casa para ele. Nossa mãe não gostou da ideia de
o Daniel perder mais um ano letivo e correu atrás para tentar
matriculá-lo na Escola Paulo Benevides, mas não teve êxito, só
conseguindo no ano seguinte.

Os Trabalhos
Nosso pai logo conseguiu trabalho como pintor de carros
em algumas oficinas. Como o salário era pouco, nossa mãe con-
tribuía com sua parte como lavadeira, conseguindo esse serviço
com os vizinhos. Wilson começou a fazer pipas para vender e
Cristiano trabalhou numa cantina da escola Paulo Benevides no
período em que não estudava.

A Convivência
Apesar de toda gratidão que tivemos com nossa tia Té, em
nos fazer sair de um lugar sem nenhuma perspectiva de vida,
de ter aberto suas portas e ceder seu espaço para estarmos todos
juntos, a coletividade não foi algo tranquilo de lidar. Tia Té era
uma mulher controladora e, apesar de demonstrar satisfação
com nossa presença, ainda mais no auxílio em cuidar de nosso
avô Silai (seu nome era João Soares), que apresentava senilidade,
ela não nos deixava à vontade em sua casa, onde não tínhamos
liberdade para assistir à televisão ou ouvir um rádio, por exemplo,
a não ser que fosse de seu interesse. O problema com alcoolismo
de nosso pai também a incomodava bastante, gerando até dis-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

cussões. Outro fator importante era nossa falta de privacidade,


pois sabíamos que aquele lugar não nos pertencia.

Dois Ensaios para Voltar para o Rio de Janeiro

Ficamos em Fortaleza durante 3 anos, fevereiro de 91 a


fevereiro de 94, porém nós quase voltamos para casa por duas
vezes.
Dois acontecimentos graves em nossa família fizeram
com que nossa mãe sentisse o desejo de retornar de vez para
o Rio, mesmo não sendo vontade de nosso pai. A morte do
Orlando, esposo da Vera, e a crise espiritual da Vanda foram
fatos que deixaram nossa mãe com o coração apertado, pois
estava longe e não podia consolar e cuidar de suas filhas. Essa
volta só não aconteceu porque faltava algo essencial, dinheiro
para passagem. Não conseguimos o dinheiro, as tempestades
passaram, então só restou nos conformarmos com a distância
e com a saudade.
Depois uma chama de esperança se acendeu novamente
e dessa vez chegamos a arrumar as malas (caixas e sacolas),
Vânio e Marco estavam com um negócio juntos, no qual ven-
diam produtos do Paraguai. Fizeram contato com nossos pais
e disseram que com esse negócio poderiam ajudar financeira-
mente para que pudéssemos voltar para casa e que podíamos
nos preparar, pois em breve enviariam para nós dinheiro para
as passagens. Depois de tudo que passamos no Acaraú e as
condições que tínhamos para morar em Fortaleza, retornar
para o Rio parecia ser a coisa mais sensata a se fazer. Deixamos
tudo pronto para partir, chegamos a nos despedir de alguns
vizinhos mais próximos, mas a expectativa foi em vão. Uma
ligação feita foi um balde de água fria. Nossa mãe ligou para
saber quando seria o retorno, mas foi frustrada com a notícia
de que as vendas não estavam tão bem assim e que não tinham
mais o dinheiro para nosso retorno. A próxima oportunidade
definitiva só veio a acontecer em 94.

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O Entretenimento
Fortaleza é uma das cidades brasileiras com uma grande
extensão litorânea e pudemos aproveitar bastante de tudo isso.
As praias do Futuro e Abreulândia eram as nossas preferidas,
onde pudemos nos divertir muito. Fizemos amizades que
temos até hoje, graças às redes sociais, que nos mantêm co-
nectados.
As Olimpíadas de Barcelona em 92 serviram de inspiração
para nossas brincadeiras esportivas. Em nossa rua havia um
terreno abandonado que usávamos para jogar futebol, mas com
a motivação das olimpíadas, começamos a usar também para
vôlei. Depois limpamos um pouco mais esse terreno, aumentan-
do as fronteiras do campinho, alternando o espaço entre futebol
e vôlei. Como alguns vizinhos jogavam lixo e o cheiro não era
agradável, colocamos o nome do campinho de Catingão (nesse
período, o Marco já estava morando em Fortaleza e contará
essa parte da história).
Espaço para se divertir não faltava, pois tinha a quadra da
Escola Paulo Benevides que usávamos também para futsal, a
praça da igreja católica, no centro de Messejana, onde ficávamos
conversando e ouvindo música, uma casa de show de forró cha-
mada Pau-de-Arara, que frequentamos muito, nossa rua também
era muito animada e qualquer aniversário era motivo pra festas.
Fazíamos gincanas, ensaios de festa junina, campeonatos de jogo
de botão, salas de videogame etc. Não podemos negar que nos
divertimos muito nesse período.

SECB — Sociedade Esportiva Casa Blanca


Havia em Fortaleza uma estação de rádio chamada Casa
Blanca FM, que desde sua inauguração, em 1988, tinha uma grade
musical bem parecida com a nossa JBFM. Ainda nesse período
em que estivemos morando por lá, a rádio sofreu reformulação,
passando a ser uma rádio de músicas regionais. Atualmente, a
rádio foi vendida, passando a se chamar Oi FM.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Voltando a falar da parte divertida de nossa estadia, o


futebol realmente faz parte de nossa história, pois assim como
o Anápolis, criado por nós alguns anos atrás, o Casa Blanca foi
um time de meninos que deu certo.
No início, Wilson e Cristiano, junto com o Eduardo Magro
(era um garoto muito magro mesmo, por isso o apelido, além
de nos facilitar e diferenciar do Eduardo Gordo) montaram um
time chamado União, onde jogávamos no Catingão, mas não
deu certo, pois quem financiou a compra dos uniformes foi o
Eduardo Magro, que roubou dinheiro da loja de doces do pai e
acabou sendo descoberto, dando fim ao União.
Só que a semente foi plantada e os meninos ficaram in-
flamados, querendo de alguma forma montar algo do tipo. Foi
nesse período que o Marco já estava morando em Fortaleza e
começamos a criar um time muito bom. Usamos, além do Catin-
gão, um campo que tinha perto da Escola José de Barcelos para
os treinos táticos e físicos. Depois começamos a marcar disputas
com outros times locais.
Foi quando o Marco chamou um rapaz para ajudar e que
depois tomou a frente do time como técnico, chamado Ciro. Esse
rapaz era locutor da rádio Casa Blanca e também um amante
de futebol e fez o time seguir em frente. Sugeriu o nome, depois
criamos a logo, conseguiu patrocínio com a rádio que liberou
verba para fazer dois uniformes e a popularidade do time só
crescia, atraindo adolescentes de outros times que começaram a
abandonar esses times para se juntar ao Casa Blanca, que chegou
a disputar com times federados e a participar de campeonatos
em estádios oficiais com muitas vitórias. Nossa mãe era respon-
sável por lavar os uniformes e recebia por isso, então a casa de
nossa tia acabou sendo a sede do time, pois todo o material era
guardado conosco.
Dizem que quando o artista está no auge da carreira é o
melhor momento de parar para se manter vivo. Até hoje aque-
les adolescentes que hoje são homens de família lembram com
saudosismo aquela época que se mantém viva em nossa história
e na deles também. O Casa Blanca acabou no ápice de vitórias.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Como era necessário arrecadar certo valor mensal para ajudar


nas despesas do time, alguns garotos estavam insatisfeitos e
começou o burburinho até chegar aos ouvidos do Ciro. Não
gostando do que ouviu, nosso técnico acabou jogando a camisa
e abandonando o time e assim foi o fim desse time que tinha
tudo para se federar e se tornar um dos grandes.

De Volta pra Casa


Era janeiro de 94 e já havia se passado 4 anos e 9 meses que
nossa família permanecia dividida e muitas mudanças tinham
acontecido nas duas partes.
A vida é cheia de surpresas e os créditos devem ser dados
sempre para Deus, que sempre nos surpreende. Deus nos colocou
num tabuleiro de xadrez e nos fez perder um peão no início do
jogo, mas no final se torna a peça mais importante e volta como
uma peça fundamental para o xeque-mate. Podemos entender
dessa forma como tudo aconteceu, pois pouco mais de 4 anos,
o Valdo que foi um dos que foram para o Ceará, mas só ficou
4 meses, conseguiu voltar para o Rio. Trabalhou, alistou-se nas
forças armadas, serviu na Aeronáutica, não seguiu carreira, mas
até hoje trabalha na área de segurança.
Mais uma das muitas ligações de longa distância foi feita,
para saber novidades, para matar saudades, para manter a rela-
ção familiar, para não perder a esperança do reencontro, enfim,
mais um contato realizado, porém dessa vez com sucesso. A
notícia era do xeque-mate, do jogo que chegara ao fim, da vitó-
ria. O Valdo [o próprio pode contar detalhes dessa história]
se tornara S1 (Soldado de Primeira Classe) da Aeronáutica, com
isso pôde nos ajudar.
A notícia era boa, mas se tornou ainda melhor para os que
estavam no Ceará, pois o Valdo se tornou o rei do xadrez, usou
sua promoção para trazer de volta pai, mãe e 5 irmãos para junto
dos outros 7 irmãos e formar de novo uma única família, que
jamais deveria ter se separado.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Atualmente, uma passagem de ônibus Rio X Fortaleza está


entre R$ 400,00 a R$ 450,00, então seria um total aproximado de
R$ 3.000,00 de passagens para 7 pessoas. Avião nem se passava
como hipótese, pois seria bem mais caro. Não é um grande valor,
mas para essa humilde e grande família se tornou um sonho que
durou exatos 4 anos e 10 meses para se concretizar.
A notícia se tornou oficial, o dinheiro chegou, então tinha
que se preparar para partir, pois não se podia mais perder tempo
abafando tanta saudade. Chegou a hora de juntar tudo e voltar
para casa. Também tinha a preocupação da nossa mãe para não
perder o ano letivo nas escolas e conseguir as matrículas.
Despedimo-nos de todos os amigos e vizinhos, da família
que fizemos com nossa Tia Té, Tia Rosalina, nosso Avô Silai,
primas Liduína e Nálbia e com as passagens na mão entramos
naquele ônibus, não mais com choro e tristeza, mas com alegria
no rosto e uma grande expectativa de reencontrar aqueles que
ficaram. Dois dias se passaram dentro daquele ônibus que pare-
cia uma eternidade, mas finalmente o Itapemirim atravessava a
ponte Rio-Niterói e de longe pudemos avistar o Pão de Açúcar.
Era fevereiro, terça-feira de carnaval, quando descemos na Ro-
doviária Novo Rio e o reencontro aconteceu… [acho que essas
impressões devem ser escritas por quem estava nos esperando]

As Primeiras Impressões Pós-Chegada


Apesar de saber que parte de nosso quintal foi vendida para
o Paulo e Vaninha construírem sua casa antes de irmos para o
Ceará, a lembrança que tínhamos era aquele quintal da infância,
cheio de árvores, com espaço para jogar bola, fazer balanço ou
corda do Tarzan, que fazíamos de conta que era o nosso Sítio do
Picapau Amarelo, tudo isso havia acabado.
Em metade do quintal estava a casa da Vaninha ainda
em construção e na outra metade nossos novos sobrinhos que
só conhecíamos de ouvir falar que brincavam naquele quintal
começando uma nova parte da história dessa família que se
misturava com os sobrinhos mais velhos, do nosso tempo por
assim dizer, todos juntos naquele terreno que agora tinha 3 ca-

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

sas: a casa da Vaninha e Paulo com seus filhos Adriano, Paula


e Ricardo ainda bebê; a casa do Vânio e Rosinha com os filhos
Vanessa e Jefferson; e a nossa antiga casa. Nesse período, a Vanda
não morava mais com os outros, estava morando na igreja que
congregava, Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Na nossa
antiga casa, estavam morando o Jorge, o Marco, o Valdo e a
Vera com seus filhos Dinho, Nando, Tati, Bruno e Rosana ainda
bebê. Isso mesmo, eram 9 pessoas que moravam e mais 7 que
chegaram, formando uma família de 16 pessoas dividindo espaço
numa casa que estava bem acabada com o tempo, somente com
dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Era tempo de recomeço
e de novos desafios!...

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Lembranças do Daniel

1982

M
inha vida era muito fácil, pois nada era cobrado de
mim por ser o último filho e, de alguma forma, tinha
uma maior proteção. Por ser o mais novo, fui contem-
plado por um cuidado maior pela minha mãe, além de ser o
mais querido pelo meu pai.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Batismo do Daniel: Vânio e Vaninha (padrinhos) com pai e mãe

Nasci nesse ano e nesse período o time do Flamengo estava


em alta. Por isso, ganhei uma camisa do time com o nome do
Zico e foi também esse nome uma das primeiras palavras que
pronunciei e a partir daí faço parte dessa nação rubro-negra.
Dos presentes de infância que lembro muito foram: um vio-
lão de plástico que queria tocar as músicas do Sérgio Malandro
e uma metralhadora porque gostava muito do filme do Rambo
e ganhei de tanto insistir com meu pai, que acabou comprando.
Adorava os presentes, mas sei que somente eu tinha esses pri-
vilégios, pois meus irmãos não ganhavam nada.

Fui em Acaraú quando era Pequeno


Meus pais viajaram para o Acaraú e me levaram. Como era
bem pequeno, não me recordo de tudo, mas tenho alguns flashes
de memória. Lembro-me de um lugar com muita gente, parecia
uma festa, tinha um terreno com gados. Foi quando conheci
minha avó Francisca. Estava muito doente, deitada numa rede.
Sentei num banco e fiquei com meu avô Silai, que me deu um

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

café. Quando fui beber senti um gosto forte de cigarro e acabei


não bebendo. Corri para minha mãe que estava com outras moças
dando banho na minha avó. Ela tinha seus cabelos brancos, a
pele toda enrugada, tremia muito e estava sentada em um ban-
co de madeira. Depois do banho a colocavam de volta na rede.
Enquanto isso, eu ficava me balançando na rede da sala, até cair
e bater de cabeça no chão. Ao sair da casa, andava pela rua sem
asfalto, com uma areia fofa e branca, tipo areia de praia, que ao
andar parecia que iria me afundar. Chegamos à casa da tia Araci,
irmã do meu pai, e eu dormi no sofá da casa dela.
Durante o retorno ao Rio, meu pai estava comigo e foi fazer
alguma coisa, deixando-me sentado num banco. Aquele banco
estava muito frio, mas minha mãe me cobriu e pude me aquecer.
Numa outra parada do ônibus, meus pais foram tomar banho e
corri para minha mãe. Entrando no banheiro feminino, vi uma
mulher nua e reagi vendando os olhos com as mãos. Chegando
em casa, a rua estava com muito barro e o Cristiano fez um bo-
neco de barro pra mim onde os membros do corpo do boneco
eram colados com palitos de fósforo e brinquei por um tempo
com aquele boneco.

Tia Fátima e Tio Ivo


Lembro-me da casa pintada de rosa com desenhos de mãos
nas paredes. Sei que o Ivo morou ali, mas a presença da tia Fá-
tima é mais presente nas lembranças. A casa tinha um cheiro
muito forte de roupa de brechó. Gostava de ficar no quarto dela
e das comidas que ela fazia que eram muito gostosas. Uma vez
nem quis jantar em casa porque tinha comido um pirão que a tia
Fátima fez no Botafogo. Depois que conheci a tia Rosa (quando
fui morar em Fortaleza), percebi que elas eram muito parecidas
fisicamente.

Gostar do Michael Jackson Custou Caro


Alguns poucos anos se passaram e me tornei um fã do
Michael Jackson. Todas as músicas que ouvia, queria aprender a
coreografia e me vestir igual ao ídolo de infância. Quando ouvia

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

a música, corria para imitá-lo com roupas que se aproximavam


do figurino. Lembro-me de que faltava um sapato social para
complementar. Ficava cobrando minha mãe para comprar, até
que passei com ela numa senhora que vendia sapatos e quando
vi um dos modelos parecidos com o do cantor intensifiquei o
pedido, mas ficou só a promessa mesmo. Tivemos um LP de um
de seus álbuns com o título Bad e queria sempre que possível
ouvir aquele disco, que foi tocado em muitas de nossas festas
de fim de ano.
Minha admiração pelo rei do pop trouxe-me alguns reveses.
Não sei se era a dança ou os gritos, o fato era que meu pai não
gostava muito, talvez achasse que poderia aflorar um lado femi-
nino e sempre me repreendia. Acredito ser esse o motivo para
se transcorrer o episódio triste que narrarei. Numa noite, meu
pai chegou alterado por conta de bebida e desligou a televisão
e as luzes da casa, foi para seu quarto dormir, batendo violen-
tamente a porta, como de costume. Ficamos na sala recolhidos
e eu com medo, mas permanecemos ali conversando. Alguma
coisa engraçada foi dita durante a conversa e eu gargalhei. Ao
me ouvir rindo, meu pai saiu do quarto com muita raiva, veio
em minha direção e me deu uma tapa na cara, sem nenhuma
justificativa. Covardemente deu às costas e voltou pro quarto.
Minha mãe só conseguiu dizer: “Que é isso, Zé?” Não houve
resposta para tamanha violência. Fiquei chorando, sem entender.
Pela manhã, ao acordar, vi meu pai sóbrio, sentado na varanda.
Ainda buscando compreender o que tinha acontecido, fui até
seu encontro, sentei do seu lado e perguntei: “Pai, por que o
senhor me bateu ontem?” Com os olhos marejados e sem ter o
que justificar, respondeu que nunca mais faria isso comigo, que
nunca mais me bateria e realmente sua promessa foi cumprida.

As Brincadeiras Inesquecíveis
(...) Na minha infância lembro-me de momentos em que estava
sempre junto com meus irmãos ou ficava à vontade brincando
pelo quintal com a Natália ou com meus sobrinhos de idades
aproximadas. Tinha o hábito de acompanhar os desenhos na

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

TV e me esforçava para acordar cedo, porque tinha o programa


Xou da Xuxa, onde passava Caverna do Dragão, Thundercats,
o próprio programa chamava atenção e era agradável ouvir as
músicas, como, por exemplo, Quem quer pão. Sempre que coloco
essa música no YouTube vem à memória todos aqueles momen-
tos de infância. Pensava que aqueles dias de facilidades seriam
eternos, pois foram dias felizes.
Certa parte do dia, depois de assistir aos desenhos e pro-
gramas preferidos, explorar nosso quintal era certeza garantida,
junto com o Dinho, Nando e a Tati, bem pequena. Eram várias
brincadeiras, mas uma das preferidas era ficar naquele pé de
goiaba, próximo ao muro. Andava sobre o muro e dele pulava
pra essa árvore ou atravessando pelos galhos até chegar ao muro,
como se fosse uma ponte. Muitas vezes, caí e me machuquei,
mesmo desobedecendo às ordens de minha mãe, mesmo sabendo
que ia apanhar por ter me machucado por teimosia. Era assim
que se passava o dia.
Outra lembrança que guardo é das noites que eu, Cristiano
e Wilson planejávamos ficar acordados até amanhecer e, segundo
o Cristiano, bastava molhar o rosto para ficar acordado. Então
colocávamos uma vasilha com água para ficar molhando o rosto
quando o sono chegasse. Confesso que eu ficava animado demais
em ficar com eles fazendo essas coisas. Pegávamos os colchões
para dormir na sala, colocava um do lado do outro e íamos à
busca de nossa tentativa de não pegar no sono. Até certa hora
conseguíamos, mas chegava a hora em que éramos vencidos pelo
sono e acabava que todos dormiam. Quando nossos sobrinhos
(Dinho e Nando) dormiam conosco, entravam na brincadeira
também. Eu, particularmente, ficava olhando para o vidro de
um dos basculantes da sala que refletia a luz da varanda ao
lado da sala.
Nessa época, ainda fazia xixi na cama e sempre fui de me
mexer muito na cama e nesse dia quem estava do meu lado era
o Cristiano. O resultado dessa tentativa de insônia rendeu uma
mijada no colchão, sobrando para ele, que ficou ensopado de
xixi. Levantei e me troquei rápido, mas não lembro qual foi a
reação dele.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Uma coisa que considerava muito legal era ir para casa


da minha irmã Vaninha. Gostava muito de ir para sua casa,
com a mesma intensidade, detestava se não fosse. Certa vez,
ela levou somente o Cristiano, alegando que ele a ajudava. Co-
mecei a chorar, pedindo para me levar e ela foi embora. Fiquei
no muro chorando, vendo-os descerem a rua até não conse-
guir mais vê-los. Chorava e dizia chorando que a Vaninha foi
embora repetidas vezes. Isso também serviu de gozação e até
fizeram uma musiquinha: “A Vaninha foi embora, foi embora,
foi embora”. Era uma casa pequena, mas quando eu ia para a
casa dela, gostava dos simples detalhes: na hora de dormir, ficar
olhando para o teto, com algumas telhas de amianto tentando
ver o céu; tinha também a sua comida que é muito saborosa;
depois veio o Adriano (primeiro filho da Vaninha) e ficava
brincando com ele. Numa ocasião, em época de pipa, achei atrás
do portão da casa dela um cerol e fiquei contente em poder dar
para o Wilson, pois gostava muito de soltar pipa. Nesta casa
também teve a festa de casamento da Vaninha e aniversário
do Adriano. Em nossas memoráveis festas de natal, uma vez
foi feita na casa da Vaninha.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Outra aventura de infância era caçar rã. Juntos com o Dudu


caçamos algumas rãs, levamos para o Botafogo, limpamos, ma-
tamos, retiramos as partes não aproveitáveis e depois as frita-
mos. Nossa mãe viu e complementou aquela refeição com uma
farofa. Fui à panela e peguei uma parte grande da carne e comi
sozinho, mesmo com meus irmãos e minha mãe reclamando
do meu egoísmo.
Algumas aventuras custaram caro. Uma mania que fazia
parte de nossas brincadeiras era subir no telhado de nossa casa.
Numa dessas, enquanto tinha algum dos meus irmãos no quintal
preparando para soltar uma maria-preta (balãozinho feito de
jornal amassado, onde se fecham as pontas do jornal e acende.
Enquanto pega fogo, a fumaça e ar dentro do jornal o faz subir
por alguns metros, até se desfazer em cinzas). Quando fui olhar
a maria-preta, que estava subindo, de repente o Jorge sacudiu
com um pano e o balão se desfez, mas suas cinzas continuaram
subindo espalhadas. Parte desse papel queimado veio em minha
direção, queimando superficialmente meu rosto. Chorei com o
ardor na testa, mas minha mãe deu um jeito e cuidou de mim.
Fiquei com essa marca na testa por um tempo.
Nossa casa tinha duas portas para entrar, ou pela sala ou
pela cozinha. Não me lembro qual a razão ou brincadeira, mas
estava correndo atrás do Cristiano e ficávamos correndo, dando
voltas na casa, entrando por uma porta e saindo por outra. Caí
numa dessas, batendo a boca na porta e quebrando dois dentes
e me deixando banguela.
Por falar nas brincadeiras estúpidas, estava pulando no
degrau que dá acesso aos quartos e nesse momento a Cristina
estava no quarto e quis sair. Ela não me empurrou, mas eu pulei
nesse momento e acabei desequilibrando. Na sala tinha um sofá
que sua base era toda de madeira. Quando saltei e desequilibrei,
acabei caindo e fui de cara na quina desse sofá. O sangue desceu
na hora e tenho essa cicatriz até hoje. Não foi preciso ir ao médico
e minha mãe foi quem tratou.
Como para mim tudo era motivo de brincadeira, numa das
festas que rolaram em nossa casa, lembro-me de todos reunidos

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

conversando e bebendo. Vi aqueles copos esquecidos enquanto


as conversas rolavam soltas e aproveitei a oportunidade para
me apropriar daqueles líquidos. De copo em copo, fui bebendo
o que tinha, inclusive bebida alcoólica. Minutos depois, estava
muito tonto e os outros percebendo o que estava acontecendo
comigo, as risadas não foram contidas. Depois disso, passei a
gostar das bebidas e sempre que meu pai comprava participava
com os outros.
Lembro-me de brincadeiras com o Dinho e Nando e em
algumas dessas o Nando acabava se dando mal. Como exemplo,
teve uma que o Dinho estava girando uma madeira e acertou
forte na cabeça do Nando. O Orlando, pai dos meninos, chegou
e acabou brigando, acredito que o Dinho até apanhou. Também
brincava com eles quando visitávamos a casa da Vera. Eles ti-
nham um quintal e sempre exploramos o espaço com diversões.
Uma brincadeira que foi contagiante entre as crianças nessa
época foi a de perna de pau. Mesmo pequeno, tinha uma bem
pequena, feita pelo Valdo. Daí, saíamos pela rua com nossas
pernas de pau.
No carnaval era meu momento de pânico porque tinha medo
dos bate-bolas (clóvis). Inclusive, o Wilson achou uma dessas
fantasias e usava para sair no carnaval e as crianças gritavam
bolinha preta, pois era o modelo da fantasia dele (amarelo com
bolinhas pretas). Queria acompanhar, mas o medo era maior.
E quando passou um bloco de bate-bolas na rua, meu pai me
segurou e me levou para o portão para ver o bloco passar, na
tentativa de me fazer perder o medo. Por falar em carnaval,
num desses meus irmãos estavam se preparando para ir pular
na praça de Éden. Empolgado com a alegria deles, quis ir junto,
mas chegando lá só fazia chorar porque o medo era maior que
a empolgação e um deles teve que me trazer para casa.

...ERA O MAIS QUERIDO DO PAI


Aproveitando minha aproximação, sempre que podia estar
com ele, pedia um dinheiro qualquer para comprar um doce e
sempre era agraciado. Se eu estivesse brincando na rua e visse

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

meu pai passando em direção a algum bar, corria até ele para
pedir o doce que eu queria. Numa dessas, fui até ele num bar
da Rua Caldas Novas e, na volta para casa, os cachorros do bar-
budo (vizinho) se soltaram e vieram latindo em minha direção.
Lembrei-me de que eles já tinham mordido o Dudu (vizinho,
filho da Dona Marivan e irmão da Natália e Janaína) e vi que
seria a próxima vítima. Por sorte, quando eles se preparavam
para me morder, a filha do barbudo surgiu no portão e gritou
com os cachorros, que pararam de latir e desistiram de me atacar.
Como era pequeno, poderia ter acontecido algo grave, mas pela
graça tive esse livramento.
Lembro-me também de quando meu pai ia para o Botafogo
e fazia barba com um barbeador antigo onde se colocava uma
gillete. Eu ficava observando-o, imaginando quando chegaria a
minha vez de fazer barba. Então, certa vez, comi alguns doces
e acabei lambuzando todo meu rosto e achei aquilo parecido
com uma barba. Aí fui seguir o exemplo do meu pai, aguardei
ele sair, peguei o aparelho de barbear e raspei a minha barba.
Saiu o doce, como também a pele do meu rosto, junto com
bastante sangue. Minha bochecha ficou coberta de sangue e
entrei em desespero, correndo para minha mãe, que resolveu
aquela situação. Ela cuidou e também ganhei um castigo. Sorte
de infância, não ficou nenhuma marca em meu rosto por esse
episódio.
Infelizmente, as lembranças do meu pai não são as melho-
res. Tenho recordações dele bêbado, caindo na rua e tendo que
ser ajudado pelos meus irmãos e minha mãe. Em casa, quando
alcoolizado, minha mãe trazia em suas mãos sua refeição e ele
lançava o prato com comida no chão, quebrando a louça. Minha
mãe limpava toda aquela sujeira feita por ele e ainda fazia novo
prato. Considero hoje uma humilhação aquilo que ele fazia com
minha mãe. Ele a insultava com xingamentos e apelidos. Pensava
comigo que jamais serei como meu pai, que tratava mal a pró-
pria esposa. Que injustiça! Ele não foi um bom pai, mas espero
em Deus misericórdia e que ele tenha se arrependido antes do
fim da vida.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Os Primeiros Contatos com a Escola


A Vanda dava aula numa escola perto da casa da Vera. Fui
com ela uma vez para essa escola e pela primeira vez conheci
o que era uma escola. Gostei da sensação, pois tinham outras
crianças. Ela nos ensinava músicas, como por exemplo, Casinha
Torta (quem mora na casinha torta, sem janelinha e sem porta…)
e ilustrava na lousa as figuras cantadas na canção. Depois vinha
aquele lanche gostoso.

1989 — A Viagem

(...) Acaraú
Chegamos no Acaraú, conhecemos o bar do Seu Malaquias
e tinha um brejo em frente com barulhos de sapo. Era noite, en-
quanto caminhava pela rua, tentava adivinhar qual casa seria.
Ficava perguntando ao pai se era essa ou aquela, até chegar à
casa que viveríamos.
Era uma casa simples, com uma porta e janela azuis, um
poste em frente. Do outro lado da rua tinha uma casa rosa
que depois conhecemos Deusimar (vizinha) e toda sua famí-
lia que morava lá. Fomos recebidos pela nossa tia Aurila, que
logo quis saber se tínhamos trazido a televisão. Casa feita de
pau a pique com barro. Tinha um quarto, sala, um corredor
que levava à cozinha. Depois, nos fundos da cozinha foi feita
uma varanda do mesmo material. Minha mãe e meus irmãos
capinaram todo aquele quintal. Como era o mais novo, com 6
anos, fui preservado dessa tarefa. Muitas árvores frutíferas,
algumas novas para nós como seriguela, pitomba e caju. O
único quarto da casa passou a ser dos nossos pais e nossa tia
teve que dividir o espaço da sala conosco. Nosso pai arrumou
uns tucuns (rede artesanal) para a gente dormir e não eram
confortáveis. O banheiro ficava separado da casa, uns 20 me-
tros aproximadamente. Não tinha chuveiro, só uma privada e
espaço para banho. Tinha que encher vasilhas para abastecer
com água para uso. Como os outros irmãos, comecei a querer
voltar para o Rio, pois achava que tinha um vazio.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Como não tinha água encanada, tínhamos que ir buscar


num chafariz, numa distância de aproximadamente 300 metros
da casa onde morávamos e carregávamos baldes e mais baldes.
Nossa mãe equilibrava um balde de alumínio na cabeça e mais
dois baldes, um em cada mão. Um senhor idoso, morador local,
sempre que a gente passava e via minha mãe com aquele balde
na cabeça, exclamava: “Ô mulher de cangote forte.” Eu carre-
gava um balde menor, mas o Wilson e Cristiano carregavam os
maiores. Perto da casa, havia um prostíbulo e também sofriam
com a falta d’água, então o dono, vendo nossa disposição, aca-
bou chamando o Cristiano e o Wilson para abastecerem seus
reservatórios e dava um dinheiro para eles pelo serviço. Quando
acabava sua água, ele gritava: Gandão! Era a chamada para os
meninos pegarem os baldes e correrem para o chafariz.
Sobre os prostíbulos, eram muitos na rua onde morávamos.
Num deles, uma vez entrei, acompanhado da Deusimar, pois sua
mãe lavava e passava roupa e fomos fazer a entrega das roupas
limpas. Eu tinha os meus 8 anos e ela uns 10 anos. Chegando
lá, ao entrar num dos quartos, vi uma mulher nua, que não se
preocupou com nossa presença e rindo nos recebeu, pediu para
colocar a roupa num local, nos deu o dinheiro pelo serviço. São
coisas que se estivesse no Rio talvez não precisasse ter passado.
Nosso pai não tinha um emprego, então arrumava uns
“bicos” para ter uma renda. O Valdo começou a trabalhar num
bar e a fazer serviços extras para o dono.
O tempo foi passando, precisei iniciar os estudos. Tive que
fazer uma prova de avaliação para conseguir a vaga na Escola
Tomaz Pompeu de Souza Brasil. Teve um lanche, sopa e suco de
rapadura. Nesse mesmo período, Wilson e Cristiano estudavam
no Ginásio São José. A escola deles ficava na metade do cami-
nho e tinha a companhia deles, mas a outra metade eu tinha
que ir sozinho. Dos muros do Ginásio, dava para a rua em que
eu fazia o trajeto sozinho e o Cristiano ficava na arquibancada
e por algumas vezes acenava do muro para mim. Gostava da
preocupação dele em me acompanhar, mesmo que somente com
os olhos até eu chegar na escola.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Foi bem difícil no início, porque entrava calado, nem com


as crianças brincava. Durante as aulas, não entendia nada o que
a Dona Gegê (minha professora) dizia. Consigo sentir o cheiro
do seu perfume, só não me recordo do nome. Como era tudo
novidade para mim, sempre fui motivo de chacota, pois não sabia
fazer as tarefas. Uma tarefa simples como fazer um bolo e levar
pronto para a escola, entendi que era para levar os ingredientes.
A minha falta de atenção custou muitas risadas da minha cara.
Foi um período de adaptação e de muita dificuldade.
O Cristiano sempre foi o mais esperto de nós, fosse
para vender coisas na rua ou conversar com alguém, era ele
quem tomava a frente. Foi ele quem me ajudou nas tarefas
de casa da escola. Mesmo com esse auxílio, continuava não
entendendo nada, deixando-o irritado. Então eu começava a
chorar e reclamar, até que uma vez, com meu pai em casa e
certamente embriagado, ouvindo meus resmungos, tomou a
frente. Disse que eu não precisava ir para a escola e bateu no
Cristiano por minha causa. Chamar a atenção do meu pai foi
proposital, mas não queria que chegasse a esse ponto. Depois
disso, saiu para trabalhar e minha mãe aproveitou o momen-
to e me disse: “Agora é a sua vez de apanhar.” Lembro-me
da minha mãe dizer ao meu pai que podia até me tirar da
escola, mas se eu crescesse burro a culpa era dele. A partir
desse momento, entendi que precisava me esforçar e aprender.
Consegui aprender, mas o ano letivo estava no final, então
acabei perdendo o ano com a reprovação.
Além da escola, frequentei o CSU, uma instituição do go-
verno que implementava o ensino com reforço escolar, atividades
físicas e refeição. Ficava toda a manhã, depois voltava para casa
e ia para a escola. Depois passaram a incentivar as crianças a
vender doces e sacolés, quando o Wilson e Cristiano chegaram
a trabalhar. Na hora do banho não me sentia à vontade e chora-
va pedindo para as monitoras chamarem o Cristiano para ficar
comigo no banheiro enquanto tomava banho. Gostava de brincar
numa roda giratória e ficava assistindo aos maiores jogando
futebol e queimada.

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Depois das aulas, para ajudar nas despesas de casa, mi-


nha mãe passou a fazer cocada e pipoca para vender na rua e
eu acompanhava Wilson e Cristiano nas vendas. Encontramos
um local de obra, onde os trabalhadores gostaram das cocadas
e compraram tudo. Nesse local, enquanto a obra não chegava ao
fim, funcionou por determinado tempo de pista de motocross e
ficávamos assistindo às corridas. Também vendemos nas praças
onde funcionava um parque em período de festas. Tinha um
brinquedo, chamado espalha brasa, que era bem diferente e
perigoso, mas só ficava olhando, sem poder participar.
As noites sem televisão nos deixavam com poucas opções,
então nos juntávamos com os colegas da rua para conversar ou
entre nós mesmos. Conversava sobre tudo, até de histórias de
terror, sempre acompanhadas da trilha sonora dos bichos nas
matas, como sapos e grilos. Outras vezes, em família, nossa
mãe nos acompanhava e, olhando para o céu, falava do nosso
irmão Valter, que não conheci. Ela dizia que ele estava sobre as
nuvens, pois toda criança que morre vira um anjo e eu ficava
tentando imaginar meu irmão sobre as nuvens. Algumas vezes,
colocávamos uma esteira no quintal, ao lado da casa e ficávamos
deitados, olhando para o céu, vendo as estrelas ou durante o dia,
vendo as nuvens e deixando a imaginação fluir. Algumas raras
vezes íamos para a casa de um desses colegas para assistir à TV,
algum filme, ou Chaves.
Aos domingos ou outros dias de missa, acompanhava mi-
nha mãe. Chegando próximo à igreja, tinha um pipoqueiro e sua
pipoca exalava um cheiro maravilhoso, mas nunca tinha dinheiro
para comprar. Um dia passei perto e percebi que muita pipoca
caía no chão. Não resisti e catei algumas pipocas e comi, sempre
observando se alguém estava olhando. Também acompanhava
minha mãe nas procissões de madrugada. Estava sempre dis-
posto a acordar para ir, junto com o Cristiano e o Wilson. Como
a rua estava vazia, o Cristiano aproveitava para ficar brincando
no meio da rua, até chegar à igreja. Andávamos com uma vela
na mão, cantando e rezando, por várias ruas da cidade e a luz
das velas iluminava todo o canto que chegávamos. Pra mim era
uma aventura prazerosa fazer essa romaria, mesmo com sono.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Nosso primeiro final de ano sem ter a família completa,


nem condições de fazer aquela festa tão comum nos tempos do
Rio, nossa mãe nos levou para a Missa do Galo. Achei estranho
porque nenhuma casa estava comemorando o Natal como a
gente fazia. Não conseguia ficar acordado e não entendia muito
a missa (partes da missa eram em latim), chegando a bater a
cabeça no banco da frente de tanto sono. Chegando em casa,
nossa mãe improvisava no quintal. Meu pai comprou um vinho
e minha mãe fez um frango, farofa e uns pastéis numa vasilha
e colocou sobre a esteira no chão. Assim foi nosso Natal, tão
diferente e solitário.
Outro episódio que me marcou foi quando surgiu uma
íngua na virilha. Minha mãe, com toda sua experiência herdada
de seus antepassados, me chamou e me levou para o quintal,
numa parte onde havia uma areia mais escura. Pediu para colocar
sobre aquela areia o pé correspondente ao problema da virilha.
Antes disso, naquele lugar, minha mãe fez uma fogueira com
algumas palhas. A areia estava um pouco quente. Coloquei o
pé e com uma faca ela foi contornando o meu pé, desenhando
sobre aquela areia. Tirei o pé e no desenho feito ela fez riscos
horizontais e depois riscos verticais no desenho do meu pé.
Terminado, voltamos para dentro da casa e deixou o desenho
riscado lá. No outro dia, ao acordar, a dor da íngua que já me
perseguia há alguns dias eu não mais sentia. Falei pra ela que
não mais sentia dor e ela não falou nada e só sorriu.
Também lembro que, como era pequeno, a Tânia era quem
me dava banho, assim como na Cristina. Percebia que ela não
gostava dessa obrigação. E naquele banheiro fora de casa, a Tânia
teve um surto e começou a me forçar, como se quisesse que eu
entrasse naquela privada, como se, de alguma forma, pudesse
me dar descarga com as próprias mãos. Isso aconteceu algumas
vezes. Sem comentar o ocorrido, falei para minha mãe que não
precisava me dar banho, pois já sabia fazer isso sozinho.
Subir nas árvores daquele quintal é um dos recortes de
memória. Subia e me imaginava numa nave. Gostava de ficar
na parte mais alta. Na descida, pisei num galho fraco que me

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

desequilibrou e comecei a cair. Pensei que ia morrer, pois senti


meu corpo caindo, mas um outro galho me sustentou e quando
abri os olhos estava de cabeça para baixo, com o galho engan-
chado nas minhas pernas. Essas árvores também serviram de
fuga e subia para escapar quando minha mãe, por algum motivo,
queria me bater.
Por brincar naquelas areias, peguei muito bicho de pé (pe-
queno parasita que entra na pele, principalmente nos pés). Meus
dedos e pés ficavam inflamados, inchados, cheios desses bichos.
Minha mãe esquentava a agulha (esterilização) e espetava no
local para tirar o parasita. Depois, com suas experiências, tirava
cera dos ouvidos e colocava no local. Dias depois a pele já estava
limpa e ressecada.
Quando comecei a estudar, recebi de presente do Rio todo
material escolar de que eu precisaria. Agradeço aos meus irmãos
que sempre se lembravam de nós, mesmo longe, mesmo sabendo
que eu era o queridinho do papai, isso não afetava o carinho de
irmão por mim.

1991 — Messejana — Fortaleza


Já estávamos sem esperanças, crendo que não íamos mais
sair daquele lugar. Até que recebemos uma notícia inusitada.
Minha tia Teonísia enviou alguns relógios para serem vendidos
e com isso comprar passagens para irmos para Fortaleza. O di-
nheiro arrecadado foi transformado numa viagem de caminhão,
o famoso pau-de-arara, onde dividimos o espaço com areia e
tijolos. Por sorte, no dia da mudança faltou luz e pudemos levar
toda a humilde bagagem sem que ninguém visse. Algumas coisas
foram levadas antes no caminhão, mas muita coisa teve que ser
levada na mão e fizemos um percurso grande com toda aquela
tralha. Minha mãe, além do peso, tinha que segurar a Cristina,
que queria correr na rua. Cortamos o caminho e passamos por
um lugar com muito mato. Estava escuro, mas a luz da Lua nos
ajudava, iluminando todo o percurso. Depois seguimos o percurso,
beirando a estrada de carros, com o máximo de cuidado com a
Cristina. Chegamos ao local de onde o caminhão sairia. Ficamos

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

na casa de um conhecido do meu pai (casa da sobrinha dele com


a família). No começo da madrugada o caminhão chegou, nos
despedimos das pessoas e começamos a colocar as bagagens na
carroceria. A Cristina ficou com medo de subir e toda vez que
o pai tentava colocá-la sobre o caminhão, ela empurrava com
os pés e gritava que queria ficar na pista. Durante a viagem,
usamos madeiras de travesseiro, olhávamos para o céu e para
as estrelas. Fizemos uma parada rápida, somente para fazer xixi
quem estava apertado. Apaguei por um tempo e quando acordei
já tinha amanhecido. Vi o Cristiano brincando com os carros
que passavam na estrada e foi um momento de descontração.
Chegamos à Travessa Coracy, 21, última casa do beco.
Também não tinha ninguém na rua porque chegamos cedo e
começamos a descer do caminhão nossos pertences. Conhece-
mos nossa prima Liduína e Nálbia (que faleceu). Encontramos a
tia Teonísia, que nos levou ao quarto onde ficaríamos. Era uma
casa grande, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro, varanda,
em frente um jardim, nos fundos um pequeno quintal, área de
serviço e um quarto de empregada com banheiro, que chamamos
de gabinete do Silai, meu avô que reencontrei anos depois, bem
mais velho. Esse banheiro foi o que utilizamos enquanto mora-
mos lá, pois o outro banheiro principal era usado pelos donos
da casa. No quarto havia uma cama, onde meus pais dormiam
e colocavam do lado da cama uma rede para a Cristina e outra
quase por cima da cama para eu dormir. No gabinete dormia o
Silai, Wilson e Cristiano, depois deixaram o Silai sozinho e foram
dormir em redes na sala. Na lateral da casa havia um corredor
que ia para o jardim, dando acesso ao quintal.
Aproximamo-nos muito da Nálbia, que era uma pessoa
maravilhosa. Depois fizemos amizades com os meninos da rua e
fomos seguindo nossa vida. Também conheci uma menina loira,
que estava de camiseta branca e saia jeans, de nome Michele e
que me tornei amigo, mas na verdade foi paixão à primeira vista.
Ela nunca soube, mas gostei muito dela e depois descobri que
outros garotos também gostavam dela. Sem querer, uma vez
ela acertou um cabo de vassoura na minha cabeça, doeu muito,
mas parecia que nada havia acontecido, pois eu não reclamei. O

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

Marco, que já morava conosco, viu o ocorrido e veio me acudir,


mas não demonstrei dor e ficou tudo bem.
Lembrança boa foi o time Casa Blanca. Não jogava, mas ficava
sempre com eles assistindo aos jogos. Inicialmente foi pintado
pelo Wilson nas camisas brancas, faixa vermelha e estrela azul
no peito. Nesse período até joguei, porque era um time de rua
pequeno, até que o time tomou proporção e começou a jogar em
campos oficiais. Jogávamos bola no Caatingão, um terreno onde
em parte era um campinho e em outra parte era jogado lixo, e
por isso recebeu esse nome, sendo inclusive escrito no muro do
terreno. Nesse muro tinha um buraco que dava acesso a outra
rua onde tinha um campo maior. Esse campo acabou sendo
local de treino do Casa Blanca, tendo o Cícero como técnico. O
time ficou tão bom que garotos de outros times começaram a
sair para participar do nosso, como o Barcelona, por exemplo,
um time concorrente que se tornou freguês. Eu até participei
do time mirim, mas nessa época meu futebol era uma negação.
As noites eram sempre com muitas brincadeiras e bastantes
crianças. Queria ficar o tempo todo na rua e, por isso, minha mãe
brigou comigo algumas vezes, porque não queria voltar para
casa. Quando queríamos conversar, ficávamos num calçadão e
juntava toda aquela molecada até tarde da noite. De dia, o Sol
quente não impedia de querer estar com os outros brincando e,
algumas vezes, saía escondido de casa, sendo pego pelas ore-
lhas por minha mãe devido à minha teimosia. Teve uma fase
divertida de videogames em que os meninos que tinham jogos,
abriam salas em suas casas e alugavam por hora os brinquedos.
Quando morei no Acaraú, fiz a primeira série e fui repro-
vado. O ensino era bem puxado. Chegando a Fortaleza, estudei
no Paulo Benevides. Não sei como minha mãe conseguiu, mas
entrei na segunda série. Achei ótimo porque fiquei na mesma sala
da Michele. Tirei o ensino de letra e estava tudo fluindo bem até
a metade do ano. Porém a direção teve acesso ao meu histórico
e impediu que continuasse naquela série, tendo que mudar de
turma e voltar à primeira série com as crianças menores. Sofri
com a mudança e algumas zoações. Disponibilizaram uma psicó-

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

loga para observar se a mudança traria algum impacto negativo,


mas passei por isso de forma tranquila. Só me incomodavam as
brincadeiras feitas para crianças de primeira série e eu já estava
com 10 anos. Nessa escola estudei por dois anos.
Como disse, o Marco esteve conosco por algum tempo.
Sua chegada foi uma válvula de escape, pois passamos alguns
momentos com ele e seu violão e suas revistinhas de músicas e
cifras. Parte do tempo passamos naquele quarto cantando com
ele e isso nos distraía.
Distração também tinha fazendo brincadeiras com o Silai,
mesmo ele não gostando. Subia no muro, levantava uma telha
da casa e, do alto, espirrava água de um frasco de desodorante
no rosto dele, recebendo muitos xingamentos. Outra coisa que
o deixava enfezado era no momento da Escolinha do Professor
Raimundo que ele queria imitar o gesto do professor sobre o
salário mínimo. Nesse momento, ficava na frente da televisão o
impedindo de ver e isso também fazia com que ele verbalizasse
algumas palavras feias.

Meu Relacionamento com a Tia Teonísia


Algumas situações que aconteceram entre mim e a tia Té me
deixaram indignado. Uma foi num domingo em que ela queria
companhia para ir à missa. Como minha mãe não foi, também
não queria ir. Então ela entrou no quarto onde eu dormia e
tirou um lado da rede do gancho da parede para me obrigar a
se levantar. Outra vez foi quando me pediu para comprar algo
no mercado e quando cheguei faltou uma moeda, que talvez o
caixa tenha esquecido de me entregar. Como meu pai havia me
dado algumas moedas, tirei e dei a ela. Vendo isso, não gostou
e quando eu fiquei sozinho ela me acusou de roubo e que eu
podia me viciar e continuar fazendo aquilo no futuro, algo que
eu não fiz.
Ainda sobre minha tia Té, tivemos alguns problemas, pois
como a casa era dela, só podíamos ter acesso aos utensílios, ele-
trodomésticos, certas coisas da casa, se ela permitisse. Teimamos
algumas vezes e quando ela se ausentava, chegamos a usar es-

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Antônio Cordeiro Sobrinho & Cristiano Cordeiro Cipriano (organizadores)

condido, como ligar a televisão e ouvir o rádio. Mas com o passar


do tempo, devido a esse sentimento de posse, deixamos de usar
seus pertences e até partes da casa, já que ela se incomodava.

1994 — A Volta para o Rio


(...) A Tânia era a única que estava totalmente adaptada,
tanto com a casa quanto com a minha tia e a amizade nutrida
com a Liduína. As duas primas ficavam conversando o dia in-
teiro. Até cama para ela tinha no quarto da minha tia. Quando
chegou o momento de partir ela foi a única que não gostou da
ideia, negando-se a retornar. No momento de arrumar as malas
ela chegou a desmontar e tirar suas roupas.
Já para mim, só havia ansiedade pela chegada do dia de
partir, principalmente quando meu pai comprou as passagens.
Caixas, sacolas, bolsas e malas, tudo pronto e acredito que nem
dormi direito no dia que antecedia a viagem, afinal aquele desejo
de voltar para casa estava se concretizando.
Fomos para a rodoviária e meu pai não havia comprado
passagem para mim, na tentativa de alegar que eu tinha menos
de 10 anos. Chegando lá houve problemas para comprovar devido
ao meu tamanho, mas depois de muita conversa, embarcamos
no ônibus. Como não tinha lugar para mim, sentei ao lado de
uma moça de nome Vanda e que tinha um lugar sobrando ao seu
lado. Foi bom sentar com ela, pois tudo que comia me dava. De
madrugada, ela ia para a frente do ônibus conversar e distrair o
motorista e era o momento de me deitar e me esticar. Se em 89
passamos com tristeza em algumas paradas, em 94 retornamos
nelas com alegria.
Os dias se passaram e chegamos à rodoviária Novo Rio.
Lembro-me de estar lá a Vaninha e o Valdo. Pegamos o ônibus
com destino a Éden. Ao chegar em casa, já estava tudo dife-
rente. A casa da Vaninha estava lá no quintal, o Duque (nosso
cachorro) estava lá, mas velho, sem o vigor da infância, e já não
nos reconhecia. A Vera e seus filhos estavam morando na casa
e nos juntamos a eles.

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Casamento do Daniel e Joanita: nas fotos estão pai, mãe e Wilson

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Mensagem Final — Daniel
(o caçula)

E
m primeiro lugar agradeço a Deus por fazer parte dessa
família e agradecer pela criação que minha mãe me con-
cedeu. Agradeço aos meus irmãos que, de forma direta
ou indireta, contribuíram para a formação do meu caráter.
Ressalto a iniciativa e criatividade que meus irmãos Cris-
tiano e Antônio (conhecido por nós como Marco) tiveram.
Que todos que forem contemplados com a leitura de nos-
sas memórias entendam que toda a vitória precede de grandes
lutas. Nossas lutas foram grandes no decorrer dos anos, mas
hoje podemos olhar para trás e dizer que valeu a pena superar,
esperar, não se conformar.
Olhamos para o passado e podemos apreciar a estrutura de
criação deixada em nós por nossa mãe, formando nosso caráter,
mesmo que para isso fosse necessário nos advertir com rigor nos
momentos precisos. Fato é que todo o ensinamento foi absolvido,
ainda que fosse chamado à atenção, que apontasse meus erros,
tudo foi válido, até se viesse dos meus irmãos mais experientes.
Sendo o último filho, tive o privilégio de aprender um
pouco de cada irmão. O maior desejo escondido em meu íntimo,
desde tenra idade, era ser amigo dos meus irmãos. A vida pode
ter nos distanciado, mas com este livro pude ter a oportunidade
de aproximação e sou grato. Amo meus irmãos, mesmo que não
transpareça, certo é que estão sempre em minhas orações.

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Dahlia — Biografia da Família Cordeiro Cipriano

Tudo que tenho e o que sou devo agradecer a Deus e à


minha família, que me proporcionou esta vida que se escreve
neste livro. Tenho em minha família exemplos de boa conduta
e me enxergo como um aprendiz que pode ser instruído com
estes modelos que vi de perto e tive o prazer de andar com eles.
Para mim, foi uma honra estar presente na formatura de
Direito do meu irmão Cristiano e de Pedagogia do meu irmão
Antônio (o Marco). Orgulho foi ver esses dois realizando seus
sonhos e se especializando, percebendo neste momento que todo
o esforço de minha mãe não foi em vão, pois foram doze filhos e
todos andaram no caminho trilhado por ela. Certamente, se ela
estivesse presente, estaria orgulhosa e satisfeita com a missão
por ela cumprida.
Por fim, ressalto que a estrutura que tive, sendo levado e
guiado desde pequeno, não seria outra senão oportunamente
ter meu encontro com Deus. A Igreja Universal do Reino de
Deus tornou-se uma mãe espiritual para mim. Nela obtive meu
crescimento espiritual, me batizando nas águas e no fogo. Hoje
sou obreiro há 18 anos, convertido há mais 20 anos. Poderia ser
outra história contada, mas em Jesus posso contar essa história.
Da mesma forma, uma nova história pode ser contada por todo
aquele que acredita no nosso Senhor Jesus Cristo.
Sou casado com Joanita, tenho uma filha chamada Ester e
juntos formamos uma casa, uma família, graças às raízes plan-
tadas em mim através desta família que narra suas memórias e
também raízes espirituais herdadas de minha igreja.
Meus últimos agradecimentos são pela oportunidade de
contribuir com minhas lembranças, trazendo para leitura alguns
fatos interessantes, outros frustrantes, mas que são partes de
nossa história.
Acredito que as reminiscências ficarão marcadas para nós
e para a posteridade.
Um forte abraço e que Deus abençoe a todos rica e abun-
dantemente!

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