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biografia da Família
amília Cordeiro
ordeiro C
Cipriano
ipriano
Dahlia
biografia da Família Cordeiro Cipriano
2021
Apresentação........................................................................................13
Mensagem Inicial — Vera (a primogênita)......................................15
Primeira Parte
Temas
“Vaga lembrança”................................................................................19
Década de 60........................................................................................20
As Casas................................................................................................22
Primeira Casa em Parada de Lucas...............................................22
Segunda Casa em Parada de Lucas................................................23
Terceira Casa em Parada de Lucas.................................................23
A Casa em Pavuna...........................................................................23
A Casa de Villar dos Teles – São João de Meriti..........................25
As Casas de Éden em São João de Meriti
Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada).................................25
Segunda Casa – Rua Araci..............................................................26
Terceira Casa – Rua Caldas Novas.................................................28
Quarta e Última Casa – Rua Anápolis.......................................... 31
Colégio Botafogo.................................................................................36
As Aulas no Botafogo......................................................................36
Globo de Ouro.....................................................................................39
Conversões...........................................................................................40
Os Convites para ser Crente...........................................................40
Deus na Minha Vida........................................................................44
“Todo Homem Precisa de Uma Mãe”...............................................47
O Melhor Momento: a Companhia da Minha Mãe....................50
Tânia.....................................................................................................54
Dedicado a Tânia.............................................................................54
Cristina.................................................................................................64
“O terrível dia da viagem”..................................................................70
A Partida para o Ceará....................................................................70
O Dia da Partida..............................................................................73
Valdo.....................................................................................................77
Parte II
As Memórias
Lembranças da Vera............................................................................83
Anos 60. Mais sobre as Casas.........................................................83
Trabalhos do Pai...............................................................................86
Década de 70.....................................................................................86
Tia Fátima.........................................................................................88
Segunda Mãe.....................................................................................88
Os Casamentos.................................................................................89
Minha Mãe........................................................................................89
Cristina..............................................................................................90
O Pai..................................................................................................92
“Achei Desnecessário”........................................................................94
Lembranças do Vânio.........................................................................95
Primeira Casa em Parada de Lucas...............................................95
Segunda Casa em Parada de Lucas................................................96
Em Parada de Lucas.........................................................................98
A Casa em Pavuna...........................................................................98
Villar dos Teles.................................................................................99
Éden.................................................................................................100
Primeira Casa (Rua da Padaria Queimada)...............................100
Segunda Casa – Rua Araci............................................................102
Terceira Casa ..................................................................................104
Quarta e Última Casa — Rua Anápolis......................................105
Lembranças da Vaninha...................................................................106
A Religião........................................................................................106
Uma Cicatriz na Cabeça................................................................107
A Avó Julia......................................................................................107
Tia Fátima e Haroldo.....................................................................108
Adeus, Inocência............................................................................108
As Escolas........................................................................................109
Os Últimos Dias com Minha Mãe...............................................109
Os Últimos Dias com Meu Pai.....................................................109
Sobre a Tânia.................................................................................. 110
Meu Casamento.............................................................................. 111
Lembranças da Vanda...................................................................... 114
A Partir de 1963............................................................................. 114
As Casas e o Rio Pavuna............................................................... 115
Casa da Pavuna.............................................................................. 115
Casa da Rua da Padaria Queimada............................................. 117
Casa da Rua Araci.......................................................................... 119
A Doença do Valter e Tânia..........................................................121
Casa da Rua Caldas Novas............................................................124
Casa na Rua Anápolis....................................................................125
Início da Vida Espiritual...............................................................126
Sou Professora................................................................................127
A Batalha Espiritual.......................................................................127
Meu Primeiro Casamento............................................................. 131
Meu Segundo Casamento.............................................................134
Lembranças do Jorge.........................................................................135
A Casa da Rua Caldas Novas........................................................135
Motoqueiro Rodoviário.................................................................135
O Mobral.........................................................................................136
O Catecismo....................................................................................137
Os Trabalhos na Adolescência......................................................137
O Time Anápolis............................................................................138
O Serviço Militar...........................................................................139
Roni Alzi..........................................................................................139
Trabalhos em Agostinho Porto....................................................139
A Volta da Família.........................................................................140
Meu Casamento..............................................................................140
A Morte do Pai...............................................................................140
A Morte da Tânia...........................................................................140
Lembranças do Antônio................................................................... 141
Iniciado em 18-5-2019...................................................................141
Idos de 1974….................................................................................142
As Visitas da Eliane.......................................................................146
As Viagens do Pai para o Ceará................................................... 147
Campanhas Eleitorais....................................................................148
Mobral.............................................................................................148
Igreja Católica. Paróquia Nossa Senhora das Graças................149
1976 — O Último Natal na Rua Caldas Novas..........................150
Rua Anápolis, nº 214, 1976 — Última Semana do Ano!...........151
1977 — Um Ano Feliz!..................................................................152
1978..................................................................................................153
1979..................................................................................................153
1980..................................................................................................154
“Vem vamos embora que esperar não é saber…”.......................154
1987..................................................................................................163
1989..................................................................................................165
1990..................................................................................................165
A Morte um Destino Duro...........................................................179
Lembranças do Wilson.....................................................................183
Anos 80 — Primeiras Lembranças..............................................183
As Festas de Fim de Ano...............................................................184
As Visitas Chatas............................................................................185
Os Trabalhos Domésticos de Nossa Mãe....................................185
As Brincadeiras..............................................................................185
A Catequese....................................................................................187
Roupas.............................................................................................187
Escola...............................................................................................188
Brigas na Rua..................................................................................188
O Carnaval......................................................................................189
1989 — A Viagem para o Ceará ..................................................189
A Casa..............................................................................................189
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E
ste é o livro da família Cordeiro Cipriano. Chama-se
Dahlia porque faz referência a sentimentos que vão ao
encontro do propósito de todos que contribuíram para
construção deste material.
Dahlia simboliza união, persistência e perseverança, esses
foram ingredientes que constituíram a alma deste projeto que
nasceu não se sabe exatamente como e quando, mas ao longo
dos últimos meses foi tomando corpo e forma.
Permitam-me destacar uma pessoa que foi exemplo de per-
sistência e perseverança durante o processo de construção desta
biografia, esmerando-se a fim de efetivar o projeto. Estou falando
do nosso irmão Cristiano, que se dedicou fazendo transcrições,
motivando, exigindo, entrevistando, articulando, preparando a
arte e reprodução gráfica. Seu denodo foi o elo entre os irmãos
para que pudéssemos construir nossa biografia.
Dahlia, à semelhança da ancestralidade dos Astecas, re-
monta à nossa história pregressa, coisas guardadas no recôn-
dito de nossos corações. Nosso livro é uma colcha de retalhos
de narrativas, semelhante àquelas colchas que a Dona Vanilda
fazia… um mosaico assimétrico, mas que aos poucos revela uma
tessitura, revela-se como arte.
A biografia da família Cordeiro Cipriano é uma proposta
para a posteridade, da mesma forma que nós — protagonistas
das histórias — voltamo-nos para os fatos narrados como forma
de nos reconhecermos e refletirmos acerca de nós mesmos, igual-
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Temas
P
ouco sabemos sobre o início da nossa família: como nossos
pais se conheceram, detalhes sobre o casamento deles…
para obtermos mais informações teríamos de ter contri-
buição de testemunhas contemporâneas a eles. Os comentários
apresentados são recortes de conversas com nossos pais.
“Apesar de ter nascido no Ceará e morado meus primei-
ros anos, não tenho recordações, apenas vagas lembranças de
quando viemos para o Rio, como, por exemplo, pessoas, ônibus
e a viagem.
Nosso pai já tinha vindo para o Rio, juntamente com o Seu
Zé, de pau-de-arara para trabalhar e depois de se estabilizar
tomou providências para que viéssemos morar com ele.”
(Vera)
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“
Nossa história começa quando eu era pequeno e comentei
com minha mãe para saber se era real, se tinha acontecido
isso. Ela perguntou como eu me lembrava disso.
Lembro-me de que estava numa rede junto com um senhor
que balançava a rede e minha mãe disse que era nosso avô, pai
dela. Depois disso, não me lembro de como chegamos ao Rio,
nem da viagem. Sei que chegamos ao Rio e meu pai veio antes
para trabalhar junto com o Seu Zé e moravam em Copacabana
a trabalho.”
(Vânio)
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A
qui estão os relatos acerca das casas que moramos,
como se trata de fatos que ocorreram até 1976, ano que
aconteceu a última mudança, na casa onde a família
definitivamente se estabeleceu, apenas teremos recortes das in-
formações transmitidas pelos filhos: Vera, Vânio, Vânia, Vanda,
Jorge e Marco.
“Chegando ao Rio, fomos morar numa Casa em Parada
de Lucas, numa avenida. Era como uma quitinete e o banheiro
separado da casa, onde tínhamos que ir até o fundo da avenida.
Minhas memórias são muito vagas dessa época, mas me lembro
de que além de mim tinha uma criança, que seria o Vânio.
Depois dessa casa, muitas outras sequenciaram nossas
vidas, como a casa em Vigário Geral, Jardim Metrópole, onde
moramos por muito tempo e onde nasceu a Vaninha.”
(Vera)
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A Casa em Pavuna
O caminhão chegou com nossa mudança nessa nova casa
e minha contribuição era carregar as cadeiras na cabeça. Mora-
mos por um bom tempo nessa casa. Nos fundos da casa, após o
quintal, ficava o Rio Pavuna. Gostávamos de atravessar a cerca
e ver a água passar na beira do rio.
(Vânio)
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***
“Depois da Pavuna, nos mudamos para Éden e moramos
na casa da rua da padaria queimada, porém, antes da mudança,
um episódio marcante foi a enchente que aconteceu.”
(Vera)
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“Não tenho muitas recordações das casas, mas sei que mo-
ramos numa casa na rua da padaria queimada e na Rua Araci.
Também não me lembro das mudanças”
(Jorge)
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Casa da Rua Caldas Nova – foto atual. O barranco nos fundos da casa da
Caldas Nova – da esquerda para direita: Jorge, Valdo no colo, mãe e Marco
atrás da mãe.
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Vânio no quartel
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(Vera)
(Vaninha)
“Fato! Dessa vez nosso pai comprou uma casa bem próxima
de onde morávamos, na Rua Anápolis. Como era perto, fomos
levando aos poucos os itens mais leves, deixando o pesado para
levar no caminhão do Menga. Confesso que não gostei da mudan-
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As Aulas no Botafogo
“Nesta época criamos o Colégio Botafogo, era continuação
do “Colégio Trepei na Goiabeira”, antes que pensem saliência,
eu explico — inclusive naquela época o verbo trepei nem tinha
a conotação que tem hoje, foi inventado depois ou pelo menos
não era popularizado como é atualmente — sobre o nome da…
vou chamar “agremiação” esse nome vem de uma música que
aprendemos no grupo escolar:
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“Bico calado
Toma cuidado
O homem vem aí!… o homem vem aí!… o homem vem aí!…
(Passaredo. Chico Buarque)
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G
lobo de ouro foi uma brincadeira divertida que acon-
tecia no quarto e à noite, trata-se de imitações de um
programa de apresentação de artistas cujas músicas fa-
ziam sucesso nas emissoras de rádio.
“Outra lembrança lúdica que fiquei encantado foi quando
meus irmãos criaram o nosso Globo de Ouro, que acontecia no
nosso quarto. Com o quarto todo escuro, o palco do show era a
beliche, a iluminação era feita com velas na lata de leite em pó,
as outras camas eram o local da plateia e cada um deles cantava
uma música e a gente (os menores) avaliavam quem seria o ven-
cedor. Foge à memória, mas acho que o Jorge venceu, cantando
uma música do Fabio Junior ou Roberto Carlos.”
(Cristiano)
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T
odos da família são originalmente católicos, formados
batizados, seguindo a tradição familiar e imposta pelos
pais, contudo alguns filhos optaram por outro caminho
religioso e aqui estão registrados:
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mas dessa vez ela mudou o tom de suas palavras e falou: ‘o Se-
nhor quer te dar um livramento muito grande, mas é necessário
que você vá à casa dEle. Amanhã tem culto à tarde e estou mais
uma vez te convidando para ir comigo à igreja. O Senhor quer
falar contigo e ai de você de não o ouvir’. Nesse dia, não tivemos
aula devido à reunião dos professores. Ao ouvir essas palavras,
a sensação foi de medo e alegria na mesma intensidade. Depois
dessa intimação, só restou confirmar às 15h00 do dia seguinte
estar nesse culto. Combinamos de nos encontrar em frente ao
CIEP João Bosco às 14h30.
Antes do encontro, é importante lembrar que, por quase
um ano, tive períodos conturbados em minha vida. De início,
comecei a sentir sono. Quando a vontade vinha, sentia também
medo, porque era um sono depressivo. Também estava associada
a uma grande desmotivação na vida, uma falta de prazer em fazer
qualquer coisa, fosse assistir a um filme ou novela, ouvir uma
música, por exemplo. Febres e dores abdominais eram comuns
nesse período, chegando a me curvar de dor até que cessasse.
Depois veio a ânsia de vômito, logo que a dor passava. Sentia
que minha barriga e seios inchavam, mas depois sumia.
No dia marcado, fui fazer as coisas de casa e quase me
esqueci do encontro, só lembrando já às 13h30. Quando lembrei
que tinha que sair, senti um desânimo muito grande, somado a
um cansaço inesperado, o corpo começou a pesar e um sono veio
repentinamente. Deitei no sofá para dormir, mas subitamente as
palavras da minha amiga voltaram a mim, como se algo muito
ruim pudesse acontecer. Levantei às pressas para procurar a
roupa para sair, mas os sintomas continuavam sobre mim. Deitei
novamente, sendo vencida pelo cansaço e pelo sono. De novo,
lembrei das palavras e num impulso fui tomar banho lutando com
aquela exaustão. Até que consegui sair de casa e fui ao encontro
marcado, mas minha amiga já tinha partido, pois com tudo isso,
acabei me atrasando. Determinada a não desistir, lembrei-me do
endereço que ela já havia me passado em outra ocasião e segui
rumo à igreja na Rua Délio Guaraná. Andei por quase toda a rua
e não conseguia enxergar a igreja. Depois de tanto empecilho,
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Em memória
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Em memória
Dedicado a Tânia
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fazia a festa no cabelo dela, colocava ela até pra andar de skate…
duas crianças!
No dia do aniversário da Cláudia em 2016 ela esteve aqui,
até mexemos com ela porque ela estava comendo muitas bestei-
ras. Eu fazia as compras pra ela e na mesma semana ela comia
todas as coisas doces ou gordurosas.
Uma semana antes de ela falecer eu estive lá em sua casa,
mas não entrei, parei na janela, ela estava sentada no sofá, de
costas pra mim, perguntei se estava tudo bem e ela só balançou
a cabeça, estava de ovo virado.
Para minha surpresa, aconteceu de ela passar mal quando
me acionaram e eu não desconfiava da gravidade. Tânia mor-
reu no dia do meu aniversário, no leito da enfermaria, naquela
manhã, ela me deu parabéns, eu ri sem graça e agradeci, ela
perguntou se a casa estava fechada e disse que aquela dor que
ela estava sentindo só passava quando ela tomava chá. A Tânia
não era de reclamar de dores, suportava calada e se comportou
assim durante muitos anos.
Durante os anos de 2014, 2015 e 2016, nós realizamos ora-
ções às sextas-feiras na casa dela, era impreterível, a Vitória me
acompanhava em todas, às vezes a Cláudia, o Daniel algumas
vezes. Mas foram 3 anos de orações que, eu tenho certeza, pro-
porcionaram paz ao coração da Tânia. Aproveitávamos essas
orações para comemorarmos o aniversário dela ou da Cristina,
Páscoa, Natal meio antecipado. Foram bons momentos!
Deixamos a Tânia na UTI e fomos tentar transferência
para ela, fomos ao plantão judiciário do TJ. Eu, Vânia e Cláudia.
A Cláudia estava conversando com o juiz, porque ele já estava
autorizando a transferência, quando o Valdo avisou sobre o fa-
lecimento, a Cláudia estava no lado de dentro do fórum e eu lá
fora, liguei pra ela, contei o desfecho e pedi pra ela, ao sair, não
contar para a Vaninha, porque eu não sabia qual seria a reação,
se ela ia passar mal, e como iríamos socorrê-la ali na praça XV,
quando a Cláudia saiu já estava com o choro controlado.
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Tânia e Cristina
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(Vanda)
A
qui estão as lembranças referentes à viagem de parte
da família para o Ceará, passagem em que se registram
demasiados relatos, porque foi um momento demasia-
damente triste e que selou profundas mudanças:
“A partida da minha mãe com meus irmãozinhos foi muito
triste. Ela foi convencida e enganada pelo meu pai para ir ao seu
encontro.
No dia da partida, o Duque, nosso cachorro, chorava pela
falta das crianças e durante dias ficou triste naquele portão es-
perando que eles voltassem e acabava chorando com ele.
A Vanda acabou assumindo toda a responsabilidade da
casa, tendo que arrumar a casa, fazer comida e ir para a escola.
Antes ela tinha a mãe para fazer tudo, mas teve que se virar e
aprender a duras penas. No início algumas panelas de arroz se
queimaram, marcas de ferro quente nas roupas, mas conseguiu se
superar. Ainda tinha a Escola Aydano de Almeida, em Nilópolis,
que ela fazia o percurso de Éden até seu destino caminhando,
pois não tinha dinheiro de passagem.”
(Vânia)
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O Dia da Partida
Este dia certamente foi um dos dias mais difíceis das
nossas vidas. Foi um dia de domingo, acordamos cedo porque
ainda havia coisas pra arrumar, no sábado fomos dormir tarde
arrumando as coisas e no domingo ainda havia o que fazer. Eles
levaram muitas coisas, levaram até o aparelho de som. Lembro-
me de que eu havia pedido há alguns dias a receita de um chá
milagroso que me tirava das crises de garganta e ela escreveu
como se fazia o chá, escreveu em um pedaço de papel de forma
muito improvisada e eu o guardei durante alguns anos.
E saímos, fomos de Mageli, levamos inúmeros volumes,
acho que todo mundo foi para a rodoviária. A rodoviária não
era como é hoje, era largada, feia e bagunçada. Descemos com
muito custo para a plataforma… até ali tudo bem! Até ali eu es-
tava vivendo uma experiência de liberdade. Não me lembro das
últimas palavras da mãe nem com quem ela falou, não lembro se
ela me beijou, só lembro da hora que o ônibus partiu! o Cristiano
foi para o fundo do ônibus e nos olhava pelo vidro do ônibus e
ele chorava descontroladamente! Foi de rasgar o coração ver o
Cristiano chorando daquele jeito, me desconstruiu por dentro.
Não tenho como descrever aquele momento e não me emocionar,
pois aquela imagem do Cristiano no fundo do carro me dilace-
rou! Não sei se minha mãe chorou, não me lembro das reações
dela, os meninos devem contar, ver aquele ônibus partindo só
tem comparação com o luto quando perdi a nossa mãe.
Ao chegar em casa eu fui para o quarto e fiquei na cama
que era da minha mãe e chorei, chorei a tarde inteira, chorava
descontroladamente, choro que me dava um vazio e um arre-
pendimento por não ter pregado contra aquela mudança, eu não
fiz nada pra mudar! Eu chorei até me esvaziar. Naquela mesma
noite a Vânia foi lá pra casa para dormir lá em casa e levou o
Adriano e ele corria na sala e aquela criança brincando distraiu
meu coração, que estava cansado de chorar. A Vânia e o Paulo
passaram muitos finais de semana com a gente, acho que era pra
dar apoio moral, eu gostava muito da presença deles, realmente
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(Marco)
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N
este tema temos algumas narrativas referentes ao re-
torno da família para o Rio de Janeiro e neste contexto
destacamos a importância do Valdo como protagonista
de um fato mais do que marcante.
“Ao retornar, vi uma figura nova, O Valdo… que não é nem
de longe este Valdo de hoje, era outro Valdo, não era a mesma
pessoa que ficou aqui quando fui para o Ceará, o Valdo de hoje
é id, o Valdo de 1993 era superego, uma pessoa circunspecta e
meditabundo. Certamente devo ter agradecido a ele pela ajuda
(a despeito das divergências) ao pagar minha passagem para
retornar, Valdo vivia uma fase de poucas palavras, mas desde
que cheguei ele me adiantou que traria todos de volta. Inclusive,
é uma questão de reconhecimento e gratidão por causa desse
gesto do Valdo, tenho certeza de que Cristiano, Wilson e Daniel
estarão reconhecendo a importância dele em 1994 e é uma re-
verência justa digna da nossa gratidão, dou-lhe a comparação
(guardada a proporção) com o rei Ciro, que permitiu que o povo
hebreu retornasse para sua terra. Valdo, seu gesto estará sempre
em nossas mentes e em nossos corações. Nunca nos esquece-
remos de sua atitude, seu desprendimento, o que você fez está
para além do simbolismo, você provocou mudança profunda
e positiva no destino da sua família. Seremos gratos enquanto
estivermos vivos!”
(Marco)
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“Eu sempre serei grato a um irmão meu, por ter visto du-
rante alguns meses parte da nossa angústia e, num gesto nobre,
abriu mão de suas prioridades e nos fez primazia, nos trazendo
de volta pra casa. Obrigado, Valdo!”
(Cristiano)
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As Memórias
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N
o período em que moramos em Jardim Metrópole, fi-
quei muito doente, chegando a ser desenganada pelos
médicos, pois naquela época não havia muitos recur-
sos e tudo era bem difícil. Minha mãe, no desespero, fazia tudo
que lhe indicavam, como garrafadas e até me levar em centro
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Trabalhos do Pai
Não me recordo de outros empregos do meu pai antes do
Sendas, onde trabalhou por vinte anos.
Década de 70
Certa vez, em conversa com minha mãe, perguntei o motivo
de ter saído do Ceará e vindo para o Rio e ela respondeu que a
vida era muito difícil e aqui no Rio diziam que a vida seria mais
fácil, o que não aconteceu, pois as dificuldades continuavam. Ela
tinha vontade de voltar para sua terra.
Na década de 70 fomos morar na casa da Rua Caldas No-
vas. Nesse período lembro-me de que fui no programa Cassino
do Chacrinha. O programa sorteava escolas para participar da
gravação do programa que passava na antiga TV Tupi, situada
na Urca. Por duas vezes o Colégio Fluminense foi sorteado para
participar do programa e pude estar no auditório e ver de perto
artistas como o Sidnei Magal. Apesar de nossos pais não permi-
tirem esses tipos de passeios, dessas vezes consegui ir, inclusive
no retorno, quando o ônibus chegava ao colégio, meu pai estava
lá à minha espera, pois era tarde da noite. Era raro meu pai ir
me buscar em algum lugar, mas aconteceu e até teve um diálogo
querendo saber como foi o programa, mas nada além disso, pois
ele era de poucas falas.
Episódios ruins que me lembro enquanto moramos na
Caldas Novas era quando tinha alguma festa, o evento ainda
estava no início, mesmo sendo perto de casa, meu pai mandava
um dos meus irmãos me chamarem para voltar e ainda nem
havia ultrapassado das 21h00.
Outra ocasião em que fui impedida de sair foi na minha
formatura do ensino fundamental, antigo primeiro grau. Com-
prado o vestido azul de cetim, foi o escolhido por mim, seguindo
a moda da época, além de ser minha cor predileta. Durante a
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Tia Fátima
Tia Fátima morou conosco, mas era uma pessoa muito fe-
chada, não tinha abertura, a não ser para seu filho Haroldo. Por
isso, a Vaninha implicava com ela, mexendo nos pertences dela
só para chatear. Apesar de saber que alguém tinha bagunçado
suas coisas, não reclamava com nossa mãe, apenas resmungava
para si.
Segunda Mãe
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Os Casamentos
Depois veio meu primeiro casamento com Orlando, onde
tive quatro filhos, Orlando (Dinho), Fernando, Tatiana e Bruno
e depois de 10 anos ele veio a falecer. Depois de alguns anos de
luto me casei novamente e constitui nova família com o Luís e
tive duas filhas, Rosana e Débora. Na verdade, deveriam ser sete
filhos, mas a última gravidez não chegou ao final. Meu primo-
gênito também faleceu.
Minha Mãe
Nos últimos anos de minha mãe percebi que ela estava
preparando sua despedida. Ela separava o domingo para visitar
os filhos e netos que moravam perto, revezando seus domingos
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Cristina
Sobre a Cristina, lembro-me da minha mãe grávida e ela
com seis meses, caiu pelas escadas da casa da Caldas Novas.
Como estávamos na escola, ninguém viu, então foi acudida pela
vizinha. Nessa semana da queda era semana de pré-natal e ela
foi ao médico e relatou o ocorrido. Fez uns exames e a princípio
estava tudo normal. Porém, devido à queda, o médico disse que
era possível que a criança apresentasse algum sintoma no futuro,
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O Pai
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Em memória
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E
ntre tudo que vivemos, ressalto um momento de crise em
nossa família nos anos 90. O Vânio era casado com a Ro-
sinha. Apesar de ter um relacionamento tranquilo com
a Rosinha, não tolerava certas provocações e meu destempero
não me deixava calar. Houve um desentendimento entre nós
e no calor do momento acabamos partindo para a agressão fí-
sica, rolando pelo quintal. O problema entre nós foi resolvido
ali, mas insatisfeita, a Rosinha foi fazer queixa de mim para o
Vânio. Tomando as dores da esposa, o Vânio chegou e quis ti-
rar satisfação comigo, querendo partir para agressão, tendo que
ser segurado pelos irmãos para lhe conter. Achei desnecessário
tudo aquilo, a intromissão dele e depois disso criou-se um dis-
tanciamento até hoje, pois não deveria ter tomado partido.
[Vânio se arrepende de ter tomado tal atitude]
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Década de 60
N
essa mesma casa, outra lembrança foi quando meu
pai foi à feira junto com Seu Zé e Seu Raimundo, seus
conterrâneos. Então ele me levou junto com eles. Como
tinha receio dos amigos por não conhecer e não ter contato,
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senti uma vontade de fazer xixi, mas não avisei e também não
consegui segurar e acabei me urinando. Eles ficaram me zoan-
do de mijão. Não me lembro se me levaram para casa ou se
continuamos na feira.
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Em Parada de Lucas
Numa de nossas brincadeiras acabei esbarrando no guar-
da-roupas e derrubando uma dessas cadeiras que caiu sobre
minha cabeça, vindo a cortar e sangrar. Minha mãe veio com seu
remédio que sempre usou nesses casos: pó de café para estancar
o sangue. Assim foi em todos os machucados que tive e por isso
tenho várias cicatrizes na cabeça.
Essa senhora que dividia com a gente essa casa era rezadeira
e quando nos machucávamos, torcia o pé era a ela que nossa mãe
recorria e ela fazia rezas, jogava fumaça até melhorar.
A Casa em Pavuna
Perto de nós, na mesma rua, dois portões após o nosso, estava
uma família que já mencionamos anteriormente — família Vaz
com Dona Nazaré, Seu Zé e seus filhos. Nossa mãe, sempre que
possível, ia até lá conversar. Na casa deles tinha um pé de abiu,
onde o filho deles, Eugênio, ficava trepado comendo a fruta. Foi
quando aprendi a subir em árvore compartilhando das frutas.
Nessa casa foi quando tivemos nossa primeira televisão
“Admiral”, que pra nós era o máximo. Quando foi ligada pela
primeira vez estava passando o filme Jim da Selva, com a maca-
ca Chita. Vendo aquele animal, tentei encostar ao animal, mas
percebi que não era possível, pois tinha um vidro e que também
não tinha perigo de a Chita atravessar a tela. À noite era a hora
das novelas e esse momento era só dos adultos, crianças ficavam
no quarto.
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Éden
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Terceira Casa
Quando o Zé Maria, sobrinho do nosso pai, veio do Ceará
para o Rio, foi morar conosco e dividiu o sofá comigo. Como
eu era mijão, quando a gente acordava, ele estava todo mijado
também. O tempo passou, Zé Maria conseguiu arrumar um
trabalho de porteiro e conseguiu arrumar um lugar para ficar.
Muitas brincadeiras fazem parte das minhas lembranças
também nesta casa. Em especial era um carrinho que tínhamos.
Minha vontade era dirigir aquele carrinho, mas como era gran-
de, não cabia. Só me restava empurrar o carrinho para os meus
irmãos menores, dizendo que era o carro do Batman e isso me
enchia de satisfação. Ficava contando as horas para sair da escola
e brincar de empurrar aquele carrinho.
As “brincadeiras estúpidas” sempre resistiram e eram
umas das melhores. Fazia balanços na árvore de amêndoas e
colocava meus irmãos para se balançar, mas como eram peque-
nos acabavam se machucando. Foi nessa casa onde o Jorge se
acidentou por duas vezes. Brincando no muro que tinha uma
cerca de ferros pontudos, escorregou e espetou o ferro no peito,
parando por duas vezes no hospital.
As crianças estudavam no Maurício Brum, algumas pela
manhã, outras à tarde. Os maiores levavam os menores pra
escola. A Vaninha levava e buscava a Tânia, mas sempre que ia
demorava muito a voltar, e pra buscar a mesma coisa. Sempre
que saía se arrumava toda. Até que um vizinho me contou que
viu a Vaninha numa rua aos beijos com o vizinho que morava
em frente à nossa casa. Tive que contar para minha mãe, que lhe
deu uma surra e a proibiu de ir buscar a Tânia.
Foi nessa casa que levei minha primeira namorada para
conhecer a família.
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A Religião
P
or falta de opção, não saía da igreja. Gostava de chegar
cedo para a missa e às sete horas da manhã já estava pre-
sente e só retornava para casa em torno das dez horas. Fiz
catequese, primeira comunhão, crisma e depois fui catequista e
fiz parte do coral da igreja. Quando se aproximava das festas de
fim de ano começavam os ensaios. Como eu e a Vanda não can-
távamos bem, fazíamos parte do terceiro grupo, considerado o
mais fraco. Às vésperas do Natal, como os ensaios terminavam
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bem tarde, sempre vinha alguém nos buscar, acredito ser o Vâ-
nio quem se encarregava dessa função.
A Avó Julia
Não tenho boas recordações de nossa avó Julia. Era uma
pessoa chata, antipática e desleixada. Nós a tratávamos bem e
só recebíamos desgosto. Minha mãe arrumava a casa e ela logo
sujava tudo. No local da casa onde costumava ficar, minha mãe
colocava uma lata com areia para que ela usasse para cuspir, mas
talvez por implicância, cuspia e escarrava no chão. Lembro-me
de que quem agia da mesma maneira era nosso pai, filho dela.
A impressão que tenho era que me odiava, e também o Jorge,
pois vivia me beliscando sem motivo algum.
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Adeus, Inocência
Havia um rapaz, nosso vizinho, com os seus 25 anos, usuá-
rio de drogas e eu o achava parecido com o cantor Fábio Junior.
Com apenas 11 anos, fiquei encantada por aquele rapaz, que me
seduziu, e achei que estava namorando. Ele pediu para nosso
namoro ficar em segredo e ninguém podia saber.
Eu era uma criança, boba e inocente, sem noção alguma.
Minha mãe não conversava sobre escorrer sangue entre minhas
pernas. Falei com minha mãe e ela só me mandou forrar. En-
tregou-me um pedaço de pano e mandou colocar no fundo da
calcinha, não me falou nada mais além disso.
O rapaz marcou encontros às escondidas comigo. Quase
todos os dias nos encontrávamos entre a lateral da casa, no muro
que dividia nossa casa na Rua Caldas Novas e uma igreja por
onde ele entrava e assim era nosso “namoro”.
Então, certa vez, o rapaz me chamou para ir à sua casa.
Saí pelos fundos da casa e fui ao encontro dele. Ao chegar, vi
que estava fumando maconha. Conversamos um pouco e logo
me beijou. Depois disso não me lembro exatamente de como
aconteceu, só sei que despertei ao ouvir minha mãe gritando
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por mim. Tentei correr para encontrar minha mãe, mas ele pediu
para esperar um pouco, pegou um pano e limpou o que escorria
entre minhas pernas.
Ao chegar em casa, minha mãe me perguntou onde estava,
mas não falei. Tomei uma surra que me deixou muito machuca-
da. Depois percebi que, mesmo tendo me limpado na casa dele,
ainda tinha sangue nos meus pés.
As Escolas
Eu e Vanda sempre estudamos juntas e no período de pro-
vas, eu dava um jeito para sentar atrás dela para conseguir colar
e a Vanda sempre deixava sua prova à vista e eu conseguia colar
tudo. Assim consegui chegar até a oitava série (ensino funda-
mental). Penso que sem ela não conseguiria ter ido muito longe.
Estudamos da quinta à oitava série na Escola Castro Al-
ves. O uniforme era ridículo. A saia do uniforme que minha
mãe fazia era enorme, até o meio das pernas. A Vanda não via
problemas e usava assim mesmo, mas eu não. Quando saía de
casa, no caminho para a escola, enrolava a saia acima do joelho,
deixando bem curta, e me sentia linda.
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não aparecem mais e que a impressão era que ele havia morrido
junto com ela.
Eu era a única que morava no quintal, então, junto com
o Paulo, conversamos muito com ele nesse período. Como ele
morava com a Tânia e ela não tinha manejo como dona de casa,
suas roupas estavam sempre encardidas, como ele acordava
cedo, fazia seu próprio café. Algumas vezes me pediu para lavar
suas roupas.
Era nítida a falta de nossa mãe para ele e acredito que ele
lembrou muito de tudo que ela fez por ele e se arrependeu do
que fez com ela. Ainda assim, ele a destratou muito enquanto
casados. Lembro-me de quando ela engravidou na menopausa
do Daniel e numa discussão ele quis agredi-la, mas foi impedido
pelo Vânio. Depois disso, passou a destratar o Vânio, assim como
fazia comigo e com o Jorge.
Em seus últimos dias, já em decorrência da doença que se
agravava, teve uma perda de memória. Estava em Nilópolis e
não soube voltar para casa, sendo encontrado numa rua alguns
bairros depois por um vizinho que o levou para casa. Chegou
se queixando de dor no peito e, no dia seguinte, quando foi para
o hospital, não resistiu ao infarto e morreu.
Sobre a Tânia
A Tânia sempre foi uma menina tranquila, não conversava
muito. Depois que nossa mãe faleceu, Tânia teve que assumir as
responsabilidades da casa, o que era feito de maneira peculiar e
do jeito dela. Sua doença também foi repentina e inesperada. Ela,
quando se queixava de dor na barriga, a Vanda fazia um chá de
boldo que ela tomava e logo ficava boa. Nesse dia ela reclamou
de dor na barriga e estava vomitando. Então o tratamento foi o
mesmo.
Saí para trabalhar e quando retornei fui vê-la para saber se
tinha melhorado. Quando a vi, me desesperei, pois a encontrei
totalmente diferente. Estava pálida, com os olhos esbugalhados,
sem conseguir falar direito e suando muito. Chamei minhas filhas
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Meu Casamento
Conheci o Paulo quando trabalhei em São Mateus, numa
fábrica de bolsas. Ele trabalhava numa padaria e morava ali
perto. Começamos a namorar e como passei a chegar tarde em
casa, minha mãe começou a reclamar. Então resolvi assumir o
namoro e o Paulo foi até minha casa para me pedir em namoro
aos meus pais, mas eles não aceitaram. Indignada com esse
impedimento, no dia seguinte peguei algumas peças de roupa
e fui embora morar com o Paulo.
Um mês depois fiquei grávida e Adriano, meu primogê-
nito, nasceu. Quando informei a gravidez a meus pais, eles não
aceitaram e ficaram brigados comigo.
Como tenho muitos irmãos, sempre tive meus favoritos,
que são o Vânio e o Cristiano, mesmo surgindo umas desavenças
entre nós. O Cristiano me ajudou muito na criação do Adriano.
Ele ficava alguns dias em minha casa e me ajudava nas tarefas e
com meu filho. Considero-o como um pai para meu filho. Depois
comecei a levar o Daniel também, porque ele ficava pedindo.
Comecei a levar os dois, também para aliviar os castigos do
Cristiano pelo meu pai. Num natal, os dois estavam comigo e
meu pai foi visitar e quis levar o Daniel para casa, mas ele não
quis voltar com o pai, mesmo ele insistindo muito.
Quando o Adriano fez um ano, oficializei meu casamento
com o Paulo, mas para agradar minha mãe, que ficava insistindo
por esse casamento, ainda mais com um filho. Então fizemos o
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Nestas fotos estão: Pai, Vaninha, Mãe, Adriano (no colo) e Paulo
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A Partir de 1963
A
credito firmemente que tenho memória do ano que nas-
ci, meus primeiros meses. Ainda bebê, no colo da minha
mãe, que estava sentada provavelmente no quintal de
nossa casa. Havia outras pessoas no quintal, algumas cadeiras,
uns sentados, outros em pé, provavelmente bebendo, todos os
detalhes de que não me recordo.
Quando vem a lembrança do que vou relatar, chega à memória
como se fosse um sonho em preto e branco. Como eu e a Vaninha
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Casa da Pavuna
Atrás da casa passava o Rio Pavuna, então se fôssemos
até o fundo do quintal, depois passando por um matagal, logo
chegávamos à beira do rio. Naquela época, o rio já estava sujo,
poluído. Mesmo assim, as crianças da rua entravam em nosso
quintal para fazer esse caminho até chegar ao rio para brincar
e tomar banho. Eu gostava de ir pra lá, mas só para admirar a
correnteza fluindo, trazendo aquele som das águas, o barulho
da água era que me atraía. Mas entrar nunca, tinha nojo e medo
de entrar e a correnteza me levar, então nunca me atrevi a entrar
naquelas águas. Sobre o som das águas, sempre gostei muito,
sendo a correnteza do rio, o barulho do mar, o som da chuva.
Ouvir aquele som me fazia gastar tempo à beira daquele rio, só
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Jorge e Vanda
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Sou Professora
Ser professora sempre foi uma paixão que namorei por muito
tempo. Uma das nossas brincadeiras de infância era brincar de
escolinha e era o dia todo. Na casa da Rua Caldas Novas, por um
tempo teve um quarto vazio, até nossa tia Fátima chegar. Nosso
pai trouxe uma lousa e colocamos naquele quarto, arrumando
tudo para se tornar uma sala de aula para alunos invisíveis.
As aulas que tinha na escola eram reproduzidas nesta sala de
aula. Depois o Marco passou a ser o primeiro aluno, até nossa
tia chegar.
Minha mãe, sabendo do meu sonho, resolveu com seus
próprios esforços pagar uma escola particular para que eu viesse
a me formar no magistério. Como já tinha mais de 20 anos, fiquei
constrangida em aceitar, mas ela praticamente me obrigou a me
matricular. Por sorte, uma amiga da igreja, chamada Otília, que
também fez o ensino médio de formação de professores e tinha
alguns contatos, conseguiu me encaixar numa das concorridas
vagas de uma escola pública chamada Aydano de Almeida,
em Nilópolis. A boa notícia veio com grande alegria para mim
e para minha mãe, podia perceber em seus olhos a satisfação.
Não podia deixar que pagasse uma escola particular pra mim,
tinha que compensar de alguma maneira tamanho esforço de
minha mãe, pois gastava seu dia lavando roupas. De qualquer
forma ela contribuiu com os uniformes. Com muito sacrifício,
consegui concluir o ensino médio.
A Batalha Espiritual
Com a partida de parte da família não fiquei tão bem, che-
gando a ser reprovada na escola nesse ano. Tive que me adaptar
a uma nova turma, fazer novas amizades e fui me arrastando e
com muito sacrifício consegui terminar o ensino médio.
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Motoqueiro Rodoviário
Sabíamos que nossos pais não tinham condições de nos
dar brinquedos porque eram muitos filhos. Também não seria
justo dar presente para um e os outros não terem. Um brinquedo
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que ganhei, não me lembro de quem, mas que tinha muita esti-
ma, era meu motoqueiro rodoviário. Era meu único brinquedo
e para onde ia me fazia companhia. Num dia, minha mãe fez
uma faxina na casa e ela costumava jogar o lixo num poço que
tinha nos fundos do quintal da casa. Nesse momento, senti falta
do motoqueiro e fui procurar, então de tanto vasculhar só res-
tou procurar no poço. Lá estava o motoqueiro rodoviário, todo
queimado no poço, fiquei muito triste e arrasado.
Outra coisa que fazíamos era esperar o pai chegar porque
ele sempre trazia alguma coisa para nós, tipo doce, bolo e nesse
dia ele demorou muito a chegar. Fiquei ansioso e subi no muro
para esperá-lo. Neste muro tinha umas grades pontiagudas, en-
tão, quando subi, fiquei olhando para a rua tentando ver se meu
pai chegava, mas acabei me encurvando demais e escorregando
e uma daquelas pontas cravou em meu peito e fiquei preso até
alguém me tirar. Um vizinho que tinha carro me levou para o
hospital. Lembro-me de que, chegando lá, fui informado que
tinha que levar uns pontos e ser anestesiado, então não foi fácil
deixar os procedimentos serem feitos, sendo preciso alguns
enfermeiros me segurarem para conseguirem dar os pontos e
fazer o curativo.
Acredito que no período em que a tia Fátima e o Haroldo
moraram conosco, fomos muito injustos, principalmente com o
Haroldo, que só queria brincar com a gente, mas não tínhamos
nenhuma simpatia por ele e por esse motivo que as brigas co-
meçavam, como implicar, chutar os brinquedos, puxar a porta,
enfim, chamar a atenção.
Eu sempre fui uma criança muito arteira, então por várias
vezes minha mãe me colocava de castigo com uma cadeira na
cabeça, e ela dizia que eu estava assistindo televisão, enquanto
meus irmãos ficavam rindo dessa situação.
O Mobral
Sobre o Movimento de Alfabetização Brasileira — MOBRAL
—, estudei nesse período e lembro-me de que para chegar ao
local tinha que passar pelo Fabrício, um cachorro de rua que eu
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O Catecismo
Gostava de estar nas aulas de catequese, mas tinha o Sr.
Paulo, que era muito rígido e queria que fizéssemos tudo do jeito e
da forma dele e se não fosse feito, não faltava sermão nem castigo.
Também estudei no Maurício Brum e nesse período ocor-
reu um fato que me deixou marcado. A direção da escola pediu
que todos os alunos trouxessem água de casa porque a água da
escola estava suja, a fim de evitar alguma doença. Como sempre,
existiam uns alunos que se achavam os donos da escola, não
levavam água e queriam beber da nossa. Numa ocasião, esses
alunos pediram a minha água e a do Marco, mas nós resolve-
mos não ceder e por esse motivo ameaçaram nos surrar quando
saíssemos da escola. Então quando o sinal tocava para ir embora,
nós dois saíamos correndo para impedir as agressões. Num certo
dia fomos cercados pelos garotos e não conseguimos evitar, le-
vamos uma surra com muitos chutes, sobrando até para nossas
mochilas e merendeiras. Numa outra vez escapamos por pouco
de outra surra. Como de costume, corremos muito até chegar à
barreira e quando os garotos estavam se aproximando, também
chegou nossa mãe que, de longe, deu uns gritos, e os garotos
foram embora e nunca mais mexeram com a gente.
Uma ocasião inesperada aconteceu comigo e minha mãe.
Ela lavava roupa e foi fazer a entrega e eu a acompanhei. No
meio do caminho apareceu um sujeito com uma faca na mão.
A gente não sabia se era ladrão ou não, mas nós dois corremos
muito até nos distanciarmos dele. Depois fiquei lembrando do
ocorrido e rindo da situação.
Os Trabalhos na Adolescência
Teve um momento em que vendi picolé nas ruas, no Colé-
gio Fluminense e no Campo do Éden. Era bem tranquilo, menos
no Colégio Fluminense, onde tinham uns alunos folgados que
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O Time Anápolis
O Anápolis, como já dito, foi um time que criamos e eu era
jogador e técnico e gostava muito de fazer parte. Houve um time
que era nosso rival, de nome Flamenguinho, e tinha o Charles,
que era um craque, mas nosso time também tinha dois craques
que competiam à altura, nosso irmão Valdo e o Marquinho, nosso
colega. Foi uma época muito boa e de muitas recordações. Um
episódio de que lembro foi que, em algumas partidas, o Marco
era escalado para o jogo e o time estava todo empenhado em
ganhar, fazendo sua parte. Então foi lançada a bola na área para
o Marco, que chegou a driblar o goleiro, mas quando estava de
frente para o gol conseguia chutar para fora, deixando todo o
time revoltado com todo o esforço jogado fora.
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O Serviço Militar
Ao completar 18 anos, servi o Exército e foi um momento
de aprendizado. Fiquei um ano e depois pedi a baixa, mesmo
com o Capitão, para quem era subordinado, insistindo para eu
ficar e tentar carreira. Hoje tenho um certo arrependimento de
não ter seguido seus conselhos.
Roni Alzi
Trabalhei por um período numa fábrica de vidros (Roni
Alzi Vidros Científicos) em Bonsucesso e foi bom ter adquirido
essa experiência. Uma pena ter fechado as duas fábricas, após
decretar falência devido ao Plano Collor, onde o dinheiro de
muitas empresas ficou impedido de ser retirado, o que ocasionou
uma demissão em massa, deixando muitos desempregados.
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A Volta da Família
Foi nesse período em que trabalhei nessa padaria que
aconteceu o retorno de parte da família que tinha partido para
o Ceará e que deixou a mim e aos que ficaram muito felizes, pois
todos estariam juntos outra vez recomeçando nosso relaciona-
mento familiar.
Meu Casamento
Casar com a Rose foi minha melhor escolha e decisão e
hoje desfruto das bênçãos de Deus com nossa união.
A Morte do Pai
Da mesma forma, perder meu pai poucos anos depois foi
muito triste, pois foi uma pessoa importante para nós e para
nossa criação.
A Morte da Tânia
Inesperada foi sua morte, trazendo tristeza para todos. Tânia
estava bem e de repente veio seu falecimento. Creio que ainda
não era seu momento, apesar de Deus saber de todas as coisas.
Quando me lembro dela, logo vem à memória um fato de
quando ela estava namorando e ninguém sabia, até que ela foi
vista e nossa mãe ficou sabendo. Estavam os dois dentro do carro
do rapaz e minha mãe os surpreendeu e colocou o rapaz para
correr e ele nunca mais voltou.
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Iniciado em 18-5-2019
A
ideia de registrar em forma de biografia a existência da
família Cordeiro Cipriano surgiu a partir da convergên-
cia e desejo de todos nós, irmãos. Afinal uma família
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Idos de 1974…
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envolvia o nome dela, não me lembro ao certo, mas sei que era
algo objetivando humilhá-los e sei que a coisa foi de um jeito
que a tia acabou chorando. Nesta ocasião a mãe agiu chamando
a atenção de todos nós, a mãe brigou muito. Eu me senti muito
culpado, não gostei de ter participado daquela maldade. A partir
daquele dia, paramos de sacaneá-los constantemente, mas as
maldades em relação a eles sempre existiram em muitas formas.
Não sei se eles tinham culpa, mas sei que tínhamos vantagem e
abusávamos por conta disso.
Nesse dia que a mãe brigou, foi o mesmo dia que a mãe me
ensinou a pegar no garfo. Eu lembro, porque depois que tudo
acabou eu estava sentado no chão almoçando, minha mãe estava
passando e me mostrou como pegar no garfo e ficou marcado
aquele ato. Mas fico pensando o quanto foi difícil para eles saírem
da terra natal deles para viver aqui na cidade grande. Hoje eu
tenho essa reflexão, mas na época que eles vieram eu fui muito
mal para o Haroldo e a tia Fátima e fui ruim para eles durante
alguns anos. Certamente agia assim porque tinha exemplos
errados. Confesso que pensar sobre essa época causa-me um
“senso de remorso” e compaixão.
As Visitas da Eliane
Certamente mais alguém além de mim deverá falar alguma
coisa sobre a Eliane, uma das filhas da Dona Nazaré. Aliás, te-
mos de falar sobre a Eliane bem como de toda a família da dona
Nazaré com o seu Zé: Eugênio, Gorete, Fátima, Arimar, Sussu
(de cujo nome não me lembro), Eliane e Ritinha, que é especial.
De cada um da família da dona Nazaré, certamente temos
alguma história para contarmos, mas nesta parte dos meus re-
latos dedico espaço para falar sobre a Eliane. Ainda que conste
que a Fátima seja minha madrinha, contudo não havia muita
aproximação entre mim e ela. Inclusive ao falar sobre madri-
nha, eu também tinha outra madrinha por quem, de fato, eu
nutria sentimento de afilhado porque ela me adulava como tal,
chamava-se Teresa.
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Campanhas Eleitorais
Uma lembrança muito entediante eram as campanhas
eleitorais na época da ditadura militar, como se sabe, como a
história mostra havia apenas dois partidos: Arena e MDB. Na
campanha na TV os candidatos não falavam e apenas aparecia
uma foto com o nome da pessoa, um locutor apresentava os
nomes e um fundo instrumental geralmente com um clássico
na música brasileira como Aquarela Brasileira ou obra de Carlos
Gomes. Na rua a campanha eleitoral era como nos dias de hoje,
carros nas ruas e muitos santinhos.
A título de informação, essa modalidade de campanha
eleitoral perdurou até 1982, sendo que em 82 participaram outros
partidos (PDS, PMDB, PTB, PDT e PT) e o voto era vinculado,
isto é, se votasse no governador de um partido, teria de votar em
todos os candidatos do mesmo partido. Lembrando: não havia
eleição para presidente, sob a justificativa de que o povo não
sabia votar. Era o tacão da ditadura, governo Geisel.
Mobral
Movimento Brasileiro de Alfabetização, esse era o nome
que se dava ao programa de alfabetização no governo Geisel
para adultos e crianças, nada mais era que um arremedo de
alfabetização que apenas criava “alfabetizados funcionais”.
As aulas aconteciam próximo da casa onde morávamos,
era um local improvisado no fundo da casa da professora, Dona
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inclusive os dois patos pretos que o pai estava criando e que seria
o cardápio da festa na comemoração do ano novo, que aconteceu
no endereço novo. Os patos ficaram no quartinho, um cômodo no
lado externo da casa, onde em 78 seria o local onde brincaríamos
de escola, cujo nome era “Trepei na goiabeira”, mais adiante falo
sobre isto. Mudamos para nova casa e inicia-se outro episódio!
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1978
Em 1978 tivemos a chegada do Cristiano, aquele que nós
chamávamos de “raspa de tacho”, porque teve uma novela em
que chamavam de raspa de tacho a criança que seria o último
filho de um casal de certa idade, entretanto o Cristiano não foi o
último filho, este título ficou para o Daniel. Cristiano nasceu no
mesmo ano que a mãe esteve visitando o Ceará (não lembro se o
pai foi junto). Certamente o Ivo não gostava daquela situação de
o pai sempre visitar seus familiares e nunca levava nossa mãe,
não sei afirmar se era esse o argumento que o fez levar sua irmã,
mas certamente considerava chata aquela situação. Foi também
nessa época que iniciou o envolvimento do Ivo com a família da
augusta com quem ele se casou alguns anos depois.
1979
Neste ano fazia muito sucesso a música Não chore mais uma
versão feita pelo Gilberto Gil, além da música Geni e o Zepelim
e outras do mesmo autor. Também foi o ano da novela Cabocla,
inclusive o Cristiano gostava muito da música tema da novela,
até cantou na praça de Éden, cantou pra quem quisesse ouvir.
Lembro-me de que em 1979 havia uma previsão de fim do
mundo, uma profecia que prometia um dilúvio. No mesmo ano
caiu os pedaços do satélite Skylab, o que gerou enorme expecta-
tiva no mundo todo, se bem me lembro caiu um pedaço no mar
de Santa Catarina. No mesmo ano eu e o Jorge vendemos picolé
na rua, principalmente na entrada do colégio Fluminense. Na
escola, 78 e 79 foram anos de muita confusão, o Jorge se metia
em brigas e sobrava para mim e para a Tânia.
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1980
Ano da morte de Lennon. E também teve as Olimpíadas
de Moscou, a primeira com boicote porque os Estados Unidos
e aliados não quiseram participar porque era na antiga União
Soviética (URSS). O Brasil ficou neutro, era briga de cachorro
grande. O Brasil em pleno regime militar não foi complacente
com os americanos, não aceitou o boicote e participou dos jogos.
Sob inspiração das Olimpíadas, teve um domingo, na parte
da tarde, em que o Vânio inventou uma brincadeira querendo
imitar a competição de salto com vara. Ao que parece, segundo
explicaram, as pessoas corriam com a vara e ele segurava a vara
de bambu para dar altura e quando eu fui tentar eu caí, ou não
me posicionei para descer em pé ou ele não aguentou não equi-
librou… não sei afirmar porque na queda eu bati a cabeça e não
me lembro do que aconteceu, sei que no dia seguinte, olhando o
bambu no chão, me vinham algumas impressões, mas lembrar
do que aconteceu realmente, até hoje não me lembro. Naquele
domingo após o ocorrido eu dormi, acordei no final da tarde
assustado, porque queria ir à igreja, pois naquele mesmo dia o
bispo da diocese, dom Adriano Hipólito, visitaria Éden. Acordei
com as costas raladas e muita dor na cabeça, perguntei o que tinha
acontecido e foi quando soube o que ocorreu, perdi a memória
sobre o acidente na brincadeira sem graça, brincadeira que me
rendeu dor de cabeça durante meses e fiquei cuspindo sangue
durante alguns dias. Todo mundo acha essa história engraçada,
menos eu.
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1987
Neste ano eu saí da Hamington e fui para o Banerj.
Eu pedi pra sair da Hamington e fui encaminhado para o
Banerj. Eu fiz minha mãe reivindicar uma promessa da assis-
tente social, porque no curso de formação eu tinha tido bom
desempenho.
O fato é que acabei conseguindo o encaminhamento. A
minha ida para o BANERJ foi, para mim, aquilo que o Caetano
cantava “É chegada a hora da reeducação de alguém, do Pai,
do Filho, do Espírito Santo amém”. Fui trabalhar no centro da
cidade, na sede do BANERJ, na gerência de câmbio, lugar onde
conheci muita gente interessante, conversas que estavam muito
para além de Éden, São João, zona norte, que eram os meios onde
eu circulava. Lembrando novamente Caetano, foram “outras
palavras”.
A ideia era sempre a mesma, ajudar a casa, ajudar a meus
pais e nesse sentido ajudei bastante porque o BANERJ oferecia
muitos benefícios para os estagiários. Por coincidência, minha
esposa Ana Cláudia também foi estagiária FEEM no BANERJ.
Nesse banco eu aprendi e fui motivado e quis ser um funcio-
nário público.
Eu gostava do pessoal do banco e eles gostavam de mim. Eu
acho que eles achavam engraçado o fato de eu ser um militante
político. Chamavam-me de pivete subversivo.
Outra curiosidade sobre essa época foi o fato de eu ter
colocado uma lâmpada no quintal lá de casa, o que nos per-
mitiu jogar bola à noite e também fizemos pela primeira vez a
comemoração do natal no lado de fora da casa; a partir daquele
ano todos natais aconteceram no quintal. No inverno desse ano,
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1989
Em 1989, a despeito de estar com o coração sangrando por
causa da divisão na família, eu busquei formas de esquecer o
trauma que estávamos vivendo, foi nesse ano que aconteceu a
primeira eleição pra presidente, eu entrei na campanha com for-
ça total, participei de tudo, vi de perto Barbosa Lima Sobrinho,
o Jurista Sobral Pinto (baixinho do tamanho do Jorge) e tive
o prazer e honra de ver o Cavaleiro da Esperança Luís Carlos
Prestes. A campanha do Lula foi uma das coisas mais bonitas
de que participei e da qual me orgulho. Sem medo de ser feliz!!!
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Em Messejana: Tia Rosalina e seu neto (não nasceu quando moramos com
elas), Nalbia, Tia Teonísia e Liduína
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Ver a minha mãe morando de favor era algo que me deixava in-
conformado. Para minha família era reservado o lado dos fundos
da casa. Alguém dormia nos fundos da casa com o nosso avô
João Soares o “Silai”. Silai sofria muito com as câimbras nos pés,
nossa mãe era quem cuidava dele e ele não lembrava quem era
ela e a chamava de lavadeira. Silai não era chegado num banho,
tomava banho raramente, às vezes semanalmente, às vezes de
quinze em quinze dias e mesmo assim reclamando muito. Às
vezes Silai se masturbava e passava mal, enquanto estive lá ele
foi parar no hospital duas vezes. Teve também uma internação
quando ficou uns dias no hospital, um desses dias, inclusive, eu
fiquei no hospital para fazer companhia para minha mãe.
A imagem forte que tenho de minha mãe durante aqueles
meses em Fortaleza era a de uma pessoa envelhecida, em três
anos minha mãe se consumiu… ficava lavando roupa agachada
no fundo da casa, a água que ela usava ficava em um recipiente
que chamavam de tina e a mãe usava uma madeira com a qual
ela literalmente batia nas roupas. Era uma cena triste aquele labor
e que me causava grande frustração porque se somavam com a
minha inoperância, desocupação que não era por desídia, mas que
me feria. Por isso que devo me compadecer dos desempregados...
“um homem se humilha se castram seus sonhos, seu sonho é
sua vida e a vida é o trabalho, e sem o seu trabalho um homem
não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”. (Fagner)
Enquanto estive no Ceará tentei pelo menos ser útil: nas
compras, pequenas obras, ao comprar gás, que era distante. Eu
queria trabalhar, mas enquanto estive lá não arrumei emprego.
O desentendimento que tive com minha tia foi por porque ela
inventou uma carrocinha de doce e queria que eu ficasse ven-
dendo, mas eu não queria aquilo. Ficava lá comendo os doces e
tentando fumar e nunca conseguia e me engasgava toda hora,
foi quando aprendi o que é cigarro forte e cigarro suave, mas
nunca gostei daquela porcaria. Muito diferente dos hábitos etíli-
cos, no Rio bebia cerveja, chopinho na Lapa, em casa bebia umas
caipirinhas que eu gostava muito. No Ceará estava bebendo ca-
chaça, cachaça com limão, com Coca-Cola (samba), mas sempre
bebendo cachaça.
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viraram fãs do Lula, bônus para mim, que aos 17 anos dizia que
o PT podia mudar o país. Nosso pai disse que o Lula erradicou a
fome em Acaraú. Podem não gostar do que estou falando, aceito
argumentos, mas tem de conhecer história, caso contrário vira
torcida de novela.
Dos últimos anos considero os anos 2004, 2005 e 2006 os
mais marcantes da década, pois eram anos que eu gostava de
ficar em casa, ouvi muito o padre Marcelo Rossi, manhãs da
Globo com Antônio Carlos e Loureiro Neto. Em 2006 fiz cirur-
gia no maxilar e tenho sentimento de incomensurável gratidão
pela minha mãe quando cuidou de mim. Em 2007 começaram
os momentos difíceis.
Em 2007 eu estava em um curso pré-vestibular e neste cur-
so eu ficava sábado o dia inteiro. Teve um dia que eu cheguei,
entrei em casa e estava tudo em silêncio, fui ao quintal e a Vânia
me chamou para contar que o pai tinha agredido fisicamente a
mãe. Eu voltei para dentro de casa tomado de ódio e fui na di-
reção dele agredindo com palavras e disposto para o que desse
e viesse, o chamei de covarde que merecia uma cadeia, ofendi
muito meu pai, ele também me ofendeu, senti muita raiva da-
quele velho. No dia seguinte fui para a igreja, nessa época era
membro da Batista Nova Filadelphia e de lá estava disposto a
ir para a delegacia, já que eu tinha entrado em contato com os
irmãos e não tive retorno satisfatório. Porém resolvi fazer o que
nunca tinha feito na vida, pedi para ser atendido no gabinete
pastoral e conversei com o pastor Eli Alves de Souza, homem de
grande sabedoria, que me acalmou, mas as semanas que vieram
não foram fáceis porque o convívio ficou insuportável. Conversei
com minha mãe sobre esses assuntos, o comportamento do pai,
e ela me contou uma história, quando eles chegaram no Rio o
pai só comprava roupas pra ele, então teve um momento que
ela passou a usar a mesma roupa todo dia e foi quando ele foi
perguntar porque ela estava daquele jeito e ela disse que estava
como mendiga porque achava que ele queria que fosse daquele
jeito, minha mãe foi muito humilhada pelo meu pai, humilhada
até o último dia de vida.
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“Quando eu tentar
Te esquecer
E confiar no meu querer
Me faz lembrar
De onde eu vim
E que o Senhor
Me trouxe até aqui
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Quando eu tentar
Fazer uma canção
E me faltar
A mesma inspiração
Me faz lembrar
Que nada posso ser
Se da Tua graça eu não depender
Me faz lembrar
Daquelas madrugadas de oração
E das lágrimas no chão
E que o tempo ao passar
Vai tentando apagar do coração
Me faz lembrar
Onde eu deixei o meu primeiro amor
Se for preciso eu vou recomeçar
Mas confesso que dependo do Senhor.”
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fez lembrar dela fazendo massagem nos pés do pai dela, quando
morava em Messejana.
Os meses seguintes foram de tratamento, eu que aplicava a
insulina nela, no início foi complicado, errei bastante até acertar
as espetadas. Eu ficava otimista porque percebia as melhoras. Saía
bastante com minha mãe para as consultas, mas para algumas
coisas ela tinha autonomia, contudo eu sempre ligava para saber
como estava indo, se estava voltando se estava tudo bem. Teve
uma vez que ela estava chegando em casa e eu estava ao portão
e o abria para ela e estava enrolando linha de pipa em alguma
coisa, eu perguntei o que era aquilo e ela disse:
“É linha de pipa que achei na rua, lembrei de você e do
Jorge e trouxe para o Ricardo”. Ela fez o comentário e imedia-
tamente me lembrei das inúmeras vezes que ela trazia linha
de pipa para brincarmos, já que comprar sequer um “dezinho”
era algo complicado para nossa realidade. Inclusive, durante as
nossas saídas aos médicos ela comprava doce pra mim como se
eu fosse uma criança, eu entendi que aquilo era uma curtição e
eu aceitava de bom grado. No fundo sentia que havia algo tênue
e que estava na iminência de se desfazer.
Seguindo o tratamento ela fez um exame, ecocardiograma,
quando foi constatado que ela estava com o 0coração grande. Ela
saiu desolada daquela consulta, ainda nos corredores ela falou
“Eu sei porque eu fiquei assim!”, eu ouvi sem comentar. Ao
longo dos meses percebia que ela ficava em oração, ouvia muito
o Padre Marcelo e tinha um momento específico do programa
dele em que ele fazia orações direcionadas, então ela fechava
os olhos com força e colocava as duas mãos em cima do peito.
Eu respeitava muito aquele momento, eu respeitava muito a fé
da minha mãe. No fim de 2007 eu comprei um CD do André
Valadão, neste disco ele gravou clássicos e eu os ouvia muito
naquelas semanas e percebi que tinha um hino que chamava
a atenção de nossa mãe, Mais perto eu quero estar. Certa vez eu
a vi ouvindo esse hino, sentada no sofá e olhando pela janela
na direção do céu. Eu entendia o que ela estava fazendo. Certa
vez, estávamos sozinhos na sala quando ela resolveu comentar:
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N
ão me lembro das datas exatas, mas sei que entre meus
5 a 6 anos, eu e o Cristiano só andávamos pelados,
brincando de escorregar no chão quando estava mo-
lhado e ficar deslizando. Parar de andar pelado só aconteceu
porque a Rosinha (namorada do Vânio), quando ia nos visitar,
mexia conosco dizendo que ia pegar o nosso “lulu”. Também
começamos a crescer e passamos a sentir vergonha e assim dei-
xamos de ser os pelados do quintal.
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As Visitas Chatas
Eu deveria ter uns 8 anos e não gostava quando nossos pais
iam nas casas de alguns amigos e nos levavam. Um cara chato
era o Menga, pois toda vez que nos encontrava apertava nosso
nariz. Outro chato era um filho da Dona Nazaré, que quando
nos encontrava, ficava esticando os elásticos que usávamos no
braço. A malandragem era tirar o elástico e esconder no bolso
para ele não puxar.
As Brincadeiras
Nós não precisávamos de brinquedos para nos divertir,
pois inventávamos nossos próprios brinquedos. Brincávamos de
andar pelo alto sem pisar no chão, futebol, fazíamos carrinhos
de lata, perna de pau, patinete e tudo isso dentro do quintal. Até
com as manilhas das obras de pavimentação da rua, algumas
ficaram no nosso quintal e serviram para nossas brincadeiras.
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Cristina e Wilson
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do Brasil, mas não pude ajudar porque o pai não deixou fazer,
disse que estava me explorando. Sobre as costuras, até tentei usar
a máquina de costura, mas a mãe não deixava usar, somente
passar a linha na agulha, mas isso não podia ajudar porque não
enxergava bem. Na última festa caipira de que participei, antes
de viajar, a roupa foi produzida por mim mesmo, onde costurei
os retalhos e fiz um coração que coloquei nos fundos da calça.
A Catequese
Confesso que não gostava de ir à missa aos domingos nem
à catequese aos sábados, mas a mãe e a Vanda nos obrigavam
a ir e, às vezes, contrariado ia chorando, mas hoje dou graças a
Deus de elas terem me obrigado a conhecer mais de Deus e ser
o que me tornei, vendo como a mão de Deus, através da minha
mãe sobre a minha vida.
Com doze anos já passei a gostar de estar na igreja e foi
quando fiz a primeira comunhão. Passei a ajudar a preparar as
barracas para festa junina e faltou pouco para me tornar profes-
sor de catequese, chegando até a fazer o curso de catequistas na
Igreja Matriz para ser auxiliar, mas não dei continuidade devido
à viagem para o Ceará.
Roupas
Roupas para esses eventos também eram um problema.
Lembro-me de que a camisa que usei na primeira comunhão
era a mesma para casamentos, batismos ou outra festa qualquer.
Para ir à igreja também não tinha sapatos e arrumaram uns pa-
res, mas era maior que meu número, talvez trazidos pela Vanda
de seu trabalho ou pela tia Fátima. Usava roupas de qualquer
tamanho, grande ou pequena, onde tinha que ficar encolhendo
a barriga para a roupa caber em mim.
Havia uma calça azul-caneta que eu gostava muito e já
estava muito apertada e quase não usava sunga. Um dia fui
para a igreja com essa calça e chegando em casa, ao tirar, o zíper
agarrou na pele do meu pênis, não conseguindo tirar, trazendo
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Escola
Aos 7 anos comecei a estudar no Maurício Brum. Lembro-
-me de minha mãe todo dia me acordando para ir junto com
ela para a escola. Ela acordava cedo e ouvia o rádio-relógio
para não perder o horário e sempre tocava as mesmas músicas,
como O Fio de Cabelo, de Chitãozinho e Chororó. Sempre quem
ia me buscar era o Marco e eu até já sabia que estava no final da
aula, pois o Marco subia no pé de amêndoa que tinha em frente
ao portão da escola e, da sala onde estudava, conseguia vê-lo
na árvore pela janela. A mãe só me buscava nos dias em que a
escola dava leite e vitamina em pó. Também recebíamos sopa
em pó que minha mãe pegava numa igreja evangélica, perto do
supermercado Duro na Queda.
Por volta de 10 a 11 anos passamos por alguns apuros
quando tínhamos que ir para a escola. Eu e o Cristiano não po-
díamos estudar no mesmo horário, pois nós usávamos o mesmo
uniforme e, às vezes, tínhamos que trocar o sapato e camisa na
rua. Algumas vezes, o Guê, nosso colega, nos flagrou fazendo a
troca e “zoava” da gente.
Na terceira série minha mãe não deixou a escola me apro-
var, pois em conversa com a diretora do Maurício Brum, soube
que eu seria aprovado com notas baixas, então me fez repetir a
série. A verdade é que eu não gostava de estudar, preferia ficar
soltando pipa. Com 12 anos mudei de escola e fui estudar no
Lourenço Filho, na quinta série. Gostei de estudar lá porque ia
com o Valdo, mas percebia que ele não gostava muito da minha
companhia, pois preferia ir fazendo bagunça com seus amigos,
como o Eduardo da Rua Morrinhos e outros.
Brigas na Rua
Nessa idade, nossa mãe já permitia que brincássemos na
rua, mas com horário marcado para entrar. Algumas dessas vezes
fomos interrompidos pelos parentes da Tininha que apareciam
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O Carnaval
Com essa idade, já andava por alguns lugares sozinho, ia
ao mercado comprar pão, ia até a Praça de Éden e no carnaval,
acho que o Dudu, filho da Dona Marivan, me deu uma fantasia
de bate-bola. A fantasia já estava pequena para mim, mas usei
assim mesmo, colocando um meião até a canela para minhas per-
nas não aparecerem e assim ia pular meu carnaval. As crianças
quando me viam nas ruas, ficavam me chamando de bolinha
preta porque a fantasia era amarela com bolinhas pretas.
A Casa
Quando chegamos em Acaraú, onde íamos morar, vimos
que a casa só tinha um quarto com uma cama de casal, onde
nossos pais ficariam. Nós, os outros que foram morar lá, tivemos
que dormir na sala e em tucuns (rede artesanal feita de tiras
de retalhos), tendo que dormir dois irmãos em cada rede. Essa
rede, geralmente, é usada para descansar ou tirar um cochilo,
mas para dormir todos os dias e ainda dividir com outra pessoa
é o maior desconforto.
Devido à mata, apareciam muitos bichos estranhos que não
estavam em nosso habitual, como piolho de cobra, conhecido
como lacraia, mas de tamanho e proporção grandes e gambás
que apareciam nos telhados e no banheiro. Como esses bichos
apareciam à noite, tudo que tínhamos de fazer no banheiro
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Tudo que levamos que tinha valor foi vendido pelo pai.
Só ficaram as roupas, algumas delas nem saíram de caixas
de papelão, por não ter ocasião onde usar. O ferro de passar
não foi vendido, apesar de não funcionar devido à voltagem,
mas nossa mãe improvisava, esquentando o ferro de passar
na brasa.
Passávamos mais tempo no quintal que dentro de casa,
pois havia muitas árvores frutíferas como caju, seriguela, jambo,
abacate, mamão, cajá, goiaba, banana e limão. O pé de limão
era enorme e tinha muito limão, mas era difícil pegar os frutos,
pois seus galhos espinhentos cobriam a árvore até o chão. Então
para ter acesso aos limões que caiam, coloquei madeiras para
suspender os galhos da árvore e assim pudemos entrar debaixo
da árvore e colher os limões.
As Escolas
Nossos pais conseguiram vagas em escolas públicas (Tomaz
Pompeu de Souza Brasil) para mim e para o Valdo. O Cristiano,
por falta de vaga, só conseguiu em escola particular (Ginásio
São José), mas com bolsa de estudo. Saber a hora de ir para a
escola também era um problema, pois quase ninguém possuía e
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Nossos Alimentos
Graças a Deus não passamos necessidade para nos ali-
mentar, até porque o quintal era repleto de diversos frutos. A
farinha também é um alimento barato e as famílias tinham
costume de comprar sacas de 50 kg. Nós também começamos
a adaptar nossos alimentos com o grão como farinha com açú-
car, farinha com leite e açúcar, farinha com café, farinha com
banana e açúcar, farinha com goiaba e açúcar, essa última foi
ideia do Valdo. Sempre que possível, aos domingos nossos pais
tentavam fazer uma refeição especial. Ou era frango caipira
com pirão ou mocotó com bastante tutano com pirão. Comia
e depois ficava fazendo a digestão sobre uma esteira de palha
no quintal, sentindo aquela moleza no corpo, comum depois
de comer muito algo tão pesado.
Parentes
A irmã do nosso pai morava numa avenida e tinha muitos
netos que moravam por ali, onde também morou minha avó Ju-
lia até sua morte. Um outro irmão do pai, tio Assis, morava um
pouco mais distante, do outro lado de um rio. Era interessante
visitá-lo, tínhamos que retornar antes de anoitecer, pois atraves-
sávamos a seco, mas à noite o rio enchia e em algumas visitas
que saímos tarde pudemos ver as águas brotando do chão e o
rio se tornar caudaloso.
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As Brincadeiras
Como sempre gostei de inventar coisas, resolvi construir
uma cabana de palha no quintal para brincarmos e até que ficou
bem legal e todos chegaram a entrar, inclusive a Tânia e a Cristina.
Assim como no Rio, brincamos muito nas árvores, atra-
vessando de uma para a outra sem pisar no chão. Certa vez,
enquanto brincava, nossa mãe varreu parte do terreno, juntou
as folhas e queimou enquanto por cima dos galhos passáva-
mos sobre o fogo, só que pisei num galho fraco que quebrou e
cai de costas no chão, entre a fogueira e um tronco de árvore
cortada. Vejo que a mão de Deus agiu naquele momento, pois
poderia ter acontecido uma fatalidade, mas as misericórdias
do Senhor se renovam a cada dia. Fui levado para casa e a
mãe me deu um copo de suco de saião, que bebi de uma vez,
sem sentir o gosto.
As músicas preferidas eram forró e brega e a galera, depois
de embriagada, dançava sozinha ou com vassouras, em frente
aos bares ouvindo aquelas músicas. Um desses que se empolga-
va era um garoto conhecido como Tité, que adorava a lambada
do Beto Barbosa e dançava com um jumento, inclusive as más
línguas diziam que ele tinha um caso com o jegue.
No período em que vivemos no Acaraú, frequentamos uma
instituição chamada CSU — Centro Social Urbano —, onde ser-
viam lanche e almoço, além de muitas brincadeiras, com esporte e
lazer. Jogava futebol, basquete e queimada. Como eu e o Cristiano
jogávamos bem a queimada, na hora de escolher os times todos
queriam nos escolher e me apelidaram de bola de fogo, devido às
marcas que deixava no corpo dos adversários com a bola. Além
disso, tínhamos facilidade de agarrar as bolas. Para as crianças
maiores, estimulavam com tarefas para ajudarem nas despesas
de suas casas. As meninas tinham aula e faziam pinturas em
pano de prato e toalhas para vender. Eu comecei a vender doce
nas ruas e aproveitava os sepultamentos para vender doce aos
visitantes do cemitério próximo da instituição. Depois comecei a
vender sacolé. O Valdo, enquanto esteve lá, também frequentou
e jogava futebol, sendo bem quisto pelo pessoal por jogar bem,
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As Brincadeiras
Fizemos muitas amizades, onde brincamos muito, fazendo
torneio de futebol de botão na travessa onde morávamos e pas-
samos a jogar bola também ali, até aglomerar de crianças e não
ser mais possível brincar na travessa. Então direcionamos nosso
futebol para um terreno que havia na rua, onde as pessoas jogavam
lixo. Limpamos, capinamos e fizemos um campinho de futebol
e vôlei, dando o nome do campo de Catingão, em homenagem
ao mau cheiro de lixo. Começamos a criar torneios de futebol e
vôlei e a notícia logo se espalhou pelas ruas vizinhas e reuniu
muita gente para jogar. Sobre os jogos de vôlei, começamos a
fazer times contra as outras ruas, mas sempre perdemos, pois
jogávamos com a rede de qualquer jeito e eles a colocavam na
altura padrão.
Uma vez apareceram uns garotos desconhecidos para jogar
vôlei conosco e no meio da partida houve uma confusão e eles
se juntaram para me bater, mas fugi para casa e eles ficaram na
rua me esperando. Como a noite iria dançar caipira na escola,
o pai foi nos levar e acabei não dançando, pois o pai queria ir
embora e já estava bem tarde.
Outra vez, também no Catingão, enquanto jogava, acabei
pisando num vidro e tive um corte feio. Fui para casa e a mãe
tirou o vidro, lavou a ferida com água, vinagre, limão, sal e café,
uma verdadeira salada. Deixou uma banda de limão em cima do
corte e enrolou com gaze. Aquilo tudo queimava e ardia muito.
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O Casa Blanca
Depois, observando que tinham bons atletas, tivemos a
ideia de formar um time de futebol de nome Casa Blanca. Mas,
antes disso, usamos um uniforme amarelo que o Eduardo (Dudu
Magrão) comprou que chamamos de Brasileirinho. Os treinos
eram no campo oficial que tinha em frente ao José de Barcelos,
escola onde estudava. O técnico era o Cícero e assim começamos
a jogar com os times locais. Um time que era um dos melhores da
região, chamado Barcelona, jogou contra nós e vencemos. Então
pediram revanche e perderam novamente. Um dos jogadores
desse time (o Hugo) saiu e pediu para entrar no nosso time.
Nesse tempo, o Marco já morava conosco.
Cícero conseguiu inscrever o time em campeonatos oficiais
e jogamos em dois, mas eu, devido à idade, não pude participar,
somente o Cristiano que era menor, depois que eu falsifiquei
sua certidão, diminuindo sua idade. Um dos campeonatos que
jogamos foi no Estádio PV (Presidente Vargas).
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A Tia Té
Passamos por algumas situações embaraçosas com nossa tia
Té. Como exemplo, todo sábado, os meninos estavam no portão
chamando para treinar e num dia ela se meteu e disse que eu
estava dormindo, mas ouvi e gritei que estava indo, deixando-a
sem graça.
Teve um episódio do relógio que ela emprestou à nossa
mãe. Quando se aproximava do aniversário de nossa mãe, a tia
pediu para nós pegarmos o relógio escondido, pois iria levar
para limpar, trocar o vidro e deixar novo para darmos de pre-
sente. Nossa mãe, sentindo falta do relógio, desconfiou da gente
e pediu para darmos conta do paradeiro e bateu em mim e no
Cristiano por causa disso. A tia viu a situação toda acontecendo
e ficou em silêncio, deixando a gente ser punido. No aniversário
entregamos o presente numa caixinha para nossa mãe, que nos
abraçou e perguntou por que não falamos nada. Então contamos
todo o ocorrido.
Gincana
Um passatempo que fizemos e ficou marcado foi uma
gincana na rua, onde foram divididos os participantes em dois
grupos para fazerem as provas. Uma das provas foi recriar a
Escolinha do Professor Raimundo e o papel que recebi para
interpretar foi o Nerson da Capitinga, uma cena que foi bem
aceita pela galera que assistia.
As Festas e Danças
Tínhamos um grupo de amigos da rua que sempre estáva-
mos juntos, inventando curtições, como festas americanas. Nessas
festas, convidávamos as meninas para participar. A intenção era
chamar para dançar e talvez conseguir uma paquera. Até ganhei
uma fita de músicas que ouvia escondido no som da tia Té. Nossa
prima Nálbia, filha da tia Rosalina, era nossa cúmplice, ajudava
a gente a pegar o som. Nessas festas tinha uma menina que se
interessou por mim e os meninos colocavam “pilha” para a gente
198
A Barraca do Tchêss
Tinha uns amigos que se reuniam na calçada da rua para
tocar violão, bebendo vodka com Coca-Cola. O Marco, enquan-
to morou em Fortaleza, se juntou aos violeiros nessas noites de
música e bebidas.
Então esses amigos resolveram abrir um negócio. Compra-
ram uma armação de barraca para vender caipirinhas de sabores
diversos, dando o nome de Barraca do Tchêss. Sabiam que eu
desenhava, compraram o pano que cobriria a barraca e pediram
para fazer um rosto e da sua boca saia o nome da barraca.
A Fábrica de Castanhas
Aprendi a andar de bicicleta de um amigo chamado Fran-
cisco. Algumas vezes, peguei emprestada para levar o almoço
da minha tia Rosalina em seu trabalho. Mesmo inseguro, pega-
va a bicicleta e atravessava a BR 116 para chegar na fábrica de
castanhas. Nessa mesma fábrica, nossa mãe tentou emprego e
nós nos revezamos durante o dia na fila e o Marco ficou toda a
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A Tia Rosalina
Quando não queríamos ficar na casa da Tia Té, íamos para
a casa de nossa outra tia Rosa. Ela era muito divertida e a gente
se sentia mais à vontade com ela, inclusive algumas vezes dor-
míamos em sua casa. Era uma casa pequena, humilde, ainda em
construção, mas com tudo isso, era um local que nos sentíamos
bem. Como não tinha luz no banheiro, fiz uma “gambiarra”
levando luz da cozinha para o banheiro que acendia os dois
cômodos juntos, só para não ficar no escuro. Nálbia, filha da tia
Rosa, também era bastante alegre e me ensinava a dançar.
200
O Alistamento Militar
Chegou o momento do alistamento militar. Queria servir
na Aeronáutica, como o Valdo, ou na Marinha. Porém, como
fiquei muito tempo fora do Rio, não sabia onde deveria ir me
alistar. Então o Vânio se ofereceu a me ajudar e me indicou um
conhecido que estava fazendo campanha política na Vila Norma,
levando os jovens até o local de alistamento. Informei a ele meu
interesse pelas duas forças e fui levado para Vilar dos Telles.
Depois de fazer o alistamento e ter assinado, percebi que era
para o Exército, ficando chateado e frustrado por não ser minha
opção. Apesar de tudo isso, a vontade de ingressar numa das
Forças era maior, então fui encaminhado para me apresentar para
os testes e exames no REI — Regimento Escola de Infantaria —,
em Deodoro. Depois de todas as etapas, fui informado sobre o
excesso de contingente. Conversei e mostrei meu interesse em
ficar e me pediram para aguardar. Então voltaram com a infor-
mação que só restava vaga para PQD — Paraquedista. Reafirmei
o interesse, mas foi em vão, pois as vagas também se esgotaram.
Os Trabalhos
Não conseguindo servir no Exército, comecei a procurar
emprego. A oportunidade surgiu no Supermercado Real (atual
Supermarket), no Jardim Metrópole. Por lá fiz alguns amigos,
201
O Assalto
As igrejas dos meus amigos ficavam em Belford Roxo,
uma no Barro Vermelho e a outra no Gogó da Ema. Voltando
para casa, tinha o costume de descer do ônibus ou no centro de
São João ou em Agostinho Porto. Nesse dia, resolvi descer em
Agostinho Porto, na entrada da Rua Délio Guaraná. Ao descer
do ônibus, percebi que um homem desceu em seguida. Quan-
do o ônibus deu partida, senti que ele apertou o passo para se
aproximar. Encostou uma arma nas minhas costas e pediu para
que eu andasse sem olhar para trás. Pediu que eu atravessasse a
rua e entrasse em um buraco da linha do trem. Tentei questionar
e saber o que ele queria e disse que iria me matar, que precisa-
va me matar senão ele quem morreria e me chamava por um
outro nome. Avisei que eu não era quem ele procurava e pedi
para ver meu documento de identidade, mas ele se recusava a
acreditar que era meu aquele documento. Pediu para eu deitar
no chão para me matar. Fiquei com o rosto no chão e percebi
que ele analisava meu documento. Então jogou tudo no chão.
202
As Farras
Depois do expediente sempre tinha uma bagunça e bebe-
deira para participar. Rolaram também algumas excursões que
organizei, inclusive o Valdo e o Cristiano participaram.
Do Jardim Metrópole fui para a Ilha do Governador e as
farras continuaram. Estive em festa no Morro do Dendê, no meio
de bandidos armados e fogueteiros, mas não tinha perigo, pois
eles nos conheciam e sabiam que trabalhávamos no supermercado.
Até o intervalo do almoço usávamos para fazer alguma
coisa, no caso, jogar futebol num campo próximo, com chuva ou
sol, nada nos impedia. Foram tempos de muita loucura.
1999
Na loja do Jardim Metrópole fiquei durante quatro anos,
até ser transferido, junto com o Sandro, para a loja da Ilha do
Governador. Lá conheci a Silvânia e começamos a namorar, mas
ela tinha uma melhor amiga que cismou comigo e, por trás da
amiga, tentava de todas as formas se envolver comigo. Com
a Silvânia tive um relacionamento e um ano depois nasceu a
Amanda.
Minha filha era minha felicidade. Entretanto, com o passar
do tempo, a relação com a mãe da minha filha não andava bem.
Algumas coisas que ambos fizeram não foram legais e isso co-
203
Amanda
2005
O tempo passou e conheci Fabiana, a mulher que se tornou
minha esposa, com quem escolhi viver e amar muito. Através
dela passei a enxergar a vida com outros olhos e conheci Deus
em sua intimidade, aquele que sempre esteve comigo me pro-
tegendo e guardando. Há 15 anos sou casado com Fabiana, a
quem tanto amo.
Para minha felicidade se tornar plena, falta a aproxima-
ção da minha filha, que acabamos nos afastando por toda sua
adolescência e juventude. Sempre quis ser um pai melhor para
não me comparar ao meu pai, mas sinto que minha ausência
me tornou pior, mas creio que ainda há tempo, pois enquanto
houver vida, há esperança.
Atualmente vejo o meu pai com outros olhos e percebo
que tudo que ele fez foi para ficar junto de nós, mesmo de um
204
205
206
1978 a 1989
A
princípio darei início às lembranças até os meus 11
anos, momento da ruptura da família. Saltarei a cro-
nologia para registrar minhas memórias coletivas até
dias atuais. Depois retorno ao período de 1989 a 1994, período
em que vivemos no Ceará que considero a pior fase que nossa
família viveu.
Minha lembrança mais remota é de um colo, uma mama-
deira e uma música para ninar: “eu tanto ouvia falar de ti, por
isso hoje estou aqui…”; era a Vanda, minha irmã, cuidando de
207
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essa pessoa não era uma simples amiga das minhas irmãs, era a
primogênita dentre os 12 irmãos, nossa irmã Vera. Logo que nasci
ela se casou com Orlando e por isso minha intuição e percep-
ção afetiva falha inicialmente em reconhecer nossa irmandade.
Essa dúvida aos poucos se dissipou, principalmente quando
ela chegava com meus sobrinhos Dinho, Nando e Tati e juntos
brincávamos naquele quintal como se fôssemos todos irmãos.
Outro que, devido ao hiato de tempo entre nossos nasci-
mentos, tive pouco contato nos primeiros anos de idade era o
Vânio. Enquanto eu começava a andar, ele ingressava nas forças
armadas. Vem à recordação ele namorando com a Rosinha,
com quem gostava muito de estar por perto porque entrava
nas nossas brincadeiras. Com ela noivou e lembro-me de ir ao
seu casamento.
211
Não sei até quando, mas sei que mamei durante muito tempo,
talvez até os 3 anos, e isso trouxe incômodo nos meus irmãos,
até começarem a tentar me tirar do peito. Tinha vergonha, mas
a vontade de ficar no colo da minha mãe mamando era maior.
Somente o “homem do cigarro” me tirava dali, porque morria
de medo. Era uma máscara horrível de um homem com cigarro
que alguém usava e aparecia na porta ou nas janelas quando eu
estava mamando. Até hoje não sei quem era, desconfio do Vânio,
Haroldo ou tio Ivo, mas podia ser qualquer um.
Eu tinha meus 3 anos quando nossa mãe engravidou e
acabou com minha pretensão de ser o caçula. Daniel nasceu,
ocupando definitivamente esse título. Mas antes de ele nascer,
houve um episódio que ficou para sempre cicatrizado em mim.
Enquanto nossa mãe estava grávida, num determinado domingo
nosso pai comprou uns refrigerantes e nesse tempo as garrafas
eram de vidro. Então ele chegou e colocou as garrafas na mesa,
pois seriam servidas durante o almoço. A vontade de tomar o
refrigerante era tamanha que fiquei grudado na mesa à espera,
mas como era pequeno, não conseguia ver as garrafas, então
resolvi me apoiar na mesa. O inevitável aconteceu, pois a mesa
balançou, uma garrafa caiu no chão e se quebrou. A pressão do
gás fez com que os vidros quebrados se espalhassem com força,
acertando e cortando minha perna esquerda. Devido à gravi-
dez de minha mãe, quem me levou ao hospital foi a Vaninha e
Baixinho, seu namorado. Como disse, a lembrança e a cicatriz
carrego até hoje.
Inicialmente, Daniel foi o que ocupou o meu lugar, era
esse meu sentimento. Depois, com seu crescimento, tornou-se
o substituto da Cristina no antigo trio e, juntos com Wilson,
aprontamos muito no Rio, depois Acaraú e Fortaleza. Quando
chegou seu momento de alfabetizar, fui eu quem ensinou as
primeiras lições de como escrever seu nome, contas, leitura
e os exercícios de casa. Confesso que era bem complicado
porque ele era muito mimado e chorava para não estudar e
nosso pai, por vezes, me impedia de ensinar para atender aos
caprichos dele.
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O Engajamento
Acompanhar os mais velhos sempre foi um prazer pra mim.
Em 1988, Marco e Vanda começaram a se envolver na política
e apoiar o PT na candidatura de um prefeito (Ernani Coelho)
e uma vereadora (Lia). Quando tinha reunião, era certa minha
presença e ficava ouvindo tudo aquilo mesmo sem entender, mas
me sentia atraído. O contexto de tal atração somente se evidenciou
no ensino médio, já morando de volta no Rio (1994), quando tive
um trabalho de sociologia para entregar e a tarefa era ler trechos
do livro O Capital, de Karl Marx. Quando entendi o marxismo,
aquela atração da infância logo se descortinou, ao descobrir
a luta de classes, a organização política dos trabalhadores (as
saudosas reuniões do PT), o que me levou a um posicionamento
esquerdista, de igualdade social.
Os Estudos
De 1986 a 1988, como meus irmãos, estudei no Maurício
Brum (1a, 2a e 3a séries). Com a mudança para Acaraú, por falta
de vagas, estudei numa escola particular, chamada Ginásio São
José (4a e 5a séries — 1989 e 1990). Depois viajamos para Fortaleza
e estudei em escola pública novamente — Escola José de Barce-
los (6a, 7a e 8a séries — 1991 a 1993). Voltando para o Rio, estudei
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Dona Nazaré e Eu
No período em que moramos no Acaraú (1989 a 1991), vale
lembrar da Dona Nazaré. Ela se tornou uma pessoa importante
na cidade. Além de ser uma ministra na igreja, as pessoas mais
humildes sempre lhe procuravam pedindo ajuda. Ela tinha um
trabalho assistencialista, distribuindo aos necessitados tickets
para compra de leite, tickets para compra de gás de cozinha e
distribuição de cestas básicas. Por um período ela pediu para
nossa mãe para enviar um de nós para ajudá-la nessas tarefas
e minha mãe pediu para eu ajudar. Fui para a casa dela e de lá
fomos para o fórum para fazer cadastro de alguns moradores para
controle nas distribuições. Às vezes, sua filha Fátima viajava e
ela ficava sozinha com a Ritinha e eu ia para sua casa para fazer
companhia, já que Seu Zé ainda estava no Rio. Muitas vezes a
acompanhei em trabalhos no campo, entrando nos sertões mais
humildes da cidade para cadastrar famílias e crianças que nem
certidões de nascimento tinham, levava também uma balança
(tipo rede) para pesar as crianças e ver se o peso condizia com
sua idade ou se estava desnutrida. Foi um trabalho de aprendi-
zado, vendo de perto famílias em situação de miséria e que viam
esperança quando essa senhora chegava até eles.
Exílio? Talvez
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1997 — O Militarismo
Em conversas de infância, vendo nossos irmãos mais velhos
(Vânio e Jorge) indo para o quartel, sempre ficávamos planejan-
do em qual das três forças armadas serviríamos e sempre tive
simpatia pelo uniforme azul da Aeronáutica.
Esquecendo as conversas de garoto, antes dos 18 anos estava
focado em entrar em alguma das forças, não importava qual se-
ria, até mesmo pra voltar a colaborar nas finanças de casa. Então
fiz prova para entrar no Colégio Naval, mas não consegui nota
suficiente. Não desisti e tentei novamente, agora para Aprendiz
de Marinheiro e dessa vez fui aprovado. Comecei a primeira
fase de avaliações médicas e logo fui reprovado.
Em 1996 era o ano que completaria 18 anos e tinha que me
alistar. Meu irmão Valdo serviu na FAB durante seis anos e no
seu final de tempo de serviço chegou minha vez. Conversamos
e combinamos de me alistar na Aeronáutica e se fosse apto para
servir, me indicaria aos seus superiores para me puxar e trabalhar
no mesmo quartel onde ele servia. Nesse ano estava terminando
o ensino médio também. Na Base Aérea do Galeão fiz os testes
físicos e exames e fui apto para ingressar na FAB. Designaram-me
para o recrutamento na Base Aérea de Santa Cruz, onde fiquei
por seis meses. O ano terminou, concluí o ensino médio e nos
primeiros dias de 1997 estava a caminho de Santa Cruz. Durante
esse período, como não tinha dinheiro de passagem para voltar
todos os dias para casa, tornei-me residente e só voltava para casa
nos finais de semana, se não estivesse de serviço. Em junho foi a
formatura e uma semana depois, a primeira turma de 97 estava
se separando, cada um seguindo seu destino. Com a indicação
do Valdo, fui servir no PAMB — Parque de Material Bélico do
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1999 — Conversão
Enquanto servia, não deixava os estudos de lado e nesse
período estava destinado a me tornar sargento e fazia cursinhos
preparatórios para alcançar meu objetivo. Numa noite, Valdo, que
gostava de curtir baladas, me chamou para largar um pouco os
estudos e sair com ele. Estava precisando espairecer e aceitei o
convite. Fomos juntos para a extinta Choperia Tropical em Irajá,
onde ele encontraria uma menina com quem ele estava se relacio-
nando. Ela levou sua irmã que tinha terminado namoro naquele
dia e fomos apresentados. De início, não me interessei, além de
conhecer o ex dela, mas depois de algumas cervejas, o interesse
surgiu e, bêbado, comecei a investir. Não sei exatamente o que
falei devido às muitas doses, mas sei que não consegui nada.
Alguns meses se passaram, Valdo continuava com aquela
menina e marcamos de retornar mais uma vez naquela choperia.
A irmã continuava solteira e, dessa vez, de cara limpa, conversa-
mos um pouco e até aconteceu, acabamos ficando naquela noite.
O tempo passou, Valdo continuava com aquela menina e no
Natal de 1998 ele ligou para desejar felicitações. Acabei pegando
o telefone para desejar feliz natal para a Elaine. Conversamos
um pouco mais e ela me convidou para ir à sua casa no dia
seguinte, pois teria um churrasco. Conforme combinado, fui à
Penha e ficamos mais uma vez. Conheci sua família e a partir
desse momento iniciamos um namoro.
Tínhamos muitas coisas e objetivos em comum. Conversá-
vamos sobre tudo, inclusive religião. Contei de minhas experiên-
cias de criança e do que passei no quartel e ela me falou as dela,
de passar por muitas igrejas, de quando criança visitar o centro
espírita que seu tio era dono, mas estava visitando uma igreja
e lhe fazia muito bem. Combinamos de visitar juntos e na pri-
meira visita aquela sensação dos encontros do quartel reacendeu
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2002 — O Casamento
Elaine é minha parceira, minha confidente, meu tudo, meu
amor. Sempre apoiamos um ao outro e acredito que assim deve
ser um casamento. Quando a conheci, ela estava totalmente
desmotivada com os estudos. Incentivei-a a retomar e assim
ela concluiu o ensino médio. Já casados, começamos juntos a
faculdade, eu fazendo Direito e ela Serviço Social. Ela se formou
primeiro, depois chegou a minha vez. Estar ao seu lado até hoje
é um presente de Deus para mim. Eu te amo!
Meu namoro durou dois anos e houve a certeza de que
nossa relação deveria seguir adiante e que devíamos alicerçar
essa união, em 2001 ficamos noivos. Minha mãe esteve junto de
nós nesse dia, junto com os pais da Elaine, e simbolizamos esse
momento com alianças.
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O ano que trago essas memórias é 2020 e até este dia estamos
juntos e seguimos caminhando. No início do casamento tínhamos
planos de ter um casal de filhos, mas os planos de Deus são maio-
res que os nossos. Descobrimos que Elaine tem endometriose, o
que dificultava para engravidar. Como os endométrios estavam
bem agressivos, ela passou por cirurgia, perdendo uma trompa
e um ovário, mas isso não a impedia de uma futura gravidez.
O tratamento foi feito à base de medicamentos e a cura veio. O
médico diagnosticou e recomendou que, para uma futura gravi-
dez, seria ideal uma inseminação artificial, pois se tentássemos
parar com os medicamentos para uma reprodução tradicional,
os endométrios poderiam voltar. Então optamos por não tentar
nada, pois já estávamos acostumados a viver um para o outro
e decidimos não ter filhos. Hoje vivemos bem nessa escolha e
seguimos com outros sonhos, realizando nossas metas, no amor
que nos envolve e que nos une.
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...
Doze irmãos e quatorze sonhos, cada um com uma missão
a cumprir e que juntos contam por aqui suas histórias, com a
visão particular dos acontecimentos de nossa família. A sauda-
de dos três que nos deixaram é grande, mas suas vidas estarão
sempre conosco, sendo escritas saudosamente por onze mãos.
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A Chegada no Acaraú
Ir de ônibus do Rio de Janeiro para o Ceará é uma aven-
tura. São dois dias de viagem, cortando cidades do Espírito
Santo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco até chegar ao Ceará.
Foram dias tristes dentro daquele ônibus para os que foram.
Por mais que o panorama visto da janela pudesse ser lindo, com
os encantos de cada cidade que passavam aos nossos olhos, a
lágrima e a saudade sempre prevaleciam. Assim foi por todo o
percurso até o paradeiro. Dois dias se passaram e chegamos a
Fortaleza, cidade que mais tarde será outro lugar de moradia.
O ônibus encostou-se à plataforma e nosso pai estava lá à nossa
espera. Pegamos outro ônibus, agora juntos com nosso pai com
destino a Acaraú. Pelo menos mais 5 horas aproximadamente
até chegar à cidade.
Já era noite quando, enfim, chegamos em Acaraú. Como
é uma cidade de interior, não tem rodoviária, os ônibus param
numa rua. Pegamos uma caminhonete que nos deixou próximos
do destino final, Rua Manoel Sales, vulgarmente conhecida como
a rua dos cabarés. Paramos em frente a um bar do Sr. Malaquias
e dali até a casa fizemos o percurso andando. Logo que desce-
mos da caminhonete ficamos espantados com um som até então
desconhecido, era o coaxar de muitos sapos num brejo.
A Casa
O local onde fixaríamos residência era a primeira mentira
de nosso pai. A casa que herdou de sua mãe já estava ocupada
por uma de suas sobrinhas, uma família com muitos filhos.
Ele não conseguiu pedir para desocupar a casa, mas teve outra
ideia. A casa que era dos nossos avós, pais de nossa mãe, estava
“livre”, tinha somente uma tia nossa com a filha. Foi nessa casa
que passamos os próximos 1 ano e 10 meses.
Chegando na casa, conhecemos a tia Aurila e sua filha
Euriane. Era uma mulher só, semblante triste, vivia de costuras.
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As Escolas
A matrícula nas escolas também foi mais uma mentira que
nosso pai garantiu como certa para nossa mãe. Como foi dito
antes, o ano letivo nas escolas do Nordeste começa em fevereiro
e chegamos na cidade em abril. O Valdo e o Wilson nossa mãe
conseguiu matricular, mas o Cristiano e o Daniel não.
Valdo e Wilson conseguiram se matricular na Escola Tomaz
Pompeu de Sousa Brasil, conhecido com Grupo Novo. A outra
escola pública mais antiga da região era conhecida como Grupo
Velho, onde nossa mãe estudou e tentou matricular Cristiano
e Daniel.
Como o Daniel completaria 7 anos, nossa mãe resolveu
colocá-lo numa explicadora onde todas as crianças da região
passavam antes de se efetivar numa escola. Essa explicadora era
prima de nossa mãe. Sua metodologia de ensino passava longe
do método Paulo Freire, era o antigo ensino à palmatória. Em
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Fevereiro de 1991
Depois de 1 ano e 10 meses, deixamos Acaraú para viver
em Messejana, Fortaleza. Por volta de 07h00 chegamos na Rua
Santa Ângela, Travessa Coracy, nº 21, casa da Tia Teonísia. Em
Messejana, vivemos os próximos 3 anos até nosso retorno ao
Rio de Janeiro.
Após partirmos de Acaraú, não retornamos mais, exceto
nosso pai, que voltou para vender a parte do terreno que nossa
mãe tinha direito, uma demonstração para nossa tia Aurila de
quem realmente ainda tinha herança garantida, uma vez que sua
parte já tinha sido vendida. Pouco mais de um ano, nossa tia Té
também foi ao Acaraú para tratar da venda de todo o terreno, parte
dos demais irmãos para que fosse dividido. Wilson, Cristiano e
Daniel foram junto com ela para visitar os primos e amigos que
lá deixaram. O terreno foi vendido, porém a parte da tia Fátima
foi doada para a tia Aurila, e ela fez sua nova casa. Hoje aquele
grande terreno que outrora contou um pouco de nossa história,
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As Escolas em Messejana
Como dito, nosso pai havia mencionado que tinha consegui-
do escolas para todos, inclusive a escola do Daniel era especial.
Depois de acomodados, nossa mãe foi logo atrás das escolas para
não perdermos as matrículas. Wilson e Cristiano conseguiram
se matricular e estudar juntos na mesma escola José de Barcelos.
Já a tal escola especial do Daniel era nossa prima Nálbia, que
daria aulas em casa para ele. Nossa mãe não gostou da ideia de
o Daniel perder mais um ano letivo e correu atrás para tentar
matriculá-lo na Escola Paulo Benevides, mas não teve êxito, só
conseguindo no ano seguinte.
Os Trabalhos
Nosso pai logo conseguiu trabalho como pintor de carros
em algumas oficinas. Como o salário era pouco, nossa mãe con-
tribuía com sua parte como lavadeira, conseguindo esse serviço
com os vizinhos. Wilson começou a fazer pipas para vender e
Cristiano trabalhou numa cantina da escola Paulo Benevides no
período em que não estudava.
A Convivência
Apesar de toda gratidão que tivemos com nossa tia Té, em
nos fazer sair de um lugar sem nenhuma perspectiva de vida,
de ter aberto suas portas e ceder seu espaço para estarmos todos
juntos, a coletividade não foi algo tranquilo de lidar. Tia Té era
uma mulher controladora e, apesar de demonstrar satisfação
com nossa presença, ainda mais no auxílio em cuidar de nosso
avô Silai (seu nome era João Soares), que apresentava senilidade,
ela não nos deixava à vontade em sua casa, onde não tínhamos
liberdade para assistir à televisão ou ouvir um rádio, por exemplo,
a não ser que fosse de seu interesse. O problema com alcoolismo
de nosso pai também a incomodava bastante, gerando até dis-
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O Entretenimento
Fortaleza é uma das cidades brasileiras com uma grande
extensão litorânea e pudemos aproveitar bastante de tudo isso.
As praias do Futuro e Abreulândia eram as nossas preferidas,
onde pudemos nos divertir muito. Fizemos amizades que
temos até hoje, graças às redes sociais, que nos mantêm co-
nectados.
As Olimpíadas de Barcelona em 92 serviram de inspiração
para nossas brincadeiras esportivas. Em nossa rua havia um
terreno abandonado que usávamos para jogar futebol, mas com
a motivação das olimpíadas, começamos a usar também para
vôlei. Depois limpamos um pouco mais esse terreno, aumentan-
do as fronteiras do campinho, alternando o espaço entre futebol
e vôlei. Como alguns vizinhos jogavam lixo e o cheiro não era
agradável, colocamos o nome do campinho de Catingão (nesse
período, o Marco já estava morando em Fortaleza e contará
essa parte da história).
Espaço para se divertir não faltava, pois tinha a quadra da
Escola Paulo Benevides que usávamos também para futsal, a
praça da igreja católica, no centro de Messejana, onde ficávamos
conversando e ouvindo música, uma casa de show de forró cha-
mada Pau-de-Arara, que frequentamos muito, nossa rua também
era muito animada e qualquer aniversário era motivo pra festas.
Fazíamos gincanas, ensaios de festa junina, campeonatos de jogo
de botão, salas de videogame etc. Não podemos negar que nos
divertimos muito nesse período.
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1982
M
inha vida era muito fácil, pois nada era cobrado de
mim por ser o último filho e, de alguma forma, tinha
uma maior proteção. Por ser o mais novo, fui contem-
plado por um cuidado maior pela minha mãe, além de ser o
mais querido pelo meu pai.
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As Brincadeiras Inesquecíveis
(...) Na minha infância lembro-me de momentos em que estava
sempre junto com meus irmãos ou ficava à vontade brincando
pelo quintal com a Natália ou com meus sobrinhos de idades
aproximadas. Tinha o hábito de acompanhar os desenhos na
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meu pai passando em direção a algum bar, corria até ele para
pedir o doce que eu queria. Numa dessas, fui até ele num bar
da Rua Caldas Novas e, na volta para casa, os cachorros do bar-
budo (vizinho) se soltaram e vieram latindo em minha direção.
Lembrei-me de que eles já tinham mordido o Dudu (vizinho,
filho da Dona Marivan e irmão da Natália e Janaína) e vi que
seria a próxima vítima. Por sorte, quando eles se preparavam
para me morder, a filha do barbudo surgiu no portão e gritou
com os cachorros, que pararam de latir e desistiram de me atacar.
Como era pequeno, poderia ter acontecido algo grave, mas pela
graça tive esse livramento.
Lembro-me também de quando meu pai ia para o Botafogo
e fazia barba com um barbeador antigo onde se colocava uma
gillete. Eu ficava observando-o, imaginando quando chegaria a
minha vez de fazer barba. Então, certa vez, comi alguns doces
e acabei lambuzando todo meu rosto e achei aquilo parecido
com uma barba. Aí fui seguir o exemplo do meu pai, aguardei
ele sair, peguei o aparelho de barbear e raspei a minha barba.
Saiu o doce, como também a pele do meu rosto, junto com
bastante sangue. Minha bochecha ficou coberta de sangue e
entrei em desespero, correndo para minha mãe, que resolveu
aquela situação. Ela cuidou e também ganhei um castigo. Sorte
de infância, não ficou nenhuma marca em meu rosto por esse
episódio.
Infelizmente, as lembranças do meu pai não são as melho-
res. Tenho recordações dele bêbado, caindo na rua e tendo que
ser ajudado pelos meus irmãos e minha mãe. Em casa, quando
alcoolizado, minha mãe trazia em suas mãos sua refeição e ele
lançava o prato com comida no chão, quebrando a louça. Minha
mãe limpava toda aquela sujeira feita por ele e ainda fazia novo
prato. Considero hoje uma humilhação aquilo que ele fazia com
minha mãe. Ele a insultava com xingamentos e apelidos. Pensava
comigo que jamais serei como meu pai, que tratava mal a pró-
pria esposa. Que injustiça! Ele não foi um bom pai, mas espero
em Deus misericórdia e que ele tenha se arrependido antes do
fim da vida.
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1989 — A Viagem
(...) Acaraú
Chegamos no Acaraú, conhecemos o bar do Seu Malaquias
e tinha um brejo em frente com barulhos de sapo. Era noite, en-
quanto caminhava pela rua, tentava adivinhar qual casa seria.
Ficava perguntando ao pai se era essa ou aquela, até chegar à
casa que viveríamos.
Era uma casa simples, com uma porta e janela azuis, um
poste em frente. Do outro lado da rua tinha uma casa rosa
que depois conhecemos Deusimar (vizinha) e toda sua famí-
lia que morava lá. Fomos recebidos pela nossa tia Aurila, que
logo quis saber se tínhamos trazido a televisão. Casa feita de
pau a pique com barro. Tinha um quarto, sala, um corredor
que levava à cozinha. Depois, nos fundos da cozinha foi feita
uma varanda do mesmo material. Minha mãe e meus irmãos
capinaram todo aquele quintal. Como era o mais novo, com 6
anos, fui preservado dessa tarefa. Muitas árvores frutíferas,
algumas novas para nós como seriguela, pitomba e caju. O
único quarto da casa passou a ser dos nossos pais e nossa tia
teve que dividir o espaço da sala conosco. Nosso pai arrumou
uns tucuns (rede artesanal) para a gente dormir e não eram
confortáveis. O banheiro ficava separado da casa, uns 20 me-
tros aproximadamente. Não tinha chuveiro, só uma privada e
espaço para banho. Tinha que encher vasilhas para abastecer
com água para uso. Como os outros irmãos, comecei a querer
voltar para o Rio, pois achava que tinha um vazio.
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E
m primeiro lugar agradeço a Deus por fazer parte dessa
família e agradecer pela criação que minha mãe me con-
cedeu. Agradeço aos meus irmãos que, de forma direta
ou indireta, contribuíram para a formação do meu caráter.
Ressalto a iniciativa e criatividade que meus irmãos Cris-
tiano e Antônio (conhecido por nós como Marco) tiveram.
Que todos que forem contemplados com a leitura de nos-
sas memórias entendam que toda a vitória precede de grandes
lutas. Nossas lutas foram grandes no decorrer dos anos, mas
hoje podemos olhar para trás e dizer que valeu a pena superar,
esperar, não se conformar.
Olhamos para o passado e podemos apreciar a estrutura de
criação deixada em nós por nossa mãe, formando nosso caráter,
mesmo que para isso fosse necessário nos advertir com rigor nos
momentos precisos. Fato é que todo o ensinamento foi absolvido,
ainda que fosse chamado à atenção, que apontasse meus erros,
tudo foi válido, até se viesse dos meus irmãos mais experientes.
Sendo o último filho, tive o privilégio de aprender um
pouco de cada irmão. O maior desejo escondido em meu íntimo,
desde tenra idade, era ser amigo dos meus irmãos. A vida pode
ter nos distanciado, mas com este livro pude ter a oportunidade
de aproximação e sou grato. Amo meus irmãos, mesmo que não
transpareça, certo é que estão sempre em minhas orações.
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