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João figueiredo
Para Sandra, minha esposa, e meus filhos Júnior e Bruno, meus fiéis leitores.
Este é um conto baseado numa história que circula na
região do povoado de Lagoinha e comunidades
adjacentes. Há quem diga que de fato ocorreu. O nome
do personagem aqui apresentado é diferente do nome
citado nos comentários sobre a lenda.
O autor.
Sítio Trilha dos Canários,
Comunidade de Espigão de Cima,
Montes Claros-MG.
Inverno de 2021.
Z é Progonha era o maior fazendeiro cujas terras iam das barrancas da nascente do
Pacuí, São Lamberto, Espigão, Rio do Peixe e Rio do Sítio para grotões e chapadas de
toda a região. Muito conhecido por onde atuava, ele tinha um tino invejável para a pecuária:
especializou-se na compra de novilhos e novilhas para transformá-los em gado de corte e vacas
leiteiras. Revendia com lucro certo. Produzia queijo, requeijão e doce de leite como ninguém e
os vendia no atacado a comerciantes de Montes Claros.
– Cozinha com redém1 e sebo só pra num gastar dinheiro! Diziam as más línguas.
Outra característica sua era o fato de ser analfabeto: sequer sabia assinar. A sua fala
chamava a atenção porque pronunciava muitas palavras de forma errada, como a grande
maioria dos analfabetos. As pessoas letradas, ao pronunciarem as palavras, quase sempre as
associam à imagem mental da sua forma escrita; o iletrado não tem essa referência gráfica e
pronuncia as palavras unicamente pela sonoridade captada e guardada na memória. Quando o
som da palavra de alguma forma lhe chega distorcido é memorizado tal qual entendeu e passa
a fazer parte do seu vocabulário habitual. Foi o exemplo da palavra que lhe deu o apelido.
– Não tem progonha! Dizia ele com o sentido de “não tem problema”.
Sim, a palavra problema foi guardada na sua memória como progonha. As pessoas faziam
troça em sua ausência – ninguém arriscava falar sobre isso na presença dele. Assim surgiu o
apelido de “Zé Progonha”, do qual ele certamente nunca soube, porque jamais alguém lhe
trataria assim na presença: era Seu Zé na presença e Zé Progonha na ausência.
Baixa estatura, muito branco, cabelos loiros, olhos de um azul turquesa pouco visto na
região. Muito provavelmente descendia de europeus caucasianos, embora trouxesse
sobrenomes comuns, típicos dos mais comuns nos sertões do país. De voz grave, muito grave,
se impunha no falar; as pronúncias jamais eram questionadas diante dele. A força das suas
posses se mostrava no respeito que lhe demonstravam as pessoas que com ele conversavam.
Vestia roupas simples, sempre limpas, de tecido grosso que lhe possibilitavam tanto os
raros passeios pelas vendas às margens da rodovia, onde as conversas eram regadas a boas
doses de cachaça, e, ao mesmo tempo, essas mesmas roupas lhe possibilitavam campear o gado
em uma das suas várias propriedades tão logo saía dessas rodas de conversa. Portava sempre,
1
Redém é gordura de porco equivalente ao sebo bovino, espécie de gordura de segunda categoria usada
especialmente na produção de ração animal, sabões, detergentes e biocombustíveis. Pouco usado na
alimentação humana devido à rápida coagulação e sabor pouco agradável.
na lateral direita da cintura, um reluzente revólver calibre 38 de cano médio, em um luxuoso
coldre dotado de cartucheira com carga sobressalente de cartuchos, preso ao cinto da calça.
Tudo bem à mostra. Nunca se ouviu falar de que brigara ou ameaçara alguém, mas havia um
certo temor geral de que ele viesse a usar a arma.
Gostava de montar burros ou mulas de grande porte e bem cuidados – animais caros na
região – sempre equipados com arreios luxuosamente enfeitados. Era o único detalhe de
ostentação da sua riqueza.
Praticava agiotagem também, mas não fazia da forma predatória como se conhece dos
agiotas em geral. Não cobrava altos juros – apesar de ser analfabeto, jamais errava nos cálculos
dos juros do dinheiro que emprestava nem nos cálculos dos lucros nos seus negócios – só
emprestava para quem ele conhecia e que tinha certeza de que não levaria calote.
Suas terras não eram continuas, tinha várias propriedades separadas umas das outras que
mantinham bem cuidadas, bem cercadas, com pastagens bem manejadas. Era mais uma das
suas características. Sempre que alguém na região queria vender um terreno, fosse área média
ou grande para os padrões das propriedades locais, oferecia ao Seu Zé, ou Zé Progonha, na
ausência. Ele quase sempre comprava se percebesse que a terra atendia aos seus propósitos. E
assim, ele prosperava com sua disposição para o trabalho e a argúcia comercial que lhe era
peculiar no trato da pecuária.
– O colchão dele é recheado de dinheiro. Na casa dele tem um porão escondido onde ele
guarda ouro, dinheiro e muitas armas: cravinotes2, carabinas papa-amarelo3, parabelo e até
fuzil! Diziam os fuxiquentos de plantão, pelas suas costas, muitas vezes logo após tomar cachaça
com ele.
– No porão da casa dele tem também uma garrafa com um diabinho dentro, que é o que
faz ele ficar cada vez mais rico! Reforçavam a lenda do homem que enriquecia fácil.
Um dia ele se sentiu mal e morreu tão logo manifestou o mal-estar. Tudo leva a crer que
foi infarto. A lenda de Zé Progonha, o homem mais rico da região, encerrava seu ciclo. Agora era
hora da partilha dos seus bens entre os herdeiros que, não obstante a divisão, ainda seriam os
mais ricos da região.
2
Espingarda antiga, rudimentar, de cano muito grosso que, pela carga de pólvora e chumbo que
comportava, possibilitava disparos de alta potência.
3
Famosa carabina Winchester, calibre .44, com culatra e guarda-mato de cor dourada, muito usado pelos
cangaceiros nordestinos, em consórcio com o fuzil Mauzer, modelo 1908, calibre 7 mm, e a pistola
Parabellum, calibre 9mm.
de pessoas de bem, que nunca ousaram lhe desafiar em vida, agora tiravam proveito do seu
descuido em não exigir documentos nas compras dos terrenos. Poucos tiveram a honradez de
lhe conceder a documentação quando da negociação ou de manter o compromisso do acordo,
mesmo sem documentos, após a sua morte. A maior parte das suas propriedades foram
tomadas de volta pelos proprietários que lhe haviam vendido; comentários surgiram de que
muito gado de que os herdeiros não tinham controle de onde estavam, também sumiu. O
prejuízo foi incalculável.