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os fantasmas do

adultério são perenes


Conto

João figueiredo

2021
Os fantasmas do adultério são perenes

João Figueiredo

Montes Claros/MG
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Copyright © João N. Figueiredo

Capa: Montagem de obras de Heinrich


Lossow e uma foto-arte do autor.

Arte final: João Figueiredo

Dados Catalográficos
F475p Figueiredo, João.
Os fantasmas do adultério são
perenes. Montes Claros: JNF,
2021.

I – Título II – Prefácio III – Conto

ISBN 9798779730433
CDD 800 CDU 82-34

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Dedico

À minha prole: Bruna, Débora,


Bárbara, Júnior e Bruno.

Ao meu avô materno, Manoel


Nunes Cordeiro (In memoriam) e
à minha avó paterna Gertrudes
Alves Figueiredo (In memoriam),
os dois ensinavam aos filhos, netos
e bisnetos o valor da honestidade,
da ética e da moral.

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Balbino riu quase sarcástico,
sem olhar diretamente para o
amigo. Era um riso de canto de
boca. Algo um tanto maquiavélico.
– A gente acaba sendo
influenciado pelo momento. Disse
numa pose artificial, típica de um
ator em cena pouco convincente.
– De que você tá falando?
Inquiriu Ferdinando enquanto
sorvia um gole de cerveja e olhava
para o amigo rapidamente de
soslaio; queria entender a fala e a
inquietação do outro.
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– Sabe aquela história que te
contei sobre a Pequena? Aquela
história de que ela havia me traído
com o pastor da igreja que ela
frequenta? Num é verdade! Eu
inventei!
Ferdinando ouviu calado,
mas com ar de surpresa, o que
Balbino dizia. Em princípio não
entendia bem sobre onde o
companheiro de longa data e de
muitas jornadas queria chegar,
mas, a julgar pelo nervosismo, pelo
falso sorriso e pela inquietação
corporal do outro, percebia que
este tentava convencê-lo de algo
que o próprio Balbino não estava
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convencido. Um turbilhão de
coisas passava pela sua cabeça,
estava incomodado, embora
disfarçasse o incômodo, chegou a
pensar em pedir ao Balbino para
explicar melhor o assunto, porém,
percebia que o outro parecia
querer exatamente isso; queria de
fato incomodá-lo ao tocar naquele
assunto e se calar em seguida,
como se esperasse uma
demonstração de curiosidade do
seu interlocutor.
Os dois estavam sentados à
mesa do pequeno bar onde sempre
iam após o trabalho. Aquele era o
último dia de trabalho antes das
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férias escolares do meio do ano.
Ficariam alguns dias sem
frequentar aquele ambiente que
durante todo o ano letivo fazia
parte do caminho de casa dos dois.
O proprietário se especializara
numa iguaria que para algumas
pessoas provoca asco, mas não
para uma legião de pessoas que a
consumem quase como objeto de
vício: tripas de suínos fritas.
Ferdinando e Balbino fazia parte
dessa tribo de consumidores quase
compulsivos da iguaria, cujo cheiro
rescendia pelo bar e pelas
vizinhanças, ao ser preparada; o
consumo era quase sempre regado

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a bebidas alcóolicas. Os dois,
entretanto, raramente tomavam
bebidas alcóolicas nessas visitas ao
bar; costumavam tomar
refrigerantes, mas naquele dia
tomavam cerveja por insistência de
Balbino. Essa insistência causara
uma certa surpresa em
Ferdinando, mas agora ele já a
correlacionava com uma busca do
amigo por algo que lhe desse
coragem para abordar um assunto
do qual ele não se sentia
totalmente à vontade para falar.
Diante das primeiras frases do
amigo sobre o assunto,
Ferdinando nada dizia, começou a

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pensar que era uma tentativa de
desfazer algo que dissera num
momento em que estava
transtornado e se arrependera do
que dissera. Parecia que o amigo
estava tentando desfazer a
confissão que lhe fizera num
momento de grave crise
emocional.
De uma coisa Ferdinando já
tinha certeza naquele instante:
Balbino ensaiara aquela conversa, a
sua insegurança no falar e o
comportamento corporal instável
demonstrava que o amigo sentia ao
mesmo tempo necessidade de falar
do assunto e pouca segurança para
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fazê-lo. Procurou disfarçar sua
curiosidade e o impacto causado
inicialmente pelas breves frases do
outro, mas decidiu que esperaria
para ver onde aquilo iria dar.
Desconfiado de que o amigo tinha
a intenção de impressioná-lo com
uma meia conversa sobre um
assunto tão sério como aquele,
passou a tentar adivinhar o que
estaria por trás daquela conversa, o
que o Balbino queria de fato. – Ele
tá querendo me sacanear ou está
apenas arrependido de ter
confessado que sua esposa o traiu?
Será que não confia em mim o
suficiente para deixar que eu

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conheça uma situação íntima do
casal? Seja como for, não vou
facilitar as coisas pra ele, se
começou, ele que termine quando
quiser! Pensou.
Balbino bebeu todo o
conteúdo do copo de cerveja e
voltou à fala.
– Eu inventei que também
havia sido traído para te ajudar.
Você estava muito mal e pensava
em matar Cida pelo que ela lhe fez.
Concluiu Balbino, agora olhando
diretamente para o amigo, que se
concentrava em encher os copos

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dos dois, e observando
atentamente a sua reação.

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Ferdinando que já estava
pressentindo, desde o início da
conversa, que o amigo estava
tentando manipulá-lo, se viu
curioso, não apenas para ouvir o
resto da fala do outro, mas,
sobretudo, para descobrir o
verdadeiro motivo daquela
conversa. Não estava totalmente
alheio, tinha suas desconfianças,
todavia, armou-se do máximo de
calma e paciência para aguardar até
que seu interlocutor resolvesse
retomar a fala.

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Os dois se olharam
rapidamente, enquanto lentamente
bebericavam a bebida, e
Ferdinando imaginou que estavam
ali como dois lutadores que se
estudam antes de entrar de fato em
combate; ou como dois animais
irracionais antes de um duelo pela
disputa de um território. Era como
se um esperasse que o outro
fizesse o primeiro movimento de
ataque para entrar em ação,
defendendo-se e contra-atacando.
Um confronto imaginário; uma
pequena guerra de nervos.
Ferdinando se sentia mais
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confortável do que o outro porque
fora aquele que iniciara a conversa
e também por perceber que
Balbino demonstrara insegurança
desde o início. Chegou a se
questionar porque estava se
envolvendo naquela situação: não
seria muito mais prático perguntar
ao amigo porque ele iniciara aquela
conversa? Não, convenceu-se de
que o outro queria exatamente
isso, que ele desse o pontapé para
o reinício do jogo; Balbino que o
fizesse primeiro, pensou.
Os dois eram amigos desde
a infância. Bocaiuvenses,
cresceram juntos. Balbino se
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tornou professor ainda jovem e
estimulou o amigo a se inscrever
no concurso para secretário da
escola onde lecionava. Tornaram-
se também colegas de serviço: um
na regência e outro na
administração da escola. Antes,
porém, Ferdinando trabalhou
como porteiro do pronto-socorro
de um grande hospital em Montes
Claros, por vários anos. Possuía
cursos técnicos de vigilância
armada e vigilância desarmada. O
trabalho no hospital era
estressante, lidar com pessoas
desesperadas, muitas vezes
agressivas, pacientes ou

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acompanhantes, exige
autocontrole, domínio de suas
emoções diante de conflitos.
Calejou-se, tornou-se um bom
mediador de conflitos, conseguia
se manter calmo diante de
situações adversas e, agora, tirava
proveito dessa característica,
adquirida na lida do dia a dia, para
enfrentar aquilo que pressentia,
naquele momento, como uma ação
que continha uma dose de sadismo
do amigo. De repente, do nada, o
amigo tentava resgatar, de forma
brusca, uma história vivida há
algum tempo e que por pouco não
se transformou numa tragédia;

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além disso tentava desfazer uma
confissão de que fora traído por
sua esposa, que fizera num
momento de visível sofrimento. –
O que deu nele pra vir com essa
conversa sem pé nem cabeça? Será
que ele pensa que desfazendo a
confissão que fez a mim, vai mudar
o fato de também ter sido traído?
Indagou de si para si mesmo.
– Nós somos amigos há
muitos anos, né, Nando? Eu
sempre te considerei pra caramba!
Quando cê falou do seu drama, eu
me senti na obrigação de inventar
uma história parecida para te
ajudar a enfrentar aquela situação
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que cê tava vivendo! Falou
Balbino, enfim, em tom
explicativo e com uma visível
demonstração de intenção
pedagógica no que expunha.
Agora foi a vez de
Ferdinando, propositadamente, rir
com o canto da boca. Bebeu mais
um gole da sua cerveja e decidiu
que não falaria nada, como uma
provocação dissimulada, que
ficaria calado sobre aquela
conversa, ou que, no máximo,
mudaria de assunto. – Não vou
fazer parte desse jogo de cena!
Pensou.

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Cerca de seis meses antes...

Ferdinando dirigia pela


estrada um tanto sinuosa e sem
acostamento, que liga as cidades de
Bocaiuva e Guaraciama. Ao seu
lado, como passageiro, seguia o
amigo Balbino. A tarde ensolarada
e sonolenta do inverno do Norte
de Minas entrava no corpo e na
mente dos dois com a visão da
pista asfaltada que parecia entrar
debaixo do carro como uma esteira
rolante. O carro seguia em
velocidade moderada, enquanto a
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paisagem pela janela parecia correr
ao lado e na direção contrária.
Balbino se mantinha em silêncio e
contemplava a paisagem pela
janela. Os dois se sentiam
sonolentos, embora vigilantes.
– Bino, já se passaram
quatro ou cinco meses e até hoje
eu luto a cada dia com um monstro
dentro de mim, pra num matar
Cida. Aquela desgraçada me traiu
da forma mais covarde que uma
pessoa pode trair outra. Ela
abusou, de maneira cínica, da
confiança que depositei nela.
Namoramos durante três anos sem
nunca ter uma discussão sequer,
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até eu descobrir quem ela era de
verdade... Descobri que ela
mentira sobre um relacionamento
que tivera com o padre Luiz antes
dele se ordenar e, depois que
estava comigo, ela vivia se
encontrando com ele várias vezes
na semana, para uma suposta
terapia, me dizendo que ele era
como um irmão pra ela. A partir da
descoberta dessa mentira ainda
ficamos seis meses juntos, mas já
sem harmonia nenhuma, tínhamos
constantes discussões, até eu
confirmar que, na verdade, ela
mantinha um relacionamento com
o desgraçado do padre mesmo

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depois que estava comigo! Os
olhos de Ferdinando brilhavam,
um brilho intenso de revolta,
ódio...
– Nando, você precisa
procurar se acalmar. Precisa tentar
ver isso como uma coisa do
passado. A Cida, com certeza está
arrependida do que fez. Todos nós
cometemos erros, eu, você, todo
mundo erra. O importante é tomar
os erros como uma experiência
que não deve ser repetida. Disse
Balbino de maneira preceptora.
– Moço, aquela desgraçada,
depravada, vivia me dizendo que o

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padre era como um irmão pra ela.
Que o sonho dela era ter com seus
irmãos a amizade e consideração
que tinha por ele, a liberdade de
falar dos seus problemas, fazer
reflexões espirituais, orações...
Disse Ferdinando, fazendo uma
breve pausa, para em seguida
recomeçar – A filha da puta dizia
que a relação dela com aquele
babaca era de puro respeito, que
ele era o seu terapeuta que lhe
ajudava a se conhecer melhor...
Que era uma relação revestida de
um sentimento sagrado,
sentimento puro e que havia uma
confiança nele como se confia em

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um terapeuta. Concluiu
Ferdinando com um desabafo,
mas sem demonstrar redução na
sua revolta.
– Eu sei, Nando. Sei que é
difícil para você, mas você tem que
tentar conviver com isso
principalmente agora que você
sabe que ela tá grávida.
– É por ela estar grávida que
eu ainda não dei um tiro na cara
dela. Safada!
– Nem pense em fazer isso!
Vai matar a mãe de seu filho?
– Eu nem sei se o filho é
meu, Bino! Pra assumir o filho de
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mulher vagabunda, só com exame
de DNA.
– Claro que você sabe! Você
mesmo não disse que a data da
concepção coincide com as férias
que vocês passaram juntos naquela
fazenda lá na beira do São
Francisco?
– Disse, mas agora eu tenho
dúvidas. Não tenho certeza de
nada em relação a ela. A filha da
puta confessou que de fato me
traiu com o padre... Por várias
vezes, quando eu tinha alguma
coisa para resolver no centro da
cidade e ela me pedia para deixá-la

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no Seminário, onde ele trabalhava,
eu fazia isso pensando que a
piranha estava de fato fazendo
terapia, sei lá o quê! Quando eu a
buscava lá, chegava à portaria,
ligava no celular dela e ficava
aguardando... Às vezes ela
demorava a chegar e eu achava que
era normal: eu confiava naquele
lixo! Os dois saíam, ele vinha até o
portão e me cumprimentava como
se tudo estivesse normal... Dois
cínicos, Bino!
– Mas, Nando, você precisa
entender...

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– Entender o quê, Bino? A
vagabunda saía de lá e me beijava
tão logo entrava no carro; logo
depois de ter chupado o pau do
padre, porra!... E eu que estava
preparando para me casar com
ela... Já pensou se eu me caso com
ela e depois descubro que ela
estava me traindo, você acha que
eu ia ficar nessa indecisão sobre o
que fazer? Não, meu amigo, pode
ter certeza de que aconteceria uma
tragédia.
– Nando... Neste caso você
pode até dizer que deu muita sorte
em descobrir antes de casar.

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– Pode ser, uma amiga
minha, muito religiosa por sinal, já
até me disse isso; disse que Deus
escreve certo por linhas tortas e
que aquela foi uma forma de Dele
me livrar de uma situação bem
pior. Mas essa questão não muda o
fato de ela ser o que é, e a forma
como ela me enganou... Uma
pessoa sem caráter! Os dois. Eu
fico tentando entender como
aquilo acontecia no Seminário,
onde havia outros padres e
seminaristas, certamente muita
gente sabia o que estava
acontecendo, mas se fingia de cego
e fazia ouvido de mercador. Mas

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não foi só isso: ela confessou que
transou com ele, também, em
vários outros lugares. Desconfio
que não foi só com ele que a puta
me traiu, mas a única confirmação
que tive foi em relação a ele.
– Nando...
– Bino, o que eu tô te
falando, sobre a traição, foi ela
própria que confirmou tudo
durante uma crise de consciência,
depois de eu ter praticamente
certeza do que havia acontecido.
Ela se mostrou arrependida, pediu
perdão... Depois disso a filha da
puta negou o que havia

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confirmado e ainda falou para
várias pessoas que eu é que era
muito ciumento, que vivia
desconfiando dela o tempo todo.
Nunca tive ciúme daquela
prostituta, porque ela fingia muito
bem e eu nunca havia desconfiado
de nada... Concluiu Ferdinando.
– Nando eu vou te falar uma
coisa que você não sabe. Eu passei
por uma situação igual à sua...
– Você, Bino? A Clotilde?
Quando? Inquiriu Ferdinando
surpreso.
– Foi há pouco tempo. A
Pequena me traiu... Cara, ela me
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traiu! Balbino interrompeu a fala
como se estivesse engasgado; os
olhos marejaram. Ele tentava
continuar falando e não conseguia,
como se lhe faltasse fôlego.
Ferdinando viu um largo às
margens da rodovia, sinalizou e ali
entrou com o carro. Estacionou
para conversarem. Ele estava
visivelmente surpreso, jamais
poderia pensar que Clotilde, a
quem Balbino sempre chamava
carinhosamente de Pequena, seria
capaz de trair seu marido.
O carro parado, os dois
ficaram um tempo em silêncio

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enquanto Balbino tentava se
recompor; ele já não tinha apenas
os olhos marejados, agora chorava
copiosamente.
– Ela me traiu com o pastor
da nossa igreja! Concluiu em única
expiração. Respirou fundo
algumas vezes e continuou –
Transou com ele no escritório do
cara, dentro da igreja. Eu descobri
depois que desconfiei, dei uma
prensa nela e ela confessou;
igualzinho a você e Cida. Só que
uma traiu com um padre e a outra
com um pastor. Parece que os
sacerdotes têm alguma coisa que

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atrai as mulheres. Riu
nervosamente.
– Os sacerdotes atraem as
vagabundas, as piriguetes, você
quer dizer, né Bino? Disse
Ferdinando em mais um desabafo,
mas, ao ver que o amigo olhava
para ele assustado, tentou se
desculpar – Desculpe, eu estou
falando da Cida; eu não conheço a
real situação envolvendo a
Clotilde... Mas, me diz como vocês
permanecem juntos?
– Pois é, Nando! A gente
conversou muito e eu a perdoei.
Combinamos esquecer tudo, não

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deixar aquilo se repetir nunca mais,
e começar uma vida nova.
Justificou Balbino.
Ferdinando não sabia o que
dizer. Pensou em falar alguma
coisa, mas faltaram-lhe palavras.
Os dois voltaram a ficar em
silêncio por algum tempo.
– É por isso que eu estava te
falando que um erro pode servir
para nos levar a mudanças! Talvez
se você perdoar a Cida...
– Nunca! Interrompeu
rispidamente Ferdinando – Aquela
puta foi cínica, me fez de otário,
abusou da confiança que depositei
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nela... Eu queria mesmo era matar
o padre e ela... Mas eu vacilei,
escrevi uma carta ao bispo
denunciando tudo e eles
transferiram o desgraçado não sei
pra onde e se eu o encontrar e fizer
alguma coisa com ele a polícia
chega a mim num piscar de olhos
depois da porra daquela carta...
Além do mais, veio essa história de
que ela tá grávida...
– Nando, violência não
resolve nada.
– Eu sei que não resolve,
mas cada dia que passa é mais um
dia de luta minha comigo mesmo;

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luto com todas as minhas forças
para não estragar a minha vida.
Quero reconstruir minha vida
longe daquela piranha! Ela que se
foda! Desabafou Ferdinando.
– E a criança? Indagou
Balbino.
– Sobre a criança, Bino, eu
entrei com uma ação na justiça
solicitando que tão logo ela nasça
que se faça um exame de DNA
para confirmar se eu sou o pai. É
um processo incomum porque
dificilmente acontece de o homem
solicitar o exame para atender aos
direitos da criança. Se for meu

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filho terá os direitos
reconhecidos... Eu só não quero é
contato com ela. Concluiu em tom
de revolta e com aquele brilho
sinistro nos olhos.
A chave quebrou o silêncio
ao acionar a ignição. O carro
retornou à pista de rolamento sob
a regência de Ferdinando.
Seguiram viagem. Durante algum
tempo não se falaram, seguiram
imersos nos seus pensamentos,
como se ruminassem tudo que foi
dito naqueles longos minutos em
que ficaram parados. Na verdade,
não saberiam quanto tempo
ficaram parados, sequer
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perceberam o tempo passar.
Quando voltaram a falar, falaram
de amenidades, sem se referir ao
assunto que os incomodavam
tanto.

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Quadro com cenas obscenas, “Série: Seu servo
fiel” de Heinrich Lossow.

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Agora no bar, comendo a
iguaria e bebendo cervejas,
Ferdinando estava convicto de que
Balbino lhe confessara uma
questão íntima, durante um
momento de crise emocional, e
que se arrependera depois e
tentava desfazer o que dissera –
talvez por temer que outras
pessoas ficassem sabendo de sua
intimidade. – Será que Bino
imagina que eu seja tão ingênuo
assim, a ponto de não perceber o
que está acontecendo com ele?

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Indagou para si mesmo em
pensamento. Tomou seu último
copo de cerveja e comeu mais um
pedaço da famosa iguaria em
silêncio. Balbino também fez o
mesmo em silêncio. Pagaram a
conta e saíram. Já na rua se
despediram cada um expressando
o desejo de boas férias ao outro.
De volta das férias,
Ferdinando voltou uma semana
antes dos professores, assim como
todos os funcionários da
administração da escola. Na
semana seguinte quando Balbino
deveria voltar, sob que ele estava
de licença médica; Ferdinando
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pensou em visitar o amigo, mas
preferiu esperar ele voltar para
conversarem. Não o viu. Vencida a
licença médica foi publicada a
transferência de Balbino, em
permuta com outro professor da
cidade de Espinosa, na divisa de
Minas com Bahia, quatrocentos
quilômetros de sua terra. Os dois
não se encontraram antes de
Balbino viajar com a esposa para
Espinosa.
Para Ferdinando estava
tudo muito claro. O amigo estava
fugindo do constrangimento da
situação que confessara no
momento de comoção. Tramou a
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transferência para uma cidade
distante, e até a licença médica para
não ter contato com ele, como se
isso resolvesse o problema. Fez
isso após tentar convencer
Ferdinando a acreditar que a
confissão, o choro, os lamentos, na
viagem para Guaraciama, foram
tão-somente parte de uma
encenação para aliviar o
sofrimento do amigo, preparara a
transferência na surdina e lá se foi
de mala e cuia, com a esposa,
fugindo dos seus fantasmas.

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Pinturas retratando o julgamento de adultérios
na antiguidade.

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Cerca de um ano depois os
dois amigos se encontraram
casualmente na tradicional festa de
exposição agropecuária de
Janaúba, cidade situada a meio
caminho entre Bocaiuva e
Espinosa. Balbino estava
acompanhado da esposa Clotilde e
Ferdinando acompanhado de uma
namorada. Os dois casais
interagiram; o casal que se mudara
para Espinosa também estava ali

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apenas para participar da festa e
esbanjava alegria e felicidade.
Ferdinando não tinha
dúvidas de que afugentavam suas
assombrações encenando júbilo.
Em dado momento, Clotilde lhe
perguntou:
– E Cida, você assumiu a
paternidade do filho dela?
– Não. Entrei com uma
ação na justiça, ainda durante a
gravidez, para fazer o exame de
DNA. Assim que a criança nasceu
o juiz determinou que se fizesse o
exame. Na data marcada ela
compareceu sem os documentos
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da criança e o exame não pode ser
feito. O juiz, então, marcou uma
segunda data e ela não
compareceu.
– E você não insistiu? Quis
saber a interlocutora.
– Não, eu não insisti. Ficou
claro que ela não queria que se
fizesse o exame, ao que tudo indica
por não ter certeza de que a criança
é meu filho ou por ter certeza de
que não é. O juiz então me enviou
um documento, considerando que
eu era o requerente, para eu
manifestar em dez dias se
pretendia dar sequência ao

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processo; a não manifestação no
prazo indicado seria sinal de que
não pretendia continuar com a
ação. Não me manifestei: a
situação pra mim estava clara...
– A impressão que se tem é
que você não fez questão de saber
se a criança é ou não seu filho...
Insistiu Cida.
– A questão não é essa,
Cida! Desculpe-me, Clotilde, até
estou confundindo os nomes!
Aquela vagabunda abusou da
confiança que eu tinha nela, me
traiu de uma maneira vil e cínica.
Eu não a perdoei e não tenho a

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menor intenção de me aproximar
dela. A julgar pela falta de interesse
dela em fazer o exame de DNA,
para mim é suficiente, fica claro
que ela desconfia, ou tem certeza,
de que eu não sou o pai. Por que
eu ficaria alimentando a ilusão de
que sou o pai? Além do mais, a essa
altura ela já alienou a criança
contra mim, de maneira tal que,
mesmo que fosse meu filho, ele já
me odeia... Toda mulher capaz de
trair, toda adúltera cínica, é capaz
de qualquer coisa ruim! Concluiu
Ferdinando procurando alfinetar a
sua interlocutora e percebeu que o
conseguiu, ao ver ela ficar

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incomodada e mudar de assunto
repentinamente.
De volta para casa,
enquanto dirigia, de madrugada,
Ferdinando refletia sobre as
atitudes do amigo e sua esposa.
Pareciam estar bem; difícil saber o
que era verdade e o que era
mentira nas atitudes do casal:
– Cada cabeça é um mundo
à parte! Que eles realmente
consigam ser felizes! Pensou
enquanto olhava atento para a via
à sua frente.

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– O adultério! Os fantasmas
do adultério são perenes! Disse em
voz alta para si mesmo.
Assustou-se ao se perceber
falando sozinho e por lembrar que
sua namorada estava no banco do
passageiro. Falar sozinho é coisa
de maluco, esquizofrênico. Olhou
para ela e respirou aliviado ao ver
que ela dormia a sono solto
enquanto o carro parecia engolir a
pista asfaltada iluminada pelos seus
faróis, numa deglutição infindável.

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Dados biográficos do autor
João Figueiredo é natural de
Montes Claros-MG, subtenente
veterano da PMMG, na qual atuou,
57
dentre outras funções, como
instrutor do Proerd (Programa
Educacional de Combate às Drogas e
à Violência), Monitor de Curso
Técnico de Segurança Pública,
Monitor de Técnicas de emprego do
bastão-tonfa como instrumento de
defesa e ataque, Monitor de Tiro
Policial, Monitor de Técnicas de
redação, Monitor de Direitos
Humanos, Monitor de Policiamento
Comunitário.
Teve sua carreira militar
encerrada precocemente em virtude
de sua participação como liderança na
Greve da PM, em 1997, fato relatado
no seu livro de memórias: “Motim no
Norte de Minas: Memórias de uma
greve de PMs que começou dentro da

58
Universidade”. Casado pela segunda
vez, pai de três filhas do primeiro e de
dois filhos do segundo casamento.
É historiador, sociólogo,
jornalista profissional, poeta,
cordelista, capoeirista, professor de
Yoga e terapeuta integrativo (associa
capoeira, Yoga e terapia reichiana). É
ateu, mas respeita todas as religiões.
Ocupante da Cadeira 99 do Instituto
Histórico e Geográfico de Montes
Claros.
É autor dos seguintes livros:
1 - “Capoeira – A psicoterapia
corporal dos oprimidos” (abordagem
psicanalítica, de linha reichiana, sobre
a Capoeira).

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2 - “A minha vida durante e
depois do câncer” (relato
autobiográfico do enfrentamento de
um câncer).
3 - “As forças invisíveis da
Capoeira” (obra sobre o
envolvimento psicofísico e espiritual
dos capoeiristas com a prática da
Capoeira – na primeira parte é
composto de poemas e na segunda
parte de ensaios, sobre o mesmo
tema).
4 - “Ataque ao palácio e
outros causos da caserna” (contos
baseados em causos que circulam ao
longo dos tempos nos quartéis da
PMMG, no Norte do Estado, como
se reais fossem).

60
5 - “Juramento (1953-2010) –
Um pedaço da história do Norte de
Minas”; foi redator da parte de
política e organizador do livro.
6 – “Sobre Capoeira e
capoeiristas em sexteto agalopado”,
opúsculo de 68 páginas, escrito em
forma de cordel com versos
decassílabos e estrofes em sextilha.
Na parte final traz o roteiro do
Monólogo “A morte do discípulo”,
também do autor.
7 – “Meninice Campesina”,
contos autobiográficos.
8 – “A arte do Cordelismo –
Noções básicas”, sobre técnicas de
versificação em geral e sobre a
produção de cordéis. Contém

61
também dez textos integrais de
cordéis do autor.
9 – “Zé Doido morreu!”,
conto publicado na forma de e-book
e como livro impresso no site
www.amazon.com.br, na página da
Série histórias de pistoleiros & outros
psicopatas.
10 – “O conservadorismo
mal-educado e agressivo de
Bolsonaro – O presidente abriu as
compotas de um sentimento que jazia
camuflado em grande parte da
população brasileira”. Discussão
sobre o autoritarismo que se encontra
arraigado no espírito dos brasileiros,
desde sempre, e que foi aproveitado
como capital político por Jair
Bolsonaro. Ensaio publicado na
62
forma de e-book e como livro
impresso no site
www.amazon.com.br.
11 – “O Câncer de próstata –
Mitos e verdades”. Cordel baseado
no livro “A minha vida durante e
depois do câncer”, publicado na
forma de e-book no site
www.amazon.com.br.
12 – “Crítica à elite cordelista
– O cordel surgiu da luta contra a
cultura elitista da aristocracia, mas
criou sua própria elite”. Cordel com
posfácio em forma de artigo,
publicado como e-book no site
www.amazon.com.br.
13 – “Os Campos de
Concentração Brasileiros – Primeiro

63
antecedemos, depois imitamos os
Nazistas!”. O livro aborda a questão
dos campos de concentração
brasileiros que existiram no Nordeste
durante a seca de 1932, para evitar
que os retirantes perambulassem
pelas cidades, especialmente
Fortaleza-Ce, e os campos que foram
criados dez anos depois, em 1942,
para o encarceramento, e trabalhos
forçados em alguns casos, de pessoas
vindas dos países do Eixo
(Alemanha, Itália e Japão). O livro se
divide em três partes. Na primeira
parte, o aborda a questão dos campos
decorrentes da seca nordestina, em
cordel, com estrofes em septilha; na
segunda parte aborda os campos
decorrentes da Segunda Guerra, em
cordel, com estrofes em sextilha; e na
64
terceira parte, um texto em prosa
(artigo), sobre o tema.
14 – “Motim no Norte de
Minas: 1997 – Memórias de uma
greve de PMs que começou dentro da
Universidade”. O livro narra, de
forma detalhada, a participação do
autor como líder da greve da PM em
Montes Claros-MG. O Movimento
Paredista em Minas Gerais
influenciou as PMs de outros 13
Estados a também entrarem em
greve.
15 – “O PT de ontem e o PT
de hoje – A direita conseguiu turvar a
sua imagem, mas, até onde o partido
contribuiu para isso?”. Ensaio sobre
a trajetória do Partido dos
Trabalhadores, sua proposta inicial,
65
as mudanças de postura e a atual
necessidade de uma autocrítica.
16 – “Capoeira e Religião – O
que separa uma prática da outra?”.
Ensaio sobre a relação da Capoeira
com as religiões praticadas no Brasil.
17 – “Patrimônio mineiro e
brasileiro, Mestre Téo Azevedo
catrumano, em Martelo Agalopado”.
Um pouco sobre a vida e a arte do
cantor, compositor e cordelista, Téo
Azevedo, no formato de Martelo
Agalopado.
18 – “Traição”. Conto que fala
de transtornos mentais e suas
interferências no comportamento
humano individual e social.
Publicado pela Amazon na página da

66
Série histórias de pistoleiros & outros
psicopatas.

19 – “O câncer: definição,
origens e perspectivas de tratamento
– Um breve estudo da obra ‘A
biopatia do câncer’ de Wilhelm
Reich”. Ensaio produzido a partir de
um TCC do Curso de Psico-
oncologia.

20 – “Quando o povo fala...”.


Conto que fala de transtornos
mentais e suas interferências no
comportamento humano individual e
social. Publicado pela Amazon na
página da Série histórias de
pistoleiros & outros psicopatas.
21 – “Fama de pistoleiro”.
Conto publicado anteriormente no
67
livro “Ataque ao palácio e outros
causos da caserna”, Coopergraf,
2018, uma coletânea de histórias que
circulam nos quartéis da PM do
Norte de Minas como se fossem
verdadeiros. Fala de um cabo da PM,
analfabeto, de comportamento
estranho, que tinha fama de
pistoleiro. Foi publicado também na
Série história de pistoleiros & outros
psicopatas.
22 – “Pássaros do Cerrado –
100 espécies que existem, ou
existiram, na comunidade de Espigão
de Cima, Montes Claros-MG”.
Ensaio que constitui um Guia de
Campo, com espécies catalogadas
pelos principais nomes populares,

68
escrito pelo autor e seu filho João
Figueiredo Júnior.
23 – “O crime do cidadão de
bem e outros quatro contos sombrios
da caserna”. Um conto inédito e
outros quatro contos publicados
anteriormente no livro “Ataque ao
palácio e outros causos da caserna”.
Os textos já publicados foram
refeitos especificamente para
publicação na série Histórias de
Pistoleiros e Outros Psicopatas, na
biblioteca do autor no site
www.amazon.com.
24 – “Contos e crônicas
infanto-juvenis do meio rural”,
histórias sobre personagens infanto-
juvenis do meio rural, algumas
baseadas em fatos reais, outras
69
fictícias, narradas em forma de
contos e crônicas.
25 – “Os fantasmas do
adultério são perenes”. Conto sobre
adultérios com o envolvimento de
sacerdotes, um padre e um pastor, e
suas consequências na vida das
pessoas envolvidas, direta ou
indiretamente, com os fatos.
Já publicou também trinta e
cinco cordéis sobre temas diferentes,
no formato tradicional, e vários
poemas, artigos científicos, artigos
jornalísticos, ensaios, crônicas e
contos, em formato digital.
Participante de várias
antologias do Salão Nacional de
Poesia- Psiu Poético. É especialista

70
na produção de informativos
institucionais de entidades sindicais e
comunitárias.
Atuou como repórter e
articulista em jornais impressos e
revistas da sua cidade natal e região.
Dentre as especializações que possui,
destacam-se pós-graduação em
Psicanálise, Linguística, com ênfase
na produção de textos, Filosofia
Moderna, História Contemporânea,
Psico-oncologia (especialização
voltada para a preparação emocional
de pacientes com câncer e seus
familiares para o enfrentamento dos
efeitos da doença e do seu
tratamento) e Práticas Integrativas e
Complementares em Saúde.
Atualmente desenvolve o “Projeto

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Capoeira e Meditação”, de sua
autoria, combinação de Capoeira e
Yoga, direcionado a crianças, jovens
e adultos; desenvolve também o
Projeto RIME (Relaxamento,
Reflexão Induzida, Meditação e
Reprogramação Mental) com
internos de um Centro de
Recuperação de Dependentes
Químicos e com os parentes desses
internos, os Codependentes.

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