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A cartomante

Texto: Ariomar Oliveira


Adaptado do conto homônimo de M. de Assis

Personagens: Machado, Carolina/Narrador, Rita, Camilo, Vilela,


Cartomante, empregada.

“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha tua vã Filosofia”
Shakespeare

Prólogo /parte I
Machado de Assis

(Em momento de criação)

(Machado sentado à mesa escrevendo e pensando na composição de Rita. Entra Carolina, sua
esposa, e pergunta:).

Carolina- o que estás fazendo? Um outro romance?


Machado – Não exatamente. (pausa) Penso em Rita...

Carolina- Rita? Que Rita?


Machado – sentes ciúmes?

Carolina – não, acho que não, mas não sei ao certo, devo sentir?
Machado – bem sabes que não, mas ando a vagar. (PAUSA)
Algo não me sai da mente, não é um romance, e acho que você me inspirou, escrevo
agora uma história de traição, de ciúmes e dos mistérios da vida. Escrevo sobre as dúvidas do
amor.

Carolina- Dúvidas? Quem ama duvida?


Machado – eis a questão. Mas como saber das coisas do coração?

Carolina – quem ama sabe que ama.


Machado – Mas e o ser amado, não desconfia desse amor?

Machado – há pouco falei de Rita, pode ser que esteja enganado, mas senti uma ponta de
ciúmes.
Carolina- não era ciúmes. É que nunca ouvi você mencionar esse nome.

Machado – observo os seres humanos, uma simples desconfiança pode virar uma grande
tragédia, foi assim com Otelo...

Carolina – mas ele foi vítima de uma armadilha.


Machado – provocado pelo ciúme e desconfianças do amor.

Machado – escrevo sobre esse tema, queres saber quem é Rita?


Carolina – sim, estou intrigada.

Empregada / Alcoviteira (atrás da porta, ouvindo a conversa)


Empregada – o quê? O patrão tem uma amante? Quem diria?

Machado - Rita é uma mulher de 30 anos, madura, bonita e inteligente, mas também gosta de
coisas fúteis.

Carolina- e quem não gosta de futilidades hoje em dia?


Machado- ela é como a serpente ou mesmo como a própria EVA, pura tentação!!

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Empregada – essa mulher deve ser o diabo mesmo!
Carolina – e quem é o ADÃO?

Empregada – Adão? Que história mais enrolada, que pena! Pensei que tinha alguma fofoca das
boas pra contar pra comadre, não acontece nada demais por aqui.
Machado – Nesse caso, não sei ao certo; Adão, Eva, serpente, Deus? Os papéis estão se
definindo.
Machado – sentar-me-ei à mesa e logo, logo tudo estará resolvido.

Carolina – sendo assim , melhor que eu me vá, deixo-o com a inspiração ( beijando a testa de
Machado).

(Sai a empregada)

Machado- já me inspiraste muito essa noite.

(sai Carolina)

Prólogo /parte II

(Machado sentado à mesa, escrevendo)

(Entra Carolina)

Carolina – terminaste?
Machado – creio que sim.

Carolina – então posso conhecer finalmente o que tanto te afligias?


Machado – sim, agora tudo está definido.
Carolina – e Rita? A protagonista, terminou bem?
Machado – não quero estragar a surpresa, mas acho que a cartomante será a peça principal
dessa intriga amorosa.

Carolina – Mas...
(Carolina ia interromper Machado sobre a tal cartomante, mas é interrompida por ele)

Machado – calma, minha querida, eis o manuscrito, seja minha leitora e minha crítica, depois
falamos sobre esse enredo. (Ele entrega o manuscrito a Carolina, beija-a na testa e se retira).

(Carolina, ao centro, inicia a leitura do conto, ao mesmo tempo que assume a postura de
narradora)

Carolina – A Cartomante, de Machado de Assis, ano de 1884.(faz uma pequena reverência ao


público) ouve-se apenas sua voz ainda em off

(Sai Carolina e entra Rita e Camilo andando de mãos dadas como marido e mulher. Camilo ria
de Rita)

Camilo – Foste procurar uma cartomante? (Camilo ri, meio debochadamente, mas sem que
tenha intenção de ferir os sentimentos de Rita).
Rita – ria, ria. Os homens são assim, não acreditam em nada. Pois saiba que fui e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a
botar as cartas e disse-me: “ A senhora gosta de uma pessoa...” confessei que sim, e então ela
continuou a botar as cartas, combinou-as e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você
me esquecesse, mas que não era verdade...

Camilo – Errou! (Camilo ri)

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Rita – Não diga isso Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado por sua causa. Você
sabe, já lhe disse. Não ria de mim, não ria.

(Camilo pega nas mãos de Rita e a olha fixamente nos olhos)

Camilo – juro que te amo, não precisa de uma cartomante, nem de ninguém para confirmar o
que sinto, por que não perguntou a mim? Pode ser imprudente de sua parte falar com estranhos.

Rita – sou cautelosa, a casa dela é misteriosa, ninguém por perto me conhece.

Camilo – onde é a casa?


Rita – aqui perto, na Rua da Guarda Velha, não passava ninguém na ocasião. Fique tranqüilo,
não sou maluca.

(Camilo ri outra vez)

Camilo – crês realmente nessas coisas?


Rita – acho que sim, como dizia Shakespeare :“há mais mistérios entre o céu e a terra do que
sonha nossa vã filosofia”. Ela adivinhou tudo e estou satisfeita.

(Camilo pensa em falar, mas resolve parar , dando com os ombros)

Os dois separam-se (saem). Entra Carolina.

Carolina – pobre Rita! Não existe nada pior que uma mulher insegura no amor, mas como se
conheceram? Ah!! Vejamos: Vilela, Camilo e Rita, três nomes, vamos às explicações.
Vilela e Camilo eram amigos de infância, Vilela tornou-se advogado; e Camilo, funcionário
público. Vilela casou-se com Rita e esta, um tempo depois, fez-se amante de Camilo.

(Sai Carolina)

(Entram Vilela e Rita de mãos dadas)

Vilela – Pensei em ti o dia todo, principalmente à tarde, acho que por causa de perfume que
parecia exalar no escritório, nem sei de onde vinha, mas a impressão que tive foi de que ele se
impregnou na minha memória e voltei no tempo, e ao dia em que te conheci. Se pudesses sentir
o mesmo, afinal, o que fizeste à tarde?

Rita – nada de mais, apenas li um romance, como costumo fazer (Rita disfarça, naturalmente e
prolonga detalhes para não gerar desconfianças, mas é interrompida pelo esposo).

Vilela – romance? Não era de poesia de que gostavas? Dos jornais? E de que trata o romance?
Rita – gosto das intrigas e cansei de poesia, precisava de algo mais denso e envolvente. Então
encontrei um novo escritor.
Vilela – um novo escritor? É estrangeiro?
Rita – novo sim. Estrangeiro não. É carioca e se chama Machado de Assis.

(Os dois são interrompidos por uma batida na porta, como a empregada não aparece, Rita vai
atender)

(Entra Camilo)

Rita – é o senhor? Que surpresa! (Rita disfarça e estende-lhe a mão)


– Não imagina o quanto meu marido gosta do senhor ( em tom de ironia, ao mesmo
tempo em que parece sincera).

Camilo – também gosto muito dele. E ele tem uma esposa adorável!( no mesmo tom de ironia
de Rita)
Vilela – quantos elogios!! Mas vamos ao que interessa! Chamei-o por causa de uns papéis que
tua mãe deixou.

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(Saem os três)

Entra Camilo, segurando um envelope/bilhete.

Camilo –o quê? Imoral eu? Todo mundo sabe de minha aventura. Quem terá mandado isso?
Algum chantagista? Tenho que tomar cuidado, melhor diminuir as visitas e os encontros com
Rita.

(Entra Rita, abraçando Camilo por trás, sem nada saber ainda, mas percebe que algo está errado)

Rita - o que houve?


Camilo – Recebi um bilhete, diz que todos sabem de nós.
Rita –mas como?
Camilo – não sei, o fato é que alguém sabe, temos que nos separar por um tempo, também
deixarei de ir a sua casa visitar Vilela.
Rita – mas ele pode estranhar. Vocês são amigos desde a infância.
Camilo – você tem razão, mas por enquanto é o que pretendo. Não sei o que ele pode fazer caso
descubra essa traição.

Rita- mostre-me o bilhete, pode ser que seja de meu marido ( ela pega o bilhete)
Camilo – será?
Rita – tudo é possível.
Rita – ah, não dá pra saber, está datilografado.
Camilo – calma! Não deve ser dele, vá para casa se ele agir estranho, você perceberá.

(Saem Rita e Camilo, mas antes Rita indo em direção oposta ao amante é puxada pelos braços,
caindo nos braços de Camilo e os dois se beijam)

Fecham as cortinas

Entra Camilo (com outro envelope, e um bilhete escrito à mão).

Camilo – um outro bilhete? Dessa vez é de Vilela, vejamos o que ele diz.

“Vem já, já, à nossa casa, preciso falar-te sem demora.”( a voz é sussurrada, nesse caso ouvimos
a voz de Vilela)

(Camilo anda de um lado a outro preocupado)

Camilo – vem, já, já (Sussurrando e olhando o papel).


Camilo – vem já, já, pra quê? Será que ele sabe de algo? Não, não deve saber de nada. Tô me
preocupando à toa. Mas e se ele souber? Devo ir prevenido? (pensa, pausa)
– é melhor eu ir logo, no caminho penso em algo.

Sai Camilo

Entra o Narrador/Carolina

No caminho, Camilo reconhece a descrição da rua e da entrada da casa da cartomante. Seu


coração palpitava, tinha dúvidas que geravam medo. Parou em frente à entrada da casa, relutou,
pensou que rira de Rita, afinal, não acreditava em previsões, nem em destino. Mas, enfim,
resolveu entrar.

Entra a cartomante (o ambiente é escuro, há pouca iluminação, apenas um feixe de luz incide
sobre uma cadeira em que sentam os clientes)

A cartomante senta à mesa com umas cartas. Está escuro. Batem desesperadamente à porta.

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Cartomante – quem será uma hora dessas? (pausa)
Tenho que ter calma. Se alguém me ouve falar desse jeito, vai pensar que não
adivinho nada. (Abre a porta) Ora!! Sei de quem se trata.

(Entra Camilo alvoroçado/nervoso)

Camilo – posso entrar? (entra sem esperar resposta, mas é parado pelas mãos da cartomante)
Queria lhe consultar.
Cartomante – calma, vejamos o que lhe trouxe aqui. O senhor tem um grande susto...

(Camilo balança a cabeça em gesto afirmativo)

Cartomante – e quer saber... se lhe acontecerá algo ou não...


Camilo – a mim e a ela( interrompendo a cartomante)

(A cartomante convida Camilo a sentar, na cadeira onde incide a luz, seu rosto assustado fica
mais visível, ela também senta à mesa)

Cartomante – espere um pouco. (pega as cartas e as baralha, depois as estende, Camilo olha
fixamente nas cartas e na cartomante)

Cartomante – as cartas dizem-me ...- não tenha medo de nada. Nada acontecerá. Nem a você
nem a ela. O outro não sabe de nada. ( a cartomante recolhe as cartas)

( Camilo sente-se reconfortado, aliviado e aperta a mão da cartomante)

Camilo – a senhora restituiu-me a paz de espírito.

(A cartomante levanta-se rindo, tocando na testa de Camilo e ele também se levanta).

Cartomante – vá, vá, ragazzo innamorato...

(A cartomante anda um pouco e pega um cacho de uvas e começa a comê-las.)

Camilo – uvas custam dinheiro. Quantas quer mandar buscar?


Cartomante- pergunte ao seu coração e ele dirá.

(Camilo tira a nota de R$ 100 e dá a ela, a cartomante fica de olho no dinheiro, fuzilando-o)

Cartomante – vejo que o senhor gosta muito dela (em tom de ironia, mas natural)... e faz bem,
ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

(sai Camilo pela escada e logo depois a Cartomante)

(Fecham-se as cortinas)

Parte Final

Entra o Narrador/ Carolina


Camilo segue em direção à casa de Vilela. Pela primeira vez acreditara em uma adivinhação,
agora ia tranqüilo. Sem dúvidas. Pensava em Vilela, seu amigo de infância, e reconhecia que era
uma boa pessoa.

Entra Camilo pela escada (cortinas fechadas)

(Camilo bate à porta)

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A porta se abre. E aparece Vilela.

Camilo – desculpa, não pude vir mais cedo; que há?


(Vilela não responde, apenas faz sinal com a cabeça para que entre)

Camilo vê Rita morta e ensangüentada ao fundo (fica assustado). Vilela pega-o pela gola e com
dois tiros de revólver, estira-o morto no chão.

(Entra a Cartomante, saindo do fundo)

Cartomante (rindo debochadamente) – Vá, vá ragazzo innamorato

Saem Vilela e a Cartomante com ar de namorados.

FIM

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