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Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

52 | 2021

Número 52
Dossiê Aspectos geográficos da pandemia de Covid-19

COVID-19 e Geografia:
perplexidade atual e a cartografia
a serviço da saúde pública
COVID-19 and Geography: Current perplexity and cartography at the service of public health in Erechim-RS
COVID-19 et géographie: perplexité actuelle et la cartographie au service de la santé publique à Erechim-RS

Paula Lindo, Éverton de Moraes Kozenieski e Reginaldo José


de Souza
https://doi.org/10.4000/confins.40350

Resumos
Português English Français
A pandemia do novo coronavírus está presente em nosso cotidiano, causando perplexidade e
chamando a ciência para minimizar os impactos da COVID-19 na saúde pública. A Geografia,
conhecimento localizado entre eventos sociais e naturais, depara-se com uma necessária releitura
do próprio sentido das dinâmicas da Natureza em situações que evidenciam seu descontrole,
mesmo com todo o aparato técnico-científico-informacional contemporâneo. O SARS-CoV-2 foi
metabolizado na rede tecnológica atual, e isso gera resultados catastróficos em várias localidades
do planeta. Neste artigo, nossos objetivos são dois: apresentar considerações sobre o novo
horizonte epistêmico para a Geografia no presente desafio planetário; passar da reflexão global
sobre a pandemia para o prognóstico de seus possíveis desdobramentos na cidade em que
vivemos e buscamos entender sua organização socioespacial de maneira crítica: Erechim, Rio
Grande do Sul. A estratégia metodológica utilizada foi a elaboração de mapas temáticos a partir
de indicadores de distribuição populacional por faixa etária, densidade demográfica e número de
moradores nos domicílios. Essa seleção foi motivada pelo fato de pessoas idosas comporem grupo
de risco em casos de infecção e pelas aglomerações facilitarem as transmissões. Os mapas
produzidos expõem a distribuição dos idosos por toda a cidade, com maior concentração nos
setores centrais, e identificam domicílios habitados por mais de seis pessoas na periferia. Tais
informações foram comparadas com um mapa de exclusão/inclusão social, cujo resultado é um
mapa-síntese para ações prioritárias contra a COVID-19 na cidade de Erechim.

The perplexity of the new coronavirus pandemic is present in our daily lives and calling for
sciences to minimize the impacts of COVID-19 on public health. Geography, knowledge located
between social and natural events, is faced with a necessary reinterpretation of the meaning of
Nature's dynamics in situations that show their power above the society, even with all the
contemporary technical-scientific-informational apparatus. SARS-CoV-2 has been metabolized in
the technological network worldwide and this generates catastrophic results in several locations
on the planet. In this article, we have two aims: to discuss about the new epistemic horizon for
Geography in the present planetary challenge. Then, we jump from the global reflection about
pandemic to the prognosis of possible consequences in the city in wich we live and we seek to
understand its socio-spatial organization in a critical way: Erechim, Rio Grande do Sul. The
methodological strategy was the elaboration of thematic maps from indicators of population
distribution by age group, demographic density and number of residents in the houses. This
selection was motivated by the fact that elderly people form a risk group in cases of infection and
the agglomerations facilitate transmissions. The maps produced show the distribution of the
elderly throughout the city, with a greater concentration in the central sectors, and identify
households habited by more than six people in the periphery. Information was compared with a
social exclusion / inclusion map and the result is a synthesis map for priority actions against
COVID-19 in Erechim city. Keywords: nature, space, coronavirus, map, Erechim.

La perplexité de la nouvelle pandémie de coronavirus est présente dans notre vie quotidienne et
appelle à la science à minimiser les impacts de la COVID-19 sur la santé publique. La Géographie
est un savoir situé entre événements sociaux et naturels. Cette science est confrontée à une
nécessaire réinterprétation du sens même de la dynamique de la Nature qui, dans certaines
situations montre l'impossibilité d'être contrôlée, même avec tous les appareils technico-
scientifiques-informationnels contemporains. Le SARS-CoV-2 a été métabolisé dans le réseau
technologique du monde actuel, ce qui génère des résultats catastrophiques dans plusieurs
parties de la planète. Les objectifs de cet article sont les suivants : d'abord, présenter des
considérations sur le nouvel horizon épistémique de la Géographie dans le défi planétaire actuel ;
ensuite, on passe de la réflexion globale sur la pandémie au pronostic de ses éventuelles
conséquences dans la ville où on vit et y cherche à comprendre l'organisation socio-spatiale de
manière critique. Il s'agit d'Erechim, dans l'état de Rio Grande do Sul, Brésil. La stratégie
méthodologique a été basée sur l'élaboration de cartes thématiques à partir des indicateurs de la
population par groupe d'âge, densité démographique et nombre de résidents dans les logements.
Cette sélection était motivée par le fait que les personnes âgées constituent un groupe de risque
en cas d'infection et que les agglomérations facilitent la transmission de la maladie. Les cartes
produites montrent la répartition des personnes âgées dans toute la ville, avec une plus grande
concentration dans les zones centrales. On identifie également les logements en banlieue habités
par plus de six personnes. Ces informations ont été comparées à une carte d'exclusion/inclusion
sociale et le résultat montre la synthèse des actions prioritaires contre la COVID-19 dans la ville
d'Erechim.

Entradas no índice
Index de mots-clés : nature, espace, coronavirus, cartographie, Erechim.
Index by keywords: nature, space, coronavirus, map, Erechim.
Índice geográfico: Erechim, RS
Índice de palavras-chaves: natureza, espaço, coronavírus, mapa, Erechim.

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1 A pandemia da COVID-19, mais do que um fenômeno biológico de graves implicações
para a saúde humana, revela-se como um fenômeno social com intensas inter-relações
entre lugares1. Estamos diante de grande dispersão do vírus e de contaminações, de
repercussões distintas do quadro de doenças anteriores em diferentes países em função
da capacidade de resposta dos estados e dos aparatos dos sistemas de saúde, mas
também de repercussões singulares em contextos sociais específicos. A pandemia
revela-se como um fenômeno geográfico e multiescalar (do corpo biológico ao corpus
social, do local ao global).
2 Para compreensão da difusão dessa doença no espaço geográfico, deve-se reforçar o
entendimento de que habitamos em um mundo significativamente urbanizado. Isso
possibilita verificar como o vírus se espalha, quais as ações possíveis para enfrentar a
crise e proteger a vida das pessoas. A urbanização marcada por intensos fluxos de
pessoas, mercadorias e informações, a rápida circulação por sistemas de transportes
velozes que conectam diferentes cidades, a dependência das relações econômicas,
políticas e culturais entre as regiões do globo, enfim, todos esses elementos inauguram
um fato novo na história socionatural2: a pandemia motivada por um agente viral
globalizado, acompanhada de uma tentativa planetária de contenção de disseminação
em meio às projeções galopantes de contágio e morte.
3 A China foi o primeiro país a informar a OMS sobre um vírus desconhecido que
estava se espalhando por diversas cidades chinesas, ainda em dezembro de 2019. A
cidade de Wuhan foi o primeiro epicentro da doença. Até o dia 24 de outubro de 2020,
segundo dados da Universidade Johns Hopkins (EUA), foram registrados 42.395.907
casos de COVID-19 e 1.146.596 mortes no mundo. O ritmo de cada país/região é
diferente. No início da pandemia, o Japão, Hong Kong e Singapura viram crescer as
infecções de maneira paulatina desde janeiro. Na Europa, os casos dispararam
rapidamente. Os Estados Unidos registraram 8.519.830 casos com 224.301 óbitos,
enquanto no Brasil eram 5.353.656 casos confirmados e 156.471 mortes.
4 Diante desta pandemia, a ciência busca compreender e dar respostas às demandas da
sociedade. É nesse sentido que a Geografia pode contribuir, ou seja, a partir do enfoque
integrado do componente territorial em suas análises, a escala do lugar de ação dos
indivíduos para uma possível integração entre as esferas da Natureza, da Técnica e da
Saúde. Tal integração pode possibilitar análises simultâneas da dinâmica espacial dos
fenômenos, como as doenças, uma vez que o espaço geográfico é resultado das relações
sociais nele presentes, capazes de impactar até mesmo a saúde humana. Nesse
contexto, queremos discutir o posicionamento da Geografia diante desta realidade. O
que podemos dizer a partir da perspectiva geográfica? O que pode ser proposto?
5 As respostas para tais perguntas admitem inúmeras possibilidades, formas distintas
de pensar e de intervir no atual contexto. Nossa forma de responder a tais perguntas
parte, portanto, de olhares geográficos em tempos de crise, refletindo a escolha de
analisar nosso lugar de pesquisa e também de vida, a cidade de Erechim, norte do Rio
Grande do Sul. O contexto geográfico erechinense apresenta importantes elementos
socioespaciais para entender e antecipar possíveis desdobramentos de um
espalhamento do novo coronavírus e seus impactos na saúde pública.
6 Assim, o texto está estruturado a partir de dois eixos de discussão. Em um primeiro
momento, tratamos de algumas linhas teóricas e possibilidades epistêmicas que esta
nova década aponta como promissoras de uma novíssima Geografia para as temáticas
planetárias. Consideramos o novo coronavírus como expoente de pulsações comuns das
dinâmicas da Natureza dentro de localidades específicas, pois, se não existissem portos,
aeroportos, estradas, automóveis, navios e aviões, não haveria pandemia. Mas esses
aparatos tecnológicos existem, e a globalização do problema é uma realidade. A
Natureza também continua existindo e pode, inclusive, colocar outras cepas de doenças
de rápida difusão a ameaçarem a humanidade. Como reagimos/reagiremos nós,
geógrafas e geógrafos?
7 Na segunda parte, tratamos da diferenciação dos cenários de maior e menor
inclusão/exclusão social. Diversamente distribuída no tecido urbano, a doença poderá
se desenvolver em pessoas com mais riscos em função não apenas da idade, de sua
exposição, de doenças associadas, mas também por viverem em condições econômicas
de maior vulnerabilidade. Como é se proteger do vírus em condições de vida que
permitem o isolamento social com relativa tranquilidade? O que é a tentativa de
proteção em condições de miserabilidade? Com este estudo, propomos uma primeira
cartografia de situações possíveis em Erechim, com o intento de dimensionar o sentido
da Geografia neste atual momento de perplexidade.
COVID-19: os sopros da Natureza na
Sociedade e a reação de alguns
geógrafos
8 O período atual é amplamente desafiador para todas as esferas do conhecimento. Do
ponto de vista científico e filosófico, a existência humana é relevada em um cenário de
riscos e catástrofes que nos ameaçam enquanto espécie, enquanto corpos, enquanto
sociedade.
9 A globalização de uma doença e sua letalidade coloca o ser humano diante da
potência sublime da natureza. Todos devem se conscientizar de que a disseminação e
contaminação pela COVID-19 estão diretamente relacionadas com viagens motivadas
pelos negócios transnacionais, realização de acordos comerciais, turismo e
intercâmbios culturais que impulsionaram a difusão planetária deste vírus que desafia a
humanidade.
10 O SARS-CoV-2 é um fenômeno global, tecnificado e metabolizado pelas relações
comerciais, ao mesmo tempo em que se metaboliza e se replica na corrente sanguínea e
no sistema respiratório dos seres humanos. Essencialmente, trata-se de coisas naturais
que existem independentemente das pretensões humanas. Por mais que se negue a
Natureza no mundo altamente tecnificado, ela existe e se define pela simples realidade
de se constituir indiferente aos desígnios sociais. O vírus existe e seu comportamento
ainda é, em grande medida, desconhecido. Malgrado todos os avanços científicos, a
humanidade ainda não está totalmente munida de recursos e organicidade política para
solucionar um problema derivado de uma dinâmica não intencional da Natureza e
ativado como um desafio de saúde pública para as pessoas ao ser incorporado no tecido
da sociedade global.
11 A Natureza mostra-se imprevisível perante a tentativa de ordem técnica da sociedade
(Souza, 2018). No atual período de nossa história, a Geografia se coloca como uma
ciência desafiada a produzir conhecimento sobre um evento que questiona suas mais
profundas bases teóricas de compreensão da realidade. O espaço geográfico, conjunto
indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 1999), agora conta
com um fator surpreendente a funcionar mais como um curto circuito dentro desses
sistemas do que qualquer outra coisa. Geógrafas e geógrafos estão inquietos com o fato
de que nem sempre as dinâmicas do natural são suprimidas pelos objetos e pelas ações
da sociedade (Santos, 1999). A presciência de algo invisível, porém, letal, é inquietante
para todas as esferas sociais.
12 Cogito ergo sum (Descartes, 1996) é a marca de uma clara fronteira entre o ser
humano e o inumano. Existir é um fenômeno racional que, agora, é atormentado todos
os dias com a rápida expansão de uma res extensa que não pensa, mas faz adoecer e
morrer aqueles que pensam. Vivemos em um mundo marcado pela globalização
fantasiosa – que mais exclui do que inclui as pessoas na sonhada aldeia global. Por isso,
tem-se a urgência de, efetivamente, construir a mudança de percepção de valores que
sejam capazes de colocar todos os seres humanos em um mesmo patamar de
importância, quando se trata de vencer a crise e garantir a saúde coletiva.
13 Nesse sentido, embora se tenha grande necessidade de estabelecer estratégias rápidas
para contenção do novo coronavírus, também é mais do que relevante uma inflexão
epistêmica em todos os campos científicos. No caso específico da Geografia, tal inflexão
se direcionaria para a revisão da concepção de Natureza como conteúdo do espaço
geográfico. A exigência do hoje nos chama a fazer tal reflexão sobre para qual ciência e
para qual tipo de Geografia somos convidados a desenvolver conhecimento, a partir de
um cenário mundial de ameaça concreta às nossas vidas.
14 Aqui, levantam-se três leituras iniciais acerca da embrionária Geografia da Natureza
no/do século XXI, inaugurada por esta pandemia que parece ser o divisor de águas
entre um sistema desgastado de percepção da realidade e outro, mais incerto em sua
estrutura de entendimento, porém, irreversível enquanto tendência para construção de
novas apreensões teóricas e metodológicas das temáticas planetárias. São elas:
15 i) A Natureza não está suprimida ou controlada pelos entes técnicos. A racionalidade
da técnica conforta o pensamento, porque nela não há incertezas, e a dinâmica cósmica
da repetição (o movimento de rotação, os dias, as noites, as estações do ano), ao
incorporar-se nos mecanismos das linhas de produção, não são ilusões, são realizações.
Contudo, ao tentarmos transpor tal segurança cognitiva para criar regras de
funcionamento à Natureza, erramos. A Natureza não é suportada pelos regimentos da
nossa compreensão.
16 ii) A Natureza é, antes de tudo, uma experiência estética esquecida. Todos ainda são
capazes de apreciar a bela natureza enquanto representação da ordem cósmica. Porém,
muitos não conseguem mais experienciar a sublimidade (Kant, 2011) dos fatos naturais
enquanto presciência da pequenez humana sobre a Terra. Essa experiência estética
deveria ser vista como uma chance para que a humanidade busque ser mais humana e,
portanto, que seus membros se respeitem uns aos outros em um contexto no qual
somos todos regidos por forças que ultrapassam os limites da compreensão.
17 iii) Em um contexto de temor com a escassez de recursos, elabora-se a necessidade de
respeitar o meio ambiente com vistas à salvaguarda da Natureza. Mas a Natureza é
inumana (Besse, 2014) – no sentido de não conhecer o conhecimento – e, prescindindo
da presença humana para que continue a existir, dispensa qualquer tipo de salvaguarda
ou salvação. Logo, seria melhor que todos nós temêssemos mais a própria
vulnerabilidade do que algum suposto dano que se causa à Natureza (Souza; Lindo;
Kozenieski, 2020).
18 As três hipóteses citadas perfazem algumas reflexões sobre aquilo que aqui estamos
chamando de uma embrionária revisão da Natureza no século XXI, a qual, talvez,
sinalize outro modo de pensar o bem-estar e a saúde de todas as pessoas nas diversas
localidades habitadas deste planeta. O pressuposto de que os limites da compreensão
humana não comportam integralmente as dinâmicas naturais poderia ser o ponto de
partida para nos conformarmos diante da evidência de que a finalidade da história da
Natureza não é criar a vida humana de maneira especial ou exclusivista.
19 Por sua vez, na hipótese de a Natureza nos demandar a experiência estética com sua
sublimidade, aceitaríamos a condição da desordem, da incerteza e dos acontecimentos
inesperados que podem, inclusive, suprimir o pensamento, a res cogitans da cena
global. Assim, o comprazimento negativo do sublime (Kant, 2011), dado pelo inevitável
confrontamento com o descontrole da Natureza, seria a chance para finalmente
entendermos que o modelo de sociedade a ser buscado deve ser aquele em que há
valorização do elemento humano e toda sua potência e pulsão de vida. No futuro, a
Natureza já nos matou. No presente, o que podemos fazer para amenizar a democrática
condenação natural à morte?
20 Se, no futuro, a Natureza já nos matou, no presente, o SARS-CoV-2 está acelerando
esse processo. O risco de morte por essa doença se realiza na maioria dos países por
meio de um padrão democrático de constituição de paisagens do medo (Tuan, 2005),
sobretudo, nos tecidos urbanos. O isolamento social como estratégia para evitar o
aumento galopante das contaminações apresenta-se como a saída mais adequada
durante este período em que a medicina encontra sérias dificuldades para minimizar
seus impactos, seja em função da temporalidade de produção de medicamentos, seja
pela insuficiência dos sistemas de saúde pública para acolher todos os acometidos mais
gravemente pela síndrome respiratória.
21 Mas o isolamento social vem expor que a forma de lidar com a pandemia não é
democrática. A sociedade do risco pode ser a mesma para todos, porém, a economia
opera de modo hierárquico dentro dessa sociedade (Beck, 1998). A disseminação do
novo coronavírus iniciou-se pelos fluxos de viagens internacionais entre pessoas que
tinham e têm condições de realizar esses deslocamentos. Posteriormente, a circulação
local do vírus acometeu outros cidadãos, que não fizeram viagens internacionais,
incluindo aqueles sem condições de permanecer em situação de quarentena por não ter
suprimentos, não poder deixar seus postos de trabalho, estar em situação de
informalidade trabalhista ou na busca por empregos. Essa desigualdade não é uma
questão de ordem natural, mas, eminentemente, social.
22 Logo, a terceira hipótese é corroborada pela concretude dessa situação de
vulnerabilidade das pessoas que não têm recursos para se resguardar do risco de
contágio e consequente sofrimento pela escassez de leitos em hospitais e acesso aos
aparelhos respiradores, tão necessários ao processo de cura da infecção. Partimos da
consideração de que esta pandemia está inaugurando o século XXI e se apresenta como
possibilidade para uma virada epistêmica, por exigir mobilização de cientistas em todo
espectro de áreas e aplicações.
23 A nosso ver, para a Geografia está colocado um novo horizonte epistêmico, que é de
explicar os antecedentes socioespaciais responsáveis pela globalização dessa doença e
também de se rever o significado das dinâmicas naturais em um quadro de situações
não necessariamente marcado pela supressão dos fatos naturais. Na atualidade, o que
nos desafia é revisar a Natureza como elemento de desordem técnica, econômica,
política e cultural e suas reverberações na mais básica condição humana para gozar da
vida e usufruir do próprio espaço geográfico: a Saúde.
24 Essa virada epistêmica da Geografia residiria na conjunção/síntese de todo o seu
variado instrumental teórico-metodológico para compreendermos como a Natureza
abala o conjunto indissociável de sistemas de objetos e ações. A novíssima Geografia do
século XXI encontra-se em processo de gestação – ativado por um agente viral – e pode
ser marcada pela teorização, representação cartográfica, diagnósticos e prognósticos do
caos socionatural impulsionado pela ordem tecnológica comunicacional vigente: uma
verdadeira Geografia da Perplexidade.
25 Diante dessa problemática tão presente em nossos últimos dias, semanas e meses de
isolamento, paralisia de parte de nossas atividades laborais e limitação dos percursos
em nossos bairros e cidades, direcionamos estas reflexões mais abrangentes sobre o
cenário global de pandemia para uma estratégia metodológica a fim de tratarmos de
suas possíveis repercussões no tecido urbano de Erechim, norte do Rio Grande do Sul.
Quais seriam os desafios desta cidade com a sua inserção na rede global do SARS-CoV-
2?

COVID-19: Representações
cartográficas e a cidade de Erechim
26 A representação cartográfica deve ser concebida como instrumental primordial,
porém, não único, para elaboração de saberes sobre os territórios onde o vírus se
espalha. Assim, com a pandemia da síndrome respiratória aguda grave, pretendemos
demonstrar como as representações cartográficas podem auxiliar na leitura do impacto
da doença e, possivelmente, oferecer elementos sobre o território para ações do poder
público.
27 Neste estudo, olhamos para a cidade de Erechim. Três indicadores sociais foram
selecionados – i) população, ii) densidade e iii) circulação/equipamentos urbanos – e
sete variáveis: i-a) população de 50 a 59 anos; i-b) população de 60 a 69 anos; i-c)
população acima de 70 anos; ii-a) densidade da população; ii-b) quantidade de
residências com 6 ou mais moradores; ii-c) áreas de exclusão social; e iii-a) a
localização de hospitais, UBS, CRAS, loteamentos sociais Minha Casa minha Vida
(MCMV) faixa 1, rodoviária, Distrito Industrial, principais vias de acesso, via férrea e
rodovias.
28 A espacialização dessas informações permite que a sociedade e o poder público se
organizem e produzam ações efetivas para lidar com a COVID-19. Assim, elaboramos
mapas temáticos e um mapa-síntese da organização espacial para auxiliar na produção
de ações para prevenção da expansão do vírus.
29 A partir do desafio que assumimos para produzir as representações sobre a cidade e a
síntese da organização espacial, cabe questionar: a partir de quais fontes podemos
produzir as informações para o município de Erechim? Quais estudos podem ser
utilizados para definirmos áreas prioritárias para atuação do poder público e
identificação de grupos populacionais com maior suscetibilidade?
30 Em nossa proposta, optamos por utilizar os dados do censo demográfico de 20103 do
IBGE, por tratar-se de um estudo que registra informações de toda população em seu
local de residência habitual4, não sendo, desse modo, um estudo amostral ou projetivo.
O censo demográfico disponibiliza dados nas unidades territoriais dos setores
censitários5, que possuem dimensões menores que as dos bairros da cidade.
31 A título de exemplo, em 2010, o município era composto por 158 setores (exemplo de
unidades territoriais), considerando os setores do distrito de Capoerê e de Jaguaretê. A
área urbana da sede municipal de Erechim está dividida em 139 setores censitários, dos
quais se encontram dados do perfil dos residentes e dos domicílios. Ao longo da análise,
também trabalhamos com uma divisão de bairros estabelecida pela Secretaria de
Planejamento do município.
32 Utilizar os dados do censo demográfico de 2010 impõe um limite ao nosso estudo que
diz respeito à atualidade das dinâmicas territoriais e da organização do espaço. No
entanto, fizemos dois movimentos para acessar dados mais atualizados: consulta às
secretarias municipais e estudo de projeção da população do município a partir dos
dados de 2010 e número de óbitos6. Após os dois movimentos, concluímos que os dados
de 2010 seriam os mais adequados para um primeiro exercício analítico. Assim,
assumimos em nossa análise que a organização do espaço (distribuição do perfil
populacional e domicílio nos setores censitários) não sofreu alterações significativas
desde o último levantamento.

O que os indicadores e as representações


revelam?
33 Segundo os dados, a população total de Erechim, em 2010, era de 96.087 habitantes,
sendo que 90.552 residiam na área urbana, ou seja, 94,23% da população total, sendo
que destes apenas 400 habitantes estavam distribuídos na área urbana dos distritos,
localizados ao sul e norte do município, a uma distância de aproximadamente 14 km da
sede.
34 Os dados em si, entretanto, não são suficientes diante do vivido se não forem
contextualizados. Então, buscamos compreender a inter-relação entre a disseminação
da COVID-19 e a organização urbana de Erechim, onde, como em qualquer outra
cidade, morar, trabalhar, buscar e usufruir de determinados serviços (lazer, educação,
transportes e saúde) e estabelecer relações de pertencimento ao lugar contém variáveis
geográficas complexas que necessitam ser compreendidas, já que vivenciamos um
problema de ordem social.
35 Sobre os grupos de risco à COVID-19, as informações indicam que pessoas idosas e
pacientes de doenças crônicas são aqueles que apresentam maior taxa de letalidade
após contaminação (Lana et al., 2020). Nesse sentido, distinguir e localizar a população
com 60 anos ou mais se torna importante para definição de ações prioritárias.
36 Primeiro, coletamos dados dos grupos populacionais a partir dos residentes com 50 a
59 anos de idade, que, atualmente, é o grupo que compõe a população na faixa etária de
60 a 69 anos. O grupo etário de 50 a 59 anos, em 2010, representava 10.609 pessoas,
distribuídas de maneira homogênea em praticamente todos os setores censitários e
bairros, conforme podemos observar no Mapa 1 "Erechim-RS: população de 50 a 59
anos por setor censitário". O mapa destaca uma situação de maior equilíbrio da
distribuição da população, visto que, dos 139 setores, 37 concentram mais de 90
pessoas no grupo etário. Enquanto que, entre 60 e 69 anos e na faixa etária acima de 70
anos, há apenas um setor com mais de 90 pessoas (prancha 1).
37 Destaca-se que 12,45% da população erechinense tinha mais de 60 anos em 2010, ou
seja, aproximadamente 12 mil pessoas se enquadravam na condição de idosos. Se
destacarmos apenas os residentes que possuíam de 60 a 69 anos, encontramos 6.387
pessoas. Ao observarmos a distribuição desta população nos setores censitários, no
Mapa 2, verifica-se relativa dispersão em diversos bairros. Contudo, a dispersão é
menor do que a situação da faixa etária de 50 a 59 anos. Cabe destacar que 36 setores
censitários possuem de 8,7 a 14,4%7 dos seus residentes nesta faixa etária, abrangendo
o bairro Ipiranga e áreas do Centro e José Bonifácio (prancha 1).
38 O mesmo procedimento aplicado à faixa etária de 70 anos ou mais indica a presença
de 5.576 pessoas. Com relação à sua distribuição, verifica-se maior concentração, ou
seja, é possível observar uma redução da quantidade de pessoas mais idosas na
periferia da cidade. A população nesta faixa com mais idade reside principalmente em
alguns bairros nas imediações do centro da cidade (Mapa 3). Identificam-se também 36
setores censitários em que esse grupo perfaz de 9 a 14,9%8 da população total residente,
referentes ao bairro Ipiranga e, majoritariamente, às áreas do Centro e Morro da
Cegonha.

Prancha 1: Erechim, mapas da população de 50 anos ou mais por setor censitário


Fonte: IBGE - Censo demográfico (2010).

39 Considerando as três faixas etárias (prancha 1) que destacamos e os mapas


apresentados, novos questionamentos surgem: o que justifica a maior concentração
destes residentes nos bairros centrais conforme aumenta a faixa etária? Por que se
identificam poucos moradores das maiores faixas etárias nos bairros periféricos? A
população idosa prefere mudar-se para bairros centrais? Ou as condições
socioeconômicas dos moradores da periferia influenciam significativamente na
expectativa de vida ao ponto destes citadinos entrarem em óbito com menor idade?
Essas perguntas são exemplos de problemáticas geográficas que, se respondidas em
outros estudos, permitem à sociedade e ao poder público compreender com mais
propriedade a organização socioespacial de Erechim.
40 A cidade revela-se, em um primeiro momento, como conjunto de diferentes usos
justapostos entre si, que podem resultar em fragmentação espacial, na delimitação de
áreas distintas, em espaços de desigualdades. Porém, essas porções da cidade se
articulam por meio dos fluxos de pessoas, mercadorias e informações. Por sua vez,
aglomerações são propícias à propagação do vírus. Então, buscamos informações sobre
distribuição e concentração da população sem distinção de faixa etária.
41 Detectamos 12 bairros cujo número de população é superior a 3 mil habitantes. O
bairro Centro, por exemplo, o mais populoso, concentrava mais de 7.300 domicílios em
2010, totalizando aproximadamente 18.500 moradores. O segundo mais populoso era o
Atlântico com 5.430 pessoas, seguido pelos bairros Koller, Linho, Cerâmica, Três
Vendas, José Bonifácio, Progresso, Aeroporto e Cristo Rei (Lindo, 2018).
42 Essa informação permite compreendermos quantos somos e onde estamos.
Entretanto, mais do que a quantidade de pessoas, é necessário saber como elas se
aglomeram, já que evitar aglomeração é uma das recomendações da OMS para que o
vírus não se propague.
43 A variável densidade populacional foi selecionada para compreender a distribuição
dos moradores de Erechim e encontramos um índice resultante da divisão entre o
número total de habitantes e a área ocupada. A divisão foi classificada em muito densa
(25.210 - 33.613 hab/km²), densa (16.807 - 25.209,99 hab/km²), média densidade
(8.405 - 16.806,99 hab/km²) e baixa densidade demográfica (2,2 - 8.404,99).
44 O Mapa 4 "Erechim-RS: densidade demográfica por setor censitário (2010)" expõe
um setor muito denso no bairro Centro, mais especificamente onde se localiza o
presídio estadual. O segundo setor, classificado como denso, fica no bairro Industrial
(que abriga o conjunto habitacional Estevão Carraro, da década de 80, e novos
loteamentos, pós anos 2000, elementos que explicam a densidade). Na sequência, há 12
setores de média densidade, distribuídos pelos bairros: Centro (onde há uma
significativa quantidade de prédios residenciais – verticalização), Atlântico
(estruturado, inicialmente, para abrigar trabalhadores do setor industrial), São Vicente
de Paula, Parque Lívia, Progresso e Cristo Rei (bairros distantes do centro, cuja
população é de menor renda, com terrenos, imóveis e aluguéis de menor valor)9.

Mapa 4 - Erechim-RS: densidade demográfica por setor censitário (2010)


Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.

45 Nestes bairros – São Vicente de Paula, Parque Lívia, Progresso e Cristo Rei – há uma
grande quantidade de moradores compartilhando uma mesma área. Esse aspecto pode
contribuir para disseminação do vírus se não houver estratégias de controle. Não é por
acaso que os bairros mais distantes da área central sejam mais densos, pois resultam de
um modelo de desenvolvimento urbano que é desigual. Moradores com menor poder
aquisitivo tendem a se deslocar, obrigatoriamente, para áreas cujos valores dos terrenos
ou imóveis sejam mais acessíveis.
46 Seguindo o caminho para identificação de aglomerações, optamos por mapear os
domicílios com seis moradores ou mais, visto que essa situação de compartilhamento
de uma mesma habitação, por muitas pessoas, facilita a transmissão do vírus (Mapa 5).

Mapa 5 - Erechim-RS: Domicílios com 6 ou mais moradores por setor censitário (2010)

Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.

47 A área urbana de Erechim-RS possui 33.097 domicílios (IBGE, 2010); destes, 1.200
estão na condição em que residem, pelo menos, 6 moradores. Apenas os 15 setores
censitários com maiores valores de domicílios, com seis ou mais moradores, possuem
juntos 416 casos, ou seja, 35% dos domicílios com seis ou mais moradores.
48 Ao avaliar a quantidade de domicílios que possuem seis ou mais moradores em
comparação com valor total de domicílios que existem em cada setor censitário,
verificamos que nove setores possuem entre 10,3% a 20,7% de seus domicílios na
referida situação. Tanto essa medida quanto os dados anteriormente apresentados
indicam situações de concentração de domicílios com 6 moradores ou mais em poucas
unidades territoriais.
49 Observa-se que os nove setores censitários destacados anteriormente estão
localizados nos bairros Presidente Vargas, Cristo Rei, Progresso, Industrial, Amizade e
Parque Lívia. Ao contrário dos mapas que retratam a localização da população idosa
(que indicava concentração de residentes nas áreas centrais), o Mapa 5 indica a maior
localização de residências com mais de seis moradores na periferia da cidade.
50 Essa leitura nos leva, portanto, a novos questionamentos: quais são os motivos que
explicam a existência de alguns bairros da periferia com alta concentração de
moradores num mesmo domicílio? Por que essa situação não está presente na área
central da cidade? A densidade demográfica e a densidade de moradores na mesma
habitação estão relacionadas a situações de vulnerabilidade (exclusão) social? Tais
perguntas também são exemplos de problemáticas geográficas com potencial
contribuição para sociedade. Não vamos respondê-las neste estudo, no entanto,
resgataremos o Mapa 6 “Erechim: inclusão/exclusão (2010)10” para correlacionar as
áreas de alta exclusão, que indicam alto grau de vulnerabilidade social da população
urbana do município, com os mapas apresentados até aqui.
51 O mapa 6 resultou da sobreposição de indicadores econômicos, educacionais,
infraestrutura e demográficos, de modo que os setores censitários são hierarquizados
das melhores para piores situações por meio de cores que permitem um ordenamento
visual – cor mais clara (amarela), cores intermediárias (amarelo escuro e laranja) e cor
mais escura (vermelho). Ao destacar as áreas com média e alta exclusão, que se
constituem fonte de especial preocupação em função da situação de vulnerabilidade dos
residentes, destacamos os seguintes bairros: Progresso, Victória, São José, Cristo Rei,
Presidente Vargas e São Vicente de Paula.

Mapa 6 - Erechim-RS: Exclusão/inclusão social, 2010

Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado por Lindo e Martinuci (2012).

52 Os seis mapas apresentados demonstram características da organização espacial da


cidade. Há necessidade de ir além da localização, o que significa superar a produção de
uma cartografia descritiva. Nesse caminho, torna-se fundamental a busca pela
compreensão de determinados processos espaciais, ou seja, condições espaciais que
favorecem, por exemplo, a disseminação do vírus e de doenças correlatas. Há de se
reconhecer a contribuição dos mapas de localização, todavia, compreendemos que a
busca por sínteses espaciais para oferecer sentidos à organização do espaço é um
caminho para qualificação desta visão.
53 Aqui não enfatizamos a espacialização da doença (COVID-19) no contexto urbano de
Erechim-RS, porque buscamos compreender a organização do espaço e a distribuição
de pessoas sensíveis à propagação da doença. Até o momento de elaboração destes
mapas, ainda não havia casos/dados da disseminação da doença na cidade. A partir
disso, o resultado foi uma representação cartográfica de síntese (Mapa 7), visando ações
futuras para auxiliar no controle da doença na cidade.

Mapa 7 - Erechim-RS: Áreas prioritárias para ações contra o COVID-19

Fonte: Síntese elaborada pelos autores.

54 O Mapa 7 resgata indicadores expressos nos mapas anteriores e elementos de


circulação e equipamentos urbanos, que, devido ao seu caráter de agrupamento de
pessoas, são sensíveis à propagação do vírus. Os primeiros pontos que destacamos na
representação são hospitais, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS), os quais representam pontos sensíveis para o
acolhimento e atendimento dos enfermos da COVID-19. Trata-se de referências para a
população em situações relacionadas à saúde e à assistência social e também são
suportes para qualidade de vida das pessoas pertencentes ao grupo de risco.
55 Evidenciamos também outros equipamentos urbanos com potencial para acelerar a
circulação do vírus nos bairros da cidade e nos municípios dos quais Erechim é polo
regional. Eles têm características que concentram grande quantidade de pessoas em um
mesmo período do dia (horários de início e fim de aulas, horários de pico, saída e
entrada de trabalhadores da indústria e comércio). Por isso, localizamos os terminais de
ônibus intermunicipal e interestadual, que recebem passageiros de vários municípios
do estado e do Brasil; as universidades e o instituto federal (UFFS, URI e IFRS), que
têm fluxos diários de estudantes vindos de Erechim e de municípios da região; o
terminal de ônibus urbano, ponto de convergência e integração do transporte público
municipal; e o distrito industrial e frigorífico, ponto de concentração de trabalhadores e
de fluxos regionais de pessoas.
56 No que se refere à circulação, estão em destaque as rodovias estaduais e a federal,
que são as vias de comunicação com outras localidades, ou seja, caminhos pelos quais a
disseminação do vírus salta as escalas geográficas (Smith, 2000). Foi o deslocamento
que possibilitou a disseminação do vírus de modo rápido e amplo, devido às redes
urbanas, como destacado por Monteiro et alii (2020) no mapa “Incidência do Covid19 e
rodovias”, em cujas vias estão as linhas de infraestrutura que integram outras cidades
médias (Passo Fundo e Chapecó), metrópoles (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e
São Paulo) e aeroportos com voos nacionais (Passo Fundo e Chapecó). Além disso,
estão em destaque as principais vias de circulação intraurbana, ou seja, avenidas e ruas
que viabilizam os fluxos de pessoas, especialmente por meio do transporte público, que
as direcionam para os bairros.
57 Após a análise e correlação de temáticas, foi possível elaborar o Mapa 7, que indica
áreas prioritárias para ação contra o COVID-19. A pesquisa aqui apresentada faz parte
de um processo datado no período inicial da pandemia e de seus desdobramentos no
interior do Rio Grande do Sul. Enquanto processo, este estudo poderá ser transformado
em pesquisas futuras para comparação das variáveis aqui abordadas com a efetivação
dos casos de contaminações e mortes na cidade.

Considerações finais
58 A COVID-19 comparece, no atual cenário global, como um desafio às sociedades para
preservação de vidas humanas. As ciências estão sendo demandadas a apresentar
contribuições que possam ajudar no entendimento das dinâmicas de transmissão do
vírus, tratamento, cura e, no caso da Geografia, a compreensão dos contextos
socioespaciais que podem bloquear ou acentuar a cadeia de espalhamento.
59 Este artigo iniciou com a provocação sobre a possível viragem epistêmica a ser
pensada. Há evidências de que os sistemas de objetos e ações artificiais dos diferentes
países não são totalmente capazes de impedir a difusão de uma matéria advinda da
espontaneidade do mundo biológico. O medo cresce a cada nova notícia sobre aumento
de números de infectados e mortos. A abordagem da pandemia acontece no cerne da
Geografia da Perplexidade em múltiplas escalas: do corpo ao mundo.
60 Nesse contexto de globalização e pandemia, quais são as contribuições que a
Geografia pode oferecer? Não há dúvidas de que as possibilidades são muitas,
especialmente definidas a partir das orientações dos geógrafos que a produzem.
61 Este estudo identificou um perfil de distribuição da população entre os residentes das
maiores faixas etárias, na cidade de Erechim-RS. Em 2010, as pessoas de 50 a 59 anos
(hoje, de 60 a 69 anos) apresentaram ampla distribuição ao longo da área urbana e
observamos maior concentração destes nos bairros centrais da cidade.
62 Verificamos que as áreas com maior densidade, tanto populacional como também de
moradores em um mesmo domicílio, estão distribuídas em bairros periféricos. Ao
correlacionar esses locais com outros indicadores, como exclusão social, verificamos
que eles estão associados a bairros em que a população apresenta situações de
vulnerabilidade social.
63 Os indicadores de população e densidade contribuíram para definição de áreas
prioritárias para o combate dos efeitos da COVID-19. O Mapa 7 destacou a síntese
espacial a partir de tais indicadores, demonstrando uma lógica de organização do
espaço urbano de Erechim, com destaque para duas situações: i) para se evitar mortes e
ii) para evitar transmissão. Portanto, o indicador populacional, especialmente
população idosa, define área prioritária na qual há maior suscetibilidade a óbitos em
decorrência do agravamento da doença, ou seja, locais na cidade onde são necessárias
restrições para evitar contaminação dos residentes idosos.
64 Já o indicador densidade revelou áreas que possuem maior possibilidade de
disseminação do vírus devido ao adensamento populacional e à proximidade entre os
residentes. As áreas adensadas também são aquelas que possuem uma condição
socioespacial que merece atenção devido às condições de vulnerabilidade social (do
ponto de vista econômico, educacional, habitacional e sanitário) de parcela significativa
da população.
65 A intenção do mapa-síntese foi demonstrar que se trata de um instrumento a ser
utilizado para além da localização de pontos e áreas. É possível antecipar e planejar
ações que são de saúde pública, pois garantir a vida é um dever e um direito social. O
vírus não escolhe quem infectar, mas a sociedade escolhe quem proteger. É necessário
proteger os grupos em situação de vulnerabilidade social. É necessário pensar
estratégias territoriais para evitar mortes.
66 Acreditamos que a Geografia deve ir além da descrição e da localização dos
fenômenos. Daí a importância de investir em pesquisa básica, produzir conhecimento
sobre o território, fortalecer parcerias entre poder público municipal (planejamento
urbano, saúde, assistência social, educação) e universidade pública. Certamente, é neste
cenário que a novíssima Geografia da Perplexidade tem o potencial de cambiar espaço
para uma ciência mais próxima do real significado dos impactos da Natureza na ordem
técnica mundial e seus desdobramentos locais. Isso poderá redimensionar a
importância da saúde humana acima de quaisquer guerras econômicas ou políticas.

Bibliografia
Beck, U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.
Besse, J-M. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.
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IBGE. Atlas do censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. 160 p. Disponível em:
https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/. Acesso em: 25 mar. 2020.
Kant, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução: António Marques e Valério Rohden. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011.
Kozenieski, E. M. (org.). II Caderno de Mapas de Erechim. Goiânia: Espaço Acadêmico, 2018.
Disponível em: https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/2180. Acesso em: 25 mar. 2020.
Lana, R. M. et al. Emergência do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e o papel de uma vigilância
nacional em saúde oportuna e efetiva. Cadernos de Saúde Pública [online], Rio de Janeiro, v. 36,
n. 3, p. e00019620. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00019620. Acesso em: 25
mar. 2020

DOI : 10.1590/0102-311X00019620
Lindo, P. V. F. Informações demográficas. Kozenieski, E. M. (org.) II Caderno de Mapas de
Erechim. Goiânia: Espaço Acadêmico, 2018. Disponível em:
https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/2180. Acesso em: 25 mar. 2020. p. 15-17.
Monteiro, R. R.; Angelotti, R; Lautert, L. F. de C.; Angelin, P. E.; Portes, J. “Rodovírus” ou
“Caronavírus”? Mapas da Distribuição do Covid-19 na Região Sul do Brasil: Indícios da
contaminação por rodovias, Confins [Online], 45, 2020. Disponível em:
http://journals.openedition.org/confins/28246. Acesso em: 24 out. 2020.
Santos, M. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999.
Smith, N. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção de escala
geográfica. In: ARANTES, A. (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 132-75.
Souza, R. J. Paisagem e Socionatureza: olhares geográfico-filosóficos. Chapecó: UFFS, 2018.
Souza, R. J.; Lindo, P. V.; Kozenieski, E. M. Manifesto paisagístico por uma sociedade diferente
da natureza. 2020. Inédito.
Swyngedouw, E. A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e “urbanização-cyborg”. In:
Acselrad, H. (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de
Janeiro: D, P & A, 2001.
Tuan, Y-F. Paisagens do medo. São Paulo: UNESP, 2005.

Notas
1 Agradecemos ao Igor Catalão (Docente do Curso de Geografia da Universidade Federal da
Fronteira Sul) e ao Lee Perry Garwood (Diretor Executivo do Hospital Maryvale, Melbourne,
Austrália) pelos resumos na língua francesa e inglesa.
2 Conceito tomado de empréstimo de Swyngedouw (2001) para quem a socionatureza é o
resultado de um processo de hibridação da técnica produtiva com os entes naturais. Este conceito
confere novo sentido tanto para aquilo que é produzido pelo artifício humano/social quanto para
aquilo que é fruto da espontaneidade da natureza: a socionatureza trata de uma nova sociedade e
de uma nova forma de conceber a natureza de modo interdependente.
3 A pesquisa a respeito das áreas de exclusão social referencia-se nos dados e nos setores
censitários do censo demográfico de 2010. O estudo utilizou a metodologia aplicada no “Atlas:
exclusão/inclusão social no interior paulista”, publicado em 2004, desenvolvida pelo Centro de
Estudos e Mapeamentos da Exclusão Social para Políticas Públicas (CEMESPP). Trata-se de um
grupo de pesquisa interdepartamental da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Presidente Prudente, SP (FCT-UNESP).
4 O censo demográfico registra informações da população residente em determinado
domicílio. O IBGE (2013) define população residente como “População constituída pelos
moradores do domicílio na data de referência” (p. 212) e domicílio como “Local estruturalmente
separado e independente que se destina a servir de habitação a uma ou mais pessoas, ou que está
sendo utilizado como tal.” (p. 210).
5 O setor é uma unidade territorial de coleta das operações censitárias, definido pelo IBGE,
com limites físicos identificados, conformando áreas contínuas e respeitando a divisão político-
administrativa do Brasil. O número de domicílios num setor censitário pode variar entre 250 e
350.
6 As projeções foram produzidas tomando como referência os dados demográficos e os setores
censitários (IBGE, 2010) e os registros de óbitos de 2010 a 2018 dos registros das Estatísticas do
Registro Civil (IBGE, consultado em 30 de março de 2020). A partir desses dados para as faixas
etárias do censo demográfico de 2010 (50 a 59 anos; 60 a 69 anos e 70 anos ou mais)
identificamos um fator de manutenção da população no período 2010 a 2020, considerando o
registro de óbitos por idade. Os resultados obtidos para o município são os seguintes: faixa 60 a
69 anos em 2020) = 0,929 x população residente (faixa 50 a 59 anos em 2010); População
residentes (faixa 70 a 79 anos em 2020) = 0,818 x população residente (faixa 60 a 69 anos em
2010); e População residentes (faixa 80 anos ou mais em 2020) = 0,264 x população residente
(faixa 70 anos ou mais em 2010). Pelas condições de calamidade em função da COVID-19, não foi
possível acessar os dados do poder público municipal.
7 Com base nos dados de população residente total e da população residente na faixa etária em
tela, obtivemos o valor percentual de moradores com 60 a 69 anos. Entre todos os valores
identificamos aquele setor censitário que possuía o maior valor percentual e a partir deles
classificamos os demais setores em cinco categorias, ambas em intervalos com valores idênticos.
O valor em destaque representa os setores censitários que se enquadram na quarta e quinta
classes com maior valor percentual.
8 Aplica-se o mesmo princípio utilizado para população residente com 60 a 69 anos.
9 Para mais informações, ver “II cadernos de mapas de Erechim” (Kozenieski, 2018),
especificamente: “Erechim: percentual de domicílios particulares permanentes do tipo
apartamento (2010)”, p. 53; “Erechim: faixa de renda (2010), p. 20; mapas de distribuição dos
loteamentos (2010), p. 65-68; e mapas sobre ofertas e preços de terrenos (2010), p. 70-87.
Disponível em: https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/2180.
10 Para maiores informações sobre a metodologia deste mapeamento, verificar: CEMESPP -
CENTRO DE ESTUDOS E MAPEAMENTO DA EXCLUSÃO SOCIAL PARA POLÍTICAS
PÚBLICAS (Presidente Prudente). Atlas da exclusão/inclusão social do interior paulista – 2004.
Presidente Prudente, 2004. 1 CD-ROM. CEMESPP – CENTRO DE ESTUDOS E MAPEAMENTO
DA EXCLUSÃO SOCIAL PARA POLÍTICAS PÚBLICAS (Presidente Prudente). Atlas da
inclusão/exclusão social do interior paulista – 2014. Presidente Prudente: Recuperado de
http://www.fct.unesp.br/#!/pesquisa/grupos-de-estudo-epesquisa/cemespp/producao-
cientifica/relatorios/.

Índice das ilustrações


Prancha 1: Erechim, mapas da população de 50 anos ou mais por setor
Título
censitário
Créditos Fonte: IBGE - Censo demográfico (2010).
http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/40350/img-
URL
1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 925k
Mapa 4 - Erechim-RS: densidade demográfica por setor censitário
Título
(2010)
Créditos Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.

URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/40350/img-
2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 478k
Mapa 5 - Erechim-RS: Domicílios com 6 ou mais moradores por setor
Título
censitário (2010)
Créditos Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.
http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/40350/img-
URL
3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 475k
Título Mapa 6 - Erechim-RS: Exclusão/inclusão social, 2010

Créditos Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado por Lindo e


Martinuci (2012).
http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/40350/img-
URL
4.jpg
Ficheiro image/jpeg, 475k
Título Mapa 7 - Erechim-RS: Áreas prioritárias para ações contra o COVID-19
Créditos Fonte: Síntese elaborada pelos autores.
http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/40350/img-
URL
5.png
Ficheiro image/png, 611k

Para citar este artigo


Referência eletrónica
Paula Lindo, Éverton de Moraes Kozenieski e Reginaldo José de Souza, «COVID-19 e
Geografia: perplexidade atual e a cartografia a serviço da saúde pública», Confins [Online],
52 | 2021, posto online no dia 17 novembro 2021, consultado o 10 agosto 2022. URL:
http://journals.openedition.org/confins/40350; DOI: https://doi.org/10.4000/confins.40350

Autores
Paula Lindo
Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Erechim, paula.lindo@uffs.edu.br

Éverton de Moraes Kozenieski


Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Erechim, everton.kozenieski@uffs.edu.br

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O rural agrícola na metrópole: o caso de Porto Alegre/RS [Texto integral]
Le rural agricole dans la métropole : le cas de Porto Alegre/RS
The agricultural rural in the metropolis: the case of Porto Alegre/RS
Publicado em Confins, 35 | 2018
Reginaldo José de Souza
Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Erechim, reginaldo.souza@uffs.edu.br

Direitos de autor

Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional - CC BY-NC-


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