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futebol e o machismo
Stéfany Pereira1
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
Este texto faz parte da pesquisa realizada entre 2021-2022, que constitui o primeiro trabalho
de conclusão de curso (TCC) em Geografia-licenciatura, da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS), campus Erechim, sobre a temática de Gênero e Geografia, intitulado “A narrativa
de mulheres torcedoras da dupla grenal e o machismo em suas trajetórias de vida”. O TCC
está vinculado ao grupo de pesquisa em Geografia Gênero, Natureza e Vida Cotidiana
1Graduada em Geografia-Licenciatura pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim.
2Pesquisadora e professora adjunta na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim. E-mail:
paula.lindo@uffs.edu.br
(GENVI)3. Na pesquisa, investigamos o machismo na trajetória de vida de seis mulheres
torcedoras de dois clubes futebolísticos (Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club
Internacional), do estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Neste texto, compartilharemos a experiência com o Relief Maps. Por meio desta metodologia
feminista, compreendemos como, nos espaços masculinizados do futebol, mulheres reagem
e lutam contra os preconceitos heteronormativos de uma sociedade patriarcal. Segundo Silva
(2008, p. 5-6), a heteronormatividade e as hierarquias sexuais precisam ser questionadas
para outras realidades serem visíveis. O autor também entende que “na geografia este
pensamento se manifesta nos estudos das chamadas ‘geografia feminista’ e ‘geografia das
sexualidades’” (2008, p. 6).
Silva (2007, p. 3), uma de nossas referências teóricas, aponta, em seu artigo “Amor, paixão e
honra como elementos da produção do espaço cotidiano feminino”, que a Geografia feminista
desafia o conhecimento geográfico via epistemologia e metodologia, com o objetivo de
questionar a Geografia hegemonicamente branca e masculina, denunciando as
desigualdades de gênero. Ademais, Silva (2007, p. 4) expõe que “a geografia feminista tem
contribuído sensivelmente com a geografia cultural contemporânea através da incorporação
de gênero, identidade e representação no espaço social”. A autora também comenta que
“diferentes espaços podem instituir diferentes performances de corpo”.
3 O GENVI iniciou suas atividades como grupo de pesquisa em 2021, almejando ser um espaço de produção
acadêmica na interface pesquisa-ensino-extensão a respeito de temas relacionados à vida cotidiana, questões de
gênero e sexualidade, representações e a questão ambiental. Para mais informações consultar:
http://www.uffs.edu.br/genvi.
Após pesquisar e estudar referências teóricas como Giulianotti (2002), Trevisan (2019),
Bresque (2020), Campos (2006) e Teixeira (2016), para discutir o futebol, Doren Massey
(2008), para compreensão do espaço, Butler (1988), Scott (1995), Silva (2009), Silva, Ornat
e Chimin Jr. (2011), Silva e Ornat (2020), para “operacionalizar” e entender as relações de
gênero, entrevistamos (durante os meses de dezembro 2021 a fevereiro de 2022) seis
mulheres torcedoras do clube de futebol do Grêmio e Internacional4. Para tal escolha,
utilizamos as variáveis idade, orientação sexual, renda e etnia distintas. Elaboramos questões
para entender como elas se conectaram e vivem o mundo do futebol desde a infância até os
dias atuais5. Por meio das trajetórias individuais, identificamos todos os tipos de violências
sofridas (psicológica, física, moral etc.). Elas têm idades que variam de 20 a 34 anos e rendas
salariais de menos de um salário-mínimo até quatro salários-mínimos. Três delas se
identificam como bissexuais, duas como heterossexuais e uma como lésbica, e todas se
identificam como cisgêneros. Duas se reconhecem como negras e quatro como brancas.
DESENVOLVIMENTO
Pesquisas recentes como de Lindo (2021), Silva e Cesar (2021), por exemplo, revelavam que
há, no Brasil, geógrafas e geógrafos, em diferentes espaços, denunciando, resistindo e
buscando direitos referentes ao gênero e às sexualidades. “Há grupos de pesquisa,
pesquisadoras, pesquisadores e estudantes que tensionam o campo de poder hegemônico e
hierárquico do saber com suas produções e posicionamento acadêmico (Lindo, 2021, p. 279)”.
Estudos constatam que há um aumento de trabalhos apresentados com esta temática em
Grupos de Trabalhos (GTs) em eventos nacionais e internacionais, bem como mais
dissertações e teses em Programas de Pós-Graduação em Geografia no Brasil, nos últimos
dez anos.
Pensar e discutir sobre o lugar das mulheres em uma sociedade patriarcal nos permitiu
elaborar perguntas relacionadas ao universo do futebol e ao país do futebol, que, de início,
4 Para mais informações ver: PEREIRA, Stéfany. O machismo na trajetória de vida de seis mulheres
torcedoras da dupla grenal. 2022. 87 f. TCC (Graduação) – Curso de Geografia, Universidade Federal da
Fronteira Sul, Erechim, 2022. Disponível em: https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/5626.
não democratizou a prática esportiva para todos os grupos sociais, tampouco se fazia questão
da presença de mulheres, pobres e pretos. No entanto, apesar das desigualdades de gênero
e raça, mulheres e outros grupos que desejaram participar do universo futebolístico lutaram e
construíram relações afetivas nesse espaço.
Vale lembrar que Massey (2008) nos conduz para compreensão dos espaços pluralizados, no
qual os sujeitos constroem trajetórias, principalmente com outros grupos também pluralizados.
A autora ainda considera que o espaço está sempre em um processo de construção. E
entendemos o futebol como produto e produtor do espaço geográfico, como um sistema
dinâmico capaz de reproduzir a sociedade que vivemos bem como seus ideais. Por essa
razão, o futebol deve ser um espaço democrático, politizado e debatido. Logo, pode ser um
assunto acadêmico, pesquisado e discutido por mulheres, por geógrafas, inclusive para
compreender as vivências de outras mulheres.
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Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível superior.
orientaram a elaborar o objetivo principal do Trabalho de Conclusão de Curso, que foi
identificar, nas narrativas de um grupo de mulheres de idade, sexualidade e etnia diferentes,
torcedoras da dupla Grenal, as formas do machismo vivenciado no dia a dia por elas.
Futebol
Também é interessante atentar para o papel dos meios de comunicação, os quais, apesar de
noticiar ou mencionar a situação das mulheres no futebol, ainda tem um foco predominante
no público masculino. Ações em clubes vêm sendo feitas e tomadas, muito pela
reinvindicação de mulheres nesse espaço. Giulianotti (2002, p. 208) traz que “Os clubes de
futebol e as autoridades não são, claro, responsáveis pela educação [...]”, porém, “[...]
reproduzem essas profundas desigualdades ao abrir o futebol para um desagrilhoado sistema
de mercado, prejudicando as pessoas por causa de sua classe (e, da mesma forma, e sua
raça e gênero)”.
Para a autora (2002, p. 173), nas relações sociais, uma mulher negra vivencia o machismo
de um modo diferente de uma mulher branca, e isso ocorre da mesma maneira ao comparar
a vivência do racismo de uma mulher negra com um homem negro. Não há, dessa forma,
como desconsiderar as identidades sociais de um determinado corpo, pois “tais elementos
diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos
de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres”(Crenshaw,
2002, p. 173).
A autora (2002) ainda cita algumas realidades de mulheres em situação de tráfico sexual, em
que a maioria delas são negras ou mulheres imigrantes e pobres, as quais, frequentemente,
sofrem abusos sexuais. Nesse sentido, a estrutura social de classes atravessa com outras
estruturas de gênero, raça, sexualidade, etnia e religião, criando um contingente de
vulnerabilidades sociais.
Relief Maps
O Relief Maps é uma metodologia de pesquisa qualitativa criada e desenvolvida por Maria
Rodó-de-Zárate. O objetivo foi o de demonstrar de forma interseccional as violências sofridas
por grupos subalternizados da sociedade, além de considerar os privilégios que cada conjunto
de indivíduos tem. A autora (2014) afirma que os mapas revelam como se manifestam as
relações de poder de forma espacial, ou seja, como se dá a interação de privilégios e
opressões em determinadas localidades do espaço geográfico.
Com essa metodologia, não apenas os estudos de gêneros ganham novas nuances, como
toda a análise social das relações interseccionais. Rodó-de-Zárate (2014) diz que o Relief
Maps auxilia a conceituar a interseccionalidade, levando em consideração a produção do
espaço e as relações de poder. Ela reitera que:
Com isso, os “mapas de relevo” relacionam três dimensões: estruturas de poder, experiência
vivida e lugares. “As estruturas de poder são a dimensão social” (Rodó-de-Zárate, 2014, p.
5). Dessa maneira, o que pode ser considerado são estruturas que se tornam relevantes para
a análise da sua própria pesquisa interseccional. Na nossa pesquisa, escolhemos cinco
estruturas de poder: gênero, orientação sexual, idade, etnia e renda. Mulheres interagem em
espaços considerados masculinos, e temos a opção pelo olhar interseccional e pelo Relief
Maps, que carrega o pano de fundo da não exclusão, partindo do pressuposto da defesa da
mulher por espaço, voz e vez no futebol.
Antes de relatar a vivência das torcedoras, vamos explicar os elementos dos mapas. No canto
esquerdo, eixo vertical, temos a classificação de bem-estar a mal-estar. No eixo horizontal,
estão os lugares que a torcedora frequenta para assistir futebol e já classificados em alívio,
opressão, neutro e/ou controverso. Por fim, temos as linhas coloridas que correspondem à
legenda: gênero em laranja; orientação sexual em azul claro; idade em azul escuro; etnia em
verde; classe social/renda em vermelho.
A seguir, apresentaremos três exemplos de Relief Maps com três das seis entrevistadas
(figura 1, 2 e 3).
A torcedora Mayara7, de 25 anos, mulher branca, identifica que não se sente oprimida em
relação a sua cor/etnia nos lugares que frequenta, pois, a sua linha permanece em bem-estar
constante, assim como sua idade.
Por ser uma mulher de orientação sexual lésbica, a entrevistada identifica um constante
desconforto na rua, principalmente no que se refere a dias de jogos, pois a torcedora não
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Todas as entrevistadas foram identificadas com nomes de atuais jogadoras dos clubes Grêmio e
Internacional.
performa os padrões de feminilidade esperados. Também por identificar-se como mulher cis
lésbica, a sua linha do gênero mostra mal-estar e desconforto perante a localidades, como
rua e casa de familiares. Para a entrevistada, a sua residência própria é o único local que
apresenta as cinco estruturas em bem-estar total. Em uma de suas falas, Mayara relata sobre
a violência e sua aparência:
[...] vocês não tão me vendo, mas eu tenho cabelo curto e as vezes eu passo por
homem, pra um que tá com raiva é só vir por trás. [...] Então é o medo que a gente
sente e pelo fato de eu também não representar ser uma mulher, eles pulam. E,
também por eu ser mulher, que a gente sabe que o homem agride, isso não é um
impeditivo.
A torcedora citou que, em um determinado momento de sua vida, se afastou do futebol porque
ele representava a masculinidade.
Assim ó, a mulher gosta de futebol, tem mulher que gosta de futebol, mas não fala.
Foi que nem aconteceu comigo, eu queria jogar, eu queria torcer, mas teve um
períodinho da minha vida que eu tive que esconder isso porque isso é para homens
e não adianta. [...] Então quando eu fui jovem eu me afastei do futebol porque eu
pensava não, as pessoas não podem saber que eu gosto porque é coisa de homem
e eu sou lésbica, não quero que me associem, não quero que descubram.
Além de representar o estigma masculinizado, o fato de a torcedora se identificar como lésbica
afetou, pois a orientação sexual foge da heteronormatividade.
Se alguém mexer comigo eu vou ter que pegar, baixar a cabeça e ficar quieta,
porque a gente não sabe o que as pessoas tão carregando, quem que é essa
pessoa, a pessoa tem dificuldade, então tipo, tem que infelizmente não revidar, não
só na...nessas, ali no consulado, mas em qualquer festa é assim também sabe?!
Então a gente tem que ignorar pra não acontecer o pior. Aqui a violência é muito
explícita, tipo a gente tá vendo e a gente vê muita notícia horrível, coisa que a gente
nunca viu, sabe?!
Quando questionada se muda de comportamento nesses lugares citados, a torcedora
respondeu que sim. Também salientou que, se fosse sozinha ou com uma namorada nos
lugares mencionados, teria que se comportar de modo diferente, por sentir medo. Diz se sentir
mais segura quando está acompanhada de um homem.
O último exemplo, Djeni, mulher branca, de 29 anos, identifica-se como bissexual e apresenta
diversos pontos sinuosos em seu mapa. No entanto, em uma sociedade racista como no
Brasil, é fácil entender por que há uma constância na linha verde de etnia da entrevistada. A
torcedora frequenta diversos lugares para acompanhar o esporte e classificou alguns como
lugares de opressão, como a casa dos padrinhos e o estádio.
Figura 3 – Relief Map da entrevistada Djeni
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identificamos que todas sofreram e tiveram algum tipo de vivência com ações e atitudes
machistas nos espaços selecionados em cada mapa. Também identificamos que muitas delas
preferem não sair sozinhas, para evitar qualquer tipo de constrangimento e/ou qualquer coisa
que fira sua integridade física, psicológica e moral. Visualizamos, por meio da metodologia
interseccional, a relação das mulheres com os espaços domésticos. O lugar “residência de
familiares”, “residência da entrevistada”, “residência de amigos da entrevistada” são
representados nos Relief Maps como espaços neutros e de alívio e bem-estar, quando o
assunto é torcer pelo futebol.
Verificamos que a luta pela trajetória das mulheres torcedoras no espaço machista e de
desigualdades é constante. Através de seus relatos entendemos os seus sentimentos em
relação ao futebol, às opressões e aos locais que frequentam. E, por consequência, clamamos
por um mundo menos desigual, onde diversos grupos possam performar livremente sem que
o medo nos e as paralisem. Por uma esfera futebolística que dê vozes a torcedoras,
jornalistas, narradoras, jogadoras e todas que constroem esse espaço e que lutam pela
diminuição de qualquer forma e expressão de violência.
REFERÊNCIAS
Alabarces, P. (2012). Crónicas del aguante: fútbol, violencia y política. Buenos Aires: Capital
Intelectual.
Cesar, T., Silva, J. (2021). Geografia brasileira, poder, gênero e prestígio científico. Revista
da ANPEGE. v. 17, n. 32, p. 244-258. Disponível em:
https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege/article/view/12473/pdf.
Massey, D. (2008). Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil.
Silva, J, M. (2007). Amor, paixão e honra como elementos da produção do espaço cotidiano
feminino. Espaço e cultura, UERJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 97-109. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/3515.
Silva, J. M., Ornat, M. J., Chimin Junior, A. B. (Orgs.) 2011. Espaço, gênero e masculinidades
plurais. Ponta Grossa, PR: Toda Palavra.
TREVISAN, M. (2019). A história do futebol para quem tem pressa. Rio de Janeiro: Editora
Valentina.