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L.

Frank Baum

O Tigre Faminto e o Leão Covarde


Tradução
Laura Scaramussa Azevedo

Revisão
Lilian Scaramussa Azevedo
O Tigre Faminto e o Leão Covarde

The Cowardly Lion and the Hungry Tiger


— Publicado em 1913

No esplêndido palácio da Cidade das Esmeraldas, coração da


mágica Terra de Oz, fica a Sala do Trono, onde a Princesa Ozma, a
Governante, fica por uma hora todos os dias, sentada em seu trono
de esmeraldas brilhantes, ouvindo os problemas do seu povo, que
anseia contá-los a ela. Em tais ocasiões, personalidades
importantes de Oz, como o Espantalho, Jack Cabeça-de-Abóbora,
Tique-Taque, o Pontual, o Homem de Lata, o Mágico de Oz, o
Desajeitado, e outras criaturas mágicas se reúnem em volta do
trono de Ozma. A Pequena Dorothy tem lugar garantido aos pés de
Ozma e, agachadas, uma em cada lado do trono, ficam duas feras
enormes, conhecidas como o Tigre Faminto e o Leão Covarde.
Essas duas feras são guardiãs-chefes de Ozma, mas, como todos
amam a bela Princesa, nunca houve problema algum na grande
Sala do Trono, as guardiãs nunca fizeram nada além de parecerem
ferozes e solenes, ficando em silêncio até que a Audiência Real
acabasse e as pessoas fossem para suas casas.
É claro que ninguém ousaria fazer nada de errado enquanto o Tigre
e o Leão estivessem agachados ao lado do trono, mas a verdade é
que é muito raro que o povo de Oz faça algo de errado. Logo, os
grandes guardas de Ozma são mais ornamentais do que tudo, e
ninguém sabe disso melhor que as próprias feras.
Um dia, depois que todos haviam deixado a Sala do Trono exceto o
Tigre Faminto e o Leão Covarde, o Leão bocejou e disse o seguinte
ao seu amigo:
— Estou ficando cansado desse trabalho. Ninguém nos teme nem
presta atenção em nós.
— Isso é verdade — respondeu o grande Tigre, ronronando
baixinho. — Nós poderíamos muito bem estar nas grandes selvas
onde nascemos ao invés de estarmos protegendo Ozma quando ela
não precisa ser protegida, e eu fico faminto o tempo inteiro.
— Eu tenho certeza de que você tem comida o suficiente — disse o
Leão, abanando a cauda devagar de um lado para o outro.
— Talvez seja o suficiente, mas não é o tipo de comida que eu
gostaria de comer — respondeu o Tigre. — Estou com vontade de
devorar crianças gordinhas. Tenho um grande desejo de devorá-las.
Talvez com isso o povo de Oz teria medo de mim e eu me tornaria
mais importante.
— É verdade — concordou o Leão. — Você causaria um tumulto
bem grande se devorasse pelo menos uma criança gordinha.
Quanto a mim, minhas garras são afiadas como agulhas e fortes
como pés-de-cabra, meus dentes são firmes o suficiente para rasgar
uma pessoa em pedacinhos em poucos segundos. Se eu atacasse
um homem e o partisse em pedacinhos, causaria um grande tumulto
na Cidade das Esmeraldas, as pessoas se ajoelhariam diante de
mim e implorariam pela minha misericórdia. Eu acho que isso me
conferiria uma importância considerável.
— Depois de partir a pessoa em pedacinhos, o que você faria? —
perguntou o Tigre, sonolento.
— Depois, eu rugiria tão alto que faria a terra tremer e fugiria para a
selva para me esconder antes que alguém pudesse me atacar ou
me matar pelo que eu fiz.
— Entendo —, assentiu o Tigre. — Você é mesmo covarde.
— Mas é claro. É por isso que me chamo Leão Covarde. Por isso
sempre fui tão tranquilo e pacífico, mas estou muito cansado de ser
tranquilo — acrescentou o Leão, com um suspiro. — Seria divertido
causar uma algazarra para mostrar às pessoas a fera terrível que eu
sou.
O Tigre permaneceu em silêncio por alguns minutos, refletindo
bastante enquanto calmamente lavava o rosto com sua pata
esquerda. Então, ele disse:
— Estou ficando velho e ficaria feliz em devorar ao menos uma
criança gordinha antes de morrer. Suponha que surpreendamos o
povo de Oz e provemos o nosso poder. O que você acha? Vamos
sair daqui como sempre fazemos e vou devorar a primeira criança
que encontrarmos, e você partirá em pedacinhos o primeiro homem
ou mulher que encontrarmos. Depois, nós dois sairemos pelos
portões da cidade, iremos galopar através do país e nos esconder
na selva antes que alguém nos impeça.
— Tudo bem, estou dentro — concordou o Leão, bocejando de
modo que exibia duas fileiras de dentes terrivelmente afiados.
O Tigre se levantou e esticou seu corpo grande e esguio.
— Vamos — disse ele.
O Leão se levantou e provou que era o maior dos dois, pois era
quase tão grande quanto um cavalo pequeno.
Eles saíram do palácio e não encontraram ninguém. Passaram
pelos belos jardins, pelas fontes e pelos adoráveis campos de flores
e não encontraram uma pessoa sequer. Então, destrancaram um
portão, entraram numa rua da cidade e não encontraram ninguém.
— Estou imaginando qual é o gosto de uma criança gordinha —
destacou o Tigre, enquanto eles marchavam majestosos, lado a
lado.
— Eu acho que tem gosto de noz-moscada — disse o Leão.
— Não — contestou o Tigre — acho que tem gosto de jujuba.
Eles viraram a esquina, mas não encontraram ninguém, pois o povo
da Cidade das Esmeraldas estava acostumado a tirar uma soneca
nesse horário da tarde.
— Estou imaginando em quantos pedaços eu devo partir uma
pessoa — declarou o Leão, num tom pensativo.
— Sessenta seria o bastante — sugeriu o Tigre.
— Será que doeria mais que parti-la em cerca de doze pedaços? —
questionou o Leão, com um tremor na voz.
— Quem liga se doerá ou não? — rugiu o Tigre.
O Leão não respondeu. Eles entraram em uma rua menor, mas não
encontraram ninguém.
De repente, ouviram uma criança chorando.
— Aha! — exclamou o Tigre. — Aí está a minha carne.
Ele correu, virando a esquina. O Leão o seguiu e eles encontraram
uma bela criança gordinha sentada no meio da rua, chorando como
se estivesse com um grande problema.
— O que foi? Qual o problema? — perguntou o Tigre, agachando ao
lado da criança.
— Eu... Eu... Eu perdi a minha mã-mã-mamãe! — berrou a criança.
— Ah, pobrezinha — disse a grande fera, afagando a cabeça da
criança cuidadosamente com sua pata. — Não chore, minha
querida, pois sua mamãe não pode estar longe e eu vou lhe ajudar a
encontrá-la.
— Vá em frente — asseverou o Leão, que estava ao lado.
— Para onde? — perguntou o Tigre, olhando ao redor.
— Vá em frente, devore essa criança gordinha.
— Oh, criatura terrível! — disse o Tigre, em tom de reprovação. —
Por que você quer que eu coma essa pobre criancinha perdida, que
não sabe onde sua mãe está? — E a fera pegou a pequena em
suas patas fortes e peludas e tentou confortá-la, balançando-a
devagar de um lado para o outro.
O Leão rugiu baixinho e parecia muito decepcionado, mas, naquele
momento, um grito chegou aos seus ouvidos e uma mulher veio
correndo de uma casa até a rua. Ao ver sua filha nos braços do
monstruoso Tigre, a mulher gritou novamente e correu para resgatá-
la, mas, na pressa, seu pé ficou preso em sua saia e ela tropeçou
com tudo, caindo no chão com uma pancada tão forte que ela viu
muitas estrelas no céu, apesar de ainda ser dia. E lá ela ficou,
impotente, toda desajeitada e sem conseguir se mexer.
Com um salto e um rugido alto como um trovão, o Leão chegou ao
seu lado e, com sua forte mandíbula, ele a puxou pelo vestido e a
levantou.
— Pobrezinha! Você se machucou? — perguntou ele, gentilmente.
Com a respiração ofegante, a mulher lutou para se soltar do Leão e
tentou andar, mas ela estava mancando muito e caiu outra vez.
— Meu bebê! — exclamou ela, implorando.
— O bebê está bem, não se preocupe — respondeu o Leão. E
acrescentou:
— Fique quieta agora, vou te levar de volta para sua casa, e o Tigre
Faminto levará a criança.
O Tigre, que chegou ao local com a criança em seus braços,
perguntou espantado:
— Você não vai parti-la em sessenta pedaços?
— Não, nem em seis — respondeu o Leão, indignado. — Não sou
tão bruto a ponto de destroçar uma pobre mulher que se machucou
tentando salvar sua filha perdida. Se você é tão feroz, cruel e
sedento por sangue, pode me deixar e seguir sozinho, pois não
quero me associar a você.
— Está bem — respondeu o Tigre. — Eu não sou cruel, nem um
pouco, só faminto. Mas, pensei que você fosse cruel.
— Graças aos céus eu sou uma figura respeitável — disse o Leão,
com dignidade. Então, levantou a mulher com muito cuidado e a
levou para casa, onde a deixou em um sofá. O Tigre seguiu com a
criança e a deixou em segurança ao lado da mãe. A pequena
gostou do Tigre Faminto e, pegando a enorme fera pelas duas
orelhas, deu um beijinho em seu nariz para mostrar que estava
grata e feliz.
— Muito obrigada — disse a mulher. — Já ouvi dizer, algumas
vezes, como vocês são boas feras, apesar de seu poder para fazer
mal à humanidade, e agora sei que as histórias são verdadeiras.
Acho que vocês nunca tiveram um pensamento ruim sequer.
O Tigre Faminto e o Leão Covarde abaixaram suas cabeças e não
olharam nos olhos um do outro, pois ambos estavam
envergonhados e abatidos. Eles saíram de fininho e voltaram às
ruas até que, por fim, retornaram aos limites do palácio, onde
voltaram aos lugares belos e confortáveis que ocupavam na parte
de trás do lugar. Foram quietos até lá para refletirem sobre sua
aventura.
Depois de um tempo, o Tigre disse, sonolento:
— Não acredito que crianças gordinhas tenham gosto de jujuba.
Tenho quase certeza de que elas têm gosto de torta de framboesa.
Como eu queria provar uma criança gordinha!
O Leão grunhiu com desdém.
— Você é um charlatão — disse ele.
— Sou? — devolveu o Tigre, zombando. — Diga-me, então, em
quantos pedaços você costuma partir suas vítimas, meu corajoso
Leão?
O Leão bateu a cauda no chão, impaciente.
— Partir alguém em pedaços sujaria as minhas garras e mancharia
meus dentes — disse ele. — Estou feliz que não me sujei nesta
tarde machucando aquela pobre mãe.
O Tigre olhou firme para ele e depois deu um bocejo bem, bem
grande.
— Você é um covarde — destacou ele.
— Bem — concluiu o Leão —, é melhor ser covarde do que fazer o
mal.
— É claro — respondeu o outro. — E isso me lembrou de que quase
perdi minha reputação, pois se tivesse devorado aquela criança
gordinha, agora eu não seria mais o Tigre Faminto. Para mim, é
melhor ter fome do que ser cruel a uma pequena criança.
Então, eles apoiaram suas cabeças em suas patas e foram dormir.
Sobre o Autor

Lyman Frank Baum nasceu em 15 de maio de 1856 na cidade de


Chittenango, EUA. Ele ficou muito conhecido por suas histórias
direcionadas ao público infantil, sendo a obra mais notória a série O
Mágico de Oz. O escritor tinha ancestrais alemães e britânicos, e
era o sétimo dos nove filhos de Cynthia Ann e Benjamin Ward
Baum. Foi educado em casa até os doze anos, quando foi enviado a
uma academia militar onde passou dois anos. Devido à severidade
do local, Baum sofreu um ataque cardíaco.
O autor escrevia desde muito jovem. Com a ajuda de seu irmão
Henry, ele produziu o The Rose Lawn Home Journal, que
distribuíam de graça aos amigos e familiares. Aos dezessete anos
ele criou outro jornal chamado The Stamp Collector, que o fez
começar a trocar selos com os amigos. Em 1880, fundou um jornal
de publicação mensal, o The Poultry Record e, quando tinha 30
anos, seu primeiro livro foi publicado.
Baum iniciou a carreira nas artes com o teatro. Ele participou de
algumas peças sob pseudônimos e em 1880 seu pai construiu um
teatro para ele em Richburg, Nova York, fazendo com que Baum
começasse a escrever peças e formar uma companhia. Sua peça,
The Maid of Arran, a qual ele escreveu, estrelou e compôs a trilha
sonora, fez certo sucesso, o que permitiu que a peça fosse
apresentada em outros teatros. Enquanto estava em tour com a
peça, o escritor se casou com Maud Gage.
Em 1888, Baum e a esposa se mudaram para o estado de Dakota
do Sul, onde ele abriu a loja Baum’s Bazaar, que acabou por falir.
Com isso, o autor passou a editar o jornal local, chamado The
Aberdeen Saturday Pioneer. As paisagens que ele viu nessa fase de
sua vida inspiraram as descrições do Kansas nas histórias de Oz.
O jornal em que Baum trabalhava também faliu, fazendo com que o
escritor e sua família se mudassem para Chicago, onde ele
começou a trabalhar no Evening Post. Em 1897, ele fundou a revista
The Show Window e, nesse mesmo ano, publicou Mother Goose in
Prose, uma coleção de histórias infantis que teve sucesso
financeiro. Em 1900 publicou seu maior sucesso, O Mágico de Oz.
Além dos livros da série de Oz, Baum escreveu outros trabalhos de
ficção sobre vários pseudônimos como Edith Van Dyne, John Estes
Cooke e Floyd Akers. Em 5 de maio de 1919, Baum sofreu um
derrame, entrando em coma, mas o escritor acordou no dia
seguinte, conseguindo se comunicar com sua esposa antes de
falecer no dia 6 de maio.

Conheça outras obras publicadas pelo


Literatura Descoberta
• O Sequestro do Papai Noel, L. Frank Baum
• Acampamento dos Mortos, Ambrose Bierce
• Contos de Horror, Ambrose Bierce
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• Uma Emboscada Surpreendente, Ambrose Bierce
• A Arma, Philip K. Dick
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• Uma Conversa Sobre Multidões, O. Henry
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• Como a Primeira Carta Foi Escrita, Rudyard Kipling
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• Neblinas Marítimas, Robert Louis Stevenson
• Céu ou Inferno?, Mark Twain
• O Conto do Californiano, Mark Twain
• A Terra dos Cegos, H.G. Wells
• O Fabricante de Diamantes, H.G. Wells
• Sob o Luar, H.G. Wells
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