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FABULAS FABULOSAS de Millôr Fernandes

O gato e a barata

A baratinha velha subiu pelo pé do copo quase cheio de vinho, que tinha sido largado a um canto
da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância,
que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu
dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais,
tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua
aflição, no alto do copo.
- Gatinho, meu gatinho – pediu ela –, me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair eu deixo
você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva. - Você deixa mesmo eu engolir você? –
disse o gato. - Me saaalva! – implorou a baratinha. – Eu prometo.
O gato virou o copo com uma patada, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se
viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada. - Que é isso? –
perguntou o gato. – Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixava eu
comer você inteira.
- Ah, ah, ah! – ria então a barata, sem poder se conter. – E você é tão imbecil a ponto de acreditar
na promessa de uma barata velha e bêbada?

Moral: Às vezes a auto depreciação nos livra do pelotão

Cão! Cão! Cão!

Abriu a porta e viu o amigo que há tanto não via. Estranhou apenas que ele, amigo, viesse
acompanhado de um cão. O cão não muito grande mas bastante forte, de raça indefinida, saltitante
e com um ar alegremente agressivo. Abriu a porta e cumprimentou o amigo, com toda efusão.
"Quanto tempo!". O cão aproveitou as saudações, se embarafustou casa adentro e logo o barulho
na cozinha demonstrava que ele tinha quebrado alguma coisa.
O dono da casa encompridou um pouco as orelhas, o amigo visitante fez um ar de que a coisa não
era com ele. "Ora, veja você, a última vez que nos vimos foi..." "Não, foi depois, na..." "E você,
casou também?" O cão passou pela sala, o tempo passou pela conversa, o cão entrou pelo quarto
e novo barulho de coisa quebrada. Houve um sorriso amarelo por parte do dono da casa, mas
perfeita indiferença por parte do visitante. "Quem morreu definitivamente foi o tio... você se lembra
dele?" "Lembro, ora, era o que mais... não?"
O cão saltou sobre um móvel, derrubou o abajur, logo trepou com as patas sujas no sofá (o tempo
passando) e deixou lá as marcas digitais de sua animalidade. Os dois amigos, tensos, agora
preferiam não tomar conhecimento do dogue. E, por fim, o visitante se foi. Se despediu, efusivo
como chegara, e se foi. Se foi.
Mas ainda ia indo, quando o dono da casa perguntou: "Não vai levar o seu cão?" "Cão? Cão? Cão?
Ah, não! Não é meu, não. Quando eu entrei, ele entrou naturalmente comigo e eu pensei que fosse
seu. Não é seu, não?
"
Moral: Quando notamos certos defeitos nos amigos, devemos sempre ter uma conversa esclarecedora.
O grande sábio e o imenso tolo

Por um acaso do destino, um velho e sábio professor e um jovem e estulto aluno se encontraram
dividindo bancos gêmeos num ônibus interestadual. O estulto aluno, já conhecido do sábio
professor exatamente por sua estultice, logo cansou o mestre com seu matraquear ininterrupto e
sem sentido. O professor aguentou o quando pôde a conversa insossa e descabida. Afinal,
cansado, arranjou, na sua cachola sábia, uma maneira de desativar o papo inútil do aluno. Sugeriu:
- Vamos fazer um jogo que sempre proponho nestas minhas viagens. Faz o tempo passar bem mais
depressa. Você me faz uma pergunta qualquer. Se eu não souber responder, perco cem pratas.
Depois eu lhe faço uma pergunta. Se você não souber responder, perde cem.
- Ah, mas isso é injusto! Não posso jogar esse jogo – disse o aluno, provando que não era tão tolo
quanto aparentava -, eu vou perder muito dinheiro! O senhor sabe infinitamente mais do que eu. Só
posso jogar com a seguinte combinação: quando eu acertar, ganho cem pratas. Quando o senhor
acertar, ganha só vinte.
- Está bem – concordou o professor – pode começar.
- Me diz, professor – perguntou o aluno , o que é que tem cabeça de cavalo, seis patas de elefante e
rabo de pau?
O professor, sem sequer pensar, respondeu:
- Não sei; nem posso saber! Isso não existe.
- O senhor não disse se devia existir ou não. O fato é que o senhor não sabe o que é – argumentou
o aluno – e, portanto, me deve cem pratas.
- Tá bem, eu pago as cem pratas – concordou o professor pagando -, mas agora é minha vez. Me
diz aí: o que é que tem cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
- Não sei – respondeu o aluno. E, sem maior discussão, pagou vinte pratas ao professor.

Moral: A sabedoria, nos dias de hoje, está valendo 20% da esperteza.

Hierarquia

Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de
brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas (1).
Eis que, subitamente, o leão defronta com um pequeno rato, o ratinho mais menor que ele já tinha
visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente pra escapar, o leão gritava:
"Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e
nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe
disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!" E soltou-o .
O rato correu o mais que pode, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: "Será que V.
Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar com uma lesma que eu conheço e
quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!" (2)
(1) Quer dizer: muitas e más.
(2) Na grande hora psicanalítica, que soa para todos nós, a precisão de linguagem é fundamental.

MORAL: Afinal ninguém é tão inferior assim.

SUBMORAL: Nem tão superior, por falar nisso.


O Leão e o Rato

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por
desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa
rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a
viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza
dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas
quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que
os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:

- Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta,
como hors-d'oeuvres de uma futura refeição.

Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou
um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. "A amizade resistiria à fome?" - pensou ele. E,
sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo(?)
faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo
pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do
ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar
onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse um animal queijífero, lambeu
os beiços e exclamou:

- Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas,
antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha
natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a
tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você,
meu irmão! A parte do rato para o rato; para o Leão, a parte do Leão.

A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma
validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do
rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão
segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato
pelo seu alto critério:

- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é que se chama justiça. Quando eu
voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os
súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão
pensar que lambia os buracos de queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam
seus fracos pulmões:
- Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!

MORAL: Os ratos são iguaizinhos aos homens.


A morte da tartaruga

O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãe foi ao quintal com
ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha
morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A
mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino.
“Cuidado, senão você acorda seu pai.” Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no
colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro. A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu
que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu,
por fim, uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte
do seu animalzinho de estimação.
Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro e veio, estremunhado, ver de que se tratava. O
menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: “Está aí assim há duas horas, chorando que
nem maluco. Não sei mais o que faço. Já lhe prometi tudo, mas ele continua berrando desse
jeito”. O pai examinou a situação e propôs:
“Olha, Henriquinho, se a tartaruga está morta, não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e venha
cá com o papai”. O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto ao tanque e seguiu o pai pela
mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garotinho no colo e disse: “Eu sei que você sente muito
a morte da tartaruguinha. Eu também gostava bastante dela. Porém nós vamos fazer para ela um
grande funeral” (empregou a palavra difícil de propósito).
O menininho parou imediatamente de chorar e perguntou: “Que é um funeral?” O pai explicou que
era um enterro: “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante velas,
bombons e doces, e voltamos para casa. Depois, botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da
cozinha, rodeamos de velinhas de aniversário. Aí convidamos os meninos da vizinhança,
acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-Day-To-You” pra tartaruguinha morta e você
assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a
tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu… Isso é
que é um funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara: “Vamos, papai, vamos! A
tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela.” Saiu correndo.
Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal: “Papai, papai, vem cá, ela está viva!”
O pai correu para o quintal e constatou que era verdade, a tartaruga estava andando de novo,
normalmente, e o pai disse: “Que bom, heim? Ela está viva! Não vamos ter que fazer o
funeral.” “Vamos sim, papai” – disse o menino ansioso pegando uma pedra bem grande – “Eu
mato ela”.

MORAL: O importante não é a morte, e sim o que ela nos tira.

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