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A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza - 2017

Capítulo 2 - A ESCRAVIDÃO É NOSSO BERÇO

O mundo que a escravidão criou

A ESCRAVIDÃO É NOSSO BERÇO O mundo que a escravidão criou explicação dominante do


vira-lata brasileiro, emotivo, corrupto e da corrupção só do Estado – que sempre possibilitou
toda a manipulação midiática e política contra a democracia e contra os interesses populares –
tem sua força na história e na sociologia do vira-lata. Uma explicação, para ser dominante, tem
que esclarecer a totalidade da realidade social. Ou seja, ela tem que esclarecer as três
questões principais tanto para os indivíduos quanto para as sociedades: de onde viemos, quem
somos e para onde vamos. A teoria que responde a essas três questões de forma convincente
é aquela que se candidata à interpretação dominante, definindo a forma como toda uma
sociedade se vê. Não por acaso, eram também as três questões que todas as religiões bem-
sucedidas respondiam a seus fiéis.

{...}

Assim, para criticar o Brasil de hoje e compreender o que está em jogo na política e na
manipulação da política como forma de dominação econômica e simbólica, é necessário
reconstruir uma totalidade alternativa que desconstrua o culturalismo racista conservador e
reconstrua a sociedade brasileira em um sentido novo e crítica {...}.

Para responder às três questões essenciais para a compreensão da singularidade de qualquer


sociedade – de onde viemos, quem somos e para onde vamos –, o culturalismo racista constrói
uma fantasia da continuidade cultural com Portugal que é falsa da cabeça aos pés. Ela se
baseia em uma tese clássica do senso comum – que é uma espécie de sociologia espontânea
dos leigos – que imagina que a transmissão cultural se dá de modo automático como o código
genético. Nessa leitura de senso comum, imagina-se que alguém é, por exemplo, italiano
apenas porque o avô era italiano. Depende. Se as condições sociais forem outras, ele não tem
nada de italiano a não ser o código genético.

A influência cultural não se transmite, afinal, nas nuvens nem pelo simples contato corporal.
Os seres humanos são construídos por influência de instituições. É fácil perceber isso com
simples exemplos cotidianos. Pensemos na família, na escola ou no mercado de trabalho.
Disposições para o comportamento fundamentais, como a disciplina, o autocontrole, o
pensamento prospectivo, são ensinadas por meio de prêmios e castigos institucionais não
necessariamente físicos, nem muito menos necessariamente conscientes.

Na família, desde a tenra idade, são os olhares de aprovação e reprovação dos pais – ou de
quem exerça o papel – que mostram aos filhos os comportamentos apropriados e as
disposições para o comportamento que eles devem reprimir ou desenvolver. A agressividade,
por exemplo, uma disposição fundamental que todos temos, deve ser reprimida e controlada
para que a criança possa ter sucesso na sua socialização. A disciplina, por outro lado, é incutida
dos mais variados modos, como a partir da imposição de horários para dormir, comer e
brincar.
A escola prolonga e aprofunda com os mesmos métodos a socialização familiar. Depois, no
indivíduo adulto, seu sucesso no mercado de trabalho irá depender do mesmo mecanismo de
formatação e disciplina da personalidade em um sentido ainda mais aprofundado. As
instituições fundamentais para qualquer um de nós nos amoldam e nos constroem em certo
sentido, seja pelo direcionamento explícito, seja pelo incentivo para a criação de disposições
que irão construir o comportamento prático. Isso tudo não vem com o código genético como
imagina o senso comum e nossa interpretação “científica” dominante.

No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que
não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família,
de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa auto
interpretação dominante nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais
conheceu a escravidão a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de
auto desconhecimento foi possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista
nunca tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o nome não
significa compreender o conceito.

A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar de
escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que
somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o
que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o
país e seus conflitos reais, mas, sim, para reproduzir todo tipo de privilégio escravista ainda
que sob condições modernas.

a) Quais são a 3 questões principais para se compreender e explicar a totalidade da


realidade social?
b) A manipulação da política se dá por dois tipos de dominação. Quais são?
c) Como se cultura é transmitida ao ser humano? Como essa transmissão cultural molda
a personalidade humana? Você é o que você quis ser ou o que lhe ensinaram a ser?
Você pensa de maneira racional, livre e crítica em busca da verdade ou só reforça
ideologias para se sentir parte de um grupo específico de pessoas (direita/esquerda,
católico/evangélico/espírita, rock/funk/sertanejo, flamengo/palmeiras/Corinthians,
reacionário/conservador/liberal/progressista/revolucionário etc) para não se sentir
só?
d) Qual a diferença de nome e conceito? Quais conceitos te ajudam a compreender a
realidade?

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