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{...}
Assim, para criticar o Brasil de hoje e compreender o que está em jogo na política e na
manipulação da política como forma de dominação econômica e simbólica, é necessário
reconstruir uma totalidade alternativa que desconstrua o culturalismo racista conservador e
reconstrua a sociedade brasileira em um sentido novo e crítica {...}.
A influência cultural não se transmite, afinal, nas nuvens nem pelo simples contato corporal.
Os seres humanos são construídos por influência de instituições. É fácil perceber isso com
simples exemplos cotidianos. Pensemos na família, na escola ou no mercado de trabalho.
Disposições para o comportamento fundamentais, como a disciplina, o autocontrole, o
pensamento prospectivo, são ensinadas por meio de prêmios e castigos institucionais não
necessariamente físicos, nem muito menos necessariamente conscientes.
Na família, desde a tenra idade, são os olhares de aprovação e reprovação dos pais – ou de
quem exerça o papel – que mostram aos filhos os comportamentos apropriados e as
disposições para o comportamento que eles devem reprimir ou desenvolver. A agressividade,
por exemplo, uma disposição fundamental que todos temos, deve ser reprimida e controlada
para que a criança possa ter sucesso na sua socialização. A disciplina, por outro lado, é incutida
dos mais variados modos, como a partir da imposição de horários para dormir, comer e
brincar.
A escola prolonga e aprofunda com os mesmos métodos a socialização familiar. Depois, no
indivíduo adulto, seu sucesso no mercado de trabalho irá depender do mesmo mecanismo de
formatação e disciplina da personalidade em um sentido ainda mais aprofundado. As
instituições fundamentais para qualquer um de nós nos amoldam e nos constroem em certo
sentido, seja pelo direcionamento explícito, seja pelo incentivo para a criação de disposições
que irão construir o comportamento prático. Isso tudo não vem com o código genético como
imagina o senso comum e nossa interpretação “científica” dominante.
No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que
não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família,
de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa auto
interpretação dominante nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais
conheceu a escravidão a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de
auto desconhecimento foi possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista
nunca tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o nome não
significa compreender o conceito.
A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar de
escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que
somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o
que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o
país e seus conflitos reais, mas, sim, para reproduzir todo tipo de privilégio escravista ainda
que sob condições modernas.