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O ESTADO:

O CONCEITO E A EVOLUÇÃO

O estudo da evolução do Estado não produziu um consenso sobre o seu conceito e


sobre a sua delimitação, trata-se de um campo do conhecimento com bastante
discordância. As teorias somam dados antropológicos e comportamentos modernos às
especulações científicas para oferecer respostas à construção da teoria política. Este
capítulo é uma síntese desse problema.

O CONCEITO DE ESTADO - Não há consenso sobre quais sociedades políticas podem ser
identificadas como Estado. Os seus fundamentos, que conhecemos e vivemos hoje, foram
identificados, com mais precisão, por Maquiavel, no início do século XVI. Mas trata-se de
um conceito histórico, próprio da época, que comumente se denomina Estado Moderno,
caracterizado pela ideia de soberania. O Estado, como espécie de sociedade política em
geral, dotado do poder de governo sobre um povo, é polêmico e vai além da experiência
política moderna.
Para explorar essa polêmica vamos identificar o que é comum a qualquer ideia de
Estado: a política é o instrumento de ação do Estado e é a ação humana para organizar e
conduzir a sociedade. A palavra “Política” vem da polis, que é a cidade grega, e significa
também o espaço público e o lugar onde se decidem os interesses da coletividade. Nesse
sentido, o Estado se confunde com a política, pois nos acostumamos com um Estado que
pretende absorver todas as ações de governo social. Mas nem toda sociedade política é
estatal, há outras sociedades, como a família ou determinadas igrejas, por exemplo, que
estabelecem um poder político e o destina ao governo de sua coletividade.
O que vai distinguir uma sociedade política é a natureza do poder. Toda sociedade
pressupõe a organização de um poder, mas o poder político se caracteriza pelo emprego da
força física e do consenso e se manifesta pela capacidade de seus líderes de fazer valer seus
interesses na sociedade por meio destes instrumentos. Então os debates que se formam
nos meios políticos são, principalmente, produto das disputas e do exercício do seu poder.
O Estado é uma sociedade política porque o seu principal instrumento de poder é a
força, mas ele amplia a sua capacidade de controle buscando o consenso pela legitimação
de seus atos. Cada sociedade estatal constitui instituições úteis para reforçar os laços de
dominação, como ocorre com os princípios do direito e da democracia. De regra, os
indivíduos recepcionam essas instituições e consideram que o Estado é uma necessidade.
O Estado também é uma sociedade governativa, pois além de se ocupar com os fins
gerais do seu coletivo, define-se como responsável por comandá-lo.
Mas é possível afirmar que toda sociedade política governativa é estatal? Há pelo
menos três orientações teóricas para essa questão. Muitos autores entendem que o Estado
é somente o modelo político identificado por Maquiavel (teoria histórica), como experiência
da era moderna (o Estado contemporâneo). Segundo essa teoria, o Estado surge em função
de uma autoridade soberana sobre um território e um povo definidos historicamente na
decadência das sociedades medievais. Nesse sentido, o Estado é um fenômeno histórico
identificado com a noção moderna de soberania, de exclusividade do poder político nos
limites do território, graças a um movimento de definição objetiva das fronteiras.
Para a segunda orientação teórica, o Estado é toda autoridade política superior para
o governo das sociedades. Neste sentido, ao longo da história existiram diversos tipos de
Estados e para formar-se um Estado não é necessário um território ou um povo
objetivamente definidos (teoria generalista). Assim, o Estado sempre existiu, a condição da
vida em sociedade é a permanência de um governo, pois a própria ideia de sociedade
implica relações de poder e não há menor possibilidade de se estabelecer uma convivência
social sem governo e sem algum tipo de organização política.
A terceira orientação relaciona o Estado com o sedentarismo, que é a condição de
fixação social num espaço físico (teoria do sedentarismo). A organização do poder
governativo e de força sobre uma comunidade caracteriza uma sociedade política, mas não
necessariamente um Estado. Para ocorrer um Estado é preciso o elemento territorial e ele
surge em um momento posterior de maturidade da sociedade, quando esta se fixa,
abandona o nomandismo, cria vínculos com um lugar, e, enfim, consolida e estabiliza as
relações de poder. Para esta última orientação, as sociedades primitivas experimentaram
um estágio de convivência social sem um grau de organização capaz de ser identificado
como uma autoridade Estatal. São sociedades políticas que surgiram a partir de pequenos
grupos, os quais as regras de convivência eram fixadas de acordo com as necessidades
urgentes, viviam isolados em ambientes bucólicos ou hostis, promoviam as decisões sobre
o que comer e onde dormir de acordo com as necessidades e as possibilidades imediatas,
não existia a centralização do processo decisório nem as regras pré-estabelecidas fixadas
por uma autoridade complexa em nível estatal. Até que, num determinado momento, esse
pequeno grupo ganhou qualidade e o padrão decisório foi suficiente para a constituição de
um Estado.
A primeira teoria restringe o Estado ao episódio da modernidade, o que não parece
adequado, porque o Estado Moderno carrega características da antiguidade e da
medievalidade, o que não permite afirmar a sua identificação histórica absolutamente
independente. Também não é razoável a segunda, segundo a qual há uma generalização
das sociedades políticas estatais, porque o estágio de poder suficiente para o governo
estável de uma comunidade não é atingido pela mera organização de um poder político;
muitas vezes, ele é concorrente com outro superior; outras vezes, ele não é obedecido.
Melhor é considerar a condição de Estado apenas para um grau superior de organização
política.
Esse grau de organização é o que se obtém com a identificação do Estado com o
sedentarismo. Assim, o Estado é toda sociedade dotada de um poder político sobre um povo
num determinado território. No momento oportuno do curso, serão abordados os
elementos constitutivos do Estado: seu poder, povo, território e finalidade.

FORMAÇÃO ORIGINÁRIA E DERIVADA DO ESTADO – O Estado é uma evolução da sociedade,


que ocorreu em diversos ambientes, a partir de um grau de maturidade e de complexidade
política definida pela existência combinada de um povo, um território, um poder organizado
e uma finalidade social. Em tese, primeiro formaram-se sociedades primitivas e depois se
consolidaram em territórios.
Porém, as razões que produziram originariamente os Estados podem variar, conforme
algumas hipóteses mais prováveis, que são as suas causas originárias: a) uma das hipóteses
é a origem patriarcal, quando surge de uma família primitiva. A família é a unidade social
elementar; à medida que ela se desdobra em outras famílias, pelo crescimento natural,
surge a necessidade de compor a gestão entre elas; b) outra hipótese é o uso da força e a
sua concentração decorrente dos benefícios da dominação, pela capacidade de seus
membros de articular, pela combinação de força física e de astúcia, diversas forças para
controlar o conjunto do grupo; c) a organização das autoridades religiosas também é uma
hipótese provável. O ser humano, na busca contínua por respostas para os problemas da
natureza e do seu ambiente coletivo, desenvolveu-se significativamente, mas o refúgio em
entidades espirituais foi e é comum à falta de respostas, o que atribuiu poder político à
religião, sendo os líderes políticos primitivos também os líderes religiosos de uma
sociedade; d) outra hipótese é a marxista. Para Marx, o Estado é uma superestrutura a
serviço de uma classe econômica dominante. A concentração de riquezas e a divisão social
em classes levaram a classe dominante a constituir um aparato de força para garantir a
preservação dessa condição. O Estado surge para garantir a ordem e o sistema econômico1.
Para o marxismo esta é a causa determinante para a origem do Estado, outros autores
também identificaram a acumulação de riquezas como uma causa na definição da
autoridade nas sociedades mais primitivas, mas não necessariamente a única ou a
determinante, mas sim combinada ou paralela às anteriores.
Mas os Estados contemporâneos são todos de formação derivada, a partir da
superação de antigos Estados. As causas derivadas de formação dos Estados são a união e o
fracionamento; por exemplo, como caso de união temos os EUA, que é um Estado formado
a partir da união de colônias independentes da Inglaterra. No caso do Brasil, há um
fracionamento do Estado português e, do Timor Leste, há um fracionamento do Estado
indonésio. Neste último caso um país se divide em dois, e no primeiro, vários formam um
novo Estado.
Esse movimento de fronteiras é constante na comunidade internacional. Essas
modalidades de causas derivadas bem como o procedimento para reconhecimento da
condição de Estado perante a comunidade internacional são temas de Direito Internacional.
Formalmente, a Alemanha de hoje não é a mesma Alemanha Oriental ou Ocidental e mais
ainda, não é a Prússia do século XIX. Há mudanças nos fundamentos do Estado e nos
sentimentos populares que modificam os Estados nas suas sucessões. Portugal, Inglaterra,
França etc., são historicamente ligados aos seus Estados medievais ou à Roma antiga, mas
os seus diferentes modelos de organização do poder os distanciam.

EVOLUÇÃO DO ESTADO – Os modelos de Estados abaixo resumem as principais


sociedades que influíram na caracterização do Estado contemporâneo, especialmente no
Ocidente. Porém, a identificação do Estado com épocas da história não é absolutamente
exata, apenas didática. As influências de um povo na caracterização dos seus sucessores
permanecem até se diluírem muito tempo depois. Há, entre os povos, longos períodos

1
Para o marxismo a eliminação da luta de classes, pela eliminação da diferenciação entre proprietários
dos meios de produção e não-proprietários, elimina o sentido do Estado, a ideia de comunismo, como
sociedade sem Estado, parte do pressuposto da ausência da luta de classes.
intermediários que apresentam características de ambos. Também os tipos identificados
abaixo são generalistas, portanto, com alguns princípios comuns.
Os Estados Antigos, referindo-se, por exemplo, à China, Índia, Pérsia, Mesopotâmia e
Egito, caracterizaram-se principalmente pela manifestação teocrática do poder. Eram
teocracias porque a fonte do poder, de origem divina, legitimava-se com inspiração numa
entidade superior em duas hipóteses: ou o governante era o próprio deus ou era um
representante de um deus. A estrutura desse Estado era centralizada, o líder religioso
preenchia as funções de segurança, de burocracia e de arrecadação de tributos. É claro que
essas atribuições eram bem mais simples se comparadas ao Estado contemporâneo (hoje o
Estado controla, direta ou indiretamente, o cotidiano privado na quase totalidade, desde as
roupas que se vestem às palavras que se falam às coisas que se comem etc., pela polícia
sanitária, pelos padrões oficiais da língua etc.). Mas no Estado antigo, o grau de intervenção
era diferenciado pelo grau de controle sobre a vida em si, quase não havia garantias para os
direitos individuais que o homem moderno considerou como fundamentais. No Egito antigo
o faraó era um deus, e haviam outros deuses controlados por sacerdotes, formando uma
aristocracia religiosa e poderosa. Na Pérsia, os reis eram descendentes dos deuses. Na Índia
antiga surgiu a divisão social em castas, também fundada em motivos religiosos, que
sobrevivem até a modernidade. Na China antiga o governo era um dever e tinha por
princípio produzir a felicidade do povo, mas era também uma teocracia.
O Estado Grego antigo, que também tinha forte influência da mitologia de seus
deuses, se destaca na antiguidade, não só pela ideia de democracia, mas pela evolução de
seu pensamento filosófico. O povo que compunha a democracia era uma minoria
caracterizada pelas famílias originárias de cada cidade-Estado, mas o processo de decisão
pública se diferenciava pela existência de uma coletividade que debatia a política. Esta
participação era garantida, pois o cidadão grego era parte do Estado, e a liberdade que
existia era a liberdade pública de decidir coletivamente as opções do governo. A condição
de cidadão era uma prerrogativa e um dever público.
A sociedade grega era caracterizada pela diferenciação entre o público e o privado,
na qual a organização da família era o seio da vida privada e a gestão da condição privada
não competia ao Estado. Fazendo uma comparação, hoje, mesmo nas democracias, não se
sabe muito bem o que é público e o que é privado, já que, a título de exemplo, o Estado
regula e controla desde a criação e educação dos filhos até a alimentação das pessoas,
enquanto que a ideia de público se confunde com a ideia de coletividade.
Outro elemento político importante para o Estado Grego era a organização em
cidades-Estado. O território do Estado não era unificado, a independência de cada cidade
significava a ideia de autarquia, que, para os gregos, representava a autossuficiência. Mas
havia unidade na identidade grega para a política externa, com a formação de ligas de
cidades que iam às guerras.
Os gregos tinham dois modelos de cidade que diferenciavam a condição pública dos
seus cidadãos: o modelo de Atenas e o modelo de Esparta. Para os espartanos o essencial
era montar uma estrutura militar garantidora da autarquia, o cidadão espartano nascia para
a guerra. O cidadão ateniense nascia para o governo de sua cidade, em sua forma de
democracia, com o debate político, ainda que a guerra também fizesse parte da sua
condição pública.
O modelo de Estado Romano também contribuiu para a modernidade. Principalmente
pelo seu sistema jurídico de direito privado. Roma também surgiu de uma cidade-Estado,
mas caracterizou-se pela sua capacidade de expansão imperial. As conquistas do Império
Romano foram possíveis graças à organização e eficiência de seu exército, mas também
graças ao modelo de anexação dos povos conquistados. Os romanos preservavam a
organização política local, exigindo a contrapartida em tributos e na manutenção das
fronteiras. Mas a expansão contínua do império, que o alimentou, foi também a causa de
seu declínio. Quando as fronteiras para expansão se esgotaram, o exército passou a ocupar
as funções de gestão de sua grande máquina pública e, por fim, engessou-se na burocracia
pública e não resistiu às invasões bárbaras.
O Estado Medieval surgiu da crise do Estado Romano. Os romanos abandonaram as
cidades e se encastelaram na zona rural e o império se dividiu entre a sua parcela oriental e
a ocidental. O ocidente não resistiu às invasões e os bárbaros introduziram ali os seus modos
políticos. Assim o Estado Medieval surgiu com uma grande fragilidade e divisão política.
Mas durante a Idade Média o Estado passou por muitas transformações, da crise com
as invasões bárbaras, ao período do império carolíngeo, da consolidação das relações de
vassalagem e, por fim, ao renascimento. No seu milênio de existência ocorreu,
principalmente, a ascensão da Igreja Católica e do poder do papado. Mas o poder político
esteve distribuído entre a Igreja, os senhores feudais, os reis, as corporações de ofício e o
antigo império romano-germânico. As cidades serviam mais para o pouco comércio e para
a pouca centralização do poder e da Igreja. Essa diluição do poder político era caracterizada
principalmente pela relação de vassalagem, em que os senhores estabeleciam com outros
senhores uma prestação de serviço em nome da segurança recíproca. O rei não tinha um
exército permanente, recorria aos seus vassalos para expedições esporádicas. A riqueza era
distribuída como propriedade rural feudal, na qual os senhores tinham verdadeiro poder
político sobre os seus servos e buscavam legitimação divina para uma relação de
propriedade e governo.
O Estado Moderno surge e se explica na crise do Estado Medieval, em meio ao
Renascimento. O sistema feudal, já no século XIII, não absorvia o crescimento populacional,
e o excedente migrou para as cidades e feiras, para sobreviver com o ambiente comercial,
que crescia também com o novo contingente. As descobertas e rotas marítimas do oriente
trouxeram riqueza e prosperidade para essas cidades, onde se formou também um espaço
fértil para uma nova cultura, que resgatou o pensamento grego e produziu o humanismo. A
propriedade da terra deixou de ser a riqueza predominante. Isso foi possível porque o
Renascimento não foi só o renascimento das ideias, mas também o renascimento das
cidades, com as riquezas do comércio marítimo.
Portugal foi a primeira potência moderna, com a sua rota para as Índias, depois a
riqueza da América espanhola alimentou a sua metrópole e as “novas” cidades.
Estabeleceu-se uma corrida mercantilista e colonialista, formando-se novas potências
econômicas e militares, como a Holanda, a Inglaterra e a França. O Estado Moderno lançou
os seus pilares neste terreno, o poder se caracterizou pela soberania, os territórios se
fixaram na segurança dos tratados e o povo passou a fortalecer a sua identidade, em
decorrência do poder dos monarcas absolutos que surgiram para consolidar os limites da
soberania estatal. Foi na fragilização do poder medieval que surgiram as monarquias
absolutas, com Estados centralizados para garantir a ordem e o status quo.
O que é a soberania? É a exclusividade de decisão, que se opõe à estrutura de poder
medieval. Na Idade Média, a igreja, o senhor feudal e o rei jurisdicionavam
concorrentemente. A Paz de Westfalia, um tratado que definiu fronteiras entre França e
Estados alemães medievais, simbolizou o nascimento do Estado Moderno, que passou a ser
delimitado por tratados de fronteiras. Mas também os tratados se tornaram frequentes
para estabelecer a paz, o comércio etc. Surgiu a comunidade internacional moderna,
formada por Estados que se legitimaram a partir de um direito definido em tratados. Esses
são os fundamentos do Estado Moderno como conceito histórico.
Segundo Weber, o Estado Moderno se caracteriza pelo monopólio legítimo da
violência. Esse monopólio é decorrente do poder soberano, essa legitimidade é decorrente
da competência legislativa que lhe é atribuída, assim como o estabelecimento de uma
sociedade que produz legitimidade pela legalidade, e esta violência é a condição do poder
político. No Estado Moderno, há a supressão do direito de constituir outras organizações
políticas que se utilizem de violência, isso não quer dizer que elas não surjam, apenas que
não são legítimas, se não consentidas pelo Estado, sob o ponto de vista da ordem vigente.

Autor: ROCHA, Manoel Ilson Cordeiro. O Estado: o conceito e a evolução. In: Curso de Ciência
Política e Teoria Geral do Estado. Franca (SP): Ribeirão Gráfica e Editora, 2017. Cap. 5, pag. 41-
51.

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