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Casamento Cigano

“The night of the bulls”


Anne Mather

A música dos violinos, as fogueiras, a dança, o desejo que sentia por François... Quando
percebeu, Dionne estava bebendo vinho da mesma taça que ele e trocando votos numa
cerimônia de casamento cigano. Daquela noite de paixão e êxtase, o que restava agora? Um
filho e a dolorosa certeza de ler sido usada e abandonada pelo milionário François St.
Salvador. Mas três anos e a rejeição dele não haviam destruído seu amor, e ainda tremia só
de pensar em revê-lo. No entanto, tinha de voltar à França e enfrenlá-lo. Só François poderia
lhe dar o dinheiro para o tratamenlo do filho. E, pelo pequeno Jonathan, Dionne seria capaz
de tudo. Até de se humilhar diante do homem que destruíra a sua vida!

CAPÍTULO I

No começo de abril, a rajada gelada do mistral sopra das encostas


glaciais da Provença, uivando sobre a Camargue e todo o vale do rio
Ródano. Nem homens nem animais tentam desafiar sua fúria, e
apenas as íris e os narcisos, que crescem selvagemente entre os
juncos, ousam sugerir que a primavera está chegando ao estuário.
Na sua passagem, o mistral deixa muitos estragos. Desesperados, os
pássaros procuram comida, seguindo a trilha dos cavalos selvagens,
cujos cascos marcaram o campo de gelo. Mas, quando o vento se vai,
todo o delta volta à vida, colorido como nunca foi nem mesmo no
verão. Nas lagoas azuis e nos pântanos, surgem novamente os
abelheiros, de plumagem brilhante, mergulhando para pegar insetos e
deslizando sobre a superfície da água, e os flamingos, com sua
elegância régia.
Dionne conhecia tudo isso muito bem, foi naquela época do ano, muito
tempo atrás, que chegou pela primeira vez na Provença e, desde
então, aquela região da França tornou-se muito especial para ela.
Agora, estava de volta e sentia a mesma emoção de quando partira,
três anos antes. Mas poderia ter ficado... naquelas circunstâncias?
O jato fez uma manobra, preparando-se para pousar, e ela afundou-
se no assento, subitamente nervosa. Em minutos, aterrissariam em
Marignane e não haveria ninguém lá, esperando por ela para dar as
boas-vindas.
Um rapaz, sentado no banco de trás, curvou-se para ela, ansioso.
Durante toda a viagem, ele a olhara insistentemente, mas Dionne o
tinha desencorajado: não queria se envolver com homem algum. Mas
como ele percebera seu pânico crescente, quase histérico, tocou-lhe
o braço de leve, dizendo:
- Pardon, mademoiselle, não está se sentindo bem?
O sotaque francês era carregadíssimo, e a moça ficou imaginando
como saberia que era inglesa. A menos que a tivesse ouvido conversar
com a aeromoça.
Lutando para desembaraçar o cinto de segurança, esboçou um
sorriso.
- Obrigada, monsieur, mas estou bem. A... a aterrissagem sempre me
deixa nervosa.
O rapaz concordou com um movimento de cabeça. Observando-o
melhor, notou que era bem atraente. Clârry diria que era maluca de
não aceitar as atenções de um tipão daqueles. Mas Clârry não estava
lá e Dionne tinha de enfrentar sozinha a situação. Para cortar a
conversa, desviou o olhar para a janela.
A pista se aproximava, numa velocidade vertiginosa. Fechou os olhos
e sentiu o solavanco do trem de aterrissagem no chão. Tinham
pousado.
Dionne soltou o cinto, passou a mão pelos cabelos para verificar se o
coque estava em ordem e levantou-se para pegar suas coisas.
Pelo sol, lá fora, pensou, acho que não preciso vestir o casaco.
Pendurou-o no braço e apanhou a maleta de mão no bagageiro.
- Posso ajudar, mademoiselle? - Era ele novamente. A maioria dos
passageiros estava desembarcando, despedindo-se da aeromoça e
descendo a escada. Mas o rapaz parecia esperar por ela.
Dionne sorriu, agradecendo, e caminhou para a saída.
O dia lá fora estava morno. Nem mesmo o ronco ensurdecedor de um
jato sobre sua cabeça estragou a sensação agradável de estar de
volta.
Deixando o sentimentalismo de lado, desceu a escada e encaminhou-
se para a alfândega.
As formalidades do desembarque foram rápidas. Os oficiais sorriam
para ela, desmanchando-se em amabilidades, com a galanteria
peculiar dos franceses diante de uma mulher bonita. Sentiu-se mais
confiante para enfrentar o que teria pela frente. Olhou em volta e
respirou fundo aquele ar deliciosamente conhecido, uma mistura de
flores e mar. Um carro estaria à sua espera, mas não sabia como
reconhecê-lo. Havia muitos por lá, além de vários ônibus que levariam
os passageiros até Marselha.
O rapaz do avião caminhava casualmente a seu lado. Dionne mordeu o
lábio, impaciente. Gostaria que ele não fosse tão insistente e não lhe
criasse problemas. Quando se inclinou para ela, fuzilou-o com seus
olhos verdes cheios de espanto e aborrecimento.
- Sim, monsieur?
- Está sendo esperada, mademoiselle?
- Estou, obrigada.
Não chegava a ser inteiramente mentira.
- Então, não precisa de uma carona?
- Não, obrigada.
Dionne continuou a andar por entre os carros estacionados, tentando
achar o da Inter-France. O sol forte, batendo nos vidros e
cromados, era ofuscante. Pegou os óculos escuros na bolsa. Eram
grandes e quadrados e escondiam sua expressão. Esperava que, com
isso, o rapaz percebesse que ela não estava interessada em flertar e
desistisse. Mas lá estava ele novamente a seu lado, dizendo:
- Acho que deixou cair isso aqui, mademoiselle.
Dionne virou-se, pronta para fazer uma grosseria e, surpresa, viu que
ele lhe estendia sua reserva no hotel.
- Oh... oh, obrigada. Devo... devo ter deixado cair quando peguei os
óculos. Muito obrigada.
- Foi um prazer, mademoiselle. No entanto, não pude deixar de notar
que pretende ficar em Aries. Uma cidade linda. Moro bem perto de
lá.
- Verdade? - disse, desinteressada, olhando em volta. Onde estaria o
maldito carro? - Concordo. É uma cidade muito linda mesmo.
- Tem certeza de que não precisa de carona?
- Oh, não. Eu aluguei um carro; deve estar por aqui, em algum lugar.
O rapaz deu uma olhada em volta e depois estendeu a mão para ela.
- Venha. Acho que sei onde encontraremos o seu transporte,
mademoiselle.
Parecia saber realmente o que dizia. Quando pegou suas malas,
Dionne não teve outra alternativa, a não ser segui-lo. Em questão de
minutos, descobriu o pequeno Citroen. Ajudou-a a guardar a bagagem
e despediu-se:
- Talvez nos encontremos novamente, mademoiselle. Estou sempre em
Aries e ficaria muito contente se aceitasse jantar comigo qualquer
noite destas.
Dionne sorriu, deixando-o sem resposta. Era melhor mesmo que ele
imaginasse que ela era apenas mais uma turista por ali. Não poderia
nunca suspeitar dos verdadeiros motivos de sua viagem, motivos
esses que até ela mesma custava a aceitar.
Partiu, vendo pelo espelho retrovisor que ele lhe acenava.
Foi para oeste de Marselha e depois para o norte, seguindo a estrada
para Aries através de Plaine de la Crau. Era uma área um tanto
deserta e pouco convidativa, e apenas raramente via-se que a terra
era cultivada.
Lembrou-se de que, uma vez, François tinha contado uma lenda
segundo a qual Hércules chegara àquela planície, fugindo de uma raça
de gigantes, e pedira a Zeus para ajudá-lo. O deus, então, fez chover
pedras sobre a planície, salvando o herói da morte.
François!
Pela primeira vez desde que partira de Londres, deixou que a
lembrança dele voltasse. Era espantoso o que apenas uma lembrança
podia fazer com as emoções de uma pessoa. Pegou a bolsa, tirou um
cigarro e acendeu-o, com mãos trémulas. Não costumava fumar.
Apenas quando estava sob tensão. E agora precisava muito tentar
relaxar.
Chegou a Aries pouco depois das seis, sentindo-se cansada e
desanimada. Foi direto para o hotel, instalou-se, e depois pediu que
lhe mandassem um sanduíche para o quarto. Tomou um banho, vestiu
um robe de seda, e sentou-se junto da janela, com o lanche e uma
xícara de café.
A brisa agitava suavemente os galhos das árvores da planície e
grupos de jovens passeavam de bicicleta. Tudo era tão calmo, que
conseguiu relaxar um pouco os nervos.
As chances de se encontrar com François eram muito pequenas. Se
fosse vê-lo, seria em suas condições e não nas dele. Isso, caso
François concordasse em recebê-la...
Afastou o prato de sanduíche, assim que aqueles pensamentos vieram
perturbar sua paz. E se François se recusasse a vê-la? Podia muito
bem fazer isto. Além do mais, não sabia que ela estava tão
determinada a esclarecer a verdade.
Serviu-se de outra xícara de café, que segurou com as duas mãos,
para esquentá-las. Mentalmente repetiu tudo que tinha de dizer a
ele. Seria desastroso, se François lhe fizesse alguma pergunta que
ela não soubesse responder. Devia ter a história toda na ponta da
língua, para não cometer nenhum erro. Tomou o café e colocou a
xícara vazia no pires. Suas mãos não tremiam mais, quando abriu a
bolsa e tirou de dentro uma carteira de couro. Havia várias
fotografias.
O menino que a olhava com confiança e carinho comoveu-a até as
lágrimas. Fazia tempo que não se permitia chorar. Imaginou o que ele
estaria fazendo naquele momento, se estaria se comportando bem
com Clarry.
Num impulso, beijou a foto e disse, baixinho:
- Boa noite, Jonathan.
Tornou a guardar as fotografias na carteira e colocou-a na mala
maior.

Acordou na manhã seguinte com o sol forte entrando pela janela.


Durante um momento, não conseguiu lembrar onde estava e ficou
espantada por não encontrar a caminha de Jonathan a seu lado. Aos
poucos, a consciência voltou e sentiu-se deprimida.
Não podia se deixar abater. Pulou da cama e foi até a janela, abrindo
as cortinas. Crianças brincavam no jardim em frente do hotel,
correndo atrás de uma bola e gritando, alegres. Aquela cena fez com
que sentisse um aperto no coração e afastou-se da janela
imediatamente.
Mais tarde, depois de vestir uma calça azul justa e uma blusa branca
de gola alta, Dionne examinou-se no espelho. com os cabelos presos
num coque e a roupa simples, tinha a aparência elegante de uma
madura mulher de negócios, exatamente a impressão que queria dar.
Mas os olhos claros e o desenho sensual dos lábios traíam sua
juventude e incerteza. Sentindo-se desamparada, desceu para o
restaurante.
Depois do café, foi dirigindo o Citroen até Aries. Apesar de não ser
grande, era uma cidade de comércio intenso e havia sempre muita
atividade. Estacionou o carro, desceu, examinou as barracas de
peixes e frutos do mar, e olhou as vitrines das lojas, para passar o
tempo, até a hora do almoço.
Tinha resolvido telefonar para St. Salvador por volta do meio-dia, na
esperança de encontrar François em casa, mas não queria falar nem
com o pai nem com a mãe dele. Aquele era um assunto que só dizia
respeito a eles dois.
Mandou um cartão para Clarry, avisando que chegara bem, e
continuou a passear pelas ruas, sem destino, sentindo a tensão e o
nervosismo crescerem a cada minuto.
Era desconcertante e irritante estar tão envolvida emocionalmente
naquele assunto. Precisava, de qualquer maneira, se acalmar um
pouco, antes de ver ou falar com François. Não queria que ele
percebesse como era tola.
Mal se atrevia a pensar na reação dele com sua volta. Estava casado
com Yvonne agora e tinha sua própria vida. Se a esposa não
concordasse, podia até se recusar a recebê-la. Mesmo que aceitasse
falar com ela, não havia motivo para acreditar que François
emprestaria dinheiro, apenas em nome do relacionamento que havia
tido há três anos e que, evidentemente, não significava mais nada
para ele.
Dirigiu de volta ao hotel, pouco depois do meio-dia e foi direto para
o háll, com passos incertos. Tinha visto um telefone público lá.
Precisava fazer a ligação, antes que a coragem a abandonasse.
O número estava anotado num papel, mas não precisou dele. Ainda se
lembrava, como se tivesse sido no dia anterior. Trémula, tirou o fone
do gancho e pediu linha à telefonista. Quando ouviu a campainha
tocar do outro lado, suas mãos ficaram úmidas e teve de fazer um
grande esforço para não desligar e desistir de tudo.
Finalmente, uma mulher atendeu.
- Oui? Fazenda St. Salvador. Qui est-ce? Dionne perguntou, com
dificuldade:
- Madame... St. Salvador?
- Non, c’est Jeanne. Vous voulez madame St. Salvador?
- Non, non! Monsieur St. Salvador. François St. Salvador, est-il lá?
Jeanne hesitou um momento.
- Non, mademoiselle, il est en Avignon.
O coração de Dionne disparou. François... em Avignon! Por quanto
tempo? Poderia perguntar a Jeanne, que era uma antiga governante
na casa, mas não sabia se receberia resposta. Já havia percebido um
certo tom de reserva na voz da mulher, por não saber com quem
estava falando, e duvidou que lhe desse mais alguma informação.
Achou mais sensato agradecer e desligar.
Ao sair da cabine telefónica, encontrou-se com o gerente do hotel,
que pareceu preocupado.
- Está pálida, mademoiselle. Sente-se bem?
- Muito bem, obrigada. Está um dia lindo, não é mesmo?
- Lindíssimo - o homem concordou, e ela subiu correndo para o
quarto.
Enquanto se trocava para o almoço, colocando um vestido de algodão
verde-limão que Clarry tinha feito para ela, Dionne tentou se
controlar e analisar friamente sua situação. Arrumou o coque, passou
um pouco de sombra nos olhos e brilho nos lábios. Fez tudo isso
automaticamente, preocupada com a mudança em seus planos.
Não tinha contado com aquela resposta pelo telefone. Se ligasse
novamente e ele ainda não tivesse chegado, a família começaria a
desconfiar, e não podia arriscar-se. Mas, como entrar em contato
com François? Não fazia sentido dirigir até Avignon, sem ter
certeza de encontrá-lo.
Desceu para o restaurante, sentindo uma dor no estômago que não
tinha a ver com fome.
Comeu muito pouco, apesar de a sopa de peixe estar deliciosa. Só
aceitou uma fruta como sobremesa e tomou duas xícaras de café
preto, bem forte.
Mais calma e controlada, foi até a recepção do hotel. Havia poucos
hóspedes. Ainda era cedo para os turistas em Aries. Eles chegariam
mais tarde, em maio e junho, quando os festivais começavam e os
ciganos se reuniam nas praças, dando festas.
Dionne apertou o estômago dolorido. Era tudo tão familiar... e lhe
parecia tão injusto ter de estar ali exatamente naquela época do
ano! Chegou a sentir o gosto salgado do pão e o sabor do vinho
vermelho que jorrava da cerâmica. Podia ouvir o barulho e a música,
reviver a emoção de participar de um ritual que se repetia há
centenas e centenas de anos...
Apertou os punhos, entre frustrada e zangada. Precisava esquecer
tudo aquilo e fazer o que devia ser feito, por mais difícil que fosse.
Pelo bem de Jonathan.
Passou a tarde inteira no hotel, para espanto do gerente, que a
considerava uma turista. Várias vezes, percebeu que ele a observava,
preocupado, mas fingiu não notar, para não embaraçar o pobre
homem.
À tardinha, deixou o salão e dirigiu-se ao telefone novamente. Seus
joelhos tremiam e teve dificuldades para coordenar os movimentos.
Mas, finalmente, conseguiu completar a ligação.
Uma voz feminina atendeu e, dessa vez, não era Jeanne. Era uma
voz de menina, de que Dionne se lembrava vagamente. François tinha
uma irmã... Louise.
Excusez mói - disse, tentando disfarçar ao máximo o sotaque inglês -
mais je veux parler avec monsieur François St. Salvador.
- François? - A menina parecia surpresa. - Qui est lá?
Dionne hesitou. Como é que poderia dizer seu nome, sem criar a
situação constrangedora que tanto queria evitar?
- C’est une amie de monsieur St. Salvador. A garota desconfiou:
- Mais êtes-vous anglaise?
Dionne apertou os lábios: então, seu sotaque era tão carregado
assim? O que diria agora? Se negasse ser inglesa, a menina saberia
que estava mentindo; se confirmasse, seria ainda pior.
- Ce n’est pás important.
E pela segunda vez desligou, desprezando-se por sua covardia.
Saiu da cabine e subiu para o quarto. Olhando-se no espelho, viu os
olhos esverdeados sem brilho e o rosto marcado pela ansiedade. O
que faria, agora?
Estava começando a se trocar para o jantar, quando bateram à porta.
- Mademoiselle! Mademoiselle! Era voz de mulher. Dionne envolveu-se
no robe e foi abrir a porta. A arrumadeira sorriu para ela, sem jeito.
- Telefone para a senhorita. Infelizmente, terá que atender lá em
baixo, no hall.
- Tem certeza de que é para mim?
- Mais, certainement, mademoiselle. É um homem.
- Um homem? Muito bem, eu... eu vou descer. É só me vestir.
Enquanto enfiava rapidamente uma roupa, Dionne procurava uma
explicação para aquilo. Não fazia sentido. Louise não a teria
reconhecido tão depressa. E, mesmo que tivesse, como saberia onde
encontrá-la?
Sentiu as pernas tremerem, quando desceu para atender.
- Mademoiselle King?
Não sabia se ficava aliviada ou decepcionada. A voz era bem
diferente da de François. Mais suave, mais jovem e menos
perturbadora.
- Quem é?
- Henri Martin, mademoiselle. Nós nos conhecemos ontem, no avião.
Dionne recostou-se na parede da cabine.
- Ah... monsieur Martin. Eu não sabia o seu nome.
- Descobri o seu na reserva do hotel, lembra? Está bem instalada aí?
- Oh, sim, tudo ótimo. Por que telefonou? Ele pareceu desconcertado.
- Por que estou telefonando? Mas é claro que sabe, mademoiselle.
Quero convidá-la para jantar hoje.
- Sinto muito, não posso.
- Porquê?
- Estou... cansada. Não sinto nenhuma vontade de jantar fora,
monsieur.
- Estou desolado.
- Sinto muito
- Que tal amanhã?
- Não sei o que vou fazer amanhã. - Isso, pelo menos, era a pura
verdade.
- Está ferindo minha sensibilidade. Por favor, não podemos almoçar,
então?
- Outro dia, talvez - Dionne disse, com firmeza, e desligou. Voltou
para o quarto e atirou-se na cama. A amargura crescia em seu peito,
sufocando-a. Sentia-se terrivelmente sozinha e desamparada. Nem
mesmo pensar em Jonathan e Clarry à sua espera, na Inglaterra,
fazia com que se animasse. Os dois tinham ficado tão confiantes, e
até o momento ela não conseguira nada.
Não suportaria jantar numa mesa solitária, no restaurante quase
vazio. Desceu e saiu pelas ruas escuras. A noite estava quente, mas
de vez em quando uma brisa suave soprava. Respirou fundo. Amanhã
seria outro dia. Não estava vencida ainda.
Tomou uma xícara de café e comeu um doce num bar às margens
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do Ródano, depois caminhou na direção da arena. Tinha estado lá
diversas vezes com François, assistindo àquele espetáculo que podia
causar náuseas no estômago mais resistente. Os famosos touros da
Camargue eram animais ferozes e traiçoeiros. Dionne não conseguia
entender o que levava os homens a brincar daquele jeito com a
morte. Alguns dos mais conhecidos matadores da Espanha iam tomar
parte na corrida na arena de Aries, enfrentando - e às vezes sendo
retalhados
- chifres cortantes dos bichos.
Lembrou-se de ter observado François no curral com os toiros e de
como ficava petrificada ao vê-lo repetir os gestos com a capa que, na
arena, despertavam gritos entusiasmados de Olé! Houve épocas em
que chegou a odiá-lo por sujeitá-la a tal ansiedade angustiante. Tinha
fugido uma vez, mas ele a seguiu, agarrando-a e cobrindo-a de
beijos, fazendo com que só pensasse em seu desejo por ele...
Sentiu-se novamente agoniada. Como tinham voado aqueles meses em
que realizara seus sonhos mais loucos e como tinha sido torturante a
separação.
Voltou do passeio às nove e meia, já um pouco mais calma. Sentia-se
cansada e pronta para uma boa noite de sono. Recusou-se a pensar no
que poderia acontecer no dia seguinte. Era inútil tentar especular
sobre algo ainda tão nebuloso.
Entrou no hall e atravessou silenciosamente o tapete verde-escuro.
Parecia deserto, mas, quando se aproximou da escada, um homem
levantou-se de uma cadeira próxima e bloqueou seu caminho.
Assustada, Dionne examinou-o de alto a baixo. Usava botas de cano
longo, calça e casaco cinzentos, era alto e elegante. Seu rosto estava
nas sombras, mas, antes mesmo que desse um passo à frente, ficando
sob uma lâmpada, ela reconheceu-o. Um arrepio na espinha avisou-a
de que o momento tão esperado e temido tinha chegado. Recuou,
levando as mãos aos lábios pálidos e trémulos.
- Alo, Dionne - ele disse, com aquele sotaque que ela achava
encantador, mas num tom rude que a feriu. - Posso saber o que está
fazendo aqui e por que queria falar comigo?
CAPÍTULO II

Dionne olhou para ele, incrédula, incapaz de aceitar que não se


tratava de uma alucinação provocada pela saudade e o desejo de
rever François St. Salvador. Uma saudade que, até aquele momento,
existira apenas em seu subconsciente.
Mas aquele não era o François de quem se lembrava. Aquele olhar
gelado tinha pouco a ver com o homem caloroso e ardente que tinha
conhecido e amado. As feições eram as mesmas, mas, ainda assim,
diferentes. Observou os olhos cinzentos penetrantes, o queixo
quadrado e arrogante, a pele morena e a barba escura, os lábios
cheios e sensuais. Sim, parecia o seu François, mas estava mais
magro e o olhar tinha um brilho estranho, intenso e amargo. Linhas
profundas marcavam a testa e os cantos da boca. Tinha um ar
cansado e aborrecido.
Apesar dos quilos que perdera, o corpo continuava musculoso e
atlético, e a lã macia do suéter revelava o peito forte que ela
acariciara tantas vezes.
Dionne sacudiu a cabeça, sentindo-se muito fraca, de repente. O
momento tão temido tinha chegado e não podia fazer nada para
evitá-lo. Que compaixão podia esperar daquele homem de expressão
cruel, que a olhava com ódio? Naquele momento de confronto, deu-se
conta de que tinha sido uma tola, imaginando conseguir alguma coisa
dele. Que loucura pensar que os anos tivessem trazido tanta
experiência e compreensão para ele quanto para ela.
- Bem, mademoiselle?
Era a voz fria e impessoal de um estranho, e Dionne virou-se, incapaz
de aguentar a acusação em seus olhos. Mas de que a estava
acusando? Por que a encarava com tamanha desconfiança? Tamanha
aversão? Será que a memória do passado era tão desagradável assim
para ele?
- Eu... eu... Como é que me encontrou? - perguntou, numa voz fraca.
- É tão importante saber? Por que está aqui? O que quer de mim,
agora?
Aproximou-se e agarrou-a pelos ombros, fazendo com que o
encarasse. Dionne não conseguia falar.
- E então? Não desvie os olhos. Ou será que me ver novamente é tão
repugnante assim?
A moça estremeceu por causa do contato daquelas mãos e do olhar
atrevido que percorreu seu corpo de alto a baixo. Sentia-se
apavorada.
- Bem - ele repetiu -, vou perguntar novamente, por que está aqui?
- Vim... ver você. Eu... eu não sabia a quem mais recorrer.
- Você está em apuros? - Olhou em volta. - Não podemos conversar
aqui. Está hospedada neste hotel? - Quando ela fez que sim, ele
sugeriu: - Então, vamos até o seu quarto.
- Não! - o grito escapou, antes que pudesse sequer pensar no que
dizia. - Não... quer dizer, não podemos ir para lá. É muito pequeno...
um quarto, nada mais do que isso...
- E daí? O que pensa que quero fazer no seu quarto? Lembrar os bons
tempos?
Dionne não podia explicar seus verdadeiros motivos. Não queria que
nenhuma lembrança dele ficasse naquele quartinho, para persegui-la
durante a madrugada insone.
- Há... há um salão bem confortável aqui. Se não estiver ocupado...
Abriu a porta e acendeu as luzes.
François olhou para a sala vazia, carrancudo.
- Muito bem. Serve.
Seguiu-a e fechou a porta, encostando-se nela. De seu corpo emanava
aquela força perturbadora que Dionne conhecia tão bem, mas da qual
não queria lembrar. Ele a encarou.
- Agora, qual é o problema? O que está errado com você e por que
precisa de minha ajuda?
Dionne virou-se, desanimada, incapaz de enfrentar aquele exame ou
de encontrar as palavras que havia ensaiado para lhe dizer. Ele
começou a ficar irritado.
- Pour amour de Dieu, Dionne, não sou um homem muito paciente.
Diga o que precisa, e acabemos logo com isto. - Seus olhos se
apertaram. - O que é? Dinheiro?
A moça corou. O cinismo na voz dele era como uma bofetada. Fazia
com que parecesse uma prostituta, cobrando por seus serviços.
- Por que acha que posso estar precisando de dinheiro?
- Não é isso o que todo mundo quer? Se foi o que veio me pedir, não
há motivo para continuar com evasivas. Tanta encenação me aborrece
profundamente. O que me intriga é por que você acha que eu lhe
daria dinheiro.
Dionne encarou-o.
- Isso significa que está se recusando a me ajudar? - perguntou,
desafiadora, reunindo todas as forças para poder enfrentá-lo.
François devolveu-lhe o olhar insolente, forçando-a a desviar a vista.
Era incrível que, depois de todo aquele tempo, ainda não conseguisse
medir forças com ele. Além do mais, tinha medo de que seus olhos
revelassem o que sentia. Não podia negar que, apesar de tudo, sentia
uma ponta de prazer em seu coração por vê-lo. Prazer misturado com
o sofrimento que as lembranças despertavam.
Conhecia intimamente cada traço daquele rosto forte e magro. Já
tinha beijado o contorno firme do queixo e sentido a curva sensual
daquela boca no corpo, que a deixava louca de paixão e
completamente descontrolada. Apesar de terem se passado três
anos, era impossível não ficar afetada com tais recordações.
Ele enfiou os polegares no cinto de couro grosso, e sem se importar
em responder à pergunta da moça, disse:
- Você ainda não me contou por que precisa de dinheiro.
É um assunto pessoal. Além disso, como já deixou claro que não vai
me ajudar, não vejo por que eu deva lhe contar.
Não declarei, categoricamente, que não ia ajudar. Você se ofende
com muita facilidade, Dionne. Não pode voltar aqui, depois de três
anos, e esperar as coisas e as pessoas iguais ao que eram.
- Não espero nada disso. Compreendo perfeitamente que tudo muda.
Por isso mesmo hesitei em vir procurá-lo. Não queria criar problemas
desnecessários para você, nem me intrometer na sua vida.
François dirigiu-se até ela, ameaçador:
- Acha mesmo que pode vir até aqui, sem se intrometer na minha
vida? - perguntou, furioso. - Meu Deus, mulher! Somos seres
humanos. Não autómatos. Sua simples presença já é uma
interferência. Faça o que fizer, terá consequências.
Dionne tremeu, diante de tanta fúria.
- Você não entende, tive de vir. Não havia mais ninguém a quem
pudesse recorrer.
- E precisa de dinheiro?
Ele estava se controlando com muita dificuldade. Quanto antes
acabassem com aquela conversa, melhor. Disse, simplesmente: -
Preciso. - Quanto?
Dionne engoliu em seco.
- Mais ou menos quinhentos mil...
- Quinhentos?
- Por aí.
- Quinhentos mil, hein? - Insolentes, seus olhos percorreram o corpo
elegante da moça e pararam nos lábios entreabertos. - Por que
precisa de tanto dinheiro, Dionne? Está grávida, por acaso?
- Não! - Dionne respondeu, horrorizada. - Não! Como é que pode
pensar uma coisa dessas?
- Por quê? - ele interrompeu, com um olhar impiedoso. - Por que eu
não poderia pensar uma coisa dessas? É um fato muito raro no seu
país? Lá, os homens são diferentes dos de outros lugares do mundo?
Não acredito. Você é uma mulher bonita, Dionne, sempre foi. Não
imagina quantas noites fiquei acordado, lembrando como era bonita,
deitada em meus braços... - Deu de ombros, como arrependido da
confissão, e acrescentou, com frieza. - Certamente, outro homem
deve ter conhecido o que nós conhecemos...
Antes que pudesse evitar, a mão de Dionne golpeou-o no rosto com
toda força. Depois, com um gemido abafado, ela passou por ele,
abrindo a porta e correndo para o quarto.
Deu duas voltas de chave e encostou-se na porta, toda trémula. Mas
não ouviu barulho de passos na escada e nenhuma batida raivosa.
Apenas o ruído de sua própria respiração entrecortada, que custou a
voltar ao normal.
Quando ficou claro que ele não a seguiria, jogou-se na cama, com os
olhos secos e arrasada.
Foi com muita relutância que Dionne levantou-se, na manhã seguinte.
Tinha dormido mal e acordou com olheiras. Teve que descer para o
café de óculos escuros, para evitar o inevitável comentário do
gerente amistoso.
Tomou apenas duas xícaras de café preto, tentando analisar
objetivamente sua situação. Se ao menos Clarry estivesse com ela...
Se bem que tivesse certeza de que a outra não aprovaria o rumo que
as coisas tinham tomado. Clarry gostava da verdade acima de tudo,
mas, naquelas circunstâncias, Dionne não podia concordar com ela.
Como teria coragem de revelar a François St. Salvador o que havia,
realmente, por trás de sua necessidade de dinheiro? Que reação ele
teria, se confessasse? Que espécie de migalha de compaixão poderia
esperar dele, depois da cena da noite anterior?
Mas o bom senso sufocou seu orgulho. O que faria, se ele não
voltasse? Sacrificaria sua única chance, sacrificaria a saúde de
Jonathan em nome do orgulho?
Dionne levantou-se, decidida. Tinha de seguir com seus planos. Tinha
de se humilhar diante de François St. Salvador e, se preciso, até
permitiria que ele a degradasse. Por Jonathan.
Mas... e depois? Sua cabeça rodava. O que seria de sua vida se,
depois de contar a verdade a François, ele quisesse a criança? O que
lhe restaria? Não teria a menor possibilidade de vencê-lo nos
tribunais.
Ela, uma simples professora, com um salário minguado; ele, dono de
um enorme patrimônio na Camargue, com vinhedos no vale do Ródano
e uma fortuna imensa. Não. Sabia muito bem quem ganharia tal
batalha. Nem por um minuto duvidava de qual dos dois ficaria com a
guarda do menino.
Começava a se arrepender amargamente por ter voltado para lá para
pedir dinheiro a François. Talvez estivesse se arriscando demais. No
entanto, de qualquer forma, não seria arriscado? Era possível que ele
resolvesse fazer o empréstimo, sem mais perguntas.
Uma sensação de pânico tomou conta dela. A quem mais poderia pedir
ajuda? Fora Clarry, não tinha mais ninguém no mundo. Os amigos
eram bons, naturalmente, mas nenhum deles poderia lhe arranjar
tanto dinheiro. E de que outra forma Jonathan iria se curar daquela
maldita tosse, que o mantinha acordado noite após noite? Cansara de
se ajoelhar ao lado da caminha dele, rezando por um milagre que o
tirasse daquele clima úmido que estava destruindo seus pulmões.
Milagres não aconteciam.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Aquele dinheiro representava
tão pouco para os St. Salvador. Era uma simples gota d’água no
oceano. A família não tivera a menor dificuldade para lhe dar
dinheiro, três anos atrás. Por que não fariam o mesmo de novo?
Sacudiu a cabeça, impaciente. Nunca deveria ter rasgado aquele
cheque. Mas como iria adivinhar que um dia precisaria tanto daquela
família?
Era outra linda manhã, o sol brilhava na torre da igreja a distância.
Um grupo de cavaleiros passava, galopando no asfalto. Havia crianças
entre eles, montando com a mesma destreza dos adultos, e os
cavalos eram cinzentos com caudas peludas, da bela raça comum na
Camargue.
Dionne observou-os, até desaparecerem, invejando aquela gente
simples, sem problemas. Depois, bateu com o pé no chão,
descarregando sua raiva. O que faria? Esperaria o dia inteiro, sem
ter certeza de que François ia voltar? Ou iria procurá-lo? Se
esperasse e ele não aparecesse, seria mais um dia perdido.
Onde procurar por ele? Conhecia o caminho para a Fazenda St.
Salvador, naturalmente. Tinha estado lá muitas vezes. Mas era uma
propriedade particular e seria uma intrusa, agora. Não tinha a menor
dúvida de que a mãe de François sentiria um grande prazer em
expulsá-la dela.
Por outro lado, não podia ficar no hotel, esperando. Seus nervos já
estavam aos pedaços. A única coisa que evitaria um colapso nervoso
seria tomar uma decisão e agir.
Sem hesitar, voltou para o quarto e trocou de roupa. Vestiu calças
compridas e camisa. Os cabelos estavam presos naquele coque
comportado e severo que vinha usando ultimamente e que esperava
que lhe desse uma aparência mais adulta e séria. Não precisava se
arrumar toda. Não queria impressionar ninguém na Fazenda St.
Salvador.
Depois de encher o tanque do Citroen, dirigiu para fora da cidade,
seguindo a trilha poeirenta entre o rio e o pântano. Um bando de
patos selvagens cruzou o céu, barulhentos, e, a distância, a plumagem
cor-de-rosa de um grupo de flamingos tremia como uma miragem.
As manchas coloridas entre os altos juncos revelavam-se flores
aquáticas e alfazemas que, de tão frágeis, parecia difícil de
acreditar que sobrevivessem em tal lugar.
Mais adiante, viu o que, um dia, a tinha enchido de alegria e
excitação: os touros negros da Camargue. Havia uns doze, num pasto
afastado do solo pantanoso. Ergueram a cabeça, quando passou por
eles, mas sem demonstrar grande interesse. Seus chifres eram
ameaçadoramente curvos.
Dionne agarrou com mais força o volante. Os animais tinham a marca
do duplo S. A marca St. Salvador. Era gado deles.
Não estou longe agora, pensou, agitada. Certamente, já entrara na
propriedade da família.
Mais adiante, um grupo de cavalos cruzou a estrada, na direção de
um bosque de árvores baixas e, quase escondido entre as folhagens,
ela viu o colorido inconfundível de uma caravana de ciganos.
Dionne pisou no freio e o carro parou com um solavanco. Observou a
caravana. Apesar do desleixo, havia alguma coisa de familiar ali.
Então, compreendeu o quê. Era a caravana de Gemma. Ela e
François...
Puxou o freio de mão e desceu do carro. O que fazia a caravana de
Gemma naquele lugar? Por que teria aquela aparência de abandono?
A idéia que lhe veio à cabeça deixou-a apavorada. Dionne afundou as
mãos nos bolsos das calças e aproximou-se lentamente dos arbustos.
Não era possível. Gemma estava velha, claro, mas era uma mulher tão
ativa, tão cheia de vitalidade. Não podia estar... morta! Ou podia?
Parou na beira da estrada. A terra em volta da caravana era úmida e
não estava usando sapatos adequados para andar na lama. Além disso,
era óbvio que não havia ninguém na carroça. As janelas estavam
trancadas e sujas e em parte alguma se via sinal de vida.
Dionne voltou para o carro, pensativa. Gemma tinha tanto orgulho de
sua caravana! Era seu lar sobre rodas, como dizia, que mantinha
sempre limpo e asseado.
Olhou novamente para o toldo colorido, com um nó na garganta. Será
que a velha tinha morrido? Seria essa a razão da amargura de
François?
Ficou com o olhar perdido no vazio. Gemma era o tipo de pessoa que
parecia que viveria para sempre, e a única do clã St. Salvador que
tinha mostrado apenas bondade para com ela. Um temperamento vivo
e liberal, que fazia com que desafiasse os anos: a idade não fazia
diferença, pois tinha uma alma eternamente jovem. A ideia de que
talvez não estivesse mais lá para ampará-la fez com que Dionne
desejasse nunca ter voltado à França.
O que faria agora? Voltar para o hotel ou enfrentar a esposa de
François, a mulher que nunca escondera sua antipatia por ela e que a
mãe dele preferira como nora, por ser filha de um grande
proprietário de terras da região?
Deu partida no carro e esforçou-se para pensar em Jonathan. Era
por ele que estava ali. Se tivesse de sofrer humilhações, então,
passaria por elas.
Agora, o automóvel passava por um trecho de estrada menos
pantanoso e, a distância, à sombra de um grupo de árvores
frondosas, avistou algumas casas. Pequenas construções de bambu
que brilhavam ao sol e pareciam desertas.
Parou novamente, sentando-se no capo, admirou a paisagem. Alguma
coisa se destacava no horizonte. Protegeu os olhos com as mãos,
tentando distinguir as formas.
Eram cavaleiros, os famosos gardiens da Camargue, que patrulhavam
os rebanhos de gado e cavalos como tinham feito por muitos e muitos
anos.
Quando se aproximaram, Dionne viu que tocavam uma manada de
touros negros e fortes, que a fizeram correr para procurar abrigo
dentro do carro. A fazenda St. Salvador criava touros espanhóis
para touradas, e não os musculosos, porém menores, animais típicos
da Camargue.
Um dos gardiens mais velhos foi até o carro a trote e tirou o enorme
chapéu.
- Bonjour, mademoiselle. Qu’est-ce que vous voulez? Dionne sorriu,
mais confiante do que realmente se sentia.
- Ou est monsieur François?
- Lepatron, mademoiselle? Il n’est pás ici.
O homem devia estar fazendo confusão. O patrão era o pai de
François. Por isso, corrigiu:
- Non, non pas lepatron, mais monsieur François.
- Monsieur François est lê patron.
Dionne não entendia. Então, onde estava o pai de François? Mas não
podia perguntar, pois não queria que o empregado percebesse que
conhecia a família.
- Pardon. Je ne connais pás bien lafamille.
- Vous êtes anglaise, mademoiselle, oui?
- Oui. Parlez vous anglais?
- Un peu, mademoiselle, un peu.
- Ótimo, monsieur. Sabe onde está o sr. François?
O homem olhou em volta e depois fitou Dionne. Seus olhos eram de
um azul profundo, como nunca tinha visto. Suas mãos nodosas e o
rosto pareciam talhados em mogno.
Ele pode estar em qualquer lugar, mademoiselle. Há muito para ser
feito nesta época do ano. Quer que avise que está esperando por
ele?
Dionne sacudiu a cabeça. Estava claro agora que ele a considerava
uma intrusa.
Oh, não. Tenho de voltar para Aries. O senhor pode dizer a seu
patrão para me procurar lá? Basta falar que o recado é da moça
inglesa.
- Bien sur, mademoiselle.
O velho inclinou a cabeça polidamente e, percebendo que esperava
que ela se retirasse, Dionne deu partida no carro e manobrou para
voltar pelo mesmo caminho pelo qual viera.
Mas tirou o pé da embreagem muito tarde e o carro derrapou para
trás, as rodas escorregando no chão barrento e desigual, caindo
numa vala.
- Droga!
Recusando-se a ficar nervosa, saltou e foi dar uma olhada nos
estragos.
Não acontecera nada sério, mas uma das rodas traseiras estava na
lona. Sem ajuda, nunca conseguiria sair dali. Olhou para o gardien,
que se aproximava lentamente.
- Tem uma corda, mademoiselle?
Dionne controlou a raiva com dificuldade. Teve vontade de responder
que não achava necessário andar com esse tipo de coisa, quando saía
para um simples passeio, mas limitou-se a fixar a roda danificada,
como se a força de seu olhar fosse suficiente para tirá-la da vala.
O homem fez a volta ao carro, coçando o queixo. Sua calma chegava a
ser enervante.
- Eu tenho corda, mademoiselle - disse, tranquilamente, pegando uma
na sela.
- Aonde se amarra isso no carro?
Sem responder, o velho abaixou-se e prendeu a corda firmemente no
pára-choque. Feito isso, endireitou o corpo e dirigiu-se a ela:
- Agora, a direção. Vá virá-la... mais ou menos assim - e mostrou o
que queria que fizesse.
Dionne abriu a porta do carro, girou o volante, corrigindo a posição
das rodas, e esperou que ele prendesse a corda na sela e montasse a
cavalo. Então, enquanto o animal puxava, ela empurrava. Estava
coberta de suor quando conseguiu tirar a roda da vala. Aí, ouviu um
galope que se aproximava.
Olhou em volta, nervosa. Era um cavaleiro sozinho. A princípio,
pensou que fosse um garoto. Depois, percebeu os cabelos castanho
escuros caídos nos ombros. Uma menina! Endireitou-se, apreensiva,
enquanto a garota se aproximava, mas não estava preparada para a
reação da recém-chegada.
- Dionne! Dionne, é você! Meu Deus, o que está fazendo aqui? Olhou
para a menina, espantada, seu retraimento destruído pelo prazer que
havia na voz da outra.
- Louise! Quase não a reconheci. Você era uma criancinha, quando...
fui embora.
- Eu já tinha catorze anos naquela época, Dionne. Agora estou com
dezessete. Mas o que faz aqui? Veio para ver grand-mère,
Dionne sentiu-se tonta. Aquele era um imprevisto com o qual não
contara. O entusiasmo de Louise parecia tão verdadeiro, que não
sabia o que responder. Virou-se para o gardien, que guardava a
corda, e agradeceu calorosamente, procurando ganhar tempo para
pensar no que dizer à garota. Assim que o homem se afastou,
perguntou:
- Você falou grand’mère? Quer dizer... quis dizer... Gemma?
- É claro. Naturalmente você não ia embora sem vê-la.
- Eu... eu vi a carroça e pensei... Oh, não importa. Olhe, Louise, esta
não é uma visita social. - Fez um gesto desolado. - Acho que você
ainda é muito jovem para perceber que eu não seria muito bem
recebida.
Os olhos da garota brilharam de lágrimas.
- Grand’mère recebe tão poucas visitas... Mas, então, por que você
está aqui? Pensei que François tivesse ido vê-la ontem à noite.
- Você sabe sobre isso?
- Mas é claro. Reconheci sua voz ao telefone. Fui eu quem disse a
François que você devia estar lá no hotel.
- E todo mundo... sabe? Louise fez uma careta.
- Não. Todo mundo, não. Só François e eu.
- Diga-me uma coisa, Louise, seu pai não está mais aqui?
- Papai está morto - respondeu, sentida. - Morreu há dois anos.
François está encarregado de tudo. Esta é a fazenda dele, e os
touros são dele.
Dionne estava surpresa e chocada.
- Eu não fazia a menor ideia. Sua mãe ainda mora na fazenda?.-
Claro. E Yvonne.
A notícia foi como um soco em seu estômago, apesar de não ser
realmente nenhuma surpresa.
- Oh, sim, Yvonne.
Louise olhou para ela por muito tempo.
- Você parece mais magra, Dionne. Como tem passado? Ainda leciona?
- Ainda. E você? Terminou a escola?
- François está falando em me mandar estudar na Suíça, mas não
quero ir. Adoro isto aqui. Não posso entender por que quer me
mandar para lá. - Parou e olhou para a moça interrogativamente. -
Você sabe sobre o acidente de Yvonne, não é?
- Não. Que acidente?
- Ela foi ferida por um touro. Está paralisada da cintura para baixo.
Dionne ficou chocada. Louise tinha contado aquilo tão
despreocupadamente. Como se achasse que Yvonne era a culpada.
- Mas que coisa terrível! Quando... quando isso aconteceu? A garota
deu de ombros.
- Pouco depois que você partiu, acho. É tão importante?
- Você não acha? - Dionne estava horrorizada. Louise brincava com as
rédeas.
- Yvonne só teve o que pediu. Estava zangada com François e achou
que podia aborrecê-lo, provocando os touros. Ninguém deve brincar
com touros.
Dionne prendeu uma mecha solta do coque. Não era de admirar que
François parecesse tão mais velho e amargurado. Que tempos
difíceis deviam ter sido para ele!
A garota tocou em seu braço de leve.
- É bom ver você novamente, Dionne. Sinto muito realmente que
tenha ido embora. Mas, por que queria ver François? Pensei...
pensamos... - Parou, de repente. - Vai ficar muito tempo na
Camargue?
- Não sei ainda, Louise. Depende...
- Veio até aqui hoje à procura de François?
- Vim. Onde está ele?
- Nos vinhedos. - Encarou a moça, muito séria. - O que aconteceu
ontem à noite?
Dionne fingiu não entender.
- O que quer dizer?
- Entre você e o meu irmão. Dionne, sabe o que quero dizer. Ele
voltou de péssimo humor. Nem Yvonne ousou perguntar nada. Apenas
suspeitei que vocês tinham brigado.
Dionne não estava gostando do rumo da conversa.
- Louise, tenho que ir. Se François não está aqui, nada feito. Quero
dizer, não tenho nenhum motivo para ir até à casa.
- E a grand’mère? Digo que vi você?
- Não posso impedi-la, é claro, mas talvez não seja muito gentil,
nestas circunstâncias.
- Oh, Dionne! - A garota agarrou suas mãos. - Por que está tão cheia
de segredos?. Por que voltou depois de tanto tempo? com certeza,
sabe o que significa para François vê-la novamente... agora.
Dionne deu partida no carro.
- Sinto muito, Louise. Sinto muito se pensa que estou escondendo
segredos. Gostaria de ter visto Gemma. Adeus...
- Adeus. - Mas continuou apoiada na porta do carro. - Posso ir vê-la
no hotel, antes de você ir embora?
- Não acho que seja uma boa idéia. Au revoir.
Louise acenou e Dionne manobrou o Citroen e dirigiu de volta à
cidade, com um nó na garganta.
CAPÍTULO III

Depois do jantar daquela noite, Dionne subiu para o quarto para


escrever para Clarry. Precisava fazer algo que nada tivesse a ver
com os St. Salvador e com tudo que lhe havia acontecido.
O dia todo tinha pensado no acidente de Yvonne, até ficar com uma
tremenda dor de cabeça. Não conseguia entender o porquê da falta
de sentimento de Louise. Que terrível ficar paralítica, talvez por
toda a vida! Esqueceu a malícia de Yvonne no passado. Tudo de que se
lembrou foi da habilidade dela sobre os cavalos, sua excelente forma
física, tudo destruído no espaço de alguns minutos de descuido. E
Yvonne não era o tipo de pessoa que aceitava as coisas com
resignação.
Dionne pegou caneta e papel, mas não fez esforço algum para
escrever. Não pôde evitar de ficar pensando em François e na sua
situação desesperadora. Era um homem tão viril, tão forte e cheio de
vitalidade! Será que Yvonne o culpava? Será que era essa a causa
daquele olhar derrotado e cansado que tinha dilacerado o coração de
Dionne?
Segurou o queixo entre as mãos, tentando controlar às lágrimas que
ameaçavam rolar pelas faces. Não devia ter ido. Não devia ter
deixado Clarry persuadi-la de que devia fazer isso por Jonathan.
O que adiantaria, se nada conseguira até agora, exceto sentir-se
pior do que nunca, depois de saber o que tinha acontecido ali?
Se as coisas fossem diferentes!, pensou, desesperada. Se ela e
François nunca tivessem se separado. Certamente o que haviam
compartilhado significara algo para ele. O relacionamento deles tinha
sido tão forte e violento; e a separação, tão rápida e inesperada.
Mesmo agora, sentia a dor angustiante daquele adeus, tornada cada
vez mais comovente e desesperadora por causa do que acontecera
depois.
E aquela mulher indomável, Gemma, com suas superstições e
estranhas crenças religiosas, também tinha tido um papel importante
encorajando-os a pegar o que era deles por um direito tão antigo
como as origens medievais dos cavalos brancos da Camargue.
Mas não tiveram o segundo gostinho de felicidade. Dionne enterrou o
rosto nas mãos. A vida, às vezes, pode ser tão injusta! Quando
parecia que o céu estava ao alcance das mãos, ele era arrebatado
com uma insensibilidade, que podia destruir o coração e a alma dos
amantes.
com a respiração entrecortada, a moça levantou-se e foi até a
janela, observando a pequena praça. As sombras iam se alongando, na
medida em que o sol se punha no céu, mas havia uma brisa suave e um
perfume no ar que a fizeram ter vontade de sair para a rua, longe do
aperto daquele quartinho de hotel.
Num impulso, foi até a porta e desceu a escada, até alcançar aquele
ar fresco da tarde. Usava um vestido simples de jérsei cor-de-
violeta que acentuava o colorido de seus olhos. Era um vestido longo,
que Clarry comprara para que ela fosse a uma festa de Natal. Acabou
não indo, mas o vestido era um de seus prediletos e perfeito para
aquela época do ano, na Camargue.
Fora do hotel, caminhou a esmo, sem saber aonde ir, já que só tinha
descido para respirar. As poucas pessoas que estavam nas ruas
formavam grupos de dois ou três; apenas ela estava sozinha.
Começou a andar, resolvida a ir tomar um café num bar ali por perto.
Ela se sentiria menos solitária entre gente barulhenta, que se
divertia.
Um carro freou bem perto, quando atravessava a rua e dois jovens
franceses se debruçaram na janela, perguntando seu nome e para
onde ia. Eles a convidaram a acompanhá-los e insistiram. Dionne fez o
possível para ignorá-los e para que a deixassem em paz. Mas, quando
pensou que iam embora, um dos rapazes saltou e se aproximou,
atrevido.
- Ah, mademoiselle, chère mademoiselle, ne voudriez-vous pas venir
avec mês amis et mói?
- Quer sair da minha frente? - Dionne foi obrigada a parar, porque
ele bloqueou-lhe a passagem.
- Oh, anglaise! Mais si belle anglaise, eh? - Olhou para os amigos e
outro dos rapazes abriu a porta do carro, convidativo.
Dionne ficou visivelmente perturbada. Aquela parte da rua estava
quase deserta, e temia que a forçassem a acompanhá-los. Eles tinham
estado bebendo e não eram totalmente responsáveis por seus atos, o
que não facilitava em nada as coisas para ela.
- Quer me deixar passar, por favor?
Tentou esconder o tremor da voz, mas o jovem à sua frente avançou
para ela, como se fosse agarrá-la.
Agora, Dionne estava assustada de verdade e recuou, chocando-se
contra o corpo rígido de um homem. Imediatamente, entrou em
pânico. Virou-se às cegas, golpeando seu peito com os punhos,
pensando ser outro daqueles rapazes. Mas o homem que empurrou
seu corpo trémulo para o lado não era nem amoroso nem jovial. Era
alto, magro e violento. Agarrou o bêbado atrevido pela camisa e
jogou-o contra o carro, fazendo com que perdesse o equilíbrio e
batesse a cabeça no capo. Todo o tempo, xingava o outro em francês,
e Dionne não soube como o rapaz, assustado e tonto como estava,
conseguiu encontrar fôlego e forças para fugir. Os amigos já o
esperavam com a porta aberta, e o automóvel partiu, cantando pneus
e levantando uma nuvem de poeira.
Foi apenas depois disso que o homem virou-se para ela. Seus joelhos
tremeram, quando percebeu quem tinha sido seu salvador.
François olhou-a por um instante. Depois disse:
- Vamos! Acabou, agora. Só gostaria de saber o que você pensa que
está fazendo, andando na rua a esta hora e, ainda por cima, sozinha.
Dionne controlou-se com dificuldade.
- Saí... para um passeio, é tudo. Certamente uma mulher pode sair
para um passeio sem ter, obrigatoriamente, que passar por esse tipo
de vexame. - Passou as mãos pelos cabelos, prendendo algumas
mechas soltas. Sentia-se ridícula e sua cabeça doía. - Eu... eu
agradeço... o quê você acabou de fazer por mim.
François fez um gesto impaciente.
- Não foi nada. Mas nem quero pensar no que poderia ter acontecido
se eu não aparecesse! - Franziu o cenho e olhou para ela.
- Dionne, ouça: aqui não é a Inglaterra e com a sua aparência...
Parou, procurando nos bolsos uma caixa de cigarrilhas. Tirou uma,
acendeu displicentemente, e depois falou: - Venha! Estou aqui para
falar com você.
- Louise contou que fui até a sua casa, naturalmente.
- Por que não? E você não foi até a casa... Dionne levantou os ombros.
- Como poderia?
François estudou o pálido oval de seu rosto por um instante. Depois,
sem fazer nenhum comentário, começou a andar pela calçada. Dionne
se viu forçada a segui-lo, imaginando aonde iriam.
Não teve que imaginar por muito tempo. Estacionada na praça, diante
do hotel, estava uma caminhonete Citroen coberta de poeira.
François abriu a porta ao lado do motorista e disse, rígido:
- Entre.
Era uma ordem, e Dionne obedeceu, sentindo que as pernas não a
sustentavam mais. François deu a volta e sentou-se a seu lado. A
moça o observou disfarçadamente. Tinha uma aparência
perturbadoramente máscula, aquelas calças pretas, botas até os
joelhos, camisa azul-escura aberta nO peito, revelando a pele
queimada de sol.
Havia um medalhão preso numa corrente no pescoço e quase
escondida entre os pelos do peito, mas Dionne sabia o que significava
aquele medalhão. Era o emblema de Sara, a menina serva da lenda lês
Saintes Maries de la Mer, adorada e santificada pelos ciganos de
toda a Europa, cujo dia de festa era o mais importante para aqueles
povos nómades.
Seu coração disparou, enquanto observava aquela pele queimada e
recordava sua maciez. Sentia um desejo incontrolável de esticar a
mão e tocá-lo, e sua respiração tornou-se ofegante. Era
desesperador tentar se controlar e reprimir seus impulsos.
François deu a partida e a caminhonete pesada saiu do
estacionamento. Ela queria perguntar aonde iam, mas reprimiu a
curiosidade também. Já era bastante estar ali com ele, não queria
estragar tudo, procurando respostas para perguntas que só poderiam
irritá-lo e provocar uma briga.
Ele dirigiu para fora da cidade, seguindo a estrada nordeste, em
direção a Lês Baux. Passaram pela cidadezinha adormecida de
Fontvieille e chegaram ao sopé da cadeia de montanhas da qual Lês
Baux fazia parte, com seus castelos cinzentos em ruínas e torres
desmoronadas.
François encostou o carro no acostamento e abriu a janela.
- Bien? - ele disse. - O que está pensando agora? Dionne sacudiu a
cabeça.
- Nada.
E era verdade. Naquele momento, sua mente estava vazia de qualquer
imagem real ou irreal. A proximidade dele era enervante. com um
gesto decidido, abriu a porta e desceu, tremendo ligeiramente,
quando o ar gelado da noite a envolveu. Era muito mais frio ali do que
em Aries.
François também desceu e, por um momento, ficou fitando as
montanhas rochosas e o céu cinzento, onde algumas estrelas tímidas
ameaçavam brilhar. Depois, olhou para ela, e o tremor que Dionne
sentia agora não era mais de frio e, sim, de apreensão.
- Por que você não me deixa em paz? - Ele perguntou, com voz
estrangulada. - Por que veio até aqui agora? - Seus olhos brilhavam
estranhamente, e Dionne afastou-se, assustada.
- Você sabe por quê.
- Não! Não, eu não sei! - François gritou, feroz. - Você diz que
precisa de dinheiro e, mesmo assim, se recusa a me contar o motivo.
Espera a minha ajuda e se comporta como se eu tivesse obrigações
para com você e nenhum direito!
- Não torne as coisas tão difíceis! Uma vez, você não criou tantos
problemas para me oferecer dinheiro!
A expressão de François ficou sombria. - O que quer dizer com isso?
- E importa? - Ela deu um chute numa pedra, irritada. - Por que me
trouxe até aqui? Por que você voltou? Vai me ajudar?
François olhou para ela, com impaciência. Depois, passou a mão pelos
cabelos grossos e escuros.
- Eu vim... porque tenho um convite a lhe fazer. Gemma quer ver
você!
- O quê? - Dionne arregalou os olhos, espantada. - Mas... como é que
Gemma sabe que estou aqui?
- Como é que Gemma sabe das coisas? Oh, Deus, imagino que Louise
tenha lhe contado. Tem importância? Você vai aceitar?
A moça respirou fundo.
- Eu... acho que não. Sua mãe não me quer lá. Que bem traria? Além
disso, sua esposa...
François agarrou seu braço, num gesto cruel e irritado.
- Minha esposa? Que esposa? Não tenho nenhuma esposa... ainda!
O coração de Dionne disparou, descompassado.
- Louise me contou... Sobre Yvonne e o acidente. Ela... ela disse que
Yvonne mora com você.
François fitou-a de cima a baixo. Seu olhar era frio e penetrante.
- Yvonne está conosco - corrigiu, - Ela é uma inválida inútil! Jane
morreu. Onde mais poderia viver? Mas não é minha esposa.
Dionne tremia violentamente, debatendo-se e tentando libertar-se
do braço, que ele segurava com força.
- Meu pulso... Você está quebrando meu pulso!
perturbado, François olhou para as marcas avermelhadas na pele dela
e murmurou:
Dieu, Dionne, sinto muito.
Levantou seu braço, para examinar o machucado. Sua mão lutou na
dele, como um pássaro aprisionado e ela sentiu seu olhar apaixonado.
Dionne pressentiu o perigo. com um grito torturado, afastou-se,
fugindo para o outro lado do carro e esfregando o pulso dolorido.
- Eu... eu acho que devíamos voltar. - Falou, com voz insegura.
François virou as costas para ela e passou as mãos pela cabeça, num
gesto de desalento. Dionne observava, incapaz de afastar os olhos
dele. Depois, as mãos morenas caíram ao longo do corpo e ele voltou-
se para encará-la.
Mas logo desviou o olhar e sentou-se à direção sem dizer mais nada.
Ela entrou no carro, devagar, evitando tocá-lo ou aproximar-se
muito, arrumando a saia comprida sobre as pernas esguias. Mas ele
nem sequer olhou.
Esperava que François desse partida e saíssem dali, mas suas mãos
permaneceram imóveis sobre a direção. Depois de um longo silêncio,
ele falou:
- Se você concordar em vir até em casa para ver Gemma, eu
empresto o dinheiro de que precisa para seu propósito secreto.
- Não pode estar falando sério!
- Por que não?
- A minha ida lá... só traria aborrecimentos. Você sabe que sua mãe
odiaria. Ela... ela me detesta! E quanto a Yvonne... - A voz de Dionne
sumiu.
Ele virou-se para olhá-la no interior sombrio do carro, com muito
brilho naquele olhar perturbador.
- Talvez eu ache bastante tentadora a ideia de você ter de
enfrentar aquelas duas.
Dionne levou as mãos ao estômago.
- Você não pode ser tão cruel!
- Não posso? Você ficaria surpresa se soubesse as coisas que sou
capaz de fazer!
- François, por favor! - implorou, com os olhos começando a brilhar
de lágrimas. - Isso só vai causar dor e sofrimento para todos!
Acredito que você não queira uma coisa dessas.
- Por que não? Pode ser divertido.
Ele ligou a luz, de repente, e observou o rosto suave e altivo da
moça. Depois, pegou sua mão esquerda, que estava pousada no colo.
Era fina, elegante e sem enfeite nenhum.
Dionne não tentou retirá-la, mas ele a soltou, com um gesto irritado.
- Diga-me uma coisa: esse homem, para quem você precisa entregar o
dinheiro, ele pelo menos ama você?
- Não há homem algum!
Os olhos de François se tornaram céticos.
- Então, precisa de dinheiro para você mesma? Dionne corou.
- Preciso.
- Por quê? Qual é o motivo? Você diz que não está grávida, que não
está com problemas desse tipo. Então, o que é? O que poderá ser?
- Oh, François, por favor! Pare de me torturar desta maneira!
A voz dela estava trémula e, com as costas da mão, secou as
lágrimas.
O rosto de François ficou sombrio. Sem nem mais uma palavra, ele
deu partida no carro.
Levou-a em silêncio, de volta ao hotel. Apenas quando pararam diante
da porta, Dionne falou novamente. Tinha que dizer algo, dar uma
resposta, e sabia que ele estava ciente de seu dilema, tanto quanto
ela, mas não a ajudaria.
- O que você pretende fazer? - Perguntou, ainda insegura.
- Isso depende só de você. Dionne passou a mão pelos cabelos.
- Você pretende levar adiante... o que disse? Vai me obrigar a ir até
a casa?
Ele recostou-se, indolente, no assento, os dedos longos batendo num
ritmo contínuo contra a direção.
Se quiser a minha ajuda... sim.
Dionne encolheu os ombros e disse:
Muito bem. Então, quando?
Você virá? - Seus olhos apertaram-se.
- Tenho escolha?
Parece que não, mesmo. Deve precisar muitíssimo desse dinheiro,
Dionne, e não posso acreditar que seja a única pessoa envolvida. Há
razões mais fortes para aceitar tal sacrifício.
Ela abriu a porta do carro.
- Posso ir agora?
- Um momento. Virei buscá-la depois de amanhã. Amanhã tenho que ir
até Nimes. Sinto demorar, mas não tenho dúvida de que pode
esperar. Se é que é tão importante assim para você!
Dionne apertou os lábios. Ele podia ser estupidamente insolente
quando queria! E suas palavras duras eram como punhais, rasgando
seu coração.
Como é que podia acreditar que ele a achava algo mais do que apenas
fisicamente perturbadora? Era óbvio, por sua atitude, que
considerava seu pedido de ajuda apenas um capricho feminino, com
fins fúteis e egoístas.
Saltou do carro, antes que François pudesse dizer alguma coisa mais.
Ele curvou-se para trancar a porta atrás dela e deu a partida,
cantando os pneus.
Dionne entrou no hotel vagarosamente, sentindo-se exausta. Deixou-
se dominar pela desolação e pela impotência, imaginando,
desesperada, como é que ia enfrentar os próximos dois dias, até vê-
lo novamente...
No entanto, o dia seguinte não foi tão opressivo como esperava.
Ninguém podia ficar imune ao calor do sol da primavera, aos botões
em flor, aos canteiros desabrochando seu colorido, e Dionne sentiu-
se reanimada por toda aquela beleza.
37
Resolveu escrever a Clarry de manhã e depois foi colocar a carta no
correio. Mencionou que havia entrado em contato com François e qUe
esperava ter boas notícias dentro de poucos dias. Mas foi só o qUe
escreveu.
Dificilmente poderia contar a Clarry que ele não sabia nenhum dos
fatos do caso. Ou que ela não tinha a menor intenção de contar-lhe
esses fatos. Se a consciência a incomodasse um pouco que fosse,
bastaria lembrar as atitudes de François para se sentir plenamente
justificada. Ele não estava em condições de saber a verdade. Era
bastante possível que, se tomasse conhecimento da existência de
Jonathan, fizesse o possível para privá-la do filho... apenas para
magoá-la. Quanto a Jonathan ser filho dele também, não era
relevante.
Mas sua consciência lhe dizia que, apesar de tudo isso, François
tinha todo o direito de saber a verdade. Saber que era o pai de
Jonathan!
Foi muito bom que uma visita inesperada estivesse a espera dela no
hotel, ou seu dia teria sido um inferno.
Sendo assim, ficou até aliviada ao ver o insistente Henri Martin.
Ele estava sentado na recepção, e seu rosto tornou-se ansioso,
quando a viu atravessando o hall em direção da escada.
- Mademoiselle King!
Sua voz a fez parar. Virou-se para ele, surpresa.
- Ora, monsieur Martin! Mas o que está fazendo por aqui? Henri
abriu os braços num gesto de desculpa.
- Vim me oferecer como seu guia para o almoço - confessou. Perdoe,
se tomei a liberdade de vir até aqui, mas talvez dê um jeitinho de
não ficar zangada comigo.
Dionne suspirou. Apesar de, a princípio, querer rejeitá-lo, algo fez
com que hesitasse. Quem sabe não seria bom para ela sair do hotel?
Longe de associações de ideias e lembranças que lhe tiravam a paz.
Henri Martin, pelo menos, não estava ligado aos seus assuntos
pessoais.
- É muito amável de sua parte, sr. Martin. Aceito, com prazer Mas
terá que me dar uns minutos para subir e trocar de roupa.
O rosto de Henri revelou toda a alegria que sentia.
Ele realmente é um homem bonito, ela pensou.
Vestia um terno cinzento muito bem cortado, com uma camisa de
canbraia de linho imaculadamente branca. Era de uma elegância única
naquela região, onde a maioria dos homens se vestia como
fazendeiros, igual a François St. Salvador.
Houve época em que ele também usava roupas elegantes. Apesar de
terem sido raras as vezes em que Dionne o vira assim, lembrava-se
de que tinha uma aparência perturbadora e inteiramente
devastadora, com sua pete cigana - herdada da avó - ainda mais
valorizada pelo garbo de um gardien.
- vou ficar encantado de esperar o tempo que quiser - Henri afirmou,
galante.
Dionne devolveu-lhe o sorriso, antes de subir a escada, apressada.
Quando desceu, usando um vestido curto de linho verde, parecia
incrivelmente jovem, e ficou contente ao ver o olhar de admiração de
seu novo amigo.
Almoçaram num restaurante enorme, no centro de Aries, onde Henri
era obviamente muito conhecido, e Dionne começou a pensar qual
seria o seu ramo.
Comeram rins no espeto com tomates e cogumelos e uma salada.
Apesar de ter dito que não tinha muita fome, ela comeu com apetite.
Era jovem e saudável, e a companhia de Henri, tão relaxante, depois
daquela tensão absoluta dos encontros com François.
Depois do almoço, ele sugeriu um rápido passeio até a parte superior
do vale do Ródano, para ver os vinhedos, mas Dionne recusou. Nimes
também era naquela região, e ela não tinha vontade alguma de se
encontrar com François, estando na companhia de Henri. Além disso,
ele poderia pensar que ela o estava seguindo, o que seria intolerável.
Em vez disso, foram até Lês Saintes Maries de la Mer e passaram
duas horas agradáveis andando na praia.
Dionne soube de muitas coisas sobre Henri, naquela tarde na praia.
Por exemplo, que a família dele era dona de uma loja enorme em
Aries, com filiais em Avignon e Marselha, e que Henri tinha estudado
contabilidade e economia em Paris para se preparar para assumir, um
dia, a direção da companhia.
Dionne ficou lisonjeada por ele demonstrar tanto interesse por ela
Mas não havia dúvida de que, em Aries, Henri devia ser considerado
um partidão e que seus pais, como os pais de François, não
aprovariam que se envolvesse com uma professorinha inglesa... e
pobre.
Deu poucas explicações por estar naquela parte da França, deixando-
o supor que era apenas uma turista.
Mas, enquanto conversavam, Dionne pensou: era bem provável que
Henri conhecesse François e toda família. A propriedade dos St.
Salvador era, afinal, uma das maiores e mais prósperas da região, e
os vinhedos, no vale do Ródano, podiam muito bem produzir o vinho
vendido nas lojas do pai de Henri.
Mas recusou-se a continuar a pensar naquilo. Pelo menos naquele
momento, pouco importava que François soubesse de sua ligação com
o rapaz. De certa maneira, ela estava se divertindo.
Há anos que não se sentia tão à vontade junto de um homem. Henri
era tão encantador e bondoso, que a conversa fluía com naturalidade.
Discutiram sobre livros e pintura, descobriram que tinham o mesmo
gosto em cinema, e ficou surpresa quando ele avisou que já eram
quase cinco horas.
Voltaram para Aries alegres e despreocupados. Mas, ao parar diante
do hotel, Henri falou, ansioso:
- Quando posso vê-la novamente? Esta noite? Dionne segurava a
maçaneta da porta.
- Não... hoje não, Henri. Nem amanhã. Já tenho planos para amanhã.
Um compromisso...
O rosto do rapaz ficou sombrio.
- Então, quando?
Dionne suspirou. Como poderia marcar alguma coisa, se nem ao menos
sabia quanto tempo ficaria por lá?
- Talvez seja melhor você me telefonar - sugeriu. - Está bem assim?
Henri encolheu os ombros.
- Está certo, se é o que quer. Mas você vai atender ao telefone,
não vai?
É claro. Eu... eu me diverti tremendamente essa tarde. Por favor, não
pense que estou inventando desculpas. Não tenho a menor intenção
de fugir de você.
- Ótimo. Então, está combinado: vou telefonar. Depois de amanhã,
oui?
Dionne concordou e abriu a porta rapidamente, percebendo que ele
se inclinava, como para dar um beijo de despedida.
- Até logo - disse, acenando.
- Au revoir, Dionne.
Ele acenou de volta e o carro esporte partiu suavemente.
Já no quarto, Dionne jogou descuidadamente a bolsa sobre a cama.
Não tinha mentido. Realmente se divertira muito de uma maneira
superficial. Henri não havia despertado nada de mais sério dentro
dela, e sentia que podia ser natural com ele. Claro que realmente ela
o atraía, mas estava habituada à admiração casual dos homens: não
passava de atração física. Era tão comum eles se interessarem
apenas por seu corpo, que às vezes chegava a pensar que não tinha
mais nada a oferecer.
Despiu-se, tomou um banho de chuveiro frio, vestiu um robe de seda
e foi deitar-se. Sentia-se exausta, mas não era de admirar, naquelas
circunstâncias. Não tinha dormido bem, desde que chegara. Sua
mente muito ativa não a deixava relaxar completamente.
A tarde na praia e a brisa do mar haviam feito bem a seus nervos.
Agora, seus olhos estavam pesados e sentia a cabeça vazia, leve.
Dormiu e, quando acordou, já tinha escurecido lá fora. - Sentiu-se
fria até os ossos. Levantou e procurou o relógio. Encontrou-o em
cima da mesinha, onde tinha deixado antes do banho. Ficou
horrorizada ao descobrir que era quase meia-noite. Inacreditável!
Tinha dormido quase seis horas!
Abriu a porta do quarto de mansinho. Não havia ruído algum lá
embaixo. Arrepiada, fechou a porta. Devia voltar para a cama. Não
havia motivo para trocar de roupa e descer agora.
Mas, novamente entre os lençóis, sentiu-se bem acordada. O luar
entrava pela janela, inundando o quarto. De algum lugar distante,
vinha o som nostálgico de um violão, tocando uma melodia triste, que
mexia com sua sensibilidade.
Pulou da cama, suspirando, e foi debruçar-se na janela, olhando para
a praça sombria.
As árvores tinham as folhas num suave balanço e o luar transformava
seus troncos em fantasmas cinzentos.
Um carro estava estacionado na praça. Uma caminhonete cinzenta e
poeirenta, meio escondida pelas árvores.
Dionne olhou atentamente e viu um vulto alto e magro de homem, com
o cabelo prateado pela luz pálida. Estava vestido de escuro, roupas
de vaqueiro, e paletó desabotoado. Olhou para cima, de repente,
procurando as janelas do hotel, e Dionne recuou, trémula, ao
reconhecer a figura altiva de François. Era ele. François ali, do lado
de fora do hotel, andando para cima e para baixo, com insistência,
nervoso.
Atreveu-se a olhar novamente. Ele estava inclinado sobre o capo do
carro, acendendo uma cigarrilha. Por segundos, uma chama iluminou
seu rosto.
Depois, ele deixou a cigarrilha na boca e recostou-se na caminhonete
empoeirada, os ombros jogados para trás, numa atitude de desafio.
Dionne prendeu a respiração, com um aperto na garganta.
Por que ele estava ali, àquela hora da noite? Por que fizera todo
aquele caminho para estacionar do lado de fora do hotel? Que
motivos teria para sair da cama e ir até a praça solitária?
Cruzou os braços diante do corpo, sentindo-se nauseada; uma náusea
que nada tinha a ver com fome.
Por que tinha caído no sono mais cedo? Por que não foi para a cama
na hora normal, evitando assim ver algo que não devia?
Voltou à janela. O carro tinha ido embora. A praça estava deserta.
Ficara tão abalada em vê-lo, que nem ouviu o ruído do motor!
CAPÍTULO IV

Na manhã seguinte, Dionne acordou muito cedo e foi até o


restaurante tomar café, antes que os outros hóspedes descessem.
Tinha passado a noite nervosa e agitada, sem conseguir compreender
o que se passara.
Resolveu usar um vestido simples de algodão azul, que tinha
conhecido dias melhores e que não ficaria deslocado na fazenda.
Não queria que a mãe de François, ou Yvonne pensassem que
Pretendia chamar atenção. Era ingénua demais para perceber que
Podia usar qualquer coisa, que sempre pareceria elegante. Mas o
tempo foi passando e François não apareceu. Dionne começou a ficar
preocupada. Pensou que ele chegaria cedo, mas, quando o relógio
marcou dez e meia, achou que não viria mais.
Seu coração estava pesado, enquanto andava de um lado para outro
no hall de recepção, desanimada, desejando que ele aparecesse.
Será que estava fazendo esperar de propósito, para tirar alguma
vantagem?
Foi até a porta mais uma vez e olhou para a praça.
Monsieur Lyons, o gerente, aproximou-se.
- Há algo de errado, mademoiselle? - perguntou, muito solícitu como
de hábito.
- Não... não, nada de errado, monsieur Lyons. Estou esperando por
alguém, é só.
- Ah, um jovem, talvez. - Ele parecia muito amistoso e confidencial. -
Gostaria de tomar café, mademoiselle? Posso pedir para Maurice
servir-lhe um.
- Oh, seria maravilhoso! - Queria e precisava de algo que acalmasse
seus nervos.
- Mais certainemente, mademoiselle, vou providenciar
imediatamente.
- Obrigada. - Dionne sorriu e o gerente saiu, apressado. Minutos mais
tarde, estava de volta com a bandeja e indicou que Dionne devia ir
até o salão.
- Voilá, mademoiselle! - Parecia muito contente com ele mesmo.
Dionne serviu-se e ia beber, quando percebeu que havia alguém
parado indolentemente no umbral da porta, observando-a.
Olhou diretamente nos olhos cinzentos de François, e seu coração
disparou, enquanto a xícara tremia em sua mão.
- Então? - ele falou, entrando no salão. - Está pronta?
- Você já percebeu que são quase onze horas? François deu de
ombros.
- E daí?
A raiva foi mais forte do que todas as outras emoções.
- Estive esperando por você desde as nove horas! Pensei que
pretendia me levar até a casa hoje de manhã.
- E pretendo. - Ele estava enervantemente controlado.
- Mas... já está quase na hora do almoço!
- Então, almoçaremos lá em casa.
- Oh, François! - Seus lábios tremeram -, não me obrigue a passar
por isso!
A expressão dele endureceu.
Sugiro que troque de roupa, mademoiselle. - François ignorou o seu
apelo. - Um vestido não é adequado para o que tenho em mente. Vista
calças compridas!
Dionne concordou, notando como ele estava atraente. Calças justas
que moldavam bem os seus músculos rijos, como uma segunda pele,
uma jaqueta cinza e camisa vermelha. Parecia um nobre francês:
elegante, altivo e de uma arrogância inigualável.
Henri, com seus ternos bem comportados, nunca poderia se comparar
a ele. Mas que tolice estava pensando...
Foi direto para o quarto, correndo pela escada. Tirou o vestido azul
e colocou uma calça creme e uma blusa de cambraia lilás, com um
babadinho na gola e nas mangas.
Deixou os dois botões de cima desabotoados, verificou se os cabelos
estavam arrumados e presos naquele coque severo, e desceu.
François servia-se da segunda xícara de café, conversando com o
gerente.
Dionne controlou a indignação, ao vê-lo beber calmamente seu café.
Quando entrou no salão, o gerente virou-se para ela, todo gentil:
- Monsieur St. Salvador estava me contando que vão até a fazenda
dele hoje, mademoiselle. Será uma experiência excitante, estou
certo.
- É verdade. - Dionne parecia bem pouco confiante.
François tinha se levantado para recebê-la e a observava
atentamente. Depois, terminou o café, deixou a xícara na bandeja e
foi até ela.
- Muito melhor - ele aprovou, e Dionne sentiu um calor subir-lhe ao
rosto.
François acenou adeus ao gerente e saíram.
O sol estava quente. Era um dia lindo e, em outras circunstâncias, a
perspectiva de um passeio seria empolgante. Mas, daquele jeito,
Seria um dia tenso e exaustivo.
Dois cavalos estavam presos na cerca do hotel e não havia sinal da
caminhonete. Dionne virou-se para ele.
- Está desapontada? Preferia ir de carro?
- Você sabe que sim. Faz anos que não monto!
- Três anos, para sermos mais exatos. - François provocou, e ela
desviou o olhar.
As montarias eram duas éguas. Uma branca, da Camargue, pequena e
atarracada, parecendo muito dócil. A outra, preta e nervosa
exatamente o tipo de animal que ele gostava de montar. Três anos
atrás, François tinha um garanhão preto. Como que respondendo a
pergunta que ela não chegara a fazer, ele disse:
- Essa é Consuelo. Gaspar era o dono.
Dionne não fez comentários, e François soltou as rédeas da égua
branca.
- Esta é Melodie. - Acariciou o pescoço do animal, antes de oferecer
a mão para ajudá-la a montar
Mas Dionne não queria nenhum contato com ele; agarrando a sela
tentou erguer o corpo.
François olhou-a por um momento, como checando sua habilidade
depois, com um dar de ombros, montou na égua preta, controlando-a
com facilidade.
Dionne esperou que ele partisse, e só quando atravessou a praça,
esporeou Melodie.
Apesar de fazer muito tempo que não montava, aquela égua era fácil
de se lidar e sentiu-se segura.
François a ensinara a montar, e ele era um bom professor.
Os dois cavalos seguiram por uma avenida, a égua branca a uma boa
distância da outra. Depois de alguns minutos, ele se virou para trás e
perguntou, com ironia:
- Bien? Está achando alguma dificuldade?
- Nenhuma.
- bom. Então, venha para o meu lado. Não sou um príncipe árabe que
exige subserviência de suas mulheres.
Dionne fez um gesto de resignação e apressou Melodie, a fim de
juntar-se a ele. François olhava, impaciente.
- poderíamos aumentar o trote, não acha? Ou será pedir demais?
em vez de responder, Dionne pressionou os calcanhares, para que
Melodie se apressasse. A égua saiu a galope. Havia pântanos à
esquerda agora e o inconfundível aroma do sal no ar. Dionne estava
exultante com a sensação de liberdadde que experimentava. O sol
queimava suas costas. Pássaros de colorido intenso cantavam nos
arbustos e voavam rente à água parada. O sólido corpo de Melodie
movia-se compassadamente, fazendo com que a moça se sentisse
cada vez mais confiante.
Aos poucos, as recordações começaram a voltar. Aquela não era a
primeira vez que montava por ali ao lado dele. Mas, quando estiveram
naquele lugar, antes, seu relacionamento era como a natureza que os
cercava: forte, primitivo e arrebatador.
Virou-se para olhar para ele, que permitira que Consuelo trotasse
calmamente atrás dela. Mas, quando seus olhos se encontravam, ele
fez a égua galopar, ultrapassou Dionne e foi até a lagoa adiante.
A moça hesitou por um instante. Depois, incitou Melodie a correr
mais.
Foi uma experiência agradável; maravilhosa, mesmo! Galopar em
campo aberto. A única companhia que tinham era um rebanho de gado
E, mesmo assim, estava bem distante. Os cavalos diminuíram a
marcha, quando entraram numa lagoa mais profunda, onde a água
chegava quase à altura dos joelhos dos cavaleiros.
Dionne quis levantar as pernas, mas François não o fez e ela seguiu
seu exemplo. Tinha medo de perder o equilíbrio e cair. Apesar de o
azul daquela água e os bancos de areia que pontilhavam a lagoa serem
Bastante convidativos, Pensou como seria bom poder nadar ali.
Tinham deixado a estrada por onde ela passara no Citroen, tomando
umcaminho mais direto através dos charcos. Ali não havia sinal de
Banpos ou de turistas.
Era completamente inexplorado e lindo. Para Dionne, era o lugar mais
bonito do mundo, naquele momento.
François diminuiu a marcha e virou-se para olhar para aquele rosto
tomado de encantamento.
- Ainda desapontada?
Dionne sacudiu a cabeça, incapaz de falar, e François olhou para ela
por um longo momento, antes de procurar suas cigarrilhas nos bolsos.
- Não está achando muito cansativo, não é? - Apertou os olhos contra
a luz do sol refletida na água e olhou-a novamente. - Não está
desconfortável.
- Não. Só espero poder andar amanhã, mas... - Respirou
profundamente.
Tudo aquilo era tão bonito, que ainda nem tinha pensado nas
consequências.
François tragou a cigarrilha, soltando uma nuvem de fumaça azulada
sobre suas cabeças. Depois, inesperadamente, perguntou:
- Por que você fez isso, Dionne?
Ela prendeu a respiração.
- Por que... por que fiz o quê?
- Por que foi embora sem ao menos dizer que estava indo? Não acha
que eu merecia ser avisado?
Seus olhos a interrogavam sem perdão, e Dionne agitou-se na sela.
Tinha estado em paz pela primeira vez, desde que chegara em
Camargue, e agora, com apenas uma frase, François conseguira
destruir aquela paz.
Procurava as palavras.
- Certamente, sua mãe tornou as coisas bem simples para você disse,
tensa.
François blasfemou.
- Não estou falando sobre minha mãe! Estou falando sobre você!
Quero saber por que escolheu esse papel para mim! Quero saber o
que fiz de errado. Por que, depois do que aconteceu entre nós
naquela última noite, você devia...
- Oh, pare com isso, pare! - Dionne tapou os ouvidos. - De que adianta
remexer o passado? Você escolheu seu caminho e eu o meu. Isso é
tudo!
- Não, maldição, não é, não! - François segurou as rédeas de Melodie,
para que ela não fugisse. - Concordo, nada pode mudar o passado.
Mas exijo saber por que resolveu partir, quando devia
Dionne tentou soltar as rédeas, mas, em vez disso, François agarrou
sua mão. Seu calor pareceu queimá-la.
Dionne!
A urgência na voz dele mexeu com ela terrivelmente. Seus olhos
penetrantes a devoravam. Dionne não conseguia respirar. Não era
justo que ele a tratasse daquela maneira, usando sua sensualidade
para seduzi-la até o ponto de revelar a verdade. Se fizesse isso, ela
iria se destruir.
com um esforço sobre-humano, conseguiu libertar-se e, enterrando
os joelhos em Melodie, atravessou as águas paradas da lagoa. Ao
chegarem em terra firme, a égua galopou, com Dionne agarrando-se
desesperadamente à sua crina.
Ela ouviu François chamando-a, zangado, mas estava preocupada
demais em se manter na sela para importar-se com ele.
Melodie movia-se com incrível rapidez, e aquele era seu terreno, a
terra a que estava habituada, e recusou-se a obedecer a qualquer
restrição.
Mas, antes que Dionne tivesse tempo de ficar realmente assustada, a
égua preta apareceu a seu lado e François agarrou as rédeas. Aos
poucos, Melodie respondeu ao novo comando e diminuiu a marcha, até
parar.
Só então, Dionne começou a tremer. Não só por causa do galope
selvagem, mas também pelo olhar de François.
Ele desmontou e, por alguns instantes, a moça pensou que ia arrancá-
la da sela.
Mas ele se dirigiu ao animal coberto de suor, acariciando seu
pescoço, murmurando palavras gentis até que a égua se acalmasse.
Dionne observava, nervosa, sentindo-se arrasada por ter chegado
tão perto de um desastre. Ela se comportara levianamente. Queria
que François dissesse algo, em vez de apenas olhar para ela com
aquele desprezo. Seu silêncio era pior do que palavras ásperas. Fazia
com que se sentisse a mulher mais irresponsável do mundo. Não era
justo. Em parte, ele também era culpado. Ele a levara a se comportar
daquele jeito.
François tornou a montar Consuelo. Depois, olhou para Dionne:
- Se você tivesse aleijado a égua...
A moça apertou as rédeas, num gesto nervoso.
- Sim? O que iria acontecer?
- Acho que sabe.
Dionne tremeu de indignação.
- Você pensa que é muito poderoso, não é?
François deu de ombros, passando a mão pelos cabelos.
- Não me provoque, Dionne - avisou, tolerante, enfurecendo-a mais
ainda, ao fazê-la perceber como tinha sido infantil.
Ele se preparou para partir, mas Dionne continuou imóvel, fixando
silenciosamente o espaço.
- Quer que eu leve Melodie pelas rédeas?
Dionne acariciou o pescoço da égua, que estava calma, mas encolheu-
se ao seu toque, como se a recriminasse. Sustentando o olhar
desafiador de François, ela disse:
- Não vai ser necessário.
O rapaz deu de ombros e atiçou Consuelo, afastando-se. Seguiu-o
mais lentamente, tomando cuidado com as poças e observando os
canteiros de alecrim selvagem, cujo perfume doce se misturava com
o forte cheiro da água.
Era tudo tão lindo e familiar! Mas toda aquela paz não a acalmava. Ao
contrário. Estava cada vez mais consciente de que o homem que
galopava um pouco adiante, forte e arrogante em sua montaria, não
era mais o jovem cheio de amor pela vida, mas um homem duro e
experiente, senhor de tudo aquilo que o cercava.
Continuaram em silêncio por algum tempo. Dionne conservou-se atrás
dele de propósito, para evitar conversa. De vez em quando, ele
olhava para trás, mas ela virava o rosto para o outro lado, com medo
de que percebesse como se sentia.
O sol subia no céu e estava ficando muito quente. Dionne começava
a desejar que chegassem logo, quando avistaram o teto de uma
Cabane, a distância.
Cabane era o nome dado às casas dos gardiens que trabalhavam na
fazenda, mas as atuais nada tinham das velhas cabanas de um quarto
apenas, feitas de bambu. Aquela, no entanto, era do tipo antigo, com
o telhado de sapé com largos beirais. Estava deserta, Dionne
percebeu ao se aproximarem, e imaginou por que François se dirigia
para lá com tal decisão. Ele desmontou no terreno diante da casa,
acariciou Consuelo e espreguiçou-se. Depois, virou-se para Dionne.
- Desça! Estou com sede e acho que merecemos um pequeno
descanso.
Dionne continuou onde estava, e François disse, arrogante.
- Quer que eu a arraste para baixo? Ou vai fazer o que mandei?
Dionne apertou os lábios.
- Você disse que ia me levar para a casa da fazenda.
- Vamos para lá depois. Agora estou com fome. Você não está?
Dionne olhou para a cabana deserta, com um certo temor.
- Nós... nós não podemos conseguir nada para comer aqui.
François agarrou a sela de Melodie, encarando Dionne.
- Pelo amor de Deus, não vou seduzir você! Não a trouxe aqui para
fazer amor. Desça e vamos comer!
Soltou a égua bruscamente e virou-se. Dionne desmontou, com pernas
trémulas. As duas éguas ficaram juntas lado a lado, e ela seguiu
François, que tinha entrado na cabana.
A moça atravessou o pátio de terra batida e foi até a porta do lugar,
onde parou, nervosa. Estava escuro lá dentro, mas, depois que seus
olhos se acostumaram, viu François junto de uma mesa, cortando um
pedaço de pão francês. Apesar de a cabana não estar em uso, parecia
impecavelmente limpa. Devia estar sendo usada por visitantes
ocasionais como eles.
Quando François a viu, ela se encostou no umbral da porta, num
gesto defensivo.
O escárnio que havia no olhar dele era insuportável. Girava a faca
entre as mãos, de um jeito ameaçador. Nessas mãos, e não na faca
está o perigo maior, Dionne pensou, e instintivamente imaginou como
seria sentir aquelas mãos bronzeadas em seu corpo novamente.
Houve uma época em que ela tomava a iniciativa. E, sempre que o
tocava, ele imediatamente a abraçava com uma força possessiva,
fazendo sentir-se inteiramente dele.
Voltou a olhar para a mesa, sacudindo a cabeça para afastar aqueles
pensamentos. Ao lado do pão havia queijo, um pacote de manteiga,
uma garrafa de vinho. François fez sinal para ela entrar e servir-se.
Dionne encheu uma caneca com vinho, bebendo com muita sede.
O interior da cabana era pobre e quase sem mobília. Um fogão velho,
duas cadeiras e duas camas sem colchões, apenas com uma tábua
como estrado. Só havia um cómodo, e ela ficou perplexa lembrando
que famílias criassem seus filhos em lugares como aquele.
François acabou de cortar o pão e jogou a faca de lado, pegando o
vinho. Bebeu como ela, com muita sede, e depois limpou a boca com as
costas da mão. Apontou para um poço atrás da casa.
- A água está fresca, apesar de um pouco turva. Mas serve para você
lavar-se, se quiser. - Serviu-se de mais vinho. - Aconselho-a a não
beber mais. Ou, pelo menos, não tão depressa.
Seu tom era de ironia. Dionne tinha certeza de que ele queria
antagonismo. Ignorando-o, passou manteiga numa deliciosa fatia e
cortou pedaços de queijo. Na realidade não estava com fome, mas
não tinha nenhuma intenção de demonstrar isso. François observou-a
por um momento; depois, com um dar de ombros, desapareceu lá fora.
Dionne comeu o pão entre goles de vinho, balançando as pernas
preguiçosamente. Aonde teria ido ele?
O vinho começou a fazer efeito, e Dionne sentiu-se tonta. Achou que
precisava de ar fresco e saiu. Cruzou com François, quando se dirigia
para o poço.
Lavou bem o rosto, para reanimar-se.
Ainda bem que coloquei o mínimo possível de maquilagem. pensou,
enquanto se enxugava com um lenço. Num clima como aquele, usar
muita pintura era uma tolice.
Sentiu-se bem melhor. Estava muito quente. Dionne desabotoou
outro botão da sua blusa e prendeu o coque um pouco mais alto. De
repente, viu que François observava seus movimentos,
imediatamente, abaixou os braços e ficou olhando para ele, com a
respiração entrecortada.
François continuou a observá-la por minutos e depois aproximou-se,
devagar, parando a poucos centímetros dela. Dionne sustentou seu
ilhar, recusando-se a deixá-lo perceber como estava perturbada.
- Por que usa os cabelos dessa maneira tão imprópria? Eu lembro, que
você os deixava soltos.
- Não vejo o que você tem a ver com o meu penteado.
François enfiou os polegares dentro das presilhas do cinto.
- Não vê? E se eu quiser que os solte? O que pode fazer a respeito?
Dionne abotoou o botão da blusa.
- Por favor, não vamos começar a discutir novamente.
- É isso que você acha que estamos fazendo? Discutindo?
- Uso meus cabelos assim porque sou professora de mais ou menos
trinta e cinco crianças, e preciso ter uma aparência um pouquinho
mais austera e experiente. - Achou melhor explicar do que provocar
sua ira.
- Não está na sala de aula agora, Dionne. - Os olhos dele foram até
seu decote. Dionne virou-se, incapaz de suportar aquela provocação.
- Por favor, já podemos ir andando, não podemos? - Sentia que, se
ele a tocasse, ela cairia como uma tola em seus braços.
Mas François não tinha a menor intenção de fazer isso: assobiando,
afastou-se em direção aos cavalos. Dionne não pôde evitar uma
sensação de vazio e decepção. Secando as mãos úmidas de suor
nervoso nas pernas da calça, perguntou a si mesma o que gostaria
realmente que ele fizesse.
Era inútil tentar fingir que a proximidade dele não a perturbava
intensamente; sabia agora que os sentimentos que tinha por ele há
três anos atrás estavam mais fortes e indestrutíveis do que nunca.
Por esse motivo, relutara tanto em ir. De qualquer forma, era um
consolo descobrir que François não estava casado e com filhos.
Apesar de que não era mais aquele homem alegre que ela conhecera,
Tornara-se áspero, amargo, desconfiado. Mesmo assim, Dionne,
queria, agora ainda mais do que antes.
Ele estava montado e esperava, impaciente, por ela. Diomme
apressou-se. Não era tão fácil montar Melodie agora. Seus músculos
sentiam o efeito da longa cavalgada, e teve a maior dificuldade para
subir no estribo. Montou, desajeitada, sentindo o corpo todo
dolorido.
François puxou as rédeas de Consuelo e aproximou-se dela.
- Você está bem? - perguntou, com ar preocupado. Dionne deu um
suspiro resignado.
- É claro. Por que não estaria?
- Pare de lutar comigo, Dionne. Pelo menos, tente se comportar como
uma pessoa civilizada lá na fazenda.
- O que quer dizer com isso? - Encarou-o, irritada.
- Minha mãe e Yvonne estarão nos vigiando... observando nossas
reações um para com o outro. Não pretendo lhes dar motivo para
suspeitas.
A moça sentiu a boca seca de medo.
- Então, não devia ter me trazido aqui!
- Não seja boba. Apenas lembre-se do que eu disse.
com um movivento rápido de rédeas, fez a égua trotar, e Dionne teve
de segui-lo.
O terreno era menos pantanoso agora. Estavam se aproximando da
casa. A distância, Dionne avistou a alameda de árvores protetoras e,
na frente delas, os currais e anexos.
Passaram por um rebanho de bezerros que estava sendo levado para
outro pasto por um grupo de gardiens, que tiraram os chapéus,
quando viram opatron, e olharam para a moça com respeito e
curiosidade.
Ficou apavorada, quando vários animais afastaram-se do grupo, vindo
na direção deles, mas François disse-lhe para ficar onde estava e ele
conduziu-os de volta ao rebanho.
Ele era um cavaleiro experiente, mas o coração de Dionne bateu
descontrolado, ao ver os animais abaixarem os chifres, ameaçadores,
antes de se submeterem à autoridade dele.
Quando voltou, minutos mais tarde, ela evitou seu olhar. Não queria
que percebesse como tinha ficado atemorizada. Era simplesmente
outro exemplo da agonia que teria que passar quando deixasse a
Camargue novamente, e nem mesmo Jonathan poderia consolá-la por
isso.

CAPÍTULO V

À sombra dos ciprestes, a casa da fazenda parecia acolhedora. Havia


um pequeno jardim e uma horta na frente, cultivados por madame St.
Salvador. Ela era uma jardineira habilidosa, pelo que Dionne podia se
lembrar, apesar de que as lembranças que tinha da mãe de François
eram sempre pinceladas de amargura.
Não havia ninguém por perto, quando chegaram no pátio, e Dionne
olhou ao redor, com interesse.
Aquela construção era típica da Camargue, compacta e baixa, mas
bem maior do que a maioria. As janelas eram altas e estreitas, com
travas para enfrentar o mistral.
Dionne observava François, que tinha levado os cavalos até um
bebedouro e agora voltava até ela com passadas preguiçosas. Ele
parou a seu lado, dando-lhe um olhar penetrante.
- Bem, está como você se lembrava?
Dionne concordou, sem ousar falar, e ele segurou seu braço,
guiando-a até a entrada da casa. Aquele toque era insuportável.
libertou-se, rapidamente, mas François tornou a agarrá-la. Abriu uma
porta à esquerda do hall e praticamente empurrou a moça para
dentro da cozinha enorme.
pionne percebeu primeiro que o fogo ardia na estufa. Depois, notou
que havia mais alguém lá. Uma mulher fatiava um presunto, ajudada
por uma menina de uns quinze. Reconheceu imediatamente madame
St. Salvador, apesar de ela estar bastante envelhecida.
O olhar da velha pousou sobre Dionne e depois foi até François.
Disse, com impaciência:
- Então, você a trouxe mesmo?
Falou em inglês, para que Dionne entendesse que não era bem-vinda.
François fez um gesto de indiferença.
- Parece, não é?
Madame St. Salvador enxugou as mãos numa toalha e falou com a
menina que a ajudava, despachando-a imediatamente dali. Depois,
aproximou-se de Dionne, com desconfiança no olhar.
- Por que veio? - perguntou, sem rodeios, chocando-a com a rapidez
do ataque.
François ergueu a mão, interrompendo.
- Você sabe por que ela está aqui, mamãe. Recebeu um olhar de
escárnio da velha.
- Oh, oui, eu sei por que ela está aqui na fazenda, mas gostaria de
saber por que voltou a Camargue! Quero saber por que ela acha que,
só porque foi sua amante, tem algum direito...
- Sois silencieuse! - François gritou, e a mãe baixou os olhos,
ressentida. - Maintenant, onde está Yvonne? - Olhou em volta. Está
descansando?
A velha encarou-o, como se não fosse responder, mas o que viu nos
olhos de seu filho fez com que mudasse de ideia.
- É claro que está descansando. Você sabe que ela sempre descansa
depois do almoço. Chegaram muito atrasados. Estou certa de que
sabe disso.
François foi até a porta.
- Depois iremos ver Gemma - falou, olhando para o rosto pálido de
Dionne.
Madame St. Salvador encolheu os ombros ossudos. Sempre tinha sido
uma mulher magra, e os cabelos, agora grisalhos, acentuavam suas
feições macilentas.
- Como quiserem.
Dionne engoliu em seco: a mãe de François não mudara nem um pouco.
Ainda a odiava tanto quanto antes. Cada minuto que passasse naquela
casa seria um tormento.
Olhou para François, desesperada, à procura de algum apoio. Mas,
fora um músculo mais tenso acima da linha do maxilar, ele parecia
completamente indiferente à tensão entre as duas.
- Venha! - Dionne acompanhou-o, feliz por escapar daquela presença
constrangedora.
Lá fora, na passagem estreita, François dirigiu-se até outra porta
mais adiante, mas Dionne agarrou sua manga, num impulso.
- Por favor... por favor... não me faça entrar! Ele hesitou.
- Por quê? O que você esperava de maman? Boas-Vindas? Uma
recepção, talvez?
- Não, é claro que não! - Encarou-o. - Não vê como ela me odeia?
Todo mundo aqui me detesta!
François não discutiu sua última observação, apesar de que Dionne
esperava que ele o fizesse. Certamente, concordava com ela e, por
isso mesmo, a obrigara a ir. Agonia e humilhações eram o preço que
teria que pagar pelo dinheiro.
Virando-se, ele bateu de leve na porta, e uma voz frágil respondeu:
- Entrez!
François abriu a porta e entrou, com uma expressão completamente
diferente daquela de segundos antes. Dionne ouviu uma voz familiar,
apesar de enfraquecida, dizer:
- Ah, François, c’est toi! Tu as apporté Dionne? François afastou-se
para que ela entrasse.
- Elle est lá. Voyons, Dionne.
A moça passou, relutante, para dentro daquele quarto sombrio. Era
um quarto grande, com revestimento de madeira nas paredes, onde
havia quadros impressionistas da Camargue, feitos por Demetre, o
artista cigano que Gemma tinha ajudado tanto. Tapetes enfeitavam o
chão de madeira polida, e a mobília era grande e pesada. A maioria
muito antiga.
Uma cama de quatro colunas ocupava a maior parte do espaço.
Deitada entre várias almofadas, estava uma velha enrugada e miúda,
com olhos escuros, tão vivos e inquisidores como Dionne se lembrava.
Era Gemma, a avó cigana de François, de quem ele havia herdado o
temperamento voluntarioso, assim como a pele e os cabelos escuros,
e o brilho do olhar. De todos que tinha visto até aquele momento
Gemma era a que menos mudara. Dionne imaginava o que a teria feito
abandonar sua caravana e voltar mais uma vez para aquela casa que
tanto desprezava.
Dionne parou na porta, enquanto aqueles olhos vivos se viravam em
sua direção. Depois, Gemma indicou para que se aproximasse e a
moça obedeceu.
- Alo, Gemma, como vai?
Durante alguns minutos a velha apenas a observou, deixando-a
nervosa e sem jeito. Depois, virou-se para o neto, com aprovação.
- Ben, estou agradecida a você, François. Pode nos deixar a sós por
um instante?
- Oh, mas... - Dionne começou, mas logo foi silenciada pelo olhar de
François, que se dirigiu para a porta, com um aceno de adeus para a
avó.
A moça observou a pesada porta fechar-se atrás dele, e enterrou as
unhas na palma da mão. Depois, olhou para a cama, onde aquela
pequena mulher indomável parecia dominá-la. Gemma lhe dissera
certa vez que tinha sangue de reis ciganos nas veias. Olhando para
ela agora, Dionne não duvidava disso.
A velha fez um gesto de impaciência.
- Ache um lugar para se sentar. Aqui... na cama... ao meu lado...
Passou a mão no rosto pálido da moça. - Então, você voltou para nós.
- Por pouco tempo...
- Para ver François?
- Foi, sim - respondeu, baixinho, desviando o olhar.
- Por quê? - Gemma era como François; direta e objetiva. E como a
mãe dele tinha sido, se bem que de um modo muito diferente.
- Preciso de dinheiro - Dionne disse a verdade. Não havia motivo
para enganar Gemma. Mais cedo ou mais tarde, a velha senhora
conseguiria saber o que ela queria. Dionne só tinha medo de não ter
forças para enfrentar outras perguntas mais diretas e pessoais.
- Entendo. - A velha recostou-se e seus olhos se estreitaram.
- E por que vir até François? Depois do que aconteceu, pensei que ele
seria a última pessoa a quem você pediria ajuda.
- Não havia mais ninguém a quem pedir.
- E você acha que pedir a ele é justo?
- Não sei.
- Por que precisa de dinheiro? Está em dificuldades? Em apuros?
- Não. Não... exatamente. - Dionne olhou para ela, sentindo-se
ameaçada. - Olhe, Gemma, isto é entre ele e eu... ninguém mais. Sinto
muito, mas é assim que tem de ser. Se François acha que me
trazendo até aqui... até você... ele pode...
Gemma interrompeu-a, com os olhos faiscantes.
- Eu pedi que trouxessem você. Quando Louise me disse que estava
em Aries...
- Louise contou?
- Lógico. Não acha que François... Não, Louise foi a responsável. com
certeza, você o conhece melhor do que isso, Dionne. Pelo menos,
deveria conhecer.
O rosto da moça queimava. Levantou-se da cama e atravessou o
quarto até a janela estreita.
- Você... você não me contou por que está morando aqui. Por que
abandonou a caravana?
Gemma observou-a durante uns minutos.
- Caí... vários meses atrás. Esses médicos... eles têm tanto medo da
morte, que teimam em proteger todo mundo. Insistiram que eu fosse
trazida para cá e ficasse sob observação! - Fechou os punhos.
Sobre a maçaneta, Gemma abriu os olhos novamente, e ela poderia
jurar que a outra não estava cansada, apenas fingia.
- Quero ver você novamente. Quando volta?
- Mas... mas eu tenho que voltar para a Inglaterra!
- Por quê? O que há de tão urgente por lá? Um homem?
- Não! Não, eu tenho meu trabalho...
- Tolice! Você está apenas arranjando desculpas! François vai
arrumar tudo. Mande-o aqui, depois que sair.
Os olhos de Gemma fecharam-se novamente, e Dionne saiu do quarto
em silêncio.
No corredor, hesitou; depois, ouviu vozes na cozinha e soube que
tinha que ir até lá para achar François. Relutante, abriu a porta e
entrou.
Apesar de ele e a mãe estarem lá, foi para a mulher na cadeira de
rodas que Dionne olhou: Yvonne Demaris, a moça com quem madame
St. Salvador queria, tão desesperadamente, que o filho casasse.
Yvonne, surpreendentemente, não tinha mudado muito, apesar do
acidente.
Sempre foi muito atraente, com seus cabelos dourados - presos no
momento num rabo-de-cavalo -, suas feições delicadas, rosto oval e
doces olhos azulados. Mas naquele momento havia hostilidade neles,
como ela também percebera nos olhos de madame, e seus dedos, que
alisavam nervosamente a manta que cobria suas pernas, traíram a
agitação da moça.
Dionne admirou a força de caráter de Gemma. Obviamente, nenhuma
daquelas duas mulheres a queria ali, mas a opinião delas não tinha a
menor importância para a velha autocrática, cuja palavra sempre
prevalecera sobre a de qualquer um: exceto, talvez, a de François.
Por alguns segundos agoniantes ninguém falou. Até que François
quebrou o silêncio tenso.
- Ela mandou você embora? Dionne concordou.
- Acho que pode colocar a coisa nesses termos. - Olhou para a outra
moça: - Olá, Yvonne. Eu... eu sinto sobre o seu acidente. Mas você
parece ótima.
Yvonne levantou os olhos, rapidamente, para a mãe de François.
- Por que ficaria sentida, mademoiselle? Estou certa de que a notícia
sobre a minha desgraça deleitou-a! - ela falou, com ironia e frieza.
Dionne ficou vermelha de indignação.
- Está inteiramente errada. Qualquer pessoa se sentiria angustiada
ao ouvir tal coisa! - Depois, acrescentou: - No entanto, estou
contente que não tenha perdido também o fio de sua língua, Yvonne!
Continua afiada como sempre.
- Como se atreve a vir até aqui e falar comigo dessa maneira?
Você...
- Pour l’amour de Dieu! - François levantou os olhos para o teto. -
Chega de palhaçada! Não vou aguentar mais isto! - Olhou para Dionne.
- Sente-se! Minha mãe fez café. Vamos tomar um pouco, antes de
sair, oui?
Dionne foi sentar-se no banco de madeira perto do fogo. Apesar do
calor do dia, lá fora, a cozinha estava bem fria, e sentiu-se melhor
perto da estufa. Madame St. Salvador, relutante, foi até o fogão,
[depois pegou xícaras e pires e colocou tudo numa bandeja. Yvonne
segurou o braço de François e falou baixinho com ele, usando um
dialeto que Dionne não entendia, excluindo-a completamente da
conversa. François ouvia atentamente, inclinado para ela.
Dionne pensava, intrigada. Por que será que eles não se casaram
antes do acidente? Louise contara que o fato ocorrera há três anos,
e a presença de Yvonne na casa mostrava que nada mudara desde
então.
Quais seriam as chances de Yvonne se recuperar? Será que voltaria
algum dia a levar uma vida normal? Uma vida como mulher casada?
Será que seria capaz de dar a François um filho que continuasse a
linhagem St. Salvador? Dionne suspirou. Além das dúvidas sobre
contar a François a respeito de Jonathan, a situação agora a
impediria. Yvonne sempre ficaria entre eles. Não importava o quão
desagradável a outra tinha sido para com ela no passado. Dionne não
podia pensar em destruir suas esperanças.
Madame St. Salvador entregou-lhe uma xícara de café espumante e
aromático. Estava forte e bem preto, como ela precisava depois
dosacontecimentos daquela tarde.
François acendeu uma cigarrilha e saiu de perto da cadeira de
Yvonne, com um olhar de aprovação para Dionne. Só então, ela se
lembrou do pedido de Gemma.
- Sua... sua avó quer vê-lo, antes de saírmos. Eu tinha esquecido de
dizer.
François hesitou. Depois, deixou a cozinha. Sozinha com Yvonne e
madame St. Salvador, a moça sentiu-se apreensiva.
A mãe de François deu café para Yvonne e depois olhou para Dionne.
- Quando vai embora?
- A senhora quer dizer quando volto para a Inglaterra?
- É claro.
- Não estou certa ainda. Dentro de poucos dias, acho.
Yvonne olhou para as mãos nuas de Dionne, depois para o maravilhoso
solitário de brilhante em seu próprio dedo.
- Você não está casada, então? Ou noiva?
- Não.
Madame St. Salvador foi até ela.
- Voltou para causar encrenca, mademoiselle? Dionne foi apanhada de
surpresa.
- Não... não, é claro que não. Eu não queria vir até a fazenda. Foi...
foi Gemma quem quis. Estou certa de que vocês sabem disso.
- Gemma! - A mãe de François disse, por entre os dentes. Aquela
mulher tem sido a causa de todo o problema entre meu filho e a
própria família! Ela faz o que pode para arrumar a vida dele!
- Gemma é parte de sua família também - Dionne observou,
calmamente.
A velha levantou a cabeça, irritada.
- Ela não é da família. É uma cigana, uma cigana preguiçosa que não
serve para nada, a não ser para roubar cavalos! Uma mulher
descuidada e irresponsável que pensa que pode governar nossas
vidas!
- Seus punhos se fecharam. - Mas está ficando velha. Velha, você
ouviu? E vai morrer logo! Depois, estaremos livres dela... de suas
feitiçarias e superstições, suas crenças idiotas que trouxeram azar
para esta casa. Dionne afastou-se, com desprezo.
- Ela é velha, é verdade, mas não é irresponsável! A senhora sabe que
era uma princesa em sua tribo e, se o avô de François não tivesse se
apaixonado e trazido Gemma para morar aqui, ela teria casado com o
chefe da tribo!
- Allons, donc! - madame St. Salvador reclamou. - Qual foi o conto de
fadas que ela contou a você? Ela casou com o meu sogro, mas o amor
que tinha pela família era tão grande que, assim que o marido
faleceu, ela abandonou tudo e voltou para sua vida nómade!
Dionne levantou-se.
- A senhora não entende que ela detestava ficar confinada?
Detestava viver numa casa, tendo o mesmo cenário nas janelas todos
os dias, ano após ano? E quando o marido morreu, o filho já estava
casado... com a senhora.
Madame St. Salvador chegou o rosto para perto do de Dionne.
- Meu marido ao menos conhecia sua posição, mademoiselle! Ele
desprezava a mãe tanto quanto eu!
- Acha que não sei disso? - Dionne sentia-se ferver de raiva por
aquelas críticas a uma mulher de quem gostava tanto. - A senhora
fez da vida dela um inferno! Uma vida de regras e leis, cheia de
planos para o futuro de François! Nunca se importou com a felicidade
dele; só queria que satisfizesse suas ambições de poder!
- Como você ousa? - A mãe de François estava vermelha de raiva, e
Yvonne, inclinada em sua cadeira, tinha um brilho irónico nos olhos. -
Você... você é uma criadora de caso, tentando seduzir meu filho com
a sua conversa intelectual, quando tudo o que realmente queria era ir
para a cama com ele! Usou aquela conversa fiada de que estava
fazendo pesquisas sobre arte cigana. - Ela respirou fundo. E essa
velha senil, encorajando você. Pobre tola! Você não percebeu que ela
faria qualquer coisa para se vingar de mim? Até mesmo arranjar uma
amante para meu filho!
Dionne arquejava, puxando o colarinho da blusa com dedos trémulos.
- A senhora é uma mentirosa maliciosa! - gritou, e depois recuou,
atónita, quando a mão de madame St. Salvador estalou em seu rosto.
- Deus do céu! O que está acontecendo por aqui?
François entrou na cozinha, raivoso, olhando de uma para a outra.
Dionne estava parada, estatelada, com a mão no lugar atingido pela
bofetada, a velha agarrava a ponta da mesa de madeira, num esforço
para manter-se em pé.
- Tire essa mulher da minha casa! - ela gritou ferozmente. Ela me
disse as coisas mais vis e infames! Como é que você poude trazê-la
aqui, sabendo o que ela sente sobre... mim... e sobre todos aqui!
- Isso não é verdade!
A resposta indignada de Dionne perdeu-se, abafada pelos soluços
histéricos de madame St. Salvador. Yvonne começou a falar usando
dialeto com François, enquanto dirigia olhares desaprovadores em
direção de Dionne. Empurrou a cadeira até aquela que ia ser sua
sogra e passou o braço à sua volta, de uma maneira confortadora
ostensivamente amiga.
Dionne olhou para os três: madame, soluçando; Yvonne tentando sem
sucesso, consolá-la, e François com uma expressão exasperada
procurando, obviamente, decidir quem estava com a verdade. Num
impulso, Dionne correu para fora dali, para o pátio.
Ficou lá fora, tentando se reanimar com o ar fresco e acalmar as
batidas rápidas e instáveis de seu coração. Nunca havia sido tão
humilhada. Nem mesmo naquela ocasião, três anos atrás, quando
madame St. Salvador lhe disse muito claramente qual era o dever de
François. Agora, sentia-se desolada, sem nada que pudesse consolá-
la.
Caminhou pelo pátio e foi se debruçar na cerca de um curral, ond
vários cavalos brancos daquela propriedade ficavam presos depois do
trabalho da manhã.
Montes de feno tinham sido jogados no curral, e os animais comiam
placidamente, sem dar atenção ao que se passava à volta deles.
Dionne invejou-os. Como era simples a vida para eles! Tudo que se
esperava dos animais era um dia de trabalho produtivo em troca de
abrigo e comida e, quando necessário, que se reproduzissem.
passou a mão no rosto, enxugando as lágrimas que teimavam em cair.
Nunca deveria ter voltado para ali novamente, tornou a pensar,
como pensara inúmeras vezes antes daquele momento. Nunca deveria
ter deixado Clarry interferir e convencê-la de que Jonathan não
podia ser privado da sua única chance de cura, simplesmente porque
ela era orgulhosa demais. Não fazia sentido o menino continuar
sofrendo,
quando o pai tinha uma fortuna incalculável.
Há coisas que valem muito mais do que dinheiro. Ao pensar nisso,
estremeceu, imaginando como se sentiria, se a mãe de François
alguma vez tomasse a seu cargo a educação de Jonathan. E isso
poderia acontecer!
Estava tão absorta com sua infelicidade, que não percebeu que
alguém havia parado atrás dela. Assustou-se, quando François falou:
- Dionne! - O tom era completamente diferente daquele que tinha
usado na casa.
Afastou-se, mas ele insistiu:
- Dionne, pelo amor de Deus! Pare de olhar para mim como se eu
estivesse no ponto de agredi-la. Não pretendo bater em você.
Estou... apenas muito sentido por você ter passado... pelo... que
passou!
- Isso é uma desculpa pelo que aconteceu?
- Eu não me desculpo por ninguém. Estou apenas dizendo o que sinto.
Dionne fez um meneio de cabeça.
- Vocês... vocês St. Salvador! Quem é que pensam que são? Lutou com
um soluço que lhe subia à garganta. - Quem, exatamente, vocês
pensam que são? Eu não queria vir até aqui, e não queria o tipo de
confrontação que tive com a sua mãe. Mas você estava ansioso
demais para me castigar, não é? Bem, conseguiu o que queria.
- Acha que fiz isso?
- Fez! Claro que sim. Você tem me tratado como... como um...
fantoche... desde que cheguei, fazendo com que eu dance ao som da
sua música, porque é mais forte. Pois agora chega! Estou farta de
todo
este negócio! Pode guardar seu maldito dinheiro! Não preciso dele;
- Dionne! - ele falou, furioso, mas ela virou-se, correndo até Melodie.
Ignorou sua ordem de deixar o animal e montou na égua, fazendo com
que ela se apressasse em sair dali, antes que François tivesse chance
de impedi-la. Viu que ele pulava na sela de Consuelo e sentiu-se
trémula de apreensão. Sabia que não podia brincar com ele: era
perigoso demais.
Apesar disso, não parou para considerar as consequências: agarrou-
se à crina de Melodie e galopou pelo gramado diante da propriedade.
A égua branca correu pelo campo, mas, dessa vez, Dionne não teve
medo. O vento em seus cabelos era delicioso e revigorante, depois da
atmosfera de ódio e suspeita daquela casa.
Sentiu que o vento soltava seus cabelos, espalhando-os pelas costas,
mas não se importou. Era maravilhoso sentir-se livre novamente.
Mas, quando chegou aos pântanos, a égua de François ganhou
velocidade e, logo em seguida, ele a ultrapassou e parou na sua
frente. Dionne desviou-se, quase derrubando-o, mas Melodie se
assustou e empinou, jogando Dionne fora da sela. Caiu sentada na
lama. Não sentiu dor, nem humilhação, mas ódio, ao ver suas calças e
sua blusa tão fina estragadas.
Ficou lá, no chão, por vários momentos, aborrecida demais para
levantar-se. Pouco depois, François estava ao seu lado, desmontando
da égua e inclinando-se para ela, ansioso.
- Dionne, você está bem? Machuquei você?
Ela olhou para cima, pasma com seu tom preocupado. Apoiou-se nos
cotovelos, e a blusa abriu, revelando a curva dos seus seios.
- Estou suja, é só. - O antagonismo desapareceu, diante da
preocupação nos olhos de François. Sacudiu a cabeça. - Acho que foi
loucura fazer isso. Sinto muito, François.
- Dionne! - Ele ficou de pé, passando a mão em seus cabelos.
- Pelo amor de Deus, tente levantar-se.
A moça olhou-o, vencida por sua força, sua personalidade
perturbadora e a desesperada necessidade que tinha dele.
Deliberadamente ela falou: - Ajude-me. A não ser que não queira se
sujar.
François estendeu-lhe a mão, aparentemente controlado, e Dionne
segurou-a sentindo aquele contato queimar sua pele. Ele ergueu-a
com facilidade; depois, soltou-a, virando-se para segurar as rédeas
de Consuelo.
Dionne sentiu um nó na garganta. Teve uma vontade enorme de
abraçá-lo e apertar o corpo contra o dele. Mas logo se controlou, ao
pensar em Jonathan e nos riscos que correria, deixando-se levar por
esses sentimentos. Por alguns minutos, esteve à beira de fazer com
que François a desprezasse mais do que já desprezava. E por quê?
Um capricho! Uma loucura! Um impulso do qual sabia que se
arrependeria amargamente.
Controlando-se, François virou-se para ela novamente; dessa vez,
com olhos ameaçadores e zangados.
- Está pronta? - Ela concordou com a cabeça. - bom, então vamos
para a fazenda?
- Para a fazenda? - Dionne ficou horrorizada. - Não quero voltar
para lá!
- Você pretende voltar para a cidade nesse estado? - Sua voz estava
indiferente.
Dionne relanceou as suas roupas cobertas de lama e suspirou.
- Eu... eu terei... que voltar, não é? François hesitou um momento.
Depois, decidiu:
- Iremos até a cabana.
- Está bem.
- Bien, allons!
Montou e segurou as rédeas de Melodie para que Dionne também
montasse. Depois, sem mais palavras, conduziu as duas éguas pelo
charco.
Não demorou muito tempo para que alcançassem a cabana. Dionne
lavou-se na água do poço, enquanto François entrou para tomar um
copo de vinho.
A lama logo saiu dos braços e das mãos, mas ela gostaria de poder
tirar sua blusa e lavar os ombros e pescoço. Claro que não podia
fazer isso. Contentou-se em desabotoar a blusa para jogar água no
pescoço, a fim de que escorresse por seu corpo quente.,
Estava com o olhar perdido no espaço, alheia no turbilhão de seus
pensamentos, quando François saiu da cabana e foi até ela.
Imediatamente puxou a blusa, tentando fechá-la, num silêncio
embaraçado. Ele a olhava intensamente.
- O que estava tentando fazer? - ele perguntou, com o olhar fixo em
seu decote aberto.
- Só queria me refrescar um pouco. François observou seu rosto
corado.
- Estamos em campo aberto. Isto aqui não é um banheiro. Qualquer
pessoa poderia vê-la e vir até aqui! O que faria, se isso acontecesse?
Os dedos trémulos de Dionne lutavam com os botões da blusa.
- Ora, você está exagerando! Nada de mal poderia me acontecer
- disse, mas sem muita segurança. - Bem, você veio até aqui. E daí? O
que pretende fazer?
- O que quer que eu faça?
Os dedos de Dionne, que ainda tentavam fechar a blusa, ficaram
paralisados pelo olhar dele. Sabia que tinha ido longe demais dessa
vez; tinha dado o passo fatal em direção ao desconhecido.
Tentando quebrar a tensão, virou-se lentamente e deu a volta, de
modo que o poço ficasse entre eles. Mas François foi mais rápido,
segurando-a pelo braço, puxando-a contra ele e abraçando-a, com
força, pela cintura.
Dionne lutou, mas foi inútil. Quanto mais se debatia mais ele a
apertava. Sentia cada músculo tenso de seu peito, braços e coxas.
Aquilo era uma tortura. Depois, ele curvou-se, afastou os cabelos de
seu rosto, e sua boca procurou a maciez do pescoço, queimando a
pele e provocando aquele mesmo êxtase de três anos atrás.
- Não, François! Por favor, não faça isso! - implorou, virando a cabeça
de um lado para o outro.
Os lábios quentes continuavam a explorar seu pescoço.
- Por quê? Por que eu não deveria pegar o que é meu? E você é minha.
Sabe disso tão bem como eu!
Lentamente virou-lhe o rosto e suas bocas se encontraram,
apaixonada e intensamente. Aquilo era uma loucura! Ela não devia
corresponder, mas praticamente o tinha convidado a beijá-la.
François ficou impaciente com a resistência e forçou-a a entreabrir
Os lábios. Dionne ardia de desejo e parou de lutar. Agarrou-se a ele,
dominada pela paixão, acariciando seu peito. Mas, quando as mãos
dele escorregaram por baixo da blusa e tocaram a sua pele nua, ela
percebeu que estava a um passo de perder a cabeça. Sozinhos, ali, a
quilómetros de distância de qualquer casa, seria impossível parar
aquela... se não tomasse a iniciativa de imediato. Tinha de lutar, por
ela e por Jonathan.
com um esforço sobre-humano, e aproveitando que François se sentia
confiante, a ponto de não segurá-la mais com tanta força, empurrou-
o para longe. Endireitando a blusa, voltou rapidamente para a cabana,
lutando para recuperar um pouco do controle.
Quando se virou para olhá-lo, ele ainda estava no mesmo lugar.
Depois, Dionne viu François ir até o poço e lavar o rosto e o pescoço.
Umedeceu os cabelos e a nuca, antes de voltar até onde ela estava,
parada na porta da cabana.
Sua expressão era assustadora. Havia tanta amargura e solidão no
rosto dele...
Sem dirigir-lhe uma palavra, o rapaz foi até a égua e montou. Olhou
para Dionne, agora com impaciência.
- Monte! - ordenou asperamente e a moça obedeceu, hesitante. Sem
dizer mais nada, François saiu a galope, deixando-a para trás.
Cavalgou vários metros na frente até os arredores de Aries e a fez
desmontar a uma certa distância do hotel. Ela não entendeu e olhou-
o, curiosa.
- Não quero entrar na cidade - ele explicou, com frieza. Além do
mais, estou certo de que você não vai ter dificuldade para achar o
caminho de volta para o hotel. Se não achar, pode perguntar para
alguém. Qualquer homem ficaria feliz em ajudá-la, garanto!
Sem esperar resposta, afastou-se, deixando Dionne sentindo-se pior
do que nunca.
CAPÍTULO VI

Foi só no dia seguinte que Dionne compreendeu sua real situação.


Durante toda a noite, ficou atordoada demais para conseguir pensar
direito no que tinha acontecido. Apesar de ter dormido
profundamente, seu sono foi agitado por sonhos torturantes. Sonhos
em que François tirava Jonathan dela, escondendo a criança onde
Dionne nunca mais poderia encontrar.
De manhã, sentou-se diante do espelho, com um olhar sombrio e
deprimido, fitando aquela imagem triste e abatida.
Mas tudo que conseguia ver era o rosto de François, quando ele a
encarou na porta da cabana, com uma amargura que foi bem pior de
que qualquer acusação.
Por que ele a acusava de ter agido daquela maneira? Será que
pensava que ela era o tipo de mulher que tentava um homem só para
se negar a ele depois, sem o menor respeito por suas emoções? Será
que não percebeu que tinha sido tudo tão terrível para ela como para
ele? Não queria ter recuado; todos os seus sentidos reclamavam o
prazer que há muito tempo não tinham.
Segurou o queixo entre as mãos, apoiando os cotovelos na madeira
polida. Pensando no passado, percebeu como era criança e
inexperiente na primeira vez em que tinha ido até Camargue, três
anos atrás.
Estava quase se formando como professora e agarrou, excitada, a
chance de passar três meses na França, a maior parte deles na
Provença.
Passara um período inicial em Paris e depois, num carro alugado,
dirigiu-se para o sul. Ficou dez dias explorando os castelos do vale
do Loire e continuou através dos vinhedos até a Provença. Era maio e
o tempo estava agradável: não bastante quente para trazer os
mosquitos comuns na região, nem frio suficiente para impedir que
desse longos passeios ao ar livre.
A área ao redor de Aries e de Lês Saintes Maries de la Mer estava
repleta de ciganos e turistas, para a comemoração anual da chegada
à Provença das três Marias que mais tarde dariam nome a Lês
Saintes Maries. Mas era para a criada das santas, para a escura
Sara, que os ciganos prestavam homenagem; apesar de não ter sido
canonizada, era considerada santa pelos ciganos. Havia muitas lendas
sobre ela, como Dionne logo aprendeu, e achou tudo aquilo muito
excitante.
com uma máquina fotográfica e um diário de viagem, tinha ido até
Lês Saintes Maries, numa manhã ensolarada, logo depois de chegar à
região, sem saber que ia de encontro ao seu destino.
O velho carro alugado não era de muita confiança e, no meio do
caminho, a direção travou. Dionne foi parar dentro de um fosso,
agradecida por ainda estar viva e perto de um acampamento cigano.
Um homem encantador ajudou-a a sair da vala e levou-a para
conhecer sua avó, insistindo para que ela não recusasse o convite.
Naturalmente esse homem era François e sua avó, Gemma. Só mais
tarde, Dionne descobriu, por acaso, que François tinha apenas um
quarto de sangue cigano e três quartos do da aristocracia provençal.
Mas sentia-se tão feliz ao lado dele, que não pensava em nada, além
de sua felicidade. Cada dia era um novo deleite, encorajado por
aquela formidável senhora, Gemma, com quem passavam a maioria dos
dias Não sabia até então que os pais de François estavam fora e que
er esse o motivo de sua estada entre os ciganos.
Mas, mesmo depois que monsiewr e madame St. Salvador voltaram e
que Dionne sentiu exatamente qual era a posição e o lugar dela,
François não parou de vê-la, recusando-se a deixar que alguém
interferisse em seu romance.
Dionne tinha conhecido os seus pais e a sua irmã de catorze anos
Louise, e tinha ficado chocada com atitude indiferente e fria dos
velhos em relação ao filho.
Mais tarde, conheceu Yvonne Damaris, e madame St. Salvador deixou
bem claro que François era o futuro marido de Yvonne. O casamento
tinha sido combinado pelas famílias desde que eram crianças, e nada,
nem ninguém, principalmente qualquer uma que tivesse vindo da
Inglaterra, iria impedir.
Mas isso os pais de François haviam planejado sem considerar
Gemma, e a velha não era alguém cuja força se pudesse subestimar.
Dionne passou aqueles dias de calor entre eles, na caravana, nos
limites da propriedade St. Salvador, Os namorados viam-se sempre e
nenhum dos dois se referia ao fato de que, mais cedo ou mais tarde,
os ciganos teriam de seguir seu caminho.
Apesar de amar loucamente François, Dionne não podia tornar-se sua
amante. E, curiosamente, mesmo sabendo que tinha a força e o poder
de quebrar suas resistências e defesas, ele não tentava forçá-la.
A moça amava-o, talvez mais por isso: por sentir-se respeitada. Até
sonhava que um dia François iria desafiar os pais e fugiriam juntos.
Gemma, naturalmente, com a sua astúcia inata, compreendeu a
situação deles melhor do que ninguém. Tinha observado o
envolvimento dos dois, sabendo exatamente o que aconteceria.
Em julho, quando o festival da corrida de touros estava sendo
realizado em Aries, ela convidou os ciganos de sua tribo para uma
reunião na Fazenda St. Salvador.
Foram dúzias deles, para desgosto dos pais de François, mas não
podiam fazer nada para impedir. O avô de François tinha deixado a
propriedade aos cuidados do filho, mas ela pertencia à sua esposa
até que ela morresse.
Aquelas noites de festa, encantamento, vinho, dança e música
Despertaram os dois apaixonados.
Ele tinha sangue cigano nas veias, e o verão bronzeara o corpo de
Dionne, deixando-a dourada e tentadora. Ambos apaixonados, e
aquele relacionamento chegara a um ponto crítico.
Gemma não podia ter ficado mais feliz. François era o centro de seu
mundo, o neto adorado, sangue do seu sangue, herdeiro dos St.
Salvador, e ela se recusava a vê-lo casado com uma mulher fria e
calculista como Yvonne Demaris.
Uma tarde, François levou Dionne para ver uma tourada na arena de
Aries. Era uma tarde quente e abafada, e havia cheiro de morte no
ar, misturado com o odor de transpiração. Uma dessas tardes em que
a natureza desperta os sentidos e as necessidades do corpo, e
Dionne estava bastante consciente de que seus dias na Provença
chegavam ao fim.
François também sabia disso e demonstrava um desânimo visível.
Quando os gritos da multidão se transformaram em uivos e vaias de
desprezo pela incapacidade de um dos matadores, François levantou-
se e desceu até a arena para tomar seu lugar. Pegou a capa do
toureiro, e Dionne observou, numa imobilidade aterrorizada,
enquanto fazia passes que excitavam a multidão até a histeria
selvagem.
François não matou o touro; atingiu-o e lutou com a morte por alguns
minutos, mas, quando deixou a arena, não havia sangue na areia: só
um touro cansado e ofegante, tão confuso como os espectadores.
Dionne correu ao encontro do rapaz, trémula, censurando-o por
assustá-la daquela maneira.
Voltaram para o acampamento, apesar dos protestos dela, e François
contou a Gemma o que tinha feito. A Velha apenas sorriu e brincou
com Dionne por ela ser tão ingénua e não imaginar que seu neto sabia
exatamente o que fazia. O incidente, no entanto, serviu para lhe
provar que a vida sem ele não tinha nenhum sentido.
Aquela tarde foi o clímax das festividades no acampamento, e a
música estava mais selvagem e excitante do que nunca.
Para Dionne, os violinos pareciam fazer vibrar cada fibra de seu
corpo. As pessoas a observavam com estranheza, pegando em suas
roupas e em seus cabelos, com murmúrios feitos numa língua que era
ao mesmo tempo instigante e musical.
À medida que o tempo ia passando, ela começou a perceber que
aquela tarde era diferente das outras que passara no campo. A
música e a dança, o ar de encantamento, tudo contribuía para um
clímax, e ela era parte dele. Mas, de que forma?
Logo descobriria. Quando as chamas do acampamento tornaram-se
apenas sombras, Gemma apareceu nas vestes cerimoniais de phur dai,
a matriarca da tribo e, em seu deslumbramento, Dionne sentiu que
era por aquilo que tinham esperado. François estava ao seu lado
Olhou-o, nervosa, implorando com os olhos por uma explicação.
O olhar dele foi suave e acariciante, e a luz da paixão vibrou em seu
corpo.
- Amo você. Confie em mim!
Os detalhes do que aconteceu a seguir não ficaram na memória de
Dionne. Tantas coisas aconteceram ao mesmo tempo que, só quando
ela e François trocaram pedaços de pão salgado, ela começou a
perceber que aquilo era um ritual de casamento: uma cerimônia
cigana.
A princípio, estava com medo, confusa de excitação e espanto, pela
música que recomeçara e pelos ciganos reunidos à sua volta. Mas,
quando ela e François beberam o delicioso Vinho tinto da mesma taça
e ele colocou aquela corrente de ouro com o medalhão em seu
pescoço, sentiu-se feliz e relaxada. Ele era o homem que amava, seu
marido agora, pelas leis ciganas...
A festa e a dança continuariam por toda a noite, mas Dionne e
François iriam embora muito antes.
Gemma tinha preparado sua carroça para eles. Lembrando agora,
Dionne percebeu que os dois tinham-se deixado levar pelo clima de
entusiasmo e excitação.
Pareceu tudo tão natural... A lembrança da noite que passaram juntos
fez seu sangue ferver. Mesmo nesse momento, sentia o vigor no
corpo forte e rijo de François contra o seu, e a paixão ardente da
sua boca e das suas mãos entre as suaves cobertas de seda daquela
cama...
Enterrou o rosto nas mãos. Se ao menos eu soubesse o que
aconteceria depois, pensou, agoniada. Se ao menos percebesse que
tudo não passara de uma encenação, criada para dar a François aquilo
que ele mais queria, de uma maneira que parecesse direita e bonita.
Quando ele a deixou, na manhã seguinte, para voltar à fazenda, ela
ainda estava dormindo. Foi a última vez que o viu.
Esperava que ele voltasse durante aquele dia para levá-la até sua
casa. Mas François não voltou e, à noite, Dionne estava desvairada.
Não tinha ninguém a quem recorrer.
Gemma, sua única e possível aliada, tinha partido com o resto da
tribo, cedinho, de manhã, deixando aparentemente a carroça para
eles, mas Dionne começava a ter dúvidas. E se tudo não tivesse
passado de uma brincadeira? Se tivesse sido enganada? Gemma teria
desaparecido para evitar as consequências desagradáveis do que
havia feito?
Às nove horas, Dionne convenceu-se de que fora apenas usada: um
brinquedo para a satisfação de François. Gemma não tinha dito que
faria qualquer coisa por ele? E não sabia que o neto queria Dionne
desesperadamente? Era nojento e humilhante! Tirou a corrente de
ouro que François colocara em seu pescoço na noite anterior,
olhando, chorosa, para o medalhão de Sara. Não desejava nada que a
lembrasse da tolice que havia cometido sem querer.
O som de cascos de cavalo levou-a até a janela. Debruçou-se,
observando, anciosa, a silhueta ao luar.
Mas o cavaleiro solitário era uma mulher: madame St. Salvador, que
pedia para entrar.
Dionne não podia fazer nada, a não ser concordar, embora a simples
presença daquela mulher a fizesse pressentir um desastre.
A velha estudou o rosto choroso de Dionne e depois declarou que
tinha vindo a pedido do filho.
Explicou que François ficara envergonhado com a tolice que
cometera e que agora achava muito difícil encontrar palavras que
expressassem como se sentia. Aparentemente, tinha contado tudo
aos pais. Como não podiam desfazer o que já estava feito, e o rapaz
tinha ido até eles e pedido perdão, isso mostrava que sabia
claramente qual era seu dever.
Estava comprometido com Yvonne desde criança e aquele
envolvimento casual com Dionne poderia ser perdoado e esquecido.
Certamente, disse madame, Dionne entendia que aqueles rituais de
casamento não tinham valor algum e não deviam ser levados a sério.
A princípio, a moça ficou perturbada demais para pensar com
coerência, mas a verdade era que a mãe de François estava apenas
falando em voz alta as dúvidas que ela própria sentira durante todo
aquele dia, desde que se tornou claro e óbvio que François não
voltaria. Apesar de ter protestado, era um protesto de coração
partido frágil e inseguro.
A humilhação final, a última rejeição, foi o cheque que madame St.
Salvador lhe entregou, preenchido pelo próprio François, pagável num
banco da Inglaterra. Deu uma satisfação enorme a Dionne rasgar
aquele cheque em mil pedaços na frente da mãe dele. Apesar de que
sentiu que estava fazendo apenas o que a outra queria.
Depois daquilo, só pensou em ir embora. No dia seguinte, pegou um
voo e saiu de Marselha. Estava abatida e sombria, mas nem a
deserção de François podia apagar as lembranças da noite que
passaram juntos.
Ele tinha sido um amante tão maravilhoso, e saber que não o veria
mais era agoniante.
Naturalmente, depois que chegou na Inglaterra e sua vaidade ferida
começou a cicatrizar-se, esperou que ele fosse atrás dela. Não seria
difícil conseguir seu endereço em Londres. Imaginou que estaria
arrependido por ter fugido daquela forma. Mas não aconteceu.
Foi como se aquele período na França nunca tivesse passado de um
sonho, e tia Clarry não conseguia entender por que a sobrinha, que
tinha escrito tão entusiasticamente da Provença, tomasse tal
aversão súbita pelo lugar.
Quando Dionne descobriu que estava grávida, ficou desesperada.
Na sua mente perturbada, não podia ver futuro algum para ela nem
para a criança. Se não fosse a intervenção de Clarry, algo de terrível
teria acontecido.
A tia conseguiu arrancar-lhe a verdade aos poucos e, finalmente, fez
com que Dionne voltasse a pensar com lucidez. Ela era jovem e tinha
a vida inteira diante de si, além de força e capacidade para
recuperar-se. Além disso, o que lhe acontecera não tinha sido um
desastre irreparável: ela não era a única mulher no mundo a passar
por aquilo.
Era claro que não contaria nada a François sobre isso, estava
decidida. Por que deveria? Ele não tinha nenhum direito sobre a
criança. Ele a abandonara como se ela nunca tivesse existido, e não
queria nada dele.
Sua tia foi formidável. Concordou que Dionne deveria ficar com o
bebé, e quando Jonathan nasceu foi tão mimado e amado como
qualquer outra criança.
Dionne conseguiu um cargo de professora, e Clarry tomava conta do
menino, enquanto ela trabalhava. Não foi tão mal. As coisas foram se
ajeitando. Não tinham muito dinheiro, mas não passavam
necessidade.
Foi apenas quando Jonathan ficou doente que Dionne começou a
perceber o que François poderia ter feito, caso soubesse da
existência do filho.
Depois, poucas semanas atrás, o médico disse-lhe que a criança
precisava sair daquele úmido clima inglês, e tia Clarry aconselhou-a
gentil e insistentemente que pedisse ajuda a François: devia isso ao
filho.
As lágrimas caíam de seus olhos sem parar e, pela primeira vez,
deixava que caíssem. Que belo fiasco tinha sido sua viagem de volta
à França! Um desperdício de dinheiro que faria falta mais tarde.
Deveria saber que era uma loucura ir até lá para pedir algo a
François, depois do que acontecera. Mesmo assim, não sabia, até sua
chegada, que ele tinha seus próprios problemas; mas estes não eram
nada, comparados à amargura que havia sofrido em suas mãos.
Dionne levantou-se, enxugando os olhos. O que faria? Não podia
mais ficar ali. Não depois de ter jogado a oferta de dinheiro na cara
de François.
Nada poderia mudar o curso das coisas e, depois do incidente na
cabana, seria uma louca se ficasse.
François tinha provado que ainda era tão capaz de destruir suas
defesas como sempre fora. Como ele ia zombar, se ela permitisse que
toda a história se repetisse. Bateram na porta e seu coração
disparou.
- Sim? O que é?
- Lê téléphone, mademoiselle! - a arrumadeira avisou. - Vai descer
agora?
O coração traiçoeiro começou a acalmar-se. Naturalmente devia sei
Henri. Ele disse que telefonaria. Era gratificante saber que tinha
alguém tão atencioso e que queria sua companhia. Eram apenas nove
horas da manhã, e já estava telefonando. Ou será que seus motivos
eram tão calculistas como haviam sido os de François? De qualquer
forma, nada importava. Não tinha intenção alguma de se envolver com
ele. Mesmo assim, não podia se recusar a atendê-lo, quando haviam
passado uma tarde agradável juntos, dois dias atrás. Seria muita
ingratidão não responder ao seu chamado.
- vou descer dentro de um minuto. - Tirando seu robe rapidamente,
vestiu calças compridas e uma blusa.
A voz de Henri era suave e agradável.
- Dionne? Oh, é tão bom ouvir você novamente. Como vai? Dionne
respondeu polidamente e Henri comentou:
- Parece tão sombria, tristonha. Será que o meu telefonema causa
esse efeito em você... como diria... essa depressão?
- É claro que não, Henri. Foi gentil ligando, mas receio que terei de
partir logo.
- O quê? Vai embora? Embora da Provença? - Ele parecia
terrivelmente desapontado.
- Receio que sim. Eu... eu... tenho de voltar para a Inglaterra.
- Mas por quê? Você está aqui há menos de uma semana!
- Eu sei. Mas... bem, tenho de voltar.
- E quando vai embora?
- Eu... ainda não estou certa. Hoje... amanhã, talvez. Depende de
quando possa conseguir um voo.
- Então, tem de ser amanhã. Pelo menos, me deixe passar mais um dia
na sua companhia.
Dionne hesitou. Apesar da distância que queria colocar entre ela e os
St. Salvador, seu coração era bastante fraco para sucumbir ante a
perspectiva de ficar mais um dia perto de François. Era estúpido,
talvez até irresponsável e infantil, mas a ideia de ir embora
precipitadamente causava-lhe uma incrível dor no peito.
- Muito bem - respondeu ao convite de Henri. - Está certo, vou
tentar uma reserva num voo da manhã.
Ela se desprezava por tanta fraqueza, mas a coisa já estava feita, e
Henri ficou encantado.
- O que você vai querer fazer? Estou livre o dia inteiro. Gostaria de
fazer um tour? Até os vinhedos? Até Lês Baux? Até Nimes talvez?
- Não... não... lá, não - falou, rapidamente. - Nós não poderíamos...
quero dizer... será que seria possível irmos apenas até Lês Saintes
Maries? Que tal almoçarmos lá e mais tarde nadarmos?
Henri parecia entusiasmado.
- É claro. Se é o que quer, Dionne. Eu não conseguiria sugerir algo
mais delicioso. Quando é que estará pronta?
Dionne olhou para o relógio.
- Você me dá uma hora? Ainda não tomei café, e quero telefonar para
o aeroporto.
Henri concordou e desligou. Dionne saiu da cabine, sentindo-se um
pouco melhor. Já que sua partida tinha sido adiada por um dia,
poderia relaxar mais um pouco. Tomou café no restaurante e depois
subiu para se trocar e vestir algo mais adequado. Resolveu que usar
calsas compridas seria a melhor solução, mas colocou o biquini verde
por baixo, para evitar o problema da troca de roupa. Depois disso,
aplicou uma maquilagem leve e desceu para telefonar para o
aeroporto.
Tinha havido um cancelamento no voo do dia seguinte e ela reservou
o lugar para si. Quando saiu da cabine, encontrou-se com o gerente
amistoso e contou-lhe que deixaria o hotel na tarde seguinte
- Oh, mademoiselle, espero que não haja nada de errado. Espero que
em casa tudo esteja bem; não está?
- Sim, está tudo bem. Apenas, tenho de voltar. Mas gostei muito da
minha estada aqui e vou recomendar seu hotel para os meus amigos.
O gerente ficou deliciado com o elogio, e Dionne continuou seu
caminho, sentindo a mesma sensação estranha que tinha quando
pensava seriamente no que estava fazendo.
Henri chegou pouco depois das dez horas e foram até Lês Sainte
Maries.
Havia vários turistas na igreja do século XII, onde as relíquias das
santas eram guardadas. Dionne lamentou quando notou que a pequena
cidade estava se tornando mais moderna e comercial.
O almoço, num dos restaurantes locais, foi delicioso. Depois
deixaram o carro e caminharam até a praia para desfrutar a tard
ensolarada.
Encontraram um lugar calmo perto de algumas rochas, e Dionne
estendeu sua toalha e deitou-se preguiçosamente, sem tirar a roupa.
Henri tinha um suéter nos ombros; colocou-o na areia e deitou-se ao
lado dela, observando-a, ansioso.
- É absolutamente necessário que você volte para a Inglaterra
amanhã? - perguntou, acariciando uma de suas mãos.
Dionne soltou-se, gentilmente, e virou-se de bruços, apoiando-se nos
cotovelos.
- Receio que seja.
Depois, olhou, atenta, um navio no horizonte.
- Por quê? Você está de férias. É claro que pode esperar mais alguns
dias.
- Não é tão simples assim. Tenho... bem... compromissos em casa.
- Que compromissos pode ter? Dionne pensou, antes de responder.
- Henri, você não sabe absolutamente nada sobre mim. Eu poderia ser
casada, já pensou nisso?
- Você não usa aliança.
- Isso não quer dizer nada. Não é uma garantia. Milhares de moças
na Inglaterra não usam aliança. Não há lei que obrigue.
- E você é? Casada, quero dizer?
- Não.
Henri relaxou e inclinou-se sobre ela.
- Então, você não poderia ficar apenas para me agradar?
- Não, não posso. - Dionne sacudiu a cabeça firmemente, e depois
levantou-se. - Vamos nadar?
A rapidez da mudança de assunto surpreendeu Henri, mas, um tanto
relutante, ele concordou. Dionne despiu-se, e Henri ficou
observando-a admirado.
- Linda! - ele murmurou.
Ela correu para a água e mergulhou. Henri ficou olhando por um
instante; depois, desapareceu atrás das rochas. Quando apareceu
novamente, estava usando um calção branco que acentuava seu
bronzeado. Juntou-se a Dionne na água e, por uma meia hora,
nadaram e mergulharam, felizes e despreocupados.
Quando voltaram à areia, Dionne enxugou-se, antes de deitar-se
novamente ao sol.
Henri sentou-se ao lado dela, fitando intensamente seu rosto corado.
- Dionne - ele murmurou.
Diante do perigo, ela endireitou-se para evitar aquele olhar
apaixonado.
- Por favor, Henri! Não estrague tudo.
- Por que estaria estragando tudo? Pensei que gostasse de mim.
- E gosto. - Dionne abraçou os joelhos. - Gosto de você, Henri, mas
não quero me envolver de forma alguma. Sinto, se não foi isso que fiz
você pensar... sinto se dei essa impressão errada.
- O que quer de mim, então? - Sua voz, jovem e petulante, fez com
que Dionne percebesse que Henri não era tão maduro como ela
pensara que fosse. - Você aceita um convite para almoçar... viemos
até aqui, onde estaríamos sozinhos... e depois diz que não quer se
envolver! O que pensa que eu sou?
Dionne fitou-o, muito infeliz, com um arrepio de apreensão
percorrendo sua espinha.
- Henri, por favor... - começou a explicar, mas ele ignorou puxando-a
inesperadamente e fazendo com que perdesse o equilíbrio e caísse
em seus braços. Seus lábios procuraram os dela, e Dionne virou a
cabeça, tentando evitar o beijo, lutando, empurrando-o.
Mas sua resistência parecia excitá-lo ainda mais, e ele a segurou
mais perto, ávido, com a respiração entrecortada pelo desejo.
Dionne começava a se sentir realmente zangada, quando, de repente,
Henri foi arrastado para longe dela, e um soco no estômago e outro
no queixo o atiraram na areia, com um gemido.
Dionne levantou-se, encontrando o olhar frio, penetrante e cheio de
censura de François St. Salvador.
- Vista-se. Ponha alguma roupa! - ele ordenou, antes de ajudar Henri
a levantar-se.
O rapaz estava se recuperando, reclamando e esfregando o estômago
atingido. Seus olhos ficaram turvos de espanto, quando reconheceu
François.
- François? C’est mói, Henri! A quoi pensez-vous?
- Agora não, Henri. Não estou com humor para brincadeira!
- C’est évident! - disse, massageando o maxilar. - Não entendo você,
François! O que fiz de errado? Conhece mademoiselle King?
- Oui! Conheço mademoiselle King?
Henri ficou perplexo e olhou curiosamente para Dionne. Mas ela
estava muito ocupada, vestindo as calças compridas sobre o biquini
úmido.
Quando acabou de vestir-se, François agarrou seu braço e, com um
cumprimento seco a Henri, levou-a pela areia até onde estava a
caminhonete empoeirada. Abriu bem a porta e empurrou Dionne para
dentro. Depois, entrou e deu a partida. O carro pesado fez um
semicírculo e partiu aos solavancos pela superfície desigual da praia,
até a estrada. Dionne estava sentada, paralisada e surpresa, sem
entender como e por que ele estava ali naquele momento.
CAPÍTULO VII

Fazia calor dentro do carro e o biquíni de Dionne estava aderente e


desconfortável. François dirigia muito concentrado, o que era, até
certo ponto, um alívio. Não queria saber aonde ele a levava e muito
menos queria responder às suas perguntas. Mesmo assim, aquele
silêncio tenso dava em seus nervos. Mexeu-se no banco, nervosa.
- Sente-se quieta! Vai se sentir ainda pior, se continuar a se mexer
assim!
Dionne olhou para ele, em silêncio, começando a se arrepender de ter
gostado tanto que François aparecesse na praia para livrá-la de
Henri. Que direito tinha ele de interferir em sua vida, mesmo para
salvá-la?
Naturalmente, depois do que acontecera na véspera, não esperava
vê-lo mais. Por que estaria ali? Por que tinha ido à sua procura? O
que pretendia com ela agora?
- Aonde você está me levando? - perguntou, reunindo toda sua
coragem.
François encarou-a por um momento.
- Ainda não parei para pensar no assunto. Imaginei que você talvez
quisesse se livrar desse biquini molhado. Não quer?
- O que você quer dizer com isso?
- Pare de tirar conclusões apressadas de tudo o que digo, Dionne! Só
porque você parece sempre pronta a cair nos braços de qualquer
homem, não quer dizer que...
- Como se atreve? Como ousa me dizer uma coisa dessas? Oh... eu
detesto você, François!
Os dedos dele apertaram a direção e, com uma manobra brusca,
continuou levando o carro através de um trecho de relva musguenta
até a margem de um charco. Uma fileira de árvores fazia sombra,
deixando o interior do automóvel numa temperatura agradável e
amena, mas Dionne abriu a porta assim que pararam, saltando e
colocando uma distância segura entre ela e o rapaz.
Mas François não se mexeu, e ela sentiu-se um tanto ridícula, no
meio daquele pântano. Estava muito quente, o sol forte batia em sua
cabeça; precisava ir para a sombra.
Foi procurar refúgio no meio das árvores.
Só então François saiu do carro, com a cigarrilha por entre os
dentes e uma toalha enorme nas mãos.
- Tome! - disse, jogando a toalha para ela. - Não é muito charmosa,
mas pelo menos está limpa. Eu a deixo sempre no carro. Vamos,
pegue! Não está contaminada!
Dionne apertou os lábios e estendeu os braços para apanhá-la.
- O que devo fazer? - perguntou, nervosa. - Tirar a roupa na sua
frente?
François tirou a cigarrilha da boca.
- Quando eu quiser esse tipo de estímulo, vou procurar uma
profissional! - E voltou para o carro.
Dionne hesitou um instante. Depois, tirou as sandálias, a calça e a
blusa. Mas continuou com o biquini. À esquerda, havia uma lagoa
brilhante e tentadora. Num impulso, mergulhou. Era delicioso nadar
naquela água gelada e cristalina. Todo o desconforto que sentia
desapareceu.
Nadou por vários minutos, vendo o carro à distância. François
parecia completamente indiferente, mas ela sabia que não podia
demorar muito. Quando alcançou a margem, um ruído assustou-a.
Pensou que fosse ele e virou-se, zangada. O que viu gelou seu sangue.
A poucos metros de distância, enormes chifres curvos a ameaçavam.
Era um dos touros negros da Camargue.
Dionne ficou petrificada durante um instante, incapaz até mesmo de
pensar no que deveria fazer. O touro estava sozinho, o que era
estranho, e ela concluiu que se desgarrara da manada sem que o
gardien notasse. Era um touro espanhol, grande e musculoso, criado
para as corridas e, portanto, feroz. Dionne já se via caída no chão,
ferida e mutilada, seu sangue manchando as águas da lagoa. Uma
terrível sensação do inevitável se apoderou dela.
com as pernas trémulas, afastou-se do animal, tentando não
perturbá-lo com nenhum movimento brusco. O touro a observava com
olhos brilhantes, bufando e arrastando uma pata. De repente,
avançou na direção da lagoa, balançando a cabeça de um lado para
outro, e então Dionne perdeu o controle.
Saiu correndo pelo pântano, aos tropeções.
Ouviu o barulho dos cascos e soube que o touro a seguia, mas não
teve coragem de olhar para trás.
Depois, viu que François corria para ela, com uma tora de madeira
grossa na mão. Passou por Dionne e gritou:
- Suba na traseira da caminhonete!
com as pernas trémulas, ela obedeceu, arrastando-se até o carro e
entrando pela porta de trás. A carroceria era de madeira áspera,
estava cheia de cordas e ferramentas e tinha um forte cheiro dos
cavalos.
O touro havia parado a alguma distância da caminhonete, bufando e
batendo os cascos no chão, zangado e nervoso. Dionne sabia que se
preparava para atacar e não entendia por que François não corria
também para a segurança do carro. Desesperada, não tirava os olhos
do rapaz, com a respiração suspensa.
Mas ele parecia quase relaxado agora, falando calmamente com o
animal. O touro continuava a bufar; a cabeça, no entanto, estava
menos agressiva, e Dionne sentiu o suor frio escorrer por seu corpo.
Aos poucos François foi recuando na direção do carro. A moça
escancarou a porta de trás, assim que ele se aproximou. Tremia
violentamente, e o rapaz olhou para seu rosto pálido, antes de
abraçá-la pelos ombros e apertá-la contra o corpo.
- Meu Deus, nunca mais faça isso comigo! - ele murmurou, numa voz
rouca, depois enterrou o rosto nos ombros de Dionne.
Também estava trémulo, ela podia sentir, mas aquelas mãos que
escorregaram até sua cintura estavam firmes, frias e quase
cruelmente possessivas.
- De que você estava com medo? - sussurrou François contra o
pescoço dela, e depois sua boca procurou a da moça, impedindo-a de
responder.
Dionne não podia mais resistir. A agonia de ver François lá fora, à
mercê daquele touro, tinha destruído suas defesas, e agarrou-se a
ele, faminta, desabotoando sua camisa e procurando o calor daquela
pele que tinha um cheiro másculo que ela ainda não conseguira
esquecer.
Ele a deitou no chão áspero, mas ela nem sequer notou o
desconforto. François beijava-lhe, ansioso, as mãos, acariciando sua
cintura e quadris, as pernas sobre as dela, fazendo-a sua prisioneira.
Uma prisioneira dócil, mais do que desejosa de se submeter às suas
menores vontades. Aquele era François, o homem que amava, o pai de
seu filho, sua outra metade, e não importava o que ele tivesse feito
no passado, ainda o amava.
Mas, dessa vez, foi François quem recuou, afastando-se dela para
sentar-se com as pernas dobradas, os cotovelos sobre os joelhos, e a
cabeça inclinada.
- Oh, Deus! - falou, num tom torturado. - Dionne, eu quero você!
A moça ficou onde ele a tinha deixado, os lábios queimando pela
paixão de seus beijos, os cabelos, já secos, espalhados como uma
nuvem dourada em volta do rosto.
- François... - ela murmurou.
Mas, com uma praga, ele abriu a porta da caminhonete e saiu, para
tomar fôlego.
Depois, foi até onde estavam as roupas de Dionne, pegou-as junto
com a toalha, que ela tinha deixado perto da lagoa, e jogou tudo na
parte traseira do veículo. Tornou a afastar-se e recostou-se numa
árvore, procurando pelas cigarrilhas no bolso. O touro tinha
desaparecido há muito tempo, e estavam sozinhos naquela vasta
solidão desértica.
Dionne levantou-se sentindo as costas doloridas. Tinha estado
deitada sobre uma corda e nem percebera.
Esfregou a toalha no corpo, tirou o biquini e vestiu suas calças e a
camisa. Sentia-se muito mais confortável agora. Saiu do carro.
François virou-se, quando a ouviu fechar a porta de trás e foi
vagarosamente até ela, esmagando a cigarrilha no chão com o salto
da bota. Seus olhos brilhavam intensamente, mas não a tocou. Abriu
a porta e sentou-se ao volante. Dionne apertou os lábios e depois
entrou na caminhonete também.
François não deu logo a partida. Ficou com os cotovelos apoiados na
direção, o olhar perdido no pântano.
- Eu poderia ter matado você! - falou, sem nenhuma emoção. Dionne
pressionou as costas da mão na boca, e ele olhou-a de lado,
para ver sua reação.
- O que você esperava? - perguntou, provocando-a. - Voltando aqui,
quando eu estava começando a aceitar o inevitável; destruindo toda e
qualquer paz de espírito que eu tinha conseguido!
- Sinto muito. Mas eu não imaginava que seria assim!
- Você não imaginava? Não desconfiava nem mesmo como eu iria
reagir?
- Como é que eu poderia saber? - Dionne corou.
- Como você poderia saber? - Olhou para ela, zangado. Depois de
tudo o que aconteceu antes! Nós fomos amantes, Dionne. Acha que eu
poderia esquecer o que foi... tê-la em meus braços... fazer amor com
você? - Passou a mão pela nuca. - Acha que não fiquei acordado
durante a noite, lembrando do calor e da maciez de sua pele, do
perfume que você tem? E pensa que não a imaginei nos braços de
outro homem, permitindo que ele a tocasse da maneira que eu a
toquei? Dionne ficou chocada.
- Ninguém... nenhum homem jamais me tocou! - gritou. Os olhos de
François percorreram seu corpo com insolência.
- Como posso acreditar numa coisa dessas, se encontrei você duas
vezes com homens. Viveu os últimos três anos num convento?
Dionne sacudiu a cabeça. Morria de amor por ele e não queria contar-
lhe o motivo pelo qual estava ali, mas aqueles eram momentos muito
difíceis e dolorosos, devia ficar atenta para não confessar algo que a
destruiria. Depois, não importava o quanto ela o atraía fisicamente -
e não havia dúvida de que o atraía -, ele ia casar com Yvonne e não
havia lugar para Jonathan naquela casa, mesmo que a convencessem a
deixar o menino lá.
- Por favor, leve-me de volta para o hotel. Eu...preciso fazer as
malas. vou embora de manhã.
- Você o quê? Mas não pode! Ainda não recebeu o dinheiro... e, além
disso, Gemma quer ver você novamente.
- Bem, sinto muito, mas receio que ela vá ficar desapontada dessa
vez; já reservei a passagem.
- Cancele! - Se ela não o conhecesse melhor, diria que havia agonia no
fundo de seus olhos cinzentos.
- Não! Não, eu não posso!
- Dionne! - Segurou a nuca da moça, apertando-a. - Dionne, não pode
fazer isso comigo!
- Fazer o quê?
- Você sabe! Por favor, estou pedindo: não vá... ainda. Ela engoliu, em
seco.
- Eu... tenho de ir.
- Por quê? Quem está esperando por você na Inglaterra? Existe
algum homem? Você está mentindo para mim!
- Não estou, não. Está enganado. Não há nenhum homem. Seus olhos
imploravam que ele acreditasse nela.
- Onde você mora então? Tinha me falado uma vez que morava com
uma tia. Ainda mora com ela?
- Sim, ainda! - Dionne respirava com dificuldade e François a
observava, em silêncio, obviamente analisando se eram verdadeiras
ou não suas palavras.
- E os quinhentos mil? São para sua tia? Dionne afastou-se dele.
- Se pensar que são para minha tia faz você feliz, então tudo bem.
São para a minha tia!
- Dionne, como é que posso deixar você ir?
Ela virou o rosto para esconder sua expressão: não queria que ele
percebesse que acreditava ou queria acreditar que também a amava.
Mas havia Jonathan, e ela não podia arriscar seu futuro por um
capricho.
- Diga-me uma coisa: - ela falou, calmamente, mas seus olhos estavam
tristes - Por que você e Yvonne... esperaram tanto para casar?
A expressão de François endureceu, como se a simples menção do
nome da noiva o trouxesse de volta à razão. Pensou que ele nem se
importaria em responder mas, só depois de alguns momentos,
François falou:
- Yvonne está paralítica. Ficou assim três meses depois que você foi
embora. Fez várias operações, todas elas demoradas, vai fazer outra
dentro de algumas semanas. Já há sinais de melhora, e os médicos
acreditam que, com essa última operação, ela vai voltar a andar
novamente; tem toda a chance de ter uma vida... cheia e ativa.
- Eu... entendo.
Yvonne poderia voltar a ser uma mulher normal; poderia casar e ter
os filhos de que ele precisava para continuar a família St. Salvador.
- Você entende? Será que realmente consegue ver alguma coisa além
de seus objetivos egoístas?
- Essa conversa não nos leva a nada, François. É melhor você me levar
de volta para o hotel.
Sem uma palavra, ele levou-a para Aries. Não disseram nada durante
o trajeto, cada um ocupado com os próprios pensamentos. Quando ele
parou na porta do hotel, foi muito doloroso para Dionne despedir-se.
- Obrigada e adeus.
François olhou-a, como se quisesse dizer algo, mas mudou de idéia.
Apenas abriu a porta para ela e partiu em disparada.
Dionne recebeu um telefonema de Henri naquela noite. Queria
desculpar-se pelo comportamento daquela tarde. Se o
arrependimento do rapaz era sincero ou se o fato de François St.
Salvador estar envolvido o amedrontava, ela nunca ficaria sabendo.
Mas garantiu que não estava zangada e depois voltou para o quarto,
para acabar de arrumar as malas.
Mais ou menos às nove e meia, bateram na porta. Dionne ficou
surpresa e um pouco apreensiva. Não podia imaginar quem era e, fora
François, não queria falar com mais ninguém. Mas não era François.
Uma voz feminina chamou:
- Dionne? Dionne, posso entrar? Foi até a porta e abriu-a.
- Louise! O que está fazendo aqui, a esta hora da noite? Louise
entregou-lhe um envelope.
- Vim numa missão. François pediu para entregar isto. - Olhou em
volta. - Posso entrar?
Dionne pegou o envelope com dedos trémulos e tentou controlar-se.
- Oh, claro. Entre. Infelizmente não tenho nada para oferecer.
- Não faz mal. Quero só a chance de falar um pouco com você. Está
fazendo as malas? François sabe que você vai embora?
- Sim para as duas perguntas. - Dionne respondeu, jogando o
envelope no fundo do bolso, para ser aberto mais tarde. - Sente-se.
Você veio sozinha?
- Já tenho idade para dirigir, você sabe, e François sempre cuida
para que todos os carros estejam em excelente condição para não
haver problemas na estrada. - Suspirou fundo. - Mas por que você vai
tão depressa? Não pode ficar só por mais uns dias? Eu sei que vovó
está querendo vê-la novamente.
- Sim, eu sei disso também, e sinto muito. Mas é impossível, tenho de
voltar. - Dionne queria ter algo mais a dizer. - Não
consigo me acostumar com a ideia de que você já é adulta agora.
Parecia tão criança antes. Louise sorriu, agradecida.
- Obrigada, Dionne. Mas, sinceramente, não vim até aqui para falar
sobre mim. Quero falar sobre François.
- Não acho que deva.
- Por quê? Não está interessada? - Louise a observava atentamente.
- Pode até ser - respondeu, sem jeito.
- Ele contou por que ele e Yvonne ainda não estão casados?
- Não.
- Ele foi atrás de você, não foi?
- Atrás de mim? O que quer dizer com isso?
- Esta tarde, eu vim até aqui para ver você. Então o gerente me disse
que você tinha saído com um rapaz e que tinha ouvido que iam até Lês
Saintes Maries. Quando voltei e contei para ele, François saiu feito
um raio.
- Entendo. Eu imagino... que... É verdade, ele me encontrou.
- Se quer saber, meu irmão estava com tanto ciúme... - Louise
começou, mas Dionne virou-se, fingindo arrumar a mala. A jovem
calou-se, embaraçada.
- Hoje fez muito calor - Dionne tentou desfazer o mal-estar entre
as duas.
- É verdade. - Louise foi até a ponta da cama e inclinou-se para ela. -
Diga-me uma coisa: François contou como Yvonne sofreu o acidente?
- Oh, Louise, por favor! Isso não tem nada a ver comigo.
- Sabe que não é verdade. - Os olhos da garota estavam nublados. -
De qualquer maneira, vou contar. Então, ouça, por favor. Bem, isso
foi quando François estava de pé e recuperado novamente...
- De pé e recuperado? De pé e recuperado... de quê?
- Do acidente, claro. Oh, eu devia ter percebido. Você não podia
saber... naquelas circunstâncias... - Suspirou profundamente. -
Bem, François foi jogado do cavalo. Quebrou a perna, estava
sofrendo muito e, naturalmente, ficou confinado na fazenda por
algum tempo. Dionne olhou para Louise, agora muito interessada.
- Continue. O que aconteceu depois?
- Está curiosa, hein? - Louise brincou, mas mudou de atitude, ao
perceber a preocupação da outra. - Sinto muito. É claro que vou
continuar. Bem, como dizia, foi depois que François se recuperou,
eles tiveram uma briga terrível sobre algo, nunca descobri o motivo,
mas, como resultado, Yvonne se dirigiu até o curral com um chicote.
- Oh, não!
- Foi, sim. Yvonne pode ser muito má, quando quer. Infelizmente, os
touros presos no curral, à espera dos compradores que iriam buscá-
los naquela tarde, estavam todos irrequietos, e dois deles
escaparam. Você não pode imaginar os gritos dela! Os berros dos
touros! François... salvou a vida de Yvonne. Mas ela não merecia tal
risco pela sua vida.
- Louise!
- Bem, é verdade. Se você tivesse visto as chicotadas que Yvonne
deu no lombo daqueles pobres animais...
Dionne sentiu-se doente. Foi pior do que tinha imaginado. Passou o
braço ao redor dos ombros da garota, trémula, e disse:
- Acabou agora, Louise, e Yvonne certamente pagou pelo que fez.
- Você acha? Acha mesmo que ela pagou pelo que fez?
- Você não?
- Não. Não, eu não acho. Ela teve o que quis. Está lá em casa. As
coisas não poderiam ter sido mais convenientes para ela.
- O que quer dizer?
- Bem, a mãe dela morreu pouco depois de papai. O pai não podia
cuidar dela, sem ajuda, e mamãe ficou contente em ter sua
companhia, para que a distraísse. Mas ninguém perguntou a François
o que ”ele” queria! Ninguém sequer mencionou que, agora que Yvonne
estava paralítica, o noivado deles é um absurdo!
- De qualquer forma, não acredito que François a abandonasse por
causa disso.
- Nem eu. Mas era o que devia fazer. Dionne, você não percebe?
François não pode casar com Yvonne. Ela é má. Você não vê que ela
fará com ele o que fez com aqueles animais? E não com um chicote, é
claro; ela é bem mais sutil do que isso. Mas a comparação é boa, no
final. Você não sabe que ela o culpa pelo que aconteceu? Yvonne acha
que se eles não tivessem tido aquela briga, ela não teria ficado
paralítica. Dionne - segurou as mãos da moça - Dionne, não vá
embora! Fique e lute por François. Esqueça o passado, pense apenas
no futuro!
Dionne retirou a mão.
- Louise, você está dramatizando demais a coisa.
- Estou? Não acho.
- Foi gentil da sua parte ter me contado isso. Não pense que não
apreciei saber o que você acabou de me contar.
Louise suspirou. Depois, teve uma ideia.
- Já lhe disse que François quer me mandar para a Suíça? Bem, que
tal se eu pedisse a ele para me mandar para a Inglaterra? Não para
morar com você... eu não seria tão presunçosa, nem tão metida, mas
só para estarmos perto...
O coração de Dionne pareceu parar.
- Eu... eu não acho que seja uma boa ideia, Louise. Não... não agora.
A garota ficou desapontada.
- Mas por quê?
- Eu... bem, eu estarei trabalhando...
- Mas não o tempo todo, não é? Quero dizer, vamos ter
oportunidades de nos ver. Talvez nos fins de semana. Oh, eu sei que
já tem os seus amigos, mas adoraria passear com você de vez em
quando...
- Oh, Louise! Eu... não acho que isso seja possível. A outra deu de
ombros, sentida.
- Pensei que gostasse de mim.
- Eu gosto, honestamente eu gosto. Não é nada do que possa parecer.
É que... bem, quando eu for embora daqui... não quero mais ter
nenhuma ligação com a sua família...
- Com François, você quer dizer.
- Muito bem, com François, Louise levantou-se.
- Não vejo por quê. Além disso, eu não falaria sobre ele, se você não
quisesse ouvir.
Dionne sentia-se terrivelmente culpada. Recusando a proposta tão
espontânea de Louise, de uma sincera amizade, sabia estar
destruindo algo de muito precioso e verdadeiro. Mas como é que
poderia ver Louise na Inglaterra? Cedo ou tarde, a garota
descobriria que ela tinha um filho, um sobrinho.
Louise foi até a porta.
- Acho melhor ir embora. Está ficando tarde.
- É verdade - Dionne concordou, muito pouco à vontade.
- Sinto muito se deixei você mal.
- Você não me deixou mal. - Segurou as mãos de Louise. Eu... eu sinto
muito.
A outra encolheu-se, com um gesto de pouco caso.
- Pás du tout. Au revoir, Dionne.
- Au revoir. - Sorriu, mas, depois que Louise se foi, as lágrimas
desceram, incontroláveis, por seu rosto.
Só quando voltou a arrumar as malas lembrou do envelope. Abriu-o
com mãos trémulas e um pedaço de papel caiu no chão. Era um cheque
no valor que ela precisava, para ser descontado num banco da
Inglaterra.
Dionne tinha combinado com a empresa de carros de aluguel que
dirigiria o Citroen até Marignane e o deixaria lá. Isso lhe poupava o
trabalho de procurar algum outro transporte até o aeroporto.
Estava carregando a bagagem até o carro, na manhã seguinte, quando
o telefone do hall tocou. O gerente atendeu e depois chamou-a.
- É para a senhorita. Da Inglaterra.
- Inglaterra? - Um frio percorreu sua espinha. Quase arrancou o
fone das mãos do gerente. Falou, quase sem fôlego: - Sim? Sim, aqui
é Dionne. Quem é?
- Dionne? Aqui é a sra. Reynolds.
A sra. Reynolds era uma vizinha, e. Dionne sentiu que sua ansiedade
começava a se transformar em pânico.
- Sim, sra. Reynolds, o que há de errado? Aconteceu alguma coisa?
- Não se apavore, minha querida. Não é nada sério. Sua tia caiu no
jardim e quebrou a perna. Não está no hospital nem nada, mas,
naturalmente, não tem condições de tomar conta do menininho...
Era terrível o que tinha acontecido com a tia Clarry, mas Dionne
sentiu-se mais aliviada;
- É claro que não. Está bem, sra. Reynolds, pode dizer a ela que estou
indo para casa hoje à tarde. Já estou de saída. Posso tomar conta de
Jonathan quando chegar.
- Oh, ela vai ficar tão aliviada, meu bem. vou desligar então. Até a
volta.
- Sim, é claro. E obrigada por ter ligado.
- Tudo bem, Dionne. Adeus.
- Adeus, sra. Reynolds.
Dionne desligou e só então percebeu que havia alguém parado na
porta da cabine. Alguém que agarrou seu braço, arrastando-a à força
para fora.
Engasgou, quando François enfrentou-a, com o rosto colado ao dela.
- Quem, afinal, é Jonathan, sua mentirosa?
CAPÍTULO VIII

Dionne recuou um passo e François foi obrigado a soltá-la. Havia


pessoas no hall e já estavam começando a olhar, curiosas.
- Tenho de falar com você. Mas não aqui. No seu quarto! Dionne olhou
ao redor, trémula.
- Eu... eu não tenho tempo, François. Preciso ir para o aeroporto.
- vou levá-la até o aeroporto.
- Não, não. Tenho de deixar o carro lá.
- Para o inferno com o carro! Dionne, estou prevenindo você...
Encarou-o, procurando controlar-se.
- Por que está aqui? Pensei... quando você mandou o cheque...
- Maldição! Eu não consegui ficar longe. - François segurava seus
ombros, alheio aos espectadores. - Meu Deus, Dionne, não pode fazer
isto comigo!
- Tenho de ir, François.
- Sim, eu sei. De volta para a Inglaterra... para Jonathan! - Os dedos
de François subiram até seu pescoço. - Não vou deixar você partir.
- O que pretende fazer? - Ela estava enraivecida. - Vai me instalar
aqui em Aries, daquela maneira tradicional como os franceses tratam
as amantes?
Ele apertou mais seu pescoço, e ela quase gritou de dor, mas logo
depois ele a soltou, dizendo:
- Eu não mereço isto.
- Não merece?
Dionne não conseguia olhar para ele. Se o fizesse seria um desastre.
Não aguentaria a agonia que sabia haver em seus olhos.
- Dionne, por favor, estou pedindo pela última vez. Esse Jonathan é o
motivo para precisar tanto do dinheiro?
Dionne hesitou e depois abaixou a cabeça:
- Sim. É por ele.
- Mon Dieu! - François passou a mão pelos cabelos, num gesto de
completo desespero.
- Posso ir agora?
- Sim. Vá! Vá com os diabos!
Sem dizer mais nada, ele passou por ela e saiu do hotel.
Estava chovendo, quando Dionne desembarcou no aeroporto de
Londres, e ela tremia ao atravessar a pista. Tomou um ônibus no
terminal e depois outro até Brentford.
Saltou no fim da rua e caminhou até o número cinquenta e três.
Enquanto se aproximava, viu as cortinas das casas vizinhas se
moverem e pensou amargamente quantas fofocas sua viagem devia
ter provocado.
Pegou a chave na bolsa e abriu a porta da frente. Imediatamente
ouviu passos no fim do corredor. Um menininho apareceu, com um
olhar doce e adorável, vestindo um macacão jeans por cima de uma
camisa xadrez. Era tão parecido com François! Os mesmos olhos
cinzentos, o mesmo nariz, a mesma boca e os mesmos cabelos
escuros, apenas um pouco mais ondulados.
- Mamãe! - Jonathan gritou, excitado, e quase tropeçou ao correr
para ela.
Dionne sorriu e abaixou-se para pegá-lo nos braços.
- Alo, querido. - Estava ofegante, enquanto embalava seu filho junto
ao peito, adorando a sensação de suas mãozinhas em seus cabelos, e
ao redor do pescoço, agarrando-se a ela com calor e confiança. -
Você foi bonzinho e se comportou bem com a tia Clarry?
Os olhinhos de Jonathan se arregalaram.
- Tia Clarry está com uma perna doente - ele falou, pronunciando as
palavras devagar. - Vem ver!
Segurou a mão dela e arrastou-a pelo hall até a sala onde Clarry
Meadows estava sentada no sofá, com a perna engessada sobre um
banquinho. Dionne olhou-a, com um sorriso.
- O que é que andou fazendo? - perguntou, indo ao encontro da tia
para beijá-la carinhosamente. - Será que não posso deixá-la sozinha
por uns poucos dias?
Clarry fez uma careta.
- Eu sei, sou uma velha boba, não sou, Jonathan?
Jonathan foi até a tia, subiu no sofá e se pôs ao lado dela. Clarry
continuou:
- Como é que você está? Isso é bem mais importante. Sinto muito por
obrigá-la a voltar mais cedo do que esperava.
- Não foi nada. Eu já estava voltando, de qualquer maneira Dionne
respondeu, tentando lutar contra aquela ameaça de desespero que
queria dominá-la.
- Você não me parece muito bem. Viu François? Conseguiu o dinheiro?
Dionne deu um suspiro profundo e depois tirou o casaco. Jonathan
subiu em seus joelhos.
- Sim, vi François e também consegui o dinheiro.
- Mas foi tão ruim assim?
- Não foi muito bom.
- Bem, não importa agora. O que importa é que você voltou para casa.
Poderá me contar tudo, quando sentir que vai ser menos doloroso. Vá
ligar o fogo para um chá. A sra. Reynolds estava aqui até há pouco,
mas, quando viu que você vinha vindo, saiu pela porta dos fundos,
acho que ela pensou que gostaríamos de ficar a sós por algum tempo.
No entanto, deixou tudo preparado para o chá.
com muito esforço, Dionne levantou-se. Clarry estava certa: tinha
voltado para casa com o dinheiro e não havia motivo para desespero.
Seria muito melhor fazer as coisas do cotidiano e deixar que o
tempo cicatrizasse as feridas que agora pareciam insuportáveis.
Durante os dias seguintes, Dionne esforçou-se para se comportar
com naturalidade. O fato de tia Clarry ter tido tal acidente fez com
que tivesse tanto trabalho, que não lhe sobrava tempo para ruminar
as tristezas, e à noite ia deitar-se, exausta.
Entrou em contato com a escola e avisou ao diretor que a tia estava
doente e ela teria de tomar conta de Jonathan. Ele foi muito amigo e
compreensivo e prontificou-se a arranjar uma substituta, até que ela
pudesse voltar ao trabalho.
Naturalmente a falta de rendimentos iria prejudicá-los, mas fez o
possível para não gastar o dinheiro que François lhe dera. Quando
Clarry estivesse melhor, poderiam viajar por uns dias. O dinheiro que
tinha trazido era bastante, e havia ainda suas economias.
Jonathan parecia um pouco melhor. Ainda tinha aquela tosse seca,
mas foi melhorando à medida em que os dias ficavam mais amenos.
Crescia tão rapidamente que Dionne percebeu, com uma ponta de
tristeza, que logo não seria mais um bebé. Em breve seria capaz de
acompanhá-la onde ela fosse e começaria a fazer perguntas... e
também iria querer saber por que todas as crianças tinham um pai e
ele não.
A perna de Clarry melhorava lentamente. Começou a usar muletas e,
apesar de ainda não poder ajudar a tomar conta de Jonathan, insistia
em sentar-se na cozinha, para descascar os legumes ou mesmo
enxugar a louça.
Foi uma novidade para Dionne ficar em casa o dia todo, preparando
as refeições, fazendo o serviço doméstico e cuidando ela mesma do
filho.
Mesmo durante as férias, a tia se encarregava de tudo, e aquela era
a primeira vez que tinha a responsabilidade completa pela criança.
Levá-lo com ela para as compras ou ao parque era uma experiência
gratificante. Sabia que Jonathan chamava a atenção das pessoas,
principalmente de outras mães, e isso a confortava bastante. O
menino era bonito e inteligente. Isso o ajudaria a superar tantas
outras coisas que ele jamais teria.
Certa tarde, tinham ido a um parque mais distante e estavam
voltando para casa - Jonathan adormecido em seu carrinho quando o
capo de um automóvel parado mais adiante atraiu a curiosidade de
Dionne. Era um carro enorme, tipo limusine. Ao passar por ele, o
motorista ligou o motor e começou a segui-la. Pelo menos foi a
impressão que teve.
Dionne andou um pouco mais rápido, tentando ignorar o carro, mas a
Mercedes acelerou, ficando lado a lado com ela. Um pouco assustada,
olhou em volta: felizmente, havia muita gente por perto. Tentou ver
dentro do carro, mas, fora o motorista, parecia estar vazio. Por
causa dos vidros escuros, não dava para distinguir o rosto do
passageiro. Amedrontada, pegou um caminho estreito conseguindo
fugir daquela companhia desagradável.
O incidente deixou-a preocupada e, durante alguns dias, não saiu
para passear com Jonathan.
De vez em quando, imaginava que François tinha descoberto sobre o
filho e mandara raptá-lo. Mas sabia que aquela hipótese era apenas
produto de seu medo. Aos poucos, esqueceu a Mercedes, só não
conseguia tirar François da cabeça.
O tempo estava se tornando cada vez mais quente e, numa tarde,
Dionne levou Jonathan ao zoológico. Ele adorava ver os animais e já
estava numa idade em que podia apreciar o passeio.
Ele observava tudo, excitado, tomou sorvete e comeu pipoca, e
comportou-se como qualquer outra criança que não tivesse nenhum
problema de saúde.
Mas, no ônibus, de volta para casa, começou a tossir, com o rostinho
contorcido, sem respiração.
Dionne desejava desesperadamente sofrer esses acessos por ele.
Eles o deixavam tão fraco e indefeso.
Estava tão preocupada com o menino, que só percebeu a limusine
cinza, parada diante do número cinquenta e três da Beldrum Terrace,
já na porta da casa.
Seu coração ficou pesado de maus pressentimentos.
Quem poderia ser, além de François? Como será que tinha
descoberto? Por que estaria ali?
Olhou para a criança sonolenta. Será que François tinha vindo à
procura do filho? Teve o ímpeto de virar, correr e nunca mais voltar.
Mas Jonathan estava cansado, depois do acesso de tosse, e o que
mais necessitava no momento era jantar e dormir. Não podia
submetê-lo a nenhuma outra experiência exaustiva naquele dia, não
importando o quanto se sentisse assustada.
Entrou em casa, relutante. Ouviu vozes na sala de visitas, estava
abraçando Jonathan, quando tia Clarry entrou no quarto e fechou a
porta de comunicação. Dionne olhou para ela, atemorizada. Clarry
sacudiu a cabeça.
- Não é François. Sabia que pensaria que era ele. Mas ele está em
Londres e quer vê-la.
Instintivamente, Dionne agarrou-se ao menino, num gesto de defesa.
- Quem está aqui, então?
- Um homem. Acho que o motorista de monsieur St. Salvador.
- Um motorista! Imediatamente, lembrou-se do incidente com a
limusine. Aquele homem a vira com Jonathan. O que será que tinha
contado a François? E por que ele estaria em Londres?
Umedeceu os lábios e olhou para a criança sonolenta nos seus braços.
- Clarry, ele está cansado. Você pode ajudar hoje à noite?
- É claro. Fico com ele, enquanto você prepara o jantar. Ele tossiu?
- Sim, teve um acesso há pouco. Está cansado; teve uma tarde
agitada também. Ambos tivemos! - Sua voz tremeu de apreensão, e
Clarry apertou seu braço num gesto carinhoso.
- Pare de preocupar-se tanto!
- Suponha que François tenha descoberto sobre Jonathan... Dionne
começou a falar, mas parou, diante do olhar surpreso e zangado da
tia.
- Quer dizer que ele não sabe?
- Não!
- Dionne! Todas estas semanas, desde que você voltou, nunca
mencionou esse fato. Pensei que fosse insuportável para você falar
sobre isso.
- E é... pelo menos... Clarry, tente entender! Se eu tivesse contado a
François sobre o menino, ele poderia querer ficar com ele. Você por
acaso pensou nisso?
Clarry hesitou.
- Mas por que iria querer a criança? Será que a mulher dele aceitaria
o filho de uma outra mulher?
- Ele não é casado!
Dionne suspirou, desanimada.
- Clarry, eu não tinha falado sobre isso porque... eu., eu não podia!
Agora... agora deve ser muito tarde.
- Não sei o que dizer. Eu pensei... Você sabia que eu pensava que ia
contar a François sobre Jonathan. E... espere... como é que conseguiu
o dinheiro? A menos que... a menos... - Dionne e Clarry iam subindo
para colocar Jonathan na cama. O menino dormia, tranquilo.
- Explico isso depois - falou, tensa. - Não podemos conversar agora.
Acho que você pode entender.
- Dionne, sei que não é da minha conta, mas parece que você me deve
muitas explicações. Se pediu dinheiro a François sem lhe dizer para
quê e sem contar sobre a criança, o que ele estará pensando sobre o
destino desse dinheiro?
- Oh, Clarry! Agora não!
A tia olhou para o menino adormecido.
- Não concordo que ele não deve saber.
- O quê? Depois do que aconteceu? Você esqueceu como foi que ele
me tratou? Acho que tenho, pelo menos, o direito de guardar
Jonathan para mim..- E que direitos tem ele?
- O que quer dizer? - Dionne estava tensa agora.
- Não sei, Dionne. Não sei. Sou velha e vejo as coisas de modo
diferente de você, mas às vezes, penso que é injusto negar a um
homem o direito de ele saber que tem um filho.
- Vai contar, então? Clarry sacudiu a cabeça.
- Oh, Dionne... Será que tem tão pouca confiança em mim, que pensa
que eu faria isso, sem a sua permissão?
Seu rosto magro estava crispado de preocupação, e a moça sentiu
remorso.
- Não, não. É claro que não. Sinto muito. Acho que estou perturbada
e cansada demais. Não quis ser rude com você.
- Parece-me que nós duas estamos cansadas. E você não precisa
perder mais tempo aqui, falando comigo. Podemos falar sobre isso
mais tarde. Desça e vá falar com o motorista. Ele já deve estar
impaciente.
- E o que vou falar?
- Sobre François. Sobre um encontro com ele.
- Sim, é claro.
- Bem, você quer que ele venha até aqui?
- Não!
- Então, já tem a sua resposta. Jonathan está dormindo agora. Vá vê-
lo.
- Mas eu não posso ir assim. Preciso me trocar...
- Bem, vá falar com o motorista então. Peça para que ele espere.
- Certo.
Dionne desceu lentamente e foi até a sala de visitas. O homem se
levantou quando ela entrou. Era mais velho do que esperava, mas
parecia o mesmo que tinha visto antes, na limusine.
- Boa tarde, mademoiselle. Deve ser mademoiselle King, oui?
- Isso mesmo. Monsieur St. Salvador quer me ver, não é? Foi isso que
o trouxe aqui?
- Correto, mademoiselle, é isso mesmo. Ele está no Hotel Savoy, e
quer que eu a leve até lá.
- Entendo. - Dionne hesitou um instante. - Será que o senhor sabe
por que o sr. St. Salvador está aqui em Londres?
- Por quê? É claro, mademoiselle. Ele está aqui con mademoiselle
Demaris.
com Yvonne!
Ela quase falou o nome da outra em voz alta, tamanha tinha sido, a
surpresa. Mas tentou controlar-se e subiu para o quarto para trocar
de roupa. Mas mudou de ideia no meio do caminho.
François em Londres com Yvonne e, ainda assim, tentando entrar em
contato com ela?! Isso era humilhante e inaceitável.
Voltando até o homem, disse calmamente:
- Talvez possa dar um recado ao seu patrão, da minha parte. O
motorista franziu o cenho.
- Não vai ver lepatron, mademoiselle? - perguntou, incrédulo.
- Não!
- Mas monsieur St. Salvador foi bastante insistente mademoiselle.
Dionne respirou fundo.
- Então, por que ele não está aqui em pessoa?
O motorista sentiu-se incómodo e começou a torcer o chapéu entre
as mãos.
- Ele está no hospital. com mademoiselle Demaris.
- No hospital? Oh, é claro!
Não havia pensado nisso antes; Yvonne tinha vindo para tratar-se,
mas isso não alterava absolutamente nada.
- Sinto muito - disse, sabendo que François ia descarregar a raiva no
pobre homem. - Sinto muito, mas é impossível.
O motorista foi até a porta.
- Se é assim, mademoiselle, é melhor eu ir embora. Au revoir.
- Adeus.
Dionne acompanhou-o até a porta e observou-o enquanto manobrava o
carro enorme na rua estreita. Depois, voltou para dentro e fechou a
porta, encostando-se nela, pensativa.
Clarry vinha descendo a escada, atrapalhada com as muletas, e ela
foi até lá para ajudá-la. Havia interrogação nos olhos da tia.
- Não vou ver François - explicou, antes que a outra perguntasse. -
Ele está aqui com Yvonne, a mulher com quem ia se casar. Ela... ela
teve um acidente há uns dois anos e machucou a espinha, mas,
felizmente, vai poder andar novamente.
Clarry apoiava-se pesadamente no ombro de Dionne, enquanto andava
pelo hall.
- É por isso que ainda não se casaram?
- Isso mesmo. - Dionne instalou-a numa cadeira da sala. Vamos tomar
um pouco de chá? Estou com muita sede.
- Você não acredita que François venha até aqui?
- Deus do céu, não! Ele está aqui com Yvonne. Não acabei de dizer?
Provavelmente pensou em mim como divertimento para uma tarde
enfadonha.
- Sinto que não está me contando toda a verdade. O que aconteceu
quando ele viu você lá na França? Ficou feliz? Fez muitas perguntas?
- Sim, ele me fez uma série de perguntas. E, não, ele não ficou
contente quando me viu.
- Dionne! - Clarry parecia implorar. - Sabe mesmo o que está
fazendo?
- É claro que sei. O que você quer dizer?
- Está parecendo que existe algo mais atrás de tudo isto. Se ele não
estivesse contente de vê-la, por que lhe daria o dinheiro? Para se
livrar de você?
Dionne corou.
- É, acho que foi por isso.
- Então, por que está aqui agora, querendo ver você? Não faz
sentido.
- É uma história muito comprida, Clarry. Não podemos deixar de lado,
por enquanto?
- Deixamos esta história de lado durante cinco semanas. Você não
acha que já foi o suficiente?
- Está bem. Tem razão.
- Então, por que não senta e me conta exatamente o que aconteceu?
Dionne hesitou e depois, sacudindo pesadamente a cabeça, sentada
na cadeira em frente à dela.
- Muito bem, vou contar exatamente o que aconteceu. Vi François e
disse-lhe que precisava de quinhentos mil. Ele imediatamente
concluiu que eu precisava desse dinheiro por estar grávida ou por
causa de outro homem!
- O que não foi uma conclusão irracional - Clarry observou.
- Pode ser. De qualquer forma, eu não lhe diria por que precisava do
dinheiro. No final, ele concordou em me dar, se eu fosse até a casa
dele para ver Gemma.
- A avó?
- Isso mesmo.
- Mas eu pensei que ela morava numa caravana.
- Morava. Mas teve uma queda e os médicos e François insistiram
para que passasse a morar na fazenda. De qualquer forma, fui lá para
vê-la e vi a mãe dele também. E... Yvonne.
- Você disse que Yvonne sofreu um acidente? Que espécie de
acidente?
- Foi chifrada por um touro. - A voz de Dionne estava tão sem
expressão ou emoção como a de Louise, enquanto contava sobre o
acidente.
- Meu Deus, que terrível!
- Foi, não é mesmo? - A moça olhava para as mãos, impassível
- Bem, de qualquer maneira, é isso aí. Consegui o dinheiro, como você
sabe, e aqui estou.
- E François nem mencionou o que aconteceu antes? Dionne levantou-
se num repente. Seu rosto estava sério.
- O que você quer que eu diga? Sim, é claro que ele mencionou o que
aconteceu, mas agora é passado e não há motivo para que tudo volte
novamente. Não vale a pena.
Clarry pegou seu braço, querendo apaziguá-la.
- Vá e faça um chá - sugeriu gentilmente. - Sou apenas uma velha
intrometida. - Dionne hesitou mais um pouco e depois saiu. Não tinha
sido nada bom. Não podia, não conseguia discutir seus sentimentos
por François nem mesmo com Clarry.
Não havia meios de expressar em palavras a espécie de tortura
física e mental que sofria, todas as vezes em que pensava no
passado. Não conseguia suportar tais pensamentos. Eram mais fortes
do que ela!
Uma batida persistente na porta acordou Dionne mais ou menos à
meia-noite. Piscando, olhou para o relógio, mas, como as batidas
continuaram, saiu da cama apressada,.vestindo um robe sobre a
camisola. Não queria que Jonathan acordasse àquela hora por causa
de barulho.
Tia Clarry ficou alheia ao que se passava. Dionne ouviu sua respiração
pesada, ao passar pela porta de seu quarto, e desceu correndo a
escada, tremendo por causa do frio que fazia.
Abriu a tranca, mas não tirou a corrente. Era uma medida de
segurança que a tia tinha adotado há muito tempo.
A sombra escura de um homem estava lá fora. Por alguns minutos,
Dionne quis fechar a porta novamente, mas François deu um passo à
frente e a réstia de luz iluminou seu rosto. Ela abafou um grito,
surpresa.
Sua expressão estava sóbria e parecia bastante impaciente.
- Posso entrar? - perguntou, ríspido.
Mas Dionne sabia que o pedido era apenas uma formalidade. Estava
certa de que, se recusasse, ele seria capaz de esmurrar a porta.
Decidiu não irritá-lo ainda mais. Concordou, em silêncio, e abriu a
porta inteiramente.
François entrou.
- Agora... - ele começou a falar, zangado, mas ela acenou com a
cabeça, levando o indicador aos lábios.
- Venha até a sala - murmurou, e ele a seguiu.
Era uma sala confortável. Dionne passou os olhos ao redor,
desesperada, procurando alguma prova da existência de Jonathan
por ali. Depois, François segurou-a pelos ombros e fez com que o
encarasse.
- Bem? Por que você não foi? A moça deu um passo para trás.
- Se está se referindo ao recado que me mandou esta tarde, acho
que a resposta é óbvia.
- Por quê? Por que é tão óbvia?
- Você está em Londres com Yvonne. Seu motorista me falou; o que
acha que eu sou? Uma espécie de substituta temporária ou o quê?
Ele passou a mão pelos cabelos, nervoso. com aquele terno azul-
escuro, uma camisa azul-clara e a gravata com os dois tons para
combinar, estava mais atraente do que nunca. O coração de Dionne
batia, descompassado, ao pensar que Yvonne ia ser a esposa dele,
estar com ele e vê-lo todas as horas do dia ou da noite, tendo o
direito de compartilhar sua cama e seu nome.
- Será que você percebe que passei as últimas quatro horas num
jantar de negócios, irritado por você ter se recusado a ir me ver na
única hora livre que tive? - Ele parou para desabotoar o paletó e
abrir o colarinho.
Dionne fez um gesto de desalento.
- Não vejo que importância tem isso. Seus negócios não têm nada a
ver comigo.
- Estou começando a acreditar que... Diabos, Dionne, você não tem
idéia da agonia por que passei desde que foi embora...
Ela estremeceu violentamente e deixou-se cair numa cadeira. Seu
robe azul abriu-se revelando suas pernas. Fechou-o imediatamente,
para evitar aquele olhar perturbador.
- Eu... eu acho que você não devia falar comigo dessa maneira.
- Por que não? É a verdade. - François foi até ela.
- François, por favor! Por que você veio até aqui agora, a esta hora
da noite? É uma loucura!
Ele inclinou-se sobre ela, ficando bem próximo.
- Sim, é mesmo uma loucura - concordou, com um olhar apreciador
percorrendo seu corpo. - Mas foi sempre assim entre nós... não foi?
Dionne respirava com dificuldade.
- O que quer de mim?
De repente, Jonathan começou a chorar. Era um choro trémulo e
nervoso. Devia estar assustado. Obviamente suas vozes tinham
perturbado a criança.
François endireitou-se rapidamente, com uma expressão de incrível
perplexidade.
Dionne levantou-se, pronta para ir ver o filho, mas ele ficou na
frente, com um olhar desconfiado.
- Quem é? Quem está chorando?
Dionne hesitou apenas por um momento, para depois dizer,
calmamente:
- Jonathan.
- Jonathan! Deus meu, esse choro... essa criança... é sua?
Ela fez que sim com a cabeça, e os lábios de François torceram-se
numa expressão de dor.
- Você está dizendo que tem uma criança.,. um filho? Dionne respirou
fundo e concordou novamente.
- Você... você, sua vagabunda! - ele gritou. E, sem mais nem uma
palavra, saiu da sala, batendo a porta de entrada com um violento
golpe, que ecoou pela casa.
CAPÍTULO IX

Nos dias seguintes, Dionne viveu como num pesadelo, num estado de
irrealidade, incapaz de saber o que fazia. Era como se todas as
esperanças de futuro tivessem desaparecido, e nenhum conselho de
Clarry conseguia amenizar seu desespero.
François tinha ido embora e agora não voltaria nunca mais.
Mas, à medida que os dias foram passando, Dionne começou
lentamente a se recuperar do choque e da depressão.
Afinal de contas, ainda restava Jonathan, e ele não tinha culpa que
seus pais tivessem feito tamanha confusão em suas vidas.
Mais ou menos três semanas depois da desastrosa visita de François,
Dionne recebeu um chamado estranho.
Clarry tinha tirado o gesso da perna dois dias antes e aproveitou
para sair um pouco para visitar uma amiga. Já que a tarde estava
bonita, levou Jonathan consigo.
Dionne estava entretida na limpeza de armários, lá em cima, e
respirou, impaciente, quando ouviu uma batida na porta da frente.
Foi abrir e, de repente, recuou, surpresa, ao ver Yvonne Demaris.
Mas já não era aquela mulher numa cadeira de rodas e, sim, uma nova
Yvonne, andando novamente, esbelta e elegante, com roupas
sofisticadas e caras. Os lábios da outra torceram-se, com desdém,
quando viu Dionne, de avental e desarrumada.
- Quero falar com você. Posso entrar, ou não quer me receber?
- Não creio que tenhamos nada a dizer uma à outra, Yvonne falou,
controlando-se.
- Oh, acho que temos, sim. Estou certa de que vai se interessar pelo
que tenho a dizer..
- Estou muito ocupada...
- Mas o que tenho a dizer não pode esperar. - Yvonne fez menção de
entrar. - Você não está interessada no fato de que François está
muito doente, provavelmente morrendo?
Dionne empalideceu como se estivesse prestes a desmaiar.
- Você está mentindo!
- Estou? - Yvonne levantou as sobrancelhas, numa atitude atrevida. -
Tem certeza?
A moça engoliu em seco.
- Se François está... está quase morrendo... por que você está aqui?
Por que não está com ele?
- Não pretendo ficar parada aqui na porta por muito tempo. Será que
vai me convidar para entrar, ou ainda não está interessada?
Dionne hesitou por um momento e depois ficou de lado, para permitir
a passagem da outra. Yvonne sorriu, triunfante, passou por ela e
caminhou até o hall. Dionne notou que ela andava bem devagar, mas
não mancava. Sem dúvida, a cirurgia tinha sido um grande sucesso.
Na sala de estar, Yvonne parou e observou os móveis, com desprezo.
- Você mora aqui?
Dionne estava tensa e ansiosa: queria terminar de uma vez com
aquilo.
- Por favor, por que você está aqui? O que foi que aconteceu com
François?
Yvonne não parecia ter nenhuma pressa. Ela olhava ao redor,
desinteressada, até que seus olhos se fixaram numa pilha de
brinquedos de Jonathan, amontoados num canto. Fitou-os, incrédula,
por alguns minutos. Depois, virou-se para Dionne, com visível
espanto:
- Aqueles brinquedos... há uma criança nesta casa?
A moça levou algum tempo para resolver se devia ou não responder.
Mas, como conhecia bem o caráter de Yvonne, bastante para saber
que ela poderia se recusar a falar de François caso não recebesse
resposta, falou:
- Há sim.
Os olhos da moça tornaram-se especulativos.
- Pensei que morava só com sua tia...
- Eu morava... eu moro... isto é...
Yvonne sorriu maliciosamente, de uma maneira até agressiva e
insolente.
- Então você... você tem uma criança? Dionne sentiu as faces
queimando.
- Isso mesmo.
Yvonne meneou a cabeça, incrédula, para depois sorrir novamente,
com o mesmo desdém anterior.
- Então, foi isso! - Falou, triunfante. - Foi isso que François
descobriu naquela noite! Foi isso o que o mandou direto para a
França, para quase se matar naquela arena! O fato de você ter uma
criança depois de tudo que aconteceu. Mas é uma ironia, Dionne, não
acha?
Dionne estava tremendo, dominada por emoções que não sabia se
capaz de sentir. Emoções que a levavam a querer agarrar Yvonne
pelos cabelos elegantemente penteados e arrancá-los.
- Não sei do que está falando... - ela começou, mas Yvonne sacudiu a
cabeça.
- Não tente me enganar! Conheço François muito bem. Ele é um
idealista, a espécie de macho intolerante que não pode aceitar nada
menos do que a máxima perfeição de suas mulheres! Que choque
terrível deve ter sido para ele saber que a mulher por quem queria
renunciar a tanta coisa na vida tinha se tornado uma qualquer...
Dionne estava inteiramente confusa, atordoada.
- O que quer dizer com isso? Onde está ele? Disse que François
machucou-se na arena?
- Sim, foi isso o que eu disse.
- Como? Quero dizer... François conhece os touros... como poderia
arriscar-se?
Yvonne deu de ombros, indiferente.
- Não estou particularmente preocupada com ele.
- Mas eu estou! - Dionne estava quase alucinada de ansiedade.
- Como pode ser tão fria? Pensei que amava François... mas vejo que
me enganei...
- Eu também pensei... Uma vez. Agora, não estou mais certa. Além
disso, quem gostaria de casar com um homem que talvez fique
inválido pelo resto da vida?
Dionne olhava para ela, agoniada.
- Oh, meu Deus!
- Não fique tão desesperada. François não quer nenhuma de nós duas.
Receio que nenhuma de nós tenha a oferecer o que ele pede de uma
mulher.
- Por que veio até aqui, Yvonne? Por que quis me dizer que François
foi ferido? Que prazer você tira de toda esta situação?
- Minha querida, não vim aqui apenas para lhe contar sobre François,
apesar de que a sua preocupação me deixa encantada. Não... eu vim
até aqui para descobrir o que tinha acontecido de errado... o que
tinha destruído o romântico idílio que começou três anos atrás.
Agora... agora já sei,
- Você não sabe de nada. - Dionne mal conseguia falar. Você... você é
uma pessoa má! Não dá nada a ninguém e quer tudo. Se você não se
lembra, quando esteve presa numa cadeira de rodas, François não a
abandonou.
- Não mesmo? - disse Yvonne, venenosa. - Minha queridinha, para ser
bem clara, se é que você não sabe, François me abandonou
efetivamente no dia que sofri o acidente. Mas isso você não
desconfia, não é? Provavelmente, sabe só o que Louise podia lhe
contar: que nós tivemos uma discussão terrível e eu o provoquei,
atiçando seus preciosos touros!
- Você... quer dizer que estavam discutindo porque François ameaçou
abandoná-la? - Dionne não conseguia esconder a curiosidade, mas
Yvonne não parecia notar.
- É lógico - disse, examinando-se no espelho que havia em cima da
lareira. - François tem sangue cigano, apesar de tudo, e a avó, a
velha feiticeira, sempre insistia no assunto, sempre lutou por isso.
Gemma o fez acreditar que ele não podia casar com mais ninguém,
porque já estava casado com você! Ele não sabia de nada sobre
aquele cheque que a mãe dele levou para você. Ainda pensava em vir
para a Inglaterra, para encontrar você e levá-la de volta. Ele ficou
fora de si de desespero, quando você desapareceu!
- O quê? - Dionne não podia acreditar no que ouvia. - Mas..: mas
naquele dia, depois da cerimónia... ele... ele não voltou. Só a mãe dele
foi até lá falar comigo. Por que, então, ele não a impediu, se era
assim que se sentia por mim?
- Como poderia? Ele estava no hospital, com a perna quebrada. Pensei
que Louise tivesse lhe contado sobre isso, mas vejo que não sabia...
- O acidente? - Dionne suspirou. - Quer dizer que o... acidente
aconteceu naquele dia?
Yvonne começava a ficar aborrecida.
- É claro. Ele voltou até a fazenda para contar aos pais o que tinha
acontecido, e eu estava lá também. Ficaram furiosos, naturalmente.
Depois disso, ele foi jogado do cavalo alguns quilómetros adiante da
casa. Um dos gardiens disse que a correia da sela estava solta. -
Yvonne sorriu, maliciosa, e Dionne teve a nítida impressão de que ela
tivera algo a ver com o ocorrido.
Mas aquilo era passado. Yvonne involuntariamente havia mudado o
rumo de sua vida.
Quando estava de saída, a outra virou-se e disse:
- Então é isso, Dionne. O sórdido e pequeno melodrama. Que pena que
não vai haver um final feliz! com uma criança no meio, dificilmente
teremos um final cinematográfico!
Dionne enterrou as unhas nas palmas das mãos de ódio.
- Isso depende de quem é essa criança você não acha, Yvonne? A
outra parou, assustada.
- O que quer dizer com isso?
- Nada. Você está de saída?
Yvonne hesitou, seriamente chocada com a luz inesperada que notou
no olhar de Dionne, mas finalmente decidiu-se e foi até a porta.
O carro com motorista estava parado na frente do portão, mas
Dionne não esperou que ela entrasse. Fechou a porta e encostou-se
nela, tremendo e tensa. Se o que Yvonne tinha dito fosse verdade,
então havia inúmeras possibilidades diante dos seus olhos incrédulos.
Mas logo em seguida, lembrou-se do acidente de François, e sua
excitação transformou-se em apreensão.
E se Yvonne não tivesse exagerado? E se François realmente
estivesse morrendo?
Será que sua atitude descuidada na arena era resultado de ele ter
descoberto que Dionne tinha um filho e que este filho poderia ser de
outro homem?
Tudo era possível, mas, primeiro, ela precisava descobrir como ele
estava.
Iria até lá. Mesmo que Yvonne estivesse errada, mesmo que François
não ligasse mais para ela, mesmo que saber que tinha um filho não
significasse mais nada para ele, mesmo assim, ela devia ir vê-lo.
Precisava contar a verdade agora, ou então viver com a dúvida pelo
resto da vida.
Quando Clarry voltou com Jonathan, ela já havia telefonado para
Marignane. Estava ocupada, arrumando algumas roupas suas e de
Jonathan dentro de uma mala. Dessa vez, o menino iria com ela.
Dessa vez, não haveria mais erros.
Dionne ficou no mesmo hotel em que tinha estado antes, em Aries, e
viu que Jonathan despertou a curiosidade de monsieur Lyons, mas ele
se conteve e recebeu-a muito bem, sem nenhuma pergunta.
Foi até bastante solícito, ao oferecer seus serviços e os de sua
mulher para tomar conta do menino, no caso de ela querer sair à
noite.
Dionne ficou muito grata, mas a primeira providência era descobrir
onde François estava, e se podia receber visitas.
Hesitou em telefonar para a fazenda; não queria chamar atenção
sobre sua presença em Aries. Resolveu ligar primeiro para os
hospitais.
Ligou para vários. No último, ficou sabendo que monsieur St.
Salvador tinha estado lá por algum tempo, mas já havia voltado para
casa.
Casa significava a Fazenda St. Salvador e, diante daquela
perspectiva, Dionne encolheu-se de medo: não apenas teria de
enfrentar François, mas também teria de enfrentar a mãe dele.
Apesar de ter perguntado pelo estado de François, o pessoal do
hospital não pôde lhe dar nenhuma notícia mais precisa.
Provavelmente pensaram que ela era uma repórter à procura de
história. Ficou sabendo apenas que ele não corria mais perigo de
vida.
Resolveu alugar um carro e dirigir até a fazenda na tarde seguinte.
Levaria Jonathan e rezaria para conseguir entrar lá sem provocações
nem tumultos na frente da criança.
Foi uma viagem enervante naquela estrada difícil. Jonathan
adormeceu no assento de trás logo depois de partirem. Era sua hora
habitual de tirar uma soneca, e a viagem inesperada e toda a
novidade do dia anterior tinham deixado a criança exausta. Dionne
observou-o, ternamente, todo encolhidinho no banco.
Finalmente, chegaram à casa de François, mas a propriedade parecia
deserta. Os cachorros latiram para anunciar sua chegada e ninguém
apareceu.
Felizmente, Yvonne não estava mais lá para enfernizá-la. Mesmo
assim, seu coração não lhe dava sossego e os joelhos tremiam,
insistentes e incontroláveis, quando desceu do carro sozinha.
Tinha resolvido deixar Jonathan dormindo. Arrumou-o melhor no
banco, e achou que não haveria mal nenhum em deixá-lo ali no pátio,
dentro do carro. Além disso, seria bem mais fácil enfrentar madame
St. Salvador sem a criança.
Apesar de bater insistentemente na porta, ninguém abriu. Forçou a
maçaneta e, quando a porta cedeu, entrou, com uma certa apreensão.
Obedecendo a um impulso, abriu a porta da cozinha, mas o lugar
estava deserto, apenas o fogo queimava na estufa. Pelo que pôde
notar, não fazia muito tempo que tinha sido aceso.
Ia saindo da cozinha, depois daquela rápida inspeção, quando ouviu
uma voz.
- Qu’est-ce? Ou êtes-vous? Dieu, répondez-moi!
Era a voz de François, que vinha de um quarto no fundo do corredor.
com as pernas trémulas, Dionne atravessou-o, bateu e abriu a porta,
entrando naquele quarto onde o seu amor estava.
François tentava se levantar, mas, com a entrada dela, cobriu
rapidamente sua nudez, e olhou para Dionne, incrédulo.
- Alo, François. Como é que você está? - perguntou, nervosa. Ele
passou a mão pelos cabelos grossos e agora mais compridos.
- Deus meu! O que está fazendo aqui? Dionne fechou a porta e
encostou-se nela.
- Será que essa é uma nova forma de saudação?
- Olhe, Dionne, eu não pedi para você vir. Nem mesmo sei como é que
veio parar aqui. Pelo amor de Deus, vá embora e deixe-me em paz!
Ela sentiu sua respiração mais agitada.
- Não fale comigo dessa maneira, François. Eu... eu fiquei tão
preocupada com você...
- Poupe-me disto, pelo menos! - François jogou-se para trás, nos
travesseiros.
- Fiquei, sim. - Dionne avançou um pouco em direção da cama.
- Como é que você está? Você... você sofreu um acidente, estou
sabendo disso. Quero muito saber como se sente.
- Quer mesmo? - Seus olhos cinzentos estavam gelados e zangados. -
Bem, estou ótimo. E se não fosse o fato desses médicos tolos e
loucos me encherem de drogas, eu já estaria de pé por aí...
Dionne balançou a cabeça.
- Mas o que foi que aconteceu? Como se machucou?
- Fui chifrado. Nada mais, nada menos!
- Oh, François! - Dionne sentia-se doente. - Por que fez isso?
- Fez o quê? Ser chifrado? Acontece que não escolhi exatamente o
meu destino, sabe?
- Não mesmo? - Dionne abaixou a cabeça e depois levantou-a
novamente, com o olhar suplicante. - Onde é o ferimento?
- Aqui está!
com uma crueldade deliberada, François empurrou as cobertas para
baixo da cintura, para que Dionne pudesse ver os pontos que
contrastavam com a pele morena de seu estômago.
- Oh, François! - Ela fixava as marcas, horrorizada, imaginando o que
tinha acontecido quando foi atingido, quando sua carne tinha sido
rasgada e sangrara.
François olhou-a, impassível, durante muito tempo.
Dionne não conseguia mais se controlar; foi até a cama e caiu de
joelhos ao seu lado, escondendo o rosto no peito do homem que
amava desesperadamente.
Sentiu que ele ficou tenso; depois, forçou-a a afastar-se. Mas o
contato foi irresistível. Murmurou algo abafado e depois puxou-a
para ele, procurando desesperadamente a boca de Dionne.
Por alguns minutos, ela não pôde responder nem reagir; apenas
agarrou-se a ele, como se não suportasse ter de deixá-lo novamente.
Era tão íntimo aquele quarto claro e fresco; e o desejo que sentiam
era forte demais. Suas bocas uniram-se novamente, as mãos dele
percorriam sua pele macia; o desejo dominando-os completamente.
com um esforço supremo, endireitou-se e olhou para ela, mas Dionne
não fez nenhuma tentativa de afastar-se. Ele falou, num tom
abafado:
- Temos de conversar.
- Hum... - Dionne percorria a linha da cicatriz com o dedo, e ele
rapidamente segurou sua mão e colocou-a de lado, com firmeza.
- Dionne, ouça o que tenho a dizer, seja sensata. Meu Deus, você
sabe bem o que está fazendo? Não é melhor me contar primeiro por
que veio para cá?
Dionne suspirou profundamente e depois, com esforço, levantou-se
da cama. François recostou-se nos travesseiros, sentindo-se perdido
ali, depois daquela proximidade.
Ela alisou os cabelos e perguntou:
- Diga-me uma coisa, François: por que você foi me ver em Londres?
A expressão dele mudou, tornando-se dura.
- Você, com certeza, deve saber.
- Não, eu não sei. Eu pensei... quero dizer... durante três anos, pensei
que tivesse me abandonado...
- É verdade, eu sei. Yvonne me falou. - François sentou-se,
endireitando os ombros. - Eu pretendia lhe contar naquela noite...
se... se não tivéssemos sido interrompidos.
- Sei disso, agora. Yvonne contou-me dois dias atrás que você tinha
terminado com ela. É por isso que estou aqui agora!
- Por quê? Para recomeçar de onde tínhamos parado? Você esquece...
que tem outros compromissos agora.
- E você não me quer com aqueles ”outros” compromissos, não é
assim? - Dionne encarou-o, com firmeza.
François passou nervosamente a mão nos cabelos.
- Meu Deus, eu não sei mais o que quero. Pensei que não pudesse
suportar, quando descobri sobre a criança, mas agora, com você aqui,
começo a duvidar se posso aguentar que vá embora e me deixe
novamente! Que... que confissão, não acha? Principalmente porque,
até hoje, você nunca tentou me ver. Até que precisou do dinheiro,
não foi?
Dionne hesitou durante alguns segundos.
- Pode esperar um instante? Eu... eu tenho uma coisa para mostrar
para você.
François franziu a testa.
- O que é?
- Espere para ver. Só um momentinho. Ele concordou.
- Muito bem, vou esperar.
Dionne olhou-o mais uma vez, e depois saiu do quarto. O corredor
ainda estava deserto, e imaginou onde estaria madame St. Salvador,
mas aquilo não importava no momento.
Jonathan continuava no assento traseiro do carro, onde o deixara, só
que já tinha acordado e começava a choramingar. Seu rostinho
iluminou-se, quando viu Dionne, que pegou-o nos braços
carinhosamente.
Levou o menino para dentro da casa. Ele ainda andava devagar, e ela
estava ansiosa para mostrar o filho a François.
Quando abriu a porta do quarto, ele estava fora da cama, e tinha
vestido uma calça e abotoava a camisa de seda branca.
Virou-se, quando ela entrou. Ao ver a criança, falou, rouco:
- Pelo amor de Deus, Dionne: quem pensa que sou?
Mas Dionne colocou Jonathan no chão, que ficou olhando à sua volta
com uma curiosidade adorável. Depois, Dionne falou com firmeza:
- Olhe para ele, François. Olhe para ele, por favor. Ele não lembra
alguém?
François virou-se lentamente e olhou para a criança por um longo
tempo. Depois, encarou a moça.
Dionne sentiu seus nervos tensos por causa daquele olhar
penetrante, mas, logo depois, viu que François se abaixava diante de
Jonathan, atraindo a criança com uma bala que apanhou no bolso.
Durante alguns minutos, conseguiu captar a atenção do menino,
fazendo-o sorrir, mostrando a fileira de dentinhos brancos. Depois,
endireitou-se e voltou a olhar para Dionne, que sentiu o coração
apertado e dolorido.
- Por que não me contou? - Ele perguntou, puxando-a para si.
- Eu queria. - Ela respirava com dificuldade, ainda não muito certa de
que tudo sairia bem. - Você sabe quem é ele, não sabe?
- É claro, meu Deus! Meu filho! Dionne, Dionne! Por que não me
contou?
- Como é que eu poderia? - Ela tocou seu rosto com dedos
acariciantes, enquanto Jonathan perambulava pelo quarto, feliz por
ter a mãe perto. - Você estava tão longe... Além disso, pensei que se
envergonhasse do que tinha deixado acontecer, lembra?
- Claro! Minha mãe tem muito a ver com tudo isto. Ela vai ter de
explicar certas coisas. - François tremia.
- Você não devia estar fora da cama!
O rapaz sorriu, e foi o sorriso mais lindo que ela já tinha visto em
seus lábios.
- Concordo - ele murmurou, fazendo Dionne corar.
- Onde estão Louise e sua mãe? Não vi ninguém quando cheguei.
- Louise saiu e mamãe também não está. Foi passar uns tempos com
uma prima em Cannes. Eu... eu não podia mais suportá-la por perto
depois que voltei.
- Oh, François! - Dionne aconchegou-se a ele, transbordando de
amor.
- Mamãe vai aceitar você, vai ver. Mas, por que não me falou sobre o
menino quando fui até a casa da sua tia?
- Não sabia que você tinha terminado com Yvonne. Eu... eu tinha medo
de que, se soubesse sobre Jonathan, você quisesse tirá-lo de mim.
François sacudiu a cabeça.
- Em vez disso, perdi os primeiros dois anos da vida do meu filho...
Dionne beijou-o no pescoço.
- Podemos ter outros - sugeriu, e François agarrou seus cabelos
rindo.
- É claro que vamos ter. Mas, primeiro, quero saber tudo a respeito
desse St. Salvador muito especial. - Inclinou-se novamente até a
criança, achando-o muito especial mesmo, e obviamente fascinante. -
Mas por que você precisava de dinheiro? Era para ele? O menino está
bem, não está?
Dionne sorriu, ao perceber a ansiedade na sua voz. Ajoelhando-se
diante da criança, ela falou:
- Jonathan teve uma crise forte de bronquite, há dois meses mais ou
menos, e isso o deixou um pouco enfraquecido. Não é nada muito
sério! - Tentou acalmá-lo, vendo sua expressão assustada. - Mas o
médico achou que ele devia ir para um clima mais quente e seco
durante algum tempo. Eu ia levá-lo, assim que voltasse. Mas Clarry,
minha tia, quebrou a perna e não foi possível viajar imediatamente.
- Entendo. - François segurou o menino, que olhou para ele, curioso,
sem dúvida se perguntando quem seria aquele estranho. Mas ele não
se sentiu mal nos braços do pai; não tentou soltar-se, aparentemente
distraído com o relógio de pulso que François usava no braço
esquerdo.
O rapaz ficou de pé, balançando a criança nos braços, segurando-o
com ar possessivo. Depois, olhou novamente para Dionne.
- Detesto falar sobre coisas prosaicas, mas você tem de casar
comigo na igreja.
Ela observava os dois, sentindo lágrimas nos olhos. - Não tenho
nenhuma objeção. François acariciou seus cabelos.
- E rápido - ele acrescentou. - Quero minha esposa e meu filho.
Jonathan estava brincando com a corrente em seu pescoço, quando
ele a tirou e colocou-a no pescoço de Dionne.
A moça sentiu que ia chorar.
Colocando Jonathan no chão, François puxou-a, apertando-a com
amor.
- Je t’adore - murmurou, rouco, em seu ouvido. - Amo você. Sempre
amei, e aposto que sempre vou amar.
Dionne ficou apoiada nele por um momento, adorando aquela sensação
do corpo dele contra o dela.
- Eu não aguentaria, se acontecesse qualquer coisa que nos separasse
agora.
François beijou seu pescoço.
- Nada vai nos separar, prometo.
- Mas Yvonne..
- O que há com Yvonne?
- Ela vai voltar para cá?
- Provavelmente, por quê? Não está com ciúme, está? Dionne sorriu,
balançando a cabeça.
- Oh, não. Realmente, acho que deveria estar agradecida a ela. Se
não fosse por Yvonne, talvez eu não estivesse aqui agora.
- O que quer dizer com isso? - François virou-a para ele.
Aos poucos, Dionne explicou sobre a visita da outra à casa da sua tia.
- Pobre Yvonne! - ele falou finalmente. - Se ao menos soubesse o bem
que me fez!
Dionne tocou seus lábios com os dedos e ele deu um beijo cálido e
ardente na palma de sua mão.
- Gemma está aqui?
François confirmou, com um sorriso.
- Acho que está tirando sua sonequinha da tarde. Ela vai ficar tão
contente em vê-la! Estava resolvido que nós devíamos ficar juntos
novamente. Tentou fazer você ficar aqui antes, sabe disso?
- Sei de tantas coisas agora... - Dionne falou, e olhou para Jonathan,
que puxava sua saia. - Será que Louise poderia achar algum lugar
para Jonathan dormir esta noite, se decidirmos não voltar para o
hotel?
O sorriso de François abriu-se de uma forma possessiva.
Vai ter de achar - falou, com os olhos fixos em sua boca.
- Pelo menos, não tenho a menor intenção de deixar você sair...

FIM

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