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T e n d ê n c i a s

A antropologia hoje
Bela Feldman-Bianco

A
antropologia constitui havia dez programas de mestrado e seis implicando em compromisso perante
campo consolidado e di- programas de doutorado, hoje são 20 esses sujeitos, fornece um aprendizado
nâmico no Brasil que tem programas de mestrado e 12 de dou- para olhar o mundo com sensibilidade
obtido reconhecimento torado que, ainda que insuficientes, e, assim, compreender, apreciar e tradu-
nacional e internacio- implicaram em melhor distribuição no zir códigos culturais diversos e respeitar
nal pelos seus patamares de excelência Nordeste e na inédita e bem-vinda cria- a diferença cultural. Destarte, a produ-
científica. Combinando o interesse em ção de dois mestrados e doutorados na ção antropológica tem o potencial não
compreender o mundo com a preo- Amazônia Legal. Dobrou-se o número só de desenvolvimento científico no
cupação em desvendar os códigos cul- de programas em dez anos. Abrangem, sentido restrito, mas de ação social no
turais e os interstícios sociais da vida ainda, um aumento da demanda dis- sentido mais amplo, particularmente
cotidiana, a pesquisa antropológica é cente por cursos de antropologia, a am- quanto à elaboração de políticas públi-
extremamente relevante para desven- pliação do mercado de trabalho, além cas para segmentos sociais urbanos e ru-
dar problemáticas que estão na ordem de mudanças no campo de atuação rais em situações de desvantagem e risco
do dia sobre a produção da diferença frente às políticas educacionais e polí- social e grupos étnicos diferenciados.
cultural e desigualdades sociais, sabe- ticas públicas, de modo geral, inclusive Com base na constante renovação de
res e práticas tradicionais, patrimônio no que concerne às relações da antropo- seus horizontes empíricos, antropó-
cultural e inclusão social e, ainda, de- logia com o Estado e a sociedade. logos e antropólogas têm realizado
senvolvimento econômico e social. No Assiste-se, ademais, à emergente re- pesquisas de ponta na intersecção de
quadro da globalização contemporâ- apropriação do modelo dos “quatro várias áreas de conhecimento. Destaca-
nea, além de contribuir cada vez mais campos” (arqueologia, antropologia so- se a ampla experiência de pesquisa na
para a formulação de políticas públicas cial/cultural, antropologia biológica e Amazônia, tanto no Cerrado quanto
e propostas para a sociedade, a antropo- antropologia linguística) e à revisão das no Pantanal, sobre a relação entre po-
logia apresenta os aparatos necessários relações com outras áreas constitutivas pulações, agro-biodiversidade e conhe-
para expor a dimensão humana da ciên- das ciências humanas. Este modelo, ori- cimento tradicional, desenvolvimento
cia, tecnologia e inovação. Ao mesmo ginalmente utilizado para analisar a hu- e padrões de agricultura sustentável,
tempo, no curso de seus processos de manidade através de grandes esquemas conflitos ambientais, entre outros.
transformação e internacionalização, evolucionistas e difusionistas, está sen- Ressalta-se também a relevância da pes-
surgem novos desafios e perspectivas do reelaborado e sobreposto às práticas quisa antropológica na interface com
para o ensino, a pesquisa e a atuação de de trabalho de campo, desenvolvidas as políticas públicas para as populações
antropólogos e antropólogas. a partir de estudos sobre culturas e so- tradicionais. A qualidade e seriedade
Esses desafios incluem, por exemplo, ciedades particulares. A tradição antro- dessa atuação dos antropólogos expri-
as políticas científicas que favorecem a pológica de pesquisa de campo, reque- mem-se, por exemplo, na existência de
expansão da pós-graduação. Os núme- rendo vivência prolongada dos pesqui- um duradouro e ativo convênio entre a
ros são eloquentes. Enquanto em 2001 sadores com seus sujeitos de pesquisa e Associação Brasileira de Antropologia

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(ABA) e o Ministério Público da União. do Brasil ocupa hoje inegável liderança profissionais, foram criados vários cur-
Estudos realizados na cidade, seja na na América Latina. Pela ação pioneira sos de graduação em antropologia que
intersecção com a sociologia ou com o da ABA na criação do World Council of visam propiciar a necessária competên-
direito, têm examinado problemáticas Anthropologial Associations, as antigas cia profissional, com ênfase em pesquisa
sobre, por exemplo, grupos urbanos, relações com a antropologia francesa, de campo e interfaces com outras áreas
pobreza, movimentos sociais, violên- inglesa e norte-americana foram rede- interdisciplinares. Como são cursos no-
cia, justiça, religião e políticas de ad- finidas, e novos diálogos institucionais vos e polêmicos, com currículos varia-
ministração de conflitos, entre outras e acadêmicos foram iniciados com an- dos, torna-se imperativo acompanhar,
que podem igualmente subsidiar polí- tropologias de outros continentes. avaliar e refletir criticamente se suprem
ticas públicas. Nesse âmbito, os estudos Essa multiplicação de temáticas e sujei- as necessidades de formação.
sobre gênero, família, gerações, sexu- tos de pesquisa apresenta desafios que A crescente relação entre a antropologia e
alidade e reprodução recobrem focos requerem uma agenda de prioridades políticas públicas no contexto brasileiro
muito importantes de preocupação de pesquisa. Se o trabalho de campo contemporâneo e o papel de intermedia-
pública. Por sua vez, os trabalhos em (que tende a ser individual) e a relação ção dos antropólogos entre Estado e mo-
antropologia visual são cruciais tanto artesanal entre orientador e orientando vimentos sociais constituem desafios que
para a divulgação da disciplina quan- constituem pontos fortes da produ- merecem reflexões propositivas. Nesse
to para compreensão de uma socieda- ção do conhecimento antropológico sentido, deve-se levar em conta que as
de cada vez mais imagética. Ainda que e da formação disciplinar, ao mesmo transformações no próprio corpus con-
incipiente, desenvolve-se com grande tempo tendem a levar a uma aparente ceitual e analítico da disciplina se fazem
vigor a antropologia da ciência e da fragmentação da produção em grande acompanhar de mudanças nas relações
técnica, acompanhando tendências número de linhas e grupos de pesquisa. com os sujeitos da pesquisa antropoló-
internacionais. Na interconexão com a Para não se perder essa indispensável gica, seja por seu acesso ao sistema for-
saúde, a análise antropológica torna-se característica da pesquisa antropológi- mal de ensino (inclusive em programas
de grande valia para se entender as re- ca minuciosa e intensa, as perspectivas de pós-graduação em antropologia), seja
presentações sobre doenças e processos que se abrem são no sentido de se esti- pela crescente agência política que pas-
terapêuticos como parte dos sistemas mular a formação de redes que possam saram a desempenhar em cenários glo-
simbólicos culturalmente ordenados e levar à elaboração de grandes projetos balizados. Se falar junto, falar com estas
os contextos sociais nos quais ocorrem, transdisciplinares. Essa estratégia mol- populações (mais do que falar em lugar
como também para examinar e analisar da, por exemplo, a emergente criação delas) é um imperativo que a ABA afir-
os aspectos organizacionais, institucio- dos INCTs, alguns dos quais liderados mou na luta pelo reconhecimento dos
nais e político-ideológicos dos progra- por antropólogos. A ampliação do mer- direitos das populações tradicionais, hoje
mas de saúde pública. cado de trabalho traz também desafios esses sujeitos estão se tornando parceiros
Concomitantemente à histórica pre- para a formação e a atuação dos antro- e colegas tanto no âmbito acadêmico
dominância de estudos relacionados à pólogos em órgãos governamentais e como de atuação política. Essa parceria
etnologia indígena, às populações afro- não-governamentais, no Ministério marca um novo ciclo de atuação política
brasileiras, às questões do campo e da Público, nas empresas e nos movimen- dos antropólogos no Brasil.
cidade no Brasil, bem como aos diversos tos sociais, cujas demandas implicam,
Bela Feldman-Bianco é presidente da As-
aspectos da cultura nacional, há antro- muitas vezes, expertise em laudos antro-
sociação Brasileira de Antropologia (ABA)
pólogos realizando pesquisas na Améri- pológicos. Com a reestruturação e ex- (2011-2012), professora colaboradora da
ca Latina, África, Europa, América do pansão das universidades federais, em Universidade Estadual de Campinas (Uni-
Norte e em países como Timor Leste e vez da tradicional formação em ciên- camp)  e co-coordenadora do GT Migración,
China. Como resultado, a antropologia cias sociais ou da abertura de mestrados Cultura y Políticas da Clacso (2011-2012)

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