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Capítulo

2 DiE BilDErgalEriE im Park SanSSouCi,


PotSDam, alEmanha

Você já ouviu o ditado


“Ver para crer”? Sabe
sua origem? O que
ocorre intimamente
quando se tem
uma dúvida?
A incredulidade de São Tomé (1601-1602) — Caravaggio, óleo sobre tela.

A dúvida
Vamos concentrar agora nossa atenção sobre uma atitude importante no
processo de filosofar: a dúvida. Ela sintetiza os dois primeiros passos da ex-
periência filosófica – o estranhamento seguido do questionamento.
Veremos adiante que o ato de duvidar nos abre, com frequência, a possi-
bilidade de desenvolver uma percepção mais profunda, clara e abrangente
sobre diversos elementos que compõem nossa existência.

Qual a importância de perguntar? Conceitos-chave


As coisas são exatamente como
Questões ação, reflexão, atitude filosófica, dúvida filosófica,
as percebemos e entendemos? dúvida metódica, dúvida hiperbólica, método, razão,
filosóficas Podem os sentidos e a razão nos critério de verdade, evidência
enganar?

Capítulo 2 A dœvida 37
SITUAÇÃO FILOSÓFICA

O soldado e o filósofo
Em uma manhã ensolarada da antiga atenas, a população desenvolvia tranquilamente seus afazeres.
De repente, um homem cruza a praça correndo, e logo se ouvem gritos desesperados:
– Pega ladrão! Pega ladrão!
um soldado imediatamente se lança em disparada atrás do sujeito. Sócrates, por sua vez, pergunta:
– o que é um ladrão?

EStÚDio mil

38 Unidade 1 Filosofar e viver


ANALISANDO A SITUAÇÃO

Onde e quando ocorre o episódio relatado? Quais são seus personagens?


ocorre em atenas, cidade-Estado da antiguidade grega, em algum momento da
vida de Sócrates (c. 469-399 a.C.), filósofo que é um dos personagens dessa cena.
os outros dois personagens são um soldado e um ladrão.

A historieta pode ser dividida em dois momentos. Quais são eles?


Veja que há um antes e um depois na narrativa. Primeiramente, temos a vida nesse
local de atenas seguindo seu fluxo normal, cotidiano, automático e transparente.
Então entra em cena o ladrão e se produz uma quebra, que dá origem às reações do
soldado e de Sócrates.

Como reage o soldado? E Sócrates?


o soldado tem uma atitude totalmente distinta da de Sócrates. Ele não coloca em
dúvida o sentido do que vê e ouve, nem a conduta que deve ter. Sua atitude é a de
partir imediatamente para a ação. o mesmo não ocorre com Sócrates: a quebra
gera nele a dúvida. E, com a pergunta “o que é um ladrão?”, ele entra em reflexão.

O que essa historieta pretende ilustrar?


Podemos dizer que a historieta ilustra, de maneira caricatural, as funções sociais
do soldado e do filósofo. o soldado deve manter a ordem e proteger a cidade e sua
população. assim, ele reagiu conforme seu dever e sua função (ou “natureza”, como
entendiam os gregos). o filósofo, por sua vez, é aquele que busca a sabedoria e, para
tanto, não pode simplesmente seguir o que pensa e diz a maioria das pessoas (no
caso, criticar e repudiar irrefletidamente o ladrão) e o que faz o soldado (persegui-lo e
prendê-lo). Por isso, a reação de Sócrates é cautelosa, ponderada, e ilustra a maneira
de proceder do filósofo: questionando, procura “des-cobrir” algo que seja importante
para maior compreensão das coisas.

Que objeções podemos fazer às atitudes de cada um?


talvez possamos dizer que o filósofo não pode duvidar o tempo todo: ele precisa al-
cançar algumas certezas que lhe permitam também agir ou propor ações. De modo
semelhante, o soldado não pode somente obedecer ordens, comandos: ele também
precisa refletir antes de agir, senão é capaz de realizar ações injustas. assim, podemos
concluir que ação e reflexão se complementam. Praticadas no momento oportuno e de
forma equilibrada, contribuem para o bem-estar do indivíduo e da sociedade.
Atitude – maneira de se comportar que reflete uma disposição ou tendência interior.
Reflexão – estado da consciência em que a pessoa se volta para seu interior, concentrando
seu espírito na busca de uma compreensão das ideias e dos sentimentos que tem sobre si
própria ou sobre as coisas e os assuntos do mundo exterior.
Objeção – argumentação ou raciocínio que se opõe a algo (como uma opinião, tese ou ação).

Capítulo 2 A dúvida 39
IndAgAção
O pensamento busca novos horizontes
JEan-JulES-antoinE lEComtE Du nouy/ ColEção PartiCular

Demóstenes pratica a arte da oratória


(1870) – Jean-Jules-antoine lecomte
du nouÿ. Se você se sente inibido para
fazer uma pergunta, saiba que toda
dificuldade pode ser superada com
trabalho e persistência. Exemplo disso
encontramos no político ateniense
Demóstenes (384-322 a.C.). Ele era
gago e sentia dificuldades para falar
em público. Decidido a superar suas
limitações, passou a exercitar-se no uso
da palavra. Conta-se que falava contra o
vento e com pequenas pedras na boca.
assim venceu a gagueira e tornou-se
um dos maiores oradores gregos.

A importância de perguntar
nossa análise da historieta anterior nos deu mesmo sem estar consciente disso, que ter dúvidas
uma pequena ideia de que ter dúvidas, mesmo que e perguntar é expor uma fragilidade, um sinal de
provisoriamente, é algo desejável para alcançar dificuldade intelectual ou de falta de “conheci-
um conhecimento maior. Por que será, então, que mentos”. Como nossa cultura valoriza muito a
as pessoas tendem a expressar poucas dúvidas, a inteligência e a informação (ou, pelo menos, o pa-
fazer tão poucas perguntas umas às outras em recer inteligente e bem-informado sobre tudo),
seu dia a dia? poucos se arriscam a ser interpretados como to-
isso pode ser observado, por exemplo, na sala los, ignorantes ou confusos ao fazer uma simples
de aula. Quando uma professora ou um professor pergunta (foi essa a impressão inicial que passou
pergunta à classe se alguém tem alguma dúvida Sócrates na anedota, não foi?).
sobre o que acabou de expor, qual é a reação mais assim, a conversação entre as pessoas costu-
comum? Silêncio ou algumas perguntas tímidas. ma ser, com frequência, uma sucessão de monólo-
a maioria tem alguma dúvida – ou muitas dúvidas –, gos ou de enfrentamentos, em que cada um dos
mas não ousa expressá-la. Essa postura ocorre interlocutores está mais preocupado em dar o con-
também em universidades, empresas, encontros tra ou exibir seus “conhecimentos”, suas certezas,
culturais, almoços e jantares, mesas de bar etc. do que em entender o outro ou aprender com ele
Por que isso é tão frequente? – ou junto com ele. Em resumo, o que está em jogo
uma explicação pode estar na dificuldade de é mais o amor-próprio, a vaidade pessoal do que a
expressão, isto é, na dificuldade de encontrar as aprendizagem. E, quando não entram nessa dispu-
palavras certas para expressar a dúvida que se tem, ta, as pessoas “optam” pelo silêncio. o silêncio de
o que é muito comum. outra razão possível seria quem não apenas não fala, mas também não ouve.
que grande parte das pessoas não ousa expressar isso tudo nos parece um grande equívoco. não
sua dúvida por medo de falar em público. Esse te- há nada mais inteligente do que perguntar. Per-
mor também é bastante comum. o desenvolvimen- guntas são, no mínimo, a expressão do desejo de
to de maiores habilidades de expressão linguística e avançar continuamente no conhecimento sobre o
de comunicação oral poderia mudar esse cenário. mundo e as pessoas, até o final de nossas vidas.
Pode haver, porém, outro motivo que nos parece Quanto mais se vive, mais se aprende, desde que
ainda mais fundamental: muita gente acredita, haja abertura para isso.
40 Unidade 1 Filosofar e viver
ColEção PartiCular
Fazer perguntas pode revelar também um inte-
resse por nossos semelhantes – pelo que o outro
pensa, sente e é. assim, o gosto pela indagação
costuma vir aliado ao gosto pela escuta, pois ape-
nas quando nos dispomos a escutar, dando a devi-
da atenção ao que o outro questiona ou propõe, é
que nos abrimos verdadeiramente para uma troca
de percepções e reflexões e para o aprendizado.
Daí a importância do diálogo (que será nosso tema
no próximo capítulo).
nesse processo, podemos descobrir que a
outra pessoa – que observa o mundo a partir de
uma perspectiva diferente da nossa – percebeu
coisas que não tínhamos percebido ainda, notou
problemas nos quais não havíamos pensado até
então e vice-versa. isso amplia nossa maneira
de ver as coisas e a nós mesmos – nossos hori-
zontes –, alargando também nossas possibili-
dades de escolha para a construção – individual
e coletiva – de uma vida mais justa, sábia, gene-
rosa e feliz.

Conexões

1. Você se considera uma pessoa questionado- A condição humana (1935) – rené magritte. nessa pintura,
ra, isto é, que costuma levantar problemas ou vê-se um quadro que, colocado contra a janela, “esconde”
dúvidas sobre as coisas (explicações, normas, exatamente a parte da paisagem que ele busca retratar.
crenças etc.)? Como reagem as pessoas (na Como podemos interpretar essa metáfora sobre a
percepção humana da realidade construída pelo artista?
escola, em casa, entre amigos) quando você
expressa suas incertezas?
na infância, principalmente nos primeiros
anos, essa atitude é bastante comum ou natu-
ral. a maioria das crianças vive mergulhada no
Atitude filosófica encantamento da surpresa, da novidade, da
Como você já deve ter percebido, a filosofia é descoberta, que se desdobra em interrogações
uma atividade profundamente vinculada à dúvida intermináveis: “o que é isso?”, “o que é aquilo?”,
e às perguntas. Portanto, para aprender a filoso- “por que isso é assim?”, “como você sabe?” e as-
far, é fundamental adotar uma atitude indagado- sim por diante. Desse modo, junto com outras
ra. Como afirmou o pensador alemão karl Jas- experiências, elas vão formando imagens, ideias,
pers (1883-1969), “as perguntas em filosofia são conceitos dos diversos elementos que compõem
mais essenciais que as respostas e cada resposta a realidade. Por exemplo:
transforma-se numa nova pergunta” (Introdução – mãe, o que é tulipa?
ao pensamento filosófico, p. 140). – É uma flor, filha.
isso ocorre justamente porque a filosofia bus- – uma flor como?
ca essa ampliação da paisagem e seus horizon- – uma flor muito delicada e bonita, com a forma
tes: cada resposta (cada paisagem e horizonte de um sino, só que invertido, com a boca para cima.
conquistados) gera um novo terreno para dúvidas – Que cor tem?
e perguntas (uma nova paisagem, com mais um – tem tulipa de tudo quanto é cor: vermelha,
horizonte a ser explorado). amarela, branca, lilás.
assim, mesmo que você não tenha nenhuma – E por que a gente não tem tulipa no nosso
intenção de se tornar um filósofo ou uma filósofa, jardim?
desenvolver uma atitude indagadora e “escutado- – Porque é preciso saber cultivar essa planta,
ra”, isto é, filosófica, pode ser de grande utilidade ela vem de regiões de clima frio, como a holanda...
em muitos momentos de sua existência. – holanda? onde fica a holanda?
Capítulo 2 A dœvida 41
E assim por diante. Às vezes, as crianças dão e não é possível apagar toda essa vivência. Você já
uma reviravolta nas questões que abordam, fa- tem um “repertório” de conceitos, imagens e sen-
zendo perguntas insistentes e até geniais, verda- timentos sobre tudo o que foi fundamental para
deiras torturas para os adultos, que se veem sua existência até este instante, mesmo sem ter
obrigados a parar e pensar sobre as coisas. Com consciência disso. Então, é normal que você se
o passar dos anos, porém, a vida vai deixando de mova pela vida orientado ou orientada por esse
ser novidade: elas mergulham no cotidiano das “mapa”, sem precisar fazer tantas perguntas
respostas prontas e “acabadas” e, de modo geral, quanto uma criança, que ainda não montou seu
esquecem aquelas questões para as quais nunca próprio “repertório”.
conseguiram explicação. há momentos, porém, em que o “repertório”
a atitude filosófica constitui, portanto, uma es- que uma pessoa tem não serve para enfrentar
pécie de retorno a essa primeira infância, a essa determinada situação: não é completamente
maneira de ver, escutar e sentir as coisas. É como satisfatório, amplo, renovador ou “criativo”. É
começar de novo na compreensão do mundo por então que surge a quebra, o estranhamento
meio da dúvida e de sucessivas indagações. (que mencionamos anteriormente) em relação
É claro que esse “começar de novo” não é possí- ao fluxo normal do cotidiano. trata-se de uma
vel no sentido literal da expressão, porque você já oportunidade para começar a pensar na vida de
conhece, sente e imagina muitas coisas a respeito uma maneira filosófica, isto é, para começar a
do mundo, das pessoas e de si mesmo ou si mesma, indagar e duvidar.

Abrir-se ao mundo como uma criança

gEo imagES / alamy/FotoarEna


Para abordar a filosofia, para entrar no território da filosofia,
é absolutamente indispensável uma primeira disposição
de ânimo. É absolutamente indispensável que o aspirante
a filósofo sinta a necessidade de levar a seu estudo uma
disposição infantil.
Em que sentido faço esta paradoxal afirmação de que
convém que o filósofo se puerilize? Faço-a no sentido de que
a disposição de ânimo para filosofar deve consistir essen-
cialmente em perceber e sentir por toda a parte [...] problemas,
mistérios; admirar-se de tudo, sentir profundamente o arca-
no [enigmático] e misterioso de tudo isso; colocar-se ante
o universo e o próprio ser humano com um sentimento de
admiração, de curiosidade infantil como a criança que não
entende nada e para quem tudo é problema. Voltar a ver o mundo como uma criança exige a
Aquele para quem tudo resulta muito natural,para quem tudo humildade de admitir que o que você vê ou pensa
resulta muito fácil de entender, para quem tudo resulta muito pode ser apenas uma construção subjetiva ou
óbvio, nunca poderá ser filósofo. cultural, até mesmo um engano ou ilusão. Como
nas ilusões de ótica. Discuta com seus colegas o
García Morente, Fundamentos de filosofia, p. 33-34. que se vê na imagem acima.

Conexões

2. Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. [...]
Apresentem-se-lhe todos [os princípios] em sua diversidade e que ela escolha se puder. E se não o puder que
fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião. (MontaiGne, Ensaios, p. 77-78.)
reflita sobre a proposta educativa contida nesse parágrafo da obra do filósofo francês montaigne
(1533-1592). trata-se de uma proposta autoritária ou liberal? há espaço para a dúvida? o autor valoriza
a certeza absoluta? a educação pode ser determinante na forma de pensar das pessoas? Exponha
suas interpretações.

42 Unidade 1 Filosofar e viver


Dúvida filosófica
É nos momentos críticos de quebra e estranha-

laCma – muSEu DE artE Do ConDaDo DE loS angElES, CaliFÓrinia, Eua


mento do cotidiano que costumam surgir dúvidas
sobre temas fundamentais e permanentes da exis-
tência humana, dos quais trata a filosofia.
isso significa que nem todo tipo de dúvida é
filosófico. Por exemplo: “Quem será o campeão
brasileiro de futebol deste ano?” não é uma dú-
vida filosófica, e sim uma simples especulação
sobre algo que está para acontecer, por mais
angustiado que se sinta o torcedor com essa
questão. Pode ser um bom exercício teórico dis-
cutir com colegas ou especialistas as possibili-
dades de seu time do coração em comparação
com as de outros times, para saber suas opi-
niões. mas a resposta a esse tipo de dúvida virá
da própria sucessão dos acontecimentos (ou jogos)
ao longo do tempo (ou do campeonato), tornando-
-se um fato inquestionável.
a dúvida filosófica propriamente dita surge de A traição das imagens (1928-1929) – rené magritte. a obra
uma necessidade inquietante de explicação racio- de magritte é um convite constante à dúvida e à reflexão
nal para algo da existência humana que se tornou sobre as palavras e as representações que fazemos das
coisas mais cotidianas. a frase escrita em francês nesse
incompreensível ou cuja compreensão existente quadro significa “isto não é um cachimbo”. o que o autor
não satisfaz. geralmente são temas que não têm pode estar querendo dizer com isso? Para que ele chama
resposta única e para os quais a mente humana nossa atenção?
sempre retorna. Por exemplo, quem já não se fez,
mesmo que intimamente, a pergunta “Por que Para que serve suspender temporariamente
tanta maldade?” ao saber de mais uma das atroci- os juízos? Para escapar dos limites impostos
dades, aparentemente inexplicáveis, de que são por nossos preconceitos e permitir que outras
capazes alguns seres humanos (ou desumanos)? percepções e reflexões afluam à nossa mente.
tal questão conduz a outras, mais básicas e funda- novamente aqui a disposição para escutar re-
mentais, como “o que é o mal?”, “o que é o ser vela-se muito importante, pois é somente dessa
humano?”, “É da essência do ser humano ser mau forma que nos abrimos à possibilidade de reu-
ou ser bom?”. nir um número maior de antecedentes ou co-
Portanto, a dúvida verdadeiramente filosófica nhecimentos fundamentais sobre o assunto que
é aquela que favorece o exercício fecundo da in- estamos investigando.
teligência, do espírito, da razão sobre questões Somente depois de cumprir esses passos é
teóricas importantes para todos nós (e que cos- que podemos voltar a formular um juízo, isto é,
tumam ter uma enorme incidência prática em nossa opinião a respeito do tema investigado,
nossas vidas, sem nos darmos conta disso, con- agora de maneira mais estruturada e justifica-
forme veremos ao longo do livro). da: sob a forma de um raciocínio ou argumen-
to (assunto que estudaremos em detalhe no
capítulo 5).
suspensão do juízo
a dúvida filosófica não é, portanto, ociosa, não
uma condição importante para começar a du- é uma especulação vazia ou fútil, nem constitui
vidar de maneira filosófica é praticar a suspensão uma prática meramente destrutiva, um questio-
do juízo – assim se denomina a interrupção tem- nar por questionar, uma chatice de quem não
porária do fluxo de ideias prontas que uma pessoa tem o que fazer (o chamado “espírito de porco”).
possui sobre determinado assunto. É uma espécie a pessoa que a pratica visa se articular racional-
de duvidar das próprias crenças. Por exemplo: mente no sentido de construir uma explicação
tenho o seguinte juízo: “Ele é mau”. sólida e bem fundamentada, um conhecimento
Suspensão do juízo: “Ele é mau?”, “o que é claro e confiável sobre o tema que é objeto de
ser mau?”, “Como ele é?” e assim por diante. sua preocupação.
Capítulo 2 A dœvida 43
Regra da razão
Para construir explicações sólidas e bem fun-
Conexões
damentadas sobre as coisas é preciso ter método,
isto é, uma forma sistemática e organizada de 3. o ex-presidente dos Estados unidos george
realizar a investigação sobre o assunto em questão, W. Bush (entre 2001 e 2009) repetiu pronun-
geralmente seguindo um conjunto de regras ou ciamentos como estes, encontrados na mídia,
princípios reguladores. várias vezes durante seu governo:
Veremos neste livro que a filosofia não tem um
método exclusivo de investigação, pois ele varia A inteligência reunida por este e outros gover-
conforme a tradição filosófica à qual pertence o nos não deixa dúvidas de que o regime do Iraque
continua a possuir e a ocultar algumas das armas
pensador.
mais letais já feitas.
Existe, porém, um princípio ou regra básica que
Não há dúvida em minha mente de que Sad-
você, e todo aquele que pretende filosofar, deve dam Hussein é uma ameaça grave e crescente
seguir: tudo o que se afirma ou nega deve ser de- contra [os Estados Unidos da] América e o
monstrado, isto é, explicado por meio de uma ar- mundo.
gumentação sólida (como veremos no capítulo 5).
Por enquanto, lembre-se de que, para filosofar, Pesquise sobre esse momento recente da
é importantíssima a regra da razão: você tem de história política internacional. o que pode
dar razões, isto é, justificativas racionais para suas ter levado o ex-presidente estado-uniden-
se a ter tanta certeza? houve suspensão do
opiniões. Essas razões devem estar articuladas de
juízo e isenção nas investigações realiza-
maneira coerente, não contraditória, e, se houver
das na época? Que lições você extrai desse
alguma que seja duvidosa, a explicação cai por episódio?
terra – você não conseguiu demonstrar sua opinião.

Análise e entenDimento
1. a primeira virtude do filósofo, dizia Platão, é o espanto (thaumázein, em grego), a curiosidade insaciável,
a capacidade de admirar e problematizar as coisas.
interprete essa afirmação, relacionando-a com o que você entendeu sobre “a importância de duvidar e
perguntar” e “a atitude filosófica”.
2. o que quis dizer o filósofo espanhol manuel garcía morente (1886-1942) quando afirma que para filosofar
é importante “puerilizar-se”, ter uma disposição infantil?
3. analise as principais características da dúvida filosófica, buscando justificar a seguinte afirmação: “nem todo
tipo de dúvida é filosófico”.
4. Que método utiliza a filosofia? Que regra básica não se deve esquecer para aprender a filosofar?

ConveRsA filosófiCA
1. Certeza e consciência limpa 2. Desperdício de tempo
Pol Pot,ao final de sua vida,declarou que estava seguro Num livro do século XIX do anarquista russo
de ter uma consciência limpa. Mas deveria ter esta- Bakunin, Stalin sublinhou a seguinte frase: “não
do tão seguro? Não era evidentemente inadequada a perca tempo duvidando de si mesmo, porque
confiança com que ele acreditava não ter sido respon- este é o maior desperdício de tempo jamais in-
sável pela execução de tantos delitos? (HetHerinGton, ventado pelo homem”. (VolkogonoV, Stalin: triunfo e
¡Filosofía! Una breve introducción a la metafísica y a tragédia, v. 1, p. 156.)
la epistemología, p. 302; tradução nossa.)
Pesquise quem foi Stalin e o que realizou. De-
Pesquise quem foi Pol Pot e o que realizou. De- pois, com base na biografia dele, elabore com
pois, discuta com um grupo de colegas sobre um grupo de colegas algumas conjecturas sobre
a questão levantada pelo autor nessa citação. o que teria levado o líder soviético a sublinhar
Exponha sua opinião e escute as dos demais, tal frase. Stalin teria aprovado ou desaprovado
argumente e contra-argumente. Enfim, troque a frase de Bakunin?
ideias de maneira filosófica.
44 Unidade 1 Filosofar e viver
dúvIdA metódIcA
O exercício da dúvida por Descartes

morEt E DESFontainES/groSVEnor PrintS, lonDrES


Para que você entenda de maneira mais
concreta o que acabamos de estudar, vamos
analisar agora um exemplo de reflexão filosó-
fica que enfatiza ao extremo o ato de duvidar: a
chamada dúvida metódica, do filósofo francês
rené Descartes (1596-1650). (Voltaremos a estu-
dar distintos aspectos do pensamento cartesiano
nos capítulos 6, 10 e 14.)

Aprendendo a duvidar
a dúvida metódica tornou-se uma referência
importantíssima e um clássico da filosofia moder-
na. trata-se de um exercício da dúvida em relação
a tudo o que ele, Descartes, conhecia ou pensava
até então ser verdadeiro. tal exercício foi conduzido
pelo filósofo de duas maneiras:
Descartes em sua mesa de trabalho. o filósofo buscou
• metódica, porque a dúvida vai se ampliando o isolamento fora de Paris e, depois, na holanda, para
passo a passo, de modo ordenado e lógico; e dedicar-se totalmente aos estudos. Conta-se que ficava dias
• radical, porque a dúvida vai atingindo tudo e em seu quarto, imerso em suas reflexões e na elaboração de
suas obras.
chega a um ponto extremo em que não é pos-
sível ter certeza de nada, nem mesmo de que Para cumprir tal propósito, no entanto, percebeu
o mundo existe. Como em um jogo ou uma que era necessário destruir primeiro todas as suas
brincadeira, Descartes tentou duvidar até da antigas ideias que fossem duvidosas.
própria existência. Por isso, a dúvida metódica isso quer dizer que ele já tinha experimentado
costuma ser chamada também de dúvida hi- diversos estranhamentos em sua vida, como
perbólica, isto é, maior do que o normal ou o qualquer pessoa. a diferença é que ele decidiu,
esperado, exagerada. note que é um exercício então, viver esse processo de estranhar e duvidar
bastante difícil, pois não é nada natural duvidar de maneira voluntária e planejada, aplicando-o a
de tanta coisa. Experimente. todas as suas antigas opiniões. Você também
antes de tudo, vejamos por que esse filósofo de- pode fazê-lo, e é isso que queremos lhe mostrar.
cidiu empreender tal esforço. o que o teria motiva- observe o caminho seguido por Descartes e pro-
do? a explicação está no início de suas Meditações: cure pensar, sentir e vivenciar com ele cada passo
de suas meditações.
Há já algum tempo que eu me apercebi de que, desde
meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões
As primeiras determinações
como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu
fundei em princípios tão mal assegurados não podia [...] não é necessário que examine cada uma [opi-
ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me nião] em particular, o que seria um trabalho infinito;
era necessário tentar seriamente, uma vez em minha mas, visto que a ruína dos alicerces carrega neces-
vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então sariamente consigo todo o resto do edifício, dedi-
dera crédito, e começar tudo novamente desde os car-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme todas as minhas opiniões antigas estavam apoiadas.
e de constante nas ciências (p. 17). (Descartes, Meditações, p. 17.)
Em outras palavras, Descartes estava desiludido Essa foi a primeira determinação de Descartes
com o que aprendera até então nos estudos e na na construção da dúvida metódica. Em outras pala-
vida, depois de perceber que havia muito engano. aí vras, para tornar sua tarefa mais fácil, o filósofo
se tornou uma pessoa meio desconfiada, mas que decidiu analisar as ideias ou crenças básicas que
não ficou só nisso: ele resolveu construir algo dife- fundamentavam suas opiniões. Se esses princípios
rente, uma nova ciência que garantisse um conheci- ou fundamentos eram duvidosos, as outras ideias
mento sólido e verdadeiro. Essa era sua ambição. que deles dependiam também eram duvidosas.
Capítulo 2 A dœvida 45
Esse é um procedimento básico tanto em filo- ginado das percepções sensoriais não é confiá-
sofia como nas ciências em geral: uma ideia falsa vel, pois muitas vezes elas nos enganam. É o ar-
ou incerta não pode ser o fundamento de uma boa gumento do erro dos sentidos.
explicação, assim como alicerces de gelo ou de

roB kaVanagh/alamy/FotoarEna
gesso não podem sustentar uma boa construção.
neste ponto você pode estar se perguntando:
“mas como Descartes distinguia entre o certo e o
duvidoso? Que critério ele utilizava?”. a resposta
pode ser encontrada na obra Discurso do método,
na qual o filósofo explicita a seguinte norma de
conduta para si mesmo:
[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira
que eu não conhecesse evidentemente como tal;
isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que
não se apresentasse tão clara e tão distintamente
a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião
de pô-lo em dúvida (p. 37; destaques nossos).
trata-se do critério da evidência: uma ideia é
evidente quando se apresenta com tamanho
grau de clareza e distinção ao intelecto – como
define Descartes – que não suscita qualquer a subjetividade das percepções sensoriais, bem como
dúvida. Duvidosa, portanto, é toda ideia que não seus enganos, é um tema recorrente na história da
pode ser demonstrada com essa mesma clareza, filosofia. as coisas são realmente como os nossos
sentidos as percebem? na imagem acima, por exemplo,
que não passa totalmente pelo crivo da razão. qual é a percepção imediata trazida por seu sentido da
Descartes decidiu que não acolheria como ver- visão a respeito dessas pessoas? observando melhor,
dadeira nenhuma ideia como essa. o que deve estar ocorrendo realmente? o que fez você
chegar a essa conclusão: sua visão ou seu pensamento?
Critério – princípio(s) ou norma(s) que se
estabelece(m) para orientar alguma tarefa,
conduzir algum tipo de estudo ou estabelecer Quantas vezes você viu ou ouviu uma coisa e
certas diferenciações de natureza mais abstrata depois se deu conta de que havia se enganado?
(por exemplo: lógicas, éticas etc.) Por exemplo, assistindo a uma competição espor-
Distinção – maneira com que uma ideia ou percepção tiva, no estádio ou pela televisão, com frequência
se distingue e se diferencia de outra; diferenciação.
as pessoas enxergam coisas distintas em um
mesmo lance e acreditam terem tido a visão mais
A dúvida sobre as ideias que nascem real e certeira possível. o mesmo ocorre com os
dos sentidos outros sentidos: seja na audição, no olfato, no
retornemos à meditação inicial. Descartes paladar ou no tato, há muita discordância nas
começa seu exercício da dúvida questionando os percepções individuais e é difícil o consenso.
sentidos como fonte segura de conhecimento. Portanto, voltando a Descartes, ele acredita-
va que não seria possível fundar uma ciência
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais universal, aplicável a tudo o que existe – que era
verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sua pretensão –, baseando-se nas percepções
sentidos; ora, experimentei algumas vezes que esses
sensoriais. Só que ignorá-las não é algo assim
sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se
fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
tão fácil, como ele mesmo reconhece:
(Meditações, p. 17-18.) Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes no
que se refere às coisas pouco sensíveis e pouco distan-
Vemos que aqui ele vai contra o senso co-
tes,encontramos talvez muitas outras das quais não se
mum, pois a maioria das pessoas quase sempre pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêsse-
confia naquilo que vê, ouve e sente, pois os cinco mos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja
sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre,
seriam a primeira e fundamental fonte de infor- tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta
mação sobre o mundo que nos cerca. Descartes natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e
argumenta, no entanto, que o conhecimento ori- este corpo sejam meus? (Meditações, p. 18.)

46 Unidade 1 Filosofar e viver


aqui Descartes confessa sua dificuldade em
Conexões
continuar duvidando dos sentidos quando se trata
de algo muito próximo, de toda a circunstância 4. Pare e observe o mundo e a si mesmo/mesma
que está vivenciando. Você provavelmente concor- por um instante. o que você vê, sente, toca e
dará com ele, pois é bastante difícil duvidar de que ouve neste exato momento? Experimente du-
você tem este livro em suas mãos neste momento vidar de cada uma das sensações que está ten-
e que está lendo estas palavras, não é? isso pare- do e que parecem trazer o mundo externo para
ce evidente e verdadeiro. o que poderia abalar dentro de você. imagine que as cores, os sons,
essa impressão tão natural? as formas não são realmente assim como você
o sonho. De repente, Descartes considera a hi- as percebe, que é tudo um grande engano, um
sonho, um delírio. Descreva essa experiência e
pótese de que poderia estar sonhando:
suas suposições, relacionando-as com a dúvi-
Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, da cartesiana das ideias sensoriais.
que estava neste lugar, que estava vestido, que esta-
va junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu
dentro de meu leito? [...] pensando cuidadosamente
nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, A dúvida sobre as ideias que nascem
quando dormia, por semelhantes ilusões. (Meditações, da razão
p. 18; destaque nosso.)
Descartes decide então deixar de lado sua inves-
grEtE StErn
tigação sobre as ideias que nascem dos sentidos
para dirigir seu foco sobre aquelas que vêm de outra
fonte: a razão. É o caso das ideias matemáticas:
[...] a Aritmética, a Geometria [...], que não tratam
senão de coisas muito simples e muito gerais, sem
cuidarem muito em se elas existem ou não na natu-
reza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois
quer eu esteja acordado, quer eu esteja dormindo,
dois mais três formarão sempre o número cinco e
o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e
não parece possível que verdades tão patentes pos-
sam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.
(Meditações, p. 19.)
Parece, enfim, que Descartes encontra um
tipo de ideia que não lhe desperta dúvidas, pois o
conhecimento matemático não dependeria de
objetos externos, apenas da razão, e preencheria
o critério de verdade por ele estabelecido: a evi-
dência, o conhecimento claro e distinto. Quem
pode contestar o resultado considerado correto
de uma soma ou equação matemática, ou a clareza
dos postulados geométricos?
aparentemente, ninguém. o filósofo sabia disso.
no entanto, tendo meditado muito sobre o assunto,
ele queria preparar-se para enfrentar qualquer
Sonho nº 32: Sem título (1949) – grete Stern, fotomontagem objeção. E estava certo de que elas viriam. assim,
(Coleção particular). Você já sentiu alguma vez que caía de
grande altura para, de repente, despertar assustado em Descartes avança mais um passo e eleva o grau
sua cama? de exigência, buscando admitir outra dúvida ainda
mais radical:
Em outras palavras, com o argumento do so- Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa
nho o filósofo volta à estaca zero em sua busca de opinião de que há um Deus que tudo pode e por
certeza, pois não encontra nada que lhe possa ga- quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem
rantir que o que percebe ao seu redor não seja me poderá assegurar que esse Deus não tenha fei-
uma ilusão onírica. Às vezes, os sonhos também to com que não haja nenhuma terra, nenhum céu,
parecem muito reais, não é mesmo? nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma

Cap’tulo 2 A dœvida 47
grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha A dúvida generalizada
os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso
não me pareça existir de maneira diferente daquela Esse argumento se dirigia às pessoas que
que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas acreditam na existência de Deus, seja ele a má-
vezes os outros se enganam até nas coisas que eles xima divindade cristã ou de qualquer outra cren-
acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer ça ou religião. o filósofo, porém, logo reconhece
que Deus tenha desejado que eu me engane que ele perde a força imaginada inicialmente en-
todas as vezes em que faço a adição de dois mais tre os teólogos, pois estes poderiam objetar que
três, ou em que enumero os lados de um quadrado, Deus é um ser perfeito e supremamente bom e
ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se lhe repugnaria enganar alguém. Por outro lado,
é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. a ideia de uma divindade enganadora também
(Meditações, p. 19; destaques nossos.) não serviria entre aqueles para quem a ideia de
Em outras palavras, por mais certeza que você Deus é uma fábula (os ateus).
tenha sobre algo (no caso, o conhecimento mate- assim, para enfrentar tanto os mais crentes
mático), se existe um ser que criou tudo e é onipo- como os mais descrentes, Descartes criou um
tente (Deus), esse ser tem poderes para ter criado último e poderoso artifício para colocar tudo
você de tal maneira que se engane sempre, ou em dúvida:
seja, que você (e todo o mundo) pense sempre que
Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que
2 + 3 = 5, quando na verdade isso é uma ilusão.
é a soberana fonte de verdade, mas certo gênio
trata-se do argumento do Deus enganador. Com maligno, não menos ardiloso e enganador do
ele, qualquer ideia, vinda dos sentidos ou da razão, que poderoso, que empregou toda a sua indústria
pode ser enganosa. em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores
muSÉE DES BEaux-artS, lyon, França

que vemos são apenas ilusões e enganos de que


ele se serve para surpreender minha credulidade.
Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente
desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue,
desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da
falsa crença de ter todas essas coisas. (Meditações,
p. 20; destaques nossos.)

trata-se do argumento do gênio maligno,


um ser que não teria a perfeição e a bondade
de Deus, como defendem crentes e teólogos,
mas que seria muito poderoso e cheio de estra-
tégias para fazer com que qualquer pessoa se
iluda e se engane sobre tudo. Chega-se, assim,
à generalização da dúvida: o mundo é colocado
entre parênteses.
não que Descartes de fato acreditasse na
existência desse ser. Estudiosos da obra car-
tesiana costumam interpretar o gênio maligno
como um artifício psicológico e metodológico
que o filósofo usou para manter seu espírito
alerta, para não sucumbir à tentação de aceitar
qualquer ideia como verdadeira, enfim, para
seguir buscando algum conhecimento evidente
e indubitável.
o gênio maligno poderia ser entendido, portanto,
como uma figura simbólica de qualquer outra coi-
Detalhe de O Bem e o Mal (1832) – andre Jacques Victor sa, pessoa ou ideia que seja capaz de nos levar ao
orsel. imagine tudo o que poderia colocar em dúvida se erro. Qual seria a vantagem de manter esse estado
existisse um ou mais seres (Deus, demônio, cientistas, psicológico? a vantagem de não nos enganarmos
extraterrestres, sociedades secretas etc.) com o poder de
colocar em sua mente todas as ideias e percepções que facilmente acreditando conhecer com certeza algo
você tem do mundo e de si. que ainda é incerto.
48 Unidade 1 Filosofar e viver
WarnEr BroS./EVErEtt CollECtion/FotoarEna
imagem do filme Matrix (1999), no qual a maioria da humanidade vive de forma inconsciente uma “realidade virtual” criada por
máquinas. É possível comparar a história desse filme com o argumento do gênio maligno de Descartes?

A descoberta da primeira certeza


Submerso na dúvida hiperbólica, mergulhado riam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la,
no nada, Descartes segue buscando. Como em sem escrúpulo,como o primeiro princípio da Filosofia
um jogo de xadrez ou em um enigma, procura que procurava (p. 46).
uma saída para a exigência autoimposta de um observe que o próprio ato de pensar, sem impor-
gênio maligno que quisesse enganá-lo sempre. tar os conteúdos, não pode ser colocado em dúvida
tem então a seguinte intuição com relação a seu por aquele que duvida. tente duvidar que está pen-
próprio ato de duvidar e de pensar: sando agora, neste mesmíssimo instante... Você verá
Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? [...] que, enquanto duvida que está pensando, está pen-
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso sando, pois é impossível duvidar sem pensar. Por-
e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em tanto, você pensa, com certeza. ora, se você pensa,
enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de deve haver algo (que é você) que produz esse pensa-
que sou, se ele me engana; e, por mais que me enga- mento. Você deve ser, no mínimo, uma coisa que
ne, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, pensa. Daí a conclusão de Descartes, uma das mais
enquanto eu pensar ser alguma coisa. (Medita•›es,
célebres frases da história da filosofia: “Penso, logo
p. 23-24; destaques nossos.)
existo”, que ficou conhecida como cogito (forma re-
Em outras palavras, o filósofo percebe que, se duzida de Cogito, ergo sum, a mesma frase em latim).
um ser enganador o enganava, ele, Descartes, Essa foi a primeira certeza de Descartes: a de
tinha de ser algo enquanto era enganado. E, se existir como “coisa que pensa” enquanto pensa. Ele
duvidava, também devia ser algo que existia en- não podia ainda concluir que há uma coisa corporal,
quanto duvidava, mesmo que não tivesse corpo. mas pôde afirmar que existe uma coisa pensante. a
Essa reflexão é resumida de maneira mais clara partir dessa certeza, o filósofo trataria de alcançar
em sua obra Discurso do método: outras certezas, como a existência de Deus e do
[...] enquanto eu queria assim pensar que tudo era mundo material, na sequência de suas meditações.
falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, Como o estudo dessas certezas excede os
fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu propósitos deste capítulo, sugerimos que você,
penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas se ficou curioso ou curiosa, leia a sequência das
as mais extravagantes suposições dos céticos não se- reflexões do filósofo na obra Meditações.
Cap’tulo 2 A dœvida 49
toPham/FotomaS/kEyStonE
Meditações metafísicas (1641)

Menos conhecidas pelo grande público do que o Discurso do


método, para os filósofos, porém, Meditações metafísicas constituem
a obra mestra de Descartes,livro em torno do qual se articulam todos os
outros textos.E mais: um pilar e um eixo para toda a história da filosofia.
As Meditações devem ser lidas por si mesmas, sem referência
histórica ou erudita. Não que não tenham história, como qualquer
outro texto, mas porque traçam num presente eterno a trajetória de
um pensamento que decidiu apoiar-se apenas em si mesmo, contar
apenas com suas próprias forças, para ter acesso à verdade.

HuisMan, Dicionário de obras filosóficas, p. 363.

Página de abertura de uma edição holandesa das Meditações


metafísicas, em latim, como era costume (Coleção particular).
a primeira impressão dessa obra ocorreu em 1641. observe
que o título original era, em português, Meditações de filosofia
primeira em que se demonstra a existência de Deus e a imortalidade
da alma. a publicação da obra em francês se deu apenas em
1647, com o título pelo qual ela é mais conhecida atualmente.

Conexões

5. Descartes concluiu que pensava e que, por- estado de não saber com certeza se existe
tanto, era “pelo menos” uma coisa que pensa. outra mente (ou sujeito pensante) além de si
no entanto, essa conclusão não lhe permitia mesmo, além do eu.
deduzir que existissem outras mentes, outras reflita sobre essa concepção. Você consegue
coisas pensantes como ele. Foi um momento imaginar-se como uma mente sozinha, sendo
solipsista de sua meditação. Solipsismo é esse que todo o resto, coisas e pessoas, é mera ilusão?

Aprendendo a filosofar
Depois do estudo da dúvida metódica de Des- em que tudo o que se diz deve estar bem funda-
cartes, acreditamos que você tenha compreendido mentado. Como já dissemos, não existe apenas um
um pouco mais sobre o que é filosofar e como tipo de método para isso.
se filosofa. no caso de Descartes, aqui vão algumas dicas
Você deve ter percebido, entre outras coisas, sobre seu método, seguido em grande parte até
como é importante aprender a suspender o juízo e nossos dias pelos cientistas:
a pesquisar mais profundamente um assunto an- • sempre que possível, deve-se partir do mais
tes de emitir uma opinião sobre ele. tudo o que nos simples (isto é, daqueles conceitos que podem
parece mais evidente em determinado instante ser compreendidos com mais simplicidade, sem
pode ser percebido como falso ou incerto se ana- depender da compreensão de outros conceitos)
lisado em outro instante, em outra perspectiva e até chegar ao mais complexo (isto é, os concei-
com mais rigor. tos compostos, que pressupõem outros concei-
nesse processo também se descobre, muitas tos em seu entendimento). um exemplo bem
vezes, o sentido ou as razões profundas de certos fácil: para saber fazer uma soma (conceito com-
fatos, atos ou crenças dos quais tínhamos antes plexo), você precisa entender primeiro o que é
apenas uma compreensão superficial (isso ficará número (conceito simples) e, depois, o conceito
mais claro para você nos próximos capítulos). de adição (conceito menos simples que número,
outro aspecto importante que acabamos de pois depende deste para ser entendido);
trabalhar é a ideia de que a investigação filosófica • geralmente se vai do que é básico, dos funda-
sobre determinado tema deve ser conduzida com mentos, até o “corpo” completo de determinado
bastante critério, de maneira metódica e ordenada, assunto. Por exemplo: para entender o tema da
50 Unidade 1 Filosofar e viver
violência social, comece por investigar aquele etapas de nossa existência do que em outras. Por-
que a pratica, o ser humano, em suas diversas tanto, vá com calma: se algumas pistas fornecidas
dimensões básicas (mental, emocional e física, por ele não parecem ser úteis ou significativas para
por exemplo), bem como em sua interação com você agora, deixe-as guardadinhas em um canto de
o meio ambiente, com outros seres humanos e sua memória até surgir o momento adequado de
instituições sociais, e assim progressivamente. resgatá-las. Você não vai se arrepender disso.
Sabemos, porém, que as conclusões às quais

SCiEnCE SourCE/gEtty imagES


chega um filósofo muitas vezes podem causar
frustração naquele que o acompanhou com tanto
interesse. Se isso acaba de acontecer com você,
podemos dizer que é compreensível. mas tenha
paciência. tanto em filosofia como na vida em
geral, é importante não ser precipitado nem pre-
conceituoso, como recomendou o próprio Descar-
tes, principalmente quando se trata de aprender.
E é isso o que você está fazendo agora: aprendendo
a aprender, aprendendo a filosofar.
assim, considere, primeiramente, que você ain-
da tem pouca “experiência” filosófica. além disso, ilustração baseada
você é jovem, e a filosofia é algo para toda a vida. na escultura de
Charles Degeorge
muitos temas ou explicações oferecidos por deter- A juventude de
minado pensador fazem mais sentido em certas Aristóteles (1875).

Análise e entenDimento
5. Por que o exercício da dúvida realizado por Des- 10. Qual é a primeira certeza que rompe com a dúvida
cartes é conhecido como “dúvida metódica”, mas hiperbólica? Explique como o filósofo chegou a ela.
também como “dúvida radical ou hiperbólica”? 11. relacione a dúvida cartesiana em relação aos
6. identifique a ambição de Descartes ao se propor sentidos com a teoria de Platão sobre o mundo
realizar a dúvida metódica. sensível.
7. resuma o critério de verdade adotado pelo filósofo. 12. no segundo parágrafo da citação contida no
8. Diferencie as “ideias que nascem dos sentidos” das quadro Meditações metafísicas, o autor consi-
“ideias que nascem da razão”. Exemplifique. dera que essa obra de Descartes não pode ser
9. analise a dúvida metódica de Descartes, passo compreendida sem a ajuda do contexto histórico
a passo, destacando os principais raciocínios ou do filósofo? ou critica seu caráter atemporal?
argumentos. Justifique.

ConveRsA filosófiCA
3. Cegueira se sabe; também se deve possuir a acuidade lógica
O pior cego é aquele que não quer ver. (Provérbio e o hábito do pensamento exato. Tudo isso, claro,
popular.) é uma questão de grau. A incerteza, em particular,
Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos pertence, até certo ponto, ao pensamento humano;
fechados sem nunca os haver tentado abrir (Des- podemos reduzi-la indefinidamente, embora jamais
cartes, Princípios da filosofia, Prefácio).
possamos aboli-la por completo. Em consequência,
a filosofia é uma atividade contínua, e não uma
interprete essas duas afirmações, observan- coisa pela qual podemos conseguir uma perfeição
do suas semelhanças e diferenças e buscando final, de uma vez por todas. (russell, Fundamentos
exemplos para ambas. Depois, em grupo, discuta de filosofia, p. 9.)
suas conclusões avançando sobre o problema da
“cegueira” e o que as pessoas não querem ver. Descartes concordaria com o filósofo britânico
Bertrand russell (1872-1970) quanto à ideia de
4. Certezas e incertezas que a filosofia deve ser uma atividade contínua?
Para ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de E você? Em grupo, debata com colegas sobre es-
saber, combinado à grande cautela em acreditar que sas questões.
Cap’tulo 2 A dœvida 51
PROPOSTAS FINAIS

de olho na universidade

(uFu-mg) Em O Discurso sobre o método, Descartes afirma:


“não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência, ou seja,
evitar acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como nunca se deve abranger entre nossos juí-
zos aquilo que não se apresente tão clara e distintamente à nossa inteligência a ponto de excluir qualquer
possibilidade de dúvida” (REAlE, g.; AnTISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Descartes. trad. de ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 289).
após a leitura do texto acima, assinale a alternativa correta.
a) a evidência, apesar de apreciada por Descartes, permanece uma noção indefinível.
b) a evidência é a primeira regra do método cartesiano, mas não é o princípio metódico fundamental.
c) ideias claras e distintas são o mesmo que ideias evidentes.
d) a evidência não é um princípio do método cartesiano.

Sessão cinema

Descartes (1974, itália, direção de roberto rossellini)


obra sobre a vida de Descartes e de sua busca pelo conhecimento. inclui o processo de escritura e publicação
de alguns de seus principais livros e os debates em torno de suas ideias.

Dúvida (2008, Eua, direção de John Patrick Shanley)


Filme ambientado em escola católica do bairro nova-iorquino do Bronx que recebe seu primeiro aluno negro.
inicia-se com o sermão do padre Flynn sobre a dúvida, tema que pautará toda a trama, em um duelo com as
certezas morais da madre superiora.

Horton e o mundo dos Quem (2008, Eua, direção de Jimmy hayward e Steve martino)
animação baseada em livro homônimo de Dr. Seuss, de 1954. o elefante horton conversa com uma partícula
de pó, onde vive uma comunidade microscópica que ninguém acredita existir. o lema de horton é: “toda
pessoa é uma pessoa, não importa seu tamanho”.

Matrix (1999, Eua, direção dos irmãos Wachowski)


Ficção científica em que o mundo é dominado por máquinas que se alimentam da energia dos seres humanos,
enquanto estes vivem uma realidade virtual (matrix), um mundo ilusório criado por essas inteligências artificiais,
embora de fato estejam adormecidos em seus casulos.

52 Unidade 1 Filosofar e viver

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