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THOMAS KUHN E O PAPEL DOS VALORES NA ESCOLHA TEÓRICA

Adan John Gomes da Silva


Departamento de Filosofia – UFRN

Resumo:
O seguinte trabalho explora um questionamento no interior da filosofia da
ciência de Thomas S. Kuhn que diz respeito a entender como, na ausência de um
conjunto de regras de decisão algorítmicas em momentos de escolha teórica, a ciência
tem sido tão bem sucedida em eleger paradigmas eficientes na previsão e controle da
natureza. As premissas para o entendimento da questão serão dadas quando
entendermos como a necessidade de escolha é condicionada pela incomensurabilidade
entre teorias, consequência inevitável do modelo historiográfico proposto por Kuhn, e
também como os critérios de escolha normalmente aceitos são demasiado carentes de
interpretação subjetiva para, por si sós, ditarem a decisão de forma unívoca. Kuhn
propõe uma interpretação que dá conta de explicar não só o sucesso decorrente dessa
aparente deficiência na metodologia científica, mas também de sugerir que esse sucesso
decorre exatamente dos fatores que ele visa explicar. Assim, conclui que a variabilidade
de interpretações sobre os critérios de escolha teórica desempenha um papel essencial
quando se trata da escolha de teorias, e que, portanto, as diferenças individuais de cada
cientista têm vital importância para o avanço científico, sem o qual este estaria sujeito à
estagnação.

Palavras-chave: Thomas Kuhn; ciência; escolha teórica; subjetividade

A querela racionalista-irracionalista na filosofia da ciência pode ser vista


como motivada por diversos interesses, cada um dos quais desempenhando seu devido
papel dentro da filosofia do seu autor proponente. Ainda assim, parece ponto comum
que uma das ideias subjacente aos defensores de um racionalismo estrito na ciência
parta da crença em seu caráter, praticamente único entre os empreendimentos humanos,
objetivo e idealmente inequívoco. Tal crença tem sido alimentada pela ideia de que,
desde o seu surgimento, a ciência tem nos dado teorias cada vez mais precisas e
adequadas do mundo, nos permitindo uma capacidade de predição e manipulação
sempre crescente.
É contra esse pano de fundo que as ideias de Thomas Kuhn causam um
impacto significativo na filosofia da ciência. Com efeito, suas explicações de como
funciona a dinâmica do desenvolvimento cientifico contraditam não só com a crença
num desenvolvimento linear e cumulativo na história da ciência, mas também negam a
existência de regras inequívocas e objetivas em momentos de escolha teórica.
Contudo, não é o caso de Kuhn negar que a ciência de fato progride, o que
seria de esperar se levássemos a sério as acusações de relativista que são imputadas
contra ele. Ao invés disso, ele não só assevera que ela progride, como indica os meios
pelas quais esse progresso pode ser avaliado.
Por essas razões a questão que de imediato se coloca é saber como ele
concilia a ausência de regras objetivas de escolha entre teorias com a ideia de um
progresso na ciência, ou ainda, o que parece ser mais intuitivo, com seu aparente
sucesso em fornecer teorias mais eficientes na previsão e controle da natureza. Aqui, um
breve retrospecto de sua historiografia poderá ser útil tanto para melhor delinear a
questão quanto para fornecer as bases de sua solução.
Para Kuhn, à cada especialidade científica subjaz um padrão de estudo que
segue as regras estipuladas por um paradigma. Esse paradigma é uma teoria que, ao
mesmo tempo em que é universalmente aceita por todos os cientistas como propiciando
um modelo de resolução de problemas (quebra-cabeças) pertinentes àquela área,
constitui uma base segura de onde toda pesquisa deve partir, o qual é compartilhada por
todos os cientistas envolvidos. E essa pesquisa, quando estreitamente guiada pelas
regras paradigmáticas, recebe o nome de ciência normal.
A necessidade da escolha teórica se mostra presente na história da ciência
sempre que uma teoria, tendo por algum tempo fornecido um modelo satisfatório para a
resolução de problemas relativos a certo aspecto da natureza, encontra cada vez mais
dificuldades em enquadrar a natureza em seus modelos explicativos. Essas dificuldades,
acentuadas de tal forma que provocam a desconfiança quanto à capacidade da teoria de
resolver estes problemas, acabam por provocar um período de crise na ciência, crise esta
caracterizada principalmente pelo relaxamento da metodologia outrora orientadora da
ciência normal e pela proliferação de versões cada vez mais dissimilares do paradigma
original.
Kuhn diz que normalmente as novas teorias emergem de uma tentativa de
resolver a anomalia geradora da crise e que, firmando sua construção teórica de forma
que o fato anômalo se enquadre em suas predições, a nova teoria deve ter,
necessariamente, alguma diferença substancial em relação àquela no qual o fato era
anômalo. Ele diz explicitamente que:

“A novidade não antecipada, isto é, a nova descoberta, somente pode


emergir na medida em que as antecipações sobre a natureza e os instrumentos do cientista
demonstrem estar equivocados [...] nesse caso, deve evidentemente haver um conflito entre o
paradigma que revela uma anomalia e aquele que, mais tarde, a submete a uma lei.” (KUHN,
2005:130)

Dessa forma, a concepção de que a ciência é cumulativa e linear cai por


terra ao se concluir que, teorias explicativas de um mesmo conjunto de fatos da natureza
relacionam de formas diferentes seus conceitos e suas observações empíricas, diferindo,
portanto, no projeto teórico final. E, uma vez que diferem em pontos basilares dessa
construção, não são passiveis de englobar ou aderir à suas teorias concorrentes, seja ela
tradicional ou nova. Impossibilitando a adesão entre teorias consecutivas, a
incomensurabilidade força então o cientista a escolher que teoria deve fornecer os
fundamentos para a prática científica posterior, isto é, o novo paradigma¹.
Dada essa necessidade, Kuhn apresenta o seguinte problema; o paradigma
em crise é, além da base partilhada de conceitos, experiências e instrumentos, a fonte da
metodologia aceita como legítima da prática científica, incluindo aí os critérios para a
escolha teórica. Se uma nova teoria difere do paradigma tradicional em sua própria
estrutura, então é impossível que os critérios desta última possam se adequar
completamente à primeira, uma vez que a metodologia tradicional faz essa avaliação
dentro de padrões que o próprio paradigma construiu. De forma análoga, a teoria
concorrente defende sua própria metodologia como sendo a detentora de uma avaliação
correta.
Assim, com cada teoria defendendo sua própria metodologia de escolha, um
debate que almeje decidir qual das teorias deve ser adotada deve, antes de tudo, eleger a
metodologia legítima para a escolha. O problema é que é exatamente essa metodologia,
entre outras coisas, o que está em jogo.
Daí Kuhn concluir que:

“Aqueles que propõem os paradigmas em competição estão sempre


em desentendimento, mesmo que em pequena escala. Nenhuma das partes aceitará todos os pré-
supostos não-empíricos de que o adversário necessita para defender sua posição. [...]
Precisamente por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre paradigmas
em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da lógica e de experiências
neutras.” (KUHN, 2005:189)

Contudo, embora Kuhn tenha dado ênfase ao fato de que uma competição
entre incomensuráveis não pode ter como juiz um conjunto metodológico neutro e
completo, ele não acredita que esse conjunto deva, ou de fato seja, substituído pela livre
vontade dos cientistas envolvidos, ou que estes se baseiem em regras arbitrárias para dar
cabo da escolha. “Citar a persuasão como recurso do cientista não é sugerir que não haja
muitas boas razões para escolher uma teoria em lugar de outra.” (KUHN, 2003:194)
Com efeito, ele defende uma série de critérios que servem de padrões para a
escolha entre teorias diferentes, embora ele rejeite a palavra ‘padrão’, por razões que
veremos a seguir. Esses critérios são, ao mesmo tempo, apontados como indicadores de
uma boa teoria científica, isto é, características que toda teoria deve deter para ser
considerada como tal. São eles; a exatidão, a consistência, o alcance, a simplicidade e
por fim a fecundidade.
Segundo Kuhn, ao adotar essas características como critérios de escolha, os
cientistas encontram dois tipos de dificuldades. Isoladamente os critérios são ambíguos,
isto é, passíveis de interpretação diversa em suas aplicações reais, e quando utilizados
em conjunto frequentemente apontam para direções diferentes, isto é, enquanto a
exatidão, por exemplo, pode ditar a escolha de uma teoria, a fecundidade ou a
simplicidade pode eleger sua concorrente. Da mesma forma, a ausência de uma
hierarquia padronizada que seja comum a ambas as teorias limita a utilidade desta
simples lista como ferramenta para a escolha.
A natureza pouco precisa e a ausência de uma escala hierárquica capaz de
priorizar certos critérios em determinadas situações evidencia porque e como as regras
de escolha teórica são inevitavelmente carentes de interpretação individual por parte de
cada cientista envolvido no processo, o que, segundo Kuhn, longe de priorizar a
subjetividade sobre a objetividade, aponta a inevitabilidade da primeira mediante os
limites da segunda.
A proposta do autor é que, portanto, essas características não devem ser
vistas como regras, mas antes como valores, sempre visados no momento da decisão,
mas por si só incapazes de orientar toda a escolha. “O que estou negando, portanto, não
é a existência de boas razões nem que essas razões sejam do tipo usualmente descrito.
Insisto, contudo, em que tais razões constituem valores a serem usados nas escolhas, em
vez de regras de escolha.” (KUHN, 2003:195)
Retornando ao modelo que Kuhn definiu para explicar o desenvolvimento da
ciência, podemos perceber de que forma a tomada de valores de referência, ao invés de
regras algorítmicas, não só explica como os cientistas dão cabo das escolhas entre
teorias, mas também como essa interpretação parece ser essencial para entendermos o
progresso da ciência baseada em escolhas desse tipo.
Com efeito, um candidato a paradigma sempre emerge mediante uma crise
que revela as fragilidades do paradigma tradicional. No entanto, é sempre necessário
que este novo candidato apresente razões suficientes para sequer ser levado em conta
pelos cientistas envolvidos, do contrário, nunca conseguirá partidários suficientes para
que seja trabalhado a ponto de desenvolver argumentos convincentes aos olhos dos
defensores de teorias diferentes.
Kuhn cita que, nesse momento, é normal vermos cientistas, descrentes do
paradigma tradicional, abraçarem o novo tipo de pesquisa trazido pela nova teoria
apenas por confiança na sua capacidade. Logo, ele quer significar que os cientistas
enxergam o potencial da nova teoria, não por que ela confrontou de forma bem sucedida
o paradigma tradicional, mas por que sugeriu um novo meio de praticar ciência que,
para quem nela se envolve, é tão ou mais promissor quanto foi a teoria agora em crise.
Também é digno de nota o fato de que, na maioria das vezes, essas teorias se mostram
erradas, e os cientistas que as escolheram, enganados.
Mas os critérios que levam cientistas individuais a decisões diversas
dependem de que forma eles interpretam ou que peso eles dão aos pontos fortes da
teoria proposta. Variando os cientistas, variam, portanto, as escolhas. E somente graças
a essas escolhas individuais, que tornam possíveis os trabalhos de articulação e
aperfeiçoamento no interior das teorias candidatas, é que uma delas pode produzir
argumentos suficientemente bons para convencer a grande maioria dos outros cientistas.
Logo, a diversidade de opiniões quanto a forma e a relevância com que as regras de
escolha devem ser usadas nos momentos da decisão teórica torna possível o estudo e
aperfeiçoamento de teorias que, sem esse “voto de confiança”, seriam deixadas no
esquecimento, levando consigo a capacidade em potencial de resolver a crise e vir a se
tornar um novo paradigma.

“Essa variabilidade de julgamento, como sugeri acima com relação ao


reconhecimento de crises, pode até ser essencial para o avanço científico [...] Se todos os
membros da comunidade aplicassem valores da mesma maneira arriscada, o empreendimento do
grupo teria fim.” (KUHN, 2003:196)

O reconhecimento do papel dessa variabilidade individual, ao mesmo tempo


em que aponta para uma das características mais notáveis da ciência, que é a sua
capacidade de seleção de teorias rivais mesmo na ausência de um conjunto de critérios
unívocos de escolha, corrobora a idéia de que a ciência é um empreendimento racional
de desenvolvimento do conhecimento humano, muito embora o conceito de
racionalidade não seja o descrito até então.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 9º edição. São Paulo: editora


Perspectiva, 2005. 260 páginas.

______________. Reflexões sobre meus críticos, in: O caminho desde a estrutura;


ensaios filosóficos, 1970-1993. São Paulo; editora Unesp, 2003. páginas 155-216.

______________. Objetividade, juízo de valor e escolha teórica, in: A tensão essencial.


Lisboa: edições 70, 1989, pág. 383-406.

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