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MICHEL FOUCAULT

A VERDADE E AS
FORMAS JURÍDICAS
5º edição

NAU)
EDITORA
OCopyright 1973 by Departamento de Letras da PUC-Rio

A editora utilizoua traduçãoe a supervisão final do texto coordenada pelo


Departamento de Letras da PUC-Rio para publicação nes Cadernos da
PUC-Rio, nº16, 1974. A tradução foi realizada por Roberto Cabral de Melo
Machado e Eduardo Jardim Morais e a supervisão final do texto foi trabalho
de Léa Porto de Abreu Novaes, Cleonice Berardinelli, Roberto Balalar, Vera
Sumário
Maria Palmeira de Paulo, Kátia Chalita Matrar, Maria Teresa Horta e
Sampaio Fernandes.
Capa
Design: Ana Lopes
I. Conferência 1
CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. H. Conferência 2
EF86v
Foucault, Michel, 1926-1984 HI. Conferência 3
A verdade e as formas jurídicas / Michel Foucault, (tradução
IV. Conferência 4
Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais,
supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes... etal. J. —
V. Conferência 5
Rio de Janeiro : NAU Editora, 2002.
160p. VI. Mesa redonda CMCnnes CR RE O sora na area as o sad o e ssa aa sata A

Tradução de: La vérité et les formes jurídiques


Conferências de Michel Foucault na PUC-Rio de 21 a 25 de
maio de 1973
ISBN 85-85936-48-7
1. Direito — Filosofia. TI. Título

96-0291 CDU 34.01

12 edição « 1996 1a reimpressão + 1998


24 edição * 1999 12 reimpressão * 2000 22 reimpressão « 2001
32 edição + 2002

NAU / Editora Trarepa Lida.


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Esta obra foi composta pela Editora Trarepa Ltda em Agaramond e impressa na
Gráfica Vozes em maio de 2002 em papel off set 90 g/mº para o miolo e papel
cartão supremo 250 gm? para a capa.
O que gostaria de dizer-lhes nestas conferências são
coisas possivelmente inexatas,falsas, errôneas, que apresentarei
a título de hipótese de trabalho; hipótese de trabalho para um
trabalho futuro. Pediria, para tanto,sua indulgência e, mais do
queisto, sua maldade.Isto é, gostaria muito que,ao fim de cada
conferência, me fizessem perguntas, críticas e objeções para
que, na medida do possível e na medida em que meu espírito
nãoé ainda rígido demais, possa pouco a pouco adaptar-me a
elas; e que possamosassim, ao final dessas cinco conferências,
ter feito, em conjunto, um trabalho ou eventualmente algum
progresso.
Apresentarei hoje uma reflexão metodológica para
introduzir esse problema, que sob título de A Verdade e as
Formas Jurídicas, pode-lhes parecer um tanto enigmático.
Tentarei apresentar-lhes o que no fundo é o ponto de conver-
gência de três ou quatro séries de pesquisas existentes, já
exploradas, já inventariadas, para confrontá-las e reuni-las em
uma espécie de pesquisa, não digo original, mas pelo menos,
renovadora.
Em primeiro lugar, uma pesquisa propriamentehistó-
rica, ou seja: como se puderam formar domínios de saber a
partir de práticas sociais? A questão é a seguinte: existe uma
tendência que poderíamos chamar, um tanto ironicamente, de O segundoeixo de pesquisa é um eixo metodológico,
marxismo acadêmico,queconsiste em procurar de que maneira que poderíamos chamar de análise dos discursos. Ainda aqui
as condições econômicas de existência podem encontrar na existe, parece-me, em umatradição recente mas já aceita nas
consciência dos homens seu reflexo e expressão. Parece-me universidades européias, uma tendência a tratar o discurso
que essa forma de análise, tradicional no marxismo universitá- como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por
rio da França e da Europa, apresenta um defeito muito grave: regras sintáticas de construção.
o de supor, no fundo, que o sujeito humano, o sujeito de Há alguns anos foi original e importante dizer e
conhecimento, as próprias formas do conhecimento são de mostrar que o que era feito com a linguagem — poesia,
certo modo dadosprévia e definitivamente, e que as condições literatura, filosofia, discurso em geral — obedecia a um certo
econômicas, sociais e políticas da existência não fazem mais do númerodeleis ou regularidades internas — asleis e regulari-
que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente dades da linguagem. O caráterlinguístico dosfatos de lingua-
dado. gem foi uma descoberta que teve importância em determinada
Meuobjetivo será mostrar-lhes comoaspráticas sociais época.
podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente Teria então chegado o momento de considerar esses
fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, fatos de discurso, não mais simplesmente sob seu aspecto
mas também fazem nascer formas totalmente novasdesujeitos linguístico, mas, de certa forma — e aqui me inspiro nas
e de sujeitos de conhecimento. O próprio sujeito de conheci- pesquisas realizadas pelos anglo-americanos — como jogos
mento tem umahistória,a relação do sujeito com o objeto, ou, (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e
mais claramente, a própria verdade tem umahistória. de resposta, de dominaçãoe de esquiva, como também deluta.
Assim, gostaria particularmente de mostrar como se O discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em
pôde formar, no século XIX, um certo saber do homem, da determinado nível, e polêmicose estratégicos em outro. Essa
individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou análise do discurso comojogo estratégico e polêmico é, a meu
fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das práticas ver, um segundo eixo de pesquisa.
sociais, das práticas sociais do controle e da vigilância. E como, Enfim,o terceiro eixo de pesquisa que lhes proponho,
de certa maneira, esse saber não se impôs a um sujeito de e que vai definir, por seu encontro com os dois primeiros, o
conhecimento,não se propôsa ele, nem se imprimiu nele, mas ponto de convergência em que mesituo, consistiria em uma
fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conheci- reelaboraçãoda teoria do sujeito. Essa teoria foi profundamen-
mento. Podemos dizer quea história dos domínios do saber em te modificada e renovada, ao longo dos últimos anos, por um
relação com as práticas sociais, excluída a preeminência de um certo número de teorias ou, ainda mais seriamente, por um
sujeito de conhecimento dado definitivamente, é um dos certo número de práticas, entre as quais, é claro, a psicanálise
primeiros eixos de pesquisa que agora lhes proponho. se situa em primeiro plano. A psicanálise foi certamente a
prática e a teoria que reavaliou da maneira mais fundamental
a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito, que se de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que
estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes. fazem parte das práticas sociais.
Hádois ou três séculos, a filosofia ocidental postulava, Esse é o fundo teórico dos problemas que gostaria de
explícita ou implicitamente, o sujeito como fundamento, levantar.
como núcleo central de todo conhecimento, como aquilo em Pareceu-mequeentreas práticas sociais em que a análise
que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia histórica permite localizar a emergência de novas formas de
explodir. Ora, parece-me que a psicanálise pôs em questão, de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as
maneira enfática, essa posição absoluta do sujeito. Mas se a práticas judiciárias, estão entre as mais importantes.
psicanálise o fez, em compensação, no domínio do que pode- A hipótese que gostaria de propor é que, no fundo, há
ríamos chamarteoria do conhecimento, ou no da epistemolo- duas histórias da verdade. A primeira é umaespécie de história
gia, ou no da história das ciências ou ainda no da história das interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a
idéias, parece-me que a teoria do sujeito permaneceu ainda partir de seus próprios princípios de regulação:é a história da
muito filosófica, muito cartesiana e kantiana, pois ao nível de verdadetal como se faz na ou a partir da história das ciências.
generalidade em que me situo, não faço, por enquanto, diferen- Por outro lado, parece-me queexistem, nasociedade, ou pelo
ça entre as concepções cartesiana e kantiana. menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a
Atualmente, quando se faz história — história das verdade se forma, onde um certo númerode regras de jogo são
idéias, do conhecimento ou simplesmente história — atemo- definidas — regrasde jogoa partir das quais vemosnascercertas
nosa esse sujeito de conhecimento,a este sujeito da represen- formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos
tação, como ponto de origem a partir do qual o conhecimento tipos de saber — e por conseguinte podemos, a partirdaí, fazer
é possível e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver uma história externa, exterior, da verdade.
comose dá,através da história, a constituição de um sujeito que As práticas judiciárias — a maneira pela qual, entre os
nãoé dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a homens, se arbitram os danose as responsabilidades, o modo
verdade se dá na história, mas de um sujeito quese constitui no pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a
interior mesmo dahistória, e que é a cada instante fundado e maneira como os homens podiam ser julgados em função dos
refundado pela história. É na direção desta crítica radical do erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a
sujeito humanopela história que devemos nos dirigir. determinados indivíduos a reparação de algumas desuas ações
Para retomar meu ponto de partida, podemos ver e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas
como, em uma certa tradição universitária ou acadêmica do essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem
marxismo,esta concepção filosoficamente tradicional do sujei- cessar através da história — me parecem uma das formaspelas
to não foi aindasustada. Ora, a meuverisso é que deve serfeito: quais nossa sociedadedefiniu tipos de subjetividade, formas de
a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através saber e, por conseguinte, relações entre o homem a verdade
que merecem ser estudadas.

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Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver: as nem é totalmente um mito, nem inteiramente umatragédia —
formas jurídicas e, por conseguinte, sua evolução no campo do a história de Édipo. Falarei da história de Édipo não como
direito penal como lugar de origem de um determinado ponto de origem, de formulação do desejo ou das formas do
número de formas de verdade. Tentarei mostrar-lhes como desejo do homem, mas, ao contrário, como episódio bastante
certas formas de verdade podem ser definidasa partir da prática curioso da história do saber e ponto de emergência do inqué-
penal. Pois o que chamamos de inquérito (enquête) — inquérito rito. Na conferência subsequente, tratarei da relação que se
tal como é e comofoi praticado pelos filósofos de século XV ao estabeleceu na Idade Média, do conflito, da oposição entre o
século XVIII, e também por cientistas, fossem eles geógrafos, regime da prova (épreuve) e o sistema do inquérito. Finalmente,
botânicos, zoólogos, economistas — é uma forma bem caracte- nas duas últimas falarei do nascimento do que chamoo exame
rística da verdade em nossas sociedades. ouas ciências de exame queestão em relação com a formação
Ora, onde encontramos a origem do inquérito? Nós a e estabilização da sociedade capitalista.
encontramos em umaprática política e administrativa de que No momento, gostaria de retomar, de forma diferente,
irei falar-lhes, mas a encontramos também em prática judiciá- as reflexões metodológicas puramente abstratas de quefalava
ria. E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu há pouco. Teria sido possível, e talvez mais honesto, citar
como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem apenas um nome, o de Nietzsche, pois o que digo aqui só tem
jurídica. Foi para saber exatamente quem fez o quê, em que sentido se relacionado à obra de Nietzsche que me pareceser,
condições e em que momento, que o Ocidente elaborou as entre os modelos de que podemoslançar mão para as pesquisas
complexas técnicas do inquérito que puderam, em seguida,ser que proponho, o melhor, o mais eficaz e o mais atual. Em
utilizadas na ordem científica e na ordem dareflexãofilosófica. Nietzsche, parece-me, encontramos efetivamente um tipo de
Da mesma forma, no século XIX também se inventaram, discurso em que se faz a análise histórica da própria formação
a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais, formas de do sujeito, a análise histórica do nascimento de um certo tipo
análise bem curiosas que chamaria de exame (examen) e não de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de
mais de inquérito. Tais formas de análise deram origem conhecimento. O que me proponhoagora é seguir na obra de
po

Sociologia, à Psicologia, à Psicopatologia, à Criminologia, à Nietzsche os lineamentos que nos podem servir de modelo para
Psicanálise. Tentarei mostrar-lhes como, ao procurarmos a as análises em questão.
origem destas formas, vemos que elas nasceram em ligação T'omarei, como ponto de partida, um texto de Nietzsche
direta com a formação de um certo número de controles datado de 1873, e só publicado postumamente. Diz o texto:
políticos e sociais no momento da formação da sociedade “Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se
capitalista, no final do século XIX. estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um

Temosassim, em linhas gerais, a formulação do que será astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o
tratado nas conferências seguintes. Na próxima,falarei sobre o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da
nascimento do inquérito no pensamento grego, em algo que suprema arrogância da história universal.”

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Nesse texto, extremamente rico e difícil, deixarei de lado falsa, pois admitir quea religião tem origem em um sentimento
várias coisas, até mesmo, e sobretudo, a célebre e difícil frase: metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já
“Foi o instante da maior mentira”. Considerarei inicialmente, estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse
e de bom grado,a insolência, a desenvoltura de Nietzsche ao sentimento metafísico. Ora, diz Nietzsche,a história não é isso,
dizer que o conhecimento foi inventado sobre um astro e em não é dessa maneira quese faz história, não é dessa maneira que
um determinado momento. Falo de insolência, nesse texto de as coisas se passaram. Pois a religião não tem origem, não tem
Nietzsche, porque não devemos esquecer que em 1873 esta- Ursprung, ela foi inventada, houve uma Erfindung da religião.
mos, senão em pleno kantismo, pelo menos, em pleno neo- Em um dado momento, algo aconteceu que fez aparecer a
kantismo.Ea idéia de que o tempoe o espaço podem preexistir religião. A religião foi fabricada. Ela não existia anteriormente.
ao conhecimento, a idéia de que o tempo e o espaço não são Entre a grande continuidade da Ursprung descrita por
formas do conhecimento, mas, pelo contrário, espécie de Schopenhauer e a ruptura que caracteriza a Erfindung de
rochas primitivas sobre as quais o conhecimento vem se fixar, Nietzsche há uma oposição fundamental.
é para a época absolutamente inadmissível. Falando a respeito da poesia, sempre na Gaia Ciência,
É a isso que gostaria de meater, fixando-meprimeira- Nietzsche afirma haver quem procure a origem, Ursprung, da
mente no próprio termo invenção. Nietzsche afirma que, em poesia, quando na verdade não há Ursprung da poesia, há
um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar somente uma invenção da poesia. Um dia alguém teve a idéia
do universo, animais inteligentes inventaram o conhecimento; bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades
a palavra que emprega,invenção, — o termo alemãoé Erfindung rítmicas ou musicais da linguagem parafalar, para imporsuas
—, é frequentemente retomada em seus textos, e sempre com palavras, para estabelecer através de suas palavras uma certa
sentido e intenção polêmicos. Quando fala de invenção, relação de poder sobre os outros. Também a poesia foi inven-
Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a tada ou fabricada.
invenção, a palavra origem. Quando diz invenção é para não Existe ainda a famosa passagem no final do primeiro
dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung. discurso de 4 Genealogia da Moral, em que Nietzschese refere
Tem-se um certo número de provas disto. Apresentarei a essa espécie de grande fábrica, de grande usina, em que se
duasou três. Por exemplo, em um texto que é, segundocreio, produz o ideal. O ideal não tem origem. Ele também foi
da Gaia Ciência, em que fala de Schopenhauer reprovando-lhe inventado, fabricado, produzido por uma série de mecanismos,
sua análise da religião, Nietzsche diz que Schopenhauer come- de pequenos mecanismos.
teu o erro de procurar a origem — Ursprung— da religião em A invenção — Erfindung — para Nietzsche é, por um
um sentimento metafísico, que estaria presente em todos os lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno
homense conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, começo, baixo, mesquinho, inconfessável. Este é o ponto
seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial. Nietzsche crucial da Erfindung. Foi por obscuras relações de poder que a
afirma: eis umaanálise da história da religião que é totalmente poesia foi inventada. Foi igualmente por puras obscuras rela-

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ções de poder quea religião foi inventada. Vilania portanto de resultado de um longo compromisso.Ele éainda, diz, Nietzsche,
todos estes começos quando são opostos à solenidade da origem como “uma centelha entre duas espadas”, mas que não é do
tal como vista pelos filósofos. O historiador não deve temer mesmo ferro que as duas espadas.
as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em mesquinharia, Efeito de superfície, não delineado de antemãonanatu-
de pequena em pequenacoisa, que finalmenteas grandescoisas reza humana, o conhecimento vem atuar diante dos instintos,
se formaram. À solenidade de origem, é necessário opor, em acima deles, no meio deles; ele os comprime, traduz um certo
bom método histórico, a pequenez mericulosa e inconfessável estado de tensão ou de apaziguamento entreos instintos. Mas
dessas fabricações, dessas invenções. não se pode deduzir o conhecimento, de maneira analítica
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer queele segundo uma espécie de derivação natural. Não se pode, de
foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de modo necessário, deduzi-lo dos próprios instintos. O conheci-
maneira mais precisa, por mais paradoxal que seja, que o mento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta,
conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza huma- o combate,o resultado do combate e consequentemente o risco
na. O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do e o acaso que vão darlugar ao conhecimento. O conhecimento
homem, ou, inversamente, não há no comportamento huma- não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é
no, no apetite humano, no instinto humano, algo como um natural, é contra-natural.
germe do conhecimento. De fato, diz Nietzsche, o conheci- Este é o primeiro sentido que pode ser dado à idéia de que
mento tem relação com os instintos, mas não pode estar o conhecimento é uma invençãoe não tem origem. Mas o outro
presente neles, nem mesmoporser um instinto entre os outros; sentido que pode ser dado a esta afirmação seria o de que o
o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do conhecimento, além de não estar ligado à natureza humana,de
| afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os não derivar da natureza humana, nem mesmo é aparentado,
|instintos. É porque os instintos se encontram, se batem e por um direito de origem, com o mundo a conhecer. Não há,
“chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um com- no fundo, segundo Nietzsche, nenhuma semelhança, nenhu-
promisso, quealgo se produz. Este algo é o conhecimento. maafinidade prévia entre conhecimentoe essas coisas queseria
Portanto, para Nietzsche, o conhecimento não é da necessário conhecer. Em termos mais rigorosamente kantia-
mesmanatureza queosinstintos, não é como que o refinamen- nos, seria necessário dizer que as condições de experiência e as
to dos própriosinstintos. O conhecimento tem por fundamen- condições do objeto de experiência são totalmente heterogêne-
to, por base e por ponto de partida os instintos, mas instintos as.
em confronto entre si, de que ele é apenas o resultado, em sua Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da
superfície. O conhecimento é como um clarão, como umaluz filosofia ocidental, quando até mesmo Kantfoi o primeiro a
que se irradia mas que é produzido por mecanismos ou reali- dizer explicitamente que as condições de experiência e do
dades quesão de natureza totalmente diversa. O conhecimento objeto de experiência eram idênticas. Nietzsche pensa ao
é o efeito dos instintos, é como um lance de sorte, ou como o contrário, que entre conhecimento e mundo a conhecer há

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tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza huma- ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio
na. Temos, então, uma natureza humana, um mundo, e algo conhecimento estavam em relação de continuidade? O que
entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem ascoisas
eles nenhumaafinidade, semelhança ou mesmoelos de natu- do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbitrari-
reza. edade? O que garantia isto nafilosofia ocidental, senão Deus?
O conhecimento não tem relações de afinidade com o Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além e
mundo a conhecer, diz Nietzsche frequentemente. Citarei ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegura haver uma
apenas um texto da Gaia Ciência (parágrafo 109): “O caráter harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para
do mundo é o de um caos eterno; não devido à ausência de demonstrar que o conhecimento era um conhecimento funda-
necessidade, mas devido à ausência de ordem, de encadeamen- do, em verdade, nas coisas do mundo, Descartes precisou
to, de formas, de beleza e de sabedoria”. O mundo não procura afirmar a existência de Deus.
absolutamente imitar o homem, ele ignora toda lei. Se não existe mais relação entre o conhecimento e as
Abstenhamo-nos de dizer que existem leis na natureza. É coisas a conhecer, se a relação entre o conhecimento e as coisas
contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem for- conhecidasé arbitrária, de poder e de violência, a existência de
mas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o Deus não é mais indispensável no centro do sistema de conhe-
conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se cimento. Na mesma passagem da Gaia Ciência em que evoca a
relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por ausência de ordem, de encadeamento, de formas, de beleza do
um direito qualquer, a conhecer esse mundo. Nãoé natural à mundo, Nietzsche pergunta precisamente:
natureza ser conhecida. “quando cessaremos de ser obscurecidos por todas essas
E assim como entre instinto e conhecimento encontra- sombras de deus, quando conseguiremosdesdivinizar com-
mos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de pletamente a natureza?”
' dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma A ruptura da teoria do conhecimento com a teologia
forma, entre o conhecimentoe as coisas que o conhecimento começa de maneira estrita com umaanálise como a de Nietzsche.
tem a conhecer não pode haver nenhumarelação de continui- Em segundo lugar, diria que, se é verdade que entre o
dade natural. Só pode haver uma relação de violência, de conhecimentoe os instintos — tudo o quefaz, tudo o que trama
dominação, de podere de força, de violação. O conhecimento o animal humano — há somente ruptura, relações de domina-
só pode ser umaviolação das coisas a conhecer e não percepção, ção e subserviência, relações de poder, desaparece então, não
reconhecimento, identificação delas ou com elas. mais Deus, mas o sujeito em sua unidade e soberania.
Parece-me haver, nessa análise de Nietzsche, uma dupla Remontando à tradiçãofilosófica a partir de Descartes,
ruptura muito importante com tradiçãodafilosofia ocidental para não ir mais longe, vemos que a unidade dosujeito humano
e cuja lição devemos conservar. A primeira é a ruptura entre o era assegurada pela continuidade que vai do desejo ao conhecer,
conhecimento e as coisas. O que, efetivamente, na filosofia

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do instinto ao saber, do corpo à verdade. Tudo isto assegurava melhor, o resultado de um certo jogo, de uma certa composição
a existência do sujeito. Se é verdade que há, por um lado, os ou compensação entre ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari,
mecanismos do instinto, os jogos do desejo, os afrontamentos detestar.
da mecânica do corpo e da vontadee, por outrolado, a um nível Nietzsche diz que só compreendemos porque há por trás
de natureza totalmente diferente, o conhecimento, então não de tudo isso o jogo e a luta desses três instintos, desses três
se tem mais necessidade da unidade do sujeito humano. Pode- mecanismos, ou dessas três paixões que são o rir, o deplorar e
mos admitir sujeitos, ou podemos admitir que o sujeito não o detestar (o ódio). Com relação a isso é preciso considerar
existe. Eis em que o texto de Nietzsche que citei, consagrado à algumascoisas.
invenção do conhecimento, me parece estar em ruptura com a Inicialmente, devemos considerar queessas três paixões,
tradição filosófica mais antiga e mais estabelecida nafilosofia ou esses três impulsos — rir, detestar e deplorar — têm em
ocidental. comum o fato de serem uma maneira não de se aproximar do
Ora, quando Nietzsche diz que o conhecimento é o objeto, de se identificar com ele, mas, ao contrário, de conservar
resultado dos instintos, mas não é um instinto, nem deriva o objeto à distância, de se diferenciar dele ou de se colocar em
diretamente dos instintos, que quer dizer ele exatamente, e ruptura com ele, de se proteger dele pelo riso, desvalorizá-lo
como concebeeste curioso mecanismo pelo qual os instintos, pela deploração,afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo ódio.
sem ter nenhuma relação de natureza com o conhecimento, Portanto, todos esses impulsos que estão na raiz do conheci-
podem por seu simples jogo, produzir, fabricar, inventar um mento e o produzem têm em comum o distanciamento do
conhecimento que nada tem a ver com eles? Eis a segundasérie objeto, uma vontade de se afastar dele e de afastá-lo ao mesmo
de problemas que gostaria de abordar. Existe um texto da Gaia tempo, enfim de destruí-lo. Atrás do conhecimento há uma
Ciência (parágrafo 333) que podemos considerar como uma vontade, sem dúvida obscura, não de trazer o objeto para si, de
das análises mais estritas que Nietzsche fez dessa fabricação, se assemelhara ele, mas ao contrário, uma vontade obscura de
dessa invenção do conhecimento. Nesse longotexto intitulado se afastar dele e de destruí-lo, maldade radical do conhecimen-
— “Que significa conhecer?” — Nietzsche retoma um texto de to.
Spinoza, onde este opunha intelligere, compreender,a ridere, Chegamos assim a uma segunda idéia importante. A de
lugere, detestari. Spinoza dizia que, se quisermos compreender que esses impulsos — rir, deplorar, detestar — são todos da
as coisas, se quisermos efetivamente compreendê-las em sua ordem das más relações. Atrás do conhecimento, na raiz do
natureza, em sua essência e portanto em suaverdade, é neces- conhecimento, Nietzsche não coloca umaespécie de afeição, de
sário que nos abstenhamos derir delas, de deplorá-las ou de impulso ou de paixão que nosfaria gostar do objeto a conhecer,
' detestá-las. Somente quandoestas paixões se apaziguam pode- mas, ao contrário, impulsos que nos colocam em posição de
mos enfim compreender. Nietzsche diz que isto não somente ódio, desprezo, ou temor diante de coisas que são ameaçadoras
não é verdade, mas é exatamente o contrário que acontece, e presunçosas.
Intelligere, compreender, não é nada mais que um certo jogo, ou

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Se esses três impulsos — rir, deplorar e odiar — chegam do amor, da unidade, da pacificação. Ora, se quisermos saber
a produzir o conhecimento não é, segundo Nietzsche, porque o que é o conhecimento, não é preciso nos aproximarmos da
se apaziguaram, como em Spinoza, ou se reconciliaram, ou forma devida, de existência, de ascetismo, própria ao filósofo.
chegaram a uma unidade.É, ao contrário, porque lutaram entre Se quisermos realmente conhecer o conhecimento,saber o que
si, porquese confrontaram. É porqueesses impulsos se comba- ele é, apreendê-lo em sua raiz, em suafabricação, devemos nos
teram, porque tentaram, como diz Nietzsche, prejudicar uns aproximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos com-
aos outros, é porque estão em estado de guerra, em uma preender quais são as relações de luta e de poder. E é somente
estabilização momentânea desse estado de guerra, que eles nessas relações de luta e de poder — na maneira comoas coisas
chegam a uma espécie de estado, de corte onde finalmente o entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram
conhecimento vai aparecer como “a centelha entre duas espa- dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros,
das”. relações de poder — que compreendemos em que consiste o
Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao conhecimento.
objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário, uma Pode-se então compreender como uma análise desse tipo
relação de distância e dominação; não há no conhecimentoalgo nos introduz, de maneira eficaz, em uma história política do
comofelicidade e amor, mas ódio e hostilidade; não há unifi- conhecimento, dos fatos de conhecimento e do sujeito do
cação, massistema precário de poder. Os grandes temas tradi- conhecimento.
cionalmente apresentados na filosofia ocidental foram Mas, antes, gostaria de responder a uma possível objeção:
inteiramente questionados no texto citado de Nietzsche. “tudo isso é muito bonito mas não está em Nietzsche; foi seu
A filosofia ocidental — e, desta vez, não é preciso referir- delírio, sua obsessão de encontrar em toda parte relações de
nos a Descartes, podemos remontar a Platão — sempre carac- poder, em introduzir essa dimensão do político até na história
terizou o conhecimento pelo logocentrismo, pela semelhança, do conhecimento ou na história da verdade, que lhe fez
pela adequação, pela beatitude, pela unidade. Todos esses acreditar que Nietzsche dizia isto”.
grandes temas são agora postos em questão. Daí se compreende Eu responderia duas coisas. Primeiramente, tomei este
porque é a Spinoza que Nietzsche se refere, pois Spinoza, de texto de Nietzsche em função de meus interesses, não para
todos os filósofos ocidentais, foi quem levou mais longe essa mostrar que era essa a concepção nietzscheana do conhecimen-
concepção do conhecimento como adequação, beatitude e to — pois há inúmeros textos bastante contraditórios entre si
unidade. Nietzsche coloca no cerne, na raiz do conhecimento, a esse respeito — mas apenas para mostrar que existe em
algo como o ódio,a luta, a relação de poder. Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa
Compreende-se, então, porque Nietzsche afirma que o disposição um modelo para uma análise histórica do que eu
filósofo é aquele que mais facilmente se engana sobre a natureza chamaria a política da verdade. É um modelo que encontramos
do conhecimento por pensá-lo sempre na forma da adequação, efetivamente em Nietzsche e penso mesmoqueele constitui em

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sua obra um dos modelos mais importantes para a compreen- Ássim podemos compreendera série de textos em que
são de alguns elementos aparentemente contraditórios da sua Nietzsche afirma que o conhecimento tem um caráter
concepção do conhecimento. perspectivo. Quando Nietzsche diz que o conhecimento é
Com efeito, se admitimosser isto que Nietzsche enten- sempre umaperspectiva, ele não quer dizer, no que seria uma
de por descoberta do conhecimento, se todas essas relações mistura de kantismo e empirismo, que o conhecimento se
estão por trás do conhecimento que, de certa forma, é apenas encontra limitado no homem por um certo número de condi-
seu resultado, podemos então compreender determinados ções, de limites derivados da natureza humana, do corpo
textos de Nietzsche. humano ou da própria estrutura do conhecimento. Quando
De início, todos aqueles em que Nietzsche afirma que fala do caráter perspectivo do conhecimento, Nietzsche quer
não há conhecimento em si. Mais umavez é preciso pensar em designar o fato de que só há conhecimento sob a forma de um
Kant, aproximá-los e verificar todas as diferenças. O que a certo númerodeatos quesão diferentes entre si e múltiplos em
crítica kantiana colocava em questão era a possibilidade de um sua essência, atos pelos quais o ser humano se apoderaviolen-
conhecimento do em-si, um conhecimento sobre uma verda- tamente de um certo número de coisas, reage a um certo
de ou uma realidade em-si. Nietzsche diz em A genealogia da número desituações, lhes impõe relações de força. Ou seja, o
moral: “Abstenhamo-nos, senhoresfilósofos, dos tentáculos conhecimento é sempre umacerta relação estratégica em que o
das noçõescontraditórias tais comorazão pura, espiritualidade homem se encontrasituado. É essa relação estratégica que vai
absoluta, conhecimento em-si”. Ou, ainda, em 4 vontade de definir o efeito de conhecimento e por isso seria totalmente
poder Nietzsche afirma que não há ser em-si, como também contraditório imaginar um conhecimento quenão fosse em sua
não pode haver conhecimento em-si. E quando diz isso, natureza obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo. O
designa algo totalmente diferente do que Kant compreendia caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza
por conhecimento em-si. Nietzsche quer dizer que não há uma humana, mas sempre do caráter polêmico e estratégico do
natureza do conhecimento, uma essência do conhecimento, conhecimento. Pode-se falar do caráter perspectivo do conhe-
condições universais para o conhecimento, mas que o conhe- cimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito
cimento é, cada vez, o resultado histórico e pontual de condi- dessa batalha.
ções quenão são da ordem do conhecimento. O conhecimento É porisso que encontramos em Nietzschea idéia, que
é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob volta constantemente, de que o conhecimento é ao mesmo
o signo do conhecer. O conhecimento não é uma faculdade, tempo o que há de mais generalizante e de mais particular. O
nem umaestrutura universal. Mesmo quandoutiliza um certo conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as
número de elementos que podem passar por universais, esse coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade.
conhecimento será apenas da ordem doresultado, do aconte- Devidoa isso, o conhecimento é sempre um desconhecimento.
cimento, do efeito. Por outro lado, é sempre algo que visa, maldosa, insidiosa e

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agressivamente, indivíduos, coisas, situações. Só há conheci- existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito,
mento na medida em que, entre o homem e o que ele conhece, deveria estar aberto à verdade.
se estabelece, se trama algo como umaluta singular, um tête-à- O que pretendo mostrar nestas conferências é como, de
téte, um duelo. Há sempre no conhecimentoalgumacoisa que fato, as condições políticas, econômicas de existência não são
é da ordem doduelo e que faz com queele seja sempre singular. um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento mas
Este é o caráter contraditório do conhecimento tal como é aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento
definido nos textos de Nietzsche que aparentementese contra- e, por conseguinte, as relações de verdade. Só pode havercertos
dizem: generalizante e sempre singular. tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade,
Eis, portanto, como através dos textos de Nietzsche certos domínios de saber a partir de condições políticas que são
podemosrestituir não umateoria geral do conhecimento, mas o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as
um modelo que permite abordar o objeto destas conferências, relações com a verdade. Só se desembaraçando destes grandes
o problema da formação de um certo número de domínios de temasdo sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo originário
saber a partir de relações de força e de relações políticas na e absoluto, utilizando eventualmente o modelo nietzscheano,
sociedade. poderemos fazer uma história da verdade.
Retomo agora meu ponto de partida. Em uma certa Apresentarei alguns esboços desta história a partir das
concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em práticas judiciárias de onde nasceram os modelos de verdade
umacerta concepção do marxismo que se impôs à universidade, quecirculam ainda em nossa sociedade, se impõem aindaa ela
há sempre no fundamento da análise a idéia de queas relações e valem não somente no domínio da política, no domínio do
de força, as condições econômicas, as relações sociais são dadas comportamento quotidiano, mas até na ordem daciência. Até
previamente aos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, se impõem na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação
a um sujeito de conhecimento que permanece idêntico salvo releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao
em relação às ideologias tomadas como erros. sujeito de conhecimento mas que são, elas próprias, constitu-
Chegamos assim a esta noção muito importante e ao tivas do sujeito de conhecimento.
mesmo tempo muito embaraçosa de ideologia. Nas análises
marxistas tradicionais a ideologia é uma espécie de elemento
negativo através do qual se traduz o fato de quea relação do
sujeito com a verdade ou simplesmente a relação de conheci-
mento é perturbada, obscurecida, velada pelas condições de
existência, por relações sociais ou por formas políticas que se
impõem do exterior ao sujeito do conhecimento. A ideologia é
a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de

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IH

Gostaria hoje de falar da história de Édipo, assunto que


há um ano se tornou consideravelmente fora de moda. A partir
de Freud,a história de Édipo vinha sendo considerada como
relatando a fábula mais antiga de nosso desejo e de nosso
inconsciente. Ora, a partir do livro de Deleuze e Guattari,
L'Anti-CEdipe, publicado noanopassado,a referência a Édipo
desempenha um papel inteiramente diferente.
Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triângulo
edipiano, pai-mãe-filho, não revela uma verdade atemporal,
nem uma verdade profundamente histórica de nosso desejo.
Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiano
constitui, para os analistas que o manipulam no interior da
cura, uma certa maneira de conter o desejo, de garantir que o
desejo não venhase investir, se difundir no mundo que nos
circunda, no mundo histórico; que o desejo permaneça no
interior da família e se desenrole como um pequeno drama
quase burguês entre o pat, a mãe e o filho.
Édipo não seria pois umaverdade de natureza, mas um
instrumento delimitação e coação que os psicanalistas, a partir
de Freud,utilizam para conter o desejo e fazê-lo entrar em uma
estrutura familiar definida por nossa sociedade em determina-
do momento. Em outras palavras, Édipo, segundo Deleuze e

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Guattari, não é o conteúdo secreto de nosso inconsciente, mas micas de produção, mas a relações políticas que investem toda
a forma de coaçãoquea psicanálise tenta imporna cura a nosso a trama de nossa existência.
desejo e a nosso inconsciente. Édipo é um instrumento de Pretendo mostrar comoa tragédia de Édipo, a que se
poder, é umacerta maneira de poder médico e psicanalítico se pode ler em Sófocles — deixarei de lado o problema do fundo
exercer sobre o desejo e o inconsciente. mítico a que ela se liga — é representativa e, de certa maneira,
Confesso que um problema comoeste meatrai muito e instauradora de um determinadotipo de relação entre podere
que eu também mesinto tentado a pesquisar, portrás do que saber, entre poder político e conhecimento, de que nossa
se pretendequeseja a história de Édipo, algumacoisa que tem civilização ainda não se libertou. Parece-me, que há realmente
a ver não com história indefinida, sempre recomeçada, do um complexo de Édipo na nossa civilização. Mas ele não diz
nosso desejo e do nosso inconsciente, mas com a história de um respeito ao nosso inconsciente e ao nosso desejo, nem às
poder, um poder político. relações entre desejo e inconsciente. Se existe complexo de
Faço um parêntese para lembrar que tudo que tento Édipo,ele se dá não ao nível individual, mas coletivo; não a
dizer, tudo que Deleuze, com mais profundidade, mostrou em propósito de desejo e inconsciente, mas de podere desaber. É
seu L'Anti-CEdipe faz parte de um conjunto de pesquisas que esta espécie de complexo que eu gostaria de analisar.
não dizem respeito, ao contrário do que se diz nos jornais, ao A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro
que tradicionalmente se chama de estrutura. Nem Deleuze, testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Como
nem Lyotard, nem Guattari, nem eu nunca fazemos análise de todo mundosabe, trata-se de uma história em que pessoas —
estrutura, não somos absolutamente estruturalistas. Se me um soberano, um povo — ignorando uma certa verdade,
perguntassem o que faço e o que outros fazem melhor do que conseguem, por umasérie de técnicas de que falaremos, desco-
eu, diria que não fazemos pesquisa de estrutura. Faria um jogo brir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do
de palavras e diria que fazemos pesquisas de dinastia. Diria, soberano. A tragédia de Édipo é, portando,a história de uma
jogando com aspalavras gregas Sóvaug duvaoTeta que procu- pesquisa da verdade; é um procedimento de pesquisa da
ramosfazer aparecer o que na história de nossa cultura perma- verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas
neceu até agora escondido, mais oculto, mais profundamente dessa época. Poresta razão o primeiro problemaquese coloca
investido; as relações de poder. Curiosamente, as estruturas é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da
econômicas de nossa sociedade são melhor conhecidas, mais verdade.
inventariadas, melhor destacadas que as estruturas de poder O primeiro testemunho que temos da pesquisa da verda-
político. Gostaria de mostrar nessasérie de conferências de que de no procedimento judiciário grego remonta à Ilíada. Trata-
maneira relações políticas se estabeleceram e se investiram se da história da contestação entre Antíloco e Menelau durante
profundamente na nossa cultura dando lugar a umasérie de os jogos quese realizaram na ocasião da morte de Pátroclo.
fenômenos que não podem ser explicados a não ser que os Entre esses jogos houve umacorrida de carros, que, como de
relacionemos não às estruturas econômicas, às relações econô- costume, se desenrolava em um circuito com ida e volta,

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passando por um marco que era preciso contornar o mais transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o falso juramento,
próximo possível. Os organizadores dos jogostinham colocado se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade.
neste lugar alguém quedeveria ser o responsável pela regulari- Eis a velha e bastantearcaica prática da prova da verdade
dade da corrida que Homero, sem o nomear pessoalmente, diz em que esta é estabelecida judiciariamente não por uma
ser uma testemunha,totmp aquele que está lá para ver. A corrida constatação, uma testemunha, um inquérito ou umainquisição,
se desenrola e os dois primeiros queestão nafrente no momen- mas por um jogo de prova. A provaé característica da sociedade
to da curva são Antíloco e Menelau. Ocorre umairregularidade grega arcaica. Vamos também reencontrá-la na Alta Idade
e quando Antíloco chega primeiro, Menelau introduz uma Média.
contestação e diz ao juiz ou júri que deve dar o prêmio, que É evidente que, quando Édipo e todaa cidade de Tebas
Antíloco cometeu uma irregularidade. Contestação, litígio, procuram a verdade, nãoé este modelo queutilizam. Os séculos
como estabelecer a verdade? Curiosamente, nesse texto de passaram. É, entretanto, interessante observar que encontra-
Homero,não se faz apelo àquele que viu, à famosa testemunha mosainda natragédia de Sófocles um ou dois restos da prática
que estava junto ao marco e que deveria atestar o que aconte- de estabelecimento da verdade pela prova. Primeiro, na cena
ceu. Não se convocao seu testemunho e nenhuma pergunta lhe entre Creonte e Édipo, quando Édipo critica seu cunhado por
é feita. Há somente contestação entre os adversários Menelau ter truncado a resposta de Oráculo de Delfos, dizendo: “Tu
e Antíloco. Esta se desenvolve da seguinte maneira: depois da inventaste tudo isto simplesmente para tomar meu poder, para
acusação de Menelau — “tu cometeste umairregularidade” — me substituir”. E Creonte responde, sem que procure estabe-
e da defesa de Antíloco — “eu não cometi irregularidade” — lecer a verdade através de testemunhas: “Bem, vamosjurar. E
Menelau lança um desafio: “Põe tua mão direita na testa do teu eu voujurar que não fiz nenhum complô contrati”. Isto é dito
cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de em presença de Jocasta, que aceita o jogo, que é como que
Zeus que não cometeste irregularidade”. Nesse momento, responsável pela regularidade do jogo. Creonte responde a
Antíloco, diante deste desafio que é uma prova (épreuve), Édipo segundoa velha fórmula dolitígio entre guerreiros.
renuncia à prova, renuncia a jurar e reconhece assim que Poderíamosdizer, em segundolugar, que em toda a peça
cometeuirregularidade. encontramosessesistemado desafio e da prova. Édipo, ao saber
Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de que a peste de Tebas era devida à maldição dos deuses em
estabelecer a verdade jurídica: não se passa pela testemunha, consequência de conspurcação e assassinato, responde dizendo
mas por umaespécie de jogo, de prova, de desafio lançado por que se compromete a exilar a pessoa quetiver cometido este
um adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro deve crime, sem saber, naturalmente, que ele mesmo o cometera. Ele
aceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito o está assim implicado pelo próprio juramento, do modo como
risco,se tivesse realmente jurado, imediatamentea responsabi- nas rivalidades entre guerreiros arcaicos os adversáriosse incluí-
lidade do queiria acontecer, a descoberta final da verdadeseria am nos juramentos de promessa e maldição. Estes restos da

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velhatradição reaparecem algumas vezes ao longo da peça. Mas perecível, enquanto Apolo é imortal; e sobretudo ele é cego,
na verdade toda a tragédia de Édipo se fundamenta em um está mergulhadona noite, enquanto Apolo é o deusdo Sol. Ele
mecanismo inteiramente diferente. É esse mecanismo de esta- é a metade de sombra da verdade divina, o duplo que o deus luz
belecimento da verdade que gostaria de expor. projeta em negro sobre a superfície da Terra. É esta metade que
Parece-me que esse mecanismo da verdade obedece se vai interrogar. E Tirésias responde a Édipo dizendo: “Foste
inicialmente a uma lei, uma espécie de pura forma, que tu quem matou Laio”.
poderíamos chamar delei das metades. É por metades que se Por conseguinte podemos dizer que, desde a segunda
ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede em cena de Édipo, tudoestá dito e representado. Tem-se a verdade,
Édipo. Édipo manda consultar o deus de Delfos, o rei Apolo. já que Édipo é efetivamente designado pelo conjuntoconstituí-
A resposta de Apolo, quando a examinamos em detalhe, é dada do das respostas de Apolo, por um lado, e da resposta de
em duas partes. Apolo começa por dizer: “O país está atingido Tirésias, por outro. O jogo das metades está completo:
por uma conspurcação”. À esse primeira respostafalta, de certa conspurcação, assassinato, quem foi morto, quem matou.
forma, uma metade: há uma conspurcação, mas quem Temos tudo. Mas na forma bem particular da profecia, da
conspurcou, ou o que conspurcou? Portanto, há necessidade de predição, da prescrição. O adivinho Tirésias não diz exatamen-
se fazer uma segunda pergunta e Édipo força Creonte a dar a tea Édipo: “Foste tu quem o matou”. Ele diz: “Prometeste
segunda resposta, perguntando a que é devida a conspurcação. banir aquele que tivesse matado; ordeno que cumpras teu voto
A segunda metade aparece: o que causou a conspurcação foi um eexpulsesa ti mesmo”. Do mesmo modo, Apolo não havia dito
assassinato. Mas quem diz assassinato diz duas coisas. Diz exatamente: “Há conspurcação e é poristo que a cidade está
quem foi assassinadoe o assassino. Pergunta-se a Apolo: “quem mergulhada na peste”. Apolo disse: “Se quiseres que a peste
foi assassinado?” A resposta é: Laio, o antigo rei. Pergunta-se: acabe, é preciso lavar a conspurcação”. Tudo isso foi dito na
“quem assassinou?” Nesse momento o rei Apolo se recusa a forma do futuro, da prescrição, da predição; nadase refere à
respondere, como diz Édipo, não se pode forçar a verdade dos atualidade do presente; nada é apontado.
deuses. Fica, portanto, faltando uma metade. À conspurcação Temos toda a verdade, mas na forma prescritiva e
correspondia a metade do assassinato. Ão assassinato profética queé característica ao mesmo tempo do oráculo e do
correspondia a primeira metade: “Quem foi assassinado”. Mas adivinho. A esta verdade que, de certa formaé completa, total,
falta a segunda metade: o nome do assassino. em que tudo foi dito, falta entretanto alguma coisa que é a
Para saber o nome do assassino, vai ser preciso apelar para dimensão dopresente,daatualidade,da designação de alguém.
algumacoisa, para alguém, já que não se pode forçar a vontade Faltao testemunho doque realmente se passou. Curiosamente,
dos deuses. Este outro, o duplo de Apolo, seu duplo humano, toda esta velha história é formulada pelo adivinhoe pelo deus
sua sombra mortal é o adivinho Tirésias que, como Apolo, é na forma do futuro. Precisamos agora do presente e do teste-
alguém divino, Geioç uávtiS, o divino adivinho. Ele está muito munho do passado: testemunho presente do que realmente
próximo de Apolo, também é chamado rei, áva&; mas é aconteceu.

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Esta segunda metade, passado e presente, desta prescri- morreu. Édipo, que não chora a morte de seu pai, se alegra
ção e desta previsão é dadanoresto da peça. Ela também é dada dizendo: “Ah! Mas pelo menoseu não o matei, contrariamente
por um estranho jogo de metades. Inicialmente é preciso ao que diz a predição”. E o escravo replica: “Políbio nãoera teu
estabelecer quem matou Laio.Isto é obtido no decorrer da peça pal”.
pelo acoplamento de dois testemunhos. O primeiro é dado Temos, assim, um novo elemento: Édipo não é filho de
espontaneamente e inadvertidamente por Jocasta ao dizer: Políbio. É então que intervém o último escravo, o que havia
“Vês bem que nãofoste tu, Édipo, quem matouLaio, contra- fugido depois do drama,o que havia se escondido no fundo do
riamente ao quediz o adivinho. A melhorprovadisto é que Laio Citerão, o que havia escondido a verdade em sua cabana, o
foi morto por vários homens no entroncamento detrês cami- pastor de ovelhas, que é chamadoparaser interrogado sobre o
nhos”. A este testemunho vai responder a inquietude, já quase que aconteceu e diz: “Com efeito, dei outroraa este mensageiro
a certeza, de Édipo: “Matar um homem noentroncamento de uma criança que vinha do palácio de Jocasta e que me disseram
três caminhos é exatamente o queeu fiz; eu me lembro queao queera seufilho”.
chegar a Tebas matei alguém no etroncamento de três cami- Vemosquefalta ainda a última certeza, pois Jocasta não
nhos”. Assim, pelo jogo dessas duas metadesquese completam, está presente para atestar que foi ela quem deu a criança ao
a lembrança de Jocasta e a lembrança de Édipo, temos esta escravo. Mas, excetuando esta pequena dificuldade, agora o
verdade quase completa, a verdade do assassinato de Laio. ciclo está completo. Sabemos que Édipo era filho de Laio e
Quase completa, pois falta ainda um pequeno fragmento: o de Jocasta; que ele foi dado a Políbio; que foi ele, pensando ser
saber se ele foi morto por um só ou porvários, o quealiás não filho de Políbio e voltando, para escapar da profecia, a Tebas,
é resolvido na peça. . que ele não sabia que era sua pátria, que matou, no entronca-
Masisto é somente a metade da história de Édipo, pois mentode três caminhos, o rei Laio, seu verdadeiro pai. O ciclo
Édipo não é apenas aquele que matou o rei Laio, é também está fechado. Ele se fechou por uma série de encaixes de
quem matouo próprio pai e casou com à própria mãe, depois metades que se ajustam umas às outras. Como se toda esta
de o ter matado. Esta segunda metade dahistória faltaainda longa e complexa história da criança ao mesmo tempoexilada
depois do acoplamento dos testemunhosde Jocasta e de Édipo. e fugindo da profecia, exilada por causa da profecia,tivesse sido
O que falta é exatamente o que lhes dá uma espécie de quebrada em dois, e em seguida, cada fragmento partido de
esperança, pois o deus predisse que Laio não seria morto por novo em dois, e todos esses fragmentos repartidos em mãos
qualquer um, mas por seu filho. Portanto, enquanto não se diferentes. Foi preciso esta reunião do deuse do seu profeta, de
provar que Édipo é filho de Laio, a predição não estará Jocasta e de Édipo, do escravo de Corinto e do escravo do
realizada. Esta segunda metade é necessária para que a totalida- Citerão para que todas estas metades e metades de metades
de da predição seja estabelecida, na última parte da peça, pelo viessem ajustar-se umas às outras, adaptar-se, encaixar-se e
acoplamento de dois testemunhos diferentes. Um será o do reconstituir o perfil total da história.
escravo que vem de Corinto anunciar a Edipo que Políbio

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Esta forma, realmente impressionante no Edipo de seguida, a segunda série de metades que se ajustam é formada
Sófocles, não é apenas uma forma retórica. Ela é ao mesmo por Édipo e Jocasta. Seus dois testemunhos se encontram no
tempo religiosa e política. Ela consiste na famosa técnica do meio da peça. É o nível dosreis, dos soberanos. Finalmente, a
“cúuporov, o símbolo grego. Um instrumento de poder, de última dupla de testemunhos que intervém, a última metade
Ilexercício de poder que permite a alguém que detém um segredo que vem completar a história não é constituída nem pelos
lou um poder quebrar em duas partes um objeto qualquer, de deuses nem pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais
“cerâmicaetc., guardar umadas partes e confiar a outra parte a humilde escravo de Políbio e principalmente o mais escondido
alguém que deve levar a mensagem ou atestar sua autenticida- dos pastores da floresta do Citerão vão enunciar a verdade
de. É pelo ajustamento destas duas metades que se poderá última e trazer o último testemunho.
reconhecera autenticidade da mensagem, isto é, a continuida- Temos assim um resultado curioso. O que havia sido
de do poderquese exerce. O poder se manifesta, completa seu dito em termosde profecia no começo da peçavaiser redito sob
ciclo, mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos forma de testemunhopelos dois pastores. E assim comoa peça
fragmentos, separados unsdos outros, de um mesmo conjunto, passa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado da
de um único objeto, cuja configuraçãogeral é a forma manifesta verdade ou a forma na qual a verdade se enuncia mudam
do poder. A história de Édipo é a fragmentação desta peça de igualmente. Quando o deus e o adivinho falam, a verdade se
que a posse integral, reunificada, autentifica a detenção do formula em forma de prescrição e profecia, na forma de um
poder e as ordens dadas porele. As mensagens, os mensageiros olhareternoe todo poderoso do deus Sol, na formado olhar do
queele envia e que devem retornar autentificarãosualigação ao adivinho que, apesar de cego, vê o passado, o presente e o
poder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peça futuro. É esta espécie de olhar mágico-religioso que faz brilhar
e poder ajustá-lo aos outros fragmentos. Esta é a técnica no começo da peça uma verdade em que Édipo e o coro não
jurídica, política e religiosa do que os gregos chamam ovuBoÃov querem acreditar. Nonível mais baixo encontramos também o
— o símbolo. olhar. Pois, se os dois escravos podem testemunhar é porque
A história de Édipo,tal comoé representada natragédia viram. Um viu Jocasta lhe entregar uma criança para que a
de Sófocles, obedece a este oúLiBoAov: não uma formaretórica levasse paraa floresta e lá a abandonasse. O outro viu a criança
mas religiosa, política, quase mágica do exercício do poder. na floresta, viu seu companheiro escravo lhe entregar esta
Se observarmos, agora, não a forma deste mecanismo ou criançae se lembra detê-la levado ao palácio de Políbio. Trata-
o jogo de metades quese fragmentam e terminam por seajustar, se aqui ainda do olhar. Não mais do grande olhar eterno,
mas o efeito que é produzido poresses ajustamentos reciprocos, iluminador, ofuscante, fulgurante do deuse de seu adivinho,
veremos uma série de coisas. Inicialmente uma espécie de mas o de pessoas que viram e se lembram deter visto com seus
deslocamento à medida que as metadesse ajustam. O primeiro olhos humanos. É o olhar do testemunho. É a este olhar que
jogo de metades que se ajustam é o do rei Apolo e do divino Homero não fazia referência ao falar do conflito e do litígio
adivinho Tirésias — o nível da profecia ou dos deuses. Em entre Antíloco e Menelau.

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Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo é ter esquecido os próprios gestos ao mataro rei no entroncamen-
uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um to dos três caminhos. Édipo, homem do esquecimento, ho-
discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso, de
mem do não-saber, homem do inconsciente para Freud.
ordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas do
Conhecemos todos os jogos de palavras que foram feitos com
testemunho. É ainda uma certa maneira de deslocaro brilho ou o nome de Édipo. Mas, não esqueçamos que estes jogos são
a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar, de
múltiplos e que mesmo os gregosjá haviam notado que em
certa forma empírico e quotidiano, dos pastores. Há uma Oibixovç, temos a palavra oida que significa ao mesmo tempo
correspondência entre os pastores e os deuses. Eles dizem a ter visto e saber. Gostaria de mostrar que Édipo, dentro desse
mesma coisa, eles vêem a mesma coisa, mas não na mesma mecanismo do cúuBoAov, de metades que se comunicam,jogo
linguagem nem com os mesmos olhos. Em toda a tragédia de respostas entre os pastores e os deuses, não é aquele que não
vemos esta mesma verdade que se apresenta e se formula de sabia, mas, ao contrário, é aquele que sabia demais. Aquele que
duas maneiras diferentes, com outras palavras, em outro dis- unia seu saber e seu poder de uma certa maneira condenável e
curso, com outro olhar. Masesses olhares se correspondem um que a história de Édipo devia expulsar definitivamente da
ao outro. Os pastores respondem exatamente aos deuses e história.
podemos dizer até que os pastores os simbolizam. O que dizem O título mesmo datragédia de Sófocles é interessante:
os pastoresé, no fundo, mas de outra forma,o que os deuses já Édipo é Edipo-Rei, Oibixovç tTópavvoç. É difícil traduzir esta
haviam dito. palavra tópovvos. À tradução não dá conta dosignificado exato
Temosaí um dos traços mais fundamentais da tragédia da palavra. Édipo é o homem do poder, homem que exerce um
de Édipo: a comunicação entre os pastorese os deuses, entre a certo poder. E é característico que o título da peça de Sófocles
lembrança dos homense as profecias divinas. Esta correspon- não seja Édipo, o incestuoso, nem Édipo, o assassino deseupai, mas
dência define a tragédia e estabelece um mundosimbólico em Édipo-Rei. Quesignificaa realeza de Édipo?
que a lembrança e o discurso dos homens são como que uma Podemos notar a importância da temática do poder no
imagem empírica da grande profecia dos deuses. decorrer de toda a peça. Durante toda a peça o que está em
Eis um dos pontos sobre os quais devemos insistir para questão é essencialmente o poder de Édipoe é isso que faz com
compreender este mecanismo da progressão da verdade em queele se sinta ameaçado.
Édipo. De um lado estão os deuses, do outro os pastores. Mas Édipo, em toda tragédia, nuncadirá que é inocente, que
entre os dois há o nível dos reis, ou melhor, o nível de Edipo. talvez tenhafeito algo masquefoi contra a vontade, que quando
Qualé seu nível de saber, que significa seu olhar? matou aquele homem, não sabia que se tratava de Laio. Essa
A este respeito é preciso retificar algumas coisas. Habi- defesa ao nível da inocência e da inconsciência nunca é feita
tualmente se diz, quando se analisa a peça, que Édipo é aquele pelo personagem de Sófocles em Édipo-Rei.
que nadasabia, que era cego, que tinha os olhos vendados ea Somente em Edipo em Colona se verá um Édipo cegoe
memória bloqueada, pois nunca havia mencionado e parecia miserável gemer ao longo da peça dizendo: “Eu nada podia, os

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deuses me pegaram em uma armadilha queeu desconhecia”. acreditar que eu sou filho de um escravo; mas mesmo que eu
seja filho de um escravo, isto não me impedirá de exercer o
Em Edipo-Rei ele não se defende de maneira algumaao nível de
sua inocência. Seu problemaé apenas o poder. Poderá guardar poder; eu sou um rei como os outros”. Ainda aqui é do poder
que se trata. É como chefe de justiça, como soberano, que
o poder? É este poder que está em jogo do começo ao fim da
peça. Édipo, nesse momento, convocará a última testemunha: o
Na primeira cena, é na condição de soberano que os escravo do Citerão. É como soberanoqueele, ameaçando-o de
habitantes de Tebas recorrem a Édipocontraa peste. “Tu tens tortura, lhe arrancará a verdade. E quando a verdade é arranca-
o poder, deves curar-nos da peste”. E ele responde dizendo: da, quando se sabe quem era Édipoe o quefez — assassinato
“Tenhograndeinteresse em curá-los da peste, porqueesta peste do pai, incesto com a mãe — que diz o povo de Tebas? “Nós
que vos atinge, meatinge também em minhasoberania e minha te chamávamos nosso rei”. Isto significando que o povo de
realeza”. É interessado em manter a própria realeza que Édipo Tebas, ao mesmo tempo em que reconhece em Édipo quem foi
quer buscar a solução do problema. E quando começa a se sentir seu rei, pelo uso do imperfeito — chamávamos — o declara
ameaçado pelas respostas que surgem em sua volta, quando o agora destituído da realeza.
oráculo o designae o adivinho diz de maneira mais claraainda O que está em questão é a queda do poder de Édipo. A
que é ele o culpado, sem responder em termos de inocência, prova é que, quando Édipo perde o poder para Creonte, as
Édipo diz a Tirésias: “Tu queres meu poder; tu armaste um últimas réplicas da peça ainda giram em torno do poder. A
complô contra mim, para meprivar de meu poder”. última palavra dirigida a Édipo antes que o levem para o
Ele nãose assusta com a idéia de que poderia ter matado interior do palácio é pronunciadapelo novo rei Creonte: “Não
o pai ou o rei. O que o assusta é perder o próprio poder. procures mais ser o senhor”. À palavra empregadaé xporeiv. O
No momento da grande disputa com Creonte,ele lhe que querdizer que Édipo não deve mais comandar. E Creonte
diz: “Trouxeste um oráculo de Delfos, mas esse oráculo tu o acrescenta ainda, àxpátnoas, uma palavra que quer dizer
falseaste, porque,filho de Laio,tu reinvindicas um poder que “depois de ter chegado ao cume” mas que é também um jogo
mefoi dado”. Ainda aqui Édipose sente ameaçado por Creonte de palavras em que o “ox” tem um sentido privativo: “não
ao nível do poder e não ao nível de sua inocência ou culpabili- possuindo mais o poder”. àxpátnoaç significa ao mesmo
dade. O queestá em questãoem todosestes defrontamentos do tempo: “tu que subiste até o cume e que agora não tens mais o
começo da peça é o poder. poder”.
E quando,no fim da peça, a verdadevai ser descoberta, Depois disso o povointervém e saúda Édipo pela última
quandoo escravo de Corinto diz a Édipo: “Não te inquietes, vez dizendo: “Tu que eras Kpómotoç”, isto é, “tu queestavas no
cume do poder”. Ora, a primeira saudação do povo de Tebas
não és o filho de Políbio”, Édipo não pensará que não sendo
filho de Políbio, poderá ser filho de um outroe talvez de Laio. a Édipo era: “ xparóvov Oidixovç”, isto é, “Édipo todo
Ele diz: “Disse isso para me envergonhar, para fazer o povo poderoso!” Entre essas duas saudações do povo se desenvolveu
toda a tragédia. A tragédia do poder e da detenção do poder

42, 43
político. Mas o queé este poder de Édipo? Como se caracteriza? aqueles que não decifravam seus enigmas. Ele tinha curado a
cidade, lhe havia permitido, como diz, que ela se reerguesse,
Suas características estão presentes no pensamento, na história
e na filosofia grega da época. Édipo é chamado de Bacebs que ela respirasse no momento em que havia perdido o fôlego.
Para designar esta cura da cidade, Édipo emprega a expressão
úvoÊ,o primeiro dos homens, aquele que tem a xpátera, aquele
que detém o poder e mesmode tópevvoc. Tirano não deveaqui ópowcav, “reerguer”; àvópawcav tóMv “reerguer a cidade”.
ser entendido em seusentido estrito, tanto que Políbio, Laio e Ora,é esta expressão que encontramosno texto de Sólon. Sólon
todos os outros foram chamados também de Tópavvos. que não é bem um tirano, maso legislador, se vangloriava de ter
Um certo número de características deste poder aparece reerguido a cidade ateniense no fim do século VI. Esta é
natragédia de Édipo. Édipo tem o poder. Maso obteve através também a característica de todos os tiranos que surgiram na
de uma série de histórias, de aventuras, que fizeram dele Grécia durante os séculos VII e VI. Eles não somente conhece-
inicialmente o homem mais miserável — criança expulsa, ram osaltos e baixos da sorte, mas também desempenharam nas
perdida, viajante ertante — e, em seguida, o homem mais cidades o papel de reerguê-la através de uma distribuição
poderoso. Ele conheceu um destino desigual. Conheceu a econômica justa, como Cípselo em Corinto ou através de leis
miséria e a glória. Esteve no ponto mais alto, quando se justas como Sólon em Atenas. Eis, portanto, duas característi-
acreditava que fossefilho de Políbio e esteve no ponto mais cas fundamentais do tirano grego tal como nos mostram os
baixo, quandose tornou um personagem errante de cidade em textos da época de Sófocles ou mesmo anteriores.
cidade. Mais tarde, de novo,ele atingiu o cume. “Os anos que Encontramos também em Édipo um série de caracterís-
cresceram comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exalta- ticas não mais positivas, mas negativas, da tirania. Várias coisas
ram”. são reprovadas em Édipo em suas discussões com Tirésias e
Esta alternância do destino é um traço característico de Creontee até mesmo com o povo. Creonte, por exemplo,lhe
dois tipos de personagens. O personagem lendário do herói diz: “Estás errado; tu te identificas com esta cidade, cidade em
épico que perdeu sua cidadania e sua pátria e que, depois deum que não nasceste, imaginas que és esta cidade e que ela te
certo número de provas, reencontra a glória e o personagem pertence; eu também faço parte desta cidade,ela não é somente
histórico dotirano grego do fim do VI e início do V séculos. Õ tua”. Ora, se consideramos as histórias que Heródoto, por
tirano era aquele que depois de ter conhecido várias aventuras exemplo, contava sobre os velhostiranos gregos, em particular
e chegado ao auge do poderestava sempre ameaçado de perdê- sobre Cípselo de Corinto, vemos que se trata de alguém que
lo. A irregularidade do destino é característica do personagem julgava possuir a cidade. Cípselo dizia que Zeus lhe havia dado
do tirano tal como é descrito nos textos gregos desta época. a cidade e queele a havia devolvido aos cidadãos. Encontramos
Édipo é aquele que, após ter conhecido a miséria, conhe- exatamente a mesmocoisa natragédia de Sófocles.
ceu a glória, aquele quese tornourei após ter sido herói. Mas, Do mesmo modo, Édipo é aquele que não dá importân-
se ele se tornou rei, é porque tinha curado a cidade de Tebas cia àsleis e que as substitui porsuas vontades e suas ordens. Ele
matando a Divina Cantora, a Cadela que devorava todos. o diz claramente. Quando Creonte o reprovava por querer

44 45
exilá-lo dizendo quesua decisão nãoera justa, Édipo responde: o enigmadaesfinge, não me dirigi a ninguém”, diz ele ao povo
“Pouco me importa queseja justo ou não; é preciso obedecer e ao adivinho. Ele diz ao povo: “Não me pudeste ajudar de
assim mesmo”. Sua vontadeserá a lei da cidade. É por isto que maneira nenhumaa resolver o enigmada esfinge; não podias
no momento em que se inicia sua queda o coro do povo fazer nada contra a Divina Cantora”. E diz a Tirésias: “Mas que
reprovará Édipo porter desprezado a tan, a justiça. É preciso, adivinhoés tu, que nem foste capaz de libertar Tebas daesfinge?
portanto,reconhecer em Édipo um personagem historicamen- Enquanto todos estavam mergulhados no terror eu libertei
te bem definido, assinalado, catalogado, caracterizado pelo Tebas sozinho; não aprendi nada com ninguém; não meservi
pensamento grego do século V: o tirano. de nenhum mensageiro, vim pessoalmente”. Encontraré algo
Este personagem dotirano não é só caracterizado pelo que se faz sozinho. Encontrar é também o quese faz quando se
poder como também por um certo tipo desaber. O tirano grego abrem os olhos. E Édipo é o homem quenãocessade dizer: “Eu
não era simplesmente o que tomava o poder. Era aquele que inquiri, e como ninguém foi capaz de medar informações,abri
tomava o poder porque detinha oufazia valero fato de deter um os olhos e os ouvidos; eu vi”. O verbo oida, que significa ao
certo saber superior em eficácia ao dos outros. Este é precisa- mesmo tempo saber e ver, é frequentemente utilizado por
menteo caso de Édipo. Édipo é aquele que conseguiuresolver Édipo. OiBtxovç é aquele que é capaz destaatividade de ver e
por seu pensamento, porseu saber, o famoso enigmadaesfinge. saber. Ele é o homem do ver, o homem doolhare o seráaté o
E assim como Sólon podedar,efetivamente, a Atenas leis justas, fim.
assim como Sólon pode reerguer a cidade porque era coçóç, Se Édipo cai em umaarmadilhaé precisamente porque,
sábio, assim também Édipo poderesolver o enigmadaesfinge em sua vontade de encontrar, ele prolongou o testemunho,a
porque era coçóç. lembrança, a procura das pessoas que viram até o momento em
O que é este saber de Édipo? Como se caracteriza? O quefoi desenterrado do fundo do Citerão o escravo que havia
saber de Édipo está caracterizado no decorrer de toda a peça. assistido a tudo e que sabia a verdade. O saber de Édipoé esta
Édipo diz a todo momento quevenceu osoutros, que resolveu espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempoeste saber
o enigmadaesfinge, que curoua cidade por meio do que chama solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se
de yum, seu conhecimento ou sua téxvn. Outras vezes, para apoiar no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus
designar seu modo de saber,ele se diz aquele que encontrou, próprios olhos. Saber autocrático do tirano que, por si só, pode
núpnxa. Esta éa palavra que Édipo mais frequentementeutiliza e é capaz de governar a cidade. A metáfora do que governa, do
para designar o que fez outrora e está tentandofazer agora. Se quepilota, é frequentemente utilizada por Édipo para designar
Édipo resolveu o enigma daesfinge é porque encontrou. Se o queele faz. Édipoé o piloto, aquele quena proa do navio abre
quiser salvar de novo Tebas, é preciso novamente encontrar, os olhospara ver. E é precisamente, porque abreos olhossobre
evptoxerv. O que significa evptoxerv? Estaatividade de encon- o que está acontecendo que encontrao acidente, o inesperado,
trar é caracterizada inicialmente na peça como algo que se faz o destino, a tóxn. Porque foi este homem do olhar autocrático,
sozinho. Édipoinsiste nisso incessantemente. “Quandoresolvi aberto sobre as coisas, Édipo caiu na armadilha.

46 47
O que gostaria de mostrar é que, no fundo, Édipo inteligível. Mas o importante é o quevai ser fundamentalmente
representa na peça de Sófocles um certo tipo do que eu desvalorizado, desqualificado, tanto na tragédia de Sófocles
chamaria saber-e-poder, poder-e-saber. É porqueele exerce um quanto na República de Platão: é o tema, ou melhor, o perso-
certo poder tirânico e solitário, desviado tanto do oráculo dos nagem,a forma de um saber político ao mesmo tempoprivile-
deuses que ele não quer ouvir, quanto do que diz e quer o povo, giadoe exclusivo. Quem é visado pela tragédia de Sófocles ou
que, em sua sede de podere saber, em sua sede de governar pela filosofia de Platão, quando situadas em uma dimensão
descobrindo por si só, ele encontra, em última instância, os histórica, quem é visado portrás de Édipo coçóç,Édipoo sábio,
testemunhos daqueles que viram. o tirano que sabe, o homem da téxvn, da ydum, é o famoso
Vemosassim comoo jogo das metades pôde funcionare sofista, profissional do poder político e do saber, que existia
como Édipoé, no fim da peça, um personagem supérfluo.Isto efetivamente na sociedade ateniense da época de Sófocles. Mas
na medida em que este sabertirânico, este saber de quem quer portrás dele quem é fundamentalmente visado porPlatão e por
ver com seus próprios olhos sem escutar nem os deusésnem os Sófocles é uma outra categoria de personagem do queo sofista
homens, permite o ajustamento exato do que haviam dito os era como que o pequeno representante, continuação e fim
deuses e do que sabia o povo. Édipo, sem querer, consegue histórico: o personagem dotirano. Este, nosséculos VI e VII,
estabelecer a união entre a profecia de deus e a memória dos era o homem do podere do saber, aquele que dominavatanto
homens. O saber edipiano, o excesso de poder, oexcesso de pelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía. Final-
saber foram tais queele se tornou inútil; o círculo se fechou mente, sem que esteja presente no texto de Platão ou no de
sobre ele, ou melhor, os dois fragmentos datéssera se ajustaram Sófocles, quem é visadopor trás de tudo é o grande personagem
e Édipo, em seu podersolitário, se tornou inútil. Nos dois histórico que existiu efetivamente, ainda que tomado em um
fragmentosajustados a imagem de Édipo se tornou monstruo- contexto lendário: o famoso rei assírio.
sa. Édipo podia demais por seu podertirânico, sabia demais em Nas sociedades indo-européias do leste mediterrâneo, no
seu saber solitário. Neste excesso,ele era ainda o esposo de sua final do segundoe início do primeiro milênios, o poderpolítico
mãe e irmão de seus filhos. Édipo é o homem do excesso, era sempre detentor de um certotipo de saber. O rei e os que
homem que tem tudo demais, em seu poder, em seu saber, em o cercavam,pelo fato de deterem o poder, detinham um saber
sua família, em sua sexualidade. Édipo, homem duplo, que que não podia e não devia ser comunicado aos outros grupos
sobrava em relação à transparência simbólica do que sabiam os sociais. Saber e poder eram exatamente correspondentes,
pastores e haviam dito os deuses. correlativos, superpostos. Não podia haver saber sem poder. E
A tragédia de Édipo está bem próxima,portanto, do que não podia haver poder político sem a detenção de um certo
será, alguns anos depois a filosofia platônica. Para Platão, na saber especial.
verdade, o saber dos escravos, memória empírica do quefoi
visto, será desvalorizado em proveito de uma memória mais | É esta forma de poder-saber, que Dumézil, em seus
estudossobreas três funções, isolou, ao mostrar quea primeira
profunda, essencial, que é a memória do que foi visto no céu função, a do poder político,era a de um poderpolítico mágico

48 49
t

e religioso. O saber dos deuses, o saber da ação que se pode quando se está em contacto com os deuses ou nos recordamos
exercer sobre os deuses ou sobre nós, todo esse saber mágico- das coisas, quando olhamos o grandesol eterno ou abrimos os
religioso está presente na função política. olhos para o que se passou. Com Platão, se inicia um grande
O que aconteceu na origem da sociedade grega, na mito ocidental: o de que há antinomiaentre saber e poder. Se
origem da idade grega do século V, na origem de nossa há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se
civilização, foi o desmantelamento desta grande unidade de um encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais
poder político que seria ao mesmo tempo um saber. Foi o haver poder político.
desmantelamento desta unidade de um poder mágico-religioso Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que
que existia nos grandes impériosassírios, queos tiranosgregos, Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos
impregnadosdecivilização oriental, tentaram reabilitar em seu - já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento,
proveito e que os sofistas dos séculos V e VI ainda utilizaram o que está em jogo é umaluta de poder. O poder político não
como podiam, em forma de lições retribuídas em dinheiro. está ausente do saber, ele é tramado com o saber.
Assistimosa essa longa decomposição durante os cinco ouseis
séculos da Grécia arcaica. E quando a Grécia clássica aparece —
Sófocles representa a data inicial, o ponto de eclosão — o que
deve desaparecer para que esta sociedade exista é a união do
podere do saber. A partir deste momento o homem do poder
será o homem da ignorância. Finalmente, o que aconteceu a
Édipo foi que, por saber demais, nada sabia. A partir desse
momento, Édipo vai funcionar como o homem dopoder, cego,
que não sabia e não sabia porque poderia demais.
Assim, enquanto o poderé taxado de ignorância, incons-
ciência, esquecimento, obscuridade, haverá por um lado, o
adivinho e o filósofo em comunicação com a verdade, verdades
eternas, dos deuses ou do espírito e, por outro lado, o povoque,
sem nada deter do poder, possui em si a lembrança ou pode
ainda dar testemunho da verdade. Assim, para além de um
poder quese tornou monumentalmente cego comoÉdipo, há
os pastores, que se lembram e os adivinhos que dizem a verdade.
O Ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que
a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder
político é cego, de que o verdadeiro saber é o que se possui

50 51
NI

Na conferência anterior fiz referência a duas formas ou


tipos de regulamentojudiciário, de litígio, de contestação ou de
disputa presentes nacivilização grega. A primeira forma, bas-
tante arcaica, é encontrada em Homero. Dois guerreiros se
afrontavam para saber quem estava errado e quem estavacerto,
quem havia violado direito do outro. À tarefa de resolver esta
questão cabia a uma disputa regulamentada, um desafio entre
os dois guerreiros. Um lançava ao outro o seguinte desafio: “És
capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu
afirmo?” Em um procedimento comoeste não há juiz, senten-
ça, verdade, inquérito nem testemunhopara saber quem disse
a verdade. Confia-se o encargo de decidir não quem disse a
verdade, mas quem tem razão, à luta, ao desafio, ao risco que
cada um vai correr.
A segundaformaé a que se desenrola ao longo de Édipo-
Rei. Para resolver um problema que é também, em um certo
sentido, um problema de contestação, um litígio criminal —
quem matou o rei Laio — aparece um personagem novo em
relação ao velho procedimento de Homero: o pastor. No fundo
de sua cabana, embora sendo um homem sem importância, um
escravo, o pastor viu e, porque detém em suas mãos esse
pequeno fragmento de lembrança, porque traz em seu discurso

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o testemunho do queviu pode contestar e abater o orgulho do naturalistas, os botânicos, os geógrafos, os viajantes gregos vão
rei ou a presunção dotirano. À testemunha, a humilde testemu- desenvolver e Aristóteles vai totalizar e tornar enciclopédico.
nha, por meio unicamente do jogo da verdade que ela viu e Houve na Grécia, portanto, uma espécie de grande
enuncia, pode, sozinha vencer os mais poderosos. Edipo-Reié revolução que, através de uma série de lutas e contestações
uma espécie de resumo da história do direito grego. Muitas políticas, resultou na elaboração de uma determinada forma de
peças de Sófocles, como Antígona e Electra, são umaespécie de descoberta judiciária, jurídica, da verdade. Esta constitui a
ritualização teatral da história do direito. Esta dramatização da matriz, o modelo a partir do qual umasérie de outros saberes
história do direito grego nos apresenta um resumo de umadas — filosóficos, retóricos e empíricos — puderam se desenvolver
grandes conquistas da democracia ateniense: a história do e caracterizar o pensamento grego.
processo através do qual o povo se apoderou do direito de Muito curiosamente,a historia do nascimento do inqué-
julgar, do direito de dizer a verdade, de opora verdade aos seus rito, permaneceu esquecida e se perdeu, tendo sido retomada,
próprios senhores, de julgar aqueles que os governam. sob outras formas, vários séculos mais tarde, na Idade Média.
Esta grande conquista da democracia grega, este direito Na Idade Média européia, assiste-se a uma espécie de
de testemunhar, de opor a verdade ao poder se constituiu em segundo nascimento do inquérito, mais obscuro e lento, mas
um longo processo nascido e instaurado de forma definitiva, que obteve um sucesso bem mais efetivo que o primeiro. O
em Atenas, ao longo do século V. Este direito de opor uma método grego do inquérito havia estacionado, não chegara à
verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma fundação de um conhecimentoracional capaz de se desenvolver
série de grandes formas culturais características da sociedade indefinidamente. Em compensação, o inquérito que nasce na
grega. Idade Média terá dimensões extraordinárias. Seu destino será
Primeiramente, a elaboração do que se poderia chamar praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura dita
formas racionais da prova e da demonstração: como produzir européia ou ocidental.
a verdade, em que condições, que formas observar, queregras O velho Direito Germânico, que regulamentavaoslití-
aplicar. São elas, a Filosofia, os sistemas racionais, os sistemas gios entre os indivíduos, nas sociedade germânicas no momen-
científicos. Em segundo lugar e mantendo umarelação com as to em que estas entram em contato com o Império Romano,
formas anteriores desenvolve-se uma arte de persuadir, de era, em certo sentido, muito próximo, em algumas de suas
convenceras pessoas da verdade do quese diz, de obter a vitória formas, do Direito Grego Arcaico. Era um direito no qual o
para a verdade ou,ainda, pela verdade. Tem-se aqui o problema sistema do inquérito não existia, pois os litígios entre os
da retórica grega. Em terceiro lugar há o desenvolvimento de indivíduos eram regulamentados pelo jogo da prova.
um novotipo de conhecimento: conhecimento por testemu- Pode-se caracterizar, esquematicamente, o antigo Direi-
nho, por lembrança, por inquérito. Saber de inquérito que os to Germânico da época em que Tácito começa a analisar essa
historiadores, como Heródoto, pouco antes de Sófocles, os curiosa civilização que se estende até as portas do Império, do

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seguinte modo. Em primeiro lugar não há ação pública,isto é, regulamentadade fazer a guerra. Por exemplo, quando alguém
não há ninguém — representando a sociedade, o grupo, o é morto, um de seus parentes próximos pode exercer a prática
poder, ou quem detém o poder — encarregado de fazer judiciária da vingança, não significando isso renunciar a matar
acusações contra os indivíduos. Para haver um processo de alguém, em princípio, o assassino. Entrar no domínio do
ordem penal era necessário que tivesse havido dano, que direito significa mataro assassino, mas matá-lo segundocertas
alguém ao menos pretendesse ter sofrido dano ouse apresen- regras, certas formas. Se o assassino cometeu o crime desta ou
tasse como vítima e que esta pretensa vítima designasse seu daquela maneira, será preciso matá-lo cortando-o em pedaços,
adversário, a vítima podendoser a pessoa diretamente ofendida ou cortando-lhe a cabeça e colocando-a em uma estacá na
ou alguém que pertencesse a sua família e assumisse a causa do entrada de sua casa. Esses atosvão ritualizar o gesto de vingança
parente. O quecaracterizava uma ação penal era sempre uma e caracterizá-lo como vingança judiciária. O direito é, portan-
espécie de duelo, de oposição entre indivíduos, entre famílias, to, a formaritual da guerra.
ou grupos. Não haviaintervenção de nenhum representante da A terceira condição é que, se é verdade que não há
autoridade. Tratava-se de uma reclamaçãofeita por um indiví- oposição entre direito e guerra, não é menos verdade que é
duo a outro, só havendo intervenção destes dois personagens: possível chegar a um acordo,isto é, interromperessas hostili-
aquele que se defende e aquele que acusa. Conhecemosapenas dades regulamentadas. O antigo Direito Germânico oferece
dois casos bastante curiosos em que havia umaespécie de ação sempre a possibilidade, ao longo dessa série de vinganças
pública:a traição e a homossexualidade. A comunidade então recíprocas rituais, de se chegar a uma acordo, a umatransação.
intervinha considerando-se lesada e exigia, coletivamente, re- Pode-se interrompera série de vinganças com um pacto. Nesse
paração a um indivíduo. Portanto, a primeira condição para momento,os dois adversários recorrem a um árbitro que, de
que houvesse ação penal no velho direito germânico era a acordo com eles e com seu consentimento mútuo,vai estabe-
existência de dois personagens e nunca de três. lecer uma soma em dinheiro que constitui o resgate. Não o
A segunda condição era que, uma vez introduzida a ação resgate da falta, pois não há falta, mas unicamente dano e
penal, uma vez que um indivíduo se declarasse vítima e vingança. Nesse procedimento do Direito Germânico um dos
reclamasse reparação a um outro,a liquidação judiciária devia dois adversários resgata o direito de ter a paz, de escapar à
se fazer como uma espécie de continuação da luta entre os possível vingança de seu adversário. Ele resgata sua própria vida
indivíduos. Uma espécie de guerra particular, individual se e não o sangue que derramou, pondo assim fim à guerra. À
desenvolve e o procedimento penalserá apenas, a ritualização interrupção da guerraritual é o terceiro ato ou o ato terminal
dessa luta entre os indivíduos. O Direito Germânico não opõe do dramajudiciário no velho Direito Germânico.
a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário, O sistema que regulamenta os conflitos e litígios nas
supõe que o direito não seja diferente de umaforma singulare sociedades germânicas daquela épocaé, portanto, inteiramente
regulamentadade conduzir uma guerra entre os indivíduose de governado pela luta e pela transação; é uma prova de força que
encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira pode terminar por umatransação econômica. Trata-se de um

56 57
procedimento que não permite a intervenção de um terceiro provas aceitas por ambose a que os dois eram submetidos. Esse
indivíduo que se coloqueentre os dois como elemento neutro, sistema era uma maneira de provar não a verdade, mas a força,
procurando a verdade, tentando saber qual dos dois disse a o peso, a importância de quem dizia.
verdade; um procedimento de inquérito, uma pesquisa da Havia, em primeiro lugar, provas sociais, provas da
verdade nuncaintervém em um sistema desse tipo. Foi desta importância social de um indivíduo. No velho direito da
forma que o velho Direito Germânico se constituiu antes da Borgonha do século XI, quando alguém era acusado de assas-
invasão do Império Romano. sinato podia perfeitamenteestabelecer sua inocência reunindo
Não me deterei na longa série de peripécias que fez com à sua volta doze testemunhas que juravam nãoter ele cometido
que esse Direito Germânico tivesse entrado em rivalidade, em o assassinato. O juramento não se fundava, por exemplo, no
concorrência, às vezes em cumplicidade com o Direito Roma- fato de terem visto, com vida,a pretensa vítima, ou em um álibi
no quereinava nosterritórios ocupados pelo Império Romano. para o pretenso assassino. Para prestar juramento, testemunhar
Entre os séculos V e X de nossa era, houve uma série de que um indivíduo não tinha matadoera necessário ser parente
penetrações, peripécias e conflitos entre esses dois sistemas de do acusado. Era preciso ter com ele relações sociais de parentes-
direito. Cada vez que, sobre as ruínas do Império Romano, um co que garantiam não sua inocência, mas sua importância
Estado começaa se esboçar, cada vez que umaestruturaestatal social. Isto mostrava a solidariedade que um determinado
começa a nascer, então o Direito Romano, velho direito de indivíduo poderia obter, seu peso, sua influência, a importân-
estado, se revitaliza. É assim que, nos reinos merovíngios, cia do grupo a que pertenciae das pessoas prontas a apoiá-lo em
sobretudo na época do Império Carolíngio, o Direito Romano uma batalha ou em um conflito. A provada inocência, a prova
sobrepujou, de certa forma, o Direito Germânico. Por outro de não se ter cometido o ato em questão não era, de forma
lado, cada vez que há dissolução desses embriões, desses linea- alguma, o testemunho.
mentos de estados, o velho Direito Germânico triunfa e o Havia em segundolugar provas de tipo verbal. Quando
Direito Romano cai por vários séculos no esquecimento, só um indivíduo era acusado de alguma coisa — roubo ou
reaparecendo lentamente no fim do século XII e no curso do assassinato — devia responder a esta acusação com um certo
século XIII. Assim, o direito feudal é essencialmente de tipo número de fórmulas, garantindo que não havia cometido
germânico. Ele não apresenta nenhum dos elementos dos assassinato ou roubo. Ao pronunciar estas fórmulas podia-se
procedimentos de inquérito, de estabelecimento da verdade fracassar ou ter sucesso. Em alguns casos pronunciava-se a
das sociedades gregas ou do Império Romano. fórmula e perdia-se. Não porhaver dito umainverdade ou por
No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era se provar que havia mentido, mas por não ter pronunciado a
regulamentado pelo sistema da prova (épreuve). Quando um fórmula como devia. Um erro de gramática, uma troca de
indivíduo se apresentava como portador de uma reivindicação, palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se
de uma contestação, acusando um outro de ter matado ou pretendia provar. A confirmação de que ao nível da provasó se
roubado, o litígio entre os dois era resolvido por umasérie de tratava de um jogo verbal, é que, no caso de um menor, de uma

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mulher ou de um padre, o acusado podia ser substituído por de acordo,lutar, obedecendo a determinadas regras (duração
outra pessoa. Essa outra pessoa, que mais tarde se tornaria na da luta, tipo de armas), diante de uma assistência presente
história do direito o advogado, era quem devia pronunciar as apenas para assegurar a regularidade do que acontecia. Quem
fórmulas no lugar do acusado.Se ele se enganava ao pronunciá- ganhasse a luta ganhava o processo, sem que lhe fosse dada a
las, aquele em nome de quem falava perdia o processo. possibilidade de dizer a verdade, ou antes, sem que lhe fosse
Havia, em terceiro lugar, as velhas provas mágico-reli- pedido que provasse a verdade de sua pretensão.
giosas do juramento. Pedia-se ao acusado que prestasse jura- No sistema da prova judiciária feudal trata-se não da
mento e, caso não ousasse ou hesitasse, perdia o processo. pesquisa da verdade, mas de uma espécie de jogo de estrutura
Havia, finalmente, as famosas provas corporais,físicas, binária. O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela. Se
chamadas ordálios, que consistiam em submeter um pessoa a renuncia, se não quer tentar a prova, perde o processo de
uma espécie de jogo, de luta com seu próprio corpo, para antemão, Havendo a prova, vence oufracassa. Não há outra
constatar se venceria ou fracassaria. Por exemplo, na época do possibilidade. A forma binária é a primeira característica da
Império Carolíngio, havia uma prova célebre imposta a quem prova. .
fosse acusado de assassinato, em certas regiões do norte da A segundacaracterística é que a prova termina por uma
França. O acusado devia andar sobre ferro em brasae, dois dias vitória ou por um fracasso. Há sempre alguém que ganha e
depois, se ainda tivesse cicatrizes, perdia o processo. Havia alguém que perde; o mais forte e o mais fraco; um desfecho
ainda outras provas como o ordálio da água, que consistia em favorável ou desfavorável. Em nenhum momento aparece algo
amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoae atirá-la comoa sentençatal como acontecerá a partir do fim do século
na água. Se ela não se afogasse, perdia o processo, porque a XII e início do século XIII. A sentença consiste na enunciação,
própria água nãoa recebia bem e,se ela se afogasse, teria ganho por um terceiro, do seguinte: certa pessoa tendo dito a verdade
o processo visto que a água não teria rejeitado. Todos estes tem razão, uma outra tendo dito uma mentira não tem razão.
afrontamentosdo indivíduo ou de seu corpo com os elementos A sentença, portanto, não existe; a separação da verdade e do
naturais são um transposição simbólica, cuja semântica deveria erro entre os indivíduos não desempenha nenhum papel; existe
ser estudada, da própria luta dos indivíduos entre si. No fundo, simplesmentevitória ou fracasso.
trata-se sempre de umabatalha,trata-se sempre de saber quem A terceira característica é que esta prova é de certa
é o mais forte. No velho Direito Germânico, o processo é maneira automática. Não é necessário haver a presença de um
apenas a continuação regulamentada, ritualizada da guerra. terceiro personagem para distinguir os dois adversários. É o
Poderia ter dado exemplos mais convincentes, tais Como equilíbrio das forças, o jogo, a sorte, o vigor,a resistênciafísica,
as lutas entre dois adversários ao longo de um processo,lutas a agilidade intelectual, que vão distinguir os indivíduos segun-
físicas, os famosos Julgamentos de Deus. Quando dois indiví- do um mecanismo que se desenvolve automaticamente. A
duosse afrontavam por causa da propriedade de um bem, ou autoridade só intervém como testemunha da regularidade do
por causa de um assassinato, era sempre possível, se estivessem procedimento. No momento em queessas provas judiciárias se

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desenvolvem,está presente alguém que tem o nome de juiz — possibilidade de saber, cujo destino vai ser capital no mundo
o soberano político ou alguém designado com o consentimento ocidental. Esta modalidade de saberé o inquérito queapareceu
mútuo dos dois adversários — simplesmente para constatar pela primeira vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda
quea luta se desenvolveu regularmente. O juiz não testemunha do Império Romano durante vários séculos. O inquérito que
sobre a verdade, mas sobre a regularidade do procedimento. ressurge nos séculos XII e XIII é, entretanto, de tipo bastante
A quarta característica é que nesse mecanismo a prova diferente daquele cujo exemplo vimos em Édipo.
serve não para nomear, localizar aquele quedisse a verdade, mas Por quea velha formajudiciária da quallhes apresentei
paraestabelecer que o mais forte é, ao mesmotempo, quem tem alguns traços fundamentais desaparece nessa época? Pode-se
razão. Em umaguerra ou prova não judiciária, um dos dois é dizer, ane que um dos traços fundamentais da
sempre o mais forte, mas isso não prova que ele tenharazão. À sociedade feydal européia ocidental é que circulação dosbens
prova judiciária é uma maneira de ritualizar a guerra ou de é relativamente pouco assegurada pelo comércio. Ela é assegu-
transpô-la simbolicamente. É uma maneira de lhe dar um certo rada por mecanismosde herança, ou de transmissão testamen-
número de formas derivadas e teatrais de modo que o maisforte tária e, sobretudo, pela contestação belicosa, militar
será designado, poresse motivo, como o que tem razão. À prova extra-judiciária ou judiciária. Um dos meios mais importantes
é um operador de direito, um permutadorda força pelo direito, de assegurara circulação dos bens na Alta Idade Média era à
espécie de shifierque permite a passagem da força ao direito. Ela guerra, a rapina, a ocupação daterra, de um castelo ou de uma
não tem umafunção apofântica, não tem a função de designar, cidade. Estamos em uma fronteira fluida entre o direito e à
manifestar ou fazer aparecer a verdade. É um operador de guerra, na medida em que o direito é umacerta maneira de
direito e não um operador de verdade ou operador apofântico. continuar a guerra. Por exemplo, alguém que dispõe de força
Eis em que consiste a prova no velho Direito Feudal. armada ocupa umaterra, umafloresta, uma propriedade qual-
Essesistema de práticas judiciárias desaparece no fim do quer e, nesse momento, faz prevalecer seus direitos. Inicia-se
século XII e no curso do século XIII. Toda a segunda metade umalonga contestação no fim da qual aquele que não possui
da Idade Média vai assistir à transformação destas velhas força armada e quer a recuperação de sua terra só obtém a
práticas e à invenção de novas formas de justiça, de novas partida do invasor mediante um pagamento. Este acordo se
formasde práticas é procedimentosjudiciários. Formas quesão situa na fronteira entre o judiciário e o belicoso e é umadas
absolutamente capitais para a história da Europa e para a maneiras mais frequentes de alguém enriquecer.A circulação
história do mundointeiro, na medida em que a Europa impôs a troca de bens,as falências, os enriquecimentos foram feitos,
violentamente o seu jugo a todaa superfície da terra. O que foi em suamaioria, naalta feudalidade, segundo esse mecanismo.
inventado nessareelaboração do Direito é algo que, no fundo, É interessante, aliás, comparar a sociedade feudal na
concerne não tanto aos conteúdos, mas às formas e condições Europa e as sociedades ditas primitivas estudadas atualmente
de possibilidade do saber. O que se inventou no Direito dessa pelos etnólogos. Nestas, a troca de bens se faz através de
época foi uma determinada maneira de saber, uma condição de contestaçãoe rivalidade, dadas sobretudo em formade prestí-

62 63
em 4
gio, ao nível das manifestações e dos signos. Na sociedade Naaita Idade Média não havia poder judiciário. À liquidação
feudal, a circulação dos bensse faz igualmente em forma de era feita entre indivíduos. Pedia-se ao mais poderoso ou àquele
rivalidade e contestação. Mas rivalidade e contestação não que exercia a sAperania não que fizesse justiça, mas que consta-
mais de prestígio e sim belicosas. Nas sociedades ditas primi- tasse, em função de seus poderes políticos, mágicose religiosos,
tivas as riquezas se trocam em prestaçõesde rivalidade porque a regularidade do procedimento. Não havia poder judiciário
são não somente bens mas também signos. Nas sociedades autônomo, nem mesmo poder judiciário nas mãos de quem
feudais, as riquezas se trocam não apenas porque são bens e detinha o poder das armas, o poder político. Na medida em que
signos mas porque são bens, signos e armas. À riqueza é o meio a contestação judiciária assegurava a circulação dos bens, o
pelo qual se pode exercer tanto a violência quantoo direito de direito de ordenar e controlar essa contestação judiciária, por
vida e de morte sobre os outros. Guerra, litígio judiciário e ser um meio de acumular riquezas, foi confiscado pelos mais
circulação de bens fazem parte, ao longo da Idade Média, de ricos e mais poderosos.
um grande processo únicoe flutuante. A acumulação da riqueza e do poder das armas e a
Há, portanto, uma dupla tendência característica da constituição do poder judiciário nas mãos de alguns é um
sociedade feudal. Por um lado há uma concentração de armas mesmo processo que vigorou na Alta Idade Média e alcançou
em mãos dos mais poderosos que tendem a impedir sua seu amadurecimento no momento da formação da primeira
utilização pelos menos poderosos. Vencer alguém é privá-lo de grande monarquia medieval, no meio ou final do século XII.
suas armas, derivando daí uma concentração do poder armado Nesse momento aparecem coisas totalmente novas em relação
que deu mais força, nos estados feudais, aos mais poderosose à sociedade feudal, ao Império Carolíngio e às velhas regras do
finalmente ao mais poderoso de todos, o monarca. Por outro Direito Romano.
lado e simultaneamentehá as açõese os litígios judiciários que 1) Umajustiça que não é mais contestação entre indiví-
eram uma maneira de fazer circular os bens. Compreende-se duose livre aceitação por esses indivíduos de um certo número
assim, porque os mais poderosos procuravam controlar os de regras de liquidação, mas que, ao contrário, vai-se impor, do
litígios judiciários, impedindo que eles se desenvolvessem alto, aos indivíduos, aos oponentes, aos partidos. Os indiví-
espontaneamenteentre os indivíduose porquetentaram apos- duos então não terão mais o direito de resolver, regular ou
sar-se da circulação judiciária e litigiosa dos bens, o que irregularmente, seuslitígios; deverão submeter-se a um poder
implicou a concentração das armas e do poder judiciário, que exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder
se formava na época, nas mãos dos mesmosindivíduos. político.
À existência de poder executivo,legislativo e judiciário, 2) Aparece um personagem totalmente novo, sem prece-
é umaidéia aparentemente bastante velha no Direito Consti- dente no Direito Romano:o procurador. Esse curioso persona-
tucional. Na verdade, trata-se de um idéia recente que data gem, que aparece na Europapor volta do século XII, vai se
mais ou menos de Montesquieu. O que nosinteressa aqui, apresentar como o representante do soberano, do rei ou do
porém, é ver como se formou algo como um poder judiciário. senhor. Havendo crime, delito ou contestação entre dois

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indivíduos, ele se apresenta como representante de um poder 4) Há ainda uma última descoberta, uma última inven-
lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um crime. O ção tão diabólica quanto a do procurador e da infração: o
procurador, vai dublar a vítima, vai estar por trás daquele que Estado ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de
deveria dar a queixa, dizendo: “Se é verdade que este homem Estado nessa época) é não somente a parte lesada mas a que
lesou um outro, eu, representante do soberano, posso afirmar, exige reparação. Quando um indivíduo perde o processo é
que o soberano, seu poder, a ordem queele faz reinar,a lei que declarado culpado e deve ainda uma reparação a sua vítima.
ele estabeleceu foram igualmente lesados por esse indivíduo. Masesta reparação não é absolutamente a do antigo Direito
Assim,eu também mecoloco contra ele”. O soberano,o poder Feudal ou do antigo Direito Germânico. Nãose trata mais de
político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir resgatar sua paz, dandosatisfação a seu adversário. Vai-se exigir
a vítima, Este fenômeno, absolutamente novo,vai permitir ao do culpado não só a reparação do dano feito a um outro
poder político apossar-se dos procedimentos judiciários. O indivíduo, mas também a reparação da ofensa que cometeu
procurador, portanto, se apresenta como o representante do contra o soberano,o Estado,a lei. É assim que aparece, com o
soberano lesado pelo dano. mecanismodas multas, o grande mecanismodas confiscações.
3) Uma noção absolutamente nova aparece: a infração. Confiscações dos bens que são, para as monarquias nascentes,
Enquanto o dramajudiciário se desenrolava entre dois indiví- um dos grandes meios de enriquecer e alargar suas proprieda-
duos, vítima e acusado, tratava-se apenas de dano que um des. As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropri-
indivíduo causava a outro. À questão era a de saber se houve ação dajustiça, quelhes permitia a aplicação desses mecanismos
dano, quem tinha razão. A partir do momento em que o de confiscação. Eis o pano de fundo político desta transforma-
soberanoou seu representante, o procurador, dizem “Também ção.
fui lesado pelo dano”, isto significa que o dano não é somente É necessário agora explicar o estabelecimento dasenten-
um ofensa de um indivíduoa outro, mas também uma ofensa ça, explicar como se chega ao final de um processo em que um
de um indivíduo ao Estado, ao soberano comorepresentante do dos personagens principais é o procurador. Se a principal
Estado; um ataque não ao indivíduo mas à própria lei do vítima deuma infraçãoé o rei, se é o procuradorquese queixa
Estado. Assim, na noção de crime, a velha noção de danoserá em primeiro lugar, compreende-se que a liquidação judiciária
substituída pela de infração. A infração não é um dano come- não pode mais ser obtida pelos mecanismos da prova. O reiou
tido por um indivíduo contra outro; é uma ofensa ou lesão de seu representante, o procurador, não podem arriscar suas
um indivíduo à ordem, ao Estado,à lei, à sociedade, à sobera- próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime é
nia, ao soberano. À infração é uma das grandes invenções do cometido. Não é em pé de igualdade, como em umaluta entre
pensamento medieval. Vemos, assim, comoo poder estatal vai dois indivíduos, que o acusado e o procuradorse defrontam.É
confiscando todo o procedimento judiciário, todo o mecanis- preciso encontrar um novo mecanismo quenão seja mais o da
mo de liquidação inter-individual dos litígios da Alta Idade prova, da luta entre dois adversários, para saber se alguém é
Média. culpado ou não. O modelo belicoso não pode ser mais aplicado.

66 67
»

Que modelo,então,se vai adotar? Este é um dos grandes to ou os títulos de propriedade. Reunia estas pessoas, fazia com
momentos da história do Ocidente. Havia dois modelos para que jurassem dizer a verdade, o que conheciam, o que tinham
resolver o problema. Em primeiro lugar, um modelo intra- visto ou o que sabiam por ter ouvido dizer. Em seguida,
jurídico. No próprio Direito Feudal, no Direito Germânico deixadas a sós, estas pessoas deliberavam. Aofinal dessa delibe-
Antigo, havia umcaso em que a coletividade, em suatotalidade, ração pedia-se a solução do problema. Este era um método de
podia intervir, acusar alguém e obter sua condenação: era o gestão administrativa queos funcionários do Império Carolíngio
flagrante delito, caso em que um indivíduoerasurpreendido no praticavam regularmente. Ele foi ainda empregado, depois de
exato momento em que cometia o crime. Nesse momento, as sua dissolução, por Guilherme o Conquistador, na Inglaterra.
pessoas que o surpreendiam tinham o direito de levá-lo ao Em 1096, os conquistadores normandos ocuparam a Inglater-
soberano, ao detentor de um poder político e dizer: “Nós o ra, se apoderaram dos bens anglo-saxões e entraram em litígio
vimosfazendotal coisa e consequentemente é preciso puni-lo com a população autóctone e entre si visando à posse desses
ou exigir-lhe reparação”. Havia, assim, na própria esfera do bens. Guilherme o Conquistador, para por tudo em ordem,
Direito, um modelo de intervenção coletiva e de decisão para integrar a nova população normanda à antiga população
autoritária para a liquidação de um litígio de ordem judiciária. anglo-saxônica, fez um enorme inquérito sobre o estado das
Era o caso doflagrante delito, quando o crimeera surpreendido propriedades, os estados dos impostos, o sistema de foro,etc.
nasuaatualidade. Esse modelo, evidentemente, não podiaser Trata-se do famoso Domesday, único exemplo global que
utilizado quando,o que é mais frequente, não se surpreende o possuímosdesses inquéritos que eram umavelha prática admi-
indivíduo no momento em que comete o crime. O problema nistrativa de imperadores carolíngios.
era, então, o de saber em que condições podia-se generalizar o Esse procedimento de inquérito administrativo tem al-
modelo do flagrante delito e utilizá-lo nesse novo sistema do gumas características importantes.
Direito que estava nascendo, inteiramente comandado pela 1) O poder político é o personagem essencial.
soberania política e pelos representantes do soberano político. 2) O poder se exerce primeiramente fazendo perguntas,
Preferiu-se utilizar um segundo modelo, extra-judiciá- questionando. Nãosabe a verdade e procura sabê-la.
rio, que por suavezse subdivide em dois. ou melhor, que tinha 3) O poder, para determinar a verdade, dirige-se aos
nessa época umaexistência dupla, uma dupla inserção. Trata- notáveis, pessoas consideradas capazes de saber devidoà situa-
se do modelo do inquérito que tinha existido na época do ção, idade, riqueza, notabilidade etc.
Império Carolíngio. Quando os representantes do soberano 4) Ao contrário do que se vê no final de Édipo-Rei, o
tinham de solucionar um problema de direito, de poder, ou poder consulta os notáveis sem forçá-los a dizer a verdade pelo
umaquestão de impostos, de costumes, de foro ou de proprie- uso da violência, da pressão ou da tortura. Pede-se que se
dade, procedia-se a algo perfeitamente ritualizado e regular: a reúnam livremente e que dêem umaopinião coletiva. Deixa-se
inquisitio, o inquérito. O representante do poder chamava que coletivamente digam o que consideram ser a verdade.
pessoas consideradas capazes de conhecer os costumes, o Direi-

68 69
Temos, assim, um tipo de estabelecimento da verdade adquirido funções administrativas e econômicas. Quando a
totalmenteligado à gestão administrativa da primeira grande Igreja se tornou o único corpo econômico-político coerente da
forma de estado conhecida no Ocidente. Esses procedimentos Europa nosséculos X, XI e XII, a inquisição eclesiástica foi ao
de inquérito foram,no entanto, esquecidos durante os séculos mesmo tempo inquérito espiritual sobre os pecados, faltas e
X e XI na Europa da alta feudalidade e teriam sido totalmente crimes cometidos, e inquérito administrativo sobre a maneira
esquecidossea Igreja não ostivesse utilizado na gestão de seus como os bens da Igreja eram administrados e os proveitos
próprios bens. Será necessário, entretanto, complicar um pou- reunidos, acumulados, distribuídos, etc. Este modelo ao mes-
co a análise. Pois se a Igreja utilizou novamente o método mo temporeligioso e administrativo do inquérito subsistiu até
carolíngio de inquérito,foi porque já o tinha praticado antes do o século XII, quando o Estado que nascia, ou antes, a pessoa do
Império Carolíngio por razões mais espirituais que administra- soberano que surgia como fonte de todo o poder, passa a
tivas. confiscar os procedimentos judiciários. Estes procedimentos
Havia, com efeito, uma prática de inquérito naIgreja da judiciários não podem mais funcionar segundo o sistema da
Alta Idade Média, na Igreja Merovíngia e Carolíngia. Esse prova. De que maneira, então,o procuradorvaiestabelecer que
método se chamava visitatio e consistia na visita que o bispo alguém é ou não culpado? O modelo — espiritual e adminis-
devia estatutariamentefazer, percorrendo sua diocese,e quefoi trativo, religioso e político, maneira de gerir e de vigiar e
retomado, em seguida, pelas grandes ordens monásticas. Ao controlar as almas — se encontranaIgreja: inquérito entendido
chegar em um determinadolugaro bispo instituía, em primeiro comoolhar tanto sobre os bense as riquezas, quanto sobre os
lugar, a inquisítio generalis — inquisição geral — perguntando corações, os atos, as intenções, etc. É esse modelo que vai ser
a todosos que deviam saber(os notáveis, os mais idosos, os mais retomado no procedimento judiciário. O procurador do Rei
sábios, os mais virtuosos) o que tinha acontecido na sua vai fazer o mesmo que os visitantes eclesiásticos faziam nas
ausência, sobretudo se tinha havido falta, crime, etc. Se esse paróquias, dioceses e comunidades. Vai procurar estabelecer
inquérito chegasse a uma resposta positiva, o bispo passava ao por inguisitio, por inquérito,se houve crime, qualfoi ele e quem
segundoestágio, à inquisitio specialis — inquisição especial — o cometeu.
que consistia em apurar quem tinhafeito o que, em determinar Esta é a hipótese quegostaria de lançar. O inquérito teve
em verdade quem era oautor e qual a natureza do ato. uma dupla origem. Origem administrativa ligada ao surgimen-
Finalmente um terceiro ponto: a confissão do culpado podia to do Estado na época carolíngia; origem religiosa, eclesiástica,
interromper a inquisição em qualquer estágio, em sua forma mais constantemente presente durante a Idade Média. É este
geral ou especial. Aquele quetivesse cometido o crime, poderia procedimento de inquérito que o procuradordo rei — justiça
apresentar-se e proclamar publicamente: “Sim! Um crime foi monárquica nascente — utilizou para preencher a função de
cometido; consistiu nisso; eu sou o seu autor”. flagrante delito de que falei anteriormente. O problema era o
Esta formaespiritual, essencialmente religiosa do inqué- de saber como generalizar o flagrante delito a crimes que não
rito eclesiástico subsistiu durante toda a Idade Média, tendo eram de domínio, do campo da atualidade; como podia o

70 71
procurador do rei trazer o culpado diante de uma instância judiciário. O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um
judiciária que detinha o poder, se não sabia quem era o culpado, processo de governo, uma técnica de administração, uma
umavez que não houveraflagrante delito. O inquérito vai ser modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma
o substituto do flagrante delito. Se, com efeito, se consegue determinada maneira do poderse exercer. Estaríamos engana-
reunir pessoas que podem,sob juramento, garantir que viram, dos se víssemos no inquérito o resultado natural de uma razão
que sabem, que estão a par; se é possível estabelecer por meio que atua sobre si mesma,se elabora, faz seus próprios progres-
delas que algo aconteceu realmente, ter-se-á indiretamente, sos; se víssemoso efeito de um conhecimento, de um sujeito de
através do inquérito, por intermédio das pessoas que sabem, o conhecimento se elaborando.
equivalente ao flagrante delito. E se poderá tratar de gestos, Nenhumahistória feira em termos de progresso darazão,
atos, delitos, crimes que não estão mais no campo da atualida- de refinamento do conhecimento, pode dar conta da aquisição
de, como se fossem apreendidos em flagrante delito. Tem-se aí da racionalidade do inquérito. Seu aparecimento é um fenôme-
uma nova maneira de prorrogara atualidade, de transferi-la de no político complexo. É a análise das transformações políticas
uma épocapara outra e de oferecê-la ao olhar, ao saber, como da sociedade medieval que explica como, por que e em que
se ela aindaestivesse presente. Esta inserção do procedimento momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a
do inquérito reatualizando, tornando presente, sensível, ime- partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes.
diato, verdadeiro, o que aconteceu, como se o estivéssemos Nenhuma referência a um sujeito de conhecimento e a sua
presenciando, constitui uma descoberta capital. história interna daria conta deste fenômeno. Somente a análise
Podemostirar desta análise algumas conclusões. dos jogos de força política, dasrelações de poder, pode explicar
1) Costuma-se opor as velhas provas do direito bárbaro o surgimento do inquérito.
ao novo procedimento racional do inquérito. Evoquei acima as 2) O inquérito deriva de um certo tipo de relações de
diferentes maneiras pelas quais se tentava estabelecer quem poder, de uma maneira de exercer o poder. Ele se introduz no
tinha razão na Alta Idade Média. Temos a impressão de serem Direito a partir da Igreja e, consequentemente, é impregnado
sistemas bárbaros, arcaicos, irracionais. Fica-se impressionado de categorias religiosas. Na concepção da Alta Idade Média o
com o fato de ter sido necessário esperaraté o século XII para essencial era o dano, o que tinha se passado entre dois indiví-
finalmente se chegar, com o procedimento do inquérito, a um duos; não havia falta nem infração. A falta, o pecado, a
sistemaracionalde estabelecimento da verdade. Não creio, no culpabilidade moral absolutamente não intervinham. O pro-
entanto, que o procedimentode inquérito seja simplesmente o blema era o de saber se houve ofensa, quem a praticou,e se
resultado de umaespécie de progresso da racionalidade. Não aquele que pretende ter sofrido a ofensa é capaz de suportar a
foi racionalizando os procedimentosjudiciários que se chegou prova que ele propõe a seu adversário. Não há erro, culpabili-
ao procedimento do inquérito. Foi toda uma transformação dade, nem relação com o pecado. Ao contrário, a partir do
política, uma nova estrutura política que tornou não só possí- momento em queo inquérito se introduznaprática judiciária,
vel, mas necessária a utilização desse procedimento no domínio traz consigo a importante noção de infração. Quando um

72 73
cio de poder: domínio do saber ou do conhecimento, no
indivíduo, causa dano a um outro, há sempre, afortiors, dano
sentido tradicional da palavra.
à soberania, à lei, ao poder. Por outro lado, devido a todas as
A partir dos séculos XIV e XV aparecem tipos de
implicações e conotações religiosas do inquérito, o dano será
uma falta moral, quase religiosa ou com conotação religiosa.
inquérito que procuraram estabelecer a verdade a partir de um
certo número de testemunhos cuidadosamente recolhidos em
Tem-se assim porvolta do século XII, uma curiosa conjunção
domínios como o da Geografia, da Astronomia, do conheci-
entre a lesão à lei e a falta religiosa. Lesar o soberano e cometer
mento dos climas, etc. Aparece, em particular, uma técnica de
um pecado são duas coisas que começam a se reunir. Elas
viagem, empreendimento político de exercício de poder e
estarão unidas profundamente no Direito Clássico. Dessa
empreendimento de curiosidade e de aquisição de saber, que
conjunção ainda não estamos totalmentelivres.
conduziu finalmente ao descobrimento da América. Todos os
3) O inquérito que aparece no século XII em consequên-
grandes inquéritos que dominaram o fim da Idade Média são,
cia desta transformação nas estruturas políticas e nas relações de
no fundo, a explosão e a dispersão dessa primeira forma, desta
poder reorganizou inteiramente (ou em sua volta se reorgani-
zaram) todas as práticas judiciárias da Idade Média, da época
matriz que nasceu no século XII. Até mesmo domínios como
o da Medicina, da Botânica, da Zoologia, a partir dos séculos
clássica e até da época moderna.
De maneira mais geral, este inquérito judiciário se difun-
XVI e XVII, são irradiações desse processo. Todo o grande
movimento cultural que, depois do século XII, começa a
diu em muitos outros domínios de práticas — sociais, econô-
micas — e em muitos domínios do saber. Foi a partir desses
preparar o Renascimento, pode ser definido em grande parte
inquéritos judiciários conduzidos pelos procuradores do rei
como o desenvolvimento,o florescimento do inquérito como
forma geral de saber.
que,a partir do século XIII, se difundiu umasérie de procedi-
Enquanto o inquérito se desenvolve como formageral de
mentos de inquérito.
saber no interior do qual o Renascimento eclodirá, a prova
Alguns eram principalmente administrativos ou econô-
tende a desaparecer. Dela só encontraremos os elementos, os
micos. Foi assim que, graças a inquéritos sobre o estado da
população, o nível das riquezas, a quantidade de dinheiro e de
restos, na forma da famosa tortura, mas já mesclada com a
preocupação de obter uma confissão, prova de verificação.
recursos,os agentesreais asseguraram,estabeleceram e aumen-
Pode-se fazer toda umahistória da tortura, situando-a entre os
taram o poder real. Foi desta forma que todo um saber
econômico, de administração econômica dos estados, se acu- procedimentos da prova e do inquérito. A prova tende a
mulou no fim da Idade Médiae nos séculos XVILe XVIII. Foi desaparecer na prática judiciária; ela desaparece também nos
a partir daí que nasceu uma forma regular de administração dos domínios do saber. Poderíamos indicar dois exemplos.
Em primeiro lugar a Alquimia. A Alquimia é um saber
estados, de transmissão e de continuidade do poder político e
nasceram ciências como a Economia Política, a Estatística, etc.
que tem por modelo a prova. Nãosetrata de fazer um inquérito
para saber o que se passa, para saber a verdade. Trata-se
Estas técnicas de inquérito difundiram-se igualmente
em domínios não diretamente ligados aos domínios de exercí-
essencialmente de um afrontamento entre duas forças: a do

74 75
alquimista que procura e a da natureza que esconde seus um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse
segredos; da sombrae da luz; do bem e do mal; de Satã e de invocar testemunhos de autoridade, de força, de gravidade,e
Deus. O alquimista realiza uma espécie de luta, em que ele é ao não testemunhos de verdade, maior possibilidade ele teria de
mesmo tempo espectador — aquele que verá o desfecho do sair vencedor. À disputatio é uma formade prova, de manifes-
combate — e um dos combatentes, visto que pode ganhar ou tação do saber, da autentificação do saber que obedece ao
perder. Pode-se dizer que a Alquimia é uma forma química, esquemageral da prova. O saber medieval e sobretudo saber
naturalista da prova. Tem-se a confirmação de que o saber enciclopédico do Renascimentodotipo de Pico della Mirandola,
alquímico é essencialmente uma prova no fato de que ele que vai se chocar com a forma medieval da universidade, será
absolutamente não se transmitiu, não se acumulou, como um precisamente dotipo do inquérito. Tervisto, ter lido os textos;
resultado de inquéritos que permitissem chegar à verdade. O saber o que efetivamente foi dito; conhecer tão bem o que foi
saber alquímico se transmitiu unicamente em forma de regras, dito, quanto a natureza a respeito da qual algo foi dito; verificar
secretas ou públicas, de procedimento: eis comose deve fazer, o que os autores disseram pela constatação da natureza; utilizar
eis comose deveagir,eis que princípios respeitar,eis que preces os autores não mais como autoridade mas como testemunho;
fazer, que textos ler, que códigos devem estar presentes. À tudoisto vai constituir umadas grandes revoluções na forma de
Alquimia constitui essencialmente um corpus de regras jurídi- transmissão do saber. O desaparecimento da Alquimia e da
cas, de procedimentos. O desaparecimento da Alquimia,o fato disputatio, ou melhor, o fato desta últimater sido relegada a
de que um saber de tipo novose tenha constituído absoluta- formas universitárias completamente esclerosadas e não apre-
mente fora do seu domínio, deve-se a que esse novo saber sentar a partir do século XVI, mais nenhuma atualidade,
tomou como modelo a matriz do inquérito. Todo saber de nenhumaeficácia nas formas de autentificação real do saber são
inquérito, saber naturalista, botânico, mineralógico,filológico alguns dos numerosos sinais do conflito entre o inquérito e a
é absolutamente estranhoao saber alquímico que obedece aos prova e dotriunfo do inquérito sobre a prova, no fim da Idade
modelos judiciários da prova. Média.
Em segundolugar, a crise da universidade medieval no Como conclusão poderíamos dizer: o inquérito não é
fim da Idade Média pode também ser analisada em termos de absolutamente um conteúdo, masa formade saber. Forma de
oposição entre o inquéritoe a prova. Na universidade medieval sabersituada na junção de um tipo de podere de certo número
o saber se manifestava, se transmitia e se autentificava através de conteúdos de conhecimentos. Aqueles que querem estabe-
de determinados rituais, dos quais o mais célebre e mais lecer umarelação entre o que é conhecido e as formaspolíticas,
conhecidoeraa disputatio, a disputa. Tratava-se do afrontamento sociais ou econômicas que servem de contexto a esse conheci-
de dois adversários que utilizavam a armaverbal, os processos mento costumam estabelecer essa relação por intermédio da
retóricos e demonstrações baseadas essencialmente no apelo à consciência ou do sujeito de conhecimento. Parece-me quea
autoridade. Apelava-se não para testemunhas de verdade, mas verdadeira junção entre processos econômico-políticos e con-
para testemunhas de força. Nadisputatio, quanto mais autores flitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao

76 77
mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalida-
des de aquisição e transmissão do saber. O inquérito é precisa-
mente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício
do poder que, por meio dainstituição judiciária, veio a ser uma
maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de
adquirir coisas que vãoser consideradas como verdadeirase de
as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a
análise dessas formasque nos deve conduzir à análise mais
estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as
determinações enonômico-políticas.
Na conferência anterior procurei mostrar quais foram os
mecanismose os efeitos daestatização da justiça penal na Idade
Média. Gostaria que nossituássemos, agora, em fins do século
XVII e início do século XIX, no momento em que se constitui
o que tentarei analisar nesta e na próxima conferência sob o
nome de “sociedade disciplinar”. A sociedade contemporânea,
“porrazões que explicarei, merece o nome de “sociedade disci-
plinar.” Gostaria de mostrar quais são as formas de práticas
penais que caracterizam essa sociedade; quais as relações de
poder subjacentes a essas práticas penais; quais as formas de
saber, os tipos de conhecimento, os tipos de sujeito de conhe-
cimento que emergem, que aparecem a partir e no espaço desta
sociedade disciplinar que é a sociedade contemporânea.
A formação dasociedade disciplinar pode ser caracteriza-
da pelo aparecimento, no final do século XVIIe início do
século XIX, de dois fatos contraditórios, ou melhor, de um fato
que tem dois aspectos, dois lados aparentemente contraditóri-
os: a reforma, a reorganização do sistemajudiciário e penal nos
diferentes países da Europa e do mundo. Esta transformação
não apresenta as mesmas formas, a mesma amplitude, a mesma
cronologia nos diferentes países.

78 79
NaInglaterra, por exemplo,as formas de justiça perma- Um segundo princípio é queestas leis positivas formula-
neceram relativamenteestáveis, enquanto que o conteúdo das das pelo poder político no interior de uma sociedade, para
leis, o conjunto de condutas penalmente repreensíveis se mo- serem boasleis, não devem retranscrever em termos positivos a
dificou profundamente. No século XVIII havia na Inglaterra lei natural, a lei religiosa ou a lei moral. Umalei1penal, deve
313 ou 315 condutas capazes de levar alguém à forca, ao simplesmente representaroque é útil paraasociedade. A lei
cadafalso, 315 casos punidos com a morte. Isso tornava o define comorepreensível o que é nocivo à sociedade,definindo
código penal,a lei penal, o sistema penal inglês do século XVIII assim negativamente o que é útil.
um dos mais selvagens e sangrentosque a história das civiliza- O terceiro princípio se deduz naturalmente dos dois
ções conheceu. Esta situaçãofoi profundamente modificada no primeiros: uma definição clarae simples do crime. Ocrime não
começo do século XIX sem que as formas e instituições judici- é algo aparentado com o pecado e com falta; éalgoque
árias inglesas se modificassem profundamente. Na França, ao danifica a sociedade; é um dano social, uma perturbação, um
contrário, ocorreram modificações muito profundas nas insti- incômodo para todaa sociedade.
tuições penais sem que o conteúdo da lei penal se tenha Há, por conseguinte, também, uma nova definição do
modificado. criminoso. O criminoso é aquele que danifica, perturba a
Em que consistem essas transformações dos sistemas sociedade. O criminoso é o inimigo social. Encontramos isso
penais? Por um lado em umareelaboraçãoteórica da lei penal. muito claramente em todos esses teóricos como também em
Ela pode ser encontrada em Beccaria, Bentham, Brissot e em Rousseau, que afirma que o criminoso é aquele que rompeu o
legisladores que são os autores do 1º e do 2º Código Penal pacto social. Há identidade entre o crimee aruptura do pacto
francês da época revolucionária. social. O criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do
O princípio fundamental do sistema teórico dalei penal criminoso como inimigo interno, como indivíduo que no
definido por esses autores é que o crime, no sentido penal do interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente
termo, ou, mais tecnicamente, a infração não deve ter mais estabelecido, é uma definição nova capital na história da teoria
nenhumarelação com a falta moral ou religiosa. À falta é uma do crime e da penalidade.
infração à lei natural, à lei religiosa, à lei moral. O crime ou a Se o crime é um danosocial, se o criminoso é o inimigo
infração penal é a ruptura com a lei, lei civil explicitamente da sociedade, como a lei penal deve tratar esse criminoso ou
estabelecida no interior de uma sociedade pelo ladolegislativo deve reagir a esse crime? Se o crime é uma perturbação para a
do poder político. Para que haja infração é preciso haver um sociedade; se o crime não tem mais nada a ver com a falta, com
poder político, uma lei e queessa lei tenha sido efetivamente a lei natural, divina, religiosa, etc., é claro quea lei penal não
formulada. Antes da lei existir, não pode haver infração. pode prescrever uma vingança, a redenção de um pecado. À lei
Segundoesses teóricos, só podem sofrer penalidade as condutas penal deve apenas permitir a reparação da perturbação causada
efetivamente definidas como repreensíveis pela lei. à sociedade. A lei penal deve serfeita de tal maneira que o dano

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causado pelo indivíduoà sociedadeseja apagado; seisso não for em fazê-los repugnar para sempre o crime que cometeram. E
possível, é preciso que o dano não possa mais ser recomeçado para obteresse resultado, a penaideal, quese ajusta na medida
pelo indivíduo em questão ou por outro. À lei penal deve exata, é a penadetalião. Mata-se quem matou; tomam-se os
reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser bens de quem roubou; quem cometeu uma violação, para
cometidos contra o corpo social. alguns dos teóricos do século XVIII, deve sofrer algo semelhan-
Daí decorrem, paraesses teóricos, quatro tipos possíveis te. .
de punição. Primeiramente, a punição expressa na afirmação: Eis, portanto, uma bateria de penalidades — deporta-
“você rompeuo pacto social, você não pertence mais ao corpo x ção, trabalho forçado, vergonha, escândalo público e pena de
social, você mesmose colocou fora do espaço dalegalidade; nós talião. Projetos efetivamente apresentados não somente por
o expulsaremos do espaço social onde essa legalidade funcio- teóricos puros como Beccaria mas também por legisladores,
na.” É a idéia encontrada frequentemente nesses autores — como Brissot e Lepeletier de Saint-Fargeau, que participaram
Beccaria, Bentham, etc. — de que no fundo,a punição ideal da elaboração do 1º Código Penal Revolucionário. Já se havia
seria simplesmente expulsar as pessoas, exilá-las, bani-las, ou avançado bastante na organização da penalidade centrada na
deportá-las. É a deportação. infração penale na infração a umalei representandoa utilidade
A segunda possibilidade é uma espécie de exclusão no pública. Tudo deriva daí, até mesmo o quadro das penalidades
próprio local. Seu mecanismo não é mais a deportação mate- e o modo comosão aplicadas.
rial, a transferência para fora do espaço social, mas o isolamento Têm-se assim esses projetos, esses textos e até esses
no interior do espaço moral, psicológico, público, constituído decretos adotados pelas Assembléias. Mas, se observarmos o
pela opinião. É a idéia das punições ao nível do escândalo, da que realmente se passou, como funcionou a penalidade algum
vergonha, da humilhação de quem cometeu uma infração. tempo depois, por volta de 1820, no momento da Restauração
Publica-se a sua falta, mostra-se a pessoa ao público,suscita-se na França e da Santa Aliança na Europa, percebemos que o
no público umareação de aversão, de desprezo, de condenação. sistema de penalidades adotado pelas sociedades industriais em
Esta era a pena. Beccaria e outros inventaram mecanismospara vias de formação, em vias de desenvolvimento, foi inteiramente
provocar vergonha e humilhação. diferente do que tinha sido projetado alguns anos antes. Não
A terceira pena é a reparaçãodo dano social, o trabalho quea prática tenha desmentido teoria, porém ela se desviou
forçado. Ela consiste, em forçar as pessoas a uma atividade útil rapidamente dos princípios teóricos que encontramos em
ao Estado ou à sociedade, de tal forma que o dano causado seja Beccaria e Bentham.
compensado. Tem-se assim uma teoria do trabalho forçado. Retomemos o sistema de penalidades. A deportação
Enfim, em quarto lugar, a pena consiste em fazer com desapareceu bem rapidamente; o trabalho forçado foi geral-
que o danonão possa ser novamente cometido; em fazer com mente uma pena simplesmente simbólica, em sua função de
que o indivíduo em questão ou os demais não possam maister reparação; os mecanismos de escândalo nunca chegaram a ser
vontade de causar à sociedade o dano anteriormente causado; postos em prática; a pena de talião desapareceu rapidamente,

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tendo sido denunciada como arcaica para uma sociedade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em
suficientemente desenvolvida. vista menosa defesa geral da sociedade que o controle e a
Esses projetos bem precisos de penalidade foram suBsti- reformapsicológica e moral das atitudes e do comportamento
tuídos por umapena bem curiosa de que Beccaria havia falado dos indivíduos. Esta é uma forma de penalidade totalmente
ligeiramente e que Brissot mencionava de forma bem marginal: diferente daquela prevista no século XVIII, na medida em que
trata-se doaprisionamento, prisão. o grandeprincípio da penalidade para Beccaria era o de que não
A prisão não pertence ao projeto teórico da reforma da haveria punição sem uma lei explícita, e sem um comporta-
penalidade do século XVIII. Surge no início do século XIX, mento explícito violando essa lei. Enquanto não houvesselei e
como umainstituição de fato, quase sem justificação teórica. infração explícita, não poderia haver punição — este era o
Nãosó a prisão — pena que vai efetivamentese genera- princípio fundamental de Beccaria.
lizar no século XIX — não estava prevista no programa do Todaa penalidade do século XIX passa a serum controle,
século XVIII, como também legislação penal vai sofrer uma não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em
inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na conformidade ou não com lei, mas ao nível do que podem
teoria. fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitosa fazer,
Com efeito, a legislação penal, desde o início do século do que estão na iminência de fazer.
XIX e de formacada vez mais rápida e acelerada durante todo Ássim, a grande noção da criminologia e da penalidade
o século, vai se desviardo que podemos chamarutilidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de
social; ela não procurará mais visar ao quesocialmente útil, teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade
mas,pelocontrário, procurará ajustar-se ao indivíduo. Pode- significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade
mos citar como exemplo as grandes reformas da legislação ao nível de suas virtualidades e não 40 nível de seus atos; não ao
penal na França e demais países europeusentre 1825 e 1850/ nível das infrações efetivas a umalei efetiva, mas dasvirtualida-
GO, que consistem na organização do que chamamoscircuns- des de comportamento queelas representam.
tâncias atenuantes: o fato da aplicação rigorosa dalei, tal como O último ponto capital que a teoria penal coloca em
se acha no Código, poder ser modificada por determinação do questão ainda mais fortemente do que Beccaria é que, para
juiz ou dojúri e em função do indivíduo em julgamento. O assegurar o controle dos indivíduos — que não é mais reação
princípio de uma lei universal representando unicamente os penal ao queeles fizeram, mas controle de seu comportamento
interesses sociais é consideravelmente falseado pela utilização no momento mesmo em queele se esboça — instituição penal
das circunstâncias atenuantes que vão assumindo importância não pode mais estar inteiramente em mãos de um poder
cada vez maior. Além disso a penalidade que se desenvolve no autônomo: o poder judiciário.
século XIX se propõe cada vez menosdefinir de modo abstrato Chega-se assim,à contestação da grande separação atri-
e geral o que é nocivo à sociedade,afastaros indivíduos quesão buída a Montesquieu, ou pelo menos formulada porele, entre
nocivos à sociedade ou impedi-los de recomeçar. A penalidade poder judiciário, poder executivo e poderlegislativo. O contro-

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le dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo dos - Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do
indivíduosao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado | espírito sobre o espírito; uma espécie de instituição que deve
pela própria justiça, mas por uma série de outros podêres valer para escolas, hospitais, prisões, casas de correção, hospí-
laterais, à margem dajustiça, como a polícia e toda umarede cios, fábricas, etc.
de instituições de vigilância e de correção — a polícia para a O Panopticon era um edifício em formade anel, no meio
vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, crimino- do qual havia um pátio com umatorre no centro. O anel se
lógicas, médicas, pedagógicas para a correção. É assim que, no dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior

-
século XIX, desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas,
para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos havia segundoo objetivo dainstituição, umacriança aprenden-
ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de institui- do a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se
ções que vão enquadrar os indivíduos ao longo de suaexistên- corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc. Na torre
cia; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo
psiquiátricas comoo hospital, o asilo, a polícia, etc. Todaessa tempo para O interior e para o exterior, o olhar do vigilante
rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum ponto de
das funções que a justiça se atribui neste momento: função não sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduoestava
mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas exposto ao olhar de um vigilante que observava através de
virtualidades. venezianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver
Entramosassim na idade do que eu chamaria de ortope- tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. Para Bentham
dia social. Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser
sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição utilizada por umasérie de instituições. O Panopticon é a utopia |
às sociedades propriamente penais que conhecíamos anterior- de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo,a ;
mente. É a idade de controle social. Entre os teóricos que há sociedade que atualmente conhecemos — utopia que efetiva-
pouco citei, alguém de certa forma previu e apresentou como mente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente
que um esquema desta sociedade devigilância, da grande receber o nome de panoptismo. Vivemos em uma sociedade |
ortopedia social. Trata-se de Bentham. Peço desculpas aos ondereina o panoptismo.
historiadores da filosofia por esta afirmação, mas acredito que O panoptismo é uma forma de poder que repousa não
Bentham seja mais importante para nossaggóciedade do que mais sobre um inquérito mas sobre algo totalmente diferente,
Kant, Hegel, etc. Ele deveria ser homenageado em cada umade que eu chamaria de exame. O inquérito era um procedimento
nossas sociedades. Foi ele que programou, definiu e descreveu pelo qual, na prática judiciária, se procurava saber o que havia
da maneira mais precisa as formas de poder em que vivemose ocorrido. Tratava-se de reatualizar um acontecimento passado
que apresentou um maravilhoso e célebre pequeno modelo através de testemunhos apresentados por pessoas que, por uma
desta sociedade da ortopedia generalizada: o famoso Panopticon. ou outra razão — por sua sabedoria ou pelo fato de terem

86 87
N
presenciado o acontecimento — eram tidas como capazes de prática real, social que conduziu a resultados totalmente dife-
saber. rentes.
No Panopticon vai se produzir algo totalmentediferente; Tomarei sucessivamente dois exemplos que se encon-
não há mais inquérito, mas vigilância, exame. Nãosetrata de tram entre os mais importantes e determinantes deste processo:
reconstituir um acontecimento, mas de algo, ou antes, de o da Inglaberra e o da França — deixarei de lado o exemplo dos
alguém que se deve vigiar sem interrupção e totalmente. Estados Unidos, que é também importante. Gostaria de mos-
Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que trar comona França e sobretudonaInglaterra existiu umasérie
exerce sobre eles um poder — mestre-escola, chefe de oficina, de mecanismos de controle, controle da população, controle
médico,psiquiatra, diretor de prisão — e que, enquantoexerce permanente do comportamento dos indivíduos. Esses meca-
esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de nismos se formaram obscuramente durante o século XVIII para
constituir, sobre aqueles quevigia, a respeito deles, um saber. responder a certo número de necessidades e, assumindo cada
Um saber que tem agora porcaracterística não mais déterminar vez maior importância, se estenderam finalmente por toda a
se alguma coisa se passou ou não, mas determinar se um sociedade e se impuseram a umaprática penal.
indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à Quais são, de onde vêm e a que respondem esses meca-
regra, se progride ou não, etc. Esse novosaber não se organiza nismos de controle? Tomemos o exemplo da Inglaterra. Desde
mais em torno das questões “isto foi feito? quem o fez?”; não se a segunda metade do século XVIII se formaram, em níveis
ordena em termos de presença ou ausência, de existência ou não relativamente baixos da escala social, grupos espontâneos de
existência. Ele se ordena em torno da norma, em termos do que pessoas que se atribuíam, sem nenhumadelegação de um poder
é normal ou não, correto ou não, do quese deve ou nãofazer. superior,a tarefa de manter a ordem e criar, para eles próprios,
Tem-se, portanto, em oposição ao grande saber de novos instrumentos para assegurar a ordem. Esses grupos eram
inquérito, organizado no meio da Idade Média através da numerosos e proliferaram durante todo o século XVIII.
confiscação estatal da justiça, que consistia em obter os instru- Seguindo uma ordem cronológica, houve, em primeiro
mentos de reatualização de fatos através do testemunho, um lugar, comunidadesreligiosas dissidentes do anglicanismo —
novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigilân- os quakers, os metodistas — quese encarregavam de organizar
cia, de exame, organizado em torno da normapelo controle dos sua própria polícia. É assim que, entre os metodistas, Wesley,
indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, por exemplo, visitava, um pouco comoosbispos da Alta Idade
a formade saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências Média, as comunidades metodistas em viagem de inspeção. À
de observação como no câso do inquérito, mas ao que chama- ele eram submetidostodosos casos de desordem: embriaguez,
mos ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, etc. adultério, recusa de trabalhar, etc. As sociedades de amigos de
Gostaria agora de analisar como isso se deu. Como se inspiração quaker funcionavam de forma semelhante. Todas
chegou a ter, por um lado, determinada teoria penal que essas sociedades tinham a dupla tarefa de vigilância e de
programaclaramente certo númerode coisase, por outro, uma assistência. Elas se atribuíam a tarefa de assistir os que não

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possufam meios de subsistência, os que não podiam trabalhar nados aristocratas da corte, chamadaSociedade da Proclamação,
porque eram muito velhos, enfermos, doentes mentais, etc. por ter conseguido do rei uma proclamação para o encora-
Mas, ao mesmo tempo em queosassistiam,elas se atribufam jamento da piedade e davirtude. Essa sociedade, em 1802, se
a possibilidade e o direito de observar em que condiçõesera transforma e recebe o título característico de Sociedade para a
dadaa assistência: observarse o indivíduo que não trabalhava Supressão do Vício, tendo por objetivo fazer respeitar o domin-
estava efetivamente doente, se sua pobreza e miséria eram go, impedir a circulação dos livros licenciosos e obscenos,
devidas à devassidão, à bebedeira, aos vícios, etc. Tratava-se, introduzir ações na justiça contra a máliteratura e mandar
portanto, de grupos de vigilância espontânea com origem, fecharas casas de jogo e de prostituição. Esta sociedade, ainda
funcionamento e ideologia profundamentereligiosos. que de funcionamento essencialmente moral, próxima dos
Houve, em segundo lugar, ao lado destas comunidades gruposreligiosos, já era entretanto um poucolaicizada.
propriamentereligiosas, sociedades a elas aparentadas embora Em terceiro lugar encontramos no século XVIII, na
mantendo uma certa distância, um certo afastamento. Por Inglaterra, outros grupos mais interessantes e mais inquietan-
exemplo, em fins do século XVII, em 1692, na Inglaterra, deu- tes: grupos de auto-defesa de caráter para-militar. Eles surgiram
se a fundação de uma sociedade que se chamava, de forma bem em resposta às primeiras grandes agitações sociais, não ainda
característica, Sociedade para a Reforma das Maneiras (do proletárias, aos grandes movimentos políticos, sociais, ainda
comportamento, da conduta). Trata-se de uma sociedade com forte conotação religiosa, do fim do século XVIN na
muito importante quetinha na época da morte de Guilherme Inglaterra, particularmente o dos partidários de Lord Gordon.
HI, cem filiais na Inglaterra e dez na Irlanda, apenas na cidade Em respostaa essas grandes agitações populares, os meios mais
de Dublin. Essa sociedade, que desapareceu no início do afortunados, a aristocracia, a burguesia, se organizam em
século XVIII e reapareceu, sob a influência de Wesley, na gruposde auto-defesa. É assim que umasérie de associações —
segunda metade doséculo, se propunha a reformar as manei- a Infantaria Militar de Londres, a Companhia deArtilharia, etc.
ras: fazer respeitar o domingo, (é em grande parte à ação dessas — se organizam espontaneamente, sem apoio ou com apoio
grandes sociedades que devemos o exciting domingoinglês), lateral do poder. Elas têm por função fazer reinar a ordem
impedir o jogo, a bebedeira, reprimir a prostituição,o adulté- política, penal ou, simplesmente, a ordem, em um bairro, uma
rio, as imprecações,as blasfêmias, tudo que pudesse manifestar cidade, uma região ou um condado.
desprezo para com Deus. Tratava-se como diz Wesley em seus Em umaúltimacategoria de sociedade estão as socieda-
sermões, de impedir a classe mais baixa e mais vil de se des propriamente econômicas. As grandes companhias, as
aproveitar dos jovens sem experiência e lhes extorquir seu grandes sociedades comerciais se organizam em sociedades de
dinheiro. polícia, de polícia privada, para defender seu patrimônio,seu
Em fins do século XVIII, esta sociedade é superada em estoque, suas mercadorias, os barcos ancorados no porto de
importância por uma outra, inspirada por um bispoe determi- Londres, contra os amotinadores, o banditismo, a pilhagem

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cotidiana, os pequenos ladrões. Estas polícias dividiam bairros interesse em tentar escapar desse poderjudiciário tão sanguiná-
de Londres ou de grandes cidades como Liverpool, em organi- rio e ameaçador.
zações privadas. Para escapar desse poder judiciário os indivíduos se
Essas sociedades respondiam a uma necessidade demo- organizavam em sociedades de reforma moral, proibiam a
gráfica ou social, à urbanização, ao grande deslocamento de embriaguez,a prostituição, o roubo,etc., tudo o que permitisse
populações do campo paraas cidades; respondiam também,e ao poder atacar o grupo, destruí-lo, usar algum pretexto para
voltaremos a esse assunto, a uma transformação econômica enviar à forca. Trata-se, portanto, mais de grupos de auto-
importante, a uma nova forma de acumuláção da riqueza, na defesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva.
medida em que, quando a riqueza começa a se acumular em Esse reforço da penalidade autônoma era uma maneira de
forma de estoque, de mercadoria armazenada, de máquinas, escapar à penalidade estatal.
torna-se necessário guardar, vigiar e garantir sua segurança; Ora, no decorrer do século XVIII, esses grupos vão
respondiam, enfim, a uma nova situação política, às novas mudar de inserção social e cada vez mais abandonar seu
formas de revoltas populares que, de origem essencialmente recrutamento popular ou pequeno burguês. Nofim do século
camponesa, nos séculos XVI e XVII, se tornam agora grandes XVIII são a aristocracia, os bispos, os duques, as pessoas mais
revoltas urbanas populares e, em seguida, proletárias. ricas que vão suscitar esses grupos de auto-defesa moral, essas
É interessante observar a evolução dessas associações ligas para a supressão dos vícios.
espontâneas na Inglaterra do século XVIII. Há um triplo Tem-se, assim, um deslocamento social que indica per-
deslocamento ao longo desta história. feitamente comoesse empreendimentode reforma moral deixa
Consideremos o primeiro deslocamento. Noinício, es- de ser uma auto-defesa penal para se tornar ao contrário, um
tes grupos eram quase populares, da pequena burguesia. Os reforço do poder da própria autoridade penal. Ao lado do
quakers e metodistas do fim do século XVII e início do século temível instrumento penal que possui, o poder vai se atribuir
XVIII, que se organizavam para tentar suprimir os vícios, esses instrumentos de pressão, de controle. Trata-se, de certo
reformar as maneiras, eram pequenos burgueses quese agrupa- modo, de um mecanismo de estatização dos gruposde contro-
vam visando evidentemente fazer reinar a ordem entre eles cem le.
volta deles. Mas essa vontade de fazer reinar a ordem era, no O segundo deslocamento consiste no seguinte: enquan-
fundo, uma forma de escapar ao poder político, pois este to no primeiro grupo tratava-se de fazer reinar uma ordem
detinha um instrumento formidável, aterrorizadore sadguiná- moral diferente da lei que permitisse aos indivíduosescapar à
rio: sua legislação penal. Em mais de 300 casos, com efeito, se lei, no fim do século XVIII esses grupos — agora controlados,
podia ser enforcado. Isto significa que era muito fácil para o animados pelos aristocratas e pessoas ricas — têm como
poder, para a aristocracia, para os que detinham o aparelho objetivo essencial obter do poder político novas leis que
judiciário exercer pressões terríveis sobre as camadas populares. ratificarão esse esforço moral. Tem-se assim um deslocamento
Compreende-se como os grupos religiosos dissidentes tinham da moralidade à penalidade.

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Em terceiro lugar pode-se dizer que, a partir de então, cortar os laços com a moralidadee a religião — uma moralidade
esse controle moral vai ser exercido pelas classes mais altas, pelos de origem religiosa. A ideologia religiosa, surgida e fomentada
detentores do poder, pelo próprio poder sobre as camadas mais nos pequenos grupos quakers, metodistas,etc., na Inglaterra do
baixas, mais pobres, as camadas populares. Ele se torna assim fim do século XVII, vem agora despontar, no outro pólo, na
um instrumento de poder das classes ricas sobre as classes outra extremidade da escala social, do lado do poder, como
pobres, das classes que exploram sobre as classes exploradas, o instrumento de controle de cima para baixo. Auto-defesa no
que confere uma nova polaridade política e social a essas século XVII, instrumento de poder no início do século XIX.
instâncias de controle. Citarei um texto, datado de 1804, do Este é o mecanismo do processo que podemos observar na
fim dessa evolução que tento delinear, escrito por um bispo Inglaterra.
chamado Watson e que pregava perante a Sociedade para a Na França ocorreu um processo bastante diferente. Isto
EEE ER.

Supressão dos Vícios: se explica pelo fato de que a França, país de monarquia abso-
“As leis são boas, mas infelizmente, são burladas pelas
luta, possuía um forte aparelho de Estado que a Inglaterra do
classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não século XVIII já não possuía, na medida em que havia sido
as levam muito em consideração. Mas esse fato nãoteria abalado, em parte pela revolução burguesa do século XVII. A
importância se as classes mais altas não servissem de Inglaterra havia se libertado dessa monarquia absoluta, saltan-
exemplo para as mais baixas”. ç do esta etapa em que a França permaneceu durante cento e
Impossível ser mais claro:asleis são boas, para os pobres; cinquenta anos.
infelizmente os pobres escapam às leis, o que é realmente Esse forte aparelho do estado monárquico na França
detestável. Os ricos também escapam àsleis, porém isso não estava apoiado em um duplo instrumento: um instrumento
tem importância algumapois as leis não foram feitas para eles. judiciário clássico — os parlamentares, as cortes, etc. — e um
Noentanto,isso tem como consequência que os pobres seguem instrumento para-judiciário — a polícia — cuja invenção é
o exemplo dos ricos para não respeitar as leis. Daí o bispo privilégio da França. Uma polícia que comportava os
Watson dizer aos ricos: intendentes, o corpo de polícia montada,os tenentes de polícia;
“Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para que era dotada de instrumentos arquiteturais como a Bastilha,
vocês, pois assim ao menos haverá a possibilidade de Bicêtre, as grandes prisões, etc.; que possuía também seus
controle e de vigilância das classes mais pobres”. aspectos institucionais como as curiosas lettres-de-cachet.
Podemos observar nesta estatização progressiva, neste A lettre-de-cachet não era uma lei ou um decreto, mas
deslocamento das instâncias de controle das mãos dos grupos uma ordem dorei que concernia a uma pessoa, individualmen-
de pequena burguesia tentando escapar ao poder para as do te, obrigando-a a fazer alguma coisa. Podia-se até mesmo
grupo social que detém efetivamente o poder, em toda essa obrigar alguém se casar pela lettre-de-cachet. Na maioria das
vezes, porém, ela era um instrumento de punição.
evolução, como se introduz e se difunde em um sistema penal
estatizado — que ignorava por definição a moral e pretendia

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Podia-se exilar alguém pela leztre-de-cachet, privá-lo de indivíduos exercer um poder sobre alguém. Eram instrumentos
algumafunção, prendê-lo, etc. Ela era um dos grandes instru- de controle, de certa forma espontâneos, controle por baixo,
mentos de poder da monarquia absoluta. As lettres-de-cachet quea sociedade, a comunidade, exercia sobre si mesma.À lettre-
foram bastante estudadas na França e se tornou comum classificá- de-cachet consistia portanto em uma forma de regulamentara
las como algo temível, instrumento de arbitrariedade real moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou
abatendo-se sobre alguém como um raio, podendo prendê-lo dos grupos — familiares, religiosos, paroquiais, regionais,
para sempre. É preciso ser mais prudente e dizer queas lettres- locais, etc. — assegurarem seu próprio policiamento e sua
de-cachet não funcionaram apenas desta forma. Tal como própria ordem.
vimos ocorrer com as sociedades de moralidade que eram uma Observando as condutas que suscitavam o pedido de
maneira de escaparao direito, podemos observara respeito das lettre-de-cachet, e que eram sancionadas por ela, podemos
lettres-de-cachet um jogo bastante curioso. distinguir três categorias.
Ao examinar as lettres-de-cachet mandadas pelo rei em Em primeiro lugar, a categoria do que poderíamos
quantidade bastante numerosa notamos que, na maioria das chamar de condutas de imoralidade — devassidão, adultério,
vezes, nãoera ele que tomava a decisão de enviá-las. Ele o fazia sodomia, bebedeira, etc. Tais condutas provocavam, da parte
em alguns casos comonos assuntos de Estado. Mas a maioria das famílias e comunidades um pedido de lettre-de-cachet que
delas, as dezenas de milhares de lertres-de-cachet enviadas pela era imediatamente aceito. Temos, portanto, aqui a repressão
monarquia eram, na verdade,solicitadas por indivíduosdiver- moral.
sos: maridosultrajados porsuas esposas,pais de família descon- Em segundo lugar, há as lettres-de-cachet enviadas para
tentes com seus filhos, famílias que queriam se livrar de um sancionar condutas religiosas julgadas perigosas e dissidentes.
indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, Desta forma é que se prendiam os feiticeiros que há bastante
uma comuna descontente com seu cura, etc. Todos esses tempo não eram mais mortos nas fogueiras.
indivíduos ou pequenos grupos pediam ao intendente do rei Em terceiro lugar é interessante notar que, no século
uma lettre-de-cachet; este fazia um inquérito para saber se o XVII, as lertres-de-cachetforam bastanteutilizadas em casos de
pedido era justificado. Quando isto ocorria, ele escrevia ao conflitos de trabalho. Quando os empregadores, patrões ou
ministro do rei encarregado do assunto,solicitando enviar uma mestres não estavam satisfeitos com seus aprendizes ou operá-
lettre-de-cachet permitindo a alguém mandar prender sua mu- rios nas corporações, podiam se descartar deles expulsando-os
lher que o engana, seu filho que é muito gastador,suafilha que ou, em casos mais raros, solicitando umalettre-de-cachet.
se prostitui ou o cura da cidade que não demonstra boa À primeira greve da história da França que podeassim ser
conduta, etc. De forma quea lettre-de-cachet se apresenta, sob caracterizada foi a dos relojoeiros, em 1724. Os patrões relo-
seu aspecto de instrumento terrível da arbitrariedade real, joeiros reagiram a ela localizando osqueeles consideravam líde-
investida de umaespécie de contra poder, poder que vinha de res e em seguida escreveram aorei solicitando uma /ettre-de-cachet
baixo e que permitia a grupos, comunidades, famílias ou que foi logo enviada. Algum tempo depois o ministro dorei

96 97
quis anulara /ettre-de-cachete libertar os operários grevistas. Foi Aparece também a idéia de uma penalidade que tem por
a própria corporação dos relojoeiros que então solicitou ao rei função não ser uma resposta a umainfração, mas corrigir os
quenãolibertasseos operáriose fosse mantidaa lettre-de-cachet. indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes,
Vemos, portanto, como os controles sociais, relativos de suas disposições, do perigo que apresentam, dasvirtualida-
aqui não mais à moralidade ou à religião mas a problemas de des possíveis. Essa forma de penalidade aplicada às virtualida-
trabalho, se exercem porbaixo e por intermédio do sistema de des dos indivíduos, de penalidade que procuracorrigi-los pela
lettre-de-cachet sobre a população operária que está surgindo. reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao
Nocaso da lettre-de-cachet ser punitiva, ela tinha como universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não
resultado a prisão do indivíduo. É interessante notar que a é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa idéia
prisão não era umapenadodireito, no sistema penal dos séculos de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma
XVII e XVIII. Os legistas são perfeitamente claros a este idéia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça,
respeito. Eles afirmam que, quando a lei pune alguém, a em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de
punição será a condenação à morte, a ser queimado,a ser trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder.
esquartejado,a ser marcado,a ser banido,a pagar uma multa, Gostaria agora, depois dessas duas análises, de tirar
etc. À prisão não é uma punição. algumas conclusões provisórias que procurareiutilizar na pró-
A prisão, que vai se tornar a grande punição do século xima conferência.
XIX, tem sua origem precisamente nesta prática para-judiciária Osdados do problemasão os seguintes: Como o conjun-
da lettre-de-cachet, utilização do poderreal pelo controle espon- to teórico das reflexões sobre o direito penal que deveria
tâneo dos grupos. Quando uma /ettre-de-cachet era enviada conduzir a determinadas conclusões foi, de fato, posto em
contra alguém, esse alguém nãoera enforcado, nem marcado, desordem e encoberto por umaprática penal totalmente dife-
nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela rente, queteve sua própria elaboração teórica, no século XIX,
devia permanecer por um tempo não fixado previamente. quandoa teoria da punição,a criminologia, etc. foram retoma-
Raramente a lettre-de-cachet dizia que alguém deveria ficar he. das? Como a grande lição de Beccaria pode ser esquecida,
preso por seis meses ou um ano, por exemplo. Em geral ele relegada e finalmente abafada por umaprática da penalidade
determinavaque alguém deveriaficar retido até nova ordem,e totalmentediferente, baseada nos indivíduos, em seus compor-
a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a tamentose virtualidades, com a função de corrigi-los?
letrre-de-cachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinhase Parece-mequea origem disso se encontra em umaprá-
corrigido. Esta idéia de aprisionar para corrigir, de conservar a tica extra-penal. Na Inglaterra foram os próprios grupos que,
pessoa presa até quese corrija, essa idéia paradoxal, bizarra, sem para escapar ao direito penal, se atribuíram instrumentos
fundamento ou justificação algumaao nível do comportamen- de controle que foram finalmente confiscados pelo poder
to humano tem origem precisamente nesta prática. central. Na França, onde a estrutura do poder político era

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diferente, os instrumentos estatais estabelecidos no século XVII uma espécie de contato direto, físico com a fortuna, com a
pelo poderreal para controlara aristocracia, a burguesia e Os riqueza. O roubo dosnavios, a pilhagem dos armazéns e dos
amotinadores foram reutilizados de baixo para cima por grupos estoques, as depredações nas oficinas tornaram-se comuns no
sociais. fim do século XVIII na Inglaterra. E justamente o grande
É então que se põe a questão de saber o por que desse problema do poderna Inglaterra nesta época, é o de instaurar
movimento, desses grupos de controle; a questão de saber a que mecanismosde controle que permitam a proteção dessa nova
eles responderam. Vimos a que necessidades originárias eles forma material da fortuna. Daí se compreende porqueo criador
respondiam; mas porque tiveram esse destino, por que sofre- da polícia na Inglaterra, Colquhoun,era alguém que a princí-
ram esse deslocamento, por que o poder ou aqueles que o pio foi comerciante, sendo depois encarregado por uma com-
detinham retomaram esses mecanismos de controle situados ao panhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as
nível mais baixo da população? mercadorias armazenadas nas docas de Londres. A polícia de
Para tanto é preciso levar em consideração um fenômeno Londres nasceu da necessidade de protegerasdocas, entrepostos,
importante: a nova forma assumida pela produção. O que está armazéns, estoques, etc. Esta é a primeira razão, muito mais
na origem do processo que procurei analisar é a materialidade forte na Inglaterra do que na França, do aparecimento da
da riqueza. Na verdade, o que surge na Inglaterra do fim do necessidade absoluta desse controle. Em outras palavras,esta é
século XVIII, muito mais aliás do que na França, é o fato da a razão porqueesse controle, com um funcionamento de base
fortuna, da riqueza se investir cada vez mais nointerior de um quase popular, foi retomado de cima em determinado momen-
capital que não é mais pura e simplesmente monetário. A ro.
riqueza dos séculos XVI e XVIIera essencialmente constituída A segunda razão é que, tanto na França quanto na
pela fortuna de terras, por espécies monetárias ou eventualmen- Inglaterra a propriedade de terras vai mudar igualmente de
te porletras de câmbio que os indivíduos podiam trocar. No forma, com a multiplicação da pequenapropriedade,a divisão
século XVIII aparece uma forma de riqueza que é agora e delimitação das propriedades. O faro de não mais haver, a
investida no interior de um novo tipo de materialidade não partir daí, grandes espaços desertos ou quase não cultivados,
mais monetária; que é investida em mercadorias, estoques, nem terras comunssobreas quais todos podem viver, vai dividir
máquinas, oficinas, matérias-primas, mercadorias que estão a propriedade, fragmentá-la, fechá-la em si mesmae expor cada
para ser expedidas, etc. E o nascimento do capitalismo ou a proprietário a depredações.
transformação e aceleração da instalação do capitalismo vai se E, sobretudo entre os franceses, haverá essa perpétua
traduzir neste novo mododa fortunase investir materialmente. idéia fixa da pilhagem camponesa,da pilhagem daterra, desses
Ora, essa fortuna constituída de estoques, matérias-primas, vagabundose trabalhadores agrícolas frequentemente desem-
objetos importados, máquinas, oficinas, etc., está diretamente pregados, na miséria, vivendo como podem,roubando cavalos,
exposta à depredação. Todaessa população de gente pobre, de frutas, legumes, etc. Um dos grandes problemas da Revolução
desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem agora Francesa foi o de fazer desaparecer, essetipo de rapina campo-

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nesa. As grandes revoltas políticas da 2º parte da Revolução
Francesa na Vendéia e na Provença foram de certa forma o
resultado político de um mal-estar dos pequenos camponeses,
dos trabalhadores agrícolas que não encontravam mais, nesse
novo sistema de divisão da propriedade, os meios de existência
que tinham no regime de grandes propriedades agrícolas.
Foi, portanto, essa novadistribuição espacial e social da
riqueza industrial e agrícola que tornou necessários novos
controles sociais no fim do século XVIII.
Esses novossistemas de controle social agora estabeleci-
dos pelo poder, pela classe industrial, pela classe dos proprie- Naúltima conferência procurei definir o que chamei de
tários foram justamente tomados dos controles de origem panoptismo. O panoptismo é um dos traçoscaracterísticos da
popular ou semi-popular, a que foi dada umaversão autoritá- nossa sociedade. É umaforma de poder quese exerce sobre os
ria e estatal, indivíduos era forma devigilância individual e contínua, em
Esta é, a meuver, a origem da sociedade disciplinar. formy de controle de punição e recompensa e em forma de
Tentarei explicar na próxima conferência como esse movi- correção,isto é, de formação e transformação dos indivíduos
mento — de que mostrei apenaso esboço no século XVIII — em função de certas normas. Este trípliceaspecto do panoptismo
foi institucionalizado e se tornou uma forma de relação — vigilância, controle e correção — parece ser uma dimensão
política interna da sociedade do século XIX. fundamental e característica das relações de poder queexistem
em nossa sociedade.
Em uma sociedade como a sociedade feudal não se
encontra nada de semelhante ao panoptismo. Isto não quer
dizer que em umasociedade de tipo feudal ou nassociedades
européias do século XVII não tenha havido instâncias de
controle social e de punição e recompensa. Entretanto, a
maneira pela qual elas se distribuíam era completamente
diferente da maneira através da qual elas se instalaram no fim
do século XVIII e no começodo século XIX. Vivemos hoje em
uma sociedade programada, no fundo, por Bentham, uma
sociedade panóptica, sociedade onde reina o panoptismo.
Tentarei mostrar nesta conferência que o aparecimento
do panoptismo comporta uma espécie de paradoxo. No mo-

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te, nos
século XIX ou pelo menos algumas delas, não ignoraram o
mento mesmo em que ele aparece ou, mais exatamen
aparecimento do que chamei, um poucoarbitrariamente mas,
anos que precederam imediatamente seu surgimento, vemos
em todo caso, em homenagem a Bentham,de panoptismo. Na
formar-se uma certa teoria do Direto Penal, da penalidade, da
verdade, várias pessoas refletiram e ficaram muito intrigadas
punição, de que Beccaria é o representante mais importante,
com o que estava acontecendo emsua época, com a organização
que se funda, essencialmente, em um legalismo estrito. Esta
da penalidade ou da moral estatal. Há um autor, muito
teoria da punição subordinao fato de punir, a possibilidade de
importante na época, professor na Universidade de Berlira e
punir, à existência de umalei explícita, à constatação explícita
colega de Hegel, que escreveu e publicou em 1830 um grande
de umainfraçãoa estalei e finalmente a uma punição que teria
tratado em vários volumes chamado Lições sobre as Prisões. Este
por função reparar ou prevenir, na medida do possível, o dano
homem, chamado Giulius, cuja leitura lhes recomendo,e que
causado pela infração à sociedade. Esta teoria legalista, teoria
durante vários anos deu um curso em Berlin sobre as prisões, é
propriamente social, quase coletiva, se opõe inteiramente ao
um personagem extraordinário que tinha, em certos momen-
panoptismo. No panoptismo vigilância sobre os indivíduosse
tos, um fôlego quase hegeliano.
exerce ao nível não do quese faz, mas do que se é; não do que
Nas Lições sobre as Prisões há uma passagem que diz: “Os
se faz, mas de que se pode fazer. Nelea vigilância tende, cada
arquitetos modernos estão descobrindo uma formaque nãoera
vez mais, a individualizar o autor do ato, deixando de conside-
conhecida antigamente. Outrora — diz ele, referindo-se à
rar a natureza jurídica, a qualificação penal do próprio ato. O
civilização grega — a grande preocupaçãodosarquitetos era de
panoptismo opõe-se, portanto, à teoria legalista que se formara
resolver o problema de como possibilitar o espetáculo de um
nos anos precedentes.
acontecimento, de um gesto, de um único indivíduo ao maior
Defato, o que éimportante observare o que constitui um
número possível de pessoas. É o caso — diz Giulius — do
fato histórico importanteé queestateoria legalista foi duplica-
sacrifício religioso, acontecimento único de que deveparticipar
da, em um primeiro momento,e, posteriormente, encobertae
o maior número possível de pessoas; é também o caso do teatro
totalmente obscurecida pelo panoptismo que se formara à sua
que deriva, aliás, do sacrifício; dos jogos circenses, dos oradores
margem oua seu lado. É o nascimento do panoptismo, que se
e dos discursos. Ora, — diz ele — esse problema presente na
formae que é movido por umaforça de deslocamento, desde o
sociedade grega na medida em que esta era uma comunidade
século XVII até o século XIX,ao longo do espaço social; é esta
queparticipava dos acontecimentos fortes que formavam a sua
retornada pelo poder central dos mecanismos populares de
unidade — sacrifícios religiosos, teatro ou discursos políticos
controle que caracteriza a evolução do século XVIII e que
— continuou a dominar a civilização ocidental até a época
explica como começa, no início do século XIX, a era de um
moderna. O problemadas igrejas é ainda exatamente o mesmo.
panoptismoquevai ofuscar toda a prática e até certo ponto toda
Todos devem presenciar outodos devem servir de audiência no
a teoria do Direito Penal.
caso do sacrifício da missa ou da palavra do padre. Atualmente,
Para justificar as teses queestou apresentando gostaria de
continua Giulius, o problema fundamental que se apresenta
referir-me a algumas autoridades. As pessoas do começo do

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104
E Treilhard utiliza uma metáfora: O procurador não
para a arquitetura modernaé o inverso. Quer-se fazer com que
deve ter como função apenas perseguir os indivíduos que
o maior número de pessoas seja oferecido como espetáculo a
cometeram infrações; sua função principal e primeira deve ser
um só indivíduo encarregado de vigiá-las”.
a de vigiar os indivíduos antes mesmo que a infração seja
Aoescrever isto, Giulius estava pensando no Panopticon
cometida. O procurador não é apenas o agente da lei que age
de Bentham e, de maneira geral, na arquitetura das prisões, e até quando esta é violada; o procuradoré antes de tudo um olhar,
certo ponto, dos hospitais, das escolas, etc. Ele estava se um olho perpetuamente aberto sobre a população. O olho do
referindo ao problema de uma arquitetura não mais do espetá- procurador deve transmitir as informações ao olho do Procu-
culo, comoa grega, mas de uma arquitetura davigilância, que rador Getal que, por sua vez, as transmite ao grande olho da
permite a um único olhar percorrer o maior número de rostos,
vigilânciaque era, na época, o Ministro da Polícia. Este último
de corpos, de atitudes, o maior número decelas possíveis. “Ora, transmite as informações ao olho daquele que se encontra no
diz Giulius, o aparecimento deste problema arquitetônico é ponto mais alto da sociedade, o imperador, que, precisamente
correlato ao desaparecimento de umasociedade quevivia sob na época, era simbolizado por um olho. O imperador é o olho
a forma de uma comunidade espiritual e religiosa e ao apareci-
universal voltado sobre a sociedade em toda a sua extensão.
mento de umasociedade estatal. O Estado se apresenta como
Olhoauxiliado por umasérie de olhares, dispostos em forma de
uma certa disposição espacial e social dos indivíduos, em que
pirâmide a partir do olho imperial e que vigiam toda a
todos estão submetidos a uma única vigilância”. Ao concluir sociedade. Para Treilhard, para os legistas do Império, para
sua explanação sobre estes dois tipos de arquitetura, Giulius
aqueles que fundaram o Direto Penal francês — que teve,
afirma que “nãose trata de um simples problema de arquitetu-
infelizmente, muita influência no mundo inteiro — esta
ra, e que esta diferença é capital na história do espírito huma-
grande pirâmide de olhares consistia na nova formade justiça.
no”, Não analisarei aqui todas as instituições em que são
Giulius não foi o único a perceber, no seu tempo, este
atualizadas essas características do panoptismo próprias da
fenômeno da inversão do espetáculo em vigilância ou do
sociedade moderna, industrial, capitalista. Gostaria simples-
nascimento de uma sociedade do panoptismo. Em muitos
mente de apreender este panoptismo, esta vigilância na base, no
textos encontram-se análises do mesmo tipo. Citarei apenas lugar em que aparece talvez menos claramente, em que está
um destes textos, escrito por Treilhard, conselheiro de Estado, mais afastado do centro da decisão, do poder do Estado;
jurista do Império, que é a apresentação do Código de Instrução mostrar como este panoptismo existe, ao nível mais simples e
Criminal de 1808. Neste texto Treilhard afirma: - no funcionamento quotidiano de instituições que enquadram
“O Código de Instrução Criminal que lhes apresento, a vida e os corpos dos indivíduos; o panoptismo, ao nível,
constitui umaverdadeira novidade não somente nahistó- portanto, da existência individual.
ria da justiça, da prática judiciária, mas das sociedades
Em que consistia e, sobretudo, para que servia o
humanas. Nele nós damos ao procurador, querepresenta
panoptismo? Vou propor uma adivinhação. Apresentarei o
o poderestatal ou o podersocial frente aos acusados, um
papel completamente novo”.
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regulamento de umainstituição que realmente existiu nos anos admitidos. Os pensionistas só podiam sair do estabelecimento
1840/45 na França, no começo, portanto, do período que durante os passeios de domingo, mas sempre sob a vigilância do
estou analisando. Darei o regulamento sem dizer se é uma pessoal religioso. Este pessoal vigiava os passeios, os dormitó-
fábrica, uma prisão, um hospital psiquiátrico, um convento, rios e assegurava a vigilância e a exploração das oficinas. O
uma escola, um quartel; é preciso adivinhar de que instituição pessoal religioso garantia, portanto, não só o controle do
se trata. Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não trabalhesgda moralidade, mas também o controle econômico.
eram casadase que deviam levantar-se todas as manhãsàs cinco Estes pensionistas não recebiam salários, mas um prêmio —
horas; às cinco e cinquenta deveriam ter terminadode fazer a uma soma global estipulada entre 40 e 80 francos por ano —
toilette, a camae ter tomado o café; às seis horas começava o que somentelhes era dado no momento em que saíam. Nocaso
trabalho obrigatório, que terminavaàs oito e quinze da noite, de umapessoa de outro sexo precisar entrar noestabelecimento
com uma hora de intervalo para o almoço; às oito e quinze, por razões materiais, econômicas, etc, deveria ser escolhida
jantar, oração coletiva; o recolhimento aos dormitórios era às com o maior cuidado e permanecer por muito pouco tempo.
nove horas em ponto. O domingo era um dia especial; o artigo O silêncio lhes era imposto sob pena de expulsão. De um modo
cinco do regulamento destainstituição dizia: “Queremos guar- geral, os dois princípios de organização,segundo o regulamen-
dar o espírito que o domingo deve ter, isto é, dedicá-lo ao to, eram: os pensionistas nunca deveriam estar sozinhos no
cumprimento do dever religioso e ao repouso. Entretanto, dormitório, no refeitório, na oficina, ou no pátio, e deveria ser
comoo tédio não demoraria a tornar o domingo mais cansativo evitada qualquer mistura com o mundo exterior, devendo
do queos outros dias da semana, deverão ser feitos exercícios reinar no estabelecimento um único espírito.
diferentes, de modoa passar este dia cristã e alegremente”; de Queinstituição era esta? No fundo a questão não tem
manhã, exercícios religiosos, em seguida exercícios deleitura e importância, pois poderia ser indiferentemente qualquer uma:
de escrita e finalmente recreação às últimas horas da manhã; à umainstituição para homens ou para mulheres, para jovens ou
tarde, catecismo,as vésperas, e passeio depois das quatro horas, para adultos, uma prisão, um internato, uma escola ou uma
se não fizesse frio. Caso fizesse frio, leitura em comum. Os casa de correção. Não é um hospital, pois, fala-se muito em
exercícios religiosos e a missa não eram assistidos na igreja trabalho. Também não é um quartel, pois se trabalha. Poderia
próximaporqueisto permitiria aos pensionistas deste estabele- ser um hospital psiquiátrico, ou mesmo umacasa de tolerância.
cimento terem contato com o mundo exterior; assim,para que Naverdade, era simplesmente uma fábrica. Uma fábrica de
nem mesmoa igreja fosse o lugar ou o pretexto de um contato mulheres que existia na região do Ródano e que comportava
com o mundo exterior, os serviços religiosos tinham lugar em quatrocentos operárias.
um capela construída no interior do estabelecimento. “A igreja Alguém poderia dizer que este é um exemplo caricatural,
paroquial, diz aindaeste regulamento, poderia ser um ponto de que faz rir, uma espécie de utopia. As fábricas-prisões, as
contato com o mundoe por isso umacapela foi consagrada no fábricas-conventos, fábricas sem salário, onde o tempo do
interior do estabelecimento”. Osfiéis de fora não eram sequer operário é inteiramente comprado, de uma vez por todas, por

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um prêmio anual que só é recebido na saída. Trata-se de um livro se procurou analisar como, nos Estados Unidos, aparece-
sonho de patrão ou do que o desejo do capitalista sempre ram esses edifícios e essas instituições que se espalharam por
produziu ao nível dos fantasmas; um caso-limite que nunca toda a sociedade ocidental. Esta história começaa ser feita para
teve existência histórica real. A isso eu responderia: Este sonho os Estados Unidos; será preciso fazê-la também para outros
patronal, este Panopticon industrial existiu realmente, e em países tentando, sobretudo, dar a medida de sua importância,
larga escala, noinício do século XIX. Em uma únicaregião da medir sua amplitude política e econômica.
França,no sudeste, havia 40.000 operárias têxteis que trabalha- É precisoir ainda mais longe. Não somente houve estas
vam neste regime, o que era, naquele momento, um número instituições industriais e a seu lado umasérie de outrasinstitui-
evidentemente considerável. Existiu também o mesmotipo de ções, mas de fato o que se passou foi que estas instituições
instituições em outras regiões e em outros países; na Suíça, em industriais foram, em um certo sentido, aperfeiçoadas; foi na
particular, e na Inglaterra. Aliás, foi assim que Owen teve a sua construção que se concentraram osesforços imediatamen-
idéia de suas reformas. Nos Estados Unidos havia um comple- te; elas é que estavam sendo visadas pelo capitalismo. No
xo inteiro de fábricas têxteis organizadas segundo o modelo das entanto, muito depressa elas pareceram não ser viáveis nem
fábricas-prisões, fábricas-pensionatos, fábricas-conventos. governáveis. À carga econômica destas instituições revelou-se
Trata-se pois, de um fenômeno que teve, na época, uma imediatamente muito pesadae a estrutura rígida dessas fábri-
amplitude econômica e demográfica muito grande. De tal cas-prisões levou, muito depressa, muitas delas à ruína. Final-
maneira que podemos dizer que não somente tudo isso foi o mente, todas desapareceram. Com efeito, no momento em que
sonho do patronato, mas foi o sonho realizado do patronato. houve umacrise de produção, em que foi preciso desempregar
De fato há duas espécies de utopia: as utopias proletárias um certo número de operários, em que foi preciso readaptar a
socialistas que têm a propriedade de nuncase realizarem,e as produção; no momento em que o ritmo do crescimento da
utopias capitalistas que têm a má tendência de se realizarem produção se acelerou, essas casas enormes, com um número
frequentemente. A utopia de que falo, a fábrica-prisão, foi fixo de operários e uma aparelhagem montada de forma
realmente realizada. E não somente foi realizada na indústria definitiva, revelaram-se absolutamente não válidas. Preferiu-se
mas em umasérie de instituições que surgiam na mesma época. fazer desaparecer estas instituições, conservando-se, de algum
Instituições que, no fundo, obedeciam aos mesmos modelose modo,certas funções que elas desempenhavam. Organizaram-
aos mesmosprincípios de funcionamento; instituições do tipo se técnicas laterais ou marginais, para assegurar, no mundo
pedagógico como escolas, orfanatos, centros de formação; industrial, as funções de internamento, de reclusão, de fixação
instituições correcionais comoa prisão, a casa de recuperação, da classe operária, desempenhadas inicialmente porestas insti-
a casa de correção, instituições ao mesmo tempo correcionais tuições rígidas, quiméricas, um pouco utópicas. Foram toma-
e terapêuticas como o hospital, o hospital psiquiátrico, tudo o das, então, medidas comoa dacriação de cidades operárias, de
que os americanos chamam de asylums (asilos) e que um caixas econômicas, de caixas de assistência, etc., de umasérie de
historiador americano, analisou em um livro recente. Neste meios pelos quais se tentou fixar a população operária, o

110 11
proletariado em formação no corpo mesmo do aparelho de exercido pelo grupo, sobre um indivíduo ou sobre indivíduos
produção. pertencentesa este grupo. Esta era a situação ao menos em seu
A pergunta que precisaria ser respondida é a seguinte: À momento inicial no fim do século XVII e início do século
que é quese visava, com esta instituição da reclusão, em suas XVIII. Os quakers, os metodistas, exerciam o controle sempre
duas formas: a forma compacta, forte, encontradanoinício do sobre aqueles que pertenciam aos seus próprios grupos ou sobre
século XIX e, mesmo depois, em instituições como escolas, aqueles que se encontravam no espaço social ou econômico do
hospitais psiquiátricos, casas de correção, prisões, etc., e em próprio grupo. Só mais tarde é que as instâncias deslocaram-se
seguida a reclusão em sua forma branda, difusa, encontrada em para cima e para o Estado. Era o fato de um indivíduo pertencer
instituições comoa cidade operária, a caixa econômica,a caixa a um grupo que fazia com que ele pudesse ser vigiadoe vigiado
de assistência, etc.? pelo próprio grupo. Já nas instituições que se formam no século
À primeira vista poder-se-ia dizer que esta reclusão XIX não é de forma alguma na qualidade de membro de um
moderna que aparece, no século XIX,nas instituições a que me grupo que o indivíduo é vigiado; ao contrário,é justamente por
refiro é uma herança direta das duas correntes ou tendências ser um indivíduo queele se encontra colocado em umainstitui-
que encontramos no século XVIII. Por um lado, a técnica ção, sendo esta instituição que vai constituir o grupo, a coleti-
francesa do internamento e, por outro, o procedimento de vidade queserá vigiada. É enquanto indivíduo quese entra na
controle de tipo inglês. Na conferência anterior se tentou escola, é enquanto indivíduo que se entra no hospital, ou que
mostrar como,na Inglaterra, a vigilância social tivera origem no se entra na prisão. À prisão, o hospital, a escola, a oficina não
controle exercido no interior do grupo religioso pelo próprio são formas de vigilância do próprio grupo. É a estrutura de
grupo isto especialmente nos gruposreligiosos dissidentes, e vigilância que, chamando para si os indivíduos, tomando-os
como,na França,a vigilância e o controle social eram exercidos individualmente, integrando-os, vai constituí-los secundaria-
por um aparelho de Estado, aliás fortemente investido de mente enquanto grupo. Vemos portanto comona relação entre
interesses particulares, que tinha como sanção principal o a vigilância e o grupo há um diferença capital entre os dois
internamento nas prisões ou em outras instituições dereclusão. momentos.
Portanto, poder-se-ia dizer que a reclusão do século XIX é uma No que se refere ao modelo francês, também o interna-
combinação de controle moral e social, nascido na Inglaterra, mento do século XIX é bastante diferente do que havia na
com a instituição propriamente francesae estatal da reclusão França no século XVIII. Nesta época, quando alguém era
em um local, em um edifício, em uma instituição, em uma internado, tratava-se sempre de um indivíduo marginalizado
arquitetura. em relação à família, ao grupo social, à comunidade local a que
Entretanto, o fenômeno que aparece no século XIX se pertencia; alguém que não estava dentro da regra e que se
apresenta, apesar disso tudo, como uma novidade tanto em tornara marginal por sua conduta, sua desordem,a irregulari-
relação ao modo de controle inglês quanto em relaçãoà reclusão dade de sua vida. O internamento respondia a essa marginali-
francesa. No sistema inglês do século XVIII o controle é zação de fato, com umaespécie de marginalização de segundo

12 113
um processo de controle que era, no começo, nitidamente
grau, de punição. Era comosese dissesse ao indivíduo: “Já que
extra-estatal e mesmo anti-estatal; uma espécie de reação de
você se separou de seu grupo, vamos separá-lo definitiva e
defesa dos grupos religiosos à dominação do Estado, pelo qual
provisoriamente da sociedade”. Havia portanto, na França
eles asseguravam seu próprio controle. Na França havia, ao
desta época, umareclusão de exclusão.
Na época atual, todas essas instituições — fábrica, contrário, um aparelho, fortemente estatizado, pelo menos em
sua formae seus instrumentos, na medida em queele consistia
escola, hospital psiquiátrico, hospital, prisão — têm por
essencialmente nainstituição das lettres-de-cachet. Havia, por-
finalidade não excluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos.
A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de tanto, uma fórmula absolutamente extra-estatal na Inglaterra e
uma fórmula absolutamenteestatal, na França. No século XIX
produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechan-
aparece algo novo e muito mais brando rico, uma série de
do-os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O
instituições — escolas, fábricas, etc. — de que é difícil dizer se
hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um
são francamente estatais ou extra-estatais; se fazem parte ou não
aparelho de correção, a um aparelho de normalização dos
do aparelho do Estado. De fato, dependendodas instituições,
indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com
dos países e das circunstâncias, algumas destas instituições são
a prisão. Mesmose osefeitos dessas instituições são a exclusão
controladas diretamente pelo aparelho do Estado. Na França,
do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os
por exemplo, houve um conflito para que as instituições
indivíduos em um aparelho de normalização dos homens. A
pedagógicas essenciais fossem controladas pelo aparelho do
fábrica, a escola, a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar
Estado; fez-se disso um jogo político. Maso nível em que me
o indivíduo a um processo de produção, de formação ou de
situo nãoleva em consideração essa questão; não me parece que
correção dos produtores. Trata-se de garantir a produção ou os
esta diferença seja muito importante. O que é novo, o que é
produtores em função de uma determinada norma.
interessante é que, no fundo, o Estadoe o que não é estatal vêm
Pode-se, portanto, opora reclusão do século XVIII, que
confundir-se, entrecruzar-se no interior destas instituições.
exclui os indivíduosdocírculo social, à reclusão que aparece no
Mais do que instituições estatais ou não estatais, é preciso dizer
século XIX, que tem por função ligar os indivíduos aos
que existe uma rede institucional de sequestro, que é intra-
aparelhos de produção, formação,reformação ou correção de
estatal; a diferença entre aparelho de Estado e o que não é
produtores. Trata-se, portanto, de umainclusão por exclusão.
aparelho de Estado não me parece importante para analisar as
Eis porque oporeia reclusão ao sequestro; a reclusão do século
funções deste aparelho geral de sequestro, desta rede de seques-
XVIILque tem por função essencial a exclusão dos marginais
tro no interior da qual nossa existência se encontra aprisionada.
ou reforço da marginalidade,e o sequestro do século XIX que
Para que servem essa rede e essas instituições? Podemos
tem porfinalidade a inclusão e a normalização.
caracterizar a função destas instituições da seguinte maneira.
Existe, finalmente, um terceiro conjunto de diferenças
Primeiramente, estas instituições-pedagógicas, médicas, penais
em relação ao século XVIII, que dá umaconfiguração original
ou industriais — têm a propriedade muito curiosa de implica-
à reclusão no século XIX. NaInglaterra, no século XVIII, havia

115
114
rem o controle, a responsabilidade sobre a totalidade, ou a da vida dos trabalhadores, da manhã à noite e da noite à manhã,
quase totalidade do tempo dosindivíduos; são portanto,insti- é comprado de uma vez por todas, pelo preço de um prêmio,
tuições que, de certa forma, se encarregam de toda a dimensão por uma instituição. Encontramos o mesmo fenômeno em
temporal da vida dos indivíduos. outras instituições, nas instituições pedagógicas fechadas, que
Creio que, a esse respeito, é possível opor a sociedade se abrirão pouco a pouco durante o século, casas de correção,
moderna à sociedade feudal. Na sociedade feudal e em muitas orfanatos e prisões. Além disso temos uma porção de formas
sociedades que os etnólogos chamamde primitivas, o controle difusas, em particulara partir do momento em que se percebeu
dos indivíduos se faz essencialmente a partir da inserção local, que não era possível gerir estas fábricas-prisões; quando sefoi
do fato de pertencerem a um determinado lugar. O poder obrigado a voltar a um tipo de trabalho em que as pessoas
feudal se exerce sobre os homens na medida em que pertencem viriam pela manhã, trabalhariam e deixariam o trabalho à
a umacerta terra. À inscrição geográfica local é um meio de noite. Vemos multiplicar-se, então, instituições em que o
exercício do poder. Este se inscreve sobre os homens por tempo das pessoas se encontra controlado, mesmo não sendo
intermédio da sua localização. Ao contrário, a sociedade mo- efetivamente extraído em sua totalidade, para tornar-se tempo
derna que se forma no começo do século XIX é, no fundo, de trabalho.
indiferente ou relativamente indiferente à pertinência espacial No correr do século XIX, uma série de medidas será
dos indivíduos; ela não se interessa pelo controle espacial dos adotada visando suprimir as festas e diminuir o tempo de
indivíduos na forma desua pertinência a umaterra, a um lugar, descanso; uma técnica muito sutil se elabora ao longo do século
mas simplesmente na medida em que tem necessidade de que para controlar a economia dos operários. Para que a economia,
os homens coloquem suadisposição seu tempo. É preciso que por um lado, tivesse a flexibilidade necessária, era preciso,
o tempo dos homensseja oferecido ao aparelho de produção; havendo necessidade, poder desempregar os indivíduos; mas
que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida, o por outro lado, para que os operários pudessem depois do
tempo deexistência dos homens. É para isso e desta forma que tempo de desemprego indispensável recomeçar a trabalhar,
o controle se exerce. São necessárias duas coisas para que se sem que neste intervalo morressem de fome, era preciso que
forme a sociedade industrial. Por um lado, é preciso que o tivessem reservas e economias. Daí o aumento dossalários que
tempo dos homensseja colocado no mercado, oferecido aos vemos claramente se esboçar na Inglaterra nos anos 40 e na
que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um salário; e França nos anos 50. Mas, a partir do momento em que os
é preciso, por outro lado, que este tempo dos homens seja operários têm dinheiro, é preciso que eles não utilizem suas
transformado em tempo detrabalho. É por isso que em uma economias antes do momento em que estiverem desemprega-
série de instituições encontramos o problemae as técnicas da dos. Eles não devem utilizar suas economias no momento em
extração máxima do tempo. que desejarem, para fazer greve oupara festejar. Surge então a
Vimos, no exemplo a que me referi, este fenômeno em necessidade de controlar as economias do operário. Daí a
sua forma compacta, em seu estado puro. O tempo exaustivo criação, na década de 1820 e sobretudo,a partir dos anos 40 e

116 17
50, de caixas econômicas, de caixas de assistências, etc., que
número de razões de higiene. Elas são, no entanto, marginais
permitem drenar as economias dos operários e controlar a
com relação a uma espécie de decisão geral, fundamental,
maneira comosãoutilizadas. Desta forma, o tempo do operá-
universal de que um hospital, psiquiátrico ou não, deve se
rio, não apenas o tempo do seu dia de trabalho, mas o de sua
encarregar não só da função particular que exerce sobre os
vida inteira, poderá efetivamenteserutilizado da melhor forma
indivíduos, mas também da totalidade da sua existência. Por
pelo aparelho de produção. É assim que sob a forma destas
quenas escolas não se ensina somentea ler, mas se obrigam as
instituições aparentemente de proteção e de segurança se
pessoas a se lavar? Existe aqui umaespécie de polimorfismo,de
estabelece um mecanismopelo qual o tempo inteiro da existên-
polivalência; de indiscrição, de não-discrição, de sincretismo
cia humanaé posto à disposição de um mercado de trabalhoe
desta função de controle da existência.
das exigências do trabalho. A extração da totalidade do tempo
Mas, se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a
é a primeira função destas instituições de sequestro. Seria
existência dos indivíduos se encontra controlada por estas
possível mostrar, igualmente, como nos países desenvolvidos
instituições, vemos que se trata, no fundo, não somente de
este controle geral do tempo é exercido pelo mecanismo do
apropriação, de extração da quantidade máxima de tempo,
consumoe da publicidade. mas, também,de controlar, de formar, de valorizar, segundo
A segunda função das instituições de sequestro é não
um determinado sistema, o corpo do indivíduo. Se fizéssemos
mais a de controlar o tempo dos indivíduos, mas a de controlar
umahistória do controle social do corpo, poderíamos mostrar
simplesmente seus corpos. Existe algo de muito curioso nestas
que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é
instituições. É que, se aparentemente elas são todas especializa-
essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas;
das — as fábricas feitas para produzir, os hospitais, psiquiátri-
o corpo era feito para ser supliciadoe castigado.Já nas instâncias
cos ou não, para curar, as escolas para ensinar, as prisões para
de controle que surgem partir do século XIX,o corpo adquire
punir —, o funcionamento destas instituições implica uma
umasignificação totalmentediferente; ele não é mais o que deve
disciplina geral da existência que ultrapassa amplamente as suas
ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado,corri-
finalidades aparentemente precisas. É muito curioso observar,
gido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número
por exemplo, comoa imoralidade (a imoralidade sexual) cons-
de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar.
tituiu, para os patrões das fábricas do começo do século XIX,
Vemos aparecer assim claramente a segunda função. A pri-
um problema considerável. E isto não simplesmente em função
meira função do sequestro era de extrair o tempo,fazendo com
dos problemas de natalidade, que se controlava mal, ao menos
que o tempo dos homens, o tempo de sua vida, se transfor-
ao nível da incidência demográfica. A razão é que o patronato
masse em tempode trabalho. Sua segundafunção consiste em
não suportava a devassidão operária, a sexualidade operária.
fazer com que o corpo dos homensse torneforça de trabalho.
Pode-se perguntar, igualmente, porque nos hospitais, psiquiá-
A função de transformação do corpo em força de trabalho
tricos ou não, que são feitos para curar, o comportamento
responde à função de transformação do tempo em tempo de
sexual,a atividade sexual é proibida. Pode-se invocar um certo trabalho.

118
119
Aterceira função destas instituições de sequestro consiste função geral, o modelo do poder judiciário. Por que, para
na criação de um novo e curioso tipo de poder. Qual a forma ensinar algumacoisa a alguém, se deve punir e recompensar?
de poder quese exerce nestas instituições? Um poder polimorfo, Este sistema parece evidente, mas, se refletimos, vemos que a
polivalente. Há, por um lado, em um certo número de casos, evidência se dissolve; se lemos Nietzsche vemos que se pode
um poder econômico. No caso de uma fábrica, o poder conceber um sistema de transmissão do saber que nãoesteja no
econômico oferece um salário em troca de um tempo de interior de um aparelhode sistema de poder judiciário, políti-
trabalho em um aparelho de produção que pertence ao proprie- co, econômico, etc.
tário. Há, além deste, um poder econômico de outro tipo: o Finalmente, há uma quarta característica do poder.
caráter pago do tratamento, em certo número de instituições Poder que, de certa forma, atravessa e anima estes outros
hospitalares. Mas, por outro lado, em todas essas instituições, poderes. Trata-se de um poder epistemológico, poder de
há um poder não somente econômico mas também político. As extrair dos indivíduos um saber e extrair um saber sobre estes
pessoas que dirigem estas instituições se delegam o direito de indivíduos submetidos ao olhar e já controlados por estes
dar ordens, de estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de diferentes poderes. Isto se dá, portanto, de duas maneiras. Em
expulsar indivíduos, aceitar outros, etc. Em terceiro lugar,este uma instituição como umafábrica, por exemplo, o trabalho
mesmo poder, econômico e político, é também um poder operário e o saber do operário sobre seu próprio trabalho, os
judiciário. Nestas instituições não apenas se dão ordens, se melhoramentos técnicos, as pequenas invenções e descobertas,
tomam decisões, não somente se garantem funções como a
as micro-adaptações queele puder fazer no decorrer do traba-
produção, a aprendizagem, etc., mas também se tem o direito lho são imediatamente anotadase registradas, extraídas portan-
de punir e recompensar, se tem o poder de fazer comparecer to da sua prática, acumuladas pelo poder quese exerce sobre ele
diante de instâncias de julgamento. Este micro-poder que por intermédio da vigilância. Desta forma, pouco a pouco,o
funcionano interior destas instituições é ao mesmo tempo um trabalho do operário é assumido em um certo saber da produ-
poderjudiciário. O fato é surpreendente, por exemplo, no caso tividade ou um certo saber técnico da produção que vão
dasprisões, para onde os indivíduos são enviados porque foram permitir um reforço do controle. Vemos, portanto, como se
julgados por um tribunal, mas onde sua existência é colocada forma um saber extraído dos próprios indivíduos, a partir do
soba observação de umaespécie de micro-tribunal, de pequeno seu próprio comportamento.
tribunal permanente, constituído pelos guardiões e pelo diretor Há, além deste, um segundo saberque se formaa partir
da prisão, que da manhã à noite vai puni-los segundo seu desta situação. Um saber sobre os indivíduos que nasce da
comportamento. O sistema escolar é também inteiramente observação dos indivíduos, da suaclassificação, do registro eda
baseado em umaespécie de poder judiciário. À todo momento análise dos seus comportamentos, da sua comparação,etc.
se punee se recompensa,se avalia, se classifica, se diz quem é o Vemos assim nascer, ao lado desse saber tecnológico, próprio
melhor, quem é o pior. Poder judiciário que por conseguinte a todasas instituições de sequestro, um saber de observação, um
duplica, de maneira bastante arbitrária, se não se considera sua saber de certa formaclínico, do tipo da psiquiatria, da psicolo-

120 121
gia, da psico-sociologia, da criminologia, etc. É assim que os Para terminar, apresentarei, de forma um pouco abrupta
indivíduos sobre os quaisse exerce o poder ou são aquilo a partir algumas conclusões. Primeiramente, parece-me que a partir
de quese vai extrair o saber que eles próprios formaram e que desta análise se pode explicar o aparecimento da prisão, insti-
será retranscrito e acumulado segundo novas normas, ou são tuição quejá lhes disseser bastante enigmática. De que maneira
objetos de um saber que permitirá também novas formas de a partir de umateoria do Direito Penal, como a de Beccaria,
controle. É assim, por exemplo, que um saber psiquiátrico pode-se chegara algo tão paradoxal comoa prisão? Como uma
nasceu e se desenvolveu até Freud, que foi a primeira ruptura instituição tão paradoxal e tão cheia de inconvenientes pode
com ele. O saber psiquiátrico se formoua partir de um campo impor-se a um Direito Penal que era, em aparência, de uma
de observação exercida prática e exclusivamente pelos médicos rigorosa racionalidade? Como um projeto de prisão corretiva
enquanto detinham o poderno interior de um campo institu- pode impor-se à nacionalidade legalista de Beccaria? Parece-me
cional fechado que era o asilo, o hospital psiquiátrico. Do quese a prisão se impôs foi porque era, no fundo, apenas a
mesmo modo, a pedagogia se formou a partir das próprias forma concentrada, exemplar, simbólica de todasestas institui-
adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações observa- ções de sequestro criadas no século XIX. De fato, a prisão é
das e extraídas do seu comportamento para tornarem-se em isomorfa a tudoisso. No grande panoptismosocial cuja função
seguida leis de funcionamento das instituições e forma de é precisamente a transformação da vida dos homens em força
poder exercido sobre a criança. produtiva, a prisão exerce uma função muito mais simbólica e
Nestaterceira função das instituições de sequestro atra- exemplar do que realmente econômica, penal ou corretiva. A
vés destes jogos do podere do saber, poder múltiplo e saber que prisão é a imagem da sociedade e a imagem invertida da
interfere e se exerce simultaneamente nestas instituições, temos sociedade, imagem transformada em ameaça. À prisão emite
a transformaçãoda força do tempoe da força de trabalho e sua dois discursos. Ela diz: “Eis o que é a sociedade; vocês não
integração na produção. Que o tempo da vida se torne tempo podem me criticar na medida em que eu faço unicamente
de trabalho, que o tempo de trabalho se torne força de trabalho, aquilo quelhes fazem diariamente na fábrica, na escola, etc. Eu
que a força de trabalho se torne força produtiva; tudo isto é sou, pois, inocente; eu sou apenas a expressão de um consenso
possível pelo jogo de umasérie de instituições que esquemati- social”. É isso que se encontra nateoria da penalidade ou da
camente, globalmente; as define como instituições do seques- criminologia; a prisão não é uma ruptura com o que se passa
tro. Parece-me que, quando interrogamos de perto estas todos os dias. Mas ao mesmo tempo prisão emite um outro
instituições de sequestro encontramos sempre, qualquer que discurso: “A melhor prova de que vocês não estão na prisão é
seja seu ponto de inserção, seu ponto de aplicação particular, queeu existo comoinstituição particular, separada das outras,
um tipo de invólucro geral, um grande mecanismode transfor- destinada apenas àqueles que cometeram umafalta contra a
mação: comofazer do tempo e do corpo dos homens,da vida lei”.
dos homens, algo queseja força produtiva. É este conjunto de Assim,a prisão ao mesmo tempo se inocenta de ser prisão
mecanismo que é assegurado pelo sequestro. pelo fato de se assemelhara todo o resto, e inocenta todasas

122 123
outras instituições de serem prisões, já que ela se apresenta penetra muito mais profundamente em nossa existência. Tal
como sendo válida unicamente para aqueles que cometeram comofoi instaurado no século XIX,esse regime foi obrigado a
umafalta. É justamente esta ambiguidade na posição da prisão elaborar um conjunto de técnicas políticas, técnicas de poder,
que me parece explicar seu incrível sucesso, seu caráter quase pelo qual o homemse encontraligadoa algo comoo trabalho,
evidente, a facilidade com queela foi aceita, quando, desde o um conjunto de técnicas pelo qual o corpo e o tempo dos
momento em que apareceu, desde o momento em que se homens se tornam tempo de trabalho e força de trabalho e
desenvolveram as grandes prisões penais, de 1817 a 1830, todo podem ser efetivamente utilizados para se transformar em
mundo conhecia tanto seu inconveniente quanto seu caráter sobre-lucro. Mas para haver sobre-lucro é preciso haver sub-
funesto e perigoso. Esta é a razão porquea prisão podeseinserir poder. É preciso que, ao nível mesmodaexistência do homem,
e se insere de fato na pirâmide dos panoptismossociais. uma trama de poder político microscópico, capilar, se tenha
A segunda conclusão é mais polêmica. Alguém disse: a estabelecido fixando os homens ao aparelho de produção,
essência concreta do homem é trabalho. Na verdade, essatese fazendo deles agentes da produção, trabalhadores.A ligação do
foi enunciada por várias pessoas. Nós a encontramos em Hegel, homem ao trabalhoé sintética, política; é umaligação operada
nos pós-hegelianos, e também em Marx; em todo caso em um pelo poder. Não há sobre-lucro sem sub-poder. Falo de sub-
certo Marx, no Marx de um certo período, diria Althusser; poderpois se trata do poder que descrevi há pouco e não do que
comoeu não meinteresso pelos autores mas pelo funcionamen- é chamadotradicionalmente de poder político; nãose trata de
to dos enunciados, pouco importa quem o disse ou quando foi um aparelho de Estado, nem da classe no poder; mas do
dito. O que eu gostaria de mostrar é que de fato o trabalho não conjunto de pequenos poderes, de pequenasinstituições situa-
é absolutamente a essência concreta do homem,ou a existência das em um nível mais baixo. O que pretendi fazer foi a análise
do homem em sua forma concreta. Para que os homenssejam do sub-poder como condição de possibilidade do sobre-lucro.
efetivamente colocados no trabalho, ligados ao trabalho, é À última conclusão é que este sub-poder, condição do
preciso uma operação, ou umasérie de operações complexas sobre-lucro, ao se estabelecer, ao passar a funcionar, provocou
pelas quais os homensse encontram efetivamente, não de uma o nascimento de umasérie de saberes — saber do indivíduo, da
maneira analítica massintética, ligados ao aparelho de produ- normalização, saber corretivo — que se multiplicaram nestas
ção para o qual trabalham. É preciso a operação oua síntese instituições de sub-poder fazendo surgir as chamadasciências
operada por um poder político para que a essência do homem do homem e o homem como objeto da ciência.
possa aparecer como sendoa do trabalho. Vemosassim como a destruição do sobre-lucro implica
Não penso, portanto, que se possa admitir pura e sim- necessariamente o questionamento e o ataque ao sub-poder;
plesmente a análise tradicionalmente marxista que supõe que, comoo ataque ao sub-poderse liga forçosamente ao questiona-
sendo o trabalho a essência concreta do homem, o sistema mento das ciências humanas e do homem considerado como
capitalista é quem transformaeste trabalho em lucro, em sobre- objeto privilegiado e fundamental de um tipo de saber. Vemos
lucro ou em mais-valia. Com efeito, o sistema capitalista também, se minha análise é exata, que não podemossituar as

124 125
ciências do homem ao nível de uma ideologia que seja pura e
simplesmente o reflexo e a expressão na consciência dos
homens das relações de produção. Se o que disse é verdade,
tanto estes saberes quanto estas formas de poder nãosão, acima
das relações de produção, o que exprime estas relações de
produção ou o que permite reconduzi-las. Estes saberes e estes Mesa Redonda com Michel Foucault
poderes se encontram muito mais firmemente enraizadosnão
apenas naexistência dos homens mas também nas relações de
produção. Isto porque, para que existam as relações de produ-
ção quecaracterizam as sociedadescapitalistas, é preciso haver,
Participantes: Affonso Romano de Sant'Anna, Chain Katz,
além de um certo número de determinações econômicas, estas
Hélio Pelegrino, Luis Costa Lima, Milton José
relações de podere estas formas de funcionamento desaber.
Pinto, Maria Teresa Amaral, Roberto Macha-
Podere saber encontram-se assim firmemente enraizados;eles
do, Roberto Oswaldo Cruz, Rose Muraro.
não se superpõem às relações de produção, mas se encontram
enraizados muito profundamente naquilo que as constitul.
Vemos consequentemente comoa definição do que se chama
Roberto Oswaldo Cruz:
de ideologia deve ser revista. O inquérito e o exame são
Depois da obra de Deleuze, L'Anti-CEdipe, como o
precisamente formas de saber-poder que vêm funcionar ao
senhor situa a prática psicanalítica? Ela estaria condenada ao
nível da apropriação de bensna sociedade feudal,e ao nível da
desaparecimento?
produçãoe da constituição do sobre-lucro capitalista. É nesse
nível fundamental que se situam as formas do saber-poder Michel Focault:
como o inquérito ou o exame. Não estou certo de que só com a leitura do livro de
Deleuze se poderia responder a essa pergunta. Não tenho
certeza se ele mesmo faria. Parece-me que Guattari — que
escreveu livro com ele e é psicólogo, psiquiatra e psicanalista
ilustre — continuaa praticar curas que, pelo menos em alguns
de seus aspectos, continuam próximas das curas psicanalíticas.
I
' O que há deessencial no livro de Deleuzeé colocar em questão
a relação de poder quese estabelece, na cura psicanalítica, entre
o psicanalista e o paciente, relação de poder bastante semelhan-
teà relação de poderexistente napsiquiatria clássica. Creio que
o essencial do livro consiste mesmo em mostrar como Édipo,

126 127
o triângulo edipiano, longe de ser o que é descoberto pela
Ou será que a esquizofrenia é a própria estrutura do
psicanálise, o que é liberado pelo discurso do paciente no divã, desejo não-edipiano? Acho que Deleuze estaria mais propenso
é, ao contrário, umaespécie de instrumento de bloqueio pelo a dizer quea esquizofrenia, o que ele chama de esquizofrenia,
qual o psicanalista impede a impulsão e o desejo do doente de é o desejo não edipianizado. Entendo por Édipo, não um
se liberar, de se exprimir. Deleuze descreve a psicanálise como estágio constitutivo da personalidade, mas um empreendimen-
sendo, no fundo, um empreendimento de refamiliarização, ou to de imposição, de contrainte, pelo qual o psicanalista, repre-
de familiarização forçada, de um desejo que, segundoele, não sentando,aliás, em si, a sociedade,triangula o desejo.
tem nafamília seu lugar de nascimento, seu objeto e seu centro Hélio Pelegrino:
de delimitação. Eu acho que Édipoé isso. Mas Édipo nãoé só isso. Édipo
Comosituar um possível desaparecimento da psicanáli- é essa contrainte, mas Édipo é mais do queisso. Aliás, na
se? O problemaé saber: será possível considerar uma cura, conferência, você falou sobre Édipo. Sua colocação me pareceu
digamos, psicoterápica, moral, que não passe por qualquer tipo extremamente curiosa. Você parece distinguir um Édipo queé
de relação de poder? o Édipo do poder, o Édipo de ciência, um Édipo que decifra
É o que se discute. A meu ver, no livro de Deleuze, o enigmas, mas que não é ainda o Édipo de consciência, é um
ambiente de versão mínima e máxima não é abordado com Édipocientífico, do conhecimento. E há também um Édipo da
muita clareza — o queeles tentarão esclarecer em seu próximo sabedoria. Então, o poder e a ciência em Édipo se unem para
livro — talvez portratar-se de uma obscuridade voluntária. A reprimir o traumatismooriginário de Édipo, queé o fato deele
versão mínima pretenderia dizer que Édipo, o chamado com- ser condenado à morte por sua mãe Jocasta e por seu pai Laio.
plexo de Édipo, é então, essencialmente, o instrumento pelo Nofundo, Edipo recusa a pecha. Ele se defende de sua própria
qual o psicanalista encontra na família os movimentose o fluxo noite, sendo homem de poder e homem de ciência. Ele se
do desejo. A versão máxima consistiria em dizer que o simples defendede quê? Ele se defendeda noite. O que é a noite? A noite
fato de alguém ser apontado comodoente, o simples fato deele éa morte. Então Édipo não quer ser um homem condenado à
vir a se tratar, já indica entre ele e seu médico, ou entre elee os morte. Ele foi condenado à morte por Jocasta e por Laio. Mas
que o cercam, ou entreele e a sociedade que o designa como nós todos somos condenados à morte desde o dia em que
doente, umarelação de poder. E é isso que deve ser eliminado. nascemos. Começamos a morrer desde o momento em que
A noção de esquizofrenia que encontramos no Anti- nascemos. Então, na medida em que Édipo,tendo desistido da
Édipo, é ao mesmo tempo talvez a mais geral e, consequente- visão que serve para não ver, porque antes do inquérito policial
mente, a menos elaborada: espaço no qual todo indivíduo se militar que fez contra si próprio, tinha olhos para não ver, do
situa. Essa noção de esquizofrenia não está clara. Será que a momento em que assumiu a cegueira, o escuro e a noite, na
esquizofrenia, comoa entende Deleuze, deve ser interpretada medida em que isso aconteceu, começoua ser um homem de
como a maneira pela qual a sociedade, num certo momento, sabedoria. Então, acho que Édipo também é um homem da
impõeaos indivíduos um certo número de relações de poder? liberdade. E o problema edipiano não é só contrainte, mas

128 129
também umatentativa de ir aquém dasituação de contrainte, jogo de busca de verdade que Sófocles abordou. E assim é que
para encegar-se, para perder a visão paranóica, para perder o a peçaaparece mais como umaespécie de história dramatizada
conhecimento, para perdera ciência, para perder o poder, para do Direito Grego, que comoa representação do desejo inces-
adquirir, enfim,a sabedoria. tuoso. Vejam, então, que o meu tema — e nisso sigo Deleuze
— é “Edipo não é”.
Michel Foucault:
Parafalar francamente, devo dizer que discordo inteira- Hélio Pelegrino:
mente, não propriamente do que o senhor diz, mas da sua - Acho querealmente você tem razão nosentido em que
maneira de encarar as coisas. Não é absolutamente nesse nível o Edipo,tal comonós o entendemos nofundo, não é tanto um
que me situo. Nãofalei de Édipo. E devodizer que para mim problema de desejo, quanto um problema de medo do nasci-
Édipo não existe. Existe um texto de Sófocles que se chama mento. Na minha opinião, o incestuoso é aquele que visa
Édipo Rei; existe um outro texto de Sófocles quese chama Édipo destruir o triângulo para formar umadíade, para formar um
em Colona; existe um certo número de textos gregos, anteriores ponto. No fundo, o projeto originário do incestuoso é não ser
e posteriores a Sófocles, que contam umahistória. Mas dizer nascido. E, portanto, não ser condenado à morte. Daí esse
que Édipo é isto, que Édipo tem medoda morte, significa que rancor, fundamental em psicanálise, que todos nós encontra-
o senhor faz umaanálise que eu chamaria pré-deleuziana. Pós- mos, basicamente em relação às nossas mães, que nos deram à
freudiana, mas pré-deleuziana. Quer dizer que o senhor admite luz,e isso não perdoamos a elas. Aqui o problema do Édipo é
essa espécie de identificação constitutiva entre Édipo e nós. menos de desejo do que um problema de medo do desejo.
Cada um de nós é Édipo. Ora, a análise de Deleuze, é nisso que Michel Focault:
ela me parece muito interessante, consiste em dizer: Édipo não Vocês vão achar que sou detestável e têm razão. Sou
é nós, Édipo é os outros. Édipo é o outro. E Édipo é precisa- detestável. Édipo, não o conheço. Quandoo senhor diz que
mente esse grande outro que é o médico, o psicanalista. Édipo Edipo é odesejo, nãoé o desejo, respondo, se o senhor quiser.
é, se vocês quiserem, a família enquanto poder. É o psicanalista Quem é Edipo? O que é isso?
como poder. Isso é Édipo. Não somos Édipo. Somosos outros
Hélio Pelegrino:
na medida em que,efetivamente, aceitamos esse jogo de poder.
Umaestrutura fundamental da existência humana.
Masnaanálise que pudefazer, referi-me unicamente à peça de
Sófocles, e Édipo não é o homem do poder. Eu disse que Michel Foucault:
Sófocles, nessa tragédia que se chama Édipo Rei, no fundo quase Entãoeu lhe respondo em termos deleuzianos — e aqui
não falou de incesto. E é verdade! Ele falou apenas do assassi- sou inteiramente deleuziano — que não é absolutamente uma
nato do pai. Por outro lado, tudo o que vemosse desenrolar na estrutura fundamental da existência humana, mas um certo
peça é um conflito entre eles, um certo número de procedimen- tipo de contrainte, umacerta relação de poder quea sociedade,
tos de verdade, medidas de caráter profético e religioso e outras, a família, o poder político, etc., estabelecem sobre os indiví-
ao contrário, de caráter nitidamente judiciário. Foi todo esse uos.

130 131
Hélio Pelegrino: Hélio Pelegrino:
A família é uma usina de incesto. Ele fala como homem adulto de umacriança. À criança,
Michel Foucault: por definição, não pode ter esse pluralismo, essa faixa de
Tomemosa coisa de outra maneira: a idéia de que o que objetos. Isso é caracteristicamente a relação que nós fazemos
se deseja primeira, fundamentale essencialmente, o que vem a com o mundo. Mas não podemos sobrecarregar uma pobre
ser o correlativo ao primeiro objeto do desejo é a mãe,e é neste criança recém-nascida de todoesse leque de possibilidades que
momento quese instaura a discussão. Deleuzelhes dirá, e estou são as nossas possibilidades de adultos. Inclusive o problema da
novamente com ele: Por que se desejaria sua mãe? Já não é tão psicose. É isso que quero dizer: o outro é o mundo,os outros
divertido assim ter uma mãe... O quese deseja? Bem, desejam- são todasas coisas. Mas umacriança, quando é recém-nascida,
se coisas, histórias, contos, Napoleão,Joana d'Arc, tudo. Todas não podeteresse leque de possibilidades queé o nosso. Ela, por
essas coisas são objetos de desejo. uma questão de dependência inexorável, tem como objeto
primordial a mãe que entãose transforma, quase por contrainte
Hélio Pelegrino: biológica, no objeto primordial da criança.
Mas o outro é também objeto de desejo. A mãe é o
primeiro outro. A mãe se constitui donada criança. Michel Foucault:
Aí é preciso atentar para as palavras. Se o senhordiz que
Michel Foucault: o sistema de existência familiar, de educação, de cuidados
Aí Deleuze lhes dirá: não, precisamente não é a mãe que dispensadosà criança, leva o desejo da criançaa ter por objeto
constitui o outro, o outro fundamental e essencial do desejo. primeiro — primeiro cronologicamente — a mãe, acho que
Hélio Pelegrino: posso concordar. Isso nos remete à estrutura histórica da
Qual é o outro fundamental do desejo? família, da pedagogia, dos cuidadosdispensadosà criança. Mas
se o senhor diz que a mãe é o objeto primordial, o objeto
Michel Foucault:
essencial, o objeto fundamental, que o triângulo edipiano
Não há outro fundamental do desejo. Há todos os
caracteriza a estrutura fundamental da existência humana, eu
outros. O pensamento de Deleuze é profundamente pluralista.
digo não.
Ele fez seus estudos ao mesmo tempo que eu, e ele preparava
umatese sobre Hume. Eu fazia sobre Hegel. Eu estava do outro Hélio Pelegrino:
lado pois, nessa época, eu era comunista, enquanto ele já era Há umas experiências hoje de um psicanalista muito
pluralista. E acho que isso sempre o ajudou. Seu tema funda- importante chamado René Spitz. Ele mostra o fenômeno
mental: Comose pode fazer umafilosofia queseja umafilosofia hospitalístico. As crianças que não têm maternização simples-
não-humanista, não militar, uma filosofia do plural, uma mente perecem, morrem por falta de “mãe materna”.
filosofia da diferença, uma filosofia do empírico, no sentido
mais ou menos metafísico da palavra.

132 133
Michel Foucault: diferente da interpretação freudiana e, mais recentemente, da
Compreendo. Isso só prova umacoisa: não que a mãe é de Lévi-Strauss, só para citar duas interpretações desse famoso
indispensável, mas que o hospital não é bom. mito. Em sua opinião, sua interpretação é mais válida queas
outras ou todas essas interpretações estão no mesmo nível de .
Hélio Pelegrino: importância? Haveria uma que super-determina as outras? O
A mãe é necessária, mas não suficiente. À mãe tem que senhor acha que o sentido de um discurso é fundamentado
dar mais do queo atendimento das necessidades, tem que dar sobre umainterpretação privilegiada ou sobre o conjunto de
amor. todas essas interpretações? Pode-se dizer quea interpretação é
Michel Foucault: o lugar onde se anula a diferença sujeito-objeto?
Escutem.Aí fico um pouco embaraçado. Sou um pouco Michel Foucault:
forçadoa falar por Deleuze, e sobretudo num domínio que não Aí, há duas palavras que são fundamentais nessa pergun-
é o meu. À psicanálise propriamente dita é ainda mais o ta: a palavra mito e a palavra interpretação. Não foi absoluta-
domínio de Guattari do que o de Deleuze. Para voltar a essa mente do mito de Édipo quefalei. Falei da tragédia de Sófocles,
história de Édipo, o que é feito não é absolutamente uma mais nada. E o conjunto de textos que nos ensinam o que eram
reinterpretação do mito de Édipo, mas, ao contrário, uma os mitos gregos, nos permitem perceber o queera o mito grego
maneira de não falar de Édipo como estrutura fundamental, de Édipo, ou os mitos gregos sobre Édipo, pois havia muitos;
primordial, universal, mas, simplesmente, de recolocar, tentar tudo isso deixei totalmente de lado. Fiz a análise de um texto
analisar um pouco a tragédia mesmade Sófocles; onde se pode e não a análise de um mistério. Quis justamente desmitificar
ver, de maneira muito clara, que nunca é colocado em pautaa essa história de Édipo, pegar a tragédia de Sófocles sem
questão da culpabilidade, ou da inocência, mas que no fundo, relacioná-la ao fundo mítico, mas relacionando-a a uma coisa
trata-se apenas de uma questão de incesto. Eis o que posso bem diferente. Ao que a relacionei? Bem,às práticas judiciárias.
dizer. Parece-me muito mais interessante recolocar a tragédia E é aqui queaparece o problemada interpretação. Querdizer,
de Sófocles numa história da verdade que recolocá-la numa eu não quis procurar o sentido do mito, saber se esse sentido é
história do desejo, ou no interior da mitologia, exprimindo a o mais importante. O que fiz, o que quis fazer, enfim, minha
estrutura essencial e fundamental do desejo. Transferir, então, análise, não visavatanto as palavras maso tipo de discurso que
a tragédia de Sófocles de uma mitologia do desejo, para uma é desenvolvido na peça, a maneira, por exemplo, pela qual as
história absolutamente real, histórica, da verdade. pessoas, as personagens, se fazem perguntas, respondem umas
Milton José Pinto: às outras. Algo comoa estratégia do discurso de uns em relação
Em sua segunda conferência o senhor deu ao mito de aos outros, as táticas empregadas para chegar à verdade. Nas
Édipo uma interpretação — e aqui emprego a palavra no primeiras cenas vê-se um tipo de perguntas e respostas, um tipo
sentido nietzscheano, que o senhor definiu em sua conferência de informação que é tipicamente o tipo de discurso empregado
de segunda-feira — interpretação dizia eu, completamente nos oráculos, nas adivinhações, em suma, pelo conjunto das

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prescrições religiosas. A maneira pela qual as perguntas e conhecer. Em sua primeira conferência o senhor, justamente,
respostas são formuladas, as palavras empregadas, o tempo dos tentou mostrar que não há essa diferença.
verbos, tudoisso indica um tipo de discurso prescritivo, profé- Michel Foucault:
tico. O que me impressionou, no fim da peça, quando da Será que o senhor poderia explicitar um pouco? Sua
confrontação dos dois escravos, o de Corinto e o de Citerão, por primeira proposição, querdizer, o senhor teve a impressão que
Édipo, foi que Édipo desempenhou exatamente o papel do eu fazia uma diferença entre o sujeito do conhecimento e...
magistrado grego do século V.Ele faz exatamenteesse tipo de
Milton José Pinto:
pergunta. Diz a cada escravo: “és tu mesmo aquele que...”, etc.
Pareceu-me que o senhor se colocava como um sujeito
Ele lhes faz um interrogatório idêntico. Perguntaa um ca outro
que procura conhecer uma verdade, uma verdade objetiva.
se eles se reconhecem. Pergunta ao escravo de Corinto e ao de
Citerão: esse homem aí, tu o reconheces? É bem esseaí que te Michel Foucault:
disse tal coisa? Tu viste tal coisa? Tu te lembras? Exatamente a O senhor quer dizer que eu me coloquei?
forma desse novo procedimento de procura da verdade que Milton José Pinto:
começoua ser utilizada no fim do século VI e no século V. Sim, sim. Compreendiassim.
Temosa prova no texto pois, em certo momento, quando o
escravo de Citerão não ousa dizer a verdade, não ousa dizer que Michel Foucault:
recebeu a criança das mãosde Jocasta e que em vez de expô-la Eu me coloquei como um sujet de conhecimento...
à morte ele a deu a um outro escravo, não ousando confessar Milton José Pinto:
isso, recusafalar. E Édipo lhediz: se tu nãofalas, vou te torturar. Refiro-me sobretudo à primeira conferência onde o
Ora, no Direito Grego do século V, aquele que interrogava senhor colocou o problema de que o próprio sujeito é formado
tinha o direito de mandartorturaro escravo do outro para saber pela ideologia.
a verdade. Em Demóstenes ainda encontramos algo assim: a
Michel Foucault:
ameaça de mandartorturar o escravo deseu adversário para lhe
Não,absolutamentenão pela ideologia. Precisei bem que
extorquir a verdade. Era então, essencialmente, a forma do
não era uma análise de tipo ideológico que eu apresentava.
discurso, comoestratégia verbal para conseguir a verdade, era
Bom, retomemos, por exemplo,o que eu dizia ontem. Se vocês
esse o objeto, a própria base de minhaanálise. Logo, não uma
lêem Bacon, ou em todo caso, na tradição dafilosofia empirista
interpretação no sentido de uma interpretaçãoliterária, nem
— não somente da filosofia empirista, mas finalmente da
uma análise à maneira de Lévi-Strauss. Isso responde a sua
ciência experimental, da ciência da observaçãoinglesa, a partir
pergunta?
do fim do século XVI, e depois da francesa, etc. — nessa prática
Milton José Pinto: da ciência da observação, vocês têm um sujeito, de alguma
A diferença sujeito/objeto. Comoo senhor apresentou formaneutro, sem preconceitos, que diante do mundo exterior
na sua análise, há um sujeito de conhecimento e um objeto a

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é capaz de ver o que se passa, de captá-lo, de compará-lo. Esse Michel Foucault:
tipo de sujeito, ao mesmo tempo vazio, neutro, que serve de De fato, havia dito quetinha três projetos que conver-
ponto de convergência para todo o mundo empírico,e que vai giam, mas não são do mesmonível. Trata-se, por um lado,de
se tornaro sujeito enciclopédico do século XVIII, como é que umaespécie de análise do discurso comoestratégia, um pouco
esse sujeito se formou? Será um sujeito natural? Será que todo à maneira do que fazem os anglo-saxões, em particular,
homem podefazer isso? Será preciso admitir que, se ele não o Wittgenstein, Austin, Strawson, Searle. O que me parece um
fez antes do século XV, no século XVI, foi somente porque pouco limitado na análise de Searle, Strawson,etc., é que as
tinha preconceitos, ou ilusões? Será que eram véus ideológicos análises da estratégia de um discurso que se realizam em volta
que o impediam de dirigir esse olhar neutro e acolhedor sobre de umaxícara de chá, num salão de Oxford, só dizem respeito
o mundo? Esta é a interpretação tradicional, e eu acredito a jogos estratégicos que são Interessantes, mas que me parecem
ainda queseja a interpretação dada pelos marxistas, quedirão, profundamente limitados. O problema seria saber se não
bom,os pesos ideológicos de certa época impediam que... Eu poderíamos estudar a estratégia do discurso num contexto
lhes direi não, não me parece que uma análise assim seja histórico mais real ou nointeriorde práticas que são de um tipo
suficiente. De fato, esse sujeito supostamente neutro é, ele diferente das conversas de salão. Por exemplo,na história das
próprio, uma produçãohistórica. Foi preciso toda uma rede de práticas judiciárias me parece que se pode reencontrar, pode-se
instituições, de práticas, para chegar ao que constitui essa aplicar a hipótese, pode-se projetar umaanálise estratégica do
espécie de ponto ideal, de lugar, a partir do qual os homens discurso nointerior de processos históricosreais e importantes.
deveriam pousar sobre o mundo um olhar de pura observação. É, aliás, um poucoo que nessas pesquisasatuais, dessas últimas
No conjunto, parece-me que essa constituição histórica dessa semanas, Deleuze faz a propósito do tratamento psicanalítico.
forma de objetividade poderia ser encontrada nas práticas Quer-se ver comonacurapsicanalítica se faz essa estratégia do
judiciárias e, em particular, na prática da enguête. Isso respon- discurso, estudando a cura psicanalítica — não tanto como
de à sua pergunta? processo de desvendamento, mas, ao contrário, como jogo
estratégico entre dois indivíduos falantes, onde um se cala, mas
Maria Teresa Amaral:
cujo silêncio estratégico é pelo menos tão importante quanto o
O senhor tem a intenção de desenvolver um estudo do
discurso. Assim sendo, os três projetos de que falei não são
discurso pela estratégia [...]
incompatíveis, mas trata-se de aplicar uma hipótese de trabalho
Michel Foucault: a um domínio histórico.
Sim, sim.
Affonso Romano de Sant'Anna:
Maria Teresa Amaral: Considerando sua posição deestrategista, seria pertinen-
O senhordisse que essa seria uma das pesquisas que o te aproximá-lo da problemática do pharmakon e colocá-lo ao
senhorfaria [...] muito espontaneamente [...]? lado dossofistas (verossimilhança) e não dosfilósofos (a palavra
da verdade)?

138 139
Michel Foucault: paradoxos com os quais os historiadores depois se deleitaram.
Ah, nisso estou radicalmente ao lado dos sofistas. Dei, Foram eles que disseram primeiro: “será que quando digo a
aliás, minha primeira aula no College de France sobre os palavra 'carroça”, a carroça passaefetivamente por minha boca?
sofistas. Acho que os sofistas são muito importantes. Porque Se uma carroça não pode passar através de minha boca, não
temos aí umaprática e umateoria do discurso que é essencial- posso pronunciar a palavra “carroça”. Enfim, eles brincaram
mente estratégica; estabelecemosdiscursos e discutimos, não com esta dupla materialidade, com essa de que falamos, e com
para chegar à verdade, mas para vencê-la. É um jogo: quem a da própria palavra. Pelo fato de que, paraeles, o logosera, ao
perderá, quem vencerá? É por causa disso que me parece muito mesmo tempo, um acontecimento que se tinha produzido de
importantea luta entre Sócratese os sofistas. Para Sócrates não uma vez por todas, a batalha tinha sido realizada, tinham-se
vale a pena falar a não ser que se queira dizer a verdade. Em lançado os dados e pronto. Não se podia fazer mais nada. À frase
segundo lugar, se para os sofistas falar, discutir, é procurar havia sido dita. E, depois, éao mesmo tempo uma materialidade;
conseguir a vitória a qualquer preço, mesmoao preço das mais isso tem um certo eco, é vê-se, aliás, como os historiadores, a
grosseiras astúcias, é porque, para eles, a prática do discurso partir daí, desenvolveram todo esse problema do corporal,
não é dissociável do exercício do poder. Falar é exercer um incorporal, relativamente indiferente. Ora, lá ainda, o logos
poder, falar é arriscar seu poder, falar é arriscar conseguir ou platônico tendea ser cada vez mais imaterial, mais imaterial que
perder tudo, e aí ainda há algo muito interessante, e que o a razão — a razão humana. Então a materialidade do discurso,
socratismo e o platonismo afastaram completamente: o falar, o caráter factual do discurso, a relação entre discurso e poder,
o logos, enfim,a partir de Sócrates, não é mais o exercício de tudo isso me parece um núcleo de idéias que eram profunda-
um poder, é um logos que não passa de um exercício da mente interessantes, que o platonismo e o socratismoafastaram
memória. Essa passagem do poder à memória é algo muito totalmente, em proveito de umacerta concepção do saber.
importante. Em terceiro lugar, parece-me igualmente impor-
Roberto Machado:
tante nos sofistas essa idéia de que o logos, enfim, o discurso, [incompreensível]... quando se discute a verdade.
é algo que tem umaexistência material. Isto quer dizer que nos
jogos sofísticos, uma vez que umacoisa é dita, ela foi dita; no Michel Foucault:
jogo entre os sofistas, discute-se: “você disse tal coisa”. Você a Aí lhe direi que os discursos são efetivamente aconteci-
dissee fica amarrado a ela pelo fato de a ter dito. Não pode mais mentos, os discursos têm uma materialidade.
libertar-se dela. Isto ocorre não em função de um princípio de Roberto Machado:
contradição com o qual os sofistas pouco se importam, mas de Não falo dos seus, falo de outros discursos, durante toda
certa maneira, porque agora quese disse está lá materialmente. a história do discurso.
Está lá materialmente e você não pode fazer mais nada. Aliás,
Michel Foucault:
eles jogaram muito com essa materialidade do discurso, já que
foram os primeiros a jogar com toda essa contradição, esses Certo, mas aqui sou obrigadoa lhe dizer o que entendo
por discurso. O discurso funcionou exatamente assim. Sim-

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plesmente, toda umatradiçãofilosófica disfarçou-o, ocultou-o. Sófocles, havia implicitamente nisso, me parece, o que se
E alguém, em minha conferência, um estudante de Direito, chamaria de re-privilégio do enoncé (enunciado), de onde
disse: “então, estou muito contente, enfim reabilita-se o direi- voltaria a surgir essa necessidade de reler o texto, reler o
to”. Sim, todo mundo riu, mas eu não quis responder à sua enunciado. À primeira razão que vejo na questão é que, sem
observação. E continuou: “é muito bom o que o senhor diz”, dúvida, o tipo de leitura, por exemplo,levistraussiana do texto,
porque, de fato, houve sempre umacerta dificuldade, uma certa não me permite ler o poder que está no texto. Aí, então, você
ignorância, em todo o caso, dafilosofia, não a respeito da teoria diz: o que vamosreler no Édipo nãoé questão disso ou daquilo;
do Direito,já que toda a filosofia ocidental esteveligadaà teoria não é questão de culpabilidade ou de inocência. No fundo,
do Direito, mas foi muito impermeável à própria prática do Édipo se comporta como um juiz reproduzindoa estratégia do
Direito, à prática judiciária. No fundo, a grande oposiçãoentre discurso grego, etc. Voltamos necessariamente a Deleuze:
o retórico e o filósofo — o desprezo que o filósofo, o homem Deleuze faz a comparação, procura mostrar como o complexo
da verdade, o homem do saber, sempreteve por aquele que não de Édipo, uma edipianização, se é própria de uma certa
passava de orador, o retórico, o homem dediscurso, de opinião, formação social, por outro lado é uma espécie de hantise, de
aquele que procura efeitos, aquele que procura conseguir obsession da sociedade. Essa obsessão apenasse teria atualizado,
vitória — esta rupturaentrefilosofia e retórica parece caracte- se faria presente, dentro de uma formação social, com o
rizar o que se passou no tempo de Platão. E o problema é de aparecimento do Uhrstaat, o estado original. Então diz ele que
reintroduzir a retórica, o orador,a luta do discurso no interior é dentro dessa formação social em que o Édipose atualiza, que
do campo da análise, não para fazer como oslinguistas, uma passa a haver o /impérialisme du signifiant; trata-se de ráper avec
análise sistemática de procedimentos retóricos, mas para estu- Vimpérialisme du signifiant, por sua parte, proposer une stratégie
dar o discurso, mesmo o discurso de verdade, como procedi- du langage: discurso comoestratégia, discurso não mais como
mentos retóricos, maneiras de vencer, de produzir busca da verdade, mas o discurso como exercício do poder. A
acontecimentos, de produzir decisões, de produzir batalhas, de primeira conclusão que eu tiraria é provocativa. Parece-me que
produzir vitórias. Para retorizar a filosofia. o que está sendo proposto é uma volta ao regime da preuve
Roberto Machado: contra o regime da enquête. A segunda, me parece que se
É preciso destruir a vontade de verdade, não é? estabelecêssemos essa cadeia: Édipo atualizado, imperialismo
do significante, contra, agora, liberação do desejo, contra
Michel Foucault:
Édipo, le refoulement d'CEdipe — sesetrata agora de propor
Sim.
uma liberação do desejo contra essa repressão causada por
Luis Costa Lima: Édipo e, consequentemente, uma análise do texto não mais em
Trata-se, se entendi sua intenção, de propor umaanálise cadeia significante, de discurso como estratégia, como re-
que conjugue o binômio saber e poder. Quando você disse há retorização dodiscurso. Pergunto-me como, operacionalmen-
pouco que nãosetratava do mito Édipo, mas delero texto de te, isso se distingue daclássica análise do discurso pronunciado?

142 143
Michel Foucault: admite que as mesmas relações possam intervir tanto num
Há uma tradição de pesquisas que vão nessa direção e já discurso, como num ritual religioso ou numa prática social. E
obtiveram resultados muito importantes. Suponho que vocês acho que Dumézil, longe de identificar ou de projetar todas as
conhecema obra de Dumézil, embora ela seja muito menos estruturas sociais, as práticas sociais, os ritos, num universo do
conhecida do que a de Lévi-Strauss. Costuma-se classificar discurso, recoloca, no fundo, a prática do discurso nointerior
Dumézil entre os ancestrais do estruturalismo,dizer quefoi um das práticas sociais. É essa a diferença fundamental entre
estruturalista ainda pouco consciente dele mesmo,não tendo Dumétzil e Lévi-Strauss. Segundo, dada a homogeneização feita
ainda os meios de análise rigorosos e matemáticos que tinha entre o discurso e a prática social, ele trata o discurso como
Lévi-Strauss, queele fez, sob algum aspecto, de modo empírico, sendo uma prática que tem sua eficácia, seus resultados, que
ainda pesadamente histórico, um esboço do que Lévi-Strauss produz algumacoisa na sociedade, destinado a ter um efeito,
faria mais tarde. Dumézil não fica nada contente com esse tipo obedecendo, consequentemente, a um estratégia. Nalinha de
de interpretação de sua obra de análise histórica, e é cada vez Dumézil, Vernant e outros, reromou-se o mito assírio e mos-
mais hostil à obra de Lévi-Strauss. O próprio Dumézil não foi trou-se que esses grandes mitos da juventude do mundo eram
o primeiro nesse terreno, e nem o último. Há atualmente na mitos que tinham por função essencial, restaurar, revigorar o
França um grupo em volta de Jean Pierre Vernant, que retoma poder real. E cada vez que um rei substituía outro, ou tinha
um pouco as idéias de Dumézil e tenta aplicá-las. Na análise de terminado o período de seus quatro anos de reinado,e devia
Dumétzil existe a procura de umaestrutura,isto é, a tentativa de começar outro, recitavam-se ritos que tinham por função
mostrar que um mito, por exemplo, a oposição entre dois revigorar o poder real ou a própria pessoa do rei. Logo, vemos
personagens era uma oposição de tipo estrutural, ou seja, que esse problema do discurso como ritual, como prática, como
continha um certo número de elementos que se opunham estratégia no interior das práticas sociais.
segundo as relações binárias, que essa estrutura podia ser Então, o senhor disse que se acaba por colocar em
encontrada num outro mito, seguindo um certo número de primeiro plano o enunciado, a coisa dita, a cena do que foidito.
transformações coerentes. Nesse sentido, Dumézil fazia exata- Precisamos saber c que entendemos por enunciado. Se quiser-
mente o estruturalismo. Mas, o importante nele, o que até mos chamar enunciado ao conjunto de palavras, um conjunto
agora foi um pouco negligenciado, quando se repensa Dumézil, de elementossignificantes, e depois, o sentido do significante
assenta-se sobre dois enfoques importantes. Primeiro, Dumézil e do seu significado, direi que não é isso que eu e Dumézil
dizia que quando fazia comparações, podia tomar, por exem- entendemos por enunciado, enfim pordiscurso. Há, na Euro-
plo, um mito sânscrito, uma lenda sânscrita, e depois compará- pa, toda uma tradição de análise do discursoa partir das práticas
la. Com o quê? Não forçosamente com outro mito mas, por judiciárias, políticas etc. Houve na França, Glotz, Gernet,
exemplo, com um ritual assírio ou ainda com uma prática Dumézil e atualmente Vernant, que para mim foram as pessoas
judiciária romana. Para ele não há então um privilégio absoluto mais significativas.
dado ao mito verbal, ao mito enquanto produção verbal, mas

144 145
O estruturalismo consiste em tomar conjuntos de discur- Maria Teresa Amaral:
sos e tratá-los apenas como enunciados procurandoasleis de O senhor nos mostrou como as formações discursivas
passagem,de transformação, de isomorfismosentre esses con- constituem um fato,e creio serem o único fato que podemos
juntos de enunciados; não é isso que me interessa. realmente considerar como tal. E que, interpretá-lo, remeter a
um sujeito ou a objetos era mitificar. Na sua conferência, o
Luis Costa Lima:
senhor, no entanto, referiu-se às práticas e à história; portanto,
Querdizer que a diferença é umadiferença de corpus. A
eu não entendo muito bem.
comparação de um mito com outro supõe um corpus, enquanto
que o senhor propõe a comparação entre corpus heterogêneos. Michel Foucault:
A senhora meatribuia idéia de que o único elemento na
Michel Foucault:
realidade analisável, o único que se ofereceria a nós, seria o
Entre corpus heterogêneos, mas com uma espécie de
discurso. E que, portanto, o resto não existe. Só existe o
isotopia, ou seja, tendo como campo de aplicação um domínio
discurso.
histórico particular. O recorte de Lévi-Strauss, na verdade,
supõe uma certa homogeneidade, já que se trata de mitos, de Maria Teresa Amaral:
discursos, mas não há homogeneidade histórica, ou histórico- Não digo queo resto não exista, digo quenão é acessível.
geográfica; enquanto que o que Dumézil procuraé estabelecer, Michel Foucault:
no interior de um conjunto constituído pelas sociedades indo- Este é um problema importante. Na verdade, não teria
européias, o que constitui um corpus, uma isotopia geográfica sentido dizer que existe apenas o discurso. Um exemplo muito
e política, histórica e linguística, uma comparação entre os simples é que a exploração capitalista, de certa forma,realizou-
discursos teóricos e práticos. se sem que jamais sua teoria tivesse sido na verdade formulada
Maria Teresa Amaral: diretamente num discurso. Ela pôdeser revelada posteriormen-
Remeter-se a um sujeito para compreenderas formações te por um discurso analítico: discurso histórico ou discurso
discursivas é um processo mitificante onde se esconde o volume econômico. Mas os processos históricos da exploração exerce-
do discurso. Remeter-se à prática e à história não significa ram-se, ou não,no interior de um discurso? Exerceram-se sobre
novamente ocultar-se este discurso? a vida das pessoas, sobre seus corpos, sobre seus horários de
trabalho,sobre sua vida e morte. No entanto,se quisermos fazer
Michel Foucault:
o estudodoestabelecimento e dosefeitos da exploração capita-
Você acusa certa forma de análise de esconder os níveis
lista, com o que teremos de lidar? Onde é que vamos vê-la
do discurso da prática discursiva, da estratégia discursiva. O que traduzir-se? Nos discursos, entendidos em sentido amplo, ou
você está querendo saber é se a análise que proponho não
seja, nos registros do comércio, das taxas de salários, das
ocultaria outras coisas?
alfindegas. Encontrá-la-emos ainda em discursos no sentido
estrito: nas decisões tomadas pelos conselhos de administração

146 147
e nos regulamentos das fábricas, nas fotografias, etc... Todos econômica.E isto se faria de quê? A partir de certas práticas que
estes, num certo sentido, são elementos do discurso. Mas não seriam conhecidas através de outros discursos.
há um universo único do discurso, no exterior do qual nos Hélio Pelegrino:
colocaríamos, e que, em seguida, estudaríamos. Poderíamos, O senhor afirma que relação entre o analista e o paciente
por exemplo, estudar o discurso mora! que o capitalismo ou é umarelação de poder. Estou de acordo, mas não creio que
seus representantes, o poder capitalista, desenvolveram para umaanálise deva ser necessariamente algumacoisa que consti-
explicar que a única salvação era trabalhar sem exigir nunca tua uma relação de poder, na qual o analista tem o poder e o
qualquer aumento desalário. Esta “ética de trabalho” consti- i analisado é submetido a esse poder. Se assim é, eu posso lhe
tuiu um tipo de discurso extraordinariamente importante do dizer que a análise é má, é mal feita e se transforma numa
final do século XVIII até o final do XIX. Discurso moral que psicoterapia diretiva. O analista passa a desempenhar um papel
encontramos nos catecismos católicos, nos guias espirituais substitutivo, dominador. Isso não é um analista. Na verdade,
protestantes, nos livros escolares, nos jornais, etc... Podemos quando um analista tem poder,ele é investido de um poder que
então tomar este corpus, este conjunto do discurso moral o cliente lhe dá. Porque precisa que o analista tenha poder.
capitalista e, pela análise, mostrar a quefinalidade estratégica Porque, por um lado, o cliente é dependente do poder do
isto corresponderia, relacionando assim este discurso à própria analista. Inclusive costuma ocorrer que um paciente dê ao
prática da exploração capitalista; e nesse momento, a explora- analista, confira ao analista, um poder onipotente, que é o
ção capitalista nos servirá de elemento extra-discursivo para reflexo dos desejos de onipotência do paciente. Então toda a
estudar a estratégia destes discursos morais. É verdade, no análise, em última instância, consiste em questionar esse poder
entanto, que estas práticas, estes processos da exploração capi- que o analisado querdar ao analista. O analisado quer abrir mão
talista serão conhecidos, de certa forma, através de um certo de sua cura e de sua procura, para queo analista o substitua na
número de elementos discursivos. tarefa de existir. O analista, se for um bom analista, deve
Logo, podemos perfeitamente efetuar em seguida um justamente questionar e destruir essa démarche transferencial
outro procedimento que não contraria o anterior. Tomar, por pela qual o paciente quer lhe dar o poder, investi-lo de poder
exemplo, discursos econômicoscapitalistas: pode-se perguntar queele não pode aceitar, e deve tentar dissolver numa atmosfera
comose estabeleceu a contabilidade das empresas capitalistas. de entendimento humano, atmosfera de absoluta igualdade,
Pode-se fazer a história deste controle que a empresa capitalista numa atmosfera de busca da verdade.
tem efetuado desde ossalários contabilizados, que aparecem a
partir do final da Idade Média até a gigantesca contabilidade Michel Foucault:
nacional de nossos dias. Pode-se perfeitamente fazer a análise Esta discussão é extremamente importante. Há setenta
desse tipo de discurso com a finalidade de mostrar a que anos atrás, em 1913, estariam aqui para falar de psicanálise,
estratégia ele se ligava, para queservia, como funcionavana luta brasileiros e alemães (os franceses não, porque nada sabiam a
esse respeito na época). A discussão seria tão forte quanto a de

148 149
agora: mas sobre o quê? Sobre o problemade saberse tudo era completamente as relações de poder; enfim, tentar controlá-la
efetivamente sexual. Ou seja, o tema do debate seria sobre a de alguma forma, pois a relação de poder passa por nossa carne,
questão da sexualidade, da generalidade e da transferenciabi- nosso corpo, nossosistema nervoso. À idéia de umapsicoterapia,
lidade da sexualidade, o queteria provocado discussões igual- de umarelação em grupo, de umarelação que tentasse romper
mente violentas. Acho formidável que tenhamos discutido completamente essa relação de poder, é uma idéia profunda-
durante 15 minutos sobre psicanálise, e que as palavras sexu- mente fecunda; e seria formidável se os psicanalistas colocassem
alidade, libidoe desejo não tenham sido praticamente pronun- essa relação de poder no próprio seio de seu projeto. Mas devo
ciadas. Para alguém comoeu que há um certo número de anos dizer que a psicanálise, tal como é feita atualmente, a tantos
vem colocando ascoisas do lado da relação de poder, ver o que cruzeiros porsessão, não dá margem a que se possa dizer: ela é
se discute agora a propósito da psicanálise me deixa muito destruição das relações de poder. Até agoraeles a tem conduzi-
contente. Penso que passamos, atualmente, por uma transfor- do sob a forma de normalização.
mação completa dos problemas tradicionais.
Nãoseise já chegou ao Brasil um livro escrito por Castel, Hélio Pelegrino:
chamado Le Psicanalisme — que apareceu há três semanas. Há umasérie de sintomas importantes como, por exem-
Robert Castel é um amigo meu, trabalhamosjuntos. Ele tenta plo, a anti-psiquiatria, o movimento argentino, e naturalmente
retomar essa idéia de que, em última análise, a psicanálise o senhor já tomou conhecimento de um grupo italiano de
procura apenas deslocar, modificar, enfim, retomaras relações psicanalistas, um grupo brilhante que rompeu com a Interna-
de poder que são as da psiquiatria tradicional. Eu tinha cional e fundou umaIV Internacional. É preciso, então, quese
expresso isso desajeitadamente no final da História da Loucura. observe não um ou dois analistas isolados, que dariam da
Mas Castel trata o assunto muito seriamente com documen-
psicanálise a visão de umainstituição globalmente opressiva.
tação, sobretudo sobre a prática psiquiátrica, psicanalítica, Acho que hoje essa não é uma visão correta, portanto, já existe
psicoterapêutica, numaanálise em termosderelação de poder. também um movimento que tem corpo de movimento e que se
Creio ser um trabalho muito interessante mas que pode ferir coloca justamente na posição de um questionamento radical do
muito os psicanalistas. poder. Isto é a prova de que a psicanálise é exatamente um
O curioso é que esse livro saiu em março, e quando processo da destruição de umarelação de poder de dominação
nominal.
deixei a França no começo de maio, os jornais não tinham
ainda ousado falar sobreele. Michel Foucault:
Quando o senhor diz que a psicanálise é feita para Repito que não sou psicanalista mas surpreendo-me
destruir a relação de poder, estou de acordo. Estou de acordo quando ouço dizer que a psicanálise é a destruição das relações
quando penso quese pode perfeitamente imaginar umacerta de poder. Diria que há, atualmente, no meio psicoterápico um
relação que se verificaria entre dois indivíduos, ou entre vários certo número de pessoas que, partindo de experiências e
indivíduos, e que teria como função tentar dominare destruir princípios diferentes, tenta ver como se poderia fazer uma

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psicoterapia que não estivesse sujeita a essas relações de poder. encontrar muitos exemplos de recondução às relações de po-
Podemoscitá-las, mas não podemosdizer quea psicanálise seja der...
isso. Os que tentam destruir essas relações de poder enfrentam Luis Costa Lima:
grandes dificuldades, e é com louvável modéstia que se referem Parece-me que a questão central não a psicanálise, é o
às suas tentativas.
tratamento da idéia de poder. Da maneira como vem sendo
Hélio Pelegrino: tratada, converte num fetiche, isto é, toda vez que se fala em
Mashoje há psicanálises e psicanalistas. Nós,felizmente, poder se pensa na exploração; eu pago um analista, logo estou
já perdemos aquela unidade monolítica que noscaracterizava. sendo oprimido. Fala-se na Universidade, mas o Foucault está
Michel Foucault: sendo pago para nosfalar. Não é o problema do pagamento em
Permitam-mefalar como historiador. Encarandoa psi- si que determina umarelação negativa. Se a gente tomao poder
canálise como fenômenocultural que teve real importância no como uma realidade una, todo poder significa opressão, eu
mundo ocidental, poderíamos dizer que, como prática, enca- converto poder em fetiche;terei sim, que analisar as condições
rando-a como um todo,a psicanálise desempenhou um papel negativas e as positivas do poder, porque se não faço essa
nosentido da restauração das relações de poder, no sentido da distinção estarei restabelecendo simplesmente umabase anar-
normalização.Aliás, o mesmose poderia dizer da Universidade, quista, ou, numa versão mais contemporânea, é uma versão
que também reconstituias relações de poder; mashá, entretan- acadêmica, erudita, de um pensamento hippie.
to, algumas universidades que tentaram e tentam não desem- Chain Katz:
penharessa função. Estou de acordo com o senhor no que toca Eu gostaria de complementar que não sei onde está a
ao esforço que se faz atualmente no sentido da destruição das perniciosidade do pensamento hippie, anarquista. À meu ver
relações de poder no interior da psicanálise, mas não qualifica- Deleuze é hippie e anarquista,e não vejo ondeestá o pernícioso.
ria a psicanálise comociência que questiona o poder. Tampou-
Michel Foucault:
co qualificaria a teoria freudiana comotentativa de contestação Não quis absolutamente identificar poder e opressão.
do poder. Talvez a diferença entre nossos pontos devista se deva
Por que? Primeiro porque penso que não há um poder, mas que
à diferença de nossos respectivos contextos. Na França houve
dentro de umasociedade existem relações de poder — extraor-
um certo número de pessoas que chamamos freudo-marxistas
É dinariamente numerosas, múltiplas, em diferentes níveis, onde
quetiveram certa importância ideológica. Segundo elas, have-
umas se apoiam sobre as outras e onde umas contestam as
à
i
ria duas teorias que eram, por essência, revolucionárias e 4
Í outras. Relações de poder muito diferentes vêm-se atualizar no
contestadoras: a teoria marxista e a teoria freudiana. Uma
interior de umainstituição, por exemplo, nas relações sexuais
centrada sobre as relações de produção e a outra sobre as
temosrelações de poder,e seria simplista dizer queessas relações
relações de prazer; revolução nasrelações de produção,revolu-
são a projeção do poderdeclasse. Mesmo de um ponto devista
ção no desejo, etc. Ora, mesmonateoria marxista poderemos estritamente político, a maneira pela qual, em alguns países do

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ocidente, o poder, o poder político, é exercido por indivíduos transformar em níveis microscópios — na escola, na família —
ouclasses sociais que absolutamente não detêm o poder econô- as relações de poder de tal maneira que, quando houver uma
mico. Essas relações de poder são sutis, múltiplas, em diversos revolução político-econômica, não encontremos, depois, as
níveis, e não podemos falar de um poder, mas sim descrever as mesmasrelações de poder que encontramosagora. É o proble-
relações de poder, tarefa longa e difícil e que acarretaria longo ma da Revolução Cultural na China...
processo. Poderíamos estudá-las do ponto de vista da psiquia-
Rose Muraro:
tria, da sociedade, da família. Essas relações são tão múltiplas
Umavez que a arqueologia parece não obedecer a um
que não poderiam ser definidas como opressão, resumindo
método, podemos considerá-la como umaatividade aparenta-
tudo numa frase: “o poder oprime”. Não é verdade. O poder
da com arte?
não oprime por duas razões: primeiro, porque dá prazer, pelo
menos para algumas pessoas. Temos toda uma economia Michel Foucault:
libidinal do prazer, toda umaerótica do poder,isto vem provar É verdade que o que tento fazer é cada vez menos
que o poder não é apenas opressivo. Em segundolugar, o poder inspirado pela idéia de fundar umadisciplina mais ou menos
podecriar. Na conferência de ontem tentei mostrar que coisas científica. O que procuro fazer não é algo que esteja ligado à
como relações de poder, confiscações, etc., produziram algo arte, mas sim uma espécie de atividade. Uma espécie de
maravilhoso que é um tipo de saber, tipo de saber que se atividade, mas não uma disciplina. Atividade essencialmente
transformana enquête e dá origem a uma série de conhecimen- histórico-política. Não creio que a história possa servir à
tos. Logo, não aprovo a análise simplista que consideraria o política pelo fato de fornecer-lher modelos ou exemplos. Não
poder como umacoisa só. Alguém disse aqui que os revoluci- procuro saber, por exemplo, em que medida a situação da
onários procuram tomar o poder. Aí, eu seria muito mais Europa no começo do século XIX é semelhante à situação do
anarquista. É preciso dizer que não sou anarquista no sentido resto do mundo no fim do século XX. Esse sistema de analogia
de que não admito essa concepção inteiramente negativa do não me parece fecundo. Por outro lado, parece-me que a
poder, mas não concordo com vocês quando dizem que os história pode servir à atividade política e que esta, porsua vez,
revolucionários procuram tomar o poder. Ou antes, estou de pode servir à história na medida em quea tarefa do historiador,
acordo, acrescentando “Graças a Deus, sim”. Para os autênticos ou melhor, do arqueólogoseja descobrir as bases, as continui-
revolucionários, apoderar-se do podersignifica apoderar-se de dades no comportamento, no condicionamento, nas condições
um tesouro das mãos de uma classe para entregá-lo a uma outra de existência, nas relações de poder, etc. Essas bases que se
classe, no caso, o proletariado. Creio que é assim que se concebe constituíram num dado momento, que substituíram e que
a revolução e a tomada do poder. Então observem a União permaneceram, estão atualmente escondidas sob outras produ-
Soviética. Temos um regime onde as relações de poder na ções ou estão escondidas simplesmente porque de tal maneira
família, na sexualidade, nas fábricas, nas escolas, são as mesmas. fizeram parte de nosso corpo,de nossa existência; assim, parece-
O problema é saber se podemos, dentro do regime atual, me evidente que tudo isso tenha tido uma gênese histórica. A

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análise arqueológica teria, nesse sentido,a função de, primei- Não me recordo bem em que Deleuze disse que eu era um
ramente, descobrir essas continuidades obscuras em nós incor- poeta, mas se eu quiser dar um sentido a essa afirmação [diria]
poradase, partindo doestudo de sua formação, poderíamos, que Deleuze quis dizer que meu discurso não procura obedecer
em segundo lugar, constatar a utilidade que tiveram e a às mesmasleis de verificação que regem a história propriamente
utilidade que têm ainda hoje: como atuam na economia atual dita, uma vez que esta tem como único fim dizer a verdade,
de nossas condições de existência. Em terceiro lugar, a análise dizer o que se passou, no nível do elemento, do processo, da
histórica permitiria ainda saber determinar a que sistema de estrutura das transformações. Eudiria, de maneira muito mais
poder estão ligadas estas bases, estas continuidades e, por pragmática, que, no fundo, minha máquina é boa; não na
conseguinte, como fazer para abordá-las. Por exemplo, no medida em que ela transcreve ou fornece o modelo do que se
domínio da psiquiatria, parece-me interessante saber comose passou, e sim na medida em queela consegue dar do que se
instaurou o saber psiquiátrico, a instituição psiquiátrica no passou um modelo tai que permita que noslibertemos do que
início do século XIX, ver como tudo isso foi engajado no se passou.
interior de umasérie de relações econômicas, ou pelo menos Affonso Romano de Sant'Anna:
útil, se quisermos agora lutar contra todas as instâncias de O senhor já disse que o hermetismo é uma forma de
normalização. Para mim,a arqueologia é isso: uma tentativa controle do podere nisto havia também umareferência à forma
histórico-política que nãose baseia em relações de semelhança obscura do pensamento lacaniano. Por outro lado, tenho
entre o passadoe o presente, mas sim em relações de continui- sentido no senhor um desejo de escrever um livro tão claro que
dade e na possibilidade de definir atualmente objetivostáticos eu chamaria de projeto mallarmaico de um livro anti-
de estratégia de luta, precisamente em função disso. mallarmaico. Então, quando se considera a opacidade do
Interlocutor não identificado: discursoliterário versus o discurso da transparência não estaría-
Deleuze disse que o senhor é um poeta. Ora, o senhor mos com Mallarmé (le retour du langage) e com Borges
acabade afirmar que não é um poeta, que a arqueologia não é (Vhétérotopie), privilegiando o mesmo discurso da opacidade,
umaarte, não é uma teoria, não é um poema, é umaprática. principalmente se considerarmos “com Nietzsche, com
Será a arqueologia uma máquina miraculosa? Mallarmé, que o pensamento foi reconduzido violentamente
para a própria linguagem, para ser único e difícil”.
Michel Foucault:
A arqueologia é uma máquina, sem dúvida, mas porque Michel Foucault:
miraculosa? Uma máquinacrítica, uma máquina que recoloca É preciso ressaltar que não endosso sem restrições o que
em questãocertas relações de poder, máquina que tem, ou pelo disse nos meus livros... No fundo, escrevo pelo prazer de
menos deveria ter, uma função libertadora. Na medida em que escrever. O que eu quis dizer sobre Mallarmé e Nietzsche é que
passamosa atribuir à poesia uma função libertadora,diria não houve, na segunda metade do século XIX, um movimento
que a arqueologia é, mas que eu desejaria queela fosse poética. cujos ecos encontramos em disciplinas comoa linguística ou

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em experiências poéticas como as de Mallarmé, toda umasérie
de movimentos que tendia a perguntar a grosso modo: “O que
é a linguagem?” Enquanto que as pesquisas anteriores tinham
sobretudo visado saber como nos servíamosdalinguagem para
transmitir idéias, representar o pensamento, vincularsignifica-
ções; agora, ao contrário, a capacidade da linguagem, sua
materialidade, tornou-se um problema.
Parece-me que temos aí, ao abordar o problema da
materialidade da linguagem, uma espécie de volta ao tema da
sofística.
E nãocreio que essa volta, essa preocupação em torno do
“ser” da linguagem, possa ser identificada com o esoterismo.
Mallarmé não é um autor claro nem pretendia sê-lo, mas não
me parece que esse esoterismo esteja forçosamente implicado
na volta ao problema daexistência da linguagem. Se conside-
rarmosa linguagem como umasérie de fatos tendo um deter-
minadoestatuto de materialidade, essa linguagem é um abuso
de poder pelo fato de podermos usá-la de uma determinada
maneira, tão obscura, que vem impor-se à pessoa a quem é
dirigida, do exterior, criando problemas sem solução, seja de
compreensão, de re-utilização, de retorsão, de respostas, de
críticas, etc. A volta ao “ser” da linguagem não está pois ligada
à prática do esoterismo.
Gostaria de acrescentar que a arqueologia,esta espécie de
atividade histórico-política, não se traduz forçosamente por
livros, nem pordiscursos, nem por artigos. Em últimaanálise,
o que atualmente me incomoda é justamente a obrigação de
transcrever, de enfeixar tudo isso num livro. Parece-me quese
trata de umaatividade ao mesmo tempo prática e teórica que
deve ser realizada através de livros, de discursos e de discussões
comoesta, através de ações políticas, da pintura, da música...

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