Você está na página 1de 124

“Um livro de memórias é sempre uma retrovisão

emocionada. Alguém olha para trás, para aquele


que foi, tem saudades de si próprio e procura com-
preender os fatos que não se desapegaram jamais
de sua mente. Porque a memória é um arquivo
vivo, mas é um arquivo que não guarda tudo, que
só guarda o que pode e o que quer. É um arquivo
em que tão importante quanto aquilo que se lem-
bra é aquilo que se esquece.”

Alberto da Costa e Silva


8 Apresentação
10 Cardápio
12 A Fome
14 A Saciedade – a Sua e a dos que Vivem em seu Entorno
14 Italianos
16 Holandeses
18 Libaneses
20 Japoneses
22 Afro-Descendentes
24 Salgado-Doce
24 Alemães
26 Espanhóis
28 Letos
30 Portugueses
32 Sabor Umami
32 Belgas
34 Histórias e Receitas

PORTUGUESES

36 Sarravulho, o Porco na Lata e a Sardinha Frita

38 O Sarravulho

39 O Porco na Lata

40 Sardinha Frita

LETOS

42 Latvija, ou Letônia para os Brasileiros

46 Buberts

48 Galerts

50 Salda Zupa
HOLANDESES ITALIANOS

52 Calor ou frio, sopa... 88 Comida, Conversa e Partilhas:


a Vida à Mesa
54 Erwtensoep
90 Caponata de Berinjela
56 Ontbijtkoek
92 Ragu à Bolonhesa
58 Stamppot
94 Peras ao Vinho Tinto

AFRO-DESCENDENTES
ALEMÃES
60 Flor do Dendê
96 Comida e Família
64 Cozido
100 Batata Sautée
66 Acarajé
101 O Chucrute da Família Berggren
68 Quindim
102 Cuca de Maçã e Banana

ESPANHÓIS
LIBANESES
70 Família Jiménez – da Espanha ao Brasil
104 Casa de Vó
74 Puchero
106 Tabule
76 Mantecados de Amêndoas e Canela
108 Charutinhos de Folha de Uva
78 Tinto de Verano
110 Malabie

JAPONESES
BELGAS
80 Ishikawa, Perseverança de Vida
112 Família Hereman – Entre a Bélgica
82 Oyako Domburi e o Brasil
84 Anmitsu 114 Coelho com Ameixas
86 Sunomono 116 Bolo Cuffe (ou Cuca)

118 Rijstpap

120 Referências Complementares


Minhas primeiras memórias culinárias
Fotografia de Heloísa Bortz se encontram ancoradas em quintais da
infância cujos fogões eram construídos com
dois tijolos. As panelinhas eram latas de
marmelada e sardinha; o arroz tinha sabor
de fumaça.

Eu e minha amiga Bida arrumávamos


mesinhas com toalhas e vasos de flores e
alimentávamos bonecas e bichos.

De nada adiantava a insistência de


minha mãe querendo fornecer comi-
das prontas para nossas brincadeiras.
Queríamos o fogo, os riscos, a autoria
infantil.

Nas cozinhas das avós, lá na fria serra


gaúcha, havia fogões a lenha. De manhã,
o cheiro da polenta brustolada na chapa
e das fatias de queijo derretido juntava-se
ao aroma do chimarrão, do mate doce das
mulheres temperado com as ervas aromá-
ticas dos quintais.

Enxergo minha mãe em sua cozinha fri-


tando os bolinhos de chuva maravilhosos
que acompanhariam o chá mate com leite.
Ela amava os romances ingleses, com seus
belos e românticos chás da tarde.

Escuto sua voz nos chamando para pegar


ovos no galinheiro, os quais ela transforma-
va numa nuvem tão maravilhosa para ser

Meu nome é Paulo R. Masserani e sou


ilustrador. Cursei Design Gráfico na Unesp
onde aprendi a fazer com que letras, for-
mas, cores, textos e imagens se harmo-
nizassem da melhor forma possível nas
páginas, algo que vejo ser muito parecido
com juntar ingredientes e dar sentido a
eles dentro de uma panela e fazer sair
dali uma receita.

Gosto de desenhar desde pequeno,


quando tentava copiar os desenhos ani-
mados a que assistia. Assim fui pegando
gosto pela coisa, o que infelizmente não
posso dizer sobre cozinhar, atividade que
para mim tem um aspecto mais prático,
ainda mais depois de algumas tentativas
infrutíferas de me aventurar pelo mundo
das receitas.

8
comida com pedacinhos de pão. Primeiro Andava pela horta-jardim juntando tudo o nada com a força do olfato e do paladar
batia as claras em neve com dois garfos até que era tempero para seus pratos, fazendo no processo de arquivamento de nossas
um ponto duro que ela exibia virando a misturas que nunca se repetiriam. “Cada lembranças.
vasilha de ponta-cabeça – não podia pingar prato, um prato”, dizia ele.
nadinha. Depois batia as gemas com açúcar Poderia me apresentar aqui como pe-
e juntava tudo. Cada porção trazia a sen- Suas costeletas de porco faziam a festa dagoga, doutora em Educação, pesqui-
sação de saborear nuvens que dançavam dos netos, que identificavam o avô com esse sadora da área da memória, assessora de
em nossa boca. prato. Ele comprava cortes grandes, com os- prefeituras para projetos de formação de
sos enormes. As crianças se sentiam comendo educadores, memórias e comunidades, e
Meu pai, como bom gaúcho que era, me ossos de dinossauros. Uma festa que trazia escritora de livros para todas as idades.
ensinou a reconhecer os cortes da carne e em seu bojo a relação dos coreanos com o Porém, quero trazer junto da minha for-
a assumir, como ele, que a costela na brasa porco, a carne que faz parte de uma cultura mação acadêmica as heranças das quais me
é sempre a rainha de um bom churrasco. gastronômica que se perde no tempo. orgulho muito:
O barulho da gordura pingando no fogo
e criando fagulhas avermelhadas, o cheiro Sempre gostei de cozinhar, de juntar pes- – Herdei, da família coreana, as panelas e
que se desprendia são revividos por mim soas em volta da mesa para longas refeições o belo pote de cerâmica para fazer kimchi,
quando estou em frente ao fogo da chur- recheadas de histórias. Nessa mesma mesa que atravessaram mares.
rasqueira. eu redigia meus trabalhos de faculdade,
sovava a massa do pão, fechava os pastéis, – Herdei o caderno de receitas da nonna
Ele dizia que o radici amargo com cebola escolhia o feijão – de todas as cores –, as Amabile.
era o par perfeito para ajudar na digestão lentilhas, o arroz.
das carnes gordurosas. Me ensinou a colocar – Herdei talheres usados nas primeiras
colheradas de vinho tinto no brodo e a ex- Cozinhava para a grande família e os refeições de meus netos.
perimentar frutas diferentes que trazia de amigos, sempre acreditando que o ato de
alimentar é sagrado, que a cozinha é o – Herdei filhos que cozinham, discutem
suas pescarias. Era um ser curioso e aberto sabores e temperos e guardam bem pro-
a novidades. lugar de alquimias profundas, de terapias,
de produção de conhecimentos que estão tegidas no coração as receitas que dizem
Cresci e me casei com um coreano que presentes nos alimentos oferecidos. quem eles são: ítalo-coreanos!
amava cozinhar. Assim como os italianos, Confesso que, quando tudo fica desa-
os coreanos comemoram tudo à volta da Como pesquisadora da área da memória,
tive oportunidade de estudar os processos fiador, cozinho e escrevo, assim alimento
mesa, em reuniões ruidosas, com muita a vida e perpetuo histórias.
comida, bebida e cantoria. Sua rabada com que ocorrem no cérebro relacionados às
polenta silenciava o almoço, era de suspirar. memórias de vários tipos. Fiquei impressio- Sou Margareth Brandini Park e minha
especialidade é a feijoada.

Apesar de não ir muito além do básico, no chão de um acampamento com alguns


reconheço e admiro todos os aspectos na amigos, já quase à noite, depois de um dia
atividade do cozinhar. É recompensador o inteiro andando por trilhas pelo mato e
esforço e a criatividade envolvidos em criar visitando riachos e cachoeiras.
algo para alimentar a si ou aos outros, em
sentir fome e ter a capacidade e os meios E, atestando a importância do processo
de acabar com ela. Também é admirável ver de cozinhar, digo que a lembrança da sopa
um cozinheiro que tem prazer no processo nem está no gosto em si, do qual sincera-
e nos cuidados envolvidos na criação de mente já não me lembro muito, e sim no
um prato. Quanto à fome, acredito mesmo esforço em conjunto de buscar lenha, acen-
que seja o melhor ingrediente ou tempero, der o fogo, buscar água, reunir utensílios e
como diz o ditado. no fim se juntar em volta da fogueira, todos
conversando, descansando e desfrutando
Lembro que a melhor sopa que já tomei da inesquecível sopa de saquinho.
foi uma dessas de saquinho, pré-prontas e
vendidas em supermercado, que num dia
comum iria só matar a fome, assim, mecani-
camente e sem deixar lembranças, mas que
dessa vez foi feita numa fogueira armada

9
10
A REGIÃO METROPOLITANA DE
CAMPINAS – UM RECORTE
Para não sucumbirmos a tentativas de As cidades que comporão nosso cardápio cafés de bisas e avós, comidas de casamento,
traçar borgeamente este mapa gastronô- foram escolhidas pela pesquisa realizada, batizados, aniversários –, e basta o aroma
mico que transbordaria feito leite de vaca que rastreou os grupos culturais de des- nas narinas para que vozes ressurjam e o
fervido, precisamos de fronteiras que ofere- taque em suas populações. Pretendemos calor das panelas e das pessoas nos envolva.
çam os limites necessários. “Borgeamente” representar grupos vindos de vários lugares
se refere à fábula de Jorge Luis Borges de trazendo seus temperos, mesas e encontros
título “Cartografia e as novas represen- gastronômicos, numa herança valiosa que
tações de tempo e espaço”, publicada no ganhou reinterpretações advindas dos in- “Mas há horas em que você precisa dar
livro História universal da infâmia (1935). gredientes locais encontrados. uma mordida em algo quente ou em uma
Nela, o escritor aborda a arte da cartografia fatia de alguma coisa doce, só para sentir
detalhada dos mapas e seus desafios. Escovando a contrapelo, nos dizeres de que o mundo é um lugar mais confortável.”
Walter Benjamin, procuramos fugir de ob-
Nigella Lawson, chef inglesa
Aqui, as comidas de nossa gente situam- viedades, já que muitas vezes uma cidade
-se na Região Metropolitana de Campinas. elege suas marcas, deixando à margem
Composta por vinte municípios e fundada outros grupos de grande relevância, por
em 19 de junho de 2000, é a segunda maior diversos motivos. Esse trabalho foi muito
do estado de São Paulo. Em torno de 3 gratificante, pois jogou luz em participa-
milhões de habitantes formam essa região ções identitárias que se acostumaram a
metropolitana. ficar na penumbra. O fogo da cozinha as
iluminou, e vamos trazê-las em seus co-
Ajustando o traçado de nosso mapa/ tidianos repletos de heranças fortes que
cardápio, escolhemos dez das cidades que ressurgem quando determinados aromas
compõem a referida região, com seus gru- se apresentam. O ambiente mágico das
pos étnicos representativos. São, respecti- cozinhas, alquímico, de transformações
vamente, Campinas – portugueses, Nova que persistem nas memórias e nos cadernos
Odessa – letos, Holambra – holandeses, amarelados e marcados pelo manuseio de
Hortolândia – afrodescendentes, Artur No- suas receitas.
gueira – espanhóis, Valinhos – japoneses,
Vinhedo – italianos, Americana – alemães, A comida nos salva. Nas receitinhas de
Jaguariúna – libaneses, Engenheiro Coelho bisas, nonnas, mães, depositamos confian-
– belgas. ça para nossas curas. Ela nos salva quando
a cada porção degustada traz de volta o
Do final do século XVIII ao começo do lugar a que demos adeus e as pessoas que
século XX, o café e a cana-de-açúcar foram estavam à mesa e não mais estão.
as atividades econômicas de maior impor-
tância na região. Na década de 1930, o A comida está presente em inúmeros
comércio e a indústria assumiram maior rituais familiares – almoços domingueiros,
destaque.
11
A FOME
Muitos povos que abandonam seu lugar de origem
o fazem pelas agruras impostas por guerras, catástrofes
climáticas, conflitos que levam a fome para dentro
de seu lar.

A ideia de buscar a Terra da Cocanha medieval – o


lugar da fartura absoluta, onde jorra leite e mel –
habita o imaginário humano e serve de combustível
para viagens desafiadoras que deverão apaziguar as
tristezas e ansiedades diante do desconhecido.

Muitos sujeitos que contarão aqui suas histórias


de família não viveram diretamente tais dificuldades,
porém as memórias partilhadas nas mesas tratarão de
colocá-los diante delas.

Quando a nonna diz a seu neto: “Olha quanta mi-


galha de pão na sua frente que está sendo desperdi-
çada!”, ela quer advertir sobre a escassez impregnada
em suas vísceras. Não importa se as migalhas serão
colocadas na sopa, lambidas, dadas às galinhas. O
recado é: a comida é sagrada e tem de ser respeitada.

Buscar o pão que alimenta a prole fortaleceu in-


divíduos e os impeliu por terras e mares, nutridos
pela esperança da fartura em suas mesas. Raros foram
aqueles que vieram com belas reservas e já monta-
ram negócios próprios. Em nossa região, a maioria
se debruçou sobre a terra, no doce/amargo trabalho
com a cana e o café. Compreenderam logo que nos
trópicos ensolarados o trabalho se estendia pelo dia
interminável banhado pela luz.

Famílias inteiras se uniam para produzir suas far-


turas. Farturas essas que as deslocariam das fazendas
para as cidades, das roças para os bancos escolares. Uma
herança, porém, sempre se mantinha: a de seu legado
gastronômico, guardado nas memórias revisitadas com
novos ingredientes que às vezes teimavam em desandar
receitas, mas, do mesmo modo, agregavam sabores
inusitados que enriqueciam as comidas originais.

A comida constituiu um capital cultural capaz de


construir pertencimentos que perduram no tempo,
gerando um lastro de grande valor que poderá ser
percebido em histórias que comporão nosso cardápio.

“Às vezes, em um fim de semana chuvoso ou quando


o que você quer é saborear o calor de sua casa, pode
aparecer o desejo de morar um pouco na sua cozinha,
em vez de dar apenas uma passada rápida pelo fogão.”

Nigella Lawson, chef inglesa

12
13
A SACIEDADE – A SUA E A introdução da cultura da uva em Vi-
nhedo, após o declínio da produção cafeei-
di Mutuo Soccorso Regina Margherita, que
fornecia assistência médica e ajudava os
A DOS QUE VIVEM EM ra e a presença dos italianos que vieram
para substituir a mão de obra escrava, foi
imigrantes desempregados.

SEU ENTORNO caracterizando uma cidade com identidade A escolha da pera ao vinho, pelos Gob-
bato, valorizando a fruta e o vinho em sua
marcada por italianidades. Com a importân-
Os italianos representando a cidade de Vinhedo; cia da uva, desenvolveu-se uma economia composição, dialoga perfeitamente com o
os holandeses, Holambra; os libaneses, Jaguariúna; os local que explora a fruta e seus produtos – histórico da região que escolheram para
japoneses, Valinhos; e os afrodescendentes, Hortolân- vinhos, vinagres e doces. Podemos afirmar montar seu restaurante, o Macarronada
dia; todos trazem em comum o fato de assumirem que ela foi responsável por mudar o status Italiana, casa que alimentou e alegrou
suas heranças gastronômicas como subsistência por da pequena cidade conhecida como para- por décadas a população local, os turistas,
meio de empreendimentos comerciais que perpetuam gem de viajantes para um lugar próspero. os funcionários de empresas locais e os
as mesas e os fogões de suas famílias. habitués que frequentavam seus bailes
A Festa da Uva existe desde 1948 em de sábado, sempre com música ao vivo.
Vinhedo e movimenta o turismo local. A
cidade faz parte do Circuito das Frutas do Como bem diz Debora Cravo Domin-
ITALIANOS estado de São Paulo. Seu Índice de Desen-
volvimento Humano (IDH) é um dos mais
gues Freitas, nutricionista do Sesc: “Comer
é algo corriqueiro, mas tem um potencial
Quando os Gobbato deixaram Varano altos do país. enorme para deixar as melhores lembran-
Borghi, província de Varese, na Lombardia, ças. E os sentimentos que acompanharam
rumo ao Brasil, certamente não imagina- Na década de 1990, várias empresas essas recordações? São sempre carregados
vam quantas famílias se alimentariam e instalaram-se na cidade, pois os custos de de muito amor e carinho”.
comemorariam nos domingos com suas municípios como Jundiaí e Campinas tor-
naram-se muito proibitivos. E você, caro leitor, não concorda que
massas e seus ragus à bolonhesa. Começa-
uma marca de carinho forte é caprichar
ram partilhando com amigos mais próximos
Os imigrantes italianos chegaram a Vi- num ragu picado a faca para o molho
e, décadas depois, conseguiram uma legião
nhedo em 1880. Eles vieram, em sua maioria, da pasta? Aqui encontrará a receita da
deles, que honram o espírito italiano nos
de Nápoles, Trieste, Veneza e Pádua. Como família Gobbato para se lambuzar praze-
alegres e barulhentos almoços.
em vários lugares, assim que chegavam rosamente em um almoço domingueiro
fundavam sociedades para proteger seu regado com bom vinho e belas canções!
povo. Em 1902 fundaram a Società Italiana Buon appetito!

Memorial do Imigrante, em Vinhedo.

14
15
Marilza Link Gobbato (D. Zita)
Moinho Povos Unidos, em Holambra.
HOLANDESES
Joana Weel nos conta que a culinária
holandesa era bastante simples pela baixa
diversidade de ingredientes. Havia muita
praticidade nas receitas executadas muitas
vezes em uma única panela. Entre elas, as
sopas, sempre presentes, fizesse frio ou
calor. Suas receitas foram recuperadas em
cadernos antigos e memórias familiares e
hoje são comercializadas em Holambra.

Você, leitor/leitora, poderá degustar


uma das sopas mais típicas da Holanda, a
erwtensoep – sopa de ervilhas –, seguindo
a receita partilhada. Completando a refei-
ção, uma deliciosa sobremesa, que desafia
nossa pronúncia, o ontbijtkoek, um bolo de
especiarias que deve ser servido lambuzado
de manteiga. Na mesa, sugiro um belo vaso
de flores coloridas para garantir a marca do
imaginário de Holambra, a cidade em que
suas famílias fizeram morada, conhecida
como Cidade das Flores.

16
17
Joana Weel
Maria-fumaça que faz o passeio Jaguariúna/Campinas, em Jaguariúna.
LIBANESES
Miled Salomão Hossri chegou ao Brasil
no final do século XIX, vindo da região do
Vale do Bekaa, no Líbano. Cecília Nader
Hossri, vinda de Beirute, chegou no início
do século XX. Casaram-se e escolheram a
cidade de Jaguariúna para viver. O armazém
de secos e molhados garantia o sustento
e provavelmente trazia grande prazer à
vovó Cecília, que transitava entre gêneros
alimentícios e temperos, em um universo
alquímico que antecede o calor dos fogões.

A neta Márcia, da vovó Adna, filha de


Cecília, partilha conosco aromas e sabores
de memórias queridas. Segundo ela, “a
culinária é uma forma doce de expressar
a cultura e os costumes de um povo. É a
memória afetiva latente e inesquecível. Em
cada prato colocamos nossas lembranças,
tudo que ficou da herança imaterial que
nos foi transmitida está representada no
alimento”.

Elas continuam deliciando as pessoas


da cidade com suas comidas raiz que le-
vam temperos importados do Líbano. Em
seu espaço, recriam um universo que une
histórias, afetos e memórias da cozinha
ruidosa, alegre e saborosa.

Depois de fazer a receita do seu mala-


bie, convido o leitor a, de olhos fechados,
colocar uma generosa colherada do doce
na boca. Talvez consiga ouvir uma risada
prazerosa de Cecília Nader Hossri, vinda
de Beirute para Jaguariúna no início do
século XX.

18
19
Márcia Josele Hossri Faria Coelho
JAPONESES
Quando Oscar Isao Sassaki e Masao Ishi- O que antes foi preconceito – o peixe Como não se confortar com um missô
zaki vieram para o Brasil, o destino comum cru, o arroz sem sal, as conservas – acabou quentinho, com uma tigela de arroz fume-
de ambos foi a agricultura. O primeiro nas assumindo o status de cozinha saudável gante em um dia frio? O leitor poderá ainda
lavouras de café, o segundo nas plantações e saborosa. juntar às sugestões oferecidas o delicioso
de arroz, tomate e outros legumes. Poste- pepino japonês (sunomono), cuja receita
riormente, o senhor Sassaki adquiriu uma A família, cujo sobrenome da mãe, Ka- encontrará nestas páginas.
propriedade em Valinhos, onde cultivava wasumi, significa “perseverança”, incorpora
tomate, uva e figo. O senhor Masao trilhou o conceito e investe em formação ampla A expressão itadakimasu significa gra-
seu caminho na “arte milenar da cozinha para todos os seus membros. Em Valinhos, tidão a todos aqueles que permitiram que
oriental”, nos dizeres de seus descendentes. onde se estabeleceram, oferecem, além de a refeição fosse servida. Desde aquele que
Duas famílias que se unem em um histórico suas saborosas comidas, a partilha de uma plantou, colheu, preparou até a generosida-
iniciado na relação com a terra e que se des- cultura, pela qual as pessoas de nosso país de da natureza. Uma expressão compatível
dobra na transformação de seus produtos, manifestam grande admiração. com a história de ambas as famílias aqui
com técnicas culinárias que, após décadas descritas.
de desempenho, seduziriam a população
brasileira.

Estação da Cia. Paulista de Estrada de Ferro – Museu e Acervo Municipal “Fotógrafo Haroldo Ângelo Pazinatto”, em Valinhos.

20
21
Masao Ishizaki
AFRO-DESCENDENTES
Doné Eleonora, afrodescendente de et- para o espaço gourmet que criou, migram compõem os tabuleiros de nossas baianas.
nia desconhecida – marca de tantos que alimentos que reverenciam as entidades de Talvez o que o leitor desconheça é que
foram trazidos do continente africano –, uma religião de matriz africana. o acará, ou bola de fogo, é uma comida
filha de cozinheira baiana, trará para nos- ritual oferecida a Oyá (Iansã). A receita,
sas páginas as comidas rituais de sua gente, Relatando a história familiar e sua luta uma das trazidas por mãe Eleonora, de-
que celebra e partilha uma cosmogonia para o fortalecimento e reconhecimento safiará o leitor a executá-la para festar
rica, que sofreu e sofre várias tentativas de do patrimônio gastronômico do qual é her- à mesa com a alegria típica da cultura
apagamento e luta para sobreviver diante deira, conta-nos que o ofício de baiana do trazida por seus ancestrais.
de preconceitos. acarajé consta no Livro de Registro dos Sa-
beres como Patrimônio Cultural Brasileiro.
Sua ancestralidade africana vem da bi- O acarajé, degustado com ou sem pimenta,
savó materna, e ela lamenta não ter mais com ou sem saladinha de coentro, é sabo-
informações sobre uma parte tão importan- reado com prazer pelos brasileiros, que
te de sua história. Da cozinha de terreiro reconhecem há muito tempo as delícias que

Ponte estaiada, em Hortolândia.

22
23
Eleonora Aparecida Alves de Souza Domingos – Doné Eleonora
SALGADO – DOCE ALEMÃES
Os capítulos agrupados neste subtítulo retratam O patriarca da família Berggren, Jorge A menina cresceu e, junto do marido,
as histórias de imigração de alemães, espanhóis, Frederico Gustavo Berggren, veio de Bonn, com muita dedicação e trabalho, fundou
letos e portugueses. Suas narrativas permitem um Alemanha, em 1867. E a matriarca, Emília a Gráfica Adonis, que, com a editora de
mergulho em eventos que ocorrem por ocasião dos Hulda Opelt, de Hamburgo, Alemanha, mesmo nome, espalha belos livros por nosso
inúmeros desafios colocados para aqueles que dei- em 1868. Por ocasião da Primeira Guerra país, livros esses que trazem histórias de
xam para trás sua casa, seus amigos, sua cultura, Mundial, Jorge teve muito medo de ser vários continentes. Seus personagens trans-
seus grupos religiosos, sua terra, o clima de seu expatriado por sua origem, pois não era mitem a diversidade de línguas, costumes,
país, seus costumes alimentares e idioma. naturalizado brasileiro. O acolhimento de valores e crenças.
patrícios da Villa Americana apaziguou seus
Quando se deparam com um novo lugar, preci- Suas memórias culinárias trazem o chu-
sam se adaptar à língua desconhecida, desafiadora, medos e fortaleceu suas raízes na cidade.
crute da família e a cuca, que ganha sabor
ao clima incompreendido, aos alimentos que desa-
Marilene Berggren Comelato reaviva com a inclusão da banana, farta em nosso
fiam o paladar. São tantos os desafios que inúme-
suas memórias em nossas páginas. Cami- país. A maçã da receita original recebe a
ras vezes – incontáveis – salgadas lágrimas serão
nha novamente por sua infância com o nova fruta, resultando no doce que traz as
constantes nesses dias cinzentos.
sentimento da criança que brincava com nacionalidades forjadoras da nova identi-
Com o tempo, a solidariedade de outros imi- vizinhas na rua e conta seu desconforto dade.
grantes, o clima mais ameno e a variedade de ali- por não poder frequentar o catecismo com
mentos aliam-se à determinação férrea dos grupos suas amigas, pois era filha de protestan- Fica aqui o convite para nosso leitor/
que constituem família, prosperam, educam seus tes luteranos. Como sabemos, a Primeira leitora assar uma saborosa cuca, fazer um
filhos e contam suas agruras vividas nas mesas de Comunhão costuma ser um ritual muito chá e encontrar um belo livro para acom-
domingo para forjar o caráter de sua prole. O doce importante para as famílias católicas: o panhar esse momento.
sabor da superação passará a habitar suas mesas. catecismo, o preparo das roupas, as fotogra-
fias que ficavam guardadas nos pequenos
acervos dos menos abastados. O desejo de
pertencimento dava pontadas na pequena
Marilene.

Casa de Cultura “Hermann Müller”, em Americana.

24
25
Marilene Berggren Comelato
ESPANHÓIS
Juan Jimenez, cuja família é originária
da cidade de San Juan de Aznalfarache, na
Espanha, nos traz as memórias do ruído das
castanholas, do solado dos sapateados fla-
mencos, da sedução de cidades com histórias
riquíssimas, pelas quais passaram muitos
povos que deixaram suas marcas arquite-
tônicas, intelectuais e gastronômicas. Sua
família vivia em Cádiz, no sul da Espanha, um
lugar banhado pelo Oceano Atlântico, com
um porto de grande importância comercial.

Os fenícios foram os fundadores da ci-


dade, que posteriormente foi ocupada por
gregos, cartagineses, mouros e normandos.
Ficou por oitocentos anos sob domínio ára-
be. Podemos facilmente imaginar ruas reple-
tas de movimento, carregamento de merca-
dorias, em uma abundância de diversidade,
romances interditos, sabores mesclados, inú-
meras cores mediterrâneas transitando por
mares que se transformavam em verdadeiros
portais. Como ele diz, “a cidade portuária de
Cádiz era praticamente a porta de entrada
da Europa para o comércio de mercadorias”.

Sua avó Ana administrava uma loja de


armarinhos que foi vendida para a realização
da viagem e o estabelecimento da família
unida em terras brasileiras. Muitas foram as
idas e vindas, uniões e separações dentro da
família. Confesso que a cena dos irmãos se
despedindo, parte ficando no Brasil, parte
partindo para viver na Espanha, turvou meus
Lagoa dos Pássaros, em Artur Nogueira.

olhos. Pensei nos inúmeros desafios enfren-


tados pelos imigrantes ao redor do mundo.

Juan se desloca não só por memórias,


mas também espacialmente. Busca seus laços
de sangue na Espanha, apreende hábitos,
aprende receitas que adapta quando volta
ao Brasil, como a substituição do chorizo
do puchero pela nossa linguiça calabresa.

As idas e vindas de Juan são motivadas


por saudades, curiosidades e partilhas. Um
adocicado sabor produzido por ancoragens
possibilitadas por nossas raízes.

Convido nosso leitor a brindar as belas


memórias com o delicioso tinto de verano,
bebida muito refrescante para nosso clima
tropical, uma das receitas partilhadas por
Juan, cujas raízes repousam na bela região
da Andaluzia!

26
27
Juan Carlos Teixeira Jimenez
Jardim Botânico Plantarum, em Nova Odessa.
LETOS
Nansi Arais Wodewotzky recupera em
seu texto importantes características da
Letônia, ou Latvija na língua leta. Como
descendente dessa cultura, carrega várias
marcas próprias do grupo de origem, tal
como a grande afinidade com a música.
Participa de corais e é regente oficial do
coral da cidade de Nova Odessa.

Ela descreve o estranhamento e as difi-


culdades dos letos diante da nova realidade
pós-imigração, como o clima extremamente
quente, que causou muitas mortes por de-
sidratação em razão da pequena ingestão
de água e das roupas inadequadas para o
clima, que só agravavam os desconfortos...

As dificuldades com a língua foram ame-


nizadas na cidade em que viviam – Nova
Odessa – pelo jornal Lidumnieks (“Lavra-
dor”), cujo redator era J. Malves, um imi-
grante leto. A publicação, que começou a
circular em 1908, tinha por objetivo orien-
tar e informar a comunidade leta em sua
língua. A tiragem dessa publicação era de
3 mil exemplares. João Gutman enviava
artigos escritos em leto de Londres, onde
vivia. Ele chegou a organizar um dicionário
com 2 mil palavras em português e leto.

Ela conta: “Vovó Alvina ensinou a ma-


mãe Anna a fazer a skaba putra (sopa
azeda)”, um prato feito com canjiquinha
(milho moído) ou arroz. Junto com coa-
lhada, açúcar e sal, era um alimento muito
simples, mas que poderia matar não só a
fome, como também a sede.

Quantas receitas não nasceram da escas-


sez, da originalidade, da criatividade diante
do desafio de nutrir a prole com poucos
recursos! Esses tempos viraram histórias,
sua família prosperou, a pecuária solidificou
seu lastro econômico.

As receitas que Nansi compartilha ali-


nhavam os momentos de escassez com os de
fartura. Graças às memórias mantidas, po-
demos reproduzi-las e degustá-las, apreen-
dendo parte das trajetórias gastronômicas
que circulam por nossa região.

28
29
Nansi Arais Wodewotzky
PORTUGUESES • o da imigração maciça, entre 1877 e
1904;
Se pudesse, o que diria Dona Nazareth
hoje sobre o neto que cura pessoas, um
Dizia Gaspar Dias, no século XVIII: “Por- doutor, título tão almejado por aqueles que
• o da crise da grande imigração, impac- aportaram por aqui vindo de longínquas
tugal não tem outra região fértil mais pró-
tada pelos efeitos da Primeira Guerra terras? Imagine você, leitor/leitora, Dona
xima nem mais frequentada, bem como
Mundial (1914-1918). Nazareth saber que, além de curar, seu neto
não encontraram seus vassalos melhor e
mais seguro refúgio do que no Brasil. O é escritor de vários livros para adultos e
Os preconceitos, especificamente contra crianças. Provavelmente ela diria: “Vamos
português atingido por qualquer infortúnio os portugueses, cresceram muito com a
para lá emigra”. para a mesa, onde o sarravulho, o porco
República Velha (século XX), em razão de na lata e a sardinha frita nos esperam. E
um trabalho difamatório que criou estereó- vamos saborear essas gostosuras ouvindo
As estatísticas de 1855 demonstravam
tipos negativos que perduraram em alguns Amália Rodrigues cantar o fado ‘Coimbra’
que havia 625 colonos portugueses distri-
aspectos até a presente data. Não raras para aprendermos a dizer saudade!”.
buídos pelas quinze colônias de estrangei-
são as piadas os considerando ignorantes
ros existentes nas fazendas paulistas, sendo
e o desrespeito com o sotaque da língua
em Campinas assim distribuídos: Colônia
de origem.
das Dões – 37; Fazenda Antônio Rodrigues “Coimbra é uma lição
Barbosa – 22. Sessenta e cinco anos depois, Nazareth Correa Barreto, avó de Gilson de sonho e tradição
em 1920, tínhamos na cidade de Campinas Barreto, o autor do capítulo sobre as belas
4.267 portugueses declarados. Setenta e heranças portuguesas, foi uma portuguesa o lente é uma canção
nove anos depois, 10% de brasileiros de- aguerrida que trabalhou arduamente para e a Lua, a faculdade.”
claravam ter ancestralidade portuguesa. criar sua família. Perdeu cinco de seus sete
filhos de um mal comum naquela época, o
Em Campinas, a imigração portuguesa
tétano, contraído durante o parto. Falava Que tal acompanhá-los a uma mesa lusi-
apresentou três períodos distintos, segun-
com o sotaque típico de sua origem e, por tana reproduzindo as receitas trazidas por
do pesquisa do professor Paulo Eduardo
isso, era motivo de zombaria das crianças Gilson Barreto? Aqui fica o convite.
Teixeira:
da vizinhança.
• o pré-imigratório, ocorrido de 1822 a
1876, época em que fundaram a Socie-
dade Portuguesa de Beneficência, com o
intuito de oferecer atendimento médico
ao grupo;

Caravela do Parque Portugal, em Campinas.

30
31
Gilson Barreto
SABOR UMAMI BELGAS
Umami é o nome do que seria considerado o quinto Evandro, descendente dos Hereman, nos Bélgica. Eles também produziam laranjas,
sabor básico – os outros quatro são amargo, doce, azedo conta, entre outras memórias, a incrível que eram exportadas para a Bélgica e a
e salgado. Esse conceito foi cunhado pelo pesquisador história do sucesso comercial da família Holanda.
japonês Kikunae Ikeda em 1908. A palavra, de origem que chegou ao Brasil em 1887. Junto com
japonesa, significa “gosto saboroso e agradável”. Nosso o patriarca, Joannes Franciscus Hereman, e No coração do imigrante que observava
paladar reconhece o sabor umami quando ingerimos sua esposa, Matilde de Mol, vieram os 21 fi- o navio no porto sempre esteve presente
alimentos que contêm aminoácidos e nucleotídeos. lhos de seu primeiro e segundo casamentos. o desejo da conquista do desconhecido,
Esse capital humano significativo chegou do reconhecimento, do enriquecimento
Tal como o umami, é sabor raro da família imi- para investir nas terras virgens recebidas e da volta ao local de origem como o via-
grante experimentar o privilégio de retornar ao lugar do governo para a agricultura. jante vitorioso de tempos imemoriais – o
de origem depois de uma vida exitosa no país para o conquistador de patrimônios. Os Hereman
qual emigrou. É essa a história dos Hereman. Em 1910, a Fazenda Guaiquica já tinha realizaram esse feito, por isso a alusão ao
420 alqueires, com cinco colônias: Colônia termo umami – agradável e saboroso gosto.
da Sede, da Olaria, do Meio, da Fábrica de
Farinha e da Guaiquica. Elas teriam origina- Embora hoje a cidade de Engenheiro
do o núcleo urbano de Engenheiro Coelho. Coelho conte com grandes e médias indús-
trias, a economia do município centra-se
Pedro Hereman, filho de Joannes, con- na agricultura.
seguiu alterar o traçado da ferrovia ramal
da Funilense Sorocabana para que passas- Evandro viaja às origens históricas e ras-
se pelo interior da fazenda com o intuito treia com membros da família do Brasil e
de escoar sua produção rumo ao porto e da Bélgica as memórias gastronômicas que
posteriormente à Bélgica. caracterizam sua cultura. Do clássico coe-
lho com ameixas ao pudim de arroz belga,
A família, com seus membros divididos acompanharemos os momentos desse via-
entre Brasil e Bélgica, plantava e colhia no jante atento, que sente prazer em partilhar
Brasil, e fazia a torrefação e comercializa- sua história e a mesa de seus ancestrais.
ção de seu café – o Estrella Brazileira – via

Lago da Cidade, em Engenheiro Coelho.

32
33
Evandro Luís Francischetti
34
35
O SARRAVULHO, O Nazareth Correa Barreto nasceu em 12
de junho de 1907, filha de imigrantes por-
Dizia-se: “A criança não vingou…”.

PORCO NA LATA E A tugueses da vila de Lousã, distrito de Coim-


bra, hoje com cerca de 10.163 habitantes.
Os dois sobreviventes: Francisco, já fa-
lecido, e Antonio Barreto, meu pai, que
SARDINHA FRITA Falava um português com sotaque típico e aqui nos conta sobre dois pratos que mi-
nha vó preparava com muita expectativa
com erros tradicionais, trocando a letra B
Por Gilson Barreto pela letra V – dizia, por exemplo, “Pegue o da família.
‘valde’ e a ‘bassora’” –, o que era motivo de
risos entre as crianças, que viviam a repetir Na década de 1930, o bairro Guanabara,
“Ó mar salgado, quanto do teu sal em Campinas, era praticamente rural, com
são lágrimas de Portugal!” a frase com erros..
pouquíssimas casas, e manter uma horta,
Fernando Pessoa Casou-se com Sebastião de Moraes Bar- um galinheiro e um chiqueiro era comum.
reto. Moravam no bairro Guanabara, em Uma vez por ano havia o momento de esco-
Campinas, na Rua Ferreira de Almeida, 78. lher o porco que seria sacrificado e abaste-
Com ínfimos recursos financeiros, Naza- ceria de carne por muitos meses, lembrando
reth trabalhou como lavadeira no Liceu que não havia geladeira na época. O porco
Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora por era abatido e, nesse dia, se fazia um prato
quase toda uma vida. Teve sete filhos, dos chamado sarravulho. A receita é um tanto
quais cinco faleceram na primeira semana diferente das que existem hoje; talvez fosse
de vida, em razão do famoso mal de sete uma adaptação às condições existentes. E
dias (hoje sabemos que se tratava de tétano assim era preparada:
umbilical pela má higiene durante o parto).

36
Assista ao vídeo

37
O SARRAVULHO
O sangue coletado do porco, que escorria pela faca-
da no pescoço e gotejava numa panela. Esta ia ao fogo
e ali eram depositados os miúdos. O fígado do porco
era picado em pedaços bem pequenos, e tudo o mais
que se pudesse aproveitar. Batatas eram acrescentadas,
também picadas em pedaços pequenos, e uma série de
especiarias: folhas de louro, cebolas, dentes de alho,
sal. Sempre numa medida mágica, que se fazia pelos
dedos da Dona Nazareth. Por último, tomate picado.

Ficava por horas no fogo. De tempos em tempos,


uma boa mexida era dada, sempre terminando com
três batidas da colher de pau no rebordo da panela.
Segundo meu pai, o narrador desta história, ele ainda
pode ouvir essa melodia entre a colher e a panela. Assista ao vídeo Assista ao vídeo

No final, o resultado era uma farofa um tanto mo-


lhada. No prato, depositava-se sobre o arroz, e o ban-
quete podia ser degustado. E substituído por arroz com
salada de tomate e cebola, que fazia a rotina dos dias
menos favoráveis.

E o resto do porco?

38
O PORCO NA LATA
A barrigada gorda e branca era deposi- uma colher para ser utilizada como óleo, Aqui, deixamos relatado um pouco da
tada numa lata de 20 litros e ia direto para temperar um arroz, um feijão ou mesmo personalidade forte e imperativa dessa por-
o fogo. Ali, lentamente era derretida. Os fazer um pão (Ah!!! Que saudades desse tuguesa que, mesmo com suas atitudes,
restos dentro da lata, couro do porco e um pão de banha!). por vezes entendidas como injustas, tinha
pouco de carne era retirada quase escura dentro do peito um coração enorme e sabia
e colocada sobre uma madeira, como um O momento mais esperado era quando levar a vida, o lar, o árduo trabalho com
aperitivo. emergia, entre a brancura da banha na respeito e dignidade de uma verdadeira
lata, uma ponta rosada de carne do porco, heroína.
Já os grandes pedaços de carne, como o como um generoso e verdadeiro iceberg
pernil e o lombo, eram cortados em pedaços de carne em meio à banha. Surgia então Quando finalmente a decisão era to-
generosos e depositados dentro da lata um grande dilema: quanto tempo a Dona mada e a carne saía da lata, era possível
com a banha derretida do porco, já fora do Nazareth levaria para estar convencida a ouvir um ruído que o arrancar da carne
alcance do fogo. Aos poucos esses pedaços remover aquele generoso tolete de carne fazia, difícil de descrever e mais ainda de
iam desaparecendo ali dentro, enquanto o das profundezas da lata? esquecer.
nível da banha alcançava a borda da lata.
Aos poucos a banha ia esfriando e uma cor Parecia uma eternidade o passar da O preparo era sempre da mesma ma-
branca brilhante terminava de selar a lata semana, porque havia a certeza do pernil neira: a carne do porco era frita na própria
e esconder toda a carne. no domingo. O pior acontecia quando o banha, e o sal, depositado depois sobre os
fim de semana era pulado e a imaginação pedaços.
A lata ficava num canto da cozinha com do sabor era deixada para o próximo. O
uma tampa improvisada de madeira. Não poder era da Dona Nazareth e não havia E assim a vida seguia, até todo o porco
se mexia nela por nada. De quando em vez discussão: ela era a guardiã da lata, au- ser consumido e todo o processo ser reco-
a banha era delicadamente removida com toridade máxima para tomar a decisão. meçado.

39
SARDINHA FRITA
Modo de preparo
O marido da Dona Nazareth era o
senhor Sebastião de Moraes Barreto,
de origem portuguesa igualmente.
Seu maior orgulho era ser primo do
famoso Dom Barreto, bispo da cidade
de Campinas de 1920 a 1941. Dom
Francisco de Campos Barreto nasceu
em Sousas, em 28 de março de 1877, e
faleceu em Campinas, em 22 de agosto
de 1941.

Foi assim que conseguiu ser o moto-


rista do bispo por vários anos e depois
condutor de bonde. Uniformizado,
com sapatos polidos e quepe, ficava
num aquário de vidro ao lado do Palá-
cio da Justiça, onde eram agrupados os
motorneiros que dali partiam com os
bondes, o mesmo bonde que podemos
ver aos fins de semana ao passearmos
na Lagoa do Taquaral, ponto turístico
de Campinas.

No início do mês, quando recebia o


salário, passava no Mercado Municipal
de Campinas e trazia para casa um
punhado de sardinhas embrulhadas
num jornal. O pacote sempre chegava
úmido; pedaços da folha do jornal
estavam colados aos peixes e eram
cuidadosamente retirados.

Um banho de salmoura nas sar-


dinhas deixava a água rosada. Em
seguida eram sacudidas para retirar
o excesso de líquido, só então eram
empanadas com fubá, adquirindo uma
cor amarelada. Então, direto para a fri-
gideira e para o prato. Sobre o arroz,
tomate e cebola... Ah, que saudades!

Gilson Barreto é médico formado


pela Unicamp e escritor membro da
Academia Campinense de Letras. Tem
interesse pelas artes plásticas e atuou
em diversas curadorias na cidade de
Campinas.

Assista ao vídeo

40
41
LATVIJA, OU LETÔNIA Latvija, em sua topografia, acolhe rios,
lagos, colinas e planícies, vales com pasta-
répteis, aves, mamíferos (esquilos, ursos,
lontras etc.).
PARA OS BRASILEIROS gens naturais, campos cultivados e lindas
florestas com exuberantes pinheirais. Seu É o maior dos três países bálticos, com
Por Nansi Arais Wodewotzky clima é influenciado pelo Mar Báltico e 66 mil km², tendo ao norte a Estônia, ao
pelas correntes quentes do Atlântico. Com leste a Rússia, a sudeste a Polônia, ao sul a
essas características climáticas e topográ- Lituânia e a oeste o Mar Báltico.
“Quem cuida para ter um viver sadio
terá dias de saúde e felicidade.” ficas, a flora e a fauna desabrocham ao
natural pelas florestas, campos, vales, beira Sua capital, Riga, tem lindos templos,
de estradas e de rios com variadas espécies com arquitetura belíssima, e é cortada pelo
Nansi Arais Wodewotzky
de flores, musgos, cogumelos comestíveis; famoso Rio Daugava, cujas águas transpor-
frutas como morangos, amoras, mirtilos taram âmbar e peles e ainda hoje recebem
e outros. navios turísticos. Sua língua é autêntica,
sem ter derivação eslava ou germânica.
Também em sua flora encontramos car-
valhos e nogueiras, dos quais é retirada a Seu folclore consiste em danças e canti-
seiva utilizada na fabricação de bebidas. gas com poesias que exaltam a natureza e
São cultivadas macieiras, ameixeiras, cere- suas belezas, como flores e rios. A juventu-
jeiras, pereiras. Nas florestas encontramos de, o amor, o romance, o amor à pátria e ao
o pinho-de-riga, famoso mundialmente trabalho, nunca se esquecendo da bravura
pela grande concentração de resina, que dos guerreiros que defenderam a pátria
o torna resistente durante séculos. Em sua amada, e a reverência a Deus também são
fauna existem espécies diversas de peixes, enfoques preciosos para seu povo.

42
O povo leto é um povo musical por (1689) também foi feita a tradução da Bíblia
natureza, sempre organizando orques- para a língua leta, e cada escola deveria ter
tras e corais tanto seculares como sacros. um exemplar do livro sagrado para estudos
e leituras diárias. Infelizmente, o ensino
O povo sofria opressão, mas a músi- religioso foi banido das escolas em 1940.
ca acalmava as ansiedades. O primeiro Professores e alunos que não concordassem
festival de música aconteceu em 1873, com as mudanças eram mortos ou depor-
quando foi entoado pela primeira vez tados para a Sibéria, onde eram torturados
o desejo de uma nação pela liberdade: até a morte. Houve um despertar religioso
“Dievs Sveti Latviju” (Deus, abençoe a no qual muitos acreditaram num Deus que
Letônia). tudo encaminha e faz acontecer.
Como a maioria da população era de Vários grupos de letos vieram para o Bra-
agricultores, todos estavam em constante sil. Em 1906 foi fundada a Colônia Leta em
contato com a natureza e acreditavam Nova Odessa. Em 1922 chegou o maior gru-
em sua força, adorando o “deus da na- po de letos ao Brasil: mais especificamente,
tureza”, o “deus Sol”, o “deus Trovão”. 2 mil pessoas vieram para o estado de São
Paulo, sendo encaminhadas para Varpa,
Em 1629-1721 houve um avivamento distrito de Tupã. Assim foi com meus avós,
religioso, período de dominação sue- tanto maternos como paternos, trazendo
ca, quando muitos ficaram satisfeitos e meu pai, com 11 anos, e minha mãe, com
apoiaram normas e leis criadas quanto 2 anos, além de tios e primos.
à disciplina nas escolas. Nesse período

43
Na bagagem vinha um pouco de tudo, Outros grupos foram para Ijuí (RS) e Rio eventos tanto no Brasil como na Latvija,
incluindo roupas nada apropriadas para Novo (SC). no grande festival que acontece a cada
nosso clima, pois os letos saíram de um cinco anos. O último foi em 2018.
país onde a temperatura por vezes chega O povo leto é um povo feliz e alegre,
a 50 graus negativos. Desceram no Porto apesar do sofrimento pelo qual passaram; Na culinária destacam-se peixes prepa-
de Santos, depois embarcaram no trem povo que ama cantar e bailar, por isso na rados frescos, em conserva ou defumados,
maria-fumaça e viajaram por horas até Latvija existem centenas de corais e grupos aves, carne suína, queijos, vários tipos de
chegarem a uma das regiões mais quentes de danças que participam assiduamente de cogumelo que crescem nas florestas e fru-
do estado, na cidade de Sapezal. A ansie- festivais como Dziesmu Svetki (Festa da Can- tas como morango, framboesa e mirtilo.
dade para a chegada era grande, porém ção) e Deju Svetki (Festa da Dança).
a maioria do grupo não sabia que ainda Com a chegada à nova terra, os letos
teria uma longa jornada a pé de mais ou Abrilhantando as danças e cantigas, são tiveram muitas dificuldades tanto na ali-
menos 40 quilômetros pela mata virgem. tocados alguns instrumentos, como stabule mentação como na adaptação climática,
Foi um longo caminho repleto de desafios. (flauta), taure (buzina), dukas (gaita de foles) vivenciando momentos de extrema tris-
Nesse grupo vieram exímios musicistas, e kokle (harpa), feitos de cascas de árvores, teza, pois muitos morreram por desnu-
tanto tocando como também cantando, chifres de boi e couro. Os ambientes para trição ou desidratação (não sabiam que
trazendo na bagagem instrumentos mu- as festas eram perfumados com ervas me- precisavam tomar muita água por causa
sicais e livros, pois, além do gosto pela dicinais, e todos os locais eram enfeitados do calor).
música, valorizavam muito a leitura – a com flores.
Minha avó materna, Alvina, caminhava
maioria das famílias tinha uma pequena No Brasil também temos o Latviesu Bra- até 33 quilômetros para comprar meia
biblioteca de mais ou menos cem livros. silijas Koris (Coral Leto Brasileiro) e o Grupo dúzia de ovos para complementar a ali-
de Danças Staburaks, os quais participam de mentação. Assim, com todas essas dificul-

44
dades, aprenderam a valorizar tudo o que pas zupa (sopa de pedacinhos). Num prato
era comestível. Minha mamãe, Anna, fazia colocavam farinha de trigo, uma pitada de
um alimento com sustância que aprendeu sal e um pouquinho de açúcar. Aos pou-
com a vovó Alvina, a skaba putra (sopa cos colocavam um pouco de água e iam
azeda). Ela cozinhava arroz ou milho moí- mexendo com os dedos, até formar uma
do (tipo canjiquinha) com bastante água, farofa toda desigualada. Ferviam o leite
acrescentava coalhada, um pouco de açú- com um pouco de açúcar e iam salpicando
car e um pouco de sal. Depois de uns dias os pedacinhos dentro do leite, deixando
ficava azedinha e servia para matar a sede ferver para não ficar cru. Pode-se comer
e a fome. quente ou frio.

Meu pai, Karlis Arais (Carlos Arais), e mi- Das frutas aprenderam a fazer geleias,
nha mãe, Anna Kleinchmidt, casaram-se em compotas e a famosa sopa doce de frutas,
1939. Ganharam de presente dos patrões, a salda zupa.
Sr. Eduardo e Sra. Emília Kreplin Karklis,
quatro porcas prenhas, iniciando assim uma Depois de viajarmos através da histó-
nova etapa na vida. Nos anos 1960/1970, ria, vamos cativar o paladar com algumas
meus pais foram considerados os maiores guloseimas.
pecuaristas na região de Campinas, com
mais de 2 mil cabeças de porcos, além do
gado. Com o leite faziam nata, manteiga,
coalhada e também a sopa chamada klim- Assista ao vídeo

45
BUBERTS
Ingredientes
1 litro de leite
3 ovos
1 xícara de açúcar
3 colheres (sopa) de farinha de trigo
1 pitada de sal
1 colher (chá) de essência de baunilha
Compota de sua preferência

Modo de preparo
Separe as gemas das claras. Bata as gemas,
o açúcar, a farinha de trigo e o sal.

Coloque o leite para ferver numa panela


maior. Quando o leite levantar fervura, incor-
pore a mistura de gemas e trigo e vá mexendo
até cozinhar bem, para não ter gosto de cru.
Acrescente a essência.

Bata as claras em neve com uma pitadinha


de sal. Incorpore as claras com movimentos
delicados para o creme ficar fofo.

Coloque o creme num refratário e deixe


esfriar. Pode ser degustado em temperatura
ambiente ou gelado.

Coloca-se como guarnição compota de


amoras, morangos ou de outra fruta de sua
preferência.

Assista ao vídeo

46
47
Modo de preparo

GALERTS
Ingredientes
Miúdos como cabeça de porco, Coloque os ingredientes na panela de
pés, língua, rabo, coração (bem pressão, acrescentando cebola, alho, salsi-
limpos) nha, manjericão, um pouquinho de pimen-
ta, água até cobrir os ingredientes e meia
colher (sobremesa) de sal.

Cozinhe por mais ou menos 40 minutos.


Abra a panela e verifique se a carne está
saindo dos ossos.

Em seguida, tire todos os ingredientes


da panela, deixando apenas a água.

Com auxílio de um garfo e uma faca,


remova a carne dos ossos, pique e ponha de
volta na panela. Dê uma misturada e acer-
te o sal a gosto. Experimente!!! O molho
deve ficar saboroso. Dê uma leve fervura,
coloque numa forma de buraco e leve para
gelar. Desenforme e sirva.

Pode ser saboreado puro, com gotas


de limão, mostarda, acompanhando uma
cervejinha ou outros pratos.

Assista ao vídeo

48
49
Ingredientes Modo de preparo

SALDA ZUPA
1 copo de açúcar Numa panela coloque o açúcar e, quando
começar a dourar, junte o abacaxi, sem o
3 cravos-da-índia miolo, descascado e picado, deixe borbulhar
um pouco, coloque o cravo e a canela, junte
1 pedacinho de canela
água e deixe ferver. Enquanto isso vá pre-
1 abacaxi parando as goiabas: tire todas as sementes,
coloque-as no liquidificador, junte água e
1 goiaba bata. Pegue uma peneira e coe, descartan-
do as sementes. Junte o suco na panela e
2 mangas
também a fruta picada.
2 peras
Descasque as mangas, pique e junte na
100 g de uva-passa preta panela, assim também as peras. Adicione as
uvas-passas e as ameixas. Acrescente água
100 g de uva-passa branca para ter caldo, mais as maçãs e os pêssegos
picados.
200 g de ameixa seca sem caroço
Deixe cozinhar, prove o sabor e, por últi-
2 maçãs
mo, junte as bananas em pedacinhos. Espere
4 pêssegos levantar fervura e desligue.

2 bananas Deixe esfriar naturalmente, depois colo-


que para gelar.

Nansi Arais Wodewotzky Sou pedagoga com especializações para


crianças com necessidades especiais, e na
Nasci no lar do Sr. Carlos Arais música minha formação é em regência e
e da Sra. Anna Kleinchmidt Arais, canto.
no segundo dia do mês de agos-
to, no ano de 1951, na cidade de Casei-me em 1974 com Joel Alberto Oli-
Campinas. veira Wodewotzky (in memoriam). Desse
casamento nasceram três filhos, os quais
Desde a mais tenra idade já gos- nos agraciaram com cinco netos. Hoje apo-
tava de acompanhar meus pais e sentada, continuo a colaborar na cultura
irmãos nas atividades domésticas, do nosso município, na área da música.
culturais e religiosas. Papai era re- Participo como pedagoga musical dos corais
gente de coral; ele e mamãe eram Leto Brasileiro e da Segunda Igreja Batista
violinistas. Vivi uma infância muito em Nova Odessa e como regente oficial do
feliz. Coral da Cidade de Nova Odessa.

Assista ao vídeo

50
51
CALOR OU FRIO, Minha família veio para o Brasil emi-
grando da Holanda sofrida pela Segunda
disciplina, e hoje nossa cidade, Holambra,
tem um dos melhores IDHs do estado.
SOPA... Guerra Mundial. Naqueles tempos não ha-
via internet ou outras fontes de informação Foram se adaptando aos poucos, mas
Por Joana Weel que explicassem o que eles iriam encontrar na fala ainda existe o sotaque marcante;
neste país tropical. Da parte de minha mãe, nas interações sociais, um forte senso de
Anthonia Josephia Hendrika Swart Weel, cooperativismo; e, como não poderia deixar
“Coma e cozinhe pratos simples no dia de ser, na culinária, uma forte influência
a dia. E, quando houver um manjar, vieram meus avós e seus onze filhos. Meu
pai, Petrus Bartholomeus Weel, foi um pou- na alimentação do dia a dia.
que tudo seja uma festa. A existência
não suporta banquetes cotidianos.” co mais aventureiro e veio tentar a vida
neste país exótico sozinho. Aqui encontraram diversos ingredien-
tes que nunca tinham visto antes. Achar
héctor abad
Naqueles tempos, o Brasil ofereceu ter- matéria-prima para elaborar os pratos que
ras para imigrantes europeus, e algumas já conheciam era difícil. Com o tempo e o
levas de holandeses vieram para diferentes alcance do progresso, a vida foi se estabili-
localidades, em sua grande maioria agri- zando e a forte vontade de comer um prato
cultores, como meus ancestrais. Chegaram com gosto de infância e que lembrasse a
aqui e encontraram inúmeras dificulda- terra natal fizeram com que receitas tradi-
des, tais como a língua, o clima e a cultu- cionais voltassem ao cotidiano, ainda que
ra. Foram tempos difíceis de adaptação, com adaptações.
mas, como está no sangue dos holandeses,
enfrentaram com trabalho duro e muita A Holanda, um país frio e com baixa

52
diversidade de ingredientes, gerou uma e da conscientização alimentar, em nossa O café com leite nos intervalos da manhã e
culinária muito simples. As grandes famílias casa foi inserida também uma alimentação da tarde eram obrigatórios e momentos de
influenciaram na praticidade e elaboração mais saudável e equilibrada, prezando pelo descontração, união e bate-papo, sempre
de receitas completas realizadas em uma orgânico, local, integral e feito artesanal- acompanhados de uma bolacha, torta ou
panela só. Sopas, batata, legumes e carne mente (não industrializado). ontbijtkoek. Já aos fins de semana tínhamos
são a base das principais refeições. Pães, normalmente uma macarronada aos sába-
compotas, geleias e queijos são muito co- Lembro-me desde pequena do meu in- dos, e aos domingos não podia faltar uma
muns. Na confeitaria existe um pouco mais teresse em ajudar minha mãe nos afazeres sopa. Não importa o quão quente o clima
de sofisticação, com deliciosos doces e tor- da casa. Todos os filhos eram estimulados a estivesse, a sopa estava sempre presente
tas com base de manteiga, açúcar e farinha. auxiliar nas tarefas tanto de dentro quanto – isso aos olhares estranhos de brasileiros
do jardim. Cortar a grama, lavar o carro, convidados para o almoço. Em datas come-
Cada família trouxe e manteve receitas limpar a casa e lavar roupas eram parte do morativas como aniversários, Dia das Mães
diferentes para seus lares e houve adap- cotidiano e dever comum. Mas eu gostava ou dos Pais tínhamos como prato especial
tações diversas com a culinária local e a mesmo era de estar na cozinha ajudando frango assado inteiro acompanhado de bata-
de outros países. Nada mais comum nes- a preparar as refeições. Durante a semana tas fritas (com maionese, sim, isso mesmo!!!)
tes tempos de globalização. Arroz e fei- eram feitos pratos como arroz e feijão, ba- e purê de maçãs. Para nós, esses eram os
jão entraram no cardápio, além de frutas, tata cozida ou em purê, legumes refogados, dias mais saborosos, e até hoje mantemos
saladas e comidas de outras localidades, saladas e uma carne para acompanhar. Para essa tradição.
principalmente da Itália, que tem uma forte o café da manhã tínhamos pão integral
colonização em nossa região, inserindo (muito tradicional na Holanda) com man- As refeições eram feitas com a família
massas como lasanha, macarrão, pizza etc. teiga, queijo, geleia e, nos fins de semana, inteira, sendo rezado antes um pai-nosso ou
Com o aumento do acesso à informação até chocolate granulado, outra tradição. ave-maria em holandês. Caso alguém não
chegasse a tempo, tínhamos um fogareiro
antigo a querosene para manter a comida
bem quentinha.

Com o passar dos anos me aprofundei nos


estudos e me formei em Gastronomia. Hoje
tenho uma cozinha artesanal que trabalha
com culinária saudável e inclui pratos con-
gelados e marmitas orgânicas e integrais. E
adivinhem quais foram os primeiros pratos a
entrar no cardápio? Sim, sopas!!! Em nosso
menu atual, são os únicos que remetem à mi-
nha ancestralidade e são nosso carro-chefe.

A influência que tenho de minhas origens


me permitiu aperfeiçoar esse prato que é
tão natural e agradável ao meu paladar.
Assim sendo, descrevo a seguir a receita de
uma das sopas mais típicas da Holanda e que
aprendi com minha mãe, que aprendeu com
minha avó, e assim por diante. Naquele país
frio e extremamente chuvoso, nada mais
reconfortante que uma erwtensoep, ou sopa
de ervilha, que lembra uma feijoada, porém
feita de ervilhas.

Assista ao vídeo

53
Modo de preparo

ERWTENSOEP
Ingredientes
500 g de ervilha seca Deixe a ervilha de molho por pelo menos
12 horas e em seguida lave-a bem. Cozinhe
2,5 litros de água com a água, a bisteca e a costela. Quando
as carnes estiverem bem macias, tire-as da
100 g de cenoura sopa para serem desfiadas e soltas dos ossos
e reserve. Quando a ervilha estiver bem
1 alho-poró
macia, bata com um mixer. Então adicione a
2 cebolas médias cenoura e o alho-poró cortados em rodelas
e a cebola picada. Sempre mexa bem, pois
100 g de bisteca nesse ponto a ervilha gruda no fundo da
panela. Quando a cenoura estiver cozida,
100 g de costela suína adicione a bisteca e a costelinha desfiadas,
50 g de bacon em cubos além do bacon e da linguiça previamente
fritos em uma panela separada. Adicione sal
50 g de linguiça calabresa em e pimenta-do-reino a gosto. Se necessário,
rodelas adicione mais água, já que a ervilha tende
a engrossar bem.
Sal
Um momento que aprecio muito, assim
Pimenta-do-reino como a maioria dos holandeses, é a pausa
do café com leite. Na casa de minha mãe
nunca pôde faltar o ontbijtkoek, que na
tradução seria um bolo de especiarias. Ele é
feito no formato de um bolo inglês, cortado
em fatias e lambuzado com manteiga. A
mistura de mel, cacau e especiarias combina
perfeitamente com o café com leite, em
geral tomado sem açúcar.

Assista ao vídeo

54
55
ONTBIJTKOEK

Ingredientes Modo de preparo


300 g de farinha de trigo Bata bem os ovos na batedeira. Uma vez
250 g de açúcar estando bem cremoso, junte o açúcar aos
poucos.
3 colheres (chá) de fermento em pó
Coloque os ingredientes secos num va-
3 ovos silhame e despeje a massa de ovo e açúcar,
misturando. Adicione o leite morno na quan-
1 colher (sopa) bem cheia de canela tidade para que a massa não fique muito
líquida. Ponha tudo numa forma de bolo
1 pitada de pimenta-do-reino
inglês untada e asse a 180º C.
1 pitada de noz-moscada
As medidas não são tão precisas, por isso
1 pitada de cravo em pó peço desculpas. É receita de família que se
faz no olho, mas que com certeza dá certo
1 colher (sopa) de cacau e fica muito gostosa.
1 colher (sopa) bem cheia de mel

Leite No quesito simplicidade da culinária ho-


3 colheres (chá) de fermento em pó landesa, o campeão seria o stamppot, combi-
nação do cozimento em uma mesma panela
de batatas, cebolas e cenoura. Outra versão
famosa seria, em vez de cenoura, folhas (re-
polho, espinafre, escarola), depois amassadas
em forma de purê com leite e manteiga.
Prático, rápido e gostoso. Esse é um prato
que gosto de fazer quando estou com pres-
sa ou quando tenho vontade de sentir um
gostinho da casa de minha mãe.

Assista ao vídeo

56
57
Modo de preparo

STAMPPOT
Ingredientes
500 g de batata Corte em cubos grandes as batatas, as
cenouras e as cebolas. Coloque tudo em
400 g de cenoura uma panela com água até cobrir os ingre-
dientes e cozinhe até estarem macios. Dre-
150 g de cebola
ne, guardando a água de lado. Adicione a
80 g de manteiga manteiga, o leite, sal e pimenta a gosto.
Amasse bem até que forme um purê. Caso
80 ml de leite fique muito seco, adicione aos poucos a
água do cozimento.
Sal

Pimenta-do-reino

Joana Weel, brasileira, 38 anos,


gastrônoma, é neta de Anthonia Jo-
sephia Hendrika Kops e filha dos ho-
landeses Petrus Bartholomeus Weel
e Anthonia Josephia Hendrika Swart
Weel. Reside em Holambra.

Assista ao vídeo

58
59
FLOR DO DENDÊ Sou filha de uma mulher baiana nasci-
da em Ilhéus (BA), que na década de 1940
aumentar a renda da casa, uma realidade
da maioria das famílias negras brasileiras.
Por Eleonora Aparecida Alves de migrou para o Rio de Janeiro para traba- Em nosso dia a dia éramos alimentados
Souza Domingos – Doné Eleonora lhar na casa das famílias abastadas como por uma mulher baiana que se preocupava
doméstica. Chegou ao Rio aos 12 anos e só em fortalecer nosso corpo negro – então
saiu depois de casada, já mãe de três filhos. era muito pirão, cozido, muitos legumes,
“[...] como podia eu deixar essa Sua vida profissional se deu nas cozinhas mocotó, rabada e outros.
tarefa tão íntima ficar em mão das madames, capítulo esse que pulo e só
anónima? Nem pensar, nunca tal se subtraio o aperfeiçoamento da minha mãe Sou nascida na década de 1960, época
viu, sujeitar-se a um cozinhador de como cozinheira. Digo assim, pois acredito em que as meninas eram criadas “pren-
que nem o rosto se conhece. dadas“, sabiam arrumar uma casa, lavar,
que cozinhar é um dom e minha mãe nasceu
Cozinhar não é serviço, passar roupa e cozinhar.
meu neto – disse ela. com esse dom. Ela era cozinheira de forno
Cozinhar é um modo de amar os e fogão, uma banqueteira de mão cheia.
Mamãe fazia bolos lindos. Fomos criados Nascida no Rio de Janeiro, vivi até os
outros.” 15 anos em Brasília. Sou filha de baiana e
no meio do açúcar, das rosinhas de açúcar,
peneirando açúcar para ela confeitar os bo- mineiro, para mim as duas grandes cozi-
Mia Couto
los, fazendo os glacês, enrolando balas de nhas brasileiras. Acredito que as caracte-
coco; enrolando os salgados, forrando as rísticas culturais de um povo estão sempre
forminhas para as empadas... presentes em suas comidas, de uma forma
ou de outra, e que cozinhar é uma arte.
Minha ligação com a comida e a cozinha
vem desde a infância, em uma relação de Há 47 anos fui iniciada no candomblé,
sobrevivência, pois ajudávamos mamãe a meu grande referencial na vida. No can-
domblé nos sentamos com os deuses e

60
dividimos o que comemos. Alimentar o No candomblé temos de saber todos os nas. É uma cozinha rica em condimentos,
sagrado para se fortalecer: nas casas de preceitos e segredos, por isso o terreiro é como pimentas, gengibre e ervas, e não
candomblé ninguém passa fome, sempre também um dos espaços de transmissão de podemos nos esquecer da batata-doce, da
temos um prato de comida para alimen- saberes de uma Casa de Candomblé. carne-seca, da rabada e muitos outros tan-
tar quem bate à porta do terreiro. Para tos ingredientes. É uma cozinha de ritual,
nós, candomblecistas, a hora da refeição Na cozinha de terreiro encontramos de sabores, saberes e muito axé!
é um momento de confraternização, de várias receitas que utilizam grãos, leite
alegria, de união e de muito axé. No de coco, camarão, dendê, azeite de oliva, Explanei um pouco sobre a cozinha de
candomblé, a comida é sempre sinal de milho de pipoca, milho de galinhas e fei- terreiro para vocês entenderem melhor
abundância, e isso se torna um sinônimo jões, como fradinho, preto e outros. Com como funcionam seus rituais, sua cultura
de distribuição de axé. o fradinho fazemos comida para Oxum, o e toda a sua concepção.
acarajé de Oyá; temos o quiabo, com que
Nos terreiros há uma mulher respon- preparamos o amalá para Xangô e o caruru
sável por cozinhar para as divindades, de Ibeji; temos a canjica branca, que utili-
conhecida como iabassê. Minha mãe, zamos na comida de Oxalá e Iemanjá. Os
uma mulher de Oxum, ocupou esse lu- tubérculos também são muito usados, como
gar no meu axé por muitos anos. Se ela o cará, o inhame, a mandioca e as farinhas
cozinhava maravilhosamente bem para de mandioca, assim como as farinhas de
as pessoas, minha escolha se deu jus- milho branca e amarela.
tamente por essa qualidade; quis que
esse mesmo tempero alimentasse as di- A cozinha de candomblé é muito varia-
vindades. da, pois tem influências africanas e indíge-

61
Na década de 1990 eu me tornei sacer- é extremamente racista, e as religiões de Quero falar um pouco do tabuleiro no
dotisa no meu axé. Como citei anterior- matriz africana são muito perseguidas. qual as baianas vendem seus quitutes. Ele
mente, minha mãe ocupou por um tempo também pode ser compreendido como um
a função de iabassê no meu axé por todos Foi assim que fiz as pazes com a co- ponto fixo para comercialização, coisa que
os motivos já colocados, mas principalmente zinha. Hoje temos o glamour em torno nós, baianas do estado de São Paulo, não
por considerá-la uma excelente cozinheira. dos chefs de cozinha. O que outrora eram temos. Comercializamos em feiras de arte-
Eu tinha certeza de que nossas divindades espaços de mulheres negras, hoje são es- sanato e em eventos. A maior dificuldade
seriam bem alimentadas, com as mesmas paços ocupados, na maioria, por pessoas para uma baiana de acarajé é conseguir
garantias de dedicação de sua vida como brancas, de uma elite. Falo dessa manei- seu ponto fixo.
chef de cozinha. Porém, minha mãe já tinha ra, pois se trata de uma triste realidade
certa idade e eu tinha preocupação com e também porque eu desconhecia meu Minha história com o Flor do Dendê
essa continuidade de sabor e dedicação. Nós potencial como cozinheira. surge da necessidade de ter esse ponto
temos uma festa que realizamos aqui no fixo e da quebra de um paradigma, pois
ilê, e isso me preocupou muito: quem faria Trabalho com acarajé há quinze anos. as pessoas comem a comida que é sagrada
tudo quando ela fosse morar no Orum? O ofício da baiana de acarajé é registrado para nós, candomblecistas, e muitos desco-
no Livro de Registro dos Saberes como nhecem nossa cultura. Como já citei, nossas
Lembro-me da primeira vez que servimos Patrimônio Cultural do Brasil e mesmo cozinhas são um espaço de transmissão de
o caruru de Ibeji, comida feita com quiabo, assim não há o reconhecimento e a va- saberes.
castanha-de-caju, amendoim, leite de coco lorização das detentoras desse saber. Na
e dendê, acompanhado de vatapá e arroz. busca incansável desse respeito e reco- Hoje, no Espaço Gourmet Flor do Dendê,
Foi um sucesso, as pessoas adoraram! Mas nhecimento, entrei na Associação das tenho oportunidade de estar na cozinha
para ter crianças e pessoas para comerem Baianas de Acarajé, Mingau e Similares vivendo minhas memórias afetivas. Ao fazer
essa comida foi preciso toda uma estratégia (Abam), onde milito por nosso reconhe- um cozido, recordo-me da minha infância,
para convencê-las a entrar no ilê. Nosso país cimento. quando nos reuníamos para o preparo, jun-

62
to de meu avô, homem baiano, e minha Minha ancestralidade africana vem da
mãe. Aquele domingo era uma festa em minha bisavó. Infelizmente não sei dizer de
torno da mesa, dos quindins, das balas de que parte da África ela era, pois nós, o povo
alfenim, das cocadas, da feijoada. Algumas negro, temos nossa história apagada, e a
dessas delícias são encontradas no Dendê. cozinha, em nossa família, tem esse papel
de nos conectar com a pátria-mãe. A receita
Atualmente, estou cursando Gastro- que consigo lembrar fechando os olhos traz
nomia, para o fortalecimento/reconheci- até a roupa que vovô usava, uma calça de
mento do meu trabalho, pois considero tergal azul-marinho e uma camisa vinho
minha cozinha patrimonial – uma cozinha surrada, com seu chapéu marrom-escuro.
de ritual, cozinha ancestral, onde nos sen- Mamãe, com um vestido de listras coloridas,
tamos à mesa com nossas divindades. e todos nós, seus filhos e netos, em torno
dela descascando os legumes para preparar
Abrimos todas as segundas-feiras. Em o cozido que partilho com vocês a seguir.
nosso terreiro, em dia de Exu temos o sam-
ba “Conversa de botequim”; no terreiro de
mainha podem saborear um bom acarajé,
sarapatel, bolinhos feitos de mandioca,
comidinhas de tabuleiro, bobó de cama-
rão, moquecas etc. Fazemos parte do Ro-
teiro Gastronômico e Turístico da cidade
de Hortolândia. Assista ao vídeo

63
Ingredientes Modo de preparo

COZIDO
1,5 kg de carne-seca Escalde a carne-seca para tirar o exces-
so de sal e escorra em uma panela grande.
1 kg de carne de peito Coloque as carnes inteiras com muita água
1 kg de linguiça para cozinhar.

2 paios Lave os legumes e as verduras, descasque,


corte em pedaços grandes e reserve (batatas,
250 g de toucinho defumado chuchu, cenoura, cebola, inhame, aipim,
abóbora e a banana).
1 língua defumada
Lave os quiabos, maxixes e jilós. Se-
6 batatas grandes
que-os bem e corte os cabinhos. Os quia-
6 batatas-doces grandes bos devem ser amarrados juntos com
um cordão, de forma a não se perderem
500 g de aipim (mandioca) pela panela; amarre também o cheiro verde
com as folhas de louro e as folhas de couve.
500 g de inhame
Cozinhe os legumes e as verduras aos
8 bananas-da-terra poucos, começando pelos mais duros, que
6 cenouras têm cozimento mais lento (cenoura, aipim,
inhame e as batatas). À medida que os legu-
8 cebolas mes vão ficando cozidos, retire-os da panela
e reserve-os.
4 tomates
Legumes e verduras voltarão para a pa-
2 maços de couve nela para um cozimento final.
500 g de maxixe

Acompanhamento
500 g de jiló

500 g de quiabo
Pirão: coloque água fria na farinha para
1 kg de abóbora que inche. Junto a essa farinha inchada colo-
que caldo do cozido e leve ao fogo mexendo
3 chuchus
sempre.
3 pimentões verdes

1 maço de cheiro-verde
Como servir
3 folhas de louro
Corte as carnes e os legumes em pedaços
5 dentes de alho grandes e os disponha em pratos separados,
servindo o caldo à parte. Essa receita serve
Obs.: acrescente os legumes e ver-
doze pessoas.
duras de que gostar. Os acima men-
cionados não devem faltar em um
cozido baiano.
Como tenho dito, minha relação com
a cozinha comum e a cozinha ancestral
se mistura. O que muitas vezes servimos
para as pessoas também alimenta nos-
sos deuses, como é o caso do acará (bola
de fogo), uma comida de Oyá que come-
mos e conhecemos como acarajé. Escolhi
essa receita, pois ela é muito significativa
para mim.
Assista ao vídeo

64
65
ACARAJÉ

Ingredientes Modo de preparo


1 kg de feijão-fradinho quebrado Coloque o feijão-fradinho de molho em
água fria por 4 horas. Quando o feijão co-
4 cebolas meçar a inchar, lave-o com água fria até
Dendê para fritar soltar toda a casca. Moa o feijão sem casca
(em moinho especial ou processador) até
Sal a gosto formar uma massa branca espessa.

Descasque as cebolas, corte-as em cruz


(quatro pedaços) e bata-as no liquidificador
com água (cerca de 200 ml). Junte a massa
do feijão e tempere com sal a gosto.

Aqueça uma frigideira ou tacho com


quantidade suficiente de azeite de dendê
para cobrir os bolinhos de acarajé enquanto
são fritos. Os bolinhos devem ser feitos com
uma colher (quantidade de massa retirada).

Frite em azeite de dendê bem quente,


virando-os uma única vez. Os bolinhos de-
vem ficar com uma tonalidade avermelhada
por fora e clara por dentro.

Sirva com pimenta, vatapá, caruru, ca-


marão seco e salada de tomate verde, ce-
bola e coentro.

Assista ao vídeo

66
67
QUINDIM PARA SERVIR 8 PESSOAS

Este doce que vou apresentar é uma das Sou Eleonora Aparecida Alves de
fortes memórias afetivas da minha vida. Modo de preparo Souza Domingos, ou Doné Eleonora,
Como já contei antes, nós, os filhos, aju- que quer dizer “mãe” na língua jeje. Nasci
dávamos muito minha mãe a separar as Rale o coco e não retire o leite. Co- no Rio de Janeiro e sou chef de cozinha
claras dos ovos, peneirar açúcar... e este é loque o açúcar em uma panela com um responsável pelo Espaço Gourmet Flor do
um doce de que gosto muito. Compartilho pouco de água e as gotas de limão. Leve Dendê. Compartilhei com vocês um pou-
com vocês a receita. ao fogo para obter uma calda grossa. co da minha infância, a história da minha
família e de meu povo, e a minha relação
Deixe esfriar a calda e junte as gemas com a cozinha ancestral. Para quem se in-
peneiradas, o coco ralado e a manteiga, teressar, indico os seguintes livros: Acaçá,
mexendo tudo muito bem.
Ingredientes
onde tudo começou, de Pai Cido de Òsun
Eyin; A comida baiana de Jorge Amado, de
Despeje em forminhas untadas com
Paloma Amado.
12 gemas manteiga e açúcar, e leve ao forno quen-
te em banho-maria para assar.
450 g de açúcar refinado
Retire os quindins da forminha com
1 colher (sopa) de manteiga cuidado para que não se quebrem.
1 coco ralado
Obs.: retirar os quindins só depois
Algumas gotas de limão para a calda de esfriar.

Assista ao vídeo

68
69
FAMÍLIA JIMÉNEZ - DA Meu nome é Juan Carlos Teixeira Jime-
nez e sou filho de imigrantes espanhóis. Mi-
rez, nascida em 11 de fevereiro de 1920,
ambos de Sevilha, viviam na cidade de Cá-
ESPANHA AO BRASIL nha família é originária da pequena cidade
de San Juan de Aznalfarache, um povoado
diz, onde meu avô Juan trabalhava como
encarregado de manutenção elétrica na
Por Juan Carlos Teixeira Jimenez que fica a cerca de 5 quilômetros de Sevilha, Red Nacional de los Ferrocarriles Españo-
sul da Espanha. Como a maioria dos imi- les (Renfe), uma empresa que administra
grantes que chegaram ao Brasil, vieram em as ferrovias do país. Minha avó Ana tinha
“A culinária é a paisagem de um país
na panela.” busca de oportunidades, principalmente no uma loja de armarinhos, conhecida como
estado de São Paulo, onde deixaram como Casa Jiménez, e ao mesmo tempo cuidava
Josep Pla herança seus conhecimentos, costumes e dos filhos. Meu pai, Juan, e meu tio, José
raízes culturais. Luiz, estudavam em um colégio católico; a
pequena Ana desfrutava o colo de minha
A história inicia-se no período entre 1959 avó. Viviam uma vida tranquila, tendo em
e 1961, na cidade de Cádiz, província de vista que a Espanha passou por um período
Andaluzia, onde meus avós paternos, Juan economicamente instável após a Segunda
Jiménez Carmona e Ana Bejarano Suárez, Guerra Mundial.
juntamente com seus filhos, Juan Jiménez
Bejarano, José Luiz Jiménez Bejarano e Não se sabe ao certo o principal motivo
a recém-nascida Ana Jiménez Bejarano, que fez meu avô abandonar essa vida está-
viviam antes da imigração para o Brasil. vel e escolher emigrar. Segundo informa-
ções da família, uma das possíveis razões
Juan Jiménez Carmona, nascido em 2 seria o governo ditatorial de Francisco Fran-
Assista ao vídeo de junho de 1922, e Ana Bejarano Suá- co. O país sofria com a situação, então meu

70
avô decidiu buscar melhores oportunidades de obra especializada e, por esse motivo, então recém-chegado, e sua família. Logo
para sua família e partir de barco (e não de ele ficou trabalhando por vários meses até depois começou a trabalhar na empresa
navio) com destino à Argentina. No final retornar para São Caetano do Sul para tra- Bosch, onde eram fabricados os alterna-
do mês de maio de 1960, ele embarcou balhar na empresa Siemens. dores e motores de partida automotivos.
sozinho, deixando minha avó e os filhos
na Espanha. Em 1961, meu avô mudou-se para a Minha avó cuidava da educação
cidade de Campinas, onde comprou um dos filhos e era responsável pelos afazeres
Por ser uma viagem extremamente lon- terreno no bairro Jardim Eleonor. Por or- domésticos, enquanto meu pai, já com
ga e desafiadora, o barco faria uma parada dem dele, minha avó vendeu o comércio seus 16 anos, sob influência de meu avô,
no Brasil antes de seguir. Em contato com em Cádiz e veio com os filhos para o Brasil, começou a aprender o ofício de eletricista.
passageiros do barco, que falavam de gran- desembarcando no Porto de Santos em 10
des oportunidades no Brasil, e cansado da de junho de 1961. Meu tio-avô José Luiz, minha tia-avó
difícil viagem, ele acabou desembarcando Maruja e seus filhos, Mari, Dolores e Juan
no Porto de Santos em 3 de junho de 1960 No registro de estrangeiros no Porto de Luiz, continuaram a vida na cidade de
e resolveu ficar no país. Naquela época do Santos, acabaram errando o sobrenome de Jundiaí, onde montaram uma marcenaria
pós-guerra, ouvia-se muito na Europa que meu tio José Luiz, colocando a letra G no e carpintaria.
o Brasil também era um lugar com terras Jimenez; assim, somente ele ficou com o
em abundância e riquezas. sobrenome Gimenez.

Em seguida foi para a Grande São Paulo, De Santos partiram para a cidade de
depois para Goiás trabalhar como eletricista Campinas, e pouco tempo depois meu avô
na construção de Brasília, que estava em começou a construir uma casa com a ajuda
sua fase final. Nessa época não havia mão de seu irmão, José Luiz Jiménez Carmona,

71
A aventura continuou quando meu avô à casa dos novos vizinhos espanhóis. Meu cém-casado com minha mãe, e meu tio José
conheceu um senhor que transportava car- pai começou a paquerar a nova vizinha, e Luiz que estava seguindo carreira artística
gas de algodão da cidade de Artur Noguei- casaram-se no ano de 1966. Tiveram dois como cantor.
ra até a Vila Industrial, em Campinas. Em filhos, Juan Pablo e Juan Carlos.
seus vários encontros e conversas, falava-se Minha tia Ana, com seus 10 anos de ida-
muito bem da pequena cidade de Artur Como a região de Artur Nogueira tinha de, retornou com meus avós para a Espanha
Nogueira, que estava se destacando econo- abundância de terras, meu avô Juan de- sem a companhia dos irmãos. Eles fizeram
micamente, principalmente no plantio de cidiu vender a casa que possuía em Cam- seu último passeio de mãos dadas na cal-
algodão e cana-de-açúcar. Isso fez com que pinas e comprar um sítio na divisa entre çada próxima da casa de meu tio-avô José
meu avô decidisse se mudar com a família Engenheiro Coelho e Tujuguaba. Na época, Luiz, em Jundiaí.
novamente. Engenheiro Coelho era distrito de Artur
Nogueira. Ele iniciou uma plantação de Tia Ana, carinhosamente conhecida
Alugaram uma casa e meu avô abriu amoreiras para futuras criações de casu- como tia Ani, casou-se em 1976 com Sal-
uma oficina de elétrica automotiva, pois los de bicho-da-seda. Recebiam visita de vador Luque, em San Juan de Aznalfara-
na região não existia. Desde então come- técnicos da Secretaria de Desenvolvimento che, onde vive até os dias de hoje. Tiveram
çou a consertar carros e muitos caminhões Rural de Campinas, para acompanhar as quatro filhos, Salvador, Ana Lucia, Juan
dos sitiantes da cidade e dos vilarejos que criações. Antonio e David.
a ela pertenciam, como Engenheiro Coe-
lho e Holambra, além de caminhões que Infelizmente, passados alguns anos, o Meu tio José Luiz, vivendo sua adoles-
transportavam cana-de-açúcar para a Usina negócio não prosperou como desejado cência na época do auge da Jovem Guarda,
Ester, em Cosmópolis. e meu avô decidiu vender a proprieda- passou a se interessar pela música. Começou
de, retornando para a Espanha em 1970. com uma pequena banda com os amigos em
Minha mãe, Leocádia, morava em frente Ficaram no Brasil meu pai, que estava re- Artur Nogueira e, logo após o retorno de

72
seus pais para a Espanha, começou a trilhar
seu caminho como músico nos anos 1970
pude conhecer minha querida avó Ana
quando pequeno, por ocasião de algumas
SOBRE OS PRATOS
em São Paulo, tocando em boates. Aperfei-
çoou-se e foi convidado a tocar contrabaixo
visitas que ela fez ao Brasil. APRESENTADOS
por quase cinco anos no grupo Originais do Em 1995, já com 17 anos, fiz minha pri-
meira viagem à Espanha para conhecer Desde pequeno, a única comida es-
Samba. No começo dos anos 1980 seguiu
pessoalmente meus tios e primos, rever panhola que eu comia era o puchero
carreira como cantor, com o nome artístico
meu pai e minha querida avó Ana, que que minha mãe fazia, um ensopado à
de Diego Jimenez. Gravou diversos discos,
infelizmente faleceu uma semana antes base de grão-de-bico com legumes e
foi premiado com dois discos de ouro em
de minha chegada. carnes, porém não gostava muito. Tal-
1986, participou de programas, como o
vez fosse a forma como ela fazia ou
Clube do Bolinha, e realizou vários shows
Hoje a família continua crescendo, tan- o tempero.
pelo Brasil. Casou-se com minha tia Rosely
e tiveram uma filha, Amanda Gimenez. to do lado brasileiro quanto do outro lado
do Atlântico, onde tive a oportunidade de Em 1997, quando tinha 19 anos, resolvi ir
conhecer minhas raízes. Agora tenho a para a Espanha morar um tempo na casa de
Meu pai se separou de minha mãe em
chance de manter viva a história de minha meu pai em San Juan de Aznalfarache e por
1982. Viveu por muitos anos na cidade de
família por meio deste livro. lá fiquei cerca de oito meses. Ele cozinhava
São Paulo trabalhando como eletricista,
alguns pratos e eu ajudava a prepará-los,
ofício herdado de meu avô. Mudou-se para
e, entre eles, estava o puchero. Aprendi a
a Espanha em 1991, onde viveu até seu
fazê-lo, pois realmente é muito saboroso
falecimento, em 2017.
e nutritivo. Hoje é um prato muito comum
Infelizmente, não consegui conhecer em minha casa, porém tive de “abrasilei-
meu avô Juan, que faleceu em 1981, porém rar” um pouco, substituindo pela calabresa
embutidos como o chorizo.

Como fiquei lá na época entre o fim de


ano e o começo da primavera, conheci o
delicioso polvorón, um doce à base de fa-
rinha de trigo, amêndoas, canela e banha
de porco que é muito consumido na época
do Natal, e, claro, foi um prato que tive o
prazer de incorporar em minhas receitas.

E, por fim, o tinto de verano, essa deli-


ciosa bebida refrescante à base de vinho
tinto, soda limonada, rodelas de limão ou
laranja e gelo, comumente bebida na época
de calor. O vinho faz parte da dieta medi-
terrânea, e para tomá-lo no verão acres-
centaram o refrigerante. Existe também o
rebujito, que é do mesmo preparo, porém
usando vinho branco, soda limonada, hor-
telã e gelo, muito apreciado na Feria de
Abril em Sevilha.

Existia uma variedade de pratos famosís-


simos que hoje são encontrados com mais
facilidade no mercado brasileiro, as famosas
tapas (aperitivos) como o jamón serrano,
o queijo manchego e o chorizo.

Tomar um desayuno (café da manhã)


comendo churros mergulhados em uma
xícara enorme de chocolate quente, ou
então café com leite e pão tostado com alho
e azeite de oliva, e comer a famosa paella
marinera são experiências gastronômicas
inesquecíveis. Experimentem!

73
Ingredientes Modo de preparo

PUCHERO PARA 4 PESSOAS


300 g de grão-de-bico Deixe o grão-de-bico de molho na água
por cerca de 4 a 6 horas.
2 tomates maduros
Pique os tomates, as batatas, as cebolas,
3 a 4 batatas de tamanho médio a cenoura e o pimentão em pedaços mé-
1 cenoura dios. Fatie os dentes de alho e a calabre-
sa em rodelas. Pique o bacon em pedaços
1 pimentão verde pequenos.

1 cebola grande Em uma panela de pressão, acrescente


todos os ingredientes e água até cobrir.
2 dentes de alho Após levantar fervura, cozinhe por cerca
2 gomos de calabresa de 30 minutos.

100 g de bacon picado Sirva em um prato fundo de sopa acom-


panhado de fatias de pão tipo italiano.
2 folhas de louro
Opcional: pode-se acrescentar outros
4 colheres (sopa) de azeite extra tipos de carne, como frango ou costelinha
virgem defumada, se desejar.
1 a 2 tabletes de caldo de galinha
(opcional)

Sal e pimenta-do-reino a gosto

Assista ao vídeo

74
75
MANTECADOS DE AMÊNDOAS E CANELA

Ingredientes Modo de preparo


250 g de farinha de trigo Triture as amêndoas de modo que fi-
quem do tamanho de pequenos grãos.
100 g de amêndoas cruas sem sal
120 g de banha de porco Ponha a farinha de trigo em uma forma
e leve ao forno por cerca de 8 minutos a
100 g de açúcar de confeiteiro 180 °C para secar. Coloque as amêndoas em
uma forma. Toste-as por cerca de 8 minutos
1 colher (café) de canela em pó
no forno a 180 °C (se houver espaço, pode
juntar as formas do trigo e das amêndoas
ao mesmo tempo).

Misture o açúcar de confeiteiro, a cane-


la, as amêndoas e a banha e, aos poucos,
o trigo, até formar uma massa uniforme.
Deixe descansar na geladeira por pelo me-
nos 2 horas.

Despeje a massa em uma superfície pla-


na e use um rolo para esticar a massa em
uma espessura de mais ou menos 2 centíme-
tros. Com um cortador de massa redondo,
faça pequenas “bolachas”.

Coloque uma folha de papel-manteiga


em uma forma e os polvorones por cima.
Asse por mais ou menos 10 minutos ou até
começarem a rachar.

Deixe esfriar e, usando uma peneira,


polvilhe o açúcar de confeiteiro por cima
dos polvorones.

Assista o vídeo
dessa receita

76
77
Ingredientes

TINTO DE VERANO
500 ml de vinho tinto (de
preferência seco)
500 ml de refrigerante de limão
(soda limonada)
Gelo a gosto
Rodelas de limão-siciliano ou
limão-taiti

Modo de preparo
Em uma jarra, acrescente gelo,
o vinho tinto e, em seguida, o
refrigerante. Misture com uma
colher.

Em um copo coloque rodelas


de limão, gelo e despeje o tinto
de verano.

Meu nome é Juan Carlos Teixeira Ji-


menez, tenho 41 anos e sou natural de
Campinas. Morei toda minha vida em Artur
Nogueira. Sou casado com Andreia Cristina
Menge há cinco anos. Atualmente, moro
na cidade de Cosmópolis e trabalho como
técnico de manutenção em uma empresa
multinacional.

Assista ao vídeo

78
79
ISHIKAWA, A história do Restaurante Ishikawa se
inicia com a união de duas famílias origi-
trabalhou desde cedo no cafezal, fazendo
todo o trabalho braçal. Casou-se com uma
PERSEVERANÇA DE VIDA nárias do Japão: Ishizaki e Sassaki. descendente de japoneses, teve sete filhos
e sempre incentivou o gosto pela cultura
Por famílias Ishizaki e Sassaki A família Ishizaki morava em Ibaraki, japonesa na família. Comprou uma chácara
mas, como no Japão pós-Segunda Guerra em Valinhos, na região de Campinas, sem-
Mundial era muito difícil conseguir tra- pre trabalhando na plantação de tomate,
“A família é a base de tudo. Ter o que seguir balho, Kozo e Tsune Ishizaki e seus cinco
nos fortalece e permite que nossas origens uva e figo com a ajuda dos filhos.
filhos vieram para o Brasil no início da
permaneçam. A arte culinária é maravilhosa,
década de 1960, em busca de uma vida Assim como as duas famílias, muitos
cada movimento que é feito com a faca e as
mãos se transforma em uma obra-prima: os melhor. Depois de uma viagem de navio imigrantes japoneses vieram para o Brasil,
olhos se encantam e o estômago agradece.” que durou 48 dias, desembarcaram no Por- uns com a intenção de ficar, mas a maioria
to de Santos e foram para Ribeirão Preto pretendendo enriquecer e retornar para
Karina Ishizaki Tajima trabalhar na lavoura de arroz, tomate e o Japão após poucos anos. Os japoneses
outros legumes. Nessa época, o filho mais tiveram muita dificuldade em se adaptar ao
novo, Masao, estava com 11 anos. Brasil – idioma, hábitos alimentares, modo
de vida e diferenças climáticas acarretaram
A família Sassaki veio no final da déca- um forte choque cultural. Uma parcela con-
da de 1930. Isao Sassaki, hoje já falecido, siderável nunca aprendeu a falar português.
partiu com apenas 13 anos de idade da
província de Miyague com a família de um A família japonesa se alimentava de
tio, que precisava que homens da família produtos de sua própria horta, mas não
viessem junto, já que só tinha filhas. Isao deixava de manter suas tradições, comendo

Assista ao vídeo

80
peixe, tomando sopa (missoshiru) e alguma de descascar laranjas, e tinha gosto pela Durante anos trabalhou como chef de
conserva de legumes. Nas festas de fim de cozinha. Alguns anos depois, na capital, foi cozinha de um famoso restaurante no bair-
ano costumavam – e ainda o fazem – co- trabalhar no restaurante de sua tia. Lá teve ro da Liberdade, onde chegou a cozinhar
mer o moti (uma porção de arroz japonês a oportunidade de aprender a arte milenar para várias pessoas famosas, como Raul
cozido e socado até virar uma massa, em da cozinha oriental. Tamanha era sua de- Seixas, Zico, Sócrates, Casagrande, corre-
japonês chamada motitsuki), considerado dicação e talento que em pouco tempo se dores de Fórmula 1, entre outros. Buscan-
um símbolo de união e uma forma de atrair destacou e, aos 19 anos, foi trabalhar no do retornar para a cidade de origem da
prosperidade, saúde e sorte, além de ser melhor restaurante de São Paulo, já como união do casal, Masao foi trabalhar em
uma oferenda para o deus de devoção de chef de cozinha e sushiman. um restaurante bastante conceituado em
cada família. Campinas. Em 2003, conseguiu realizar seu
Assim, em 1975, devido à sua expe- grande sonho de abrir seu próprio restau-
Os japoneses trouxeram muitas contri- riência, foi convidado para trabalhar no rante japonês com sua família e, em ho-
buições para o Brasil, melhorando o modo Consulado Geral do Japão em Recife, ten- menagem aos seus pais, colocou o nome
de trabalhar a terra, com verduras, legumes do cozinhado para o príncipe (e futuro de Ishikawa, composto por ishi (pedra), de
e frutas de maior qualidade, e introduzindo imperador) do Japão, o que trouxe muito Ishizaki (o sobrenome do pai), e kawa (rio),
sementes que não havia aqui, além da ali- orgulho à sua família e amigos. de Kawasumi (sobrenome da mãe), cujo
mentação, com seus hábitos mais saudáveis, significado é “perseverança”. Desde então,
e esportes, como judô e caratê.  Após alguns anos, Masao decidiu voltar o restaurante Ishikawa vem mantendo a
para São Paulo. Seus pais estavam morando tradição dos pratos e temperos autênticos.
Masao Ishizaki trabalhou na lavoura em Valinhos e, em uma das visitas a eles,
em Guatapará, interior de São Paulo, aju- conheceu a filha mais velha de Isao Sassaki, A dedicação de Maria à criação de seus
dando sua família. Desde jovem já tinha Maria Setsuco Sassaki, com quem se casou e filhos foi fundamental para que Masao
habilidades manuais, vencendo concursos teve três filhos: as gêmeas Karina e Suzana pudesse se desenvolver nos restaurantes
e Alexandre. pelos quais passou e para que o restaurante
Ishikawa nascesse.

Hoje, o chef Masao tem mais de cinquen-


ta anos de experiência, trabalhando com
seriedade e buscando conservar sempre
o lado tradicional da cozinha japonesa.
Graças a ele, seus filhos pegaram gosto
pela culinária e pela cultura e, a cada dia
que passa, aprendem mais e mais com ele.
Sua filha Karina se formou em Psicologia, e
Suzana, em Gastronomia, especializando-
-se em esculturas com frutas e legumes. O
filho mais novo, Alexandre, segue o cami-
nho do pai como sushiman e busca ampliar
o restaurante Ishikawa. Logo, seus netos
vão crescer e Masao vai querer ensiná-los
a cozinhar, passando esse conhecimento
de geração em geração.

Para Masao, tudo o que foi contado aqui


nem precisaria ser dito, pois ele costuma
falar que tudo isso que viveu está guardado
em seu coração e somente ele sabe o que
sentiu. Como diz a frase de Dom Quixote:
“Sonho que se sonha sozinho é apenas um
sonho, mas, quando se sonha junto, é o
começo da realidade”.

Essa foi uma parte da história das famí-


lias Ishizaki e Sassaki, consideradas exem-
plos de vida para muitas pessoas.

81
Ingredientes Modo de preparo

OYAKO DOMBURI PARA 1 PESSOA


Arroz japonês Numa frigideira, frite o frango, acres-
cente as cebolas e as cebolinhas, coloque a
1 xícara de água água e deixe ferver. Junte o shoyu, o açúcar
1 colher (chá) de hondashi e, por último, os ovos batidos (espalhando
bem na frigideira para que incorporem em
2 colheres (sopa) de shoyu tudo). Espere cozinhar os ovos!
2 colheres (chá) de açúcar
Numa tigela acrescente o arroz e, por
1 cebola média cortada em meia- cima, a mistura de frango. Decore com ce-
lua bolinha e nori picados.

100 g de frango cortado em tiras


(pode ser peito ou outra parte sem
pele)
2 ovos
Cebolinha (cortada em diagonal no
sentido do comprimento)
Nori picado para decorar

Assista ao vídeo

82
83
ANMITSU PARA 2 PESSOAS

Sugestões
Anmitsu é uma popular sobremesa ja- Para o kanten, coloque a gelatina e a
ponesa. É feita de pequenos cubos de ágar, água em uma panela e cozinhe, até que
uma espécie de alga, servidos em uma tigela levante fervura e fique cremoso. Coloque
Sirva em tigelas fundas, que mantêm os
com uma massa doce fervida de feijão-azu- a gelatina em um recipiente quadrado,
ingredientes de forma mais jeitosa.
qui (anko) e frutas variadas.  para facilitar o corte. Não precisa levar à
geladeira. Depois de frio, corte a gelatina Evite usar coberturas de chocolate ou
em cubinhos. outros sabores, pois as sobremesas japo-
Ingredientes nesas típicas oferecem a oportunidade de
sentir a mistura de sabores “puros”.
Para o anko (pasta de feijão-azuqui): Montagem Equilibre os ingredientes na montagem,
500 g de feijão-azuqui colocando quantidades parecidas de frutas
Coloque uma bola de anko e uma de e kanten.
sorvete em uma tigelinha e acrescente a
5 a 6 colheres de açúcar
salada de frutas e o kanten em volta.
1 pitada de sal

1 litro de água
Dicas
O feijão-azuqui é um feijão de grãos
Para o kanten (gelatina de ágar-ágar):
menores que os convencionais e de cor mar-
1 pacote de 10 g de gelatina de alga rom-avermelhada. Surgiu na Ásia e ganhou
em pó o mundo graças ao sucesso da alimentação
macrobiótica, que dá grande importância
2½ copos americanos de água fria a esse tipo de grão devido a seus efeitos
depurativos no organismo.

No Japão, além de ser utilizado em pas-


Sorvete e salada de frutas a gosto
tas doces e ser preparado com legumes, o
feijão-azuqui é transformado em farinha
para bolos. É também um ingrediente bá-
Modo de preparo sico da maioria dos doces nipônicos. A va-
riação está na forma: eles podem ser mais
Faça o anko um dia antes. Coloque o consistentes ou mais moles. Nesse último
feijão-azuqui e a água em uma panela e caso, é chamado de anko e costuma ser
deixe cozinhar. Quando a água começar a utilizado em recheios de manjus e anmotis,
secar, acrescente mais água quente, até que bolinhos à base de farinha de trigo e arroz.
o feijão amoleça. À medida que a água vai
O kanten é vendido em duas cores: bran-
secando, adiciona-se mais água, até que os
co e vermelho. Para o anmitsu, você pode
grãos derretam e a mistura vire uma pasta.
usar qualquer um, tendo em mente a varie-
Esse processo demora cerca de uma hora e
dade de sua salada de frutas e o resultado
meia. Por isso, é aconselhável que se pre-
visual, que deve ser colorido e apetitoso.
pare o anko com um dia de antecedência.
Assim, se não for época de morangos, por
Acrescente o açúcar, o sal e mexa. Se exemplo, você pode usar o kanten verme-
necessário, acrescente mais água quente. lho. Se já tem uma salada de frutas com
Vá mexendo até que o feijão desgrude da cores variadas, use o kanten branco.
panela.

84
85
Ingredientes Modo de preparo

SUNOMONO PARA 1 PESSOA


1 pepino-japonês  Fatie o pepino em rodelas bem fi-
nas, depois acrescente o sal e aguarde
2 colheres (sopa) de sal uns 10 minutos, até ele desidratar.
Em seguida, lave e retire todo o sal.
4 colheres de sopa de açúcar
Acrescente o açúcar e o vinagre. Está
4 colheres de sopa de vinagre pronto para servir.

Opcional: para decorar, acrescente


gergelim.

Filhos, esposa e netos contam com passos do pai, Masao, como sucessor sushi-
muito orgulho a história das famílias man, dando continuidade à tradicional
Sassaki e Ishizaki, pois vivenciaram comida japonesa, a filha Suzana é forma-
momentos que estão marcados na his- da técnica de alimentos, em Gastronomia
tória da imigração japonesa. e especializada em esculturas de frutas.

A filha de Maria, Karina, está na Agradecemos a oportunidade de di-


área de Psicologia e origamiterapia; vulgar um pouco de nossa história.
o filho, Alexandre, segue os mesmos

Assista ao vídeo

86
87
COMIDA, CONVERSA Temos a certeza de que, quando os
Gobbato saíram de Varano Borghi, na Itália,
O macio torrone de Milão e tantas outras
iguarias estão no DNA dos italianos que
E PARTILHAS: A VIDA e escolheram o Brasil para viver, não tinham
a menor ideia de quanto espalhariam pelos
cruzam os mares e se estabelecem no Brasil,
cada um trazendo na memória a mesa de
À MESA anos afora a culinária e a alegria italianas. sua casa, cercada de aromas e trocas afe-
Por Giulio Gobbato Neto tivas. Essa memória torna-se mais que um
As comidas das nonnas e mammas con- conforto, assume a forma escolhida para
quistaram os paladares de famílias brasilei- garantir o sustento de sua família e de ou-
“É na cozinha que eu desembesto e ras que fazem de nossas mesas as mesas de tros tantos que dessa mesa se aproximam.
solto os bichos. É na cozinha que eu suas casas. Comendo, cantando e dançando,
viajo sem passaporte, sem bilhete, sem alimentam o corpo e o espírito bem ao Bruno Ernesto Gobbato veio para o Brasil
revista em aeroportos. As autoridades gosto italiano. em 1944 e trabalhou na empresa Coberplas,
querem minhas digitais? Elas estão na em Campinas. Quando Giuseppe Gobbato,
massa do pão.” Bruno e Giuseppe Gobbato vieram de o Sr. Gianinno, veio da Itália, em 1954, em
Varano Borghi, província de Varese, na Lom- um navio que atracou no Porto de Santos,
Francisco Azevedo bardia, cuja capital é Milão. Nessa região, o seu irmão, Bruno, estava lá para acompa-
arroz é muito importante na alimentação. nhá-lo a Campinas.
Milão tem um dos risotos mais famosos
do mundo, o risotto alla milanese. Não é Com o passar do tempo, Bruno E. Gobba-
de estranhar que uma região produtora to adquiriu uma indústria têxtil em Jundiaí
de carne considerada de alta qualidade se e, em 1965, com sua esposa, Nalda, e suas
orgulhe de seu filetto ai gremolata, um filé filhas, Giuliana, Rita e Maria Luísa, foram
ao molho de alho, ervas e azeite de oliva. para Balneário Camboriú (SC) à procura de

88
uma vida mais tranquila. Quando lá chega- O CRESCIMENTO DA CASA foi realizado um show com o cantor Toni
ram encontraram o amigo Bruno Zavisqui Angeli, acompanhado por Tiago Banda
e sua esposa, Nella.
ITALIANA Show. O que era para ser apenas um show
Em 1975, Bruno Gobbato convidou se transformou em marca da casa: os janta-
As pessoas que veraneavam no Balneário res dançantes acompanhados sempre por
seu irmão, Giuseppe Gobbato (Sr. Gia-
sempre perguntavam ao Sr. Bruno: “Quan- música ao vivo. Os pratos mais pedidos são
ninno), e a esposa, Marilza Link Gobbato
do o senhor vai fazer aquela macarronada o macarrão à bolonhesa, a lasanha verde e
(D. Zita), com seus respectivos cunhados,
italiana com aquele delicioso molho?”. Essa o nhoque recheado com catupiry.
Roberto Link e Guilherme Link, e suas
era uma pergunta constante entre seus
esposas, Geni e Maria, para trazer o sa-
novos amigos. Em princípio, as gostosas
bor italiano para a cidade de Campinas.
comilanças não tinham a pretensão de se
tornar um negócio. Foi em 1969 que a culi- Em 1979, na cidade de Florianópolis, MEMÓRIAS CULINÁRIAS EM
nária que consideravam simples fisgou o à beira-mar surgiu outra casa italiana
paladar dos brasileiros com a inauguração FAMÍLIA
administrada por Ezio Librizzi, sobrinho
do restaurante Macarronada Italiana, em de Bruno Gobbato. Nós nos reunimos às segundas-feiras na
Balneário Camboriú. Na sala da casa foram
casa da minha mãe, D. Zita. Nosso jantar
espalhadas mesinhas e cadeiras e o embrião Foi no ano de 1995 a inauguração da tem sempre um risoto (a marca da Lombar-
do restaurante que alimentaria por décadas casa em Vinhedo, administrada por Giulio dia!), uma carne, uma salada, e macarrão
pessoas com o paladar e a cultura italiana Gobbato e Umberto Gobbato, filhos do não pode faltar! De sobremesa, frutas, um
começou a nascer. Sr. Giuseppe (Gianinno) com D. Zita. A bolo, uma compota...
festa de inauguração foi um grande su-
cesso, pois, além da boa comida italiana, Nas comemorações especiais, gostamos
do risoto ao funghi porcini, ou risoto de
verduras, uma carne, um lombo assado, um
vitel toné (uma carne que leva horas para
ser preparada. Seria como um lagarto com
molho de atum, uma verdadeira delícia!).
A sobremesa geralmente é um pudim –
ou budino, como chamam os italianos –,
frutas, manjar de coco ou pudim de leite
condensado. Costumamos decidir que cada
um leva o prato combinado anteriormente.

Assim, ficamos horas conversando, to-


mando um cafezinho e contando histórias.
Nosso encontro é sempre às segundas, o
único dia da semana em que folgamos.
Desde o tempo dos meus avós Guilherme
Link e Marieta Link, casa cheia significa
alegria e partilha de memórias. Casa cheia,
orgulho e tradição que D. Zita deseja para
sua família!

Compartilhamos com vocês três receitas


que alegram paladares italianos, ou não!

Assista ao vídeo

89
Ingredientes

CAPONATA DE BERINJELA
Modo de preparo
4 berinjelas Corte as berinjelas, as cebolas e os pi-
1 pimentão vermelho mentões em cubos. Coloque em uma forma
acrescentando as nozes, o tomate seco e
1 pimentão amarelo todos os temperos. Mexa bem, cubra com
2 cebolas picadas papel-alumínio e leve ao forno com tem-
peratura de 180 °C por 2 horas, mexendo
Nozes de vez em quando. Quando estiver macio,
retire o papel-alumínio e deixe secar um
Uvas-passas brancas e pretas
pouco o líquido.
Orégano
Pode ser servido quente, com massas e
Louro carnes, ou frio, como antepasto, com um
bom pão italiano de casca crocante!
Azeite extra virgem
Vinagre de vinho branco
Tomate seco
Pimenta-do-reino
Sal

Assista ao vídeo

90
91
RAGU À BOLONHESA

Ingredientes Modo de preparo


1 kg de cebola Frite a cebola e o alho no azeite até
dourar. Coloque a carne, as folhas de louro
200 g de alho picado e refogue bem. Depois junte a pimenta e as
300 ml de azeite folhas de manjericão. Junte 1 litro de água
fervente e abaixe o fogo. Cozinhe mexendo
3 kg de carne sem gordura, picada na sempre por 2 horas. Depois, adicione os
faca em pedaços pequenos tomates e acerte o sal, deixando no fogo
1 kg de tomate sem semente e sem pele por mais 3 horas.

1 pimenta dedo-de-moça
3 folhas de louro
Um punhado de manjericão
Sal

Assista ao vídeo

92
93
PERAS AO VINHO TINTO

Ingredientes Modo de preparo


3 peras firmes descascadas Em uma panela, coloque o açúcar, a canela, os
cravos, o vinho e a água e vá mexendo até o açúcar
4 colheres (sopa) de açúcar se dissolver completamente.
1 colher (sobremesa) de canela em pó Acrescente as peras, deixando em fogo baixo por
3 cravos (opcional) 30/40 minutos, virando-as de 10 em 10 minutos para
que cozinhem de maneira uniforme.
300 ml de vinho tinto seco
Após esse tempo, tire a panela do fogo e verifique
200 ml de água se o líquido se transformou em uma calda. Esse é o
ponto da sobremesa!

94
Giulio Gobbato Neto, comerciante, nascido
em Campinas, é filho de Giuseppe Gobbato
e Marilza Link Gobbato, e casado com Lu-
cia Zambotti Gobbato. Tem uma filha, Ca-
rollinne Gobbato. O casal é responsável
pelas tradições culinárias da Macarronada
Italiana de Vinhedo, uma casa que mora
no coração de muitos italianos e amigos
que vivem em suas mesas e em sua pista
de dança momentos inesquecíveis. Dessa
forma, os clientes se sentem como na an-
tiga salinha de Balneário Camboriú, onde
tudo começou. Um lugar aconchegante
para toda a família.
Assista ao vídeo

95
COMIDA E FAMÍLIA HISTÓRICO FAMILIAR Rudolpho Berggren, Frida Berggren e Irma
Adda Berggren.
Por Marilene Berggren Comelato O patriarca da família Berggren no Brasil,
Jorge Frederico Gustavo Berggren, nasceu Quando Jorge chegou ao Brasil, insta-
em Bonn, Alemanha, em 15 de abril de 1867. lou-se na cidade de Campinas. Foi chefe
“Pelas histórias de lugares, eles da estação ferroviária da Fepasa. Poste-
se tornam habitáveis. Habitar é Seus pais, Fernando Emílio Berggren e Elisa
Frederica Guilhermina Berggren, tiveram riormente, na época da guerra, com receio
narrativizar.”
vários filhos, entre eles Jorge Frederico Gus- de ser expatriado para a Alemanha – não
Michel de Certeau tavo, nascido numa das muitas viagens que era naturalizado brasileiro –, mudou-se
o casal fazia periodicamente ao país de ori- para Villa Americana, para trabalhar como
gem. Jorge se casou com Emília Hulda Opelt, contador na Fábrica de Tecidos Carioba,
em cerimônia realizada em Poços de Caldas de propriedade da família Müller. Estes,
(MG), no dia 17 de setembro de 1894. também alemães, lhe deram todo o apoio.
Jorge faleceu em 18 de julho de 1938, aos
Hulda nasceu em Hamburgo, Alemanha, 71 anos de idade, em Carioba. Emília Hul-
em 30 de janeiro de 1868. Ela veio para o da faleceu em 3 de janeiro de 1953, em
Brasil com seus familiares, que se instalaram Americana.
em Joinville (SC). Emília era filha de Ernest
Opelt e de Ernestina Ber Opelt. Eu nasci na pequena cidade de America-
na, em 27 de fevereiro de 1937. Nos fundos
Jorge e Hulda tiveram cinco filhos, to- da casa, corria o então límpido Ribeirão
dos nascidos no Brasil: Frederico Carlos Quilombo, colorindo meus sonhos da me-
Berggren, Oscar Adolpho Berggren, Paulo ninice. Meu pai, Paulo Rudolpho Berggren,

96
motorista da família Müller, era um homem trabalhar como mecânico, minha família Nessa infância simples de menina da
enérgico e reservado. Exigente e habilido- transferiu-se novamente para Americana. pequena cidade interiorana, ali entre a Rua
so, era cuidadoso e um pai notadamente Meu pai vendeu seu “banco de areia” na Capitão Correa Pacheco, a “Rua do Pito
bondoso. Dotado de inteligência incomum, pequena Caiubi e viemos residir próximo Aceso”, Comendador Müller, Álvaro Ribeiro
embora não tenha tido formação acadê- da tinturaria. e adjacências, vivi, convivi e aprendi a viver.
mica, foi um autodidata que se aprimorou Com saudades desse tempo, lembro-me dos
permanentemente, à medida que o tempo Seu coração, porém, ficou lá na peque- amigos de infância da família Cordenonsi:
passava e as necessidades cotidianas exi- nina Caiubi, nas margens arenosas do Rio Antonieta, Nilde, Ediney e Roviglio, Daici e
giam mais habilidades e conhecimentos. Piracicaba, de onde nunca se apartou. Cons- Luiza (Zinha), além da Rosa e do Zezinho
tantemente nos levava para passear e rever Milazzoto, e da pequena Vitória, de quem
Recordo-me que meu pai dava aula de os amigos queridos que lá deixaram. eu gostava de cuidar.
alemão para os filhos depois do jantar. Hora
sagrada, pois sentia grande necessidade de Em minha infância, já na cidade, desde Do “primeiro emprego” que consegui,
perpetuar em seus descendentes a língua os 6 anos de idade morava no centro, na guardo uma divertida recordação: raspar
pátria de seus antepassados. Rua Jorge Jones, onde convivi com meus com faca a casca da cana-de-açúcar para
contemporâneos com leveza e alegria. Em o Sr. Manzi moer e extrair caldo em sua
Depois de casado com minha mãe, Victo- minha lembranças ficaram as ruas não pa- máquina, em troca de algumas moedas,
ria Gatti, filha de Pedro Gatti e Ângela Pilla, vimentadas, a ausência de água encanada além do alento e do prazer de ganhar um
moraram alguns anos em Caiubi, às mar- da cidade ainda pequena, as brincadeiras dinheirinho só meu, graças a meu próprio
gens do Rio Piracicaba, de onde ele retirava na rua entre os cuidados de minha mãe e esforço.
areia com uma draga. Quando seu irmão a vigilância de meu pai, as travessuras, a
Oscar comprou uma tinturaria localizada frequência à “Escolinha da Dona Delmira”,
na Rua Álvaro Ribeiro e dele precisou para ao lado da residência do maestro Germano
Benencase.

97
Uma das vizinhas que marcaram muito no jogo do bicho, levando uma aposta no
minha infância foi Dona Ana, a “Nhana chalé da Praça da Matriz. Quando ela ga-
Carrapato”, apelido carinhoso dado para nhava, as meninas recebiam uma moeda
a mãe de Dona Maria e avó da Zeulma do de gorjeta, que utilizavam imediatamente
Rosário Rocha. A casa de Dona Nhana fica- para comprar doces na Padaria Central, na
va nos fundos da casa da filha, com frente esquina da Igreja de Santo Antônio. Era
para a “Rua do Pito Aceso”. A tradicional uma verdadeira festa quando Dona Nhana
rua central da pequena Americana recebeu ganhava no bicho. Todos ficavam sabendo!
essa alcunha porque em todos os fins de
tarde os moradores sentavam-se à porta de
casa, acendiam cigarros de palha e ali per- FESTAS EM FAMÍLIA
maneciam fumando tranquilamente seus
“pitos”, conversando, enquanto as crianças As festas de que mais me lembro são
pulavam corda, jogavam pião ou brincavam as reuniões da família no Natal, na casa
de amarelinha na rua de chão batido. Dona da tante Irma, que morava com sua filha
Nhana, ao pé do grande fogão a lenha, en- Gladys e a avó Hulda Opelt. A tante Irma
sinava as meninas da vizinhança a ler a sorte cuidava para que todos trocassem presen-
na xícara de café, a fazer “simpatia” para tes, que sempre ficavam acomodados junto
arrumar namorado, a cravar uma faca no à árvore de Natal. As comidas presentes
pé de bananeira para desmanchar malfeito. na mesa eram alemãs e brasileiras, feitas
As meninas eram suas companheiras; todos também por tante Irma. Tante quer dizer
os dias ela as mandava fazer uma “fezinha” “tia” em alemão.

98
MEMÓRIAS CULINÁRIAS DA Com o tempo, minha mãe foi adaptando
as receitas ao paladar da família. Hoje o
FAMÍLIA joelho de porco não é colocado junto com
Minha prima Gladys conta: “Lembro que o chucrute. O chucrute alemão tradicional é
minha mãe usava muito orégano, canela mais azedo e não acrescenta a batata ralada
em pó, aquele gostinho de comida de vó para dar liga. A salsicha é servida à parte,
e de mãe. Era a melhor coisa que se podia para que cada um saboreie os ingredientes
ter nas festas. Minha mãe fazia bolachas de sua preferência.
de mel para pendurar nas árvores de Natal,
e no topo da árvore a gente colocava uma
vela acesa”. “É verdade que as panelas são também
fonte de distração e que, com cuidado e
Minha avó fazia muita cuca. Jantávamos
bons ingredientes, você pode manter bem
juntos sentados à mesa, e ela gostava muito
despertos todos os apetites de quem vive
de licor. Nas noites de Natal, as crianças só
sob o mesmo teto.”
queriam saber de brincar; nós ceávamos e
depois já íamos dormir. Lembro também héctor abad
que as mulheres trocavam receitas de um
ou outro prato durante as festas.

Assista ao vídeo

99
Modo de preparo

BATATA SAUTÉE
Descasque 4 batatas grandes, corte-as
em pedaços e cozinhe até amaciar (não
devem ficar muito moles). Escorra a água.
Coloque na panela 1 colher (sopa) cheia de
manteiga para dourar as batatas, chacoa-
lhando a panela para pegar bem a man-
teiga nas batatas. Coloque salsinha picada
e sirva.

Assista ao vídeo

100
Ingredientes

O CHUCRUTE DA FAMÍLIA BERGGREN


500 g de repolho já fermentado para
chucrute
1 kg de costelinha de porco defumada
1 linguiça calabresa grande
1 linguiça portuguesa grande
1 batata grande
50 g de bacon
1 cebola grande
3 dentes de alho
8 salsichas para colocar em cima do
prato pronto

Modo de preparo
Corte as costelinhas de porco. Tire a
pele das linguiças, corte-as em fatias e
afervente por 2 minutos. Escorra e jogue
água fria por cima. Reserve. Em uma pane-
la, coloque um pouco de azeite e o bacon
cortado em cubinhos e frite até dourar.
Junte a cebola e o alho, mexendo até dou-
rar. Adicione a costelinha e as linguiças,
mexendo sempre. Em seguida, coloque o
chucrute e um copo de água. Mexa por 5
minutos. Rale uma batata grande, junte
mais um copo de água e mexa por mais 5
minutos. Verifique o sal.

Coloque em um recipiente, decore com


as salsichas e sirva com arroz branco e ba-
tata sautée. Usa-se mostarda amarela para
comer as salsichas (opcional).

Nota: no lugar das costelinhas defuma-


das pode-se usar joelho de porco assado.

Assista ao vídeo

101
Ingredientes Modo de preparo

CUCA DE MAÇÃ E BANANA


1 copo de amido de milho Unte e enfarinhe uma forma média.
Preaqueça o forno a 200 °C.
2 copos de farinha de trigo
2 copos de açúcar refinado Coloque numa tigela grande o trigo pe-
neirado, o amido de milho, o açúcar e o
6 bananas-d’água maduras (cortadas fermento. Acrescente a manteiga e misture
em rodelas) tudo com as mãos até formar uma farofa.
2 maçãs médias (cortadas em cubos Forre a forma com a metade da farofa,
pequenos) coloque por cima as bananas, as maçãs, as
1 xícara de uva-passa sem semente uvas passas e salpique por cima açúcar com
canela à vontade. Coloque a outra metade
1 copo de manteiga (temperatura da farofa. Despeje por cima os ovos batidos
ambiente ou derretida) com o leite. Finalize com açúcar e canela em
3 ovos pó, salpicando a quantidade que desejar.

1½ copo de leite com 10 gotas de Leve ao forno até dourar. Para verificar
essência de baunilha se está pronta, espete um palito de madeira
no meio da cuca. Se o palito sair limpo,
1 colher (sopa) de fermento em pó está pronta.
Canela com açúcar a gosto
Obs.: tem quem goste de colocar a cuca
na geladeira. Outros preferem em tempe-
ratura ambiente. BOM APETITE!!!

MarileneBerggrenComelatoémãede O presente texto tem partes retira-


cinco filhos, empresária, fundadora das do livro Impressões de uma vida
da Gráfica Adonis, dona de casa, de- inteira – Do sonho ao sucesso, de au-
legada Regional da Escola de Pais do toria de Agostinho Comelato (Editora
Brasil, membro atuante das Equipes Adonis, 2011).
de Nossa Senhora e demais atribui-
ções que a vida lhe propôs ou impôs. Agradeço a colaboração da prima
É uma mulher iluminada, cidadã, feliz Gladys Giordano dos Santos. Os ob-
e muito dedicada aos bisnetos, netos, jetos fotografados, com exceção da
filhos, amigos e às causas que sempre estatueta metálica dourada, são de
abraçou. seu acervo pessoal.

Assista ao vídeo

102
Enviada por Gladys Giordano dos Santos
103
CASA DE VÓ Nossos avós e bisavós vieram do Líbano.
Ele, Miled Salomão Hossri, da região do
Seu legado passou para as gerações fu-
turas. Sua filha Adna herdou o apreço pela
Por Márcia Josele Hossri Faria Coelho Vale do Bekaa, chegou ao Brasil no final cozinha, seguindo à risca as receitas da mãe.
do século XIX. Ela, Cecília Nader Hossri, A neta Márcia, que cresceu ao redor da avó
de Beirute, veio para o Brasil no início vivenciando o dia a dia na cozinha de casa,
“A lembrança é uma forma de encontro.” do século XX. Casaram-se e constituíram aprendeu a cozinhar muito cedo e trouxe
família na cidade de Jaguariúna, onde consigo todas as receitas da família.
Khalil Gibran
todos os filhos nasceram e foram criados:
Antônia, Antônio Maurício, Sarah, Adna e Os aromas e sabores fazem parte de
Aparecida. Tinham um armazém de secos nossa memória e lembranças. Um prato
e molhados na rua principal, em frente nos remete à infância ou ao carinho de
à igreja. um ente querido. As receitas vieram com
nossos antepassados guardadas no coração
Vovó Cecília dominava a culinária li- e escritas com muita saudade do que dei-
banesa como ninguém e adorava rece- xaram para trás. A culinária é uma forma
ber pessoas com uma mesa farta e cheia doce de expressar a cultura e os costumes
de amor. Amigos e vizinhos eram sempre de um povo, é a memória afetiva, latente
bem-vindos; a porta estava sempre aberta e inesquecível! Em cada prato colocamos
para quem quisesse apreciar suas delícias. nossas lembranças. Tudo que ficou da he-

104
rança imaterial que nos foi transmitida
está representada no alimento.

Fizemos da cozinha nosso laboratório,


resgatamos receitas, modos de fazer, e
trouxemos para a mesa preparações que
estavam em nossa memória e fazem parte
da nossa história. Nossos ingredientes são
selecionados, tais como verduras orgânicas
e temperos importados do Líbano. Todos
os dias, bisa Cecília e vovó Adna estão
presentes em nossa vida por meio dos
pratos que fazemos.

Assista ao vídeo

105
Ingredientes

TABULE
2 ramos de salsinha picada
2 tomates sem sementes cortados
em cubos pequenos
1 cebola picada
½ ramo de hortelã picado
2 colheres (sopa) de trigo para kibe
hidratado
1 colher (chá) de sal
100 ml de azeite
Suco de 4 limões
Folhas de alface lavadas e escorridas

Modo de preparo
Em um recipiente, coloque a salsi-
nha, os tomates, a cebola, a hortelã,
o trigo e o sal e misture. Regue com o
azeite e o suco dos limões, misturando
novamente.

Sirva com as folhas de alface.

Assista ao vídeo

106
107
CHARUTINHOS DE FOLHA DE UVA

Ingredientes Modo de preparo


500 g de carne moída (patinho sem Em um recipiente misture a carne moída,
gordura) o arroz, a manteiga, as pimentas e o sal.
Depois, pegue uma folha de uva, coloque
300 g de arroz cru
uma porção dessa mistura no meio dela,
½ colher (sopa) de manteiga enrole-a nas pontas e feche, formando um
charutinho. Faça isso até os ingredientes
½ colher (chá) de pimenta-do-reino terminarem. Forre o fundo de uma pane-
½ colher (chá) de pimenta síria la grossa com folhas de uva, em seguida
coloque os charutinhos com o tomate e o
1 colher (chá) de sal alho arrumados, acrescente a água, o suco
de limão e o azeite (os charutinhos devem
1 kg de folha de uva limpa (fresca ou em
conserva) ficar imersos). Coloque um prato pesado
por cima e tampe a panela. Cozinhe por
500 ml de água 20 a 30 minutos.
Suco de ½ limão
2 tomates cortados em 6
8 dentes de alho
4 colheres (sopa) de azeite

Assista ao vídeo

108
109
MALABIE

Ingredientes Ingredientes Modo de preparo


do creme da calda do creme
2 litros de leite integral 500 g de damasco picado Bata tudo no liquidificador e leve ao
fogo até engrossar. Ao retirar do fogo,
4 colheres (sopa) de amido de milho 1 litro de água acrescente o creme de leite.
4 colheres (sopa) de leite em pó 6 colheres (sopa) de açúcar
4 colheres (sopa) de açúcar
1 envelope pequeno de miski
socado no pilão
2 colheres (sopa) de água de flor
de laranjeira
1 lata de creme de leite

110
Modo de preparo
Em 2016 surgiu a ideia de compartilhar
as receitas da nossa família com o público.
da calda Estamos na quarta geração de mulheres.
Márcia, casada, tem duas filhas, Raíssa e
Leve ao fogo todos os ingredientes e Hadassa. Márcia é formada em Turismo,
deixe apurar. trabalhou com projetos turísticos, cultu-
rais e eventos. Raíssa, cientista social de
Coloque a calda já fria sobre o creme formação, trabalhou na área da educação.
em taças. Leve à geladeira. Hadassa é médica e trabalha na área da
Saúde Mental. Assista ao vídeo

111
FAMÍLIA HEREMAN - Joannes Franciscus Hereman nasceu em
17 de outubro de 1838 em Aalst, Bélgica.
A maioria de seus descendentes instalou-
-se definitivamente na cidade de Engenhei-
ENTRE A BÉLGICA E Posteriormente, por volta de 1860, mudou-
-se para a cidade de Eksaarde (Exaerde),
ro Coelho e cidades vizinhas. Alguns poucos
retornaram para a Bélgica. Posteriormente,
O BRASIL pertencente ao município de Lokeren. Ca- outros produtos foram exportados para a
sou-se duas vezes e, com a última esposa, Europa, como laranja, mandioca e algodão.
Por Evandro Luís Francischetti Matilde de Mol, e seus 21 filhos, emigrou Mas o grande sucesso da família sem dú-
para o Brasil em 1887, onde receberam vida nenhuma foi o café de marca Estrella
“Pois, quando o assunto é memória terras virgens do governo brasileiro para a Brazileira, cuja etiqueta de exportação le-
gastronômica, não tive uma só agricultura. O local era o vilarejo de Guai- vava as cores verde e amarela e o brasão
conversa que não trouxesse para a quica, hoje a cidade de Engenheiro Coelho da República Brasileira.
roda os antepassados de alguém.” (SP).
Anos mais tarde, a filha de Pedro Here-
Bruna Toni Com o falecimento de Joannes em 1908, man, Helena Hereman, e seu esposo, Anto-
os filhos Theofile Hereman e Petrus Johan- nio Alves Cavalheiro, assumiram a fazenda.
nes Hereman assumiram a cultura do café, Todo o café exportado era torrado na ci-
que era plantado na Fazenda Guaiquica e dade belga de Eksaarde e distribuído aos
exportado para a Bélgica. Os irmãos eram países vizinhos.
considerados grandes empreendedores, a
ponto de conseguirem alterar o traçado da A família Hereman fez algumas viagens
estrada de ferro para que passasse dentro para a Bélgica para visitar parentes e para
de sua fazenda para coletar as sacas de reforçar os negócios que prosperavam em
café que eram enviadas ao porto de Santos. função do café. Minha avó, Celina Cavalhei-

112
ro Francischetti, filha de Helena Hereman, carne, alimentavam-se apenas de vegetais. A carne de gado não era acessível
fez essa viagem em algumas ocasiões. Na Em ocasiões especiais, como feriados reli- para muitos, especialmente em tempos
década de 1970, ela me contava muitas giosos ou Ano-Novo, o coelho era o prato de guerra. Criar um coelho, por outro
histórias da Bélgica e disse que a viagem especial (toda família tinha coelhos), e um lado, ocupava relativamente pouco es-
de navio durava em torno de quarenta prato famoso era o coelho com ameixas paço e o transporte era fácil. O coelho
dias até chegar ao Porto de Antuérpia. secas. podia ser alimentado com folhas de couve
e outras sobras da cozinha, ou pastar em
Por volta de 1980, a empresa belga foi O que também se comeu muito foi o um pequeno pedaço de grama.
vendida. pensen, uma papa de sangue, comparada
com o pudim preto da Grã-Bretanha. Era Alguns fragmentos culinários foram
acompanhado de maçãs cozidas. colhidos com os familiares remanescen-
tes, principalmente os mais vividos, que
MEMÓRIAS CULINÁRIAS Em tempos difíceis, o pap, uma mistu- tiveram a oportunidade de estar mais
ra de leite e farinha (ou amido) com um próximos da época em que os Hereman
Segundo Dirk Lawers, um dos descen- pouco de pão escuro, era muito comum. tinham frequente contato com a Bél-
dentes da família Hereman que atualmen- gica. O bolo cuffe apareceu em alguns
te vive na cidade belga de Temse, no século O konijn met pruimen (coelho com amei- relatos, assim como a bolacha de café e
XIX e início do século XX, nas áreas rurais, xas) é um dos mais clássicos de todos os a batata frita.
havia muita pobreza, o que levou tantos a pratos flamengos. Tem sido amplamente
emigrar para países como o Brasil em busca apreciado desde o início dos anos 1900,
de fortuna. quando o coelho era uma importante fonte

As pessoas costumavam ter um peque-


de proteína para a parte mais pobre da COMIDA BELGA
população.
no jardim e comiam o que produziam. Sem A batata frita é um prato típico belga
que não precisou de adaptações para
ser feito no Brasil, devido ao seu cultivo
abundante. O café, por razões óbvias,
também foi uma grande preferência dos
dois países.

Estima-se que alguns pratos foram


adaptados em função das criações de
porcos, galinhas e gado. Os coelhos po-
dem ter sido mantidos como alimento
tradicional por sua fácil disponibilidade
no Brasil, porém não foram encontrados
relatos relacionados.

Assista ao vídeo

113
Ingredientes Modo de preparo

COELHO COM AMEIXAS


4 colheres (sopa) de farinha de trigo Polvilhe um pouco de farinha em uma
tigela. Tempere os pedaços de coelho de
4 pernas de coelho (ou um coelho ambos os lados com pimenta e sal, depois
inteiro, se preferir)
role a carne na farinha e retire o excesso.
Sal e pimenta-do-reino
Em fogo médio, aqueça um pouco de
Manteiga manteiga em uma panela grande. Coloque
os pedaços de coelho e deixe dourar dos dois
4 cebolas brancas médias
lados, sem cozinhar. Retire da panela. Pique
2 colheres (sopa) de açúcar mascavo as cebolas e adicione-as à mesma panela.
Depois de amolecer, deixe-as caramelizar
250 g de ameixas secas (a melhor é levemente, adicionando o açúcar mascavo.
a meio cozida)
2 ramos de tomilho Pique as ameixas secas e adicione-as às
cebolas. Em seguida, coloque a carne de
2 folhas de louro volta na panela com o tomilho, as folhas de
louro e o cravo.
2 cravos
750 ml de cerveja escura (as cervejas Despeje a cerveja até que todos os in-
escuras de abadia funcionam bem) gredientes estejam cobertos. Para ajudar a
pegar o molho, espalhe uma camada grossa
2 fatias de pão de mostarda picante sobre as fatias de pão,
coloque o pão em cima do coelho e coloque
Mostarda picante
a tampa na panela.
Um pouco de vinagre (opcional)
Deixe ferver por pelo menos 1 hora em
fogo baixo. O passo final é provar o molho,
adicionar sal e pimenta, se necessário, e um
pouco de vinagre, caso esteja doce demais.

Assista ao vídeo

114
Enviada por Dirk Lawers (Temse, Bélgica)
115
Massa Esponja

BOLO CUFFE (OU CUCA)


6 ovos 100 g de fermento biológico fresco

2 kg de trigo 1 xícara (chá) de água morna

2 colheres (sopa) de baunilha 1 xícara (chá) de farinha de trigo

1 lata de leite condensado 1 colher (sopa) de açúcar

1 xícara de açúcar 1 pitada de sal

5 colheres (sopa) bem cheias de


margarina
Dissolva o fermento na água morna,
1 copo de leite morno junte a farinha de trigo, o açúcar e o sal.
Deixe dobrar de volume e reserve.
Esponja (preparada previamente)

Misture todos os ingredientes Recheio


numa vasilha grande, junte a es-
ponja, depois o trigo, mexa bem 500 g de frutas cristalizadas
e, por último, acrescente as frutas
600 g de uva-passa
cristalizadas e as uvas-passas com o
vinho. Obs.: adicione as frutas e as ½ copo de vinho branco
uvas-passas depois da massa bem
sovada e ainda mole; se precisar, co-
loque mais um pouco de trigo por Coloque as frutas de molho no vinho
causa do vinho. branco e reserve.

Farofa
1 xícara de açúcar
1 xícara de trigo
1 colher (sopa) bem cheia de
margarina
40 g de canela

Misture todos os ingredientes e


coloque sobre a massa antes de cres-
cer. Demora mais ou menos 1 hora
para crescer. Ponha em forno baixo
para terminar de crescer.

Ponha a massa para crescer em


uma forma untada com margarina
e forrada com papel-alumínio ou
papel-manteiga, deixando sobra
de papel para cobrir o cuffe, para
quando a massa crescer não cair dos
lados. Assar a cuca até a farofa ficar
dourada.
Assista ao vídeo

116
Enviada por Fernanda Haydée Padilha (Itu-SP)
117
Rijstpap, ou pudim de arroz, é uma Evandro Luis Francischetti

PUDIM DE ARROZ BELGA (ARROZ-DOCE)


iguaria muito famosa na Bélgica. O
rijstpap apareceu no início da história Nascido em 27 de novembro de 1965
flamenga e rapidamente se associou em Engenheiro Coelho (SP), formado em
à vida rural e à simplicidade celestial. Engenharia de Produção Mecânica pela
Afinal, de acordo com um velho di- Universidade Metodista de Piracicaba,
tado folclórico flamengo, o céu nos pós-graduado em Gestão Estratégica de
recebe com tigelas sem fundo de ri- Negócios pelo Instituto Nacional de Pós-
jstpap e colheres de ouro. -Graduação e especialista em Desenvolvi-
mento de Componentes Automotivos pela
Universidade Federal de Santa Catarina.

Ingredientes Autor do livro de poesias Pulsar das


lembranças, lançado em 1987. Grande
1 litro de leite integral entusiasta do resgate das memórias de
seus antepassados, possui atualmente um
150 g de arroz branco (cru) considerável acervo fotográfico e docu-
1 fava de baunilha mental de suas famílias de origem, prin-
cipalmente os Hereman e os Francischetti.
1 canela em pau
Vínculos com a família Hereman
1 a 2 pitadas generosas de açafrão
(se você gosta do sabor e da cor do Joannes Franciscus Hereman e
açafrão, use 2; senão, use 1)* Matilde de Mol. Filho: Johannes Petrus
Hereman.
5 colheres (sopa) de açúcar
Açúcar mascavo para polvilhar Johannes Petrus Hereman e Henriete
Krebsky. Filha: Helena Hereman.

Modo de preparo
Antonio Alves Cavalheiro e Helena
Hereman. Filha: Celina Cavalheiro.
Adicione o leite, o arroz e o açúcar
em uma panela pesada e leve para Alcides Francischetti e Celina
Cavalheiro Francischetti. Fiho: Antonio
ferver em fogo médio, mexendo oca-
Italo Francischetti.
sionalmente com uma colher de pau
para separar os grãos. Adicione a ca-
nela em pau, a fava de baunilha e os Antonio Italo Francischetti e Maria
açafrões, tampe e cozinhe em fogo Aparecida Bonin Francischetti. Filho:
Evandro Luis Francischetti.
baixo por 30 minutos ou mais, até o
arroz ficar macio e absorver o leite.
Não mexa o arroz durante essa parte
do cozimento.

Mexa com uma colher de pau


quando o arroz estiver macio, para
espalhar a cor do açafrão uniforme-
mente.

Descarte a canela e a fava de


baunilha, coloque o pudim de arroz
em tigelas pequenas e deixe esfriar
completamente. Polvilhe com açúcar
mascavo antes de servir.

Assista ao vídeo

118 * Acreditamos que no Brasil esse ingrediente tenha sido eliminado.


Rijstpap
Enviada por Marianne De Coninck (Aalst, Bélgica) 119
FILMES ABAD, héctor. Livro de receitas para mulheres “Não é proibido”. Composição de Marisa
tristes. Tradução Sérgio Molina e Rubia Monte, Dadi e Seu Jorge. Intérprete:
A fantástica fábrica de chocolate. Estados Prates Goldoni. São Paulo: Companhia Marisa Monte.
Unidos, 2005. Direção de Tim Burton. das Letras, 2012.
Gênero: aventura, comédia, família, “Peixe com coco”. Composição de Alberto
fantasia, musical. ALLENDE, Isabel. Afrodite. 5. ed. Rio de Lonato, Josias e Maceió do Cavaco.
Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. Intérprete: Clara Nunes.
A festa de Babette. Dinamarca, 1987.
Direção de Gabriel Axel. Gênero: drama. AZEVEDO, Francisco. O arroz de palma. 20. “Sopa”. Composição de Sandra Peres e Paulo
ed. Rio de Janeiro: Record, 2018. Tatit. Intérprete: Palavra Cantada.
Como água para chocolate. México, 1992.
Direção de Alfonso Arau. Gênero: BORDAS, Marie Ange e as crianças da Barra “Tabuleiro da baiana”. Composição de Ary
drama, romance. do Ribeira. Manual da criança caiçara. São Barroso. Intérprete: Carmen Miranda.
Paulo: Peirópolis, 2011.
Está chovendo hambúrguer. Estados Unidos, “Torresmo à milanesa”. Composição de
2009. Direção de Christopher Miller e BREWESTER, Caroline. Memórias Adoniran Barbosa. Intérprete: Adoniran
Phil Lorde. Gênero: animação, aventura, gastronôminas-Livrodereceitasdeliciosas Barbosa.
comédia, família, fantasia, ficção para você preparar e colecionar. Tradução
científica. Rosane Albert. São Paulo: Publifolha,
2009. OBRAS DE ARTE
Julie & Julia. Estados Unidos, 2009. Direção
I Love Ice Cream, de Romero Britto.
de Nora Ephron. Gênero: biografia, CHILD, Lauren. Charlie e Lola. São Paulo:
drama, romance. Ática, 2014. Mesa de cozinha, de Paul Cezanne.
Kung-Fu Panda. Estados Unidos, 2008. HARRIS, Valentina. Fiori di zucca- Receitas Obras diversas compostas com alimentos, de
Direção de John Stevenson e Marc inesquecíveis e Memórias Culinárias Giuseppe Arcimboldo.
Osborne. Gênero: ação, animação, Tradução Marcos Maffei. São Paulo:
aventura, comédia, família. Publifolha, 2013. SITES
O tempero da vida. Turquia, 2005. Direção HORTA, Nina. O frango ensopado da minha Dilemas da Ivana (www.dilemasdaivana.com.
de Tassos Boulmetis. Gênero: drama, mãe: crônicas de comida. São Paulo: br), com as quinze comidas de desenho
comédia. Companhia das Letras, 2015. animado.
Ratatouille. Estados Unidos, 2007. Direção LISBÔA, Cristiane. Papel-manteiga para Senac (www.sp.senac.br), com cursos na
de Brad Bird. Gênero: animação, embrulhar segredos: cartas culinárias. área de gastronomia e alimentação,
aventura, comédia, família, fantasia. Rio de Janeiro: Memória Visual, 2006. nutrição etc.
Toast – A história de uma criança com MACHADO, Dalcio. Não brinque com a Sesc (www.sesc.com.br), com inúmeras
fome. Reino Unido e Irlanda do Norte, comida. São Paulo: Companhia das ações vinculadas à área de alimentos,
2010. Direção de S. J. Clarkson. Gênero: Letrinhas, 2012. como Mesa Brasil Sesc São Paulo, eventos
comédia, drama. culturais envolvendo literatura, cultura e
PARK, Margareth B. Diversidade, memórias e alimentação etc.
INSTAGRAM culinária. Americana: Adonis, 2011.
The Art Toast Project (www.idafrosk.blogspot.
@casinhabistroporai, da cozinheira nômade WOOD, Audrey. O ratinho, o morango com), com reproduções comestíveis de
Simone Costa, com leituras e discussões vermelho maduro e o grande urso trabalhos de pintores célebres sobre fatias
do universo da gastronomia. esfomeado. São Paulo: Brinque-Book, de pão de forma.
2015.
@comidadegringolivros, com belas fotos de
pratos e viagens feitas por Ana Fonseca, HAMILTON, Gabrielle. Sangue, Ossos & DOCUMENTÁRIO
idealizadora e autora da série de livros Manteiga.Tradução Lucas Murtinho. Rio A Coréia em um prato
Comida de Gringo, em parceria com de Janeiro: Rocco, 2011. Korean PorkbellyRhapsody.Apresentação
Sheila Ward e Manuela Marques Tchoe. de Paik Jong-won. Ano 2020.
MÚSICAS,
@gakugakugakugakugaku1, do artista
Takhiro Kishimoto, com esculturas em “Feijoada completa”. Composição de Chico
SÉRIE
alimentos. Buarque de Holanda. Intérprete: Chico Cooked. Criador Alex Gibney, Apresentação
Buarque de Holanda. de Michel Pollan. Ano 2016.
LIVROS “Moqueca de Idalina”. Composição de Nei
Lopes. Intérprete: Zeca Pagodinho.

120
Patrocínio Produção Cultural Produção Audiovisual Realização

Você também pode gostar