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O Lama e o Economista

Economia e Ecologia
Copyright ©2004 Lama Padma Samten

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RiMa Artes e Textos

Capa
Paulo Pivato e Márcio Martins

S1931 Samten,Padma
O lama e o economista - / Padma Samten e Vitor Caruso Jr.-São Carlos:RiMa,2004.
124p.

ISBN-85-7656-027-5

1. Budismo 2. Economia.3.Ecologia I.Titulo.


CDD 294.3
330

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Agradecimentos
A Percepção do esforço que muitos seres fazem para oferecer o

melhor de si aos outros acompanhou-me durante a realização deste

livro.

Sou muito grato a todos que contribuíram para que este trabalho se

concretizasse, especialmente a Lúcia Brito, que me auxiliou a dar a forma final

ao texto, e a Vitor, por ter percebido a importância do diálogo entre áreas

aparentemente tão distantes quanto o budismo e a economia. Agradeço também

a todos que generosamente se dispuseram a ler a versão preliminar do livro e

deram sugestões para aprimorá-lo, além de encorajarem o projeto com sua

ajuda e coração de Darma.

Durante os encontros com Vitor, lembrei-me muito dos bons amigos do

movimento ecológico e do movimento das comunidades alternativas, dos vários

grupos budistas que tive a felicidade de encontrar, dos mestres cuja sabedoria

tem me guiado nesta aventura de tentar cruzar pelo reino humano da roda da

vida de modo consciente e para benefício de todos os seres.

Agradeço a todos com os quais aprendi e sigo aprendendo e

refaço meus votos.

Lama Padma Samten


Ao Lama Padma Samten, por ter aceitado a parceria neste projeto e
confiado.
A Marília,minha esposa,pela companhia nos momentos difíceis e
apoio constante. A meus pais, por acreditarem, mesmo sem
compreender às vezes.
A todos da Ciência Meditativa, alunos, sócios e parceiros,por
apostarem na possibilidade de transformações.
Aos companheiros do Darma,principalmente os que ajudam nas
atividades do Centro de Estudos Budistas Bodisatva e do Centro de
Estudos Budistas Paramita. A Márcia Baja, pela preciosa ajuda. A Josélia
Rabêlo Avery,pela transcrição do material.A Paulo Pivato,por mais um
projeto de capa.Aos parceiros deste projeto,que colaboraram por meio
dos contatos com o lama Samten.
Um agradecimento especial aos professores de economia da
Universidade de São Paulo (FEA-USP),que me ensinaram que o
conhecimento não estava nos livros, mas no estudo permanente deles e
na dedicação ao conhecimento.
E um último agradecimento a Nenê, o livreiro da FEA-USP: talvez
com ele eu tenha aprendido a maior lição em minha formação de
economista-a importância do diálogo.

Vitor Caruso Jr.


Sumário

Introdução.......................

Capítulo 1 - As limitações da visão econômica........19

Capítulo 2 - Valor econômico e a mente................49

Capítulo 3 - Utopias sociais e econômicas...........69

Capítulo 4 - Sustentabilidade ambiental..................95

Conclusão............117

Referências Bibliográficas....... 123


Prefácio

“Acredito que a simplicidade é o caminho, e a

espiritualidade é o caminho para a simplicidade,

e também o caminho para uma relação melhor

com nós mesmos e com os outros. A espiritualidade é a

base para uma visão ecológica melhor,

uma visão de respeito pelos outros seres."

Lama Padma Samten

Com esse entendimento - e pautado por principios tais como de que

a crise é inerente à forma de pensar e ver; de que o sofrimento é

inerente à fragilidade das estruturas sobre as quais nos apoiamos; e

de que o poder não deve ser visto como o domínio sobre objetos ou

situações, mas sim vislum-brado em uma dimensão mais profunda

ligada à liberdade da visão e da ação -, o lama Padma Samten


discorre sobre economia sob o estímulo de um engenhoso roteiro

preparado pelo discípulo Vitor Caruso Jr.

Já em suas considerações iniciais, lama Samten diz que a

economia traduz uma visão parcial que não pode substituir a visão

ampla sobre o ser humano e sobre a vida em geral e nos alerta para

não deixarmos nossa mente ficar dominada por coisas enormes, uma

vez que a essência da economia pode estar em qualquer nível.

Permeado por esta linha humanista é que o diálogo entre o discípulo

e o mestre se desenvolve.

Nas palavras do lama: "A essência da economia é podermos trazer

benefícios aos outros. A essência de cada ser é a capacidade de gerar

benefícios ao outro, mas isso exige a qualidade espiritual que é a habilidade

de conseguir olhar o outro não a partir de seu próprio contexto, mas a partir

do contexto do outro. (..) O que devemos buscar é a inclusão através da

purificação de nossas paisagens mentais, de nossas emoções e de nossa

identidade. Também devemos prestar serviços incessantes às outras

pessoas, à coletividade e aos seres dos variados mundos".

É dessa fonte amorosa e sábia que valiosas contribuições emergem

para o pensamento econômico. É essa fonte que nos proporciona uma

reflexão sobre temas cruciais da atualidade à luz do budismo, um movimento

universal em constante evolução que, inspirado nos ensinamentos do Buda

Sidarta Gautama, vem há cerca de dois mil e quinhentos anos contribuindo


decisivamente para a elevação da condição humana e a valorização da vida

no planeta.

O diálogo entre Vitor e o lama Samten é iniciado com considerações

sobre economia e a identificação de seus limites no contexto da vida humana

e planetária, e evolui tratando do impacto da estrutura cognitiva em questões

fundamentais como valor econômico e sustentabilidade. Apoiados por essa

fase preparatória, passamos a usufruir um estudo comparado das

contribuições das diversas teorias econômicas, para colhermos ao final a

definição do lama Samten de progresso e o melhor meio de alcançar uma

economia sustentável.

Ao longo do texto, o lama discorre sobre o fato de a economia ser vista

como foco central de atenção de nossa sociedade, desconsiderando fatores

inescapáveis como os aspectos emocionais dos seres humanos e as

conveniências da vida no planeta. Também chama a atenção para o fato de

vivermos em uma cultura na qual impera a ilusão de buscar estabilidade

através de mecanismos precários e que se baseia em estímulos a interesses

individuais que atrelam perigosamente a vida a processos muito frágeis.

Nas palavras do lama: “Para uma sociedade que busca maximizar os números

da economia, o pensamento hedonista se apresenta como um vasto campo de

oportunidades. É fácil imaginar a sequência disso com todo mundo se colocando em

altares e adorando a si mesmo. Esse é um grande engano, mas é o que tem feito a

economia andar. (...)Quando somos 'escolarizados', ganhamos uma estrutura

cognitiva que observa apenas certas coisas. Há uma limitação intrínseca. (...)

Acabamos presos em armadilhas da nossa própria ignorância, movidos por impulsos


internos que nos levam a direções equivocadas. (...) Não temos completa clareza

sobre o que é melhor ou pior".

Dirigir a mente, cultivar uma consciência mais clara e manter vigilância,

especialidade maior do budismo, é a receita do lama Samten para podermos ampliar

a visão a partir dessas estruturas.

Em sua análise, a promessa da economia formal de promover a prosperidade

geral não é confirmada pelos fatos. A economia massificada conspira contra formas

mais humanas de economia. Exemplos disso são a não valorização do trabalho

doméstico e do cuidado das crianças e a dominação de uma cultura sobre outras em

proveito da massificação do consumo.


As instigantes reflexões do texto permitem-nos ainda proveitosa excursão às

teorias dos mais notáveis economistas. De Adam Smith a Keynes, passando por

Malthus e Marx, o lama Samten coteja e comenta temas variados como relações de

produção e emprego; relações de troca e teorias de valor; esgotamento da sanidade

do ambiente e tensão social; preferência à liquidez do capital e concentração de

poder; e razões de Estado, regulações e emprego do poder.

Para o lama, o socialismo tentou reintroduzir os aspectos humanos em

uma economia que perdeu a face humana. No entanto, por cercear a liberdade

e não atender às aspirações de consumo, perdeu sua sustentação. Em

contrapartida, o capitalismo é aceito pelo fato de o empreendedor-apesar de

lucrar com sua própria ideia - criar postos de trabalho e promover a expansão

da economia. Porém, ambos os sistemas se apóiam numa base vulnerável,

qual seja, a do estímulo e atendimento ao crescimento do consumo. “Hoje, o

ópio do povo é o consumo", clama o lama.

Para ele, que faz reservas à assombrosa concentração de capital nos

dias de hoje, há clara distinção entre o capitalista e o empreendedor. Em sua

opinião, a vulnerabilidade das grandes corporações reside em seu interesse

pela acumulação do capital, que muitas vezes se confronta diretamente com o

interesse pela sustentação da vida.

Os riscos da globalização, da forma como ela está ocorrendo, são

evidentes. A primeira prioridade das grandes corporações é a expansão da

cultura, pré-requisito para a expansão de mercado. Isso significa que a cultura

vai sendo
Ao tratar da questão energética- que por permear todas as atividades

humanas é de crucial interesse ecológico, político e econômico -, o lama

chama nossa atenção para o fato de estarmos gastando hoje dez vezes mais

energia por caloria produzida de alimentos do que costumávamos gastar

algum tempo atrás. Ele demonstra que a crise energética é inevitável em um

modelo de desenvolvimento calcado numa demanda que cresce sem parar.

“O budismo andaria em outra direção. Em vez de maximizar os números

da economia, seria maximizada a satisfação em um sentido mais profundo, e

os números da economia seriam literalmente reduzidos. Há vantagens em

reduzir esses índices: a redução do impacto ambiental é uma delas. A

tendência seria associar a simplicidade com a maximização da satisfação e

assim melhorar a saúde, a lucidez mental, o equilíbrio e o acesso à informação

e à previdência. Seria ampliada a capacidade de apoio social às mais diversas

necessidades e seriam beneficiados os processos em que as pessoas

interagissem positivamente."

O lama lembra que o budismo-por ajudar-nos a compreender muito bem

a questão cognitiva e colaborar para diálogos entre posições diferentes-pode

desempenhar um papel nesse processo. Ele propõe a experiência da

internalização individual e da interconectividade através do estabelecimento de

relações positivas com as outras pessoas.

Na visão budista a economia deve ser preferencialmente movida pelo

desejo de beneficiar o outro, em vez de ser movida pelo capital.Nesse

contexto, por exemplo, um investimento só faria sentido se fosse em benefício


de outrem.Por isso a necessidade de criar novos processos para fazer com

que o próprio capital possa atuar de forma mais consciente.

Ao final do livro o lama Samten, de forma concisa e clara, coloca em

destaque o fato de estarmos dentro de um processo pedagógico inevitável

diante da necessidade de enfrentar a visão conservadora das grandes

organizações.

O ponto de alavancagem do processo de mudança é a adoção de um

novo paradigma educacional, uma vez que a educação tradicional, baseada

no isolamento uns dos outros e na obediência às instruções verticais, cumpre

um papel limitador. “Hoje, os jovens vão para a escola, mas não são

preparados para a vida, apenas para a inserção em um mundo artificial."

Partindo das premissas de que a liberdade é nossa característica básica,

de que o mundo em que vivemos é o mundo que construímos e de que não é

necessário que nos defrontamos com tragédias para aprender, ele evidencia a

possibilidade de construirmos futuros mais elevados e lúcidos para todos, “a

partir da nossa lucidez natural e das experiências que já acumulamos como

humanidade".

Completa lembrando que o budismo pode oferecer sua ajuda na

compreensão da causa de nossas dificuldades econômicas e sociais e

também no enfrentamento das dinâmicas organizacionais, através de um

sistema teórico de grande utilidade para dissolvermos as dificuldades,

dissolvendo o que no budismo é denominado "visões heréticas".

Há dez anos tenho me dedicado ao estudo do papel das organizações no

destino da humanidade e, a exemplo do lama Samten, formei a convicção de


que a transformação organizacional deve ser o foco principal de atenções, e

que a forma mais efetiva de realizar isso é promovendo relações positivas

entre as pessoas. A leitura deste livro ampliou consideravelmente o meu

entendimento de como prestar essa contribuição.

Quando falamos de economia encontramos um pensamento explícito e

implícito, formal e informal, que domina a sociedade. É necessária uma

revolução coletiva no entendimento e na percepção das pessoas. Uma

mudança fundamental, uma mudança de consciência, capaz de orientar e

alinhar processos políticos, econômicos e tecnológicos à valorização da vida e

à prosperidade sustentável. Para isso tudo é preciso visão. Uma visão que não

se encontra nos livros de economia, e esta é a grande contribuição desta obra.

Curitiba, outubro de 2004

Rodrigo C.da Rocha Loures

Presidente do Sistema FIEP

(Federação das Indústrias do Paraná)


Introdução
A intenção deste trabalho não é apresentar de forma definitiva ou
profunda o avanço das teorias econômicas, mas levar à reflexão. É
um ponto de partida para meditarmos sobre essas estruturas teóricas
e pensarmos no papel do homem e em sua sobrevivência dentro de
cada uma delas.
O desejo de escrever este livro surgiu em agosto de 2002, em
Curitiba, durante uma palestra no Centro de Estudos Budistas
Paramitta.O lama Padma Samten iniciou os ensinamentos abrindo
espaço para perguntas. Uma delas teve enfoque político-social: como
fica a prática budista diante das várias injustiças no Brasil? Como
meditar tranquilamente sabendo que existem diversas pessoas pelas
ruas sem qualquer oportunidade? Embora a questão não fosse
pertinente ao tema do encontro, o lama falou por uma 1 hora e 40
minutos a respeito da economia brasileira. A lucidez, o pragmatismo e
a simplicidade de seu comentário me impressionaram. Antes que
você diga: “E daí?", vale ressaltar que sou economista. As
explicações do lama Samten tocaram-me pela clareza de suas idéias
e pela forma humana de tratar o assunto.
Ouvi outras considerações do lama sobre economia em
seminários para executivos, empresários e estudantes de
administração. Fiquei convencido de que essa forma de ver os
acontecimentos econômico-sociais deveria ser estruturada e
apresentada, as escolas precisariam começar a repensareus modelos
a partir de uma visão mais social e mais humana das relações de
produção.
No começo de 2003, fiz o convite ao lama para abor.
darmos a visão budista da economia, e ele imediatamente
aceitou.Porém,precisávamos de uma estrutura para abordar o
assunto, e para que o livro se tornasse mais rico e interessante
escolhemos a estrutura utilizada quando se ensina História do
Pensamento Econômico nas faculdades de Economia. Portanto,
as questões e apresentações iniciais seguem os trabalhos dos
seguintes teóricos, nesta ordem: fisiocratas, mercantilistas, Adam
Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, Jean-Baptiste Say,John
Stuart Mill,Karl Marx (e socialismo), Alfred Marshall e John
Maynard Keynes. No último capítulo, pelo rumo que o diálogo
tomou, a eco-economia ganhou relevância, e os trabalhos do
ambientalista José Lutzenberg e do jornalista Washington
Novaes foram fundamentais para essa exploração.
O livro começou a tomar forma no lugar onde a idéia
surgira: em Curitiba, durante um retiro conduzido pelo lama
Samten em junho de 2003. Oresultado de nossas conversas
você lerá a seguir.

Vitor Caruso F.
Capítulo 1

As Limitações da visão
econômica
Era o primeiro de quatro dias de retiro que faríamos com o lama1

Padma Samten. O local era bonito, uma casa próxima do centro de

Curitiba, rodeada por árvores. No grupo havia praticantes que

acompanhavam o lama há quase dez anos, enquanto outros

estavam tomando contato com o budismo pela primeira vez.

Durante o retiro, o café da manhã era servido às 7h30 e os

ensinamentos começavam às 9 horas. Ao meio-dia era servido o almoço

vegetariano. À tarde os ensinamentos eram intercalados com práticas de

meditação. Às 17 horas o grupo realizava atividades físicas e o jantar era

servido uma hora depois.

Nesse intervalo foram realizadas as entrevistas para este livro. No

primeiro dia, eu e o lama nos dirigimos à sala junto ao quarto onde ele

estava hospedado. Lá havia quatro poltronas antigas e confortáveis.

Sentamos, peguei minhas anotações, liguei o gravador e começamos.

VITOR - Dividi os tópicos entre os principais momentos da história

econômica, da economia clássica até os economistas mais

modernos, procurando destacar as linhas de pensamento mais

importantes. Quando estudamos história econômica, normalmente

1
Mestre espiritual, guru, professor. Em tibetano, a palavra “lama” significa ainda
“insuperável" ou "compaixão materna".
iniciamos pelos fisiocratas e pelos mercantilistas. Os fisiocratas são

assim chamados por defenderem uma visão naturalista.

LAMA-O que significa visão naturalista?

VITOR - Os fisiocratas desenvolveram a ideia de ordem natural,

criaram o famoso preceito "Iaissez-fnire, Iaissez-passer" (deixe

fazer, deixe passar) como um movimento contrário ao excessivo

controle do Estado francês.

LAMA-Essa é a visão liberal também?

VITOR - A visão liberal foi melhor desenvolvida posteriormente. O

mercantilismo defende a ideia do governo incentivando as relações,

promovendo o nacionalismo. Na época,o ouro e a prata eram a

forma de riqueza. O primeiro grande liberal foi Adam Smith

(1723-1790), defensor do "laissez-faire", que também criou o

conceito da mão invisível regendo a economia. Em sua obra mais

importante, A Riqueza das Nações, Smith explica a ideia da

especialização do trabalho, que abordaremos mais adiante.

Portanto, é assim que se iniciam os livros de história econômica,

mas é sempre bom ressaltar que, mesmo antes de todas essas

teorias, já havia a questão da relação de troca.

LAMA-Isso está situado no tempo em que época?


VITOR-Estamos falando aqui em 1700, 1800. Porém, o

mercantilismo vem antes disso. A descoberta do Brasil aconteceu

por razões mercantilistas, pela busca de especiarias, exploração de

mercados, de produtos. Portanto, quando falamos de mercantilismo,

falamos de 1500, quando Portugal era a grande potência mundial.

Antes disso não se falava de economia, embora já existissem as

rotas comerciais gregas, os fenícios. Antes mesmo da formalização

da teoria econômica já havia uma questão de necessidade de troca

e determinada.

especialização. Alguns economistas colocarão essa necessidade de troca e de

especialização como inerentes ao homem. O que o lama pensa disso? Essa é

realmente uma característica humana?

LAMA- O fato é que as pessoas começam a teorizar e a estudar as coisas

somente depois que elas ocorrem. Como você comentou, a atividade

econômica é muito mais antiga. É evidente que a economia existiu desde

sempre. Eu diria que o germe do funcionamento da economia é basicamente o

mesmo desde antes das teorias econômicas. Essencialmente,no processo de

troca alguém tem algo que o outro acha interessante. E a intensidade com que

o outro o acha interessante ou não é que irá determinar seu valor.


O surgimento do valor é um ponto que toca diretamente o budismo. Por

que alguma coisa tem valor? Com essa questão encontramos a vacuidade2, ou

seja, a mercadoria não tem um valor intrínseco, o valor é inseparável da

relação sujeito-objeto. Aqui encontramos a vacuidade tocando objeto e

observador. Se olharmos dentro do objeto, não vamos encontrar valor

econômico algum; o valor tampouco está na forma do objeto. O sujeito, por

sua vez, surge como aquele que aspira ao objeto. Na ligação entre objeto e

observador surge o sentido de valor e sua volatilidade - esta ligação pode se

dar em determinado momento e no momento seguinte não maia. A pessoa tem

também seu surgimento e se auto-reconhece como aquela que, em certo

momento, tem um interesse.

Isso é praticado por todo vendedor quando trata de fazer o valor surgir

aos olhos do cliente. Ele tenta criar um comprador e,ao mesmo tempo,

criar um sentido para o objeto. Tenta criar a relação entre eles. Tendo

consciência ou não disso,o vendedor está usando esse aspecto

luminoso3 da realidade, está criando um valor onde antes não havia.

Penso que muitas pessoas, na antiguidade e nos tempos atuais,

compram coisas e depois se desinteressam. Portanto, acredito que o

sentido mais básico está presente desde sempre. Na visão budista,

podemos ver a vacuidade em tudo isso, lembrando especialmente que a

2
A vacuidade refere-se à idéia de ausência de existência inerente, ou seja, o objeto ou a experiência
não possui existência por si. Ele existe por uma composição de fatores. No caso em questão, o valor
do objeto de-pende da existência de alguém que dê valor a ele. Portanto, ele não tem valor inerente.
3
No budismo, a expressão “luminosidade da mente" designa a atividade de criação e
sustentação de significados e emoções. Por exemplo, uma pessoa olha para um pedaço de
papel com tinta e se emociona ao reconhecer a imagem de um ente querido em uma
fotografia.
raiz do processo econômico é a experiência de vantagem que o outro vai

ter a partir de nosso produto. E assim vai surgir a recomendação para

oferecermos sempre o que temos de melhor.

Podemos concluir que o melhor que temos a oferecer às pessoas não

são propriamente objetos. O melhor é oferecer aquilo que vá beneficiar o

outro em um sentido mais profundo e verdadeiro. Isso é o que buscamos

no budismo. É claro que no budismo não há essa noção de economia,

mas, focando a economia como a conhecemos, chegamos a essa

mesma prioridade.Mesmo usando a linguagem econômica não haverá

nenhuma contradição.

VITOR- A respeito da especialização das tarefas, o lama comentou que,

como budista, a pessoa coloca em prática o que tem de melhor. Se

olharmos antes das teorias econômicas, isso remonta ao princípio da

existência humana-temos a especialização entre homens e mulheres, por

exemplo. Entre os índios há uma divisão de tarefas, uma especialização

em diferentes atividades. A especialização é uma forma de se dar o que

se tem de melhor?

LAMA-Acredito que sim. Não podemos separar homens e mulheres da

paisagem4 em que vivem. Nem da paisagem no sentido denso, que é o

4
Paisagem representa a estrutura na qual o indivíduo atua como perso-nagem.Essa
estrutura, em certo sentido, pode funcionar no nível da mente.Nós nos comportamos de
forma diferente em diferentes lugares, pois nos adaptamos a cada um deles, mas o local é
percebido mental-mente, e esta adaptação também ocorre mentalmente.
ambiente onde vivem com os demais seres humanos, com os animais,

com todos os elementos naturais e tarefas necessárias para a vida, nem

no sentido mais sutil, da paisagem mental a partir da qual a pessoa vê

sua própria vida e atribui significado ao que vive. De acordo com o

budismo, essa paisagem mental pode ser muito sutil.

Eu diria que a especialização das atividades,como as relativas a

homens e mulheres, por exemplo, surge de acordo com os recursos da

época nas diferentes culturas desde os tempos antigos. Diferentes

atribuições estão relacionadas a diferenças variadas. As mulheres

carregam os bebês no ventre e os amamentam. Isso significa que

durante um longo tempo carregam junto de seu corpo um outro ser que

tem menos mobilidade,menos capacidade de se defender.A específica

das mulheres adapta-se a isso.Se,por um lado,gera facilidades para elas

quando se trata de procriar e amamentar, por outro,dificulta sua

mobilidade. Já os homens,livres dessa responsabilidade, seguem com a

mobilidade. Então sǎo nahi. ralmente eleitos para as tarefas que exigem

mobilidade.

Para lidar com esse corpo especializado, com as tarefas especializadas, surgem

aspectos mais sutis e psicológicos que também vão se traduzindo em uma

especialização.Acho muito interessante observarmos o que os estudiosos têm

mostrado a respeito de alguns animais. Mesmo animais como tigres ou leões, por

exemplo, devem ser ensinados a caçar, eles participam da cultura de seu grupo. Da
mesma forma eu diria que os homens são ensinados a serem homens, e as

mulheres são ensinadas a serem mulheres. Nesse sentido, surge uma

especialização que é culturalmente preservada não apenas nos sentidos fisiológico e

social, mas no sentido sutil, em que o carma5 e a cultura se fundem.

O que quero demonstrar com isso é que a especialização não é uma novidade e

não se restringe ao reino humano -muito menos à economia. Animais e plantas se

especializam para garantir a reprodução e a sobrevivência. Os seres humanos

também.

5
Carma, ou karmn em sânscrito, significa ação, causa e efeito; todas as açōes causam uma
mudança correspondente.O conceito de carma,base de muitas tradições filosóficas e
espirituais, incluindo o budismo, ex plica que todos os acontecimentos ou experiências
estão relacionados a causas anteriores. O carma também é facilmente aceito pela ciência
por ser semelhante à idéia da lógica racionalista.
VITOR - Pela perspectiva darwiniana de evolução, somos parte de

processos cada vez mais complexos, oriundos das especializações das

pessoas em suas diferentes atividades. E desde o princípio da civilização

há a questão das funções estatais- a função do líder de uma tribo

indígena é semelhante à de um chefe de Estado. Isto nos remete à

primeira das teorias econômicas formais, a dos mercantilistas, que

prevaleceu ao longo dos séculos XV e XVI, tendo Portugal e Espanha

como grandes potências.

LAMA-A questão do Estado é interessante. Quando questionados sobre

a escolha de seus líderes, os índios brasileiros sempre deram a mesma

resposta: “O chefe é aquele que vai à frente na guerra". Isso é algo

profundo, porque revela em primeiro lugar uma liberdade. Os índios

podiam optar por ir ou não à guerra -não sei dizer se todas as sociedades

tribais são assim, mas nessas havia uma liberdade. E aquele que ia à

frente na guerra catalisava o movimento dos outros, pois era o mais

corajoso e decidido. Entre nós ocorre o oposto: o líder é aquele que não

vai à guerra.

O fato de o líder não ir à guerra relaciona-se à ligação dele com a

estabilidade do Estado: o líder precisa ser preservado para o Estado ser

preservado. Essa noção perfeitamente natural dentro do conceito de

Estado formou-se em etapas. No primeiro momento havia a experiência

intuitiva de o líder ser aquele que vai à frente na guerra. Em seguida, o


próprio líder ou o grupo pensa melhor e percebe que aquele com muitas

habilidades deve ser preservado. Como há uma coletividade a ser

defendida, é preferível que ele se mantenha a salvo para

transmitir o conhecimento a outros. Aí surge o Estado e as razões do

Estado, que nem sempre serão a forma de pensar compartilhada por

todos.

O pensamento individual, em um certo momento, se defronta com as razões do

Estado, que são maiores que o interesse do indivíduo. Quando o interesse

individual é vencido por razões do Estado,surge a repressão. É natural que a força

estatal desenvolva formas repressoras.Creio que desse processo surjam a doença

mental e o embrião da futura função da psicanálise.

Isso acontece porque deixamos de ser naturais. O que brota dentro de

nós já não é muito apropriado, precisamos nos ajustar a outras visões;

portanto, nos sentimos divididos, neuróticos, achando que algumas coisas

têm propósito, outras não.

A visão dos povos da terra é uma visão pré-Estado. É uma visão

que não tem essa neurose. Por isso, quando eles entram em contato

com uma sociedade neurótica, seu comportamento parece estranho e

incompreensível, pois não têm repressão na sua sociedade; se estão

com vontade de fazer alguma coisa, fazem. Eles não entendem as

razões do Estado, não entendem as leis, não entendem a polícia.

Isso não significa que biológica ou geneticamente não tenham a

capacidade de compreender esses processos, mas culturalmente estão


em uma etapa que não sabemos se é melhor ou pior. É uma etapa

menos complicada, porque não tem o Estado, a repressão. E nós

estamos completamente ligados a muitas razões estatais, entre elas a

própria família, nosso comportamento, o fato de precisarmos assumir

um emprego. Isso vai dividindo nossa mente.

Assim, surgem os conflitos, pois temos de nos ajustar a muitas

diferentes paisagens construídas. O Estado acabou por derrotar

militarmente os povos da natureza. Eles estavam completos em seu

mundo, mas as outras etnias que vieram tinham razões de Estado, que

são maiores do que os horizontes das vidas de cada um de seus

indivíduos.

Suponhamos que os índios atacassem um grupo de bran-cos. Para a

coletividade dos brancos a guerra não terminaria ali,porquehaveria outros

brancos atrás do mesmo propósito de Estado. Para os índios, a batalha

tem um sentido diferente, eles são um conjunto de indivíduos, mas não

uum Estado em luta;hoje esse grupo tem uma decisão, amanhã pensa

diferente.

Em uum certo momento, a visão do Estado vai introduzir-se na

economia. A visão estatal começa a criar critérios para as liberdades

humanas, e o processo econômico também termina regulado pelo

Estado.
VITOR - Segundo os economistas, o Estado-Nação se move a partir de

razões econômicas. Essa forma de organização vai se guiar por

interesses econômicos ou pelos interesses da classe econômica que

compõe o Estado?

LAMA-A economia simboliza poder. No sentido budista, todos os seres

buscam a felicidade e buscam se afastar do sofri-mento. O poder

representaria os meios hábeis para que isso aconteça. Se temos

produtos de interesse para trocar,podemos oferecê-los para os outros,

obtendo de volta aquilo que produz felicidade e nos protege do

sofrimento. Isso é poder. Por essa razão a economia está diretamente

ligada ao poder.
Entretanto, essa forma de economia apresenta tuma fragi lidade básica. Ainda

que o desenvolvimento venda a idéia de felicidade e segurança, mesmo nas

sociedades economica. mente mais desenvolvidas não encontramos as pessoas

necessariamente mais felizes. E por quê? Porque não sāo os objetos que vão

produzir felicidade. O valor dos objetos nāo está neles próprios, mas em um

processo mais sutil. A satis. fação que a princípio sentimos com um objeto pode

desa-parecer no momento seguinte.

Essa perspectiva econômica contempla a satisfação apenas em nível superficial;

enquanto nossa natureza pertence a um plano sutil, ela tem outros âmbitos de

operação. Quando redu-zimos toda a sociedade a um âmbito econômico, o nível

mais profundo dos seres não é contemplado. Aquilo que verdadei ramente

aspiramos a encontrar não pode ser comprado. Sua Santidade o Dalai Lama diz:

“Não importa quantos recursos tenha ou quanto poder, você não poderá comprar

tran qüilidade, profundidade e afeto". E a vida sem afeto, sem tranqüilidade, sem

profundidade, é uma vida sem sentido. Assim, vamos observar que as pessoas

tentam comprar profundidade de várias maneiras. Uma das formas pelas quais

alguns a buscam é através do consumo de drogas, legais ou ilegais, ou utilizando

substâncias que eventualmente propor cionam outro tipo de experiência.

As experiências obtidas por elementos transacionados economicamente

produzem certo tipo de felicidade, mas hoje está absolutamente evidente que as

pessoas limitadas a tais experiências são infelizes. Portanto, esse é o limite para o

uso) da economia como referencial em nossas vidas. Até é possivel afirmar que a

economia oferece referenciais para o que esteja relacionado ao poder, e ele está

associado a tudo aquilo que nos faz buscar coisas que trazem felicidade e nos

pro-tegem do sofrimento. Mas isso tem um limite, e para o bu-dismo a causa do


sofrimento está justamente no fato de buscarmos felicidade e proteção do sofrimento

em objetos e situações transitórias.

O sofrimento é inerente à fragilidade das estruturas em que nos apoiamos.

Quando a fragilidade se revela, sofremos. Logo,poderíamos refletir sobre as palavras

do Buda,6 de que a razão pela qual nunca encontraremos uma solução final para as

nossas vidas é o fato de estarmos sempre buscando estabilidade por meio de

mecanismos transitórios, encon-trando apenas coisas que nos escapam por entre os

dedos.

Eu diria que hoje isso tem um reflexo muito importante e que talvez não

esteja sendo adequadamente considerado: a falência do homem como um ser

econômico fica muito mais evidente na contravenção, especialmente no tráfico

e consumo de drogas. Nas sociedades de maior poder isso está ainda mais

presente. A solução para a contravenção,vio-lência e drogas não está em

reprimi-los, porque a repressão surge de uma visão incompleta do ser

humano. O homem é reduzido à sua inserção formal no mundo, e sua

expressão mais ampla não é levada em conta.

6. Buda é o título dado a um ser que despertou completamente para o potencial

absoluto da realidade, em especial o Buda Sakiamuni-prín-cipe Sidarta Gautama,que

alcançou este reconhecimento há cerca de 2.600 anos.

Ainda que a violência e as drogas sejam muito negativas, sua origem

está na frustração consciente ou inconsciente que brota da fragilidade de

ideais e da incapacidade de encontrar felicidade através desses ideais.

Não se vê o desequilíbrio mental, as drogas e a violência como uma

perturbação mais sutil, assim como também não há uma visão social para

a saúde mental. A própria preocupação ambiental é muito recente, bem


como a preocupação com cidades mais humanas. Por serem recentes,

acabam se resumindo a aspectos técnicos, como se áreas verdes

bastassem para tornar as pessoas felizes. Essa é uma percepção muito

ingênua da natureza humana. O Ocidente inteiro é assim, e quando digo

Ocidente falo da cultura dominante.

E por que a cultura ocidental se tornou dominante? Porque buscou o

poder e o manifestou por meio do aspecto econômico, e com isso passou

a dominar as outras culturas. Mas isso não significa que essa cultura tenha

compreendido as coisas em uma dimensão mais profunda. Ela traz

consigo muitas contradições, ansiedades e dificuldades.

Essa seria a minha justificativa para afirmar que a economia, por ser

uma visão parcial, não pode substituir a visão ampla sobre o ser humano e

sobre a vida em geral. Ela trata do homem apenas no nível da causalidade

dentro de um universo linear único. No budismo, a realidade é vista como

algo inseparável do observador; portanto, o observador constrói o universo

que habita e pode recriá-lo. Dada essa liberdade de recriação, a

linearidade causal é vista como uma limitação cognitiva artificial a ser

ultrapassada. No budismo, o poder não é visto como o domínio sobre

objetos ou sobre situações dentro


de uma causalidade linear, mas como algo ligado à liberdade da visão e

da ação em uma dimensão que permite esses saltos.

VITOR- A busca pelo poder é o que define basicamente todo o

movimento dos Estados-Nações mercantilistas, que vão buscar seu

desenvolvimento por meio da troca comercial.

LAMA- E é visível que o poder do indivíduo vai ser representado pelo

poder estatal. Quando surge o Estado, as razões dele como um todo

sobrevivem por meio do indivíduo e dão poder ao indivíduo. Há aí uma

associação.

VITOR-As teorias econômicas são obviamente produtos de seu tempo.

Na época dos economistas clássicos havia forte presença do Estado e

um nacionalismo exacerbado, e a consequência foram as guerras. Nosso

quadro atual não é muito diferente. Foi essa circunstância que fez os

economistas repensarem como a economia poderia movimentar-se sem

que o Estado dificultasse o processo.

LAMA-Partindo de uma visão geral, poderíamos dizer que todos

buscamos o poder. O Estado é um instrumento de poder - daí o

nacionalismo e as guerras -, mas se de repente ele se apresenta com

uma face que nos impede de acessar coisas que estão do “outro lado" e

que poderiam ser acessadas através do mercado, então o Estado, em

lugar de ampliar o poder, passa a ser um entrave ao processo.


A visão que você citou é, sem dúvida, uma maneira de enxergar a

forma pela qual a força estatal não precisa ser a intermediária do setor

econômico: quando existe uma cultura global que respeita certos padrões

e o Estado não é mais necessário para que seus valoressejam

suistentados Omercann passa a operar naturalmente a partir desses

valores,aginda de acondo com uma visão compartihada por todos.É

quando as estruturas estatais são dispensadas pelas forcas do mercado.

VITOR-Os economistas clássicos comecaram seus estudos analisando

o que gerava riqueza para o Estado. Preocupa. ram-se com o que

denominaram crescimento econômico de longo prazo, a distribuição de

renda entre as classes sociais e a influência disso no

crescimento.Sempre muito focados na questão dos bens,

consideravam trabalhadores produtivos aqueles que criavam riqueza

material.Outro conceito impor-tante é o de excedente econômico, que

gerará a acumulação de riqueza na teoria clássica. Segundo Adam

Smith, se esse excedente econômico fosse parar na mão de

latifundiários, seria gasto em supérfluos; porém, se fosse para as mãos

de um capitalista,geraria investimento. Smith foi um dos pri-meiros a

defender a frugalidade - não gastar em supér-fluos-e a dizer que o

dinheiro excedente deve ir para os capitalistas porque eles têm

condições de investir e, com isso, gerar mais riqueza. Esses são os

dois conceitos básicos dos economistas clássicos.


LAMA-E nós assumimos esses valores, o que significa que, de novo,

estamos colocando o poder no sentido convencio-nal. Nesse

processo,pode ser que as prioridades do ser hu-mano e da natureza

surjam como algo supérfluo, quando na verdade não o são; ainda que

não percebamos, as conse-qüências são inevitáveis e se revelam a

longo prazo. Essa visão depende da cultura da sociedade.


35

Podemos afirmar que a visão e a capacidade de planeja-mento são fatores

decisivos para a preservação do Estado, da cultura, da economia. Ou seja, é

prioritário ampliar a capaci-dade de olhar adiante e nos encaminharmos como

sociedade para uma direção mais favorável. Mas não é uma questão do que

ou quanto produzir, é um processo muito mais sutil.

Com essa visão de expansão incessante da economia sur-gem as

doenças sociais e a destruição ambiental, e a vida em nosso planeta está

ameaçada. Na linguagem econômica, ve-mos que os custos do sistema

de produção podem se tornar altíssimos. Nos cálculos usuais não se

incluem as doenças sociais e a destruição ambiental, mas seu impacto é

enorme e pesa sobre a sociedade.

VITOR-As teorias econômicas clássicas tinham por premissa básica o uiso de

recuursos de forma ilimitada. Adam Smith desen-volve essa teoria e passa a

defendê-la, obviamente, pelas ques-tões do Estado, que ele chama

de"laissez-faire, laissez-passer", ou seja, o governo atua apenas como um

facilitador do processo.

LAMA-Do ponto de vista econômico, de uma economia que busca poder

e busca oferecer bens, isso é razoável, acho que funciona assimn. Mas

aquele furo inicial continua, pois dentro dessa visão as pessoas se

transformam progressivamente em seres econômicos, em consumidores.

O que é uma visão muito restrita, porque não dá conta de outros fatores
nos seres huma-nos.É a história contada pelo economista. Já a história

contada pelos terapeutas e educadores mostrará outros aspectos.

VITOR-Quando Adam Smith começa a desenvolver sua teo-ria a partir

das premissas comentadas anteriormente, ele

36
O Lama e o Economista

afirma que a causa da riqueza de uma naçãoétrabalho

humano, e este pode gerar um produto maiorou menor

dependendo de dois fatores: a forma pela qual oshomens se

organizam e dividem o trabalho e a proporção de trabalha.

dores produtivos em relação aos improdutivos.Com isso,

desenvolve-se a idéia de divisão do trabalho.Ofamoso

exemplo de Adam Smith é a fábrica de alfinetes; em A Riqueza

das Nações ele descreve o processo de produção do alfinete,

subdividindo o trabalho em produzir a cabeça, fazera ponta

e cortar o arame.

LAMA-A questão não é mais a felicidade ou o equilíbrio das pessoas ou das

nações, ou mesmo a sustentabilidade, é a es-pecialização alienante. Cada um

cuida de uma parte em um grande processo. E essa teoria torna-se uma forma

de racio-cinar universalmente aceita.

Temos um substrato cultural representando um conjunto de experiências, e

esse conjunto de experiências torna-se a base a partir da qual criamos teorias.

Mas, quando surge uma teoria, passamos a ver apenas determinadas coisas. A

exis-tência de uma teoria nos convida a restringir o olhar. Vemos tudo por meio

dela, e o que a teoria não vê também não enxer-gamos. Isso é o que chamamos

de avidya' no budismo, ou

7.Avidya é o primeiro dos 12 elos da originação interdependente; significa


ignorância, delusão, cegueira múltipla, é o processo que nos prendeà
experiência da roda da vida. É através de avidya que surge a roda da
vida.Avidya nos impede de reconhecer a natureza ilimitada. Alheios a essa
natureza de luminosidade, passamos a viver em circunstâncias
limitadas,estreitas.
37

seja, fomos "escolarizados".Quando isso acontece, ganha-mos uma

estrutura cognitiva que observa apenas certas coi-sas. Há uma limitação

intrínseca.

Todo o processo de escolarização, todo o processo cogni-tivo é,

portanto, um método que explica certas coisas, mas que também deixa

paradoxos em outras áreas. E o paradoxo é justamente aquilo para o

qual não encontramos resposta, para o qual a teoria não é

suficientemente abrangente. Diante dos paradoxos, a resposta é sempre

a mesma: “Ainda não sabemos, mas mais adiante a teoria explicará isto

também". Toda a ciência teórica, como a física, defronta-se com áreas

das quais consegue explicar os fenômenos e realmente fun-ciona. Todos

aprendem aquela teoria e vão repetindo um certo padrão de expectativas.

O olhar para a realidade sem-pre respeitará certos fatores que se tornam

repetitivos e apa-rentemente óbvios. Porém, não são suficientemente

abran-gentes e, mais adiante, surgem regiões obscuras, paradoxais.

Entre essas regiões paradoxais está a forma pela qual os objetos

adquirem valor. Isso não está sendo contemplado. Há uma flutuação em

decorrência da virtualidade desse pro-cesso e, como seres humanos que

se tornam peças de uma estrutura de inteligência não humana, não


estamos atentos a isso. Simplesmente vamos trabalhando em um

esquema de produção, submetidos à impermanência do valor do que

pro-duzimos e à insatisfação que brota de modo incompreensível e

aparentemente injuustificado.

Não importa se o trabalho é especializado ou não, se o custo da

produção é esse ou aquele. Aquilo que antes tinha valor agora não tem

mais. E qual a razão disso? Essas são

38
O Lama e o Economista

regioes paradoxais,regiöes de sombras ao redor de uma vi. sāo. Hoje,

por exemplo, eu não aconsclharia as pessnaga montarem onerosas

estruturas que desrespeitem a visan ecológica e as leis ambientais,

porque é óbvio que isso acarre. tará problemas logo adiante.

Há uma série de parâmetros, e em meio a eles poderíamos encontrar

alguns referenciais espirituais para a nossa visāo. Não se trata mais de

como aumentar a produção a um custo ainda menor, ou de como acessar

outros mercados. A ques-tão é que das sombras pode vir o predador, ou

seja, repenti-namente nosso produto deixa de ser interessante, perde o

valor. Isso não quer dizer que o alfinete tenha se tornado menos perfeito

do que sempre foi - nós é que não preci-samos mais de alfinetes.

VITOR-A semente da visão liberal começa a germinar quan-do Adam

Smith diz: "A busca do interesse de cada um leva ao mais inesperado

dos resultados, a harmonia social". Se-gundo ele, a soma dos vários

interesses individuais levaria a um interesse geral convergente.

LAMA-Essa é a essência do pensamento conservador. Enāo digo isso

como uma crítica. Temos uma cultura em que u grande número de

pessoas se acostuma a um determinado padrão -e isso não significa que

esse padrão seja livre de problemas.Na verdade, o rebanho inteiro passa

por vários problemas, mas há um conjunto de expectativas cognitivas

operando na mente de cada um, o que acaba por determinals uma visão

coletiva. É natural que haja uma convergência puad essa visão, as ações

se tornam convergenles. É um pensamento


39

conservador porque essa grande massa tem pouca mobili-dade. É

conservador porque sua tendência é ficar arraigado; mesmo que algumas

pessoas apontem os obstáculos dessa visão, é muito mais fácil

manter-se dentro dela.

Neste ponto fica óbvia a inevitável tensão entre as visões

conservadoras que se cristalizam e o surgimento natural de visões mais

modernas. Na linguagem budista, o pensamento conservador que se

estrutura e luta para se perpetuar por meio da repetição seria a própria

estruturação social do carma. As visões modernas que vão surgindo

enfrentam a resistência do que já está cristalizado. Socialmente, há um

intervalo de tempo entre o despertar da consciência indi-vidual e vontade

individual de mudança e a mudança social do grupo preso ao antigo

padrão.

Da mesma forma que para nós como indivíduos é difícil abandonar o

açúcar branco, o arroz branco e a carne, mesmo que esteja claro que

deveríamos fazê-lo, para a sociedade como um todo é difícil abandonar a

noção de que podemos jogar lixo em qualquer lugar, de que podemos dispor

do am-biente como quisermos, de que podemos correr a qualquer velocidade

com os carros. Nossa tendência é buscar a satis-fação nessas coisas, e

sustentamos a visão de que a economia vai atender a esse conjunto de

buscas que coletivamente se manifestam como um mercado, como uma

demanda geral.
Isso teve reflexos importantes na recente história brasi-Ieira. No início

dos anos 80, o Brasil possuía uma política de proteção do mercado

interno, mas uma parcela importante da população, ávida por consumir

coisas que não existiam no país, acabou por conduzir à abertura de

nossa economia.

40
O Lama e o Economista

Dentro desse paradoxo, também vemos a dificuldade da govenos de

esquuerda em imprimir uma política mais nacia. nalista e voltada ao

cidadão, o que seria a tendência natural. Os govemos não conseguem

implementar seus programas porque, no momento em que se busca uma

política de Van-guarda, há uma resistência geral, quue é o processo

conser-vador. Adam Smith parece apostar nisso.

O movimento ambientalista vê o conservadorismo com muita

preocupação porque, segundo a visão de muitos ecolo-gistas, talvez não

seja possível corrigir a tempo os desequi-liíbrios desencadeados. É como

se tivéssemos produzido cer-tos tipos de comportamentos que

inexoravelmente vão des-truir o planeta. Mesmo que esteja claro o que

vai acontecer e tentemos intervir, o processo conservador internalizado

coletivamente nos impede.

Há uma lucidez em Adam Smith ao ver e usar essa “inér-cia ativa".

Acho que ela produz realmente uma ação de mer-cado. Mas essa ação

de mercado, esse sucesso de mercado, não garante nem a estabilidade

do Estado, nem a estabili-dade da sociedade, o que, aliás, não é o

objetivo.

Se simplificadamente tomamos o processo econômico como a

essência do que ocorreu na história, deixamos de lado outros elementos

que dela participam, quer estejamos cons-cientes disso ou não, como a

inclusão social, os aspectos emo-cionais dos seres humanos e até

mesmo a questão da susten-tabilidade da vida no planeta. Também não


são contemplados movimentos sociais importantíssimos para a história,

como a dominação dos povos e de suas culturas umas pelas outras.

Esses diferentes temas acabam entrando em questão como

Diáfogos sobre Budismo, Economia e Ecologia 41

aspectos acessórios incômodos, nos quais a visão conserva-dora mostra

claros limites teóricos de abordagem, de lingua-gem ou de ação concreta.

Observe-se, por exemplo, que a pressão da cultura con-sumista

chinesa sobre a cultura budista tibetana não tem relevância dentro da

visão econômica, mas é de grande importância histórica, até mesmo por

ter produzido uma grande transformação cultural no Ocidente pela

presença forçada dos mestres budistas tibetanos em nosso meio. Pela

perspectiva econômica, a estabilidade do Estado iraquiano é muito mais

importante que a recuperação da autonomia tibetana, ainda que

culturalmente a preservação da cultura budista tibetana seja de grande

valor e talvez fundamental para a sustentabilidade do planeta e para

desenvolvermos uma compreensão mais profunda de nós mesmos.

A limitação da visão econômica como referencial social não permite

sequer a valorização do trabalho doméstico e do cuidado das crianças.

Também não valoriza a preservação das culturas que não têm inserção

econômica formal.

Outra questão importante é que a economia massificada vai eliminando o

que resta de humanidade no sistema. Como essa economia de escala não é


de fácil acesso, ficam lacunas, tanto no nível emocional como no nível de

justiça social. Uma visão política dependente da visão econômica não tem

elementos teóricos para tratar da exclusão social e de todas as tensões

resultantes.

Todos nós,seres humanos, sempre tivemos capacidade de trazer

benefícios aos outros seres e ganharmos por meio disso uma existência

verdadeira, uma inserção no mundo. Dentro

42
O Lama e o Economista

de uma economia muito simples não havia propriamente

desemprego,pois todos faziam alguma coisa que tinha sen.

tido.Com o surgimento de uma economia de escala, algumas

pessoas são contratadas e outras não. E então surge o fato de que

mesmo pessoas como nós, escolarizadas, podem nào encontrar

espaco no mercado de trabalho. Isso é espantoso, não é?

Em uma sociedade primitiva, as pessoas sempre trabalha-ram e

nunca houve desemprego. As pessoas não tinham informação, não

tinham universidade, pós-graduação, mas tinham acesso positivo ao

mundo das relações, tinham identidade social. O fato é que havia

opções de trabalho que não dependiam de limitações como as que

temos hoje.

No atual horizonte mental, a economia formnal dá a im-pressão de

contemplar todas as necessidades válidas e justas, quando na verdade

isso não acontece. Essa estrutura limitada parece ser a única forma de

inserção social e econômica; no entanto, não é assim. Na verdade,

quando uma pessoa se pergunta: "Eu tenho capacidade de beneficiar

alguém?", e ouve dentro de si uma resposta afirmativa, ela já está

auto-inserida socialmente. Desenvolvendo a habilidade de ser receptiva,

capaz de entender os outros no contexto deles e trazer benefícios,

naturalmente surgem formas criativas de inserção no processo

econômico, mesmo que fora do mer-cado formal de trabalho.


Para uma pessoa escolarizada as dificuldades são maiores, pois

só conseguirá entrar no processo econômico através de um certo

padrão, e, portanto, não vê outras possibilidades. Voltamos aqui ao

conceito de avidya -no budismo, essa

limitação de visão é nvidya, é a ignorância, simbolizada por um cego tateando

com sua bengala. A escola e o processo educacional como um todo

transmitem uma visão limitada na qual não vemos alternativas para nós

mesmos. Daí sur-gem o desemprego, a crise social, e, evidentemente, a crise

social não se resolverá dentro dessa macroestrutura. Não há como. Dentro da

visão econômica conservadora não há lin-guagem nem espaço mental para

incluir sequer as culturas sustentáveis dos chamados povos da terra, dos

nativos.

Não consigo entender por que os políticos de esquerda também estão

presos nisso. Eles acreditam que, expandindo a economia, vamos avançar de

forma verdadeira. Porém, não é essa economia em expansão que

proporcionará nosso real crescimento. É necessária outra maneira de

administração econômica. É muito fácil entender as limitações inerentes a

esse processo. Nas décadas de 1960 e 1970, os economistas e os ecologistas

estudaram bem a questão.

A limitação dos investimentos tem por conseqüência um excedente de

mão-de-obra que gera pressão e uma série de complicações. Portanto, esse

modelo frágil e dependente está falido em certo sentido. Se nos limitarmos a

imaginar que a economia de escala tem de absorver essas pessoas, vamos


considerar o crescimento econômico como única alternativa. É o que os

governos de todos os países fazem hoje.

A crise é inerente à forma de pensar e ver. Não é um problema que afete a

uns e não a outros. Um amigo que mora na Suíça, uma pessoa encantadora,

diretor de uma importante fundação, me disse recentemente: "Meu filho fez

pós-graduação. Eu o enviei para a América do Sul, onde ele


43
44
O Lama c o Economista

viajou por vários paises para aprender espanhol. Também fmi para a

América do Notte estudar inglés. Vivetr em várinn ambientes e agora

não há emprego para ele mesmo assim". Ou seja,é uma pessoa de

berço, culta, mas sem inserçān no mercado.Na Europa também há

pessoas desempregadase subempregadas, como no Brasil.

Presos à mesma forma de pensar,seguimos como todos os países,

afirmando que precisamos crescer,imaginando que, quando formos

maiores, os problemas se resolverāo. Não nos damos conta das

dificuldades que a experiència de paises economicamente maiores

estão apontando. Isto é avidya, cegueira cognitiva, impossibilidade de

ver além do mundo limitado da mente condicionada.


O crescimento segundo essa abordagem econômica e hu mana limitada não

só não resolverá nossas atuais dificuldades, como presumivelmente gerará

pressões em outros níveis. Como se viu nas décadas de 1960 e 1970, o

crescimento econò-mico produz um impacto ambiental crescente e inevitável ao

avançar sobre os recursos naturais- represamento de rios, ampliação da fronteira

agrícola, construção de usinas alimen tadas a carvão, etc. Felizmente, as usinas

nucleares estão cain: do em desuso, mas o efeito estufa naturalmente se

desenvolve na esteira do espantoso aumento do consumo de petróleo.

No caso do Brasil, constatamos felizes que o país é pratt camente

auto-suficiente em petróleo. A expansão da pro dução petrolífera

brasileira foi gerida corretamente para ds seus propósitos e representa

uma grande vitória para es brasileiros, mas é muito importante


perceber que esl prioridade veio da inserção nas esferas social,

ambientale

Diálogos sobre 'Budismo,Economia e Ecologia

psicológica segundo a visão limitada conservadora. E ela não prioriza as

conseqüências ambientais do efeito estufa.

Precisamos encontrar maneiras de introduzir novos con-ceitos nos

processos econômicos, mnas como ele se defende? Manipula, tenta se

perpetuar, o que torna muito difícil uma reformulação.

No passado, vi os pensadores ecologistas tentando usar a linguagem da

economia para quantificar o custo da destrui-ção de um rio ou da poluição da

atmosfera por meio das conseqüências negativas que posteriormente teríamos

de consertar. Deveríamos buscar números econômicos para a expansão dos

desequilíbrios psicológicos e para as aflições sociais também. Quer tenhamos

conhecimento desses números ou não, eles terminam por aparecer e acabam

embutidos como custos de produção e impostos.

Do ponto de vista budista, estamos falando de carma, ou seja,as

conseqüências de nossas ações inevitavelmente surgem. Estamos dizendo

também que a visão econômica não pode ser o referencial do

desenvolvimento humano por ser demasiado limitada e sem instrumentos para

lidar com questões muito mais sutis. Estamos lembrando que a falta de lucidez

não nos deixa imunes às conseqüências inevitáveis e que, se não nos dermos

conta, terminaremos surpreendidos por negatividades construídas ao longo do


percurso. Entre os elementos negativos que surgem para nos surpreender,

temos a expansão do poder paralelo de grupos que passam a desafiar nações.

Acredito que um país como a Colômbia, por exemplo, cujo submundo é

irrigado pelos dólares dos países ricos, que são os consumidores da cocaína

lá produzida, deveria
45
receber o apoio econômico desses mesmos paises para lidar com

as decorrentes dificuldades internas. A ajuda econômica seria o

simples reconhecimento da responsabilidade dos países de

Primeiro Mundo por não saberemlidarcom as crises humanas em

sua sociedade, que desembocam no consumo de drogas legais e

ilegais.

Os países ricos deveriam entender que seus ativos econô-micos

alimentam a subversão dentro do território colom-biano -e de outros

países. É preciso compreender que os colombianos não são pessoas

malvadas que vêm atacar seres ordeiros como se vê nos filmes. Eles

não inventaram a droga nem os laboratórios, nem fabricam as armas

que portam. As drogas, os laboratórios e as armas se voltam contra as

cul-turas que as produzem e que as utilizam. Assim é o carma.

No Brasil,devemos entender que é nossa economia que financia

o submundo dos morros. E o mesmo submundo busca o poder e

ataca as pessoas que o custeiam. Um pai pode não ser drogado,

mas o dinheiro dele termina no bolso do filho, que por sua vez

alimenta as drogas, que alimenta o submundo que afetará o próprio

pai. De onde mais viria esse dinheiro?

É necessário entender que o desequilíbrio humano, social e

ambiental que brota da visão social limitada, da visão da economia,

faz surgir fluxos econômicos que alimentamestru turas de poder

desestruturadoras. Essas questões terão de ser trabalhadas.


46
O Lama e o 'Economista

No âmbito de saúde mental, os setores público e privado

têm aumentado os investimentos para auxiliar pessoas


46
O Lama e o 'Economista
47

doentes. É um efeito colateral não noticiado, mas inerente ao uuso do

processo econômico conservador como política social. Mais adiante

talvez alguém diga: "Melhor do que corrigir é fazer a profilaxia. É melhor

e mais barato que as pessoas não adoeçam". Hoje já se sabe que ajudar

as crianças a terem uma vida familiar equilibrada é muito mais barato do

que albergá-las ou interná-las em instituições públicas. Aos poucos as

questões abandonadas surgem dentro da linguagem e da paisagem

econômicas limitadas.

VITOR-Voltando ao tema do desemprego:em dezembro de 2003, quase

20% da força de trabalho de São Paulo estava desempregada, o índice

mais alto já registrado. Parece que nosso modelo produtivo que busca

menor custo gera outro problema: uma massa social de desempregados.

LAMA - Em questão de emprego, acho que há um outro aspecto: a falta

dele não significa inatividade econômica. Isso deve ser olhado com muito

cuidado. Creio que muitas pessoas desempregadas têm uma atividade

econômica produtiva, fazem alguma coisa.

VITOR-O índice é medido pela procura de emprego.

LAMA-Nós,empregadores e empregados, estamos presos, em certo

sentido, à noção de emprego. Em relação à década de 1980, podemos

ver uma série de vantagens que simplesmente desapareceram. Porém,

ainda estamos presos a uma certa noção de estabilidade e insistimos em


buscá-la da mesma forma. Fazer parte do processo econômico não mais

significa estabilidade.

48
O Lama e o Economista

VITOR-Quanto ao impacto ambiental, diferentes estudosjá apontaram

que não há recursos naturais suficientes para que o padrão de

consumo do Primeiro Mundo seja adotado pelos países em

desenvolvimento.

LAMA - Esta é outra grave questão que surge ao colocar o

crescimento econômico como um fim em si mesmo. Entre o final da

década de 1960 e o início da década de 1970, vários estudos

mostraram que, se a agricultura indiana adotasse os padrões

ocidentais de produção, não conseguiria atender ao consumo de

energia gerado.

Com as novas tecnologias, a agricultura deixou de ser uma fonte

de energia há muito tempo. A humanidade sem-pre plantou e se

alimentou sustentada pela energia obtida dos alimentos. Com as

tecnologias modernas, temos propor-ções de dez por um, ou seja,

gastam-se dez vezes mais energia para ter os alimentos do que a que

eles oferecem. A agricultura deixou de ser uma fonte energética para

se tornar um setor dependente do petróleo. O planeta está cada vez

mais suscetível a essa condição. De novo, devemos retornar ao


ponto: qual a lógica, qual o processo de decisão que nos levou a crer

que tal situação é favorável?


segundo dia de entrevista - e de retiro-aconteceu em uma sexta-feira

um pouco nublada. Utilizamos o mesmo horário de intervalo entre as

atividades da tarde e o jantar. Dessa vez os preparativos para nossa

conversa ocuparam menos tempo.

Nosso diálogo começou pelas teorias do economista David Ricardo

(1772-1823), que deu forma ao sistema de economia clássica.

VITOR-Ontem falamos sobre a questão do valor. Essa era a principal

preocupação de David Ricardo. Ele se volta para o problema do poder

de compra tentando corrigir a inflação da Inglaterra em sua época, no

final de 1700, início de 1800. Para David Ricardo, o preço de alguma

de coisa é determinado pela quantidade de trabalho nela incorporada,

ou seja, o va-lor é dado pelo custo em trabalho. É a teoria do

valor-trabalho. Atrás do preço de um objeto está o valor, atrás do valor

estão os custos de produção e atrás dos custos de produção está o

trabalho humano. Essa é a primeira parte da teoria. Depois ele diz: “A

oferta e a procura explicam as oscilações dos preços em torno de um

determinado patamar. Mas o patamar é definido pelo valor-trabalho. As

obras de arte não têm seu valor definido pelo trabalho, mas a exceção

não invalida a regra em geral".

LAMA- Do ponto de vista budista isso é um pouco estranho. Dá

margem a criarmos algo muito laborioso, mas sem utilidade. Vamos

supor que o custo de um Fusca seja maior que o custo de um Gol. Por
que o Fusca não seria fabricado e vendido? Porque as pessoas não se

sentiriam beneficiadas.

52
O Lama e o Economista

Não pagariam o valor do Fusca. Talvez pagassem seis ou sete mil

reais por um Fusca novo, porém, o valor nesse caso não diz respeito a

um custo propriamente, mas ao que as pessoas esta-riam dispostas a

pagar. Por outro lado, como isso não é com-patível, naturalmente ele

não será fabricado. Portanto, eu diria que a essência do preço está

ligada diretamente ao benefício que o produto possa oferecer aos

olhos do comprador.

Portanto, percebenos outra vez a natureza de vacuidade dentro de tudo

o que possa ser criado. Se algo é produzido, alguém tem de se sentir

beneficiado; se não for assim, não haverá sentido para qualquer custo. O

preço é irreal. O que pro-duzirá o preco de alguma coisa é essencialmente o

benefício que alguém veja nela.Objeto e observador são inseparáveis. Essa

é uma visão muito importante presente no budismo.

Acredito quue essa visão já é partilhada pelas teorias de marketing. O

marketing tem o poder de dar valor às coisas-não porque reduza ou

aumente o custo de produção, mas porque trabalha com a noção de que

o objeto é inseparável daquele que o observa. O marketing valoriza o

papel do observador. A visão budista trabalha diretamente com o papel

do observador, com a inseparatividade. Não nos referimos isoladamente

aos objetos, mas a uma experiência de objeto que surge da

inseparatividade entre objeto e observador. O preço dos objetos provém

dessa experiência.
Nesse sentido, acredito que a visão das pessoas que trabalham em

marketing, mesmo que a motivação seja manipular a mente dos outros,

é mais profunda que a forma de pensar ortodoxa da economia. No

budismo, a visão mais ampla produz compaixão pelos que sofrem

presos a seus

53

mundos limitados, sem conseguir sair. Como conseqüência, surgem os

bodisatvas, aqueles que se dedicam a ajudar os outros a se libertar de

suas próprias criações.

VITOR-Os benefícios atribuídos a um bem não poderiam ser observados

a partir da oferta e da demanda?

LAMA-Creio que essa é uma boa combinação entre oferta e demanda e a

visão de Smith. Se um objeto é desejado, ele começa a ter preço. Por

outro lado, se há muita oferta, o valor do produto reduz-se porque ele

estará disponível para muitas pessoas. Então, naturalmente, a aspiração

por aquele objeto diminui. No sentido budista, acredito que isso nos

remete à visão cultural. Há um movimento conservador, uma cultura que

produz a experiência coletiva de valor a partir dela mesma.

Portanto, quando nos referimos à oferta e à demanda como aquilo que

define o valor, estamos nos associando a um aspecto conservador, o que

pode ser um problema. Como já vimos, as fixações a comportamentos


cultural-mente aceitos podem levar toda uma população ou a natureza à

destruição.

Em termos budistas, é necessário que o produto não só pareça favorável ao

consumidor, como também deve ser de fato favorável dentro de uma visão

mais ampla. Se nos estruturamos a partir de coisas aparentemente propícias,

mas que não são verdadeiramente favoráveis, esse procedimento terá de ser

abandonado em um determinado momento.

8. Em sânscrito,bodhisnttoa, ser de grande compaixão que busca a iluminação para

ajudar todos os seres.

54
O Lama e o Economista

Éo que acontece, por exemplo, com os automóveis. Todos se sentem

beneficiados, mas os veículos produziram uma grande transformação nas

cidades, que progressivamente vão sendo projetadas para o fluxo de

carros. Ainda que os centros urbanos se adaptem aos veículos, estes

talvez sejam um problema para a humanidade, pois consomem vasta

quantidade de energia, movimentam muitos materiais e entopem os

espaços, produzindo uma série de dificuldades. Talvez ainda não

tenhamos encontrado uma solução melhor. O fato de existir procura não

significa que haja sabedoria em tal procura. Hoje se pensa em

alternativas para o automóvel e para os combustíveis.

A oferta e a demanda carregam aspectos ilusórios consigo, são

construídas. Ainda que haja interesse por uma merca-doria durante

algum tempo, repentinamente, alguém produz algo novo e o outro

produto torna-se obsoleto.

A questão do automóvel parece muito óbvia quando apresentada

assim, mas temos uma grande dificuldade para lidar com ela de forma

prática. É o caso de São Paulo, Los Angeles, Rio de Janeiro,Nova York,

México, Tóquio, Madri, Roma e mesmo Paris, onde os carros acabaram

por desestru-turar a vida das pessoas.

VITOR-Nesse ponto surge a questão ética e filosófica que é sempre

levantada: o que é verdadeiramente bom? Como sair desse impasse?


LAMA-No mundo condicionado nunca conseguimos tra-balhar

com coisas totalmente brancas ou totalmente pretas. Algumas

vezes o contraste será mais nítido, noutras nāo.


55

Nossa atitude deve ser de vigilância dentro da motivação correta, ou seja,não

vamos fechar os olhos. As decisões de hoje serão sempre possiveis dentro da

visão atual, mas, apesar disso,devemos nos manter abertos. Nosso

movimento é como uma caminhada cujo panorama muda a cada passo.

Portanto, devemos estar constantemente abertos e atentos.

Aquele que, antes de qualquer passo, conseguir antever o próximo

panorama, terá uma vantagem. No budismo, isso se conecta com um

ponto muito profundo: como surge a visão de hoje? Ela não é apenas a

nossa opinião, mas algo estruturado dentro das paisagens mentais

segundo as quais estamos operando. Na ciência, especialmente na

física, isso fica muito claro, porque há um conjunto de expectativas que

antecipa a própria visão. É como se houvesse questões naturais e a

resposta já estivesse presente dentro da própria pergunta. A réplica está

presa à estrutura de expectativas. Essas terminam por se fundir com a

cultura e com as identidades. A partir dessas estruturas arraigadas

passamos a manifestar pressupostos.

Para o budismo, isso seria o nosso carma, a manifestação de

estruturas de ignorância, estruturas rígidas. O esforço budista é no

sentido de ampliar a maneira pela qual olhamos a partir dessas

estruturas e fazer surgir o reconhecimento de que o que vemos ou

deixamos de ver não depende da luz que entra pelos olhos ou dos fatos

que aparentemente estão diante de nós. Depende de nossas estruturas


internas. Assim, tentamos gerar liberdades em relação às visões atuais e

às estruturas cognitivas de expectativas, ampliando as possibi-lidades de

visão.

56
O Lama e o 'Economista

Resumindo,não temos completa clareza sobre o qe é melhor ou pior.

Devemos, sim, é manter a vigilância e nos esforçarmos para enxergar mais

amplamente. Para isso é preciso uma consciência mais clara a respeito de

nossa9 estruturas de expectativas. Uma vez que tais estruturas oferecem

visões, acabam por nos cegar para outras maneiras possíveis de olharmos as

coisas. É necessária, portanto,a capacidade de ultrapassar as próprias

estruturas.

VITOR-David Ricardo tornou-se famoso pela "teoria das vantagens

competitivas". Segundo Ricardo, as nações deveriam se especializar

na produção daquilo para que estão melhor aparelhadas. Em

seguida trocariam os excedentes com as demais nações, e todas

seriam beneficiadas. Um exemplo apresentado por ele foi Portugal e

Inglaterra-a primeira deveria especializar-se em vinho, e a segunda,

em tecidos.A teoria caiu por terra a médio prazo mediante a

constatação de que, em certos setores da produção, é melhor que a

nação gere o produto internamente, mesmo que não haja grande

eficiência, pois ainda assim contribuirá para a riqueza interna.

LAMA-Observando a Europa, percebemos que os países preferem

se manter produzindo em suas áreas agrícolasdo que importar tudo,

ainda que o custo seja muito maior do que em países como o Brasil,

por exemplo. As nações se tornam muito frágeis quando não há uma

base mínima de produção agrícola. Alguns setoresdeprodução são


estratégicos - a alimentação é um deles -, e a estruturi estatal pode

se tornar muito vulnerável se não incentivá-los.

57

O raciocínio de Ricardo corresponde a uma visão numérica das partes

econômicas que, como já vimos, não é suficientemente abrangente, pois há

outras questões com as quais a economia tem dificuldade lingüística e

cognitiva de lidar. Por outro lado, se essas questões não são abordadas,

tornam-se custos sociais em outras áreas, como a ambiental, por exemplo. À

medida que esses números avançam sem que as demais questões sejam

consideradas, surge uma desarmonia que gera uma custo econômico que

deveria ser levado em conta.

Muitas vezes me pergunto como a visão econômica conseguiu se impor

como referencial humano. A resposta que me ocorre é que essa visão não

vem em substituição à sabedoria, mas como um avanço parcial. A sabedoria já

estava perdida. Os limites impostos pelas metas de saneamento econômico

parecem duros e aflitivos para as pessoas,mas o desequilíbrio não se originou

aí- é óbvio que o que gastamos não pode ultrapassar o que produzimos.

Nesse sentido, a visão dos economistas vem em nosso auxílio.

Sem a visão econômica, impulsionados por outros carmas, imaginávamos

que os recursos eram infinitos, agora aprendemos a trabalhar limites. A

questão é que essa forma de olhar serve apenas para ordenar situações, mas

não se constitui em um referencial humano que possa conduzir a humanidade

e o conjunto dos seres vivos a uma existência mais satisfatória.


Em nossa atual situação, é importante entender os limites econômicos e

obedecê-los,mas pensar que apenas expandir a economia é uma solução em

si seria um engano. Éaqui que

58
O Lama e o Economista

encontramos as fronteiras da economia como referencial cognitivo e nos

vemos desafiados a introduzir uma viaan mais ampla e uma linguagem

que tenha instrumentos para acompanhar essa forma de enxergar. Aqui

entra especialidade maior do budismo.

VITOR-Depois de David Ricardo,surge um economista célebre pela

polêmica. Trata-se de Thomas Malthus (1766. 1834), cuja teoria não

se confirmou. Segundo Malthus, miséria que assola a sociedade é

decorrência do fato de o ser humano reproduzir-se muito mais do

que deveria. Em set estudo, defendeu que a humanidade aumenta

de forma geométrica, enquanto os meios de subsistência desenvol

vem-se em progressão aritmética. Isso fatalmente geraria miséria, o

que não se comprovou até hoje. O fato é que atual mente se

produzem mais bens e alimentos que o necessário. A fome está

ligada à má distribuição, não à produção. A teoria de Malthus foi

muito discutida, muito combatida,mas é interessante por abordar a

forma pela qual o homem se multiplica.

LAMA-Essa questão não está bem resolvida. Em suas criticas. os

ecologistas usam muito esse raciocínio. Vamos supor que hoje

sejamos seis bilhões de pessoas no planeta. Em 20 anos serão 12

bilhões, o que nos leva a concluir que com mais 21 anos teremos 24

bilhões. Esse é o raciocínio de Malthus.


Precisou-se de um tempo longo para a humanidade chegar aos

seis bilhões, mas para atingir os 12 bilhões serào necessários

apenas mais 20 anos. Isso é realmente explosivo. Podemos pensar

que não há como chegara 12 bilhðes porqule

nāo existem condições, mas seguimos nos multiplicando. A taxa de

crescimento demográfico no Brasil baixou, mas a população segue crescendo,

juntamente com a média da longevidade. E isso está ocorrendo em todo o

planeta.

Ao mesmo tempo, há intensa busca por terras agricul-turáveis. O Brasil vai

continuar expandindo suas lavouras e causando grande impacto ambiental.

Outra questão é o esgo-tamento da água potável. Apesar de ser um bem

renovável, haverá escassez e será necessário reciclar e tratar a água através

de processos cada vez mais complexos, aumentando seu custo. A produção

de lixo é outro problema, e o destino dos dejetos está fora de controle em

muitas cidades por todo o planeta.

Quando a população dobrar, provavelmente seu impacto ambiental também

dobrará. Não só pelo aumento do número de gente, mas também porque cada

indivíduo consumirá mais do que se consome hoje, assim como nós

consumimos mais que nossos antepassados.

É claro que a tecnologia poderá se desenvolver a ponto de reduzir os

impactos da produção, mas ao final haverá um empate entre essas duas

tendências, entre o aumento de consumo e a sofisticação tecnológica O fato é


qule a demanda sobre o meio ambiente dobrará, enquanto o ambiente já

mostra sinais de decomposição. Paul Ehrlich (1932), um antigo estudioso das

questões ambientais, disse recen-temente que as perspectivas melhoraram

um pouco graças à reducão do crescimento populacional, mas calculou que a

população deveria se estabilizar em dois bilhões e não nos afuais seis bilhões

ouu em projeçōes ainda maiores, como nove


59
ou 12 bilhões de pessoas. Tamnbém calculou que o custo ambiental

do barril de petróleo é de quatro dólares.Assim, esse valor deveria

ser adicionado ao custo de mercado para ser investido na correção

dos danos ambientais.

Essa talvez seja a primeira marca malthusiana, o esgota-mento do

ambiente onde vivemos. Vemos a atmosfera mais vulnerável, a

deterioração do ar, temperaturas mais elevadas nas regiões urbanas e a

extinção de espécies vegetais e animais. Portanto, 12 bilhões de seres

humanos é um número insustentável. Talvez isso não chegue a acontecer.

Seguindo esse raciocínio,poderíamos aplicar a teoria malthusiana

à abordagem da tensão social. À medida que as limitações do

ambiente aumentam, crescem os distúrbios na sociedade,pois

alIgumas pessoas se apoderam do que resta, enquanto outras

permanecem sem nada. E o desequilibrio se alastra tanto em países

desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento ou em pobreza

extrema.

Creio que a visão malthusiana poderá explicar outras tensões. Seis

bilhões de pessoas a mais significa que precisamos investir

proporcionalmente em mercado de trabalho para todos, para que a

produção possa seguir.A economia tem de se expandir para dar conta

dessa explosão. Porém, os indivíduos com acesso aos bens e a um certo

padrão de consumo talvez não estejam dispostos a restringir seu nível


60
O Lama e o Economista

econômico para incluir o outro. Então vão surgir tensões. A insegurança

urbana é um fato. Há pessoas nas ruas semeando insegurança. No

universoemque elas se encontram, essa parece ser a melhor opção, pois

se sentem excluídas.Muitas não têm acesso ao processo econômico.

Diálogos sobre Budismo,Economia e Ecologia

No entanto, um contraponto à teoria malthusiana do esgotamento das

reservas de matérias-primas é o fato de que, quando o custo de um material

sobe, vamos atrás de outras reservas e por fim as encontramos. O petróleo se

esgotaria a dez dólares o barril, mas se o preço for de 30, 40 ou 50 dólares,

será encontrado mais desse combustível. À medida que o custo aumentou, o

Brasil começou a explorar plata-formas marinhas profundas. Se o preço caísse

para o patamar de dez dólares, quem sabe se o país não retomaria a

impor-tação de grandes quantidades, uma vez que a exploração se tornaria

pouco lucrativa! Existe essa ligação econômica entre o custo presente, ou

projetado, e o volume das reservas

Entretanto, quando trabalhamos com recursos da natu-reza, estamos

prospectando por tempos limitados. Estudos dos anos 60, como o do

Clube de Roma intitulado Limites do Crescimento, levaram esse fato em

consideração, ou seja, criaram cenários em que as reservas conhecidas

serviram de base para imaginar o que poderia ser prospectado. Isso

porque seria impossível imaginar os valores econômicos das jazidas


minerais no futuro. A despeito dessa falha, um dos aspectos mais

notáveis do estudo feito por cientistas do Massachusetts Institute of

Technology (MIT) para o Clube de Roma é que, mesmo em cenários com

recursos ilimitados, teríamos problemas graves se mantidos os objetivos

de crescimento com taxas fixas, e isso levaria a uma necessária

reestruturação global da economia. Nesse estudo, por exemplo,foram

mencionados pela primeira vez a deterio-ração da camada de ozônio e o

aquecimento global.
61
62

O Lama e o Economista

Creio que a visão malthusiana já se revela na escassez.de capitais,na

degradacão do meio ambiente e na insegurana urbana. A guerra do Iraque, a

expansão do consumo de drogas legais e ilegais e o aumento dos desequilibrios

emocionais também são outras facetas do problema.

VITOR-Então,Malthus estaria certo,precisaria apenas atua-lizar sua teoria?

LAMA-Não há como negar que vivemos em uum planeta fini-to, mas

perseguimos a idéia de que é possível alguma estabili-dade pela expansão

da economia a prazos fixos. A única solução seria atingir um patamar de

estabilidade sustentvel para a atividade econômica, no qual estaria

incluída a preser-vação de reservas, rios limpos,

reflorestamentos,etc.Com-portamo-nos como se tivéssemos o direito de

roubar os meios para o futuro de nossos filhos e netos. A falta desses

referen-ciais só nos deixa mais frágeis. No futuro, com criatividade,

poderemos nos tornar menos agressivos ao ambiente.

VITOR-Na seqüência de economistas,gostaria de citar Jean-Baptiste

Say(1768-1832), francês que ficou famoso pela teoria que leva seu nome,

a Lei de Say, uma variação da lei da oferta e da demanda que afirma que a

superprodução geral é im-possível, pois há um limite de produção a partir

do qual o bem perde seu valor.Defensor do "laissez-fnire,

Iaissez-passer",Say foi expulso da França porNapoleão por este não

concordar com a forma pela qual o economista defendia as leis de

mercado.
LAMA-Essa visão poderia ser encarada até como ecológicali

seria o mesmo que dizer "vamos deixar como está e tudo se

Diáfogos sobre Budismo, Economia e Ecologia


63

arruma". Mas essa não é a questão, a questão diante da visão

econômica é: "Qual é o atalho para evitarmos o sofrimento resultante das

tensões que inevitavelmente surgirão?". Assim, nos antecipamos em

relação a certos resultados. Acredito que aqui o Estado tenha um papel a

desempenhar, não com uma visão convencional e conservadora como as

que já mencionamos, mas estimulando grupos de ação

não-governamentais que cumpram tarefas importantes de

conscientização, tentando cruzar mais rapidamente as transformações

em prol do melhor.

VITOR-O economista John Stuart Mill (1806-1873), famoso não só pelas

teorias inovadoras, mas também pela história e posições pessoais,

discordava de Malthus e argumentava que, se a população não

aumentasse proporcionalmente ao crescimento de capital, os salários

subiriam e o consumo de luxo dos trabalhadores suplantaria o consumo

de luxo de seus empregadores. Ele acreditava que, à medida que os

trabalha-dores aprimorassem a inteligência, sua educação e seu amor à

independência aumentariam. Com um nível de educação melhor, a

classe trabalhadora diminuiria seu nível de cresci-mento, possibilitando

melhor relação de capital e emprego

LAMA-Josué de Castro (1908-1973), o grande geógrafo brasileiro que

dedicou a vida à luta contra a tragédia social da fome, mostrou em seus


estudos que a taxa de natalidade naturalmente se reduz à medida que a

educação da popu-lação avança. Isso é muito bom, mas é preciso educar

com valores positivos, caso contrário, ampliamos os problemas, o

consumo e o desperdício. A população norte-americana,

64
O Lama e o Economista

por exemplo, altamente educada, consome hoje muito mais do que a Índia e a

China em termos absolutos, embora a po-pulação desses países seja muito

maior que a dos Estados Unidos.

Como nossa análise segue a abordagem budista, vamos lembrar que

provavelmente foi esse privilégio da economia numérica, ou seja, o número

como algo desejável, que levou a uma expansão da economia além da

necessária. Essa econo-mia monetária gera uma visão sem qualquer

mecanismo de auto-regulação, uma visão que apenas demanda mais

expansão.

Do ponto de vista demográfico, uma pessoa pobre pode ver nos filhos a

possibilidade de apoio no futuro, concluindo que é interessante ter muitas

crianças. Já uma pessoa com mais estabilidade financeira pode ver os filhos

como aqueles que vão competir por seus bens. Ou seja, se tiver mais

descendentes, terá de educá-los, terá de dividir seus bens entre mais pessoas,

e tudo se torna mais complicado.

VITOR-Parece que uma sociedade na qual um dos filhos da família é

destinado a ser monge, em que os valores espirituais e o celibato

estão presentes, é mais estável e ecologicamente sustentável. A

sociedade tibetana preserva esses costumes.

LAMA-Dentro do budismo, acredito que sempre houve a tradição

monástica, o que não significa que ele não opere dentro da


tradição leiga. Olhando de forma mais profunda, ainda que a

tradição monástica seja importante, não é necessariamente

indispensável.
65

É possivel perceber um aspecto social na questão monástica, pois um

grande número de pessoas optará por não ter filhos, não ter familia,e isso

pode trazer um certo equilibrio, não só pelo aspecto espiritual, mas também

pelo aspecto econômico da questão. Esses indivíduos também vão se dedicar

ao aprofundamento de suas experiências de vida e colaborar para o

estabelecimento de uma visão mais profunda para a sociedade.

A instituição monástica também pode acolher pessoas desprovidas de

condições mais favoráveis, pois dentro de um mosteiro se vive com muito

pouco, com poucas complicações e, ao mesmo tempo, com um grau de

educação muito elevado. Isso poderia ser muito atraente mesmo nos dias de

hoje.

VITOR-Para falarmos de Karl Marx (1818-1883), precisamos trazer à tona o

conceito socialista. Para explorar a divergência, considera-se que o

capitalismo tem por característica essencial a propriedade privada do capital e

da terra e como motivo predominante o lucro, que sustenta o mercado.

LAMA-A tendência ainda é conservadora, as pessoas tendem a satisfazer

seus próprios interesses. É claro que encon-traremos gente que não é

individualista, com uma visão mais profunda da realidade, mas de modo geral

esses indivíduos são minoria. Isso não significa que no futuro não haverá uma

visão global, ampla, mas esse é nosso problema hoje.

O socialismo vai se apoiar inexoravelmente na educação. Ele

sustenta a idéia de que, por meio do ensino, os seres


O Lama e o 'Economista

humanos se tornarão naturalmente socialistas, e assim surgirá uma

paisagem que tornará possível a implantação do sistema. Mas talvez o

ato de educar não toque o que é real. mente necessário, porque, à

medida que seguimnos pensando isoladamente, tendo felicidades e

sofrimentos autocentrados, a educação não tem esse poder de

rompimento.

O Dalai Lama disse: "Eu sou socialista, talvez mais do que os próprios

chineses". O budismo sustenta a visão de ajuda ao próximo, de alegria pelo

fato de transferirmos para o outro os benefícios que viriam para nós. Esse

tipo de educação é necessário.Portanto, o que se contrapõe ao socialismo

talvez não seja exatamente o capitalismo, mas o movimento conser-vador,

que pode mudar e tomar outras feições que não apenas o capitalismo

clássico. Temos de entender que muito antes da noção capitalista já havia a

economia, na qual cada pessoa tinha clara a noção de vantagem para ela e

para os outros também.

A economia sempre funcionou, ela só não tinha essa

noção econômica de capitalismo. Não acredito que o

socialismo encontre dificuldades apenascom a doutrina

capitalista. Ele encontra seu oposto dentro de uma visão de

individualidade, na qual o indivíduo pensa somente em sell

benefício e nunca no do outro. No socialismo, é do Estad00


papel de pensar no outro, eé daí que surgirão a tensão entre

cidadãos e a força estatal, que acaba se tornando totalitária

para impor sua visão. Isso termina por destruir0

Estado

socialista.

Curiosamente,o Estado totalitário depende de uma elile que entenda todo

o processo e que esteja acima dos outros.

Diálogos sobre Budismo, Economia e Ecofogia


67

Isso resulta em uma nova divisão, que de forma geral sempre

prevaleceu.Hoje se tenta um novo "socialismo capitalista" por meio de

impostos e políticas sociais, ou seja, há um esforço em direção a uma

política fiscal cujo excedente possa se reverter para o bem comum. Esse

capitalismo também apresenta graves problemas e é combatido pela ala

conser-vadora, que afirma que o avanço social deveria acontecer através

de um equilíbrio natural, sem intervenção.

Enquanto os países socialistas têm, em teoria, uma série de

preocupações, entre elas as ambientais, o capitalismo libe-ral seria

completamente selvagem, o que torna muito difícil compatibilizar seu

processo econômico com os referenciais ecológicos, humanos, sociais e

psicológicos. Acredito que, neste momento, o sistema capitalista europeu

seja mais avan-çado do que o norte-americano, pois contempla a

economia de forma mais ampla. A economia da "social-democracia"

européia torna-se mais viável a longo prazo do que um sis-tema

desenfreado, porque nesse tipo de pensamento econô-mico sem visão

social e ambiental muitas “deseconomias" não estão sendo

contempladas, mas com certeza serão cobradas.

VITOR-Parece que a solução mais interessante é um caminho do meio.

LAMA-Acho que o socialismo real apresenta-se como um capitalismo

social. É claro que ele tem outros problemas, como a corrupção, por

exemplo, mas isso não o invalida, porque podemos enxugar, arrumar e


tentar melhorar o processo. Quando muitos grupos ficam atentos ao que

está acontecendo e se abastecem com um fluxo intensode

68
O Lama e o Economista

informações, pode haver melhor aproveitamento de recursos. No Brasil,

a dificuldade talvez resida no fato de a máquina do Estado e a dívida

pública consumirem vasta quantidade de recursos, não permitindo que o

efetivo bene-fício social seja visto.

Capitulo 3

Utopias sociais e

economicas
Sibado, 21 de junho de 2003.Pela manha,o lama havia dado

ensinamentos sobre a natureza última da mente, a forma pela qual

construímos nossas experiências. À tarde as práticas de meditação

tomaram a maior parte do tempo, a princípio sentados, depois

caminhando em fila, a passos lentos.

Este seria nosso último encontro durante o retiro, e começamos a

conversa retomando a discussão sobre socialismo.

VITOR-Ontem começamos a falar sobre o socialismo, que assim se

divide: o estatal, no qual a participação do governo se dá em um

contexto capitalista, de forma que o governo adquire e opera setores da

economia; o utópico, que considera injusta e irracional a economia de

mercado capi-talista competitiva, abordando o conceito de arranjos

sociais imperfeitos e trabalhando em uma forma de convencimento para

que todos operem sem um mecanismo estatal forte-mente regulador; o

cristão, que oferece aos trabalhadores o conforto da religião para aliviar

suas dores e lhes dar esperança,repudiando a violência e a luta de


classes e defendendo reformas na saúde e educação, legislação fabril e

cooperativa; e, por último, o marxista, que apresenta novamente a teoria

do valor-trabalho, acrescentando a teoria de exploração dos

assalariados pelos capitalistas.

LAMA-Não sei se a palavra "socialismo" se aplica da forma como

imaginamos. Seria necessário adotar referenciais que incluíssem

efetivamente certos elementos que nāo sāo contemplados pela

economia tradicional, como o equilibrio

72
O Lama e o Economista

do individuo consigo mesmo, em sua relação com os outros, com a

coletividade e com o ambiente natural. Esses elemen-tos se manifestam

quando tudo começa a andar mal.Nāo conseguimos antecipar essas

desarmonias e, ao mesmo tem-po, se tentamos fazê-lo surge a sensação

de perda ou desvan-tagem. Essencialmente, acredito que falta a

introdução desses referenciais.

Não vejo necessidade de abandonarmos a propriedade privada. Em uma

sociedade como a nossa,isso pode ser uma boa opção para uma pessoa com

visão social e ecológica. Esse indivíduo pode utilizar seus bens para o benefício

social-ele não buscará lucro para si mesmo, mas, dentro de uma estrutura de

livre iniciativa, transformará os lucros de sua empresa em uma fonte de renda

para o trabalho social. Não há problema algum nisso.

Entretanto, quando pensamos em socialismo, surge inevitavelmente a

idéia de um sistema ligado a alguma forma de poder. Isso acontece

porque as pessoas não estão muito conscientes do que seria necessário

para implantá-lo. Essa falta de clareza pode levar a situações como a que

produziu o golpe militar no Brasil em 1964. Não podemos dizer que houve

apoio popular ao golpe, o que houve foi a concordância de muitos setores

que temiam o socialismo. Depois, houve um processo de acomodação

mediante as políticas economicas do governo da ditadura, que

incenti-varam a mnelhoria de vida da população. Isso competia com a

visão idealista e política que defendia a revolução e a fransformação

social como caminho para as melhorias.


O que aconteceu no Brasil depois do golpe de 64 repetiu-se por toda a

América Latina. Como forma de se contrapor à transformação social, os

governos militares fascinavam as pessoas com a possibilidade de acesso

à economia,aos bens de consumo.

Hoje as organizações sociais seguem visões econômicas muito

semelhantes às dos governos conservadores, estão dominadas pela visão

convencional. Mesmo entidades de classe e sindicatos, que deveriam ser

organismos de vanguarda para a transformação social, acabam se

acomodando dentro do olhar conservador que procura garantir a satisfação

das pessoas apenas pelo acesso aos bens de consumo. Não há uma postura

revolucionária, há apenas uma busca por vantagens salariais,

estabilidade,previdência social. Portanto, talvez não seja possível introduzir

uma visão socialista que prescinda de uma grande transformação de

consciência.

O que se constata é que os sistemas que têm o socialismo como

forma de governo, mesmo os que sobrevivem até hoje dialogando com o

capital, como a China, adotam posturas de opressão às lideranças

naturais. O Estado segue estruturado de uma forma muito limitada e

conservadora, abandonando a noção revolucionária em favor de uma

economia mais aberta. Eles adquiriram um dinamismo que vem do

empreendedor. Mas, por outro lado, não abriram mão do processo de

liderança e domínio político.


Se as pessoas e os governos incorporaram a visão conservadora e

perderam o aspecto revolucionário de trans-


73
O Lama e o Economista

formacão social como base de igualdade entre os individuos,

então onde essa utopia tem se manifestado atualmente? Em

pessoas empreendedoras que percebem que podem tentar

coisas diferentes.

VITOR-O regime estatal brasileiro dos anos 70 foi consi-derado

bem-sucedido por ter conseguido levar produtos de consumo para uma

parte miserável da população.

LAMA-Não podemos esquecer que naquela época também houve um

endividamento muito grande do Brasil. Captamos recursos no exterior

para alavancar a transformação.

VITOR-A frase de Marx de que a religião é o ópio do povo deu margem a

várias perseguições, inclusive na China e no Tibete,e foi uma justificativa

teórica para a opressão.

LAMA-É verdade,mas isso só valeria dentro da perspectiva de um

socialismo revolucionário. Hoje o ópio é o consumo, as pessoas se

acomodam por meio do consumo. E os governos socialistas atrelados à

visão conservadora não oferecem religião, mas oferecem consumo como

ópio.
Na China de hoje, como resultado da combinacão de estrutura

autoritária e consumo,temos algo muito parecido com o que aconteceu

logo após o golpe de 64 no Brasil:um governo ditatorial oferecendo

progressivamente o consumo. Naquele período, o Brasil crescia 10% ao

ano, e o sonho das pessoas era comprar um Fusca, um Corcel.O sonho

utópico havia desaparecido.Acredito que na China o sonho utópico

também tenha desaparecido e que o que as pessoas querem é consumir.

75

No caso doTibete, o aspecto principal da perseguição aos monges budistas não

foi a religião em si. O quc houve foi a represão à autonomia da lidcranca natural dos

monges na sociedade tibetana.Quem conhece o budismo tibetano está ciente do

poder natural que os lamas adquirem por se dedicarem às pessoas. Hoje a religião é

permitida desde que as lideranças se submetam ao Partido Comunista, o que é

praticamente impossível, pois os lamas são seres livres por definição. Como

submetê-los? A repressão religiosa na China estende-se aos cristãos e aos

muçulmanos, cujos líderes também são convidados a se submeter. A situação não é

diferente entre as religiões tradicionalmente chinesas.

VITOR-Pode parecer desconexo abordar Marx e logo em seguida citar o

golpe de 64, China e Tibete, religião e ausência do sonho utópico. Mas o

fato é que o ideal de revolução para criar uma sociedade igualitária

estava na essência dos movimentos reprimidos em 1964 no Brasil e na

revolução cultural chinesa, que acabou por justificar muitas atrocidades

realizadas no Tibete.
LAMA- Eu não diria que o regime chinês é revolucionário, mas talvez um

regime que amortece a consciência. Não existe na China a vontade de

produzir grandes utopias sociais. Como citei anteriormente, Sua

Santidade o Dalai Lama se diz mais socialista que os atuais dirigentes da

China. Ele afirma iso porque sua visão é de um socialismo

democrático,no qual, por meio de um processo representativo

verdadei-ramente democrático,busca-se o que é melhor para todas as

Pesoas.O primeiro passo é reconhecer o fato de que todos

6
O Lama e o Economista

os seres desejam a felicidade e todos desejam se afastar do sofrimento. A

partir disso, tenta-se montar uma estrutura social.

De acordo com essa visão, uma pessoa não consegue ser feliz sozinha.

Ela está atenta às necessidades dos outros. Porém, para que isso seja

efetivO, é necessário que pelo menos parte da população passe por uma

transformação de consciência. Na abordagem budista, essa transformação

começaria pelo reconhecimento de que todos os seres têma natureza de

Buda, todos temos lucidez. Por outro lado, cada um vai caminhar a partir

do ponto onde estiver. Os ensinamentos produzem a transformação de

mentalidade. Para participar do processo econômico, as pessoas precisam

gerar a capacidade de beneficiarem umas às outras.

No budismo não vai se falar propriamente em economia, em dinheiro,

mas em méritos e carmas. Para um bom desempenho econômico é preciso

gerar méritos. E o que significa isso? É a capacidade de produzir algo que

seja de interesse para os outros. Quando somos capazes de fazer coisas

reconhecidamente boas, nos tornamos indispensáveis dentro da estrutura

em que operamos. Se o que produzimos é indispensável, a estrutura irá

nos sustentar economicamente.

Porém, como já visto, nós nos enganamos em relação àquilo que

efetivamente pode nos oferecer felicidade e segurança. Nesse sentido, a

religião pode desempenhar papel muito importante e se tornar


completamente indis-pensável. Ela cumpriria o papel que a educação

possui no regime socialista.

No caso do socialismo, o ensino será insuficiente se nǎo levar à

transcendência, pois a crise existencial não será resolvida, e a compaixão, o

afeto e a felicidade serão im-possiveis.Nessas circunstâncias, as pessoas se

voltam para o hedonismo, para o autocentramento como fator determinante de

seu interesse no mundo, de seus relacionamentos,assim como de sua ação

econômica. O indivíduo está voltado para o benefício próprio. Seu

autocentramento e auto-suficiência são estimulados pelos muitos sonhos que

se vendem, como o de possuir uma propriedade, por exemplo. É como se a

casa fosse um lugar de domínio da pessoa, lá ela ficaria comple-tamente

auto-suficiente, segura e independente dos outros. É um sonho feudaI no qual

o ser humano se imagina no centro de uma vasta propriedade, com tudo

girando a seu redor, e ele está seguro, tudo de que precisa está ali.

De uma forma ou de outra, ainda buscamos esse sonho feudal nos dias de

hoje, talvez dentro de um apartamento maior ou de uma casa com um grande

pátio. Com isso exacerbamos nossa individualidade e não participamos de

processos coletivos pelos quais poderíamos nos ajudar mutuamente a reduzir

a necessidade econômica individual sem perder a qualidade de vida.

Para uma sociedade que busca maximizar os números da economia, o

pensamento hedonista se apresenta como um vasto campo de oportunidades.

É fácil imaginar a seqüência disso com todo mundo se colocando em altares e


adorando a si mesmo. Esse é um grande engano, mas é o que tem movido a

economia.
77
O Lama e o Economista

Obudismo andaria em outra direcão. Em vez de maximizar os

números da economia, seria maximizada a satisfação em um sentido

mais profundo,e os números da economia seriam literalmente reduzidos.

Há vantagens em reduzir esses índi-ces:a reducão do impacto ambiental

é uma delas. A tendência seria associar a simplicidade com a

maximização da satisfação, e assim melhorar a saúde, a lucidez mental,

o equilíbrio, o acesso à informação e à previdência. Seria ampliada a

capa-cidade de apoio social às mais diversas necessidades e seriam

beneficiados os processos em que as pessoas interagissem

positivamente.

Para isso é necessária uma base estrutural. No socialismo, essa base

seria a educação; no budismo, a realização espiritual-precisamos estar

aptos a perceber uma forma de vida mais simples como uma vantagem.

A economia é facilmente promovida explorando-se o egoísmo, o

hedonismo.Com a exacerbação do autocentra-mento, vamos nos

afastando mais e mais uns dos outros.Creio que chegamos a um estágio

em que o individualismo doentio já está se refletindo na economia através

das "desecono-mias"-as pessoas estão infelizes e com isso tornam-se

menos produtivas.Como resultado,temos necessidade de cada vez mais

psicólogos,médicos, psiquiatras, spas, terapeutas e terapias,pois os


seres humanos estão precisando de socorro. Precisam de apoio para se

manter ativos.

O desequilibrio se intensifica e parece não ter fim.Encon-tramos

profissionais que são literalmente consumidos pelo processo de

producão. A pessoa é contratada,consumida

durante cinco ou dez anos e depois é simplesmente descar-tada.Nese

momento, salta uum parafuso da testa dela,pornão agientar a idéia de ser

jogada fora. Na seqüência, a empresa traz outros profissionais,

fresquinhos e prontos para avançar. Alguns indivíduos entram em um

desequilibrio de longa duração. Acredito que as doenças mentais se

tornaram uma epidemia não só porque o diagnóstico está mais

preciso,mais presente, mas porque os seres humanos estão

constantemente submetidos a situações de stress dentro de um âmbito

no qual a única coisa que interessa são os números. Lá pelas tantas salta

um parafuso!

Ouvi relatos de uma empresa que contrata recém-formados ou

estudantes de jornalismo como estagiários, submete-os ao stress do

trabalho, mas nunca os efetiva. Depois de um tempo, os “estagiários"

desistem ou são dispensados e substituídos por outros. O descarte para

a contratação de gente nova acontece em vários setores. Quando o

número de postos de trabalho é muito menor que o de candidatos, as


pessoas sofrem abusos. O stress de quem consegue manter-se

empregado decorre não apenas do excesso de trabalho, muitas vezes

mal remunerado, mas também do medo de perder o emprego e ser

substituído.

Talvez fuja um pouco de nosso foco, mas é importante lembrar que as

pessoas sempre trabalharam na infância; porém, a atividade fazia parte

do processo de educação e integração social. Hoje o trabalho infantil viro

assunto de policia, visto que as crianças são vítimas de abusos ainda

maiores que os adultos. O que antes era uma atividade


79
80
O Lama e o Economista

educativa realizada no ambiente familiar transformou-se em simples

exploração de mão-de-obra barata.

Por essa razão surgiram mecanismos de proteção à infância, uma forma correta

de evitar que os jovens entrem prematuramente no mercado de trabalho e sejam

explorados, e também uma maneira de mantê-los na escola. Contudo, é um

processo artificial, pois a educação, o desenvolvimento das habilidades, sempre

aconteceu de uma forma familiar benigna. A criança era educada observando as

atividades dos pais e delas participando.

Hoje os jovens vão para a escola, mas não são preparados para a vida, apenas

para a inserção em um mundo artificial. Não aprendem como a economia funciona e

como poderiam se incorporar ao processo. Ao contrário: ao longo da for-mação,

perdem a habilidade natural de se inserir em um processo de trabalho para virarem

peças de um mundo econômico que pode acolhê-los ou não.

Ainda é possível encontrarmos famílias nas quais o trabalho integra o processo

de educação e uns vão ensinando os outros. Na vida rural tradicional da zona de

colonização alemã no Rio Grande do Sul é assim. Quando o menino atinge certa

idade já tem um boizinho, cuida do animal, corta o pasto. Mas em nenhum momento

aquilo é stress, ao contrário, é motivo de orgulho. Quando cresce um pouco mais, o

rapazinho vai ajudar na roça. Nessas comunidades, quando o trabalho em uma

propriedade exige mais esforso, os vizinhos se retúneme vão láajudar. Essa é uma

forma nuais. ampla de família. Isso está desaparecendo, as pessoas estio

mentalmente limitadas a procurar um emprego, perderam a capacidade

de se articular em seu próprio ambiente e crescer.


Há um modelo de escola que talvez tenha seu papel nisso, uma vez

que a iniciativa das atividades parte sempre do professor em direção aos

alunos, eles respondem isolada-mente e não com inteligência de grupo.

Esse tipo de escola prepara as pessoas para serem peças obedientes,

atentas e eficientes dentro de uma estrutura que pensa por elas.

Naturalmente, ficarão dependentes de estruturas que ofereçam

empregos e lhes dêem identidade social.

VITOR-Poderíamos afirmar que Marx foi fortemente influenciado pelo

socialismo francês, pela filosofia alemã, fundamentalmente Hegel, e pela

economia política, princi-palmente Ricardo. Marx estuda profundamente

isso. Marx diz que o capital é uma relação entre as pessoas efetivada

através das coisas, isto é, o capital é uma relação. O que ele quer

analisar é um modo específico que estava surgindo com a dissolução do

mundo feudal. Há uma grande confusão, pois O Capital não é um livro

socialista, é um livro que fala do capitalismo. Ele foi proibido durante o

período de repressão, mas é um livro que explica o capitalismo e não

trata do socialismo.Para Marx, o capitalismo surge quando tudo se torna

mercadoria, inclusive a força de trabalho. A burguesia passa a ser

detentora dos meios de produção. Nessa situação o proletariado é

obrigado a se vender como forca de trabalho.Com base no que Ricardo

havia dito sobre a teoria do valor,ele diferencia valor de uso do valor de

troca. Valor de uso é o valor direto que a mercadoria tem, e valor


81
2
O Lama e o Economista

de troca é a qualidade de um bem equivalente a outro pelo qual ele pode

ser trocado. Marx vai desenvolvendo essa teoria até chegar à questão da

mais-valia. A mais-valia absoluta é, portanto, a mais-valia que se obtém

pelo prolongamento da jornada de trabalho, quer dizer, o trabalho

adicional que não é pago ao trabalhador e gera a renda do capitalista.

Então há alguns conceitos interessantes que determinam muitos

pensamentos durante quase um século, que é essa questão da luta de

classe, o papel da burguesia, a questão da mais-valia, da exploração da

classe trabalhadora. Eu trago para o lama uma afirmação do Papa João

Paulo II. Ele disse que o socialismo defendia a revolução através da luta

de classes, enquanto o catolicismo defende uma revolução através do

amor, e que a queda do socialismo se deveu a esse fato, o amor seria a

diferença.

LAMA-Concordo com o papa. Mas acho que seria simpli-ficar demais

afirmar que o socialismo é apenas uma luta de classes. Ele tenta

recuperar os valores humanos em uma circunstância na qual o capital

tem o controle. O instru-mento de ação do Estado é o poder. E o poder

está dire-tamente ligado à organização da produção e ao capital. A

ideologia socialista é na verdade uma tentativa de rein-troduzir valores

humanos e sua importância dentro do processo econômico. Há um


momento em que os elementos econômicos perdem a face humana e

passam a ser regidos pelo capital.


Na visão budista, a economia seria acionada por nossa capacidade de gerar
benefícios para o outro e não tanto pela
83

rigureza.Mesmo que exista uma capacidade de investimento muito

grande, há uma lei maior que a matemática da multiplicaçāo-o fato de

que alguém deve ser beneficiado poraquilo.O sistema produtivo e

cconômico não desenvolve essa inteligência, e é aqui que a educação

pode ajudá-lo a atuar de forma mais consciente. Dentro de uma visão

politica, podemos dizer que tanto o capitalismo quanto o socialismo

simplificam o raciocínio pensando apenas em gerar mais investimentos,

riqueza e poder.

Eu diria que hoje o problema não é a luta de classes. Quando o

capital opera, algumas pessoas têm sucesso e se tornam capitalistas;

por outro lado, surgem aquelas que serão exploradas por trabalharem

para a pessoa que detém o poder econômico. Mas esse é um esquema

muito clássico, muito antigo. E hoje os seres humanos querem isso em

certo sentido. Estão sem vagas de trabalho, esperando que alguém lhes

ofereça um emprego. Ao se inserir nesse processo, mesmo que seja

para gerar lucro para o outro, o indivíduo se sente beneficiado.

Não acredito que atualmente seja necessário pensar em termos de

luta entre aquele que detém o capital e aquele que oferece seu trabalho.

Essa noção já está ultrapassada.Eu preferiria analisar o socialismo

como um movimento que tenta reintroduzir os aspectos humanos em

uma economia que perdeu a face humana.Pode parecer que isso seja
lutar contra oaparente explorador, mas hoje, na própria visão capitalista,

há diferenca entre o empreendedor e o capitalista. O primeiro éaceito

como um agente de transformação e progresso.

O Lama e o Economista

O empreendedor atual nem mesmo precisa possuir bens

econômicos. Ele tem uma idéia para fazer as coisas funcio-narem, toma

o capital emprestado, cria o processo, gera o produto. Aquilo funciona

por um tempo e depois o empreen-dedor passa para outro projeto.

Nesse caso, ele luicra por sua idéia, ao mesmo tempo em que cria

postos de trabalho e pro-picia a expansão da economia.

Em um sentido budista, nada disso tem valor em si, pois ainda

estamos em uma situação embrionária no que diz respeito à educação e

à espiritualidade. Somos analfabetos espirituais, não entendemos o que

produz felicidade ou se-gurança. Agimos como bárbaros, destruímos o

meio am-biente e as opções das gerações futuras, ameaçando o

planeta e gerando tensões entre nós. Ainda que tenhamos grande

sofisticação técnica, falta visão e lucidez, e a barbárie está presente.

Talvez o budismo não se envolva diretamente em questões políticas

por isso, porque a consciência da civili-zação ocidental ainda não tem

rumo. A utopia budista está totalmente ligada à educação, à

transformação do ser humano e da forma como ele se relaciona com os

outros, até o ponto de compreendermos que todos buscam a felicidade e


buscam se afastar do sofrimento. No budismo, só existimos por meio de

relacionamentos com os outros e com tudo o que percebemos; assim,

essas relações deveriam ser positivas.

Dentro de uma cultura bárbara as pessoas se julgam inde-pendentes

e isoladas, o processo de relação pouco importa, o que importa é ter algo

que produza satisfação. Esse pro-cesso é muito bem estudado no

budismo, sendo conhecido


85

como os 12 elos da originacǎo interdependente, tema funda-mental para

todos que queiram compreender em profun-didade a contribuição budista

para a nossa cultura.

O budismo não é uma ideologia, mas uma forma lúcida eprática de trabalhar com a

realidade. Não atua dentro do jogo de poder político ou ideológico, mas busca trazer

luci-dez às alternativas desses jogos da vida. Não define escolhas, mas ajuda o caminho de

todos os que fizeram escolhas limi-tadas e estão presos a elas.

VITOR-Se considerarmos o panorama em que Marx viveu na Inglaterra,

em situação de desemprego causada pela gran-de revolução industrial,

assim como sua forma de raciocínio,

9. Representação budista da existência cíclica (roda da vida, samsara), na qual todos os


seres estão sujeitos a constantes renascimentos e sofri-mentos. A roda da vida é uma das
principais iconografias do budismo. A experiência cíclica é construída pelos três venenos -
ignorância, aversão e desejo- e caracterizada pelas três marcas: sofrimento,
imper-manência e falta de um eixo (ou sentido) para essa experiência de existência. Os
seres separativos, dominados pelos três venenos, vagam indefinidamente por essas
experiências, de acordo com as seis emoções perturbadoras (raiva ou medo; aflição por
carência; obtusidade mental e cansaço; desejo e apego; inveja e competitividade; e orgulho
e falso contentamento), que classificam as experiências da roda da vida em seis paisagens
mentais ou reinos correspondentes (infernos, seres famintos, animais,humanos,
semideuses e deuses). Os 12 elos (ou etapas) da originação interdependente são:
ignorância, marcas mentais, consciência, nome e forma,seis sentidos, contato, sensação,
desejo-apego, formaçāo de tendências, nascimento,envelhecimento e morte. Essas etapas
são sucessivas,causais e,portanto,uma serve de substrato para a próxima.

O Lama e o Economista
baseada em Hegel, estruturada em tese, antítese e síntese, sempre

haverá a percepção de contrariedade operando, em-bora na base de

tudo exista a preocupação com o fator hu-mano, pois Marx estava em

contato com aquela massa de desempregados.

LAMA- Há uma coisa curiosa nisso. Houve um tempo em que inexistia a

noção de "postos de trabalho" ou de "em-prego". Mesmo hoje algumas

culturas não operam com essa noção. O conceito de emprego aparece

com a revolução in-dustrial, a automatização e a eficiência de produção.

O conceito de postos de trabalho é uma construção humana artificial,

dela surge a noção de desemprego e suas deriva-ções. Nossa existência

humana necessita de inclusão social, mas ver o emprego como a única

forma de inclusão social é uma grave limitação.

No sentido budista, a inclusão social ocorre quando ocu-pamos um

espaço útil dentro da coletividade humana, o que não precisa se dar por

intermédio de um emprego. O lama tem inclusão social por trazer

benefícios aos outros, mas não tem salário nem emprego. O Buda nunca

teve salário, em-prego ou patrocinador. Sua inclusão social permitiu-lhe

viver de doações. Geração após geração o budismo é mantido pelos

praticantes desse mesmo modo. Isso comprova que o que devemos

buscar é a inclusão através da purificação de nossas paisagens mentais,

de nossas emoções e de nossa identidade. Também devemos prestar

serviço incessante às oufras pessoas, à coletividade e aos seres dos

variados mun-dos. Basta isso.


Diálogos sobre Budismo,Economia e Ecologia
87
VITOR

Depois de Marx,temos a teoria neoclássica,cujo

oxpoente é Alfred Marshall(1842-1924).Um dos fundadores

da microeconomia,Marshall destacou a importância funda-

mental dos pequenos núcleos geradores de riqucz que for-

mam a economia. Também demonstrou que muitas resolu-

coes de microeconomia, muitas das deliberações das em-

presas, são tomadas na margem e não com uma visão de

longo prazo. Como exemplo para essa teoria usou a água e

os diamantes. A água é muito mais necessária que o diaman-

te, mas é mais barata porque existe em abundância. Porém,

em caso de escassez de água - e aqui a economia marginal

começa a trabalhar - seriam necessários vários diamantes

para comprar um único copo de água.Quanto menos água,

mais diamantes; quanto mais água, menos diamantes.Com

isso, fica claro o curto prazo da tomada de decisões. A intro-

dução desse fator de análise é revolucionária para a economia.

LAMA-Para o budismo, “longo prazo" é uma expressão ingênua, tendo

em vista a impermanência. Por outro lado, o fator apresentado por

Marshall está se referindo a uma natural limitação da visão dos


tomadores de decisão. Esse seria mais um exemplo do conceito budista

de avidya, já comentado.

VITOR-Marshall está ligado ao ambiente ansioso das corpo-rações, às

decisões de marketing e vendas de curtíssimo prazo, às empresas que

vendem produtos que danificam a satide do consumidor, à busca do

prazer e bem-estar instantaneos. Tudo isso ajudaria a reforçar a visão

limitada da decisão marginalista apontada na teoria de Marshall.

O Lama e o Economista

LAMA-Não sei se entendo bem a visãodeMarshall,pois nunca ouvira falar

dele antes. Entendo, no entanto,qued possivel lancar um produto que seja

danoso, mas cuja ima gem inicialmente seja positiva.Durante o periodo em

que a imagem é positiva há lucro e vendas, depois o mercado se

fecha.Nesse momento a empresa ou organização lança outro produto

também com imagem positiva, mas que será tam-bém rapidamente

superado. Ainda que não haja estabilidade na inserção de cada produto no

mercado, a sucessão de insta-bilidades produz resultado financeiro e

dessa seqüência surge uma certa estabilidade previsível e utilizável. É

como uma bomba manual de água. Cada movimento dá um certo

resultado; ainda que não se perpetue, dá lugar a outro movi-mento, e a

seqüência termina por encher uma caixa d'água.

Esse método pode ser usado com muito resultado.Lembra-me o conceito de

obsolescência programada, ou seja, o que compramos perde a utilidade em

pouco tempo. Lembra-me também das múltiplas bugigangas que se encontra à

venda nas calçadas, onde os produtos parecem uma coisa e são outra bem
diferente, mas, enganados, compramos. É um processo em que o engodo pode

se revelar, mas, se aparecer depois da venda, não há problema, pois a

transação já se concretizol. É um método parecido com o roubo, com o assalto...

Evidentemente,esse tipo de raciocínio pode ser usado em todas as

transacoes e relacoes. A dificuldade éque,no sen-tido

budista,inevitavelmente haverá o momento em que as consequências

negativas dessas sucessivas açōes deverao surgir.É como um virus que

engana o organismo,mas os anticorpos terminam por localiza-lo e atacá-lo.

Se o vitls

Diálogos sobre Budismo, Economia e 'Ecologia 89

tiver êxito,o organismo sucumbe, mas, como o virus é um parasita, morre

junto.

Sea perda de lucidez afetar os seres humanos, a sociedade humana e o

ambiente natural, quem vencerá afinal? No mo-mento podemos perceber que esse

tipo de visão pode des-truir uma cultura, mas não tem o poder de construir uma

cultura ou uma civilização. Sem a visão de beneficiarmos a nós mesmos, aos outros

seres, à sociedade e ao ambiente não há cultura de paz. Sem uuma cultura de paz

não há civilização.

Ocorre-me o exemplo dos madeireiros que cortam as flo-restas e, quando

são desalojados em conseqüência da ação que praticaram, têm de ir em

busca de novas florestas. É uma ação viável, mas não sustentável. Se entendi

o pensamento de Marshall, a microeconomia baseia-se em uma ação viável

por um tempo, mas que não é sustentável.


VITOR-Um dos economistas mais importantes do século XX éJohn

Maynard Keynes (1883-1946). Já estamos na época da grande

depressão. Enquanto a Lei de Say diz que toda oferta cria sua própria

demanda, a teoria de Keynes defende o con-trário: o que determina o

volume de produção e o volume de emprego é a demanda. Em época de

depressão isso é muito importante, pois coloca a importância de gerar

movimento para que se crie a demanda. O que determina o volume de

produção e o volume de emprego é a demanda efetiva, que nao é

apenas a demanda efetivamente realizada,mas o que se espera que seja

gasto em consumo acrescido do gasto em investimento.Keynes

demonstra que a economia opera bus-cando satisfazer expectativas. É a

prova de que a virtualidade

O Lama e o Economista

90

domina o mundo economico. O famoso Capitulo 17 de seu ivro A Teorin Geral

do Emprego, do Juro e da Moedn fala da taxa dejuros e da preferência pela

liquidez, a justificativa dojuro. Oferece as diretrizes que regerão o sistema

financeiro. Aeco. nomia comeca a trabalhar dando preferência à liquidez do

capital.Quem tem o capital é quem tem o verdadeiro poder. Chegamos

próximos à conjuntura econômica atual, naqual os grandes bancos estão no

controle.

LAMA-Neste cenário temos o empreendedor que não tem capital e

faz um empréstimo.
VITOR-O banco cobra um juro altíssimo pelo empréstimo e,

conseqüentemente, tem a maior segurança na transação.

LAMA-De qualquer maneira, o banco não vê problema no fato de a

pessoa não ter capital. Se ela tiver uma boa idéia e puder oferecer

alguma garantia, fará a riqueza surgir.Os bens financeiros são

atraídos por oportunidades. Marx já dizia que o capitalismo é um

processo de relação. Ele percebeu a se-mente da virtualidade.

A inconsistência não vem das tensões entre as pessoas ou organizações

que representam diferentes interesses dentro dos objetivos e visões

conservadoras. A inconsistência vem da motivação equivocada das várias

partes que praticama visio conservadora e buscam felicidade e estabilidade

onde nāoa encontrarão.O budismo não vem para atrapalhá los ou lutar contra

eles,mas para ajudá-los a encontrar o que buscam -felicidade e estabilidade.O

budismo nāo é uma ideologia dentro da roda da vida, mas uma forma de ajudar

os sensa sair dos horizontes limitados da visio conservadom. O bur

dismo não traz uma proposta limitadora,mas,ao contrário, oferece

métodos para vermos liberdades antes insuspeitadas.

VITOR-Com isso, os processos financeiros tendem a ficar cada vez mais

complexos. No mercado de opções, trabalha-se com o preço da arroba

do boi do ano que vem, por exem-plo.A produção baseia-se nesses

números. A faixa de preços está mais ou menos garantida. A

complexidade desse pro-cesso aumenta cada vez mais.


LAMA-Por outro lado, existe a simplicidade. Do ponto de vista humano e

individual continua valendo a mesma coisa, ou seja, fazer algo que gere

benefício para o outro. Vamos encontrar alguém fazendo artesanato e

alguém que se bene-ficia com esse artesanato. A economia mais simples

continua operando. A produção em pequena escala pode permanecer

perfeitamente viável em qualquer setor. É possível uma pequena

indústria de laticínios manter uma produção específica para demandas

menores como, por exemplo, a fabricação de queijo sem sal para os

pacientes hipertensos de um hospital.Para uma fábrica muito grande isso

poderia ser difícil.

Não podemos afirmar que os menores sejam menos viá-veis.Eé bom

lembrar que as grandes organizações também estão passando por

graves problemas. Mas talvez estejamos contaminados pelo

gigantismo.Acho que a mensagem bu-dista poderia ser a seguinte:"Nao

fique com a mente domi-nada por coisas enormes.Perceba que a

essência da econo-mia pode estar em qualquer nível". A essência da

economia Epodermos trazer beneficios aos outros. A essência de cada


91
92
O Lama e o Economista

ser é a capacidade de gerar beneficios ao outro, mas isso exige a

qualidade espiritual que é a habilidade de conseguir olhar o outro não

a partir de seu próprio contexto, mas a partir do contexto do outro.

VITOR-Há pouco tempo falava-se que a primeira via seria capitalista;

a segunda, socialista; e a terceira, trabalhista.Com a queda da

popularidade do primeiro-ministro britânico Tony Blair pelo

envolvimento na guerra contra o Iraque, começou a se falar do Brasil

como representante da terceira via.

LAMA-Não sei se entendo bem o que seja essa terceira via, e não

está claro como as coisas seguirão em nosso país no sentido do que

discutimos. Ainda assim acredito que o secta-rismo no Brasil está

cedendo. Pessoas de diversos partidos estão conversando mais

facilmente entre si. Há uma busca pelo bem comum. Há uma política

que permite às pessoas opinarem. Não sei se essa é a terceira via,

mas a maturidade pode ajudar.

Acredito que o budismo pode desempenhar um papel nesse

processo, não como tradição religiosa, mas com idéias que possam

oferecer segurança verdadeira às pessoas.O pensamento budista

pode colaborar para os diálogos entre posições diferentes, pois

ajuda-nos a compreender muito bem a questão cognitiva. No

Ocidente, o budismo está ajur-dando as pessoas a pacificarem suas


imentesunindo vários fragmentos que pareciam contraditórios, como

ciência ereli. giǎo ou diferentes abordagens na medicina, por

exemplo. Hoje existe esse diálogo, há uma base cognitiva comum

em que essa linguagem é possível.

Diálogos sobre Budismo,Economia e Ecologia

Sua Santidade o Dalai Lama enriquece sua expressão religiosa sendo

um grande lider politico e social.Suas idéias serão melhor compreendidas

com o tempo. Sua Santidade deixou de ser o lider politico do Tibete para

ser um lider global que aponta caminhos para todos nós. O Dalai Lama

produz a visão que une o aspecto religioso ao social,ao cognitivo, ao

acadêmico, à ciência, à economia e à política também.

VITOR-Qual a mensagem do lama para encerrar esta fase de nosso

diálogo?

LAMA- Os princípios básicos do budismo são não causar

sofrimento,trazer beneficio aos seres e dirigir a própria mente. São

preceitos aplicáveis em qualquer âmbito. É a essência do processo para

gerar méritos e está diretamente ligada ao pro-cesso econômico. Se

nossa atividade estiver causando danos, é certo que um dia teremos de

mudar, porque vamos ganhar inimigos. Se estivermos trazendo

benefícios e soluções, avançaremos.

A dificuldade surge porque acabamos presos em arma-dilhas de nossa

própria ignorância, movidos por impulsos internos que nos levam a


direções equivocadas. Por essa razão dirigir a mente é importante. Todos

precisam fazer isso. O cientista também tem essa dificuldade,pois tenta

ver onovo e não consegue, está intoxicado por idéias antigas que

funcionam como um filtro para sua visão, impedindo-o de ver o novo.

Dirigir a própria mente também significa puri-ficar a visão. Esse conselho

é inteiramente válido em qual quer sentido. É um preceito tradicional do

Buda.

Como diz Sua Santidade o Dalai Lama, se usássemos real mente a

sabedoria das tradicoes religiosas, talvez elas se tormassem

dispensáveis. Não precisamos nos tornar budis. tas,basta que

encontremos a sabedoria dentro de nossa tradicão. O Dalai Lama

oferece outro conselho muito precioso: "Se você não tem nenhuma

tradição religiosa, apenas pratique o bem, não faça o mal e dirija sua

própria mente.Pratique isso como uma questão de bom senso. Você não

precisa de uma tradição religiosa para praticar esses valores".Pratique

esses princípios por uma simples questão de bom senso!


Capítulo 4

Sustentabilidade Ambiental
Sabado, 31 de janeiro de 2004. Seis mesos se passaram desde que me

encontrei com o lama Padma Samten em Curi-tiba. Desta vez fui vê-lo

em Viamão, no Centro de Estudos Budistas Bodisatva, onde ele reside.

Novamente, agendamos um horário em meio às atividades de um retiro

conduzido pelo lama.

Desde os anos 70, lama Samten atua em iniciativas de proteção

ambiental. Neste capítulo, ele aborda o impacto do consumo desenfreado

sobre as reservas naturais do planeta.

VITOR- Em minha pesquisa para este nosso último tópico de discussões,

encontrei a seguinte constatação do jornalista Washington Novaes,

especialista em meio ambiente e ecolo-gia: “Não é possível separar do

econômico o chamado 'ambiental', como não é possível separar o social

do político e do cultural. Se pretendemos enxergar todo o problema e

tentar vislumbrar soluções, é preciso ver tudo simultanea-mente nessa

teia de relações". Deparei-me também com um texto do ambientalista

gaúcho José Lutzenberger (1926-2002) criticando duramente o uso de

cobaias pela indústria química, em especial a farmacêutica, que gostaria

que o lama comen-tasse. Lutzenberger afirmou: “A vida jamais poderá

ser com-preendida nos termos em que pretendia Descartes,que via nos

seres vivos-com exceção dos humanos-simples máqui-nas, relógios ou

autômatos. Mas essa visão ainda está viva, muito viva, por exemplo, nos
laboratórios de toxicologia da indústria química, que submete milhões de

criaturas indefe-sas-macacos,cachorros, gatos, ratos,

porquinhos-da-índia e outros-, por ela simplesmente classificados de

cobaias, a torturas indescritiveis para estabelecer,entre outras coisas,a

dose diária admissivel dos venenos com que fazem seurs grandes

negócios".

LAMA - A crueldade humana é reflexo de nossa falta de compreensão de

que todos os seres têm a natureza de Buda, todos os seres têm a

natureza ilimitada. Lutzenberger está completamente correto em sua

visão de sacralidade da vida. Além disso, o ponto de vista mecanicista da

vida é outro pro-blema, pois retira a noção de que há um mistério na

vida, tudo se transforma na operação de uma engrenagem causal.

Mesmo na ciência isso está superado. O pai do físico Niels Bohr

(1885-1962), que era biólogo e foi o grande inspirador dos estudos do

filho, afirmou que o elemento fundamental da vida é o princípio vital que

pulsa dentro dos seres e que não é possível manifestarmos uma

compreensão apropriada da vida senão a partir desse conceito.

No budismo, o princípio de vitalidade está ligado ànatu-reza anterior à própria

criação. Ele existe antes mesmo de a mente se dividir e se manifestar como objeto e

observador. No princípio universal, já temos essa força vital, e é muito estranho que

os seres humanos hoje olhem apenas 0 hardunre. É surpreendente que não sejam

mais capazes de ver a vitalidade operando no corpo como o aspecto mais


impor-tante da vida.Ao contrário, passaram a olhar o corpocomo o aspecto mais

importante.

VITOR-Em um artigo de 1996,José Lutzenberger desenvolt veu a idéia

de Gaia:“A ecosfera nāo é um simples sistemad homeopático,

automático, químicoemecânico. O planeta Terra é um sistema vivo, um

organismo vivo com iden-tidade própria, o inico de sua espécie que

conhecemos. (..) Gaia é o nome que os antigos gregos em sua

cosmovisão, bem mais holística que a nossa, davam à deusa Terra.(..)

Éclaro que a Terra não é um ser vivo como uma planta ou um animal

individual, que nasce,cresce, se reproduz, enve-Ihece e morre, mas é um

sistema que possui vida. Em Gaia não há passageiros, tudo e todos

somos Gaia".

LAMA - É uma visão muito interessante. É como se houvesse um

substrato e nele surgisse a força vital sutil que permeia todas as coisas.

O sistema é composto de muitos diferentes subsistemas entrelaçados,

inseparáveis uns dos outros. É como se houvesse um ser, como se o

planeta não fosse pro-priamente um substrato, mas um ser vivo em

constante modificação, com intencionalidade própria, com capacidade de

transformação e adaptação.

VITOR-Há anos os cientistas ambientais produzem estudos mostrando que a

sociedade moderna está esgotando os re-cursos naturais do planeta.


Conforme essas projeções, se a humanidade não desenvolver métodos de

produção susten-tável,os recursos vão se esgotar, a começar pela comida,

água ear, além de florestas, combustíveis, minérios.

LAMA -Ass sociedades modernas vivem como quem trafega em alta

velocidade sem saber se haverá estrada dali a cem metros.Tormamo-nos

dependentes de materiais e os constt-mimosaceleradamentesem saber se

novas fontes serão descobertas.Devastamos a almosfera,os mares e os rios

igno-ando se esse processo podera set revertido mais adiante.

Estudos calculam o esgotamento das reservas dos mais diversos

recursos naturais em poucos anos, mantendo uma perspectiva de

crescimento exponencial a taxas fixas. E em todas as economias a idéia

é crescer mais e mais,todos querem indices de crescimento maiores. É

necessário com-preender que esse aumento gera impacto ambiental. O

dano não cresce na mesma proporção, mas certamente se amplia,

duplicando em prazos relativamente curtos.

Só para se ter uma idéia: um crescimento de 7% ao ano implica a

duplicação do fator considerado em dez anos. Um crescimento anual de

7% no consumo de petróleo, por exemplo, significa a duplicação do

volume de consumo em dez anos.

Mesmo no caso de índices menores, o fato é quue o consu-mo dos

mais variados recursos dobrará em prazos relativa-mente curtos,

enquanto nossas reservas são naturalmente limitadas. Isso indica que

esse comportamento não poderá continuar, ele deverá ser alterado - ou


de forma volun-tária, ou por circunstâncias que venham a se impor-,

porque haverá esgotamento das soluções hoje utilizadas.

O movimento ecológico promove a mudança, trabalha com um olhar

de longo alcance para realizar as transfor-mações necessárias agora.

Progressivamente surgem impor-tantes iniciativas internacionais

apontando a necessidade de um programa verdadeiro de preservação

que contemple 0s diferentes desafios das diferentes nacōes.Por outro

lado, existem setores que propōem uma regulação espontânea, ol seja,

que o mercado sinta a necessidade de se modificare produzir as

alterações.Isso dá margem para que certos paises

101

sigam como seu comportamento agressivo, obrigando outras nações a

pagar a conta.

O fato de os Estados Unidos, o maior emissor de gás estufa, ter se retirado

do Protocolo de Kioto10 em 2001 é um exemplo desse comportamento

agressivo, que transfere para outras nações o ônus de equilibrar a camada de

ozônio, a atmosfera,de manter a vegetação protegida. Os países

desen-volvidos, que já destruíram seu ambiente natural, hoje olham para o

Brasil, para a Amazônia, como se fôssemos um exemplo isolado de

insanidade ecológica.

Do ponto de vista budista, nossa dificuldade em mudar vem da

estrutura cármica que se torna coletiva. Mas a busca efetiva de maior

quualidade de vida conduz a uma natural simplicidade, leveza e


eficiência. O desenvolvimento nos moldes atuais não vai nos livrar das

dificuldades, pelo contrário. O alto consumo não necessariamente produz

uma melhoria real na qualidade de vida, mas com certeza produz grande

fragilidade, pois, se os países que estão acostumados a um alto consumo

precisarem reduzi-lo, o processo de transformação será muito mais difícil.

VITOR-Na agricultura, os transgênicos são hoje o tema mais polêmico.

Além da discussão sobre os possíveis efeitos desses produtos nos seres

humanos e no meio ambiente, há o fato de que o uso dessa nova

tecnologia aumenta a com-plexidade da producão agricola e a

dependência dos agricul-

10. Acordo internacional para reduziras emissões de gasestufa.O docu mento

estabelece cotas diferenciadas de reducão para os 38 maiores emissores de gás

estufa.

102O Lama e o Economista

tores em relação aos fabricantes das sementes e de todos os

outros produtos que serão usados com elas.

LAMA-Essa é uma manifestação do sistema mental que pro-duz

complicações de forma progressiva. A produção de alimentos, que

originalmente oferecia energia, tornou-se consumidora de energia,

dependente do petróleo. Além disso, a produção de comida

tornou-se dependente de uma inteligência artificial que gera os

padrões genéticos a serem cultivados e retira dos agricultores a


capacidade de produzir suas próprias sementes e manter a

autonomia.

No início da civilização, os humanos descobriram espécies

animais e vegetais que lhes eram interessantes, preservaram-nas

como uma fonte de energia e de vida, de onde tiravam inclusive

força muscular para construir. No último século, a produção passou

a consumir petróleo, da lavoura às indús-trias de processamento e

pontos de distribuição. Hoje as rela-ções são até de dez para um,

ou seja, para o alimento chegar à boca do consumidor a rede

produtiva consome dez calorias para cada caloria oferecida, o que a

torna altamente onerosa.

Os agricultores também perderam a capacidade de reter em

suas mãos as espécies vegetais que cultivam. Recebem um pacote

com as sementes; uma vez plantadas, seus frutos não são capazes

de reproduzir a espécie. Portanto, os plan-tadores ficam na

dependência do fabricante de sementes, que vende seu produto

sob licença. Com isso,sustentação da vida atrela-se perigosamente

a um processo muito frágil.

Os europeus mostram grande resistencia à importaçāo de

alimentos porque sabem que esse setor é a base de uma

103
nação. Se o país não é auto-suficiente, ou quase, torna-se rulnerável a

instabilidades internacionais e a organizaçōes cajo objetivo principal não

é a sustentação da vida, mas os negácios.A dependência da importação

de alimentos fragi-liza a sociedade.

A China não tem como escapar da importação de alimen-tos.Para

reduzir a fragilidade, tenta diversificar seus fornece-dores. Daí seu

interesse em comprar soja brasileira, por exemplo.

VITOR-Na Rio-92 e na Rio+10,realizada na África do Sul, o desenvolvimento

sustentável foi amplamente discutido. Em ambos os encontros os cientistas

destacaram a necessidade de questionar o estilo de desenvolvimento

globalizado que se manifesta principalmente na modernização da agricultura,

na urbanização e no uso de recursos naturais e de fontes não renováveis de

energia. Esse modelo é determinado em grande parte pela adaptação de

diferentes nações e culturas ao padrão tecnológico das empresas

transnacionais, cuja tendência éa homogeneização da economia mundial.

LAMA-O principal aspecto disso é que as empresas muitas vezes têm

dificuldade em penetrar em culturas diferentes. Se asnações mantêm

uma visão cultural própria com suas pró-Prias aspirações,as companhias

transnacionais defrontam-se com limites para sua expansão. As

diferenças entreoOc dente e as nacõoes islamicas do Oriente, por

exemplo, impe-dem que diversos produtos circulem em ambos os

mercados. Em decorrênciadisso surge a visão de que expandir e

8lobalizar a cultura naturalmente amplia o mercado.


104 O Lama e o Economista

Portanto,a primeira prioridade na expansao demercadoé a expansão da

cultura. Assim, a cultura é homogeneizada, os seres humanos sāo

padronizados, fica todo mundo parecido seja em que pais for. Em nível

pessoal e emocional, vamos nos defrontando com necessidades que surgem

como se fossem internas.Passamos a desejar vários objetos porque a mente

passa a operar dentro de referenciais importados por meio da música,do

cinema, de vários mecanismos de marketing. À medida que esses objetos

passam a ser desejados, produzem uma sociedade em que são geradas e

sustentadas as condições para que aqueles produtos sejam comprados. Surge

uma cultura econômica global padronizada.

Esse processo vai fragilizando as culturas antes adaptadas a seu

ambiente e com equilíbrio próprio. Os níveis de exclu-são social,

dependência do petróleo e poluição aumentam. Ao exportar sua

mentalidade, os países ricos exportam tam-bém suas fragilidades e seus

problemas sociais e ambientais.

Não sabemos qual a solução para isso, e o futuro não parece

promissor. A modernização não está nos levando na direção de algo

mais sólido, mais nítido, mais real; está nos levando a uma crescente

dependência e fragilidade. A globalização no sentido de

homogeneização cultural não é interessante.

Precisamos de uma globalização que considere todos os seres dignos

e todas as culturas válidas, que ajude a reconhe-cer e respeitar a

diversidade.Precisamosdeuma globali-zasio que conduza a paz, ao

respello, à compreensão das divesas culturas como representantes de


diferentes formas de pensar.Que veja as diversas culturascomorespostas

da criatividade humana para diferentes problemas.

105

VTOR-O impacto ambiental da espécie humana tem afe-tado dramaticamente

a biodiversidade. O ritmo de extinção das plantas e animais acelerou-se entre

50 e cem vezes nos illimos quatro séculos. As listas de vegetais e animais

amea-cados de extinção incluem milhares de espécies.

LAMA-José Lutzenberger disse que a biodiversidade é como uma teia de

aranha. Quando se cortam os primeiros fios,parece que a teia não se ressente,

mas depois de determinado estágio cada fio cortado adquire crescente

importância e a teia pode entrar em colapso a qualquer momento. A

biodiversidade garante a sobrevivência de todos os seres. À medida que

vamos eliminando espécies, as que restam passam a ter importância maior, e

se estas também forem eliminadas, ou transformadas, a vida no planeta

entrará em colapso.

A extinção de espécies manifesta-se também entre vege-tais e animais

ligados à alimentação humana. Lembro-me de que na serra gaúcha havia

muitas espécies de cada tipo de grão, e os agricultores se orgulhavam disso.

Havia vários milhos nativos, por exemplo. Provavelmente esses alimentos

nativos já nem são mais cultivados; os agricultores agora cul-tivam um milho

cuja semente não é produzida poreles, mas comprada de uma indústria. A

cada ano o cereal é um pouco diferente,vai sendo geneticamente

modificado.Isso produz uma fragilidade geral,pois a diversidade dá lugar à

cultura de umaúnica espécie.As sementes dessa espécie única são labricadas


por poucas indústrias. Se o sistema de producão de sementes falhar, haverá

uma falha geral. É como ficar preso por um único fio.

106 O Lama e o Economista

Além disso, quando surgem doenças em uma espécie inica,o

resultado é desastroso. E preciso abater animais ou destruir

plantas em áreas extensas para evitar um problema global.

Recentemente houve epidemias de vaca louca na Inglaterra e

gripe do frango na Ásia.

Vamos pegar as galinhas como exemplo. As aves sempre foram

criadas por todos os lados sem grandes problemas. Mas a

produção em aviários gigantes seguindo um esquema industrial

faz com que qualquer contaminação possa gerar graves prejuízos.

Aqui entra o aspecto econômico -a pro-dução em larga escala

parece interessante, mas também traz esse risco. Quando há um

único sistema de produção de alimentos, qualquer doença que

surja acaba se propagando rapidamente por todo o sistema.

Podemos trabalhar de duas formas para garantir a pro-dução e

o lucro e evitar epidemias: aumentando a diver-sidade, o que

reduz naturalmente o risco de contaminação, e/ou aumentando os

mecanismos de proteção contra as doenças. De forma geral, a

opção tem sido a redução da diversidade e o aumento da


proteção. Mas esse aumento de proteção, além de limitado, é

caro.

Vitor-A maioria doshumanos que vivem em nações ricas-

on que usufruem água sem restricões-parecem considerar

esse recurso inesgotável.Nesse caso,é úílil citar os números

2% de água doce, apenas 0,014% encontra-se em rios,lagos


Da água

e córregos;o resto esti em aqiferos subterancos.

107

diponivel a céu aberto, 73% destina-se à agricultura.Portan-to,sobra 27%

de 0,014% para consumo humano, o que sig-nifica 0,00378%. É muito

provável que as disputas pela água se ampliem.

Lama-Em 2002, quando estive em Sera, na India,presen-ciei um conflito

por causa da água que me lembrou muito desse problema. Lá há um rio

que atravessa dois estados. Durante um período de seca os agricultores

do primeiro esta-do não diminuíram o bombeamento de água para suas

lavouras; a conseqüência foi falta de água para os agricul-tores do

segundo estado irrigarem suas plantações. Eclodiu uma guerra entre

agricultores, o que levou ao bloqueio completo de rodovias por meses. O

conflito foi violento. Enquanto permaneci lá não se encontrou solução.

Estavam lentando resolver a situação através de um sistema de cotas de

água para cada região.


A água pertence a um processo aberto, não é como uma reserva de

petróleo, por exemplo. A questão aqui é apenas estabelecer uma forma

adequada de utilização do recurso. Não há propriamente falta, existe um

fluxo constante, mas o desperdício destruirá esse manancial, e aí, sim,

vamos ter dificuldades.

VITOR-No Brasil, as infecções gastrointestinais são respon-sáveis por

72% das mortes de crianças com até um ano de idade.Esses distúrbios

sāo causados basicamente por ausén-cia ou má qualidade de

saneamento básico. As obras que proporcionariam melhores condicōes

às camadas de baixa renda não sāo feitas noritmo necessário em razão

dos custos.

108 O Lama e o Economista

LAMA-Esse ponto é interessante.Quanto se precisa investir em

sancamento básico na região rural? Émuito pouco, quase nada,

porque será necessário apenas um poço, uma fossa, e estará

resolvido. Mas quando as pessoas se deslocam para a cidade e se

aglomeram, como aconteceu no Brasil, o investi-mento requerido é

enorme. Cada um que se transfere para a cidade passa a

demandar investimento em infra-estrutura,ao passo que, se

permanecesse no ambiente natural, esse investimento não seria

necessário. Isso significa que o êxodo rural é caríssimo. No caso

brasileiro, acho que ele pra-ticamente já se completou. A


desproporção entre a população urbana e rural tornou-se tão

grande que, mesmo que haja uma migração adicional do campo

para as cidades, já não será tão expressiva percentualmente.

A transferência da zona rural para a urbana, que ocorreu durante anos,

resultou em grande demanda de investi-mentos que não podiam ser

realizados. Mas à medida que o tempo passa, vamos avançando em direção

ao saneamento. O problema é que, ainda que isso seja feito, outros danos

sào gerados pelo ser humano,como a poluição, a necessidade de

infra-estrutura em conseqüência da compactação da popu-lação, etc.Alguns

anos atrás, creio que havia, de algum modo,uma busca de relorno à

natureza. Hoje quase nāo se fala mais nisso. Portanto,acredilo que o exodo

rural, essa vinda para a cidade, tornou-se irreversível.

Nos municípios de grande porte,cria-seumproblema rave de

saneamento quando os rios são destruidos e conlar minados com a

ocupacao irreslas ao longo de suas mare gens. Recife é banhada por

grandescursosde água doce e

109

mesmo assim sofre de carencia de água. Há um problema de abastecimento,

apesar de grandes rios cruzarem a cidade. Naseles estāo tomados por

palafitas, com lixo de todo o tipo boiando em suas águas.

Doponto de vista budista, essa experiência está conectada ao que

chamamos de reino dos animais. Há uma mente mui-to estreita operando,e

esta percebe o mundo apenas a partir daquilo que gera benefícios próprios.

Tomemos um mos-quito como exemplo: ele não pensa se a sua ação é útil em

um âmbito maior, seu único impulso é picar alguém e sugar o sangue. Todos
os seres que têm olhar semelhante ao desse inseto terminam por definir

prioridades sem se preocupar com o que está acontecendo, ou possa

acontecer, a sua volta.

A mentalidade estreita independe de classe ou de renda. Espera-se que

Gaia resolva sozinha todos os desequilíbrios gerados pelo comportamento

autocentrado, que é o grande problema de nosso tempo.

Na periferia das grandes cidades, encontraremos pessoas produzindo lixo,

caminhando sobre o lixo, adoecendo em decorrência do lixo. No Caminho do

Meio, onde moramos, em Viamão (RS), passa um pequeno rio que um pouco

mais adiante já está completamente poluído. Está assim porque as invadiram

suas margens e começaram a jogar dejetos. Essas mesmas pessoas

vêm tomar banho nele dentro de nossa propriedade e se alegram,

brincam, mas também espalham sujeira; portanto, se estivessem

habitando a nossa margem, o rio também já estaria destruído ali.

As pessoas percebem que o rio é bom, o problema é seu

comportamento estreito. É um aspecto de simplificação, de seguir o

caminho mais rápido e mais fácil, o que é uma dificuldade de nossa

mente, algo complicado de resolver, porque esses impulsos efetivamente

se manifestam. No trânsito, vemos as pessoas atirando todo tipo de lixo

pela janela. A pessoa que faz isso consegue ver apenas o lugar muito

restrito onde está -o interior do carro -, é como se o que existe da janela

para fora não lhe dissesse respeito.


O rio não é de ninguém, as ruas não são de ninguém.As pessoas

jogam lixo nesses locais e simplesmente não percebem as

consequências. Essa estreiteza caracteriza o problema ecológico.As

grandes corporações também têm essa mentalidade, não vêem o todo,

e isso acaba se manifestando na forma de problemas, na necessidade

de encontrarmos sistemas muito complexos-e muito caros-para

equilibrar os desequilíbrios.

VITOR-Deixei para o final um assunto que é especialidade do lama:

a questão da energia. Um estudo da ONU,de 1991, também

apresentado pelo jornalista Washington Novaes, mostra que as

energias alternativas são estudadas e usadas no Brasil, mas de

forma incipiente. As atividades de implantação de projetos de

energia alternativa estão restritas a ações de órgãos

federais,portanto, a geração e a produção de energia alternativa

têm dificuldades para concorrer com os energéticos tradicionais.

o primeiro passo é compreender que a crise energética existe

dentro de certo modelo de desenvolvimento. energia para suprir

uma demanda que cresce taxas fixas.

Temos a necessidade constante de duplicação do suprimento de energia.

As Fontes energéticas alternativas que estão sendo pesquisadas e

desenvolvidas também encontrariam dificuldades para suprir esse tipo de

demanda.
No Brasil, há projetos de grandes usinas para produzir energia elétrica

a partir do vento. Isso também tem ocorrido na Europa: já estão utilizando

esse processo praticamente sem impacto ambiental. Não sei se o álcool

poderia ser considerado energia alternativa. Ainda que venha da

biomassa, está ligado a grandes sistemas industriais e a uma lavoura de

monocultura. Os óleos vegetais foram estudados e, ao lado do álcool e

do metanol, poderiam ser utilizados para substituir com vantagem o óleo

diesel.Acho que o aspecto tecnológico no setor dos combustíveis no

Brasil está evoluindo.

Já em relação à energia solar, há uma grande diferença. Vamos supor

que desejamos instalar um chuveiro elétrico em nossa casa para

aquecimento de água. Dentro do sistema convencional, simplesmente

compramos o chuveiro e o conectamos - a instalação é pública, a rede é

pública,a geração é pública. Mas, se quisermos painéis solares para

aquecer a água, não contaremos com incentivo algum, teremos de

comprar todo o equipamento, ou seja, fica muito mais caro.Isso também

acontece com outras fontes de energia, como a fotovoltaica.

Seria interessante que houvesse algum incentivo, que pelo menos os

impostos referentes à fabricação não fossem cobrados, que houvesse

algum tipo de vantagem, porque todos os Usuários da rede elétrica

convencional beneficiam-se de algo já construído, os outros não. Esse

é um problema das fontes alternativas, porque o sistema


convencional está subsidiado e, portanto, não há comparação de

preço.

No sertão da Bahia, visitei a escola de uma cooperativa de agricultores

totalmente computadorizada, funcionando com painéis solares, sem rede

elétrica pública. Do ponto de vista prático, é perfeitamente viável. A

dificuldade surge quando é preciso competir dentro de um sistema

econômico, de uma economia de escala, na qual essas aplicações

particulares não são de grande tamanho nem de grande interesse. Mas,

quando pensamos em agrupamentos humanos, em benefício social,

essas tecnologias são bastante interessantes.

No momento estamos ao menos reduzindo o consumo de eletricidade

com a produção de equipamentos mais eficientes. Já existem lâmpadas

mais econômicas e muitos aparelhos, como sistemas de computação,

que consomem menos energia que tempos atrás.

VITOR - A conclusão a que chegamos então é que a discussão

econômico-ambiental deveria ser repensada em termos de simplicidade,

que deveríamos buscar soluções levando em conta que "menos é mais"?

LAMA - No Caminho do Meio temos um evento no término

de cada ano,chamado "72 Horas de Paz", no qual se reúnem

pessoas das mais diversas tradicoes.No final de 2003,durante

o evento, tivemos um encontro para abordar a sustentabilidade e a

organizacão social. Uma das conclusões a que chegamos foi de que a visão

espiritual gera a necessidade de


quietude e de aprofundamento. À medida que nossa visão se aprofunda,

experimentamos um efeito muito satisfatório.Algo extraordinário acontece

dentro de nós em termos de felicidade. Ao Mesmo tempo, o

aprofundamento interno e esse contentamento verdadeiro geram a

capacidade de nos relacionarmos com os outros de modo positivo e

satisfatório tanto para nós mesmos quanto para eles.

Ao experienciar essa satisfação, nos damos conta de que o melhor seria

aprofundá-la ainda mais e proporcioná-la a outras pessoas. Mas ela não pode ser

encontrada quando estamos intensamente atarefados e imersos no mundo dos

objetos, no qual nossa fonte de felicidade está em coisas externas. Com isso,

passamos a ver os objetos ao redor como fatores de dispersão. Cada objeto

necessita de manutenção, de cuidados.

Quando temos muitas coisas, estamos sempre preocupados com sua

manutenção e reposição. Isso impede nosso aprofundamento e a relação

favorável com os outros ao nosso redor. Por isso surge progressivamente

uma natural simplicidade. Não se trata de uma simplicidade voluntária no

sentido de: "Vou viver uma vida mais simples" ou “Vou renunciar a isso e

aquilo". A simplicidade surge naturalmente, pois tendemos a descartar

aquilo que não é efetivamente necessário dentro dessa experiência mais

profunda-não há sentimento de renúncia. A simplicidade gerada pelo

caminho espiritual alivia a demanda sobre nosso ambiente, reduz nosso

impacto ambiental.
Se houver a experiência de contentamento gerada pelo caminho

espiritual, simplificaremos nossa existência naturalmente. A simplificação

não será um objetivo em si, mas uma consequência do aprofundamento

espiritual.Quando entendemos isso, conseguimos observar qual a

energia que circulava dentro dos grandes mestres.

Creio que isso resume tudo o que estive tentando demonstrar ao

longo de nossas conversas - a conexão entre caminho espiritual,

atividade econômica e proteção ambiental. Sem o eixo espiritual,

acreditamos que o acesso aos bens, ao consumo e ao poder é a

única fonte de felicidade. Um sistema econômico em expansão,

suicida e destruidor parece, paradoxalmente, a única alternativa de

felicidade.

Acredito que a espiritualidade é o caminho para uma relação

melhor com nós mesmos e com os outros. A espiritualidade é a

base para uma visão ecológica melhor, uma visão de respeito pelos

outros seres.

Conversamos longamente sobre muitas diferentes visões, dificuldades,

possibilidades. Na perspectiva budista, todas essas análises pertencem ao

ambiente de samsara6, e não há solução dentro das limitações naturais da

visão de samsara. Então,por que nos ocupamos com elas? Porque queremos

preservar a vida humana.No budismo,há o conceito de vida humana preciosa,

segundo o qual os seres humanos dispōem de uma oportunidade única, não

6
Existência cíclica, o processo contínuo de renascimento e morte.
encontrada nos outros tipos de existência, que é a possibilidade de ouvir os

ensinamentos sobre esta verdadeira natureza,compreender o que ouviram e

ter a capacidade de transformar essa compreensão em experiência real para

superar o ciclo de mortes e renascimentos.

Para os budistas, a vida humana preciosa é tão rara quanto as estrelas que

brilham de dia.

Por isso é preciso preservar a vida humana. Dotada dos conhecimentos de

grandes mestres do presente e do passado, a vida humana pode se

transformar em algo precioso. É mui-to importante que cada ser humano

entenda sua relação com otodo, com o ambiente e com os demais seres vivos

e possa viver de forma mais equilibrada, possa preservar Gaia e,den-tro dela,

possa gerar a capacidade de reconhecer o que ultra-passa a roda da vida, a

experiência cíclica, compreender a natureza luminosa, que é a essência e a

realidade de todos os seres vivos.


Conclusão

Depois de meu úiltimo encontro com Vitor, nossa conversa seguiu

adiante em minha mente e surgiram algumas idéias que senti

necessidade de colocar ao leitor.

Em primeiro lugar, peço desculpas pelas imprecisões e pela

linguagem impositiva em muitos momentos. Os dados citados foram

apenas ilustrativos.

Para dar um fecho às minhas idéias, é importante que alguns pontos sejam

ainda enfatizados. Estamos dentro de um processo pedagógico inevitável. Quando

não agimos de forma adequada, sempre temos problemas, é inescapável. Eles se

manifestarão como sofrimentos variados, sempre liga-dos à forma pela qual agimos.

Isso não é algo místico, é com-pletamente lógico, causal. As conseqüências se

manifestarão mesmo que não compreendamos o funcionamento do carma, sua

origem ou como podemos ultrapassar suas limitações.


Ficou muito claro para mim o papel limitador da edu-cação

tradicional, que nos treina para nos isolarmos uns dos outros e para

obedecer a instruções verticais. É necessário criar um novo tipo de

treinamento através da educação, introduzindo temas como

sustentabilidade, inclusão social, equilibrio interno, felicidade,compaixão,

amor, afeto. Se não aprendermos sobre isso, nossa vida parecerá sem

sentido, vazia e dolorosa.

As palavras de Sua Santidade o Dalai Lama concla-mando a

responsabilidade universal me pareceram ainda mais atuais. A roupa que

usamos nãofomos nós que fizemos, a comida que comemos também

não, seres morrem o tempo todo para podermos seguir com nossa vida,

nosso corpo tam-bém não foi gerado por nós, somos herdeiros da

sabedoria dos antepassados que com dor e despreparo aprenderam

lições amargas e as deixaram como legado; é necessário am-pliar

nossos olhos, nossos corações e mentes.

Quem deseja uma base teórica para raciocinar sobre o que tem

acontecido com a humanidade deve estudar cuida-dosamente os 12 elos da

originação interdependente, que são as 12 visões filosóficas que o Buda

aponta como heréticas e causadoras de todos os problemas. Essas visões

são hoje acei-tas e defendidas como verdades, o que explica como

che-gamos onde estamos. A verdadeira compreensão da vacuidade e do

budismo repousa na compreensão dos 12 elos. A verdadeira compreensão


da origem de nossas dificuldades econômicas e sociais também. É um

sistema teórico de grande utilidade para dissolver as dificuldades.

Samsara não pára em suas elaborações. Hoje temos pro-blemas

adicionais aos da época do Buda. Criamos organi-zações que têm uma

lógica própria, diferente da lógica dos seres vivos da roda da vida. Essas

organizações são seres cujos objetivos e força não se

submetemaosreferenciais humanos de felicidade,afeto,estabilidade ou

sustentabili-dade.Também não se submetem aos referenciais ambientais ou

sociais. Têm uma lógica própria e podem viver vidas muito longas se

comparadas às vidas humanas.

Os próprios Estados nacionais começamse submeter a essas

organizações e seres artificiais.Naçõesadotam seus

Diálogos sobre Budismo,Economia e Ecologia 119

ralores,passando a impor aos seres humanos horizontes de posibilidades c

impossibilidadles que tomam amarga a vida humana e a dos outros seres da

biosfera.

Dialogamos constantemente com essas organizações e muitas vezes

percebemos que elas nos deixam progressi-ramente menos humanos. Muitos

de nós tentam humanizar as organizações, mas talvez esteja ocorrendo o

contrário: terminamos nos ajustando a seus valores e visão de mundo.

Lentamente sua linguagem, referenciais, objetivos, limites e necessidades se

tornam nossa própria linguagem, referen-ciais, objetivos, limites e

necessidades. Mesmo entendendo que isso não é bom, aceitamos.


O budismo pode ajudar no enfrentamento desses novos deuses mundanos. Eles

foram construídos por nós como uma cristalização progressiva de nossa visão

conservadora, etapa poretapa. Podemos reprogramá-los do mesmo modo, etapa

poretapa, na direção reversa. É prioritário, e cada um terá de fazer sua parte.

O conjunto de dados e reflexões pode sugerir uma visão negativa do futuro

da humanidade e da biosfera. No entanto, no budismo vemos que a natureza

das coisas e dos seres não é fixa, rígida, pelo contrário, o mundo em que

Vivemos é aquele que construímos. A liberdade é nossa característica básica.

Todos temos a mesma natureza de liberdade,queremosserfelizes e evitar o

sofrimento. Combinando esses fatores,é claro que podemos construit futuros

mais elevados e lúcidospara todos, ambientes onde

possamosdesenvolvervisões elevadas em todas as experiências.

120 O Lama e o Economista

Nāo é nem mesmo necessário que nos defrontemos com tragédias para

aprender. Podemos fazer isso a partir de nossa lucidez natural e das

experiências que já acumulamos como humanidade. A liberdade é a própria

natureza do Buda em nós.

Por outro lado, a visão conservadora será sempre a ori-gem

das dificuldades que enfrentaremos. O Buda da Com-paixão'2 e os

bodisatvas têm por função ouvir os seres em seus mundos

cognitivos estreitos e ajudá-los a ampliar sua visão conservadora

para assim melhorar as perspectivas da humanidade. Isso é um

processo social e, portanto, também político. É o ponto onde

podemos entender o processo polí-tico como inseparável do


processo educacional e espiritual que nos levará progressivamente

a uma cultura mais lúcida.

A atual complexidade da manifestação de samsara desa-fia o bodisatva a

atuar lucidamente em quatro níveis inter-relacionados: individual, interpessoal,

social e ambiental. Essa é a prioridade nos tempos atuais, é o referencial de

que necessitamos para a construção de uma cultura de paz.

Espero que você reflita sobre essas questões e, com o coração

aquecido, participe ativamente do estabelecimento da terra pura da grande

perfeição para proveito de muitos e

12.Também conhecido com Avalokiteshvara,o Buda da Compaixao éa manifestação

da sabedoria ilimitada em beneficio dos seres. Por sua compaixão ilimitada, essa

sabedoria alcanca todos os seres em seus seus vários mundos.

muitos seres. Aspiro especialmente a que todos possam ver o Buda

como um fenômeno vivo, incessante, como sua própria natureza e a

de todas as manifestações. Esta é a realidade.

Sem culpas, apenas olhe o infinito; assim, o finito surgirá como um

ornamento perfeito e você saberá o que fazer. Relaxe,portanto. Guru

Ioga.

Outubro de 2004

Lama Padma Samten


Referências Bibliográficas

ARAÚJO,C.R. V.História do Pensamento Econômico. São

Paulo:Atlas,1998.

BLANCHFIELD,W. C.;OSER,J.História do Pensamento Econômico. São

Paulo: Atlas,1983.

CAVALCANTI, C. Meio Ambiente Sustentável e Politicas Públicas.São

Paulo: Cortez, 1997.

LUTZENBERG,J.Disponível em:www.fgaia.org.br.Acesso em:2003.

NOVAES, W..A Década do Impasse. São Paulo: Estação

Liberdade/Instituto Socioambiental,2002.

Revista SUPERINTERESSANTE.maio 2004,abr.2004.

ROMEIRO,A.R.;REYDON,B.P.;LEONARDI,M.L.A.Eco-nomia do Meio

Ambiente. Campinas: Unicamp; 1996.


edelbra

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Filmes fornecidos pelo Editor.
Vitor Caruso Jr.

Economista formado pela


Universidade de São Paulo (FEA-
USP), com especialização em
Comércio Internacional pela
Universidade de Miami, trainer em
programação neurolingüística pela
Universidade da Califórnia, Santa
Cruz, membro da International
Association of Yoga Therapists e um
dos coordenadores de atividades no
Centro de Estudos Budistas
Paramitta (www.paramitta.org) em
Curitiba.

Um dos fundadores da Ciência


Meditativa(www.cienciameditativa.com)
e autor do livro Com Qualquer Um
de Nós, no qual conta sua
experiência pessoal com o câncer e
como usou terapias complementares
para auxiliar na
cura. É hoje aluno
do lama Padma

Samten..

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