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Obras da Autora ORLANDA AMARÍLIS

FICÇÃO

~ Caes-do-Sodré té Saiamansa (contos), 1.* ed., 1974


— Ilhéus dos pássaros (contos), 1983
— A casa dos mastros (contos), 1989

LITERATURA INFANTIL

Facécias e peripécias, 1990

ESCOLARES

— Folha a folha. Leituras para o 1.° ano de escolaridade, 1987. (Co-autoria com
Maria Alberta Menéres).
— Folha a folha. Caderno de trabalho. (Co-autoria com Maria Alberta Menéres).
CAIS-DO-SODRÉ
TÉ SALAMANSA
2.' edição

Ficha Técnica

Titulo —Cais-do-Sodré té Saiamansa


Autor—Orlanda Amarílis
Capa e arranjo gráfico de Judite Cilia com desenho de Pedro Gregório
Colecção —Africana
Direcção — Manuel Ferreira
Editor—ALAC-(>ífr/'ca, Literatura, Arte e Cultura, Lda.)
Av. Dom Pedro V, 11-2." Oto.
2795 LInda-a-Velha
Tel. 4192274
Distribuição —Diglivro
Rua Ilha do Pico, 3-B —Pontinha —1675 Lisboa
1991
NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA
Para ti, Manila, companheiro destes
largos anos de luta, e também para o
Sérgio e Nano.
Orlanda Amarílis, de seu nome completo Orlanda Amarílis
Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira, natural de Assomada, Santa
Catarina (Cabo Verde), filha de A r m a n d o Napoleão Roiz Fernandes
e de Alice Lopes da Silva Fernandes.
Fez os seus estudos primários na cidade do Mindelo, Ilha de
São Vicente, e secundários no Liceu Gil Eanes da mesma cidade,
que completaria depois em Goa, cidade de Panguim, capital do
então chamado Estado da índia Portuguesa, onde Orlanda Amarílis
viveu cerca de seis anos e c o n c l u i u os estudos do Magistério Pri-
mário. Mais tarde, terminaria o curso de inspectores do ensino
básico e já anteriormente havia completado o Curso de Ciênciais
Pedagógicas na Faculdade de Letras de Lisboa.
Casada com o escritor Manuel Ferreira, no ano de 1945, em
Cabo Verde, quando aquele se encontrava no arquipélago inte-
grando um batalhão expedicionário do exército português, durante
a guerra de 1939-1945, é mãe de Sérgio Manuel Napoleão Ferreira
e Hernâni Donaldo Napoleão Ferreira, o primeiro nascido em Cabo
Verde e o segundo em Goa. Por laços familiares está ligada a f i g u -
ras de várias gerações literárias, tais c o m o Corsino Lopes da Silva,
Baltazar Lopes da Silva, José Lopes da Silva, José Calazans Lopes
da Silva, Félix Lopes da Silva, A r m a n d o Lopes da Silva, Gabriel
Lopes da Silva Mariano, Ivone Ramos, Yolanda Morazzo Lopes da
Silva, sendo ainda de registar o facto de Armand o Napoleão Fer-
nandes, seu pai, ter sido o primeiro a elaborar, sistematicamente, e
durante muitos anos, um dicionário crioulo-português, ora publicado.
A c o m p a n h a n d o o mar^ido em deslocações de natureza profis-
sional ou especificamente cultural o u , então, a convite a ambos
dirigido, visitou a Nigéria, o Canadá, Estados Unidos da América, a
União Indiana e, particularmente Goa, e ainda Moçambiqu e e
Angola, chegando a conhecer o Sudão e o Egipto, tendo feito
intervenções culturais públicas em Goa, Estados Unidos da A m é -
rica, Itália, Canadá, Holanda, Espanha (Galiza) e inclusive Cabo

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Verde, aquando da sua participação no Encontro sobre Cultura e
Literatura Caboverdianas, realizado em 1986, sob a égide das
Comemorações do 50." Aniversário da fundação da revista 'Claridade.
Pertence ao Movimento Português Contra o Apartheid, ao
Movimento Português para a Paz, e é membro da Associação Por-
tuguesa de Escritores e do Pen Club, tendo pertencido aos corpos
gerentes de ambos organismos.
Iniciou a sua carreira literária colaborando na Certeza (1944),
revista que, depois da Claridade, marcou um momento extrema-
mente significativo da vida cultural caboverdiana. Posteriormente

CAIS-DO-SODRÉ
colaborou c o m o ficcionista em várias revistas, tais c o m o COLÓ-
QUIO/Letras, África, Loreto 13, da Associação Portuguesa de Escri-
tores e está representada em várias antologias: Escrita e Combate
(1976); Contos —O Campo da Palavra (1985); Fantástico no Femi-
nino (1985); e ainda em Afecto às Letras —Obra Colectiva de
Homenagem da Literatura Contemporânea a Jacinto do Prado Coe-
lho (1984), bem c o m o na antologia em língua alemã de contistas
africanos: Frauen in der Dritten Weit, RFA (1986) e na antologia de
escritores caboverdianos, em língua inglesa: Across the Atlantic: An
Anthology of Cape Verdean Literature, Estados Unidos da América
(1988). Contos seus foram ainda traduzidos para o russo, o h ú n -
garo, holandês e italiano,
Orlanda Amarílis, publicando agora esta 2." edição da colecção
de contos do seu livro de estreia, Cais-do Sodré té Saiamansa per-
segue um caminho de ficcionista de grande dignidade e qualidade
literária, cujo talento tem sido reconhecido por críticos portugueses
c o m o Jacinto do Prado Coelho, Duarte Faria, Fernando Assis
Pacheco, Casimiro de Brito, Pires Laranjeira, Elsa Rodrigues, Isabel
Ramos, Alberto Carvalho, Armando Ventura Ferreira, Ramiro Tei-
xeira, e brasileiros, como Maria Lúcia Lepecki, Fernando Mendonça,
Maria Aparecida Santilli; ou americanos como Mc Nab e Russel
Hamilton.
Por nós, e correndo todos os riscos de alguma suspeição, não
receamos minimamente que seja em afirmar que, pela obra publi-
cada, incluindo no âmbito da literatura infanto-juvenil, Orlanda
Amarílis continua a inscrever o seu nome no grupo dos melhores
ficclonistas caboverdianos.

M. F.
J

«É devera, não estava a reconhecê-la.»


Andresa rebusca na memória a família da cara parada na sua
frente. Parece daquela gente de nhô Teofe, um de S. Nicolau a
quem os estudantes tinham alcunhado de Benjamim Franl<lin. Ou
será parente de nhô António Pitra, irmão do Faia há muito embar-
cado para a Argentina?
Oh gente, se encontra pessoas, c o m o ela, vindas daquelas ter-
ras de espreguiçament o e lazeira, associa-se quase sempre a uma
ou outra família. Se não as conhece, b o m , de certeza conheceu o
pai, ou o primo ou o irmão, ou ainda uma tia velha, doceira de fama,
até talvez uma das criadas lá da casa. E a conversa, por esse elo,
estende-se, alarga-se, num desfolhar calmo, arrastado, saboroso
quase sempre.
«Sabe, eu estava a olhar para si porque vi logo ser gente da
minha terra», c o n t i n u o u Andresa, olhando e sorrindo para a figura
seca de carnes sentada a seu lado.
Esta sorriu também. Um sorriso tímido e descansado.
Encorajada, Andresa ainda arriscou:
«Está cá há muito tempo?»
«Sim, já vai para dois meses. Não é muito tempo, mas já é
alguma coisa.»
Andresa ajeita a mala sobre os joelhos, acaricia o fecho de tar-
taruga, num gesto vago, sem atinar porque dera conversa à
senhora. Conchêl, porquê? Donde? Só se for do t e m p o de chá de
fedagosa. Sou mesmo disparatenta. Se eu era Andresa Silva,
Andresa filha de nhô Toi Silva de Casa Madeira? Sim senhora, sou
Andresa, sobrinha de nh'Ana, filha de nhô Toi. É sim. Mais conversa
pâ mode quê? Ainda hei-de perder essas manias. Manias de dar
trela a t o d o o biscareta da minha terra. Apareça-me pela frente seja
quem for, não conheço, acabou-se.
Suas unhas delineam o fecho de tartaruga e o olhar perde-se
no brilho negro da mala de verniz.

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«Bem, se não fosse a doença do Papá, eu estava agora aqui? «Não se lembra de meu pai, pois não?»
Ah mô, não. Fazer o quê.» «Não», confessa Andresa. «Na verdade não me lembro muito
Andresa pisca os olhos e surpreende-se a responder. És tu bem dele. Sabe, já lá vão quinze anos eu vim da nossa terra.»
mesma, Andresa, és tu a dar sequência a esta conversa insípida. «Pois é, pois é.»
Poderias tê-la evitado, mas as conversas são assim. Têm um fio, um E c o m p o n d o outro t o m .
caminho a percorrer. Não te admires pois por te teres arriscado. «Meu pai era Simão Filili do Alto de Celarine.»
«Ah! Seu pai está doente?» «Ah! O seu pai era nhô Simão Filili? Eu julgava (estava a mentir)
«Papá morreu.» que a senhora fosse sobrinha dele.»
A voz morreu também num sopro. «Éramos eu e a minha irmã Zinha que Deus-haja. Eu sou a
«Desculpe, eu não sabia», lastimou Andresa. Tanha. Raparigas éramos só as duas.»
A senhora procurou um lenço na carteira e assoou-se. Guar- «Recordo-me muito bem da Zinha. Estava toda certa vocês
dou-o, fechou a carteira e pôs-se a olhar para a biqueira dos sapatos. eram primas (outra mentirinha para acabar de c o m p o r o ramo). Era
«Ele não queria embarcar nem dado de pau na cabeça. Quando bonitinha.»
Dr. Santos aconselhou-o a ser visto por um especialista e alvitrou «Era, coitada.»
para apanharmos o primeiro barco, ele fez um escarcéu, nhor Deus! Agora sim, Andresa conseguiu mais ou menos os cordéis e
Não vinha, não vinha! Por f i m , t o m o u um ar arregaçado e fez uma sente-se à vontade. Quem poderia esquecer o homem pequenino e
guerra lá em casa. Falou, falou. Bateu com o punho fechado em c h u p a d o daquela casa vermelha ali no Alto de Celarine? Só quem
cima da mesa e avisou-nos a todos: Ninguém mandava nele, era nunca tivesse ouvido contar histórias de g o n g o n , histórias de cor-
ainda homem da sua cabeça. Foi um caso sério convencê-lo. Disse rentes arrastadas na estrada da Pontinha, em noites de ventania, por
mais coisas. Brigou, brigou, até ficar a nhongor na cadeira de lona. artes de xuxo, ou das trupidas de cavalos a atravessarem a morada
Estou mesmo a vê-lo, cabeça descaída sobre a queixada, mãos por volta da madrugada. O povo só se lhes referia ao barulho fra-
abandonadas no regaço. De vez em quando despertava, levantava a goroso das patas raspando o empedrado. Andavam a pregar a
cabeça e abria os olhos para os fechar logo e continuar a nhongor. t u m b a de nhô Rei Vendido, dizia-se. Nha Xenxa, viúva do nhô João
Para continuar na pesca da moreia. Coitado! Estava a adivinhar.» Sena, contava, e a voz velava-se-lhe de medo, ter ouvido certa oca-
Respirou pausadamente. «Costumava dizer: Se eu der uma saltada sião uma voz de entre o galopear troador. Ela bem a tinha reco-
até Lisboa, vou à Estufa Fria, vou ao Coliseu, e depois, vou de l o n - nhecido. Era nhô Simão Filili a mandar: Aperta a brida da alimária
gada até ao Minho.» de meu pai. Minhas esporas, minhas esporinhas, minha cilha, minha
Esta pequena história já vem sendo repetida inúmeras vezes, cilhinha! Eram más horas e nha Xenxa foi tomada de um pesadelo,
A senhora sente necessidade de a recontar, por desabafo, para se senhores! Só se acalmou porque a filha, acordada pelos gemidos
aliviar: da mãe, lhe aplicara um bom par de bofetadas,
Andresa repara no luto carregado da patrícia, Andresa analisa a patrícia a seu lado. Tem um aspecto tão
«Ele não resistiu à viagem. Dois dias depois de chegarmos, apagado. Passará por esta vida sem se dar por ela. Olha, curiosa,
morreu no Hospital do Ultramar.» para a face lisa da Tanha, ensombrada por olheiras escuras, mais
«Coitado», disse Andresa por dizer, c o m o se a conversa não escuras que o amulatado da sua face e lhe emprestam aos olhos
devesse ficar por aí. uma melancolia saudosa. Que idade terá a Tanha? Uns trinta? Dis-
«É verdade. Pouca sorte,» parate, deve ser uma quarentona bem entrada. Com certeza. Andava
Tira o lenço da mala e chega-o outra vez ao nariz. ela no liceu e lembra-se da Tanha, já rapariga feita, a namorar da
«É verdade.» Era ainda a senhora a desabafar. «Toda a vida a janela do sobrado com um moço de Santo Antão, filho de nhô
pensar em vir até Lisboa, toda a vida a pensar nesta viagem para Pedro de nha Mari Barba. Por sinal, era um bêbedo incorrigível.
afinal.» Apanhava cada fusca de se lhe tirar o chapéu. Fuscas de descom-
De olhos descidos, Andresa arranja a saia. Tinha subido, dei- por toda a gente. Começava a covar, mãe deste é tal e tal, e pai
xando-lhe a descoberto os joelhos ossudos. daquele é assim e assado, bô é filha de solteira, aquele não casou

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com tua mãe. Oh nha mãe! Quem pass3sse por ele nesses m o m e n - Em passo calmo entrou no bar e pediu um café. Teria de espe-
tos apanhava o seu chá. Bô também é trivide de pé-descalço. Senta rar meia hora por novo c o m b o i o . Sorveu o líquido quente. Soube-
num cabo, senta. As pessoas riam mas fugiam daquele moço de -Ihe bem.
Santo Antão. Moço desaforado devera! Bô sabe. Santo Antão tem Outra vez na gare, acendeu um cigarro e ocupou no banco o
muito g r o g u e e esses moços habituam-se a tomar e depois é essa lugar de há p o u c o .
pouca-vergonha de covar cada cristão sossegado no seu caminho. Estava-se na Primavera, mas as tardes continuavam cinzentas e
Movida não sabe por que curiosidade, indagou: com ar ensonado. A gare vazia de comboios parecia mais clara, no
entanto.
«A senhora está cá sozinha?»
Não chega a"compreender porque se constrangia a acompanhar
Tanha levantou os olhos, virou a cara para Andresa e teve um
a Tanha. Estar à espera do marido estava, mas não havia problema.
sorriso de convívio, um sorriso das pessoas daquelas terras se
Podia ir com a Tanha pela linha adiante e matar saudades, a ouvir
encontram pessoas conhecidas, patrícios, amigos antigos.
a fala descansada e sabe de Soncente, fala de conversa de novidades.
«Bem, eu tenho cá o meu irmão Júlio . Júlio já é médico, mas O cigarro esquecido entre os dedos ganha um morrão c o m -
está casado. Casou com uma rapariga daqui. Com uma mondronga.» prido e cinzento.
Andresa estranhou: De há algum tempo para cá acontece-lhe isto. Vê um patrício,
«O seu irmão já está formado? Não sabia.» sente necessidade de lhe falar, de estabelecer uma ponte para lhe
«Oh, sim», e Tanha sorriu satisfeita. «Acabou o curso há uns recordar a sua gente, a sua terra. Entretanto, feito o contacto, o
desencanto começa a apoderar-se dela. Qualquer coisa bem no
quatro anos. Eu podia ter ficado em casa de meu irmão, mas preferi
íntimo lho faz sentir. Não há afinidades nenhumas com as pessoas
ficar com as minhas primas em Oeiras.»
de há quinze anos para trás. Nem são as mesmas. Topa-os aqui e
Baixando a voz, confidenciou: ali, no Rossio, na Estrela, espalhados por Lisboa, no Camões aos
«As mondrongas são atrevidas e em casa das minhas primas domingos de manhã, no Conde Barão, no Cais do Sodré.
estou mais à vontade.» Nhô Simão Filili vivo, por certo continuaria a ser a mesma
Andresa sorriu. C o n t i n u o u a sorrir e a olhar a gare vazia. Era a figura lendária e de meter respeito. Era de uma raça! Toda a gente
uma dessas horas mortas da tarde quando os comboios levam meia conhecia Nhô Simão Filili. Nhô Simão Escochóde, segredavam os
dúzia de passageiros. Espalham-se pelas carruagens e aguardam, meninos.
pacientes, o momento da partida. Uma inglesa ruiva, de bengala, senta-se a seu lado.
Um c o m b o i o entrou na gare e veio parar junto delas. Tanha Andresa atira para longe o cigarro e cruza as pernas.
levantou-se e passou a mão pela saia. Segurava com ar desajeitado Conhecera Nhô Simão num dia de mormaço.
as luvas e a mala. Tinha ido na tarde calorenta entregar um volume de As Farpas
«Deve ser este.» emprestado pelo pai e encontrara-o sentado num banco, à porta de
«Deve ser», c o n f i r m o u Andresa. «Mas não deve partir antes de casa, com um manduco a escavar e a fazer riscos no chão.
dez minutos.» Mirrado, possivelmente devido à muita nhongra e fominha,
«Sim, mas vou andando. Fico mais descansada.» fjossuía c o n t u d o um falar alterado. Assarapantava quem nunca o
Sorria outra vez. Os cabelos negros, bem puxados e seguros tivesse ouvido. As palavras enrolavam-se-lhe na boca como casca-
com molas, emprestavann-lhe um ar esfíngico. lhos arrastados até à praia por ondas bravias. Saíam, ao cabo, sol-
Andresa acompanhou-a por momentos. tas, desconsertadas, e sempre intencionais. Falava assim por ser
«Sabe, eu podia ir consigo. Moro em Caxias. Mas estou à maçónico, dizia-se. Era da maçonaria, confirmava o povo, fazia artes
espera do meu marido.» c o m o as feiticeiras. Só lhe faltava o rabo escondido por baixo das
Calou-se, No fundo , irritada consigo mesma. Lá estive eu com saias compridas das bruxas de Tchada Além, o rabo como o dos
explicações. Levo a vida nisso. Ora, não vou com ela porque não sanchos da Travessa do Monte. Nha Chica Maçaroca, a bruxa da
estou mesmo nada interessada. Para conversa já chega. Achada, quase se lhe via a ponta do rabo a arrastar pelo pó da

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estrada. E as criadas embalavam os meninos: Nha Chica Maçaroca e o povo murmurava. Doença assim não podia ter outra origem
ta buli ta bai, ta buli ta bem. senão mal-feitiço feito pela amante preta de Bissau. Vocês não
Bia Antónia, a velha criada da casa, era quem contava estas e sabiam? Gente da Guiné fazia mal-feitiço por tudo e por nada.
outras patranhas à Andresa. Depois do jantar, Bia Antónia sentava-se T a m b é m não era novidade: Qualquer rapaz solteiro costumava
num caixote, perto da escada, na varanda sobranceira ao quintal. arranjar a sua rapariga e, muitas vezes, um ou dois filhos antes de
Entre duas fumaças do canhoto sempre dependurado no canto da casar c o m outra. Q u a n t o à Zinha, mal-feitiço ou não, a verdade era
ela estar doente. Mal-feitiço ou não, muita gente nova em Soncente
boca, a serva desfiava um ror de histórias. Andresa, debruçada à
morria tuberculos a e, se crianças ainda, morriam de febre tifóide, e
varanda, ouvia-a distraída.
se meninos de mama, morriam com desinteria. Então, pâ mode quê
Bia Antónia discorria, convicta.
tanta tolice de boca para fora?
«A primeira prova para um h o m e m ser maçonco é atravessar
descalço um mar de alfinetes. Dezide, menina, nhô Simão Filili fez Murmurava-se à boca pequena, e um dia a notícia correu as
esta prova c o m o nenhum outro, la a atravessar o mar de alfinetes, ruas de cima a baixo não se sabe como. Zinha enviara um tele-
ouviu uma trupida. Pareciam cavalos de. gente-gentio, catrapau, grama ao noivo a romper o compromisso . Ninguém comentou o
catrapau. Dente cerrado, não voltou a cara para trás, e os cavalos caso, todavia, a cidade aprovou. Sim, senhora. Era a única saída
catrapau, catrapau. Nhô Simão, desorientado, roupa rachada, baba para acabar com o mal-feitiço sobre a doente. Isso não obstou, no
a escorrer, mãos picadas, nunca voltou a cara para trás.» entanto, de a Zinha vir a falecer p o u c o t e m p o depois, numa
Bia Antónia chupava mão-fechado a arder lento no canhoto madrugada, ainda o galo não havia cantado duas vezes.
esquecido ao canto da boca. Tanha andara aflita com ataques de espuma na boca e gritos
«E depois?», perguntava Andresa. para a vizinhança ouvir, o pai não consentira na vinda de nhô padre
A velha serva levantava os olhos papudos para Andresa e res- para dar à irmã os últimos sacramentos e, entretanto, já se falava
pondia: na morada. O enterro ia ser religioso.
«Agora, falado ele comanda todas as noites um vapor de guerra Andresa relembra estes sucedimentos e afigura-se-lhe nunca
ali na Pontinha.» terem acontecido, tanto mais, mal assistira a eles. Ainda uma vez,
«Que casta de conversa é esta, Bia Antónia?» Bia Antónia, à noite, sentada como de costume, no caixote ao pé
«Sim senhora, é devera. Por artes de maçonaria ele costuma da escada de acesso ao quintal, desfia o resto desta história de
gongom.
fazer aparecer um vapor de guerra ao bater da meia-noite. Gentes
já o têm visto, todo fardado de branco. Nha Xenxa mora mesmo por «Oiça menina — e a criada chupa duas vezes pelo pipo do seu
cima da Pontinha e sente-o toda a santa noite. É um arrastar de canhoto meio a p a g a d o — , oiça, quando nhô Padre chegou à porta
ferros e é nhô Simão a gritar a noite inteira para a marinhagem.» de nhô Simão Filili não foi capaz de entrar.»
«Mas nha Xenxa viu-o?», tornava Andresa incrédula. Andresa haveria de continuar a olhar os ramos da tamareira,
«Não senhora, nha Xenxa é mulher cristã. Ela benze-se e reza longos, caídos, varrendo, com o ventinho tépido da noite, a roldana
responsos, uái, maçoncos têm pacto com o xuxo.» presa com cordas de carrapato a três toros entrançados sobre a
Andresa gostava de ouvir estas histórias espalhadas pela boca boca do poço.
do povo. E o povo acreditava tanto nelas a ponto de nhô Simão Filili
«Aquela casa está assombrada, menina.»
tornar-se temido e respeitado de ponta a ponta da ilha.
O maior brado fora no dia da morte da Zinha. Ninguém o Bia Antónia coça a cabeça por debaixo do lenço para depois
esqueceu. O acontecimento preenchera tardes e serões das casas continuar no mesmo t o m :
da morada por muitos e muitos dias e daí todos ficarem convenci- «Nhô Simão Filili m a n d o u forrar a sala onde estava o caixão e
dos. Ele era mação de verdade. E o círculo de lendas à volta de também a porta da entrada, tudo com folhas de palmeira, e esperou
nhô Simão Filili mais se avolumou ainda. nhô Padre. Ah, também pôs um ramo grande sobre o peito e cruzou
Zinha andava doente há longos meses de uma doença esqui- os braços bem cruzados sobre ele.»
sita. A pele virara-se-lhe baça e de cor suja. O noivo lá para a Guiné

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o vento assobiava mais rijo e Bia Antónia aconcliega-se meltior
no mandrião de riscado. Andresa deixara escorrer um cuspiniio
aguado sobre as pedras do quintal.
«Quando nhô Padre lá chegou viu tamanho aparato de maço-
naria, voltou as costas e não passou da entrada da porta. Casa
e x c o m u n g a d a ! Dezide menina Tanha está farta de chorar. Sabe, o
enterro passou por detrás da igreja. Oh, mas na sua companha
foram dois violões e um violino a tocarem mornas até ao cemitério.
Poisa as mãos sobre os joelhos e, c o m esforço, levanta-se do
caixote onde se tinha sentado. Levou as mãos à ilharga onde as
descansou num laivo de espreguiçar, levantando-se nos bicos dos
pés descalços. Momentos depois, acrescentou: NINA
«Toda a gente na sua companha chorou bem chorado. Foi
muito chorada ela.»
Andresa relembra tudo isto com tanta minúcia como se se
nunca se tivesse despegado da Mãe-Terra e tivesse continuado as
pegadas de nhô Simão Filili, de nhô Faia, de A n t o n i n h o Ligório, do
Pitra.
A seu lado, a inglesa ruiva continua sua companheira de banco.
Na gare vazia descobre o comboio.
Levanta-se e começa a andar. Junto à segunda carruagem
espreita. Tanha, olhar descansado, a face serena, num canto do
assento como se devessem caber aí mais umas cinco pessoas ainda
no mesmo banco, sorri para Andresa.
Coitada de Tanha! Vou com ela até Caxias.
«Nina! Oh Nina!»
A rapariga de olhos azuis caminha e não ouve. Ou finge não
ouvir,
«Nina! Parabéns!»
O rapaz acaba de descer os vidros da janela do c o m b o i o . Nina
andou dois ou mais metros além, na gare, pára e volta-se. Levanta
o queixo com ar reservado em direcção da voz.
«Nina, nunca mais te vi.»
Ela reconhece-o e a boca é um sorriso. Morre pelo caminho e
torna-se distante e incolor.
«Ah!»
«Nunca mais te vi.»
E o companheiro, debruçado pelas axilas, mostra na face escu-
recida pela barba a efusão. Quere-a comunicar à Nina,
Do calcetado de pedrinhas brancas e chatas da gare, a figura
de Nina sobressai, linear e abstracta.
Ela aguarda, parada, indecisa, glacial.
Ele surpreende-se inseguro. Não consegue divisar as feições
familiares durante tanto tempo. Ter-se-á enganado? Apetece-lhe
afundar-se no assento azul da carruagem de primeira classe.
Um apito soa-lhe a saxofone, depois esvai-se sem chegar ao
i f u n d o da gare. É o c o m b o i o das trinta e cinco a partir. A silhueta
ida possível Nina recorta-se, brusca, no vazio deixado pelo comboio ,
v; Passageiros entram e sentam-se, uns pesados, outros displi-
vpentes. Os assentos chiam com macieza. São pneus e esvaziarem-
-se, lentamente.
Pela porta aberta, uma lufada de ar faz corrente c o m a outra ao
'imundo da carruagem. Um arrepio percorre-o, e, retirando o braço
igíom dificuldade da janela onde se d e b r u ç o u, leva a mão ao bolso.
;9 lenço atalha um espirro fugidio. O momento desenrola-se c o m o
iti,ma certeza: o espirro e o lenço nas suas mãos. Tremem por
segundos e são firmes agora. Firmes e serenas c o m o o seu espírito.
É Nina, é. Conlnece-a tão bem. Fora iióspede da tia de Nina, preci- Alisa, de novo, o cabelo sobre a fronte curta, num costume dis-
traído.
samente quando viera para se matricular em agronomia. Nesse
tempo era uma pirralha de tranças. Entrava-lhe pelo quarto para Na verdade, não foi com a Nina com quem falou. Não foi com
comerem juntos as pequenas guloseimas recebidas todos os meses a companheira das pândegas. Let me see my love! O disco soluça.
e acondicionadas em caixas num canto do quarto. Assim se torna- O histerismo da voz empolga-os. Voz bêbada e angustiada. Batem
ram amigos e ele a conquistara ensinando-lhe a comer daquelas as mãos, acompanham o ritmo de aquecer. As coxas meneiam, as
comidas: cuscuz torrado com mel, doce de papaia, farinha de pau. pernas gingam, nervosas. Hé... hé... hé. T r o n c o para trás. Assim.
Nina crescera e, não sem surpresa, verificara com certa piada: Hé... hé... Let me see my love! Para a frente. Ui, ui. As mãos esta-
tinha-se feito-uma rapariga com personalidade, além de camaradona lam, o suor empasta-os e suas bocas fendem-se em riso por entre a
formidável. Os bailes na Casa dos Estudantes cimentaram, de vez, respiração entrecortada. Cansados, encostam-se ao gira-discos.
a amizade. Levara-a lá uma tarde para um chá-dançante, e desde Continuam a marcar o compasso. A voz do disco comanda. Cigar-
esse domingo sentiram-se compinchas para as futuras farras. E ainda ros pisados com o pé e os outros continuam o mesmo balancear
vieram a ser muitas. Sorri. doido, doido. Gargalhadas enovelam-se no ar, na quentura das noi-
tes calmosas da época. Eram muitos e iam em corrida tonta. Estoril,
O c o m b o i o dá o sinal de partida. Nina ou a sósia de Nina
Guincho, sabe-se lá. Frases só deles, do grupo.
reprime um ar impaciente.
«Estupidez absoluta.»
«Nunca mais te vi.»
«É pá, falaste ou cuspiste?»
As mãos do rapaz estendem-se com entusiasmo.
«Ai perdi o Tó. Isto é uma soda. Já sabes a dos gorilas?»
«Casaste? Parabéns!»
«Tá quieto, daí não me levas.»
Nina fustiga a cabeça. Sustém um penteado moderno. Res-
Escorrega no assento, deixa pender a cabeça e estica o lábio
ponde desinteressada, estranha. inferior num jeito peculiar.
«Ah! Vais neste comboio?» Nina pusera-o knock-out, pensa, revendo a cena da gare. Não
A voz cai sobre as pedrinhas e chega sem calor até ele.
lhe permitira a aproximação, sequer, do mundo diferente a que ela
Ó rapaz confirma, desconcertado. Nina começa a andar pela
pertencia agora. Arredara-o com a segurança sempre usada quando
gare, depois, sem se voltar, faz um gesto com a mão. era preciso escolher.
O comboio, desanda, vagaroso, e ele afunda-se no lugar. Assobia baixinho, derivado.
O sol corre os vidros e poisa, em rectângulo, no espaldar do T i n h a m mantido um flirt por longo tempo. Uns beijos, umas
último assento, brincando com os tons quentes. Forram a carrua- coisas sem importância, no entanto, nunca tomadas a sério. Sempre
gem, aqui e ali. pensara terminar o curso e voltar para Cabo Verde, onde casaria
Por detrás dos vidros, são agora dois, porque estão descidos, com uma crioula sabe-de-mundo,
vê ainda Nina. Segue direita, calma e inconfundível. Houve um dia, ela entrou-lhe pelo quarto para lhe pedir uma
Passa as mãos pelos cabelos e comprime-os sobre a testa esferográfica. Ele levantara-se de onde estava e fora postar-se atrás
curta. A senhora ao lado olha-o e sorri. Ele irrita-se e franze a testa. da porta, tendo o cuidado de a fechar. Nina ainda inclinada sobre a
Sente-a importuna dentro deste momento que se arrepende de ter mesa à procura da esferográfica volta-se, brusca, mostrando uma
acontecido. expressão dura, aliás já conhecida de outras ocasiões.
Santos, Alcântara, Algés. Ele dera uma gargalhada indo sentar-se.
O c o m b o i o enche-se pelo caminho, as carruagens tornam-se Fincou os cotovelos sobre a mesa, descansou o queixo nas
pequenas e o ambiente é abafado. As coxias vão-se enchendo mãos e olhara-a trocista.
também. Uma'sensação incomodativa e viscosa escorrega por ele «És parva, tinha-lhe dito.»
abaixo até parar nos seus pés húmidos. Uma ruga vinca-se-lhe entre Nina não lhe respondeu. Todavia, faz-lhe sentir daí a dias.
as sobrancelhas cerradas, enquanto olha, de spsiaio, para a senhora Nunca casaria com ele. Aborrecia-a a ideia de vir a ter filhos de cor.
a mastigar, linha por linha, a página do livro entre as mãos. Estamos quites, pensa ele enquanto a mede dos pés à cabeça.

22 23
Continuaram amigos como se nada se tivesse passado. No
entanto, o namorico ficou por aí.
Encollie os ombros.
«Ain, Nina, tás c o m a mosca da nova vida. Há-de te passar!»
O c o m b o i o entra com deslocação rápida de ar no túnel de
Caxias. Roda gingão sobre os trilhos para parar, amolengado, na
gare. As portas assobiam como lixa, afastando-se para receber uma
onda de back-stick no ar. É uma presença enjoativa.
«Olha quem ele é!»
O c o m b o i o despega c o m um arranco. Tem vontade de voltar a
ROLANDO DE NHA
cabeça para ver os novos companheiros. Riem e falam alto atrás
dele. Todavia, conserva-se olhando em frente.
Chatos.
CONCHA
A conversa atabafa-lhe os pensamentos.
«Olha quem ele é!»
Volta a cabeça e enruga o sobrolho.
«Queres ir connosco?»
Levanta-se e aproxima-se deles. O baixinho aspira o f u m o e
engasga-se. Ela explica e mastiga.
«Vamos prà li. Vamos estar um bocado ao ar livre.»
Os dedos apontam na direcção do vidro descido, para além
dele. A bola beije passa de um para o outro maxilar e ela comprime-a
entre os dentes fortes. Ela mastiga e arma um sorriso. Os dedos
puxam a pastilha elástica segura entre os dentes da frente.
«Os outros estão à nossa espera. Levam sandes e dry gin.^>
Foi a loura quem falou agora. Uns olhos azuis, azuis c o m o os
de Nina, fitam-no, frios e alheios, porém.
Nina? Qual Nina? A Nina das pândegas, das gargalhadas
intempestivas, a dos cigarros fumados a meias, ou aquela, a tal da
gare, senhoril, de riso incolor e distante? Tão distante c o m o t u d o a
separá-los já um do outro.
O baixinho dissimula um arroto, agarra o saco e põe-no a tira-
colo. A loira e a outra ainda a mastigar, roçam-no e seguem corre-
dor fora, deixando atrás de si o mesmo odor enjoativo a back-stick.
Ainda a mastigar, a bola beije a desandar na boca, a tentá-lo:
«Se quiseres, estamos ali.»
E faz um gesto de pedir boleia a indicar o sítio para onde vão
c o m os outros. Esperam-nas para além do vidro, para além do sol
sobre as casas.
Levam sandes e dry gin.

24
Ah, o alarido por essas ruas fora. Gente acorria de todos os
;|ados, tocada pelo mesmo vento que a arrebanhava e impelia, j u n -
'tava-a, levava-a em magote, sempre a correr e a gritar.
Vieram do Lombo, do Monte Sossego, da Chã do Alecrim, de
Fonte Cónego, as mulheres segurando o lenço com a mão espal-
siipada no alto da cabeça, deixando uma guisa comprida no seu
casto. Bia Tuda, Djô, Toi Pirico, Mari Delaide, Dchilinha, Guida de
hô Totone e'vocês todos desencantados de Fonte Filipe, de Ribeira
iBote, de todos os cantos da morada, para quê tanta desorientação?
•4 Garotos e n t u s i a s m a d os c o m a c o r r i d a seguiam as pegadas
,©s mais velhos. A cidade era pequena, sim senhor, longa de atra-
vessar porém.
,*i Janelas foram-se abrindo e caras assomadiças indagavam na
jiia mudez qual a razão de tanto alvoroço a perturbar a quietude
.'amanhã.
Tinham atravessado a Praça Nova, a Rua da Papa Fria, outros
j^sceram a Rua de Serra para se lhes juntar no largo do Palácio,
•'tios enfim no Alto do Pelourinho.
Ninguém falava. Só gritavam e batiam os pés descalços na cal-
cada fresca das ruas. Debruçados nas varandas ou detrás das per-
!nas meio abertas, os moradores acompanhavam o som cavo da
!pida c o m o milho a ser moído para a papa de rolão do meio-dia.
No largo da Câmara associou-se mais povo àquele povoléu,
^eguiram ainda por uma rua estreita e suja de pó de carvão, a
íisembocar no largo da Salina.
A praça de terra avermelhada, arrematada nos lados por clubes.
Ir algumas casas de primeiro andar e por coqueiros abanando-se
íguiçosos por detrás de um muro encardido, recebeu serena os
nus a pisarem-na na corrida.
Nem mais um grito se ouviu. O silêncio cobriu a praça, alon-
do-se, espraiando-se sobre o cascalho miúdo, abrasados agora,
iem passo mole alcançaram o rabo-de-Salina.

27
No c o m e ç o da subida d o monte espraiam o olhar para além Recompôs-se irada, mal refeita de pasmo. Quedou-se por
deles próprios. Os pés fincaram-se na terra seca e vermelha, momentos e atirou-se de chofre à cabeça de Djula. Era quem estava
semeada de seixos minúsculos. mais próximo. Segurou-a pelo braço e, arrancando-lhe o lenço gar-
C o m o se arremetera a camioneta do nhô Mané Virgil, daquela rido da cabeça, arremessou-o ao chão com desaforo. «Bô é que
empurrá-me,» Tentava agora não deixar escapar a mecha de cabelo
maneira assim, para dentro dessa casa duma gente que aí morava
cuscuz de Djula. Nunca crescia o cabelo cuscuz de Djula e C a n d i -
dias-há?
nha segurava-o c o m raiva entre os dedos ásperos. A sua pele de
Dezenas de pares de olhos pousaram sobre a camioneta meio
tâmara passada ganho u brilho. Djula abriu os olhos de espanto e
emborcada. Um pouco além, moscas zumbiam, descontraídas, não perdeu a compostura.
longe de um corpo mal coberto por uma toalha. Os pés alongavam-se
Uns moços começaram a rir, encolheram os ombros e volta-
tensos nas sandálias, sujos de sangue já seco.
ram-lhes as costas. Num abraço mudo e enrodilhadas, rebolaram
«Ele morreu?», perguntou T o i Pirico, espreitando sob o pano
no chão enliadas uma na outra. Ninguém quis saber das doidas
onde se escondia a cara ensanguentada de Rolando.
desaforadas. Mais pareciam cadelas no cio.
Um moço, até aí sentado numa pedra, levantou-se e, de mãos
«Quem vai levar esse coitado para o hospital?»
nas ilhargas, respondeu: «Estão a ver isso? Eh, suas doidas, c o m o é então!»
«Deus não há-de querer.»
Djula levantou-se com sangue a escorrer pelo canto da boca.
Olhara para o mar de cabeças. Esticaram os pescoços e A p r o x i m o u - s e e, por detrás do ajuntamento, cuspiu e espreitou.
aguardaram, A testa ocre da terra, as maçãs do rosto sujas também, outra vez
O moço então explicou: passou a mão pela cara, Nha Guida viera do seu botequim perto de
«Dr. Monteiro já mandou ordens para o levarem ao hospital.» N h ô M o c h o ali mesmo no Monte Sossego, e ia-a analisando, repro-
Foram-se aproximando, juntando-se acabando por se empurra- vativa, Invectivou-a ao cabo:
rem uns aos outros na ânsia de quererem ver o corpo mutilado «Menina, tu és disparatenta deveras. Por esta hora da manhã,
coberto com a toalha feita de saco de farinha Gold Meai. quando uma pessoa ainda não desjujuou, onde é que foste arranjar
G o l d Meai é uma farinha tão branquinha e tão fina, gente. força para tanta voluntareza?»
Mandam-na da América. Também mandam farinha de milho. Com Virou-se para o lado e falou para as mais chegadas.
farinha de milho fazemos fongos assados na brasa quente, fazemos «Essas meninas de agora não têm propósito. Vocês estão a ver
brinholas amassadas com banana madura, banana platcha apa- este pouco-respeito?»
nhada no pelourinho na loja de nha Carlota e noutros lugares mais Djula pareceu de repente ser tomada de fúria porque c o m e ç o u
onde se vende fruta. Nós só apanhamos a fruta muito madura, é a gritar de mãos na cintura.
preciso compreender. Nós não' roubamos, não senhor. Só a apa- «Você não tem nada c o m isso, nha Guida. Está a chamar-me
nhamos, só a chocamos. É pecado chocar uma banana para aparar desproposenta? O que é que quer? Quer ir buscar o lato para me
a fraqueza d o nosso estômago? A h ! T a m b é m nos mandam leite em bater? Quer? Quem manda em mim é nha pai e nha mãe. Que é
pó banha roupa. Olá, Jóna, não te mandaram um fato de banho que você quer então? Quer ir buscar o lato? Quer? Vá depressa,
para dares uns mergulhos na Matiota? -então. Vá, vá!»
Todos queriam ver e Candinha acabaria por ser empurrada, até Por m o m e n t os o g r u p o esqueceu Rolando de nha C o n c h a
se estirar contra uma carroça de monturo da Câmara. Mesmo assim ,'eolhido em hora minguada pela camioneta de nhô Mané Virgil.
estava ainda a espreitar e a empurrar também —parecia uma festa—, «Menina, tu estás alterada deveras. E mal assistida».
e quando deu por si, encontrava-se de costas sem defesa, numa Nha Guida levantava e descia o dedo apontando para a Djula e
impudícia de coxas à mostra, mas bem à mostra. prosseguiu em voz pausada:
«Moço, que é isto?» «Se eu fosse tua mãe ia buscar o lato, sim senhora. Mas c o m o
Quem a teria empurrado assim, dessa maneira? Brutos, mal- 'hão sou tua mãe — c r u z o u os braços e voltou-lhe as costas—, fica
''eom as tuas malcriadezas.»
criados. Oh que raiva!

28 29
A arfar, Djula segredou para Djôzinha: tentes, plantadas ao longo dela, eram manchas sem graça, mirradas
«Pus-lhe knock-out, moço.» e mal crescidas por falta de água. A terra em redor, de rija, parecia
Djôzinha voltou-se, abriu os braços e olhou-a severo. chão batido.
«Vocês são doidas», cuspinhou-lhe. «Vocês não têm respeito Nas escadas do hospital pararam, Subiram-nas com morosidade
por nada. Com uma desgraça assim e vocês neste pouco-respeito» e depuseram a carga no mosaico fresco da entrada.
— os braços meio estendidos, as palmas voltadas para cima, com O povo preparou-se para acompanhar os serventes, ocupados
um aceno indicou os pés sujos do ferido. agora em mudar Rolando para uma maca. No sítio de onde o tira-
Dois homens levantaram com cautela o corpo de Rolando de ram uma grande nódoa vermelha tingia o pano. Senhor António, o
enfermeiro de serviço, barrou-lhes a passagem,
nha Concha, colocando-o numa padiola.
«Ele vinha ao lado do chofer, n'é devera?» «Home, porquê? A gente não pode passar?»
Senhor A n t ó n i o não lhes respondeu. De mãos atrás das costas,
«Deve ter sido cuspido quando o camião se desencabrestou na
continuou a vigiar o trabalho dos serventes.
descida do monte.»
Rolando foi levado para o Banco e ali o deixaram até chegar o
«Oh, sim. Também-, descer um sítio tão inclinado sem corrente médico. Doutor Monteiro pouco depois, apressado, passou no meio
nem nada nas rodas.» do povo, subiu os degraus da entrada em três pernadas e seguiu
Djôzinha voltou-se para o T o i . corredor fora. No Banco, acabou de abotoar a bata, destapou a cara
«Dá-me um cigarro. Não tens um cigarro? Oh que graça de dar de Rolando, abriu-lhe as pálpebras descidas. A b a n o u a cabeça.
uma fumaça. Ouve, e o chofer? Dezide ele f u g i u a gritar. Que ia
«Eu não sinto nada, nada, senhor Doutor. Porquê tanto ala-
cair no mar. É devera?» rido, an?»
«Como, ninguém foi atrás dele?»
O médico não lhe respondeu e Rolando estranhou. Então d o u -
T o i Pirico apalpou o bolso de trás. «Tomara eu um cigart^o Fal-
tor Monteiro não lhe ligava nenhuma! O doutor era visita lá de casa
cão que fosse. Eu tinha uns dois cigarritos», c o n t i n u a n d o a vistoria
e tomava uma atitude c o m o se ele fosse pé-descalço?
no bolso da camisa. «Mas Mamãe gosta também da sua fumaça e
«Estou bem, doutor Monteiro. Eu posso ir para casa por meu
q u a n d o não tem mão-fechóde para pôr no canhoto abafa-me os
pé. Só uma impressão aqui me faz este nó na garganta.»
cigarros todos».
O médico virou-se para os serventes e fez-lhes um sinal c o m
O povo seguiu em cortejo acompanhando os homens que leva-
a cabeça.
vam a padiola.
Vergaram-se, seguraram a maca e pouco depois empurraram-na
«Ah mô, ninguém foi atrás dele?», lembrou-se o T o i , passado para um corredor.
um bocado. Rolando quereria poder desapertar a camisa. Por certo haveria
«De quem? A h , do chofer de nhô Mané Virgil?» de se sentir mais aliviado. C o m o diabo vim eu aqui parar? Já não
Djô ia apertando o cinto e analisa os furos com atenção. tenho tanto calor. Estou leve, leve.
Esqueceu a pergunta porque respondeu:
Atravessavam nesse momento a varanda interior do Hospital.
«Oh, moço, hoje vai estar um calor!»
Tem graça, nunca tinha reparado bem nestes eucaliptos.
O sol levantara-se. O dia prometia canícula e nhô T o t o n e lim-
Rolando via-os tocados pelo vento brando da manhã; as folhas
pava o suor. Escorria-lhe pela fronte e j u n to às orelhas. A padiola
meio crestadas pelo suão roçavam umas nas outras, difundindo uma
pesava e os homens arrastavam os pés com embaraço. melodia de que nunca se apercebera até então.
«Já morreu?», indagou Toi Pirico outra vez, na altura de ajudar
Em menino vinha muitas vezes brincar no jardim do hospital.
os outros. Jardim era aquele canteiro c o m p r i d o com meia dúzia de lírios. Das
«Ele tem peso de defunto. Sabes, ele perdeu os sentidos», res- hastes desprendiam-se flores roxas e brancas. Havia, ainda três ou
pondeu-lhe Djô enquanto metia o lenço entre o ombr o dorido e o quatro eucaliptos com ramos a brincarem sobre o telhado da
pau de apoio à improvisada maca. varanda. Muitas vezes ia pelas traseiras do hospital apanhar tâmaras
A avenida do hospital mostrava-se lá ao fundo , ladeada por um
muro
30 baixo caiado de oca amarela. As arvorezitas de folhas persis- 31
caídas, doces c o m o mel. Um dia nha Tuda, a criada d o hospital, ' ocasião c o m o esta. Um frémito trespassou-o. Inchava, inchava. Uá,
ralhou-lhe: que graça de rir! A h , nha mãe, estouro de riso. Ai, ai, não posso rir,
«Vocês são porcos. Não sabem que a gente despeja a água dos é fazer pouco dessa gente. O que é que o Toi me parece? Espiou,
tratamentos para. os lados destas plantas?» malandro, para ele. Outra vez aquela gana parva de rir. Rir dos dois
Nha Tuda sempre gostara de falar no plural. vincos f u n d o s que cavavam as faces de To i e desciam-lhe d o nariz
Rolando cuspira enojado e nunca mais comera tâmaras caídas, até ao queixo, do seu beiço grosso, caído, dos seus olhos raiados
doces c o m o mel, apanhadas por detrás do hospital. de linhas vermelhas. «Eh, T o i , tu gostas da tua pinga, an?»
A aragem afagava-o e o seu corpo balouçava sobre a maca. Das Experimentou levar as mãos à testa, não o conseguindo porém.
rodas soltava-se um chiar ferrugento a subir no ar para se diluir Sentiu-as presas. Adê, então um homem não pode ser senhor das
pelas portas abertas ao longo da varanda. suas mãos? A toada das mulheres ora se levantava, ora escorria,
O povo aguardava à entrada. O sol levantara-se de vez e o dia comprida e saltitante, pelas gargantas afinadas.
ia aquecer. Toi Pirico e Djô desceram as escadinhas do lado do Levaram-no. Adivinhava bem por onde iam passando. Via t u d o
L o m b o e f o r a m b e b e r , u m g r o g u e no b o t e q u i m do Leia. Mãos claro, nítido, tal qual se fosse em passeio despreocupado, como lhe
enfiadas nos bolsos das calças, ombros encolhidos sobre o colari- acontecia, vezes sem conto, pela fresca da manhã. Passeios c o r o a-
dos quase sempre com umas boas braçadas na praia da Matiota, ali
nho aberto, passaram por um cavouco, contornaram a casa de Djula
perto da Lajinha. No retorno, à entrada da rua Machado, esperava-o
e, colados ao muro da quintalona de nhô Chico, andados meia
a voz de nha Chica, seca e esganiçada, uma travessa mais adiante:
dúzia de passos, entraram no botequim por um degrau de madeira
«Ó li leitel Leite para pôr no café! Ó li leite!» Quantas coisas esque-
à entrada da porta.
cidas até então surgiam à tona nem ele sabia porquê.
Antes de sair, Djô c o m p r o u mancarra.
«É para abafar o grogue», disse para Toi Pirico. Na pracinha do liceu depuseram a padiola para descansar. A can-
Este não tirara ainda o motorista da ideia. tilena das mulheres cessou para dar lugar a um ciciar arrastado,
pouco a pouco transformado em zumbido incomodativo.
«Mas ninguém, ninguém foi atrás dele?», perguntou mais uma vez,
«Depois de um g r o o g u i n h o uma pessoa fica mais consertada, O corpo de Rolando continuava hirto e nem o sol nem o calor
o incomodavam.
não é? E c o m este calor, uma pinga refresca sempre. Não sei nada
dessa coisa do chofer», lembrou-se o Djô de repente. Uma ténue tristeza toldou-o. A fachada vermelha do liceu feriu,
Tinham acabado de regressar e encostaram-se a um arbusto de por instantes, os seus olhos turvos. Vou chorar. Porquê senhores?
Por ser o último ano no liceu? Ora, outros viriam e melhores. Já
folhas cordiformes e amarelecidas. Djô acendia o cigarro quando
em J u l h o abalaria para o Continente. Oh, tão bom embarcar, sair,
os vultos de bata escura surgiram curvados sobre a maca e nha
soltar-se da prisão da ilha onde sempre vivera. Fugir daquele so|
Chica rompeu num grito agudo.
crã. Esse sol crestava a grama solta pelas achadas áridas e averme-
As mulheres galgaram os degraus que as separavam da porta
lhava mais ainda o descampado de Chã de Alecrim, da Chã de
de largos batentes e mãos estenderam-se para retirar o lençol. Por
Cemitério. Esse sol secava os poços de água salobra e tornara cor
baixo escondia-se o corpo de Rolando de nha Concha. Os serven-
de café torrado a sua tez de mestiço. A h , embarcar, evadir-se para
tes pararam e puseram-se à frente, impedindo-as de se aproximarem.
além do elo que torneava e sufocava a ilha agreste.
«Não, isso não. Tenham paciência, mas isso não.»
Sentiu-se levado de novo, A cantilena recomeçou, baixinha e
T o i Pirico, nhô Totone e mais dois tomaram a dianteira e levan-
cadenciada. Os pés descalços dos homens e das mulheres levanta-
taram o corpo de Rolando para o colocarem, de novo, na padiola,
.vam-se e pousavam no calcetado. Esse ruído m o n ó t o n o c o m e ç ou a
onde o sangue se colara e ganhara película. Um lamento, ao mesmo
incomodá-lo. Afigurava-se-lhe ouvir cochir milho.
tempo dorido e maguado, soltou-se do peito de nha Guida, logo
Para se entreter voltou a face dorida para nhô Totone.
seguido do coro dolente e cadenciado de quantas mulheres faziam
«Você parece cansado, nhô Totone.»
parte da companha.
A frase caiu arrastada. Teve a sensação de não a ter p r o n u n -
Rolando espreitou as caras c o m p u n g i d as de Toi e de nhô
ciado sequer. Nhô Totone continuo u a olhar em frente, arfando
T o t o n e . Deu-lhe vontade de rir, mas conteve-se. Não devo rir numa

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levemente para controla r o cansaço. C o m as duas mãos amparava os braços j u n t o ao corpo. Uma sensação de serenidade e frescura
o pau de laranjeira onde se prendia o pano enxovalhado da padiola. bafejou-o. Não lhe apetecia falar, apenas desejava estar assim, de
Um estridor agudo sobressaltou-o. A padiola oscilou, houve um olhos fechados para ninguém o importunar.
ligeiro reboliço e o mesmo estridor varreu-o todo. Alguém agarrara-o «Junta-lhe melhor as pernas», disse nhô Totone num sussurro.
pelos ombros e apertava-o com desvario, com ânsia e desespero. Nhô Totone está amável hoje. Ná, esse feijão deve ter toucinho.
Um sopro quente abafou-o. Nhô T o t o n e era chefe dos contínuos do liceu. Bom homem,
«Assim não, nha Concha, assim não», ouviu ele, mesmo junto todavia muito rabujento. Ameaçava-o de vez em quando com a Rei-
ao ouvido. toria se o apanhava no corredor a falar c o m a Celina, Rolando des-
forrava-se fazendo-lhe um gesto malcriado mal ele voltava as cos-
As mulheres falavam ao mesmo tempo. Lágrimas quentes rega-
tas.
ram-lhe o rosto. Sabia-o sujo porque nha Concha estava a limpar-
-Iho c o m o lenço que tirara do seio. Limpava-o e soluçava. A mesma toada de há bocado, de havia tantas horas, eièvou-se
no ar" parado.
«Não chores, mamã. Isto não é nada. Então, mamã?»
Era um homem maduro a falar. Sentia o âmago da vida c o m o A mãe continuava a passar-lhe a mão pela testa e a murmurar
em surdina.
se dela tivesse colhido toda a experiência, Sentia-se capaz de deitar
Uma espécie de calma quebrantou-o de novo.
um discurso, gente.
Na casa, iam e vinham afadigados. As portas encostavam-se
Uma apreensão súbita de perigo desviou-o das suas divagações.
«É melhor levá-lo para a cama.» com religiosidade e os pés descalços mal afloravam o soalho
esfregado com folhas de carrapato.
Uma confusão de vozes, de odens desencontradas, entorpe-
Um ranger repetido de sapatos alertou-o, Pareceu-lhe navio em
ceu-o a p o u c o e pouco. calmaria, a dar de um lado a dar de outro. Deve ser nhô Jom San-
Ainda bem, já estou em casa. Nem me tinha apercebido. Foi tão tos. Vou fingir que estou a dormir,
rápida a caminhada. Dantes tornava-se-me cansativo o caminho de Nha C o n c h a desatou numa guisa sentida,
casa. A rua sempre a subir, sempre a subir, sem nenhum horizonte
«Credo, mamã, pára com esta coisa. Preciso de sossego e vocês
a não ser o seu términos abrupto no pé-de-rocha, desde sempre me não me deixam. Isto é uma afronta, mamã.»
trouxe a sensação de inutilidade, de não valer a pena. Hoje, porém,
Nha Concha c o n t i n u o u a chorar abraçada a nhô Jom Santos.
foi um ápice. També m fui trazido. Te m graça, tive a sensação de
N h ô Totone, postado atrás de nhô Jom Santos, tocou leve-
ter vindo sempre atrás de mim mesmo. Por acaso diverti-me um mente no braço de nha Concha:
bocado. Aquele Liminha, nunca mais acabava o quinto ano!, viera
«Comadre, agora a comadre vai tomar um caldinho.»
t o d o o c a m i n h o a segredar disparates à Juju. Ela devia estar a gos- Nha Concha abanou a cabeça c o m esforço.
tar porque nem virava a cara quando ele se chegava mais para ela
«Não, comadre Concha, a comadre não pode ficar assim c o m o
e lhe roçava os seios c o m o cotovelo. E Rosarinha nossa criada estômago vazio.»
dias-há e agora menina-de-vida? Rosarinha fora toda a vida uma
A criada, atrás de nhô Jom Santos, tinha-se chegado para junto
disparatenta. Disparatenta e voluntária. Tão entretida vinha a desfiar da cama e começara a desfiar, entretida:
histórias de marinheiros e de estrangeiros, passadas no seu quarto
«Dona Morgada mandou um prato de bolachinhas e duas gar-
lá d o L o m b o , das fuscas desbragadas apanhadas c o m eles, duns rafas de vinho do Porto, d o na Nené mandou uma terrina de canja,
xelins tirados das calças de um inglês depois de o pôr a dormir com dona Daluz mandou canja também.»
meia garafa de grogue. Por p o u c o não derrubara nhô Totone
«Credo, menina —gemeu nha Concha—, credo, fecha essa boca.».
quando o cortejo parou para descansarem um pouco. Até se me A carpir compungidamente, as duas mãos juntas sobre a
afigurou que ela vinha para cima de mim, senhores. jCabeça, cara para um lado, cara para outro, nha Concha abalou do
Limparam-lhe a cara com uma toalha húmida, vestiram-lhe outra quarto. A criada acompanhou-a e o ranger dos sapatos de nhô Jom
roupa e deitaram-no, ?antos foi-se diluind o no silêncio que, abruptamente, se fizera no
Nha Concha sentou-se numa cadeira junto à cama. As mulheres ;aposento.
de volta dele ajeitavam-no. Estenderam-lhe as pernas, chegaram-lhe
34 35
Sozinho, sabia-se lá há quanto tempo. Rolando ganhou cora-
«Oh senhor! Oh senhor!», balbuciou num soluço
gem para dar uma voltinha pela casa. Em poucos segundos alcan-
A cena desenrolava-se à sua frente e absorvia quantos a pre-
çou a sala de jantar. Muita gente se encontrava nessa dependência.
senciavam certos de não se lhes escapar o mínimo deste final de
Falavam baixo. Descobriu Liminha num canto, numa cadeira, muito
peça para depois a poderem narrar à volta da mesa depois do jantar
encostado à Juju. Ela descansava as mãos de dedos c o m p r i d o s,
enquanto Dinha cabecearia de sono c o m o rosário entre as mãos
sobrepostas sobre o regaço, e devia estar a analisar as unhas t a m - descansadas no regaço.
bém c o m p r i d a s e arranjadas. Liminha beliscava-lhe as orelhas, dis-
traído. r . n T ° 1°*°"^ ^ " ' ' ^ "^""^ «bafados pelos gritos de nha
Ninguém deu fé dele. Concha, deixaram cair as abas do caixão sobre o c o r p o hirto de
Rolando, sobre o seu próprio corpo, senhoresi
Joana, ao pé da porta, chupava o canhoto apagado. Na cozinha
E a surpresa mal refeita de Rolando aderiu ao desespero de nha
a criada falava para alguém.
Concha e ambos gritavam:
«Eh, menina, despacha-te, muda este vestido.» «Não, não, não!»
Ao f u n d o , sentada num banco baixo, junt o a uma celha de
água, Candinha, apressada, retirava flores e ia-as armando.
Um pequeno burburinh o fê-lo estremecer. Toda a gente levan-
tara-se e correra para a porta. De onde estava, p r o c u r o u adivinhar
a causa dessa mutação de cenário.
Um silêncio pardo abafou o ambiente de ceras distorcidas no
f u n d o dos castiçais. Um sininho tremeu, distante, em badalar
dolente e forçado.
«Com licença», pediu ele ansioso. Tão ansioso a ponto de lhe
parecer que não podia respirar, não respirava mesmo.
Um aulido c o m o de mãe no m o m e n t o angustiante do parto,
abalou-o.
«Com licença, deixem-me passar», implorou quase c o m agonia.
T o d o ele tremia, tomado de mal-estar. As pessoas c o m p r i -
miam-se, queriam ver. Ninguém o atendia. Senhor!
A l c a n ç o u a porta do quarto, com quanto esforço!, e o medo
paralisou-o. Outro grito fendeu o alvoroço espectante. Num assomo
de coragem transpôs a porta, deu dois passos decididos e parou
atrás da mãe.
Q u a n d o era pequeno acontecia tudo da mesma maneira c o m o
agora. Depois de alguma diabrura ia c h a r u t i n h o sentar-se ao pé da
mãe, na esteira, junt o à cadeira de balanço onde ela descansava.
Ela levantava os olhos do livro e perguntava-lhê:
«Fizeste alguma mofineza. Rolando?»
Ele baixava a cabeça e metia os dedos por entre as cordas da
esteira.
«Mamã! Mamã!»
Duas pessoas seguravam-na. Levantou-se nos bicos dos pés,
espreitou, e não compreende u o que se estava a passar. Algo de
insólito sacudiu-o e teve a sensação de ter sido castigado na nuca.

36
DESENCANTO
Puxa a porta e desce lesta. As vizinhas já a conhecem pelo'
pisar rápido e nervoso. Um piso um patamar volta à direita outra
vez à direita, voa agora apressada.
«Bom dia. Passou bem?»
O padeiro afasta-se para a deixar passar. Tão bom o cheiro a
pão fresco. O aroma evola-se através do pano. Só se vêem as ver-
gas dó cesto. Outro patamar volta à direita outra vez à direita e os
degraus fogem sob os sapatos de salto raso.
Alcança a rua em quatro passadas e aspira o ar frio da manhã
nevoenta.
De expressão sorridente atravessa-a e dá alguns passos no
passeio do outro lado.
«Bom dia. Passou bem?»
Na paragem a senhora do casaco claro. Franze a testa a
senhora do casaco claro e pinta os cabelos.
O eléctrico amarelão e ronceiro avança barulhento e pregui-
çoso. TIam tiam ri o eléctrico vestido de quarentena.
«Com licença.»
A bicha nunca mais finda e o eléctrico ronca de papo-cheio.
A aprendiza de cabeleireiro levanta os olhos do livro de todas
as manhãs. A mulherzinha da alcofa empurra, tem pressa.
«Bom dia. Passou bem?»
Um sorriso aflora às faces descoradas da escriturária de
segunda classe. Sorri e enruga o canto dos olhos. A escriturária de
segunda,classe veste-se bem. Um arremedo de vestir bem. T u d o
impecável sem uma nódoa sem uma ruga. A escriturária de segunda
classe não usa cinta. Sob o casaco — n ã o é de inverno nem de
verão — não se c o n h e c em as suas formas opulentas de trintona
fanada.
Sempre as mesmas caras todas as manhãs. Sempre as mesmas.
Mas nada têm de c o m u m c o m . t u d o para trás com tudo da vida de
nómada levada desde que abandonou os estudos. Desde aquele dia
soalheiro mas de uma incerteza tão grande e tão dorida de c o m o

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poderia continuar a ver o m u n d o c o m os olhos dos outros. Pensara um escorregar constante. É c o m o se fosse uma casca de banana
em voltar. A madrinha bem a aconselhara. Não. Não podia ser. Ter grudada sob os pés. Adivinha o epílogo. Acabará por estatelar-se
de se adaptar de novo começar tudo de princípio. C o m o se fosse sem apoio.
possível uma coisa assim. Voltar para quê? Para vegetar atrás das Corrida de empregos de sujeições tem sido o seu rosário atra-
persianas da cidade parada e espreitar as mulheres trazendo a'água vés destes anos todos. Até já lhes perdeu a conta.
do Madeiral em latas à cabeça ou os homens puxando as zorras Sai apressada do eléctrico. Atravessa a praça não sem voltar a
com os sacos para a casa Morais? cabeça para se defender do vento. Vento nordeste forte com fre-
Não não sempre não. quência de não com rajadas fortes na frequência de na frequência de.
Numa casa estrangeira começara encantada uma nova vida. Ena tanta gente atrás de mim!
Nada de pontos nem chamadas escritas nem de lições preparadas Corre e arqueja um pouco. O c o m b o i o está a chegar à estação.
com pouca vontade. Apenas lhe exigem boa apresentação e umas Não o pode perder. Não pode. Quem aturaria o chefe? Ter de ouvir
arranhadelas de francês e de inglês. a mesma conversa todos os dias.
T u d o lhe correu bem durante algum tempo. No entanto acabou Afoga-se num mar de suor. Esbraceja num último esforço.
por desistir. Desistir estupidamente sem razão aparente. Os colegas Enfim. Foi por um triz.
c o m quem tomava café depois do almoço pareciam camaradas de «Bom dia. Passou bem?»
verdade. Às vezes almoçavam juntos numa casita ali perto da Rua Cansada, C o m a respiração opressa encosta-se à porta que só
da Conceição. Até aprendera c o m eles um vocabulário novo a d q u i - se abre à chegada das estações.
rido no contacto permanente com o público um vocabulário exci- Mas este é rápido. Desliza e apita nas estações onde não pára
tante pela novidade e pelo sabor nele encontrado. hoje e todos os dias.
É verdade. Acabara por se cansar ela a rapariga decidida. C a n - Procura lugar com os olhos. Os outros vêem-na indiferentes.
sou-se de todos: do patrão dos colegas dos próprios clientes nem O cavalheiro magrinho da frente lê concentrado o jornal da manhã.
sempre os mesmos. Voltara as costas ao emprego precisamente O senhor magrinho volta a página e ela atrás. De pé, continua
quando já estava a adaptar-se à vida de pau mandado. Adaptar-se a ler os títulos em tetras gordas.
é um m o d o de dizer. Gostaria mais de não fazer nada. Apenas falar «O j o g o de Alvalade foi um autêntico festival».
com este c o m aquele rir com uns bons amigos. Nunca conseguiu Fotografias. Ampliações dos heróis da véspera.
enfrentar os clientes sabidos e desnudaram-na c o m os olhos lasci- Não será ela também uma heroína de todos os dias neste ciclo
vos. Quando isso acontecia corava e tremia. Nem sabia já para onde de etapas cronometradas de onde não pode fugir?
se voltar. Lança um olhar ao relógio de contrabando escondido sob o
Porque razão tremia? E um arrepio percorre-a. Por certo no p u n h o da camisola. T u d o corre bem c o m o todos os dias.
mais recôndito do seu eu escondia-se uma ponta de prazer. E se se A porta abre-se. Cais do Sodré.
mostrasse tal c o m o era? E daí nenhum mal viria ao mundo. De uma Empurrada pelos outros atravessa a gare. Um autómato de
vez um rapaz bastante simpático quis acompanhá-la. E dizia coisas passos certos. Alcança a porta envidraçada da saída e desce as
tão engraçadas. E porque não haveria de ter ido ao cinema c o m o escadas.
colega c o m quem estivera a beber cerveja na esplanada? Esse era «Bom dia. Passou bem?»
fresco. Bem, T i n h a sido um encontr o de tigela rasa. Ningué m tem Mora há tão pouco tempo na linha e já conhece tanta gente.
culpa de ser c o m o é. Pena era as pessoas não entenderem a Iha- Atravessa a rua num rufo e caminha distraída. Chega o cache-
nesa que ela e as patrícias punham no trato e daí uma série de col para mais perto do nariz e atira a ponta sobre os ombros.
q u i p r o q u ó s comprometedores e acabando por as deixar mal vistas. Junto ao cordame da amurada o rio quebra-se no limo verde
A elas pelo menos tem sido a sua sina. Saía de uma para se meter das correntes que seguram a ponte à margem onde as águas chei-
noutra. ram a lodo.
Por estas e por outras e apesar de toda a dignidad e que pro- O barquinho das mil e uma noites vomita uma mole de gente e
cura manter sente bem isso. A sua vida desde esse t e m p o tem sido engole-a por sua vez para a levar à outra banda.

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«Bom dia. Passou bem?» Um sorriso espalhou-se em todos os rostos. O da cara c o m -
A senliora das peles ajeita-se na cadeira de verga. prida levanta-se e segura a pasta. O caixeiro-viajante de nariz de
Ai o nevoeiro! Ai o nevoeiro! j u d e u dá dois passos para a escada. Enfim. Chegámos. Chegaram.
«Bom dia. Passou bem?» Chegaram ao port o de salvamento. As peixeiras em baixo são
Precisa fazer uma visita à madrinha. Nunca mais lá foi. Também gralhas teimosas.
teria de estar a contar tudo tintim por tintim . Remexer naquele Ela resvala por entre as gentes, estranha solitária no seu casaco
de quadrados.
monte de. acontecimentos. Contar para nada ser agora remediado.
O h o m e m d o chapéu preto está j u n t o dela. Pressente-o pelo
A professora de luvas azuis continua de pé a perscrutar o
faro que já tem dessas aproximações. Um sussurro fá-la estar atenta.
nevoeiro cerrado.
«Estás bom , pá?»
Ela, a das corridas de todas as manhãs, aconchega-se melhor «Malandro, estás a fazer-te prà mulata.»
no seu casaco de quadrados. Rienzi baixo e esse riso é uma afronta.
Fixa os olhos no alcatrão ao longo das junturas das tábuas. «Bom dia. Passou bem?»
O barco geme nas ilhargas e avança seguro no nevoeiro. Desce trémula, pisando os degraus c o m atenção.
Daqui a pouco com mais um esticão será outra etapa outra Encruzilhada pela qual tem de escolher. Sempre a fugir de
corrida para o escritório sobranceiro à praça larga suja de papéis e andar c o m os patrícios de cor para não a c o n f u n d i r e m e afinal é
folhas secas. um branco que lhe vem lembrar a sua condição de mestiça.
«Bom dia. Passou bem?» Oh céus! É uma cigana errante, sem amigos, sem afeições,
O motorista levará a mão à pala e sentar-se-á pronto a arrancar. desgarrada entre tanta cara conhecida.
Ela alisa as farripas ásperas e negras soltas do lenço.
Por onde andará ele? A memória remexe teimosamente nas
lembranças de esquecer. Fora a menina da tabacaria quem a avi-
sara. Ela já o a d i v i n h a r a aliás e afastara a ideia c o m repulsa.
O traste. A menina da tabacaria chamara-lhe Bufo. O Bufo era
casado. Vejam lá. Ligada a um homem casado e ainda por cima
Bufo. Até dá vontade de rir. Se pudesse limpar da cara a sensação
das caricias que ele lhe fazia. Costumava passar-lhe a mão pela face
e perscrutar-lhe bem f u n d o nos olhos à espera de não sei de quê.
M a l a n d r o . S e m p r e gostava de saber o que é que ele q u e r i a .
Enrola com calma o bilhete entre os dedos. O barco geme e
nina-se. A professora de casaco azul e luvas azuis comprim e a testa
contra os vidros. Tem medo! Tem medo do nevoeiro! E o barco das
mil e uma noites desliza pachorrento por entre a opacidade densa.
Desvia a cara do homem de chapéu preto. Olha-a com insis-
tência. Não é a primeira vez. Viúvo? Casado? Uma ruga vinca-se-lhe
entre as sobrancelhas.
Seja c o m o for não pode' de maneira nenhuma pensar em
recomeçar. Não pode.
E seus olhos procuram, dissimulados, os olhos do homem de
chapéu preto. Ele agora examina, interessado, as pernas da vamp
magrinha sentada ao fundo, à direita.

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ESMOLA DE MERCA
ESMOLA DE MERCA
Titina a c o r d o u e estava a gozar a sabura da cama. Virou-se
para a parede. As maçanetas tremeram e Titina enroscou-se meihor
j^sobre si mesma.
Branca, a camita de ferro, tanto à cabeceira como nos pés era
rematada c o m um rendilhado — p a r e c i a m as lerias da t i t i a — , tendo
-ao centro, também em ferro, um desgracioso ramo de folhas p e n -
á^ntes em leque, pintado a esmalte verde.
Nunca tivera leito próprio e já era menina-feita e nem à m a d r i -
Snha nem à tia se lhes ocorrera ser tempo de lhe arranjar uma cama.
"•^ormira sempre com elas num colchão largo, com a cabeça para
onde p u n h am os pés. Fora sempre assim até um dia, depois de um
arnaval de bailes e assaltos sem conta, quando regressara numa
loca-da-noite, tomada de tremuras e dores de cabeça. Passou
"sim algumas noites, de cabeça virada para os pés das duas
IJhotas, cheia de febre e quebranto. De manhã, a madrinha ria-se
ara ele e dizia: «Ficaste dogada com o carnaval, hé Titina?!»
kevantava as pálpebras e não respondia porque o formigueiro
^yoava-lhe a cabeça e toldava-lhe as ideias,
í Numa dessas manhãs, a madrinha ergueu-se muito cedo para
• / o passeio do c o s t u me até à igreja nova e antes de sair do
j a r t o chalaceou para Titina. Não abriu os olhos ou se mexeu,
armada, a madrinha debruçou-se ansiosa sobre a sua cabeça
jde os cabelos emaranhados se lhe colavam empapados pelo suor.
iQUve reboliço no sobrado. Lulu fora a correr chamar o d o u t o r
.^pstinho e, na mesma manhã, resolveram comprar-lhe aquela
i p a de ferro porque a febre tifóide era demorada de curar.
; Titina acomodou-se e puxou o lençol para cobrir a cabeça.
^ As moscas nunca a deixavam dormir de manhã. Zumbiam-lhe
;^ ouvidos, pousavam-lhe nas faces, maçavam-na e estragavam-
è o c o m e ç o do dia. A origem de tal enxamear era o botequim de
a Luzia, cujas traseiras ficavam mesmo ali ao lado. Nesse quintal
'^Jlgoso nha Luzia fritava olho-largo e pastéis de alvacora em

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fogareiros feitos de latas de petróleo, despejava a água da lavagem conversa. No Grémio, à hora da canasta, já tinham falado nisso.
das louças e amontoava a um canto o lixo que os fregueses faziam Mimi Costa na loja de nhô Afonso até tinha afirmado: ia arranjar
no b o t e q u i m . Bem, esse lixo costumava ficar esquecido por muitos um fato de banho no meio daquela esmola de Merca. Nhô Afonso
e muitos dias, ganhando camadas, chegando a encarrapatar-se no ficara a ver muito sério para ela, e de boca aberta, porque Mimi
chão térreo, como acontecia às cascas de manga, pegajosas c o m o Costa não tinha precisão de esmola de Merca.
grude. T i n h a m sempre de chamar nha T u d a para as vir raspar com «Adê, c o m o ! Nossos patrícios mandaram esmola de Merca para
um arco de barril e as remover. o nosso povo. Não sabias?»
Nha Luzia era uma mulherona de cabelo Inchado. Só se penteava Alisou os cabelos c o m as duas mãos.
com pente de pau de laranjeira para lhe acalmar as dores de cabeça «Julinha disse são caixotes e caixotes de roupa», c o n t i n u ou
de que sofria desde menina. Haveria de dizer isso mesmo no pátio entusiasmada. «Também mandaram farinha, banha. Vai ser um dia
da Administração , quando , também nesse dia, de mistura com as grande.»
outras, fosse receber a sua parte de esmola vinda da América . A voz enchera-se-lhe de quentura e Titina espiava-a divertida.
Sempre suja, passava os dias a chamar pelos filhos que lhe Tanto se lhe dava a esmola dos patrícios da América c o m o não.
trocavam as voltas e em galhofa c o m os fregueses. Por vezes, até Isto não vem remediar nada, pensou olhando para além da
ao sobrado onde dormia a Titina chegava o seu riso tremido. madrinha.
Titina ouvia o z u m b i d o por cima d o lençol puxado sobre a sua Esta continuava encostada à cama, os cotovelos apoiados ainda
cabeça e, inconscientemente, irritava-se contra nha Luzia, contra o sobre o rebordo de ferro.
seu desmazelo e porcaria, contra aquelas moscas nojentas. T o d o s Nem chega a ser um remendo, pensou ainda. Os patrícios de
os dias estragavam-lhe o acordar da pela-manhã. Lisboa também mandam roupas usadas, calçado, pão seco. Senho-
Um arrastar de sapatos pô-la alerta. Soava baço e aproximava-se res, até mandam pão seco para a nossa gente amojecer em água e
do quarto. Aguardou até ouvir a voz descansada da madrinha: enganar a fome.
«Titina, hé Titina.» «E onde é a distribuição?» acrescentou por desfastio.
Mexeu-se na cama para se deixar ficar de novo. «Julinha d i s s e e r a na Administração. O administrador pediu-lhe
Uma réstia de luz estirava-se da clarabóia de juntas mal unidas para arranjar umas companheiras para a ajudarem e ela lembrou-se
de ti.»
e poisava, n u m traço, sobre o baú forrado de pele de cabra da Boa-
-Vista. Passou de novo as mãos pelos cabelos, alisando-os, e continuou":
«Eh Titina, estás acordada?» «Foi avisar a Bia Sena também. Pediu para ires ter com ela na
Entrou, aproximou-se sempre a arrastar os pés e descansou os Administração.» Titina ficoU entusiasmada mas não o deu a perce-
cotovelos no rebordo da cabeceira da cama. As maçanetas brilha- ber à madrinha. Aquele administrador era um bom ponto. M o n -
ram na penumbra do quarto. d r o n g o , tinha a mania de impor os bons costumes. De portas a
«Titina, acorda.» Tocou-a duas vezes tacteando as formas deli- dentro, porém, mantinha aventuras bastantes dúbias. Costumava
neadas sob o lençol. «Olá, Julinha veio perguntar agorinha-assim detê-la quando voltava do liceu, para largas conversas no passeio.
se queres ajudá-la na distribuição de umas esmolas que mandaram De umá vez ela escrevera um artigo sobre a emancipação da mulher
de Merca.» para o jornal dos rapazes do liceu. Topou-a na esquina da Adminis -
Titina esticou as pernas, pondo-se de costas, e descobriu a tração e avisou-a de dedo no ar:
cara. Fitando a madrinha, sentou-se na cama, dobrou os joelhos e «Já lhe cortei o artigo. Não me venha prà aqui c o m espertezas.»
descaiu sobre eles o queixo. Indiferente, respondeu: Titina rira com gosto e chamara-lhe maluco.
«Que esmola, Dinha?»
Desde esse dia ficaram amigos, como se o facto, forte motivo
Esta arregalou os olhos espantados para a afilhada. Adê, Titina!
para os afastar, os tivesse aproximado ainda mais um do outro.
Falado agora, não sabes de nada. Toda a gente no meio da cidade
sabia. O vapor havia de chegar mais dia menos dia. No pelourinho, Saltou da cama e abriu a clarabóia. O sol jorrou dentro do
na Praça Nova, na igreja, nos passeios da noitinha, não havia outra quarto. Retirou os lençóis, sacudiu-os e bateu o colchão. M i n ú s c u -

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los pontos, milhares deles voltearam no facho da luz vertida da cla- os apanham. Os gregos são maus e nunca ninguém soube o destino
rabóia sobre o soalho vermelho de terra seno. Acabou de fazer a do marido de nha Quinha.» Descansou a fala por momentos. — «Se
cama passando a mão várias vezes sobre o cobertor. puderes arranjar alguma roupa pâ nha Chica de nhô A n t o n i n h o ,
A poeira c o n t i n u o u a girar no rectângulo de sol. A madrinha também era bom», completou, não fosse esquecer-se.
encaminhou-se para a porta. Parou entretanto e voltou-se para a Titina começou a resmungar, enfiando o vestido com malcriação.
Titina. Começara a lavar-se, debruçada sobre o lavatório. «Eu não estou para vir com embrulhos debaixo do braço. Não
«Se puderes, arranja uma saia e mais qualquer coisa pâ nha sou criada de ninguém.»
Quinha, Ela está muito precisada. Eles costumam mandar boas «Estás a sair fora da linha, Titina», ralhou a madrinha com voz
roupas de Merca. T u podias arranjar uma coisinha boa para ela», um b o c a d i n h o alterada. «Hei-de te acabar c o m essa trublação que
disse num fôlego. trazes no corpo. Não se pode dizer-te nada que não venhas com
Titina esfregava os braços espalhando a espuma com atenção. esses modos de voluntária. Menina de não-sei-que-diga!»
As mãos na água, voltou-se para a madrinha, a cara e os braços A madrinha enervara-se deveras, mas a menina de não-sei-que-
ainda cheios de espuma perfumada de sabonete inglês. -diga já não a ouvia. No corredor deu uma esticadela no vestido e
«Se ela fosse lá, seria melhor. Sempre podia escolher mais à apertou o cinto.
vontade.» Um p o u c o magrizela, escanzelada mesmo, apesar de tudo pos-
A madrinha olhou para ela c o m ar reprovativo c o m o se ela suía certo sal e fazia atrair sobre si a atenção dos rapazes. Era o
tivesse dito um despropósito. Deu alguns passos até ao meio do verdadeiro tipo de fausse-maigre, diziam-lhe ao verem-na em fato
de banho na Baía das Gatas. Aliás não o ignorava, visto comerem-na
quarto.
sempre c o m os olhos quando por eles passava. Os colegas chama-
«Ir para a fila?» censurou-a. «Meter-se no meio d o povo?»
vam-lhe morena cor de bronze. Os dentes ligeiramente saídos pisa-
Tinha acabado de se sentar no baú onde guardava as colchas,
vam o lábio inferior, desfeiando-a um pouco . Esse pormenor não a
da casa. Colchas feitas de quadrados de crochet em ponto fechado
preocupava porém. Possuía outros trunfos, consolava-se.
e baixo, rematadas c o m inúmeras borlas, colchas de calabedoche,
colchas de damasco em tons quentes, coberturas de mesa em Ao chegar à Administração encontrou a Julinha no quintal a
veludo carmesim, debruadas nas ourelas c o m entrançados feitos, remexer nas roupas e a separá-las. Bia Sena sorriu para ela e abra-
pacientemente, nas tardes mansas da cidade batida pelo vento. çou-a peia cintura.
«Nha Q u i n h a n u n c a foi mulher de pedir de porta em porta. Ela «Estás muito bonita, Titina. Quem é que te fez este vestido?»
foi dona da sua casa com t u d o - e m - q u a n to era preciso. Era criadas, E afastara os braços para a ver melhor.
era roupas penduradas no guarda-fato, era coisas boas no guarda- «Foi Nina Costureira.»
-comida, era tudo, tudo», admoestou-a a madrinha. «O marido «Nina Costureira trabalha muito bem. Tem umas mãos!»
embarcou e nunca ninguém soube dele.» A voz tornou-se-lhe Bia Sena sorria ainda para ela e seus olhos de boneca piscavam
melancólica. «Ele f u g i u desta nossa terra madrasta num vapor amiúde.
grego. Era um vapor de carvão, um vapor de dois canudos, grande. «Ei, vocês não estejam c o m conversas. Vamos ter muito que
Ainda não tinha passado o canal q u a n d o foram dar c o m ele escon- fazer», falou-lhes a Julinha abaixada sobre as roupas. Começara a
dido não sei onde. Assim que o encontraram, f o r a m - no arrastando, escolher e a separar.
arrastando. Havia mais dois moços. Tinham fugido com ele. Quando O povo fora-se juntand o do lado de fora. Aguardava. Não fora
eles viram a maneira c o m o os gregos estavam a maltratar o marido preciso avisá-lo. Ainda o vapor não havia alcançado o ilhéu Raso e
de nha Quinha ficaram afrontados. Desataram numa carreira, já ele sabia: a esmola dos patrícios vinha pela baía dentro. Na sua
escada acima, escada abaixo, com aqueles gregos todos atrás deles, maioria eram mulheres velhas, andrajosas, de olhos encovados e
até encontrarem maneira de cair no mar. Bons nadadores, aqueles cabelo engasgado pelo pó e falta de pente, escondido debaixo do
moços! Vieram dar na ponta de João Ribeiro, cansados mas c o n - lenço vincado de tanto uso. Parte delas viera arrimada ao seu pau
tentes. Aquela encrenca a bordo não tinha sido para brincadeira. de laranjeira, desde a Ribeira Bota, a arrastar os pés descalços e
Miguel Santos até disse eles costumam metê-los na caldeira quando gretados até ao meio da morada. Uma parte espalhara-se pelo pas-

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seio da Administração, outras sentadas no patim das portas laterais, Manelinho, no meio de um grupo, dançava a tonguinha . Manelinho
outras aguardavam de cócoras nos passeios. Penderam o queixo era muito engraçado. Pequenininho, mas esperto, gente! Manelinho
sobre os joelhos unidos e abraçavam as próprias pernas, com a saia com nove anos dançava a tonguinh a falava com os estrangeiros e
de pano esfiapado na bainha puxada de modo a cobrir os pés. mergulhava-se lá fora no mar para apanhar moedas.
Mam Zabêl encostara-se à parede e descansava um dos punhos A velhota virou-se para Mam Zabêl e tocou-lhe o braço.
em cima do pau grosso seguro com a outra mão. A seu lado, uma «Agô, tresanteontem uma senhora deu-me uma batata doce.
velhota c o m o ela, t r o n c o abaulado sob a cabeça a tremular, levava, Devia ser batata de Monte Verde. Foi aquela senhora que mora por
continuamente, as costas da mão ao nariz e fungava. detrás do Madeiral. Não sabe quem é? Ela tem uma horta no Monte
«Você está constipada, an comadre?», perguntou-lhe Mam Zabêl Verde.»
ao fim de algum tempo. Mam Zabêl continuava encostada à parede.
«Dias-há ando com pingo no nariz não sei porquê.» Estava esperançada. Bia Sena havia-lhe prometido um casaco
«Aan.» de Merca, quente, um casaco para a resguardar do frio da cambota.
Mam Zabêl arrimou-se no pau e ficou a olhar para o vácuo da O frio passado dormia de noite enrodilhada na saia preta que lhe
sua vida sem história. A velhota chegou-se para Mam Zabêl e falou tinha dado Nha Elvira de Nhô Jul Sousa. Oh tanto frio ela passou
c o m o se fosse em prosseguimento de uma conversa interrompida. na cambota, Nhor Deus. As pedras eram duras e o Vento do Laza-
— «Banha de Merca faz engrossar a cachupa. Cachupa fica reto furava a pele e trespassava uma criatura de Deus. Os mocinhos
sabe, sabe, com banha de Merca.» de ponta-de-praia tinham mais sorte. Dormiam debaixo do coreto,
Mam Zabêl, sem olhar, observou mais para si, a dar balanço às na Praça Nova. Mas ela era gente velha, tinha compostura, não ia
dormir debaixo do coreto, não senhora.
suas necessidades de momento:
«Estou precisada de um casaco de Merca. Lá na cambota tem A cabeça tremia-lhe ensombrada nos pensamentos. A velha ao
lado levou as costas da mão ao nariz e fungou , continuando a lenga-
muito frio. De um casaco de Merca é que eu estou precisada.»
lenga:
Encostou-se à parede e, num regougo, repetia: «Na cambota
«Quando eu era criada de Dr. Henrique, senhora mandava pôr
tem muito frio.»
mandioca na cachupa.»
A outra não deu mostras de a ter ouvido, porque c o n t i n u o u : Repousou a fala e prosseguiu:
«Djódja disse esta banha de Merca tem mistura — e n c o l h e u os
«Eu fazia um refogado por volta das seis horas, na hora de sol
ombros e ganhou ardência na v o z — , mas dá bom gosto na
cambar e só depois, passado um bocado grande, eu metia-lhe
cachupa. Cachupa fica apurada deveras com esta banha de Merca.» mandioca dentro. Ficava sabe, sabe.»
Coçava-se por debaixo do mandrião de pano preto, salpicado
A algazarra do povo começou a aumentar. Estavam impacientes
de flores miudinhas, brancas. Precisamente no cálice, apresenta- nem sabiam porquê. Impacientes e contentes, la ser uma boa
vam-se delidas, f o r m a n d o um rendilhado por t o d o o mandrião, semana.
como se fora de propósito. Continuou a coçar-se e a divagar.
Da janela do primeiro andar. Senhor Amadeu da Fazenda e seu
«Cachupa também fica sabe se a gente lhe põe favona. Daquela
compadre Gouveia apreciavam, divertidos, o povinho. Nesse m o -
favona da Praia. Incha muito e faz uma cachupa sabe, sabe.» mento estendia a mão e falava para o compadre, apontando c o m o
Os olhos brilhavam-lhe e a boca, rala de dentes, comprimia-se - queixo a massa de gente acamada no passeio, na rua, c o m o um
-Ihe à procura do gosto daquela cachupa tão boa. tapete rugoso de cor neutra. Mam Zabêl levantou a cabeça e, ins-
«Nô Senhor me perdoe, quase me esqueci do gosto da cachupa tintivamente, compôs o lenço puxando-o sobre a testa. Abriu a boca
— disse b a i x i n h o e riu. A t e m o r i z a d a porém fez o sinal da cruz. num esgar. Senhor Amadeu, sacudido de riso, debruçado ainda à
— Dias-há no mundo eu não tenho c o m i d o cachupa. Nem cachupa janela, voltou a cara para o compadre. Este fitava-o, meio sério,
nem nenhuma c o m i d a de caldeira. Só parentem, às vezes. Mas eu meio risonho, ' > -
não tenho dentes, você sabe, e custa-me comer parentem.» Breve Mam Zabêl esqueceu o senhor Amadeu què^julgou ter-se
Ficou a ver a rua cheiinha de gente pobre c o m o ela. Muitos rido para ela e voltou-se para a companheira:
estavam calados, à espera. Mas também havia risos, conversas.

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«Você quem é, an comadre?» «Olá, menina, eu conheci tua mãe ela ainda fazia chichi na
Uma das portas abriu-se e Julinha apareceu. A massa de gente cama. Tua Nhanha foi menina do meu tempo. Arranja-me um
c o m e ç o u a movimentar-se e a aproximar-se. Primeiro mansamente, casaco de Merca. Lá na cambota tem muito frio. De esmola!»
a seguir com certa presteza, com manha, a ver quem ficaria à frente. Um c h o r i n h o manso não a deixou continuar. De cócoras, o
As velhas empurravam c o m os paus a defenderem-se na sua fra- queixo sobre os joelhos tapados com a saia, o choro de Mam Zabêl,
queza. entrecortado de lamentos ininteligíveis, vazava em répia monocórdica.
Julinha abriu os braços. A manhã ia avançada. Bia Sena suava e sentia os braços mor-
tiços de tanto vestir e despir os coitados da sua terra, Julinha ia-a
«Não é preciso empurrar», alteou a voz — «tem comida e roupa
ajudando. Com o pé afastava roupas porque não serviam ou tinham
pâ toda a gente.»
sido recusadas.
Nem a ouviram porque os primeiros entraram de roldão. Impe-
«Já não posso mais», balbuciou Bia Sena num sopro. «Mas
lidos pela onda de trapos e fome que irrompera ululando. Mam
quem teve essa lembrança? Cada um podia podia levar a sua roupa
Zabêl sentiu-se ir na leva e, meio sufocada, foi atirada para junt o e vesti-la em casa».
de uma caixa aberta, atafulhada de embrulhos.
«Q A d m i n i s t r a d o r disse para não as deixarmos sair sem a t r o -
Julinha protestava ainda: carem primeiro».
«Adê, o que é isto?! Assim não, assim não!» Bia Sena escarranchou as mãos na cintura e fez um gesto
O b u r b u r i n h o abrandou somente quando o quintal se encheu e voluntarioso.
nem mais uma criatura de Deus podia lá entrar sem ficar lapadinha «Agora o Administrador é abusado deveras. Ele gosta da fita, an?»
a outra. Julinha olhava-a, de ar parado, com um vestido pendurado no braço.
Bia Sena foi encaminhand o as mulheres para uma casota onde «Isso, afinal, é fazer pouco. Já reparaste, Julinha, já reparaste
as despia. Era uma operação lenta, dolorosa para a vista, penosa na figura desta gente dentro destas roupas para que não foi
para quem a fazia. Ao cabo, saíam transformadas nos fatos novos, talhada? Olá, olá», e esticava os braços em direcção da porta,
envergando vestidos de seda, farfalhudos, em chifon ondulante com «parece um desfile de carnaval.»
alastrados estampados azuis, vermelhos. Algumas reapareciam com Julinha abaixou-se para apanhar uma fita e levantou os olhos
chapéus de praia, descaídos, capelines de crina, realçadas de flores para a Bia Sena.
e tule, feltros enterrados sobre as orelhas encardidas. «Sabes, ele disse é para evitar que elas vendam a roupa»,
obtemperou-lhe.
Nha Joninha fez uma aparição imponente. Acaçapada num belo
casaco castanho que quase lhe cobria os tornozelos, c o m duas Já não ouviu a resposta da Bia Sena porque os seus olhos
descobriram a figura do administrador, projectada, longa e desigual,
raposas a acariciarem-lhe o pescoço e as orelhas, trazia a balançar
nos degraus de cimento, pelo sol tórrido da manhã alta.
numa das mãos uma carteira de palhinha entrançada. Um rumor
Observava, curioso, a cena que se desenrolava no quintal.
admirativo acolheu-a. Mam Zabêl sentiu um frémito ao vê-la. Quase
Tomada de emoção inesperada, Julinha sentiu o bater acelerado do
correu. Furou onde podia, esquecendo-se do bordão, onde se
coração. A presença daquele m o n d r o n g o alto, forte, toldava-lhe a
amparava. T r o p e ç o u , entretanto, e caiu de bruços, mesmo junt o à
razão. Ele viu-a e seus olhares cruzaram-se. Desviando a cara,
casota. Um grito elevou-se da pequena multidão e duas mulheres
amornada, abaixou-se a juntar peças de roupa, dobrando-as maqui-
ajudaram-na a sentar-se.
nalmente. Pressentia a vista dele sobre si, a fitá-la e as mãos tre-
Um fiozinho de sangue na boca, conseguiu desenvencilhar-se mlam-lhe sem explicação. Agarrou uma tampa de papelão caído a
delas e, a rastejar, aproximou-se. De joelhos, agarrou a saia de Bia Sena: um canto e começou a abanar-se.
«Arranja-me um casaco de Merca, um casaco c o m o esse de «Credo, Bia! Oh que calor.»
Joninha.» Abanava-se com frenesi. Perturbada. Via-se a ser olhada por
Bia acalmou-a: aquele homem tão atraente, tão bonito. Ele gosta de mim. Sei isso
«Tem esmola pâ toda a gente.» dias-há. Vejo no seu grão-de-olho. Ele gosta de mim. Eu sei. Desde

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aquele baile no liceu quando me apertou as mãos tanto, com uma
Q u a n d o voltou deu c o m a Mam Zabêl a dormitar no mesmo
força! lugar, de boca aberta. Aproximou-se, curvou-se e bateu-lhe no
Saiu para fora da casinha, a abanar-se sempre. Deu alguns ombro. Mam Zabêl não deu sinal de si.
passos pelo quintal e parou j u n to à escada. Bia Sena o l h o u para a Titina.
Titina retirava de um caixote embrulhos de banha e saquítos de «É melhor não a acordar», disse.
farinha, depois ia-os dando às mulheres conforme se aproximavam. Nesse instante um baque cavo fez-lhe dar um salto. Assustada
Estava carrancuda. Descobrira nha Luzia no meio daquela balbúr- reparou em Mam Zabêl. Enrodilhada sobre si mesma, tinha batido
dia. O quê, nha Luzia também vem buscar esmola?, interrogava-se c o m a cabeça contra o cimento. Parecia um novelo escuro e sujo
estupefacta. Nha Luzia tem negócio, tem botequim nas traseiras do atirado para ali. Bia Sena deu um gritinho e agarrou-se à Titina.
meu quarto, vende alvacora frita e grogue e sucrinha e mancarra. «Uá, deu uma coisa à Mam Zabêl.»
A t u r d i d a , estendeu os embrulhos para nha Luzia, majestosa na Titina desprendeu-se e aproximou-se. De pé, perscrutou por
saia rodada de cocktail, a sua parte de esmola de Merca. Recebeu-os instantes, Rodou para a Bia, assustada.
de olhos baixos e sem-vergonha na cara. «Traz água, depressa.»
J u l i n h a ergueu a vista para o c i m o das escadas. Ele já lá não Estendeu as mãos e deu com os olhos em Julinha. Vinha a
descer as escadas. De semblante deslavado, desceu os últimos
estava.
degraus e aproximou-se delas com ar c o m p r o m e t i d o . Por m o m e n -
Nha Luzia escapuliu-se, comprometida e descarada, através das
tos Bia Sena e Titina esqueceram Mam Zabêl. Olhavam pasmadas
pedintes de braços descarnados. J u l i n h a o l h o u de novo para a
para Julinha. Esta parou j u n to do corpo caído da velhota e enfiou
Titina que ia entregando os embrulhos e, de mansinho, esgueirou-se
os dedos pelos cabelos à laia de pente.
para detrás de um caixote por abrir. De princípio, trémula e, deci-
dida por f i m , subiu as escadas sem se voltar, só parando ao cimo, . «Fui fazer um chichi apertado», disse para elas à guisa de
explicação.
na varanda, junto à porta envidraçada da casa do administrador.
O quintal parecia um f o r n o . O desfile das cores berrantes dos «Em casa d o administrador, Julinha?», perguntou-lhe Titina,
vestidos continuava. Recebiam os embrulhos, envolviam-nos na incrédula. «Oh, que vergonha!», conclui u passados segundos. Virou
roupa velha e tomavam o rumo da saída. As exclamações de entu- a cara para o lado e c o m p r i m i u as faces com as mãos nervosas.
siasmo para os primeiros contemplados tinham esmorecido. Bia Sena dava palmadinhas na cara de Mam Zabêl.
Aproximava-se o meio-dia, momento de o estômago começar a «Temos de chamar gente.» E descaiu os braços ao longo do
dar horas. Mam Zabêl, acocorada perto da casinha, parara de c h o - corpo, «Isso deve ser da fraqueza.»
rar e pegara no sono. O queixo descaído, a boca aberta, da gar- Olhava no vazio sem tomar qualquer iniciativa.
ganta subia-lhe e descia um gorgolejo seguido. Bia Sena saiu para Um cheiro empestado desfazia-se no ambiente. Dobrada sobre
o quintal e avisou: uma pilha de caixotes por abrir, a cabeça inclinada, os punhos
«Vocês agora vão e voltam logo. Logo continuamos com a fechados, Titina gemeu alto:
esmola.» «Não posso mais. Vou vomitar.»
As mulheres deixaram-se estar. Dois hornens, talvez envergo- Julinha tinha-se encaminhado para a saída a dizer que ia cha-
nhados pelo seu número reduzido entre aquele mulherio, rumaram mar alguém para as ajudar.
a caminho da porta. Vergada pela cintura, Titina meditava no que acabava de a c o n -
Virando-se para as mulheres, Bia Sena insistiu: tecer. Sim senhora, Julinha saira-lhe uma refinada desavergonhada.
Desavergonhada, pois. Estivera metida com aquele nhambabo lá em
«Vão, vão.» cima. Aos beijos, c o m certeza. Pois claro. Ela não trazia nem s o m -
Vencendo a birra que ainda as mantinha no mesmo sítio, c o n - bra de pó-de-arroz nem de bãton.
seguiu demovê-las, impelindo umas com firmeza, outras conven- Passou a mão pela fronte, continuando de cabeça baixa. Bia
cendo-as com a conversa. Sena, de braços cruzados, olhava, ora para ela ora para Mam Zabêl,

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toda enovelada sobre o cimento. Longe de tudo, Titina levantou os
olhos para a amiga e desfechou-lhe:
«Ouve, Bia, o administrador não é casado, não tem a mulher
em Lisboa?»
«Deve ser. Ele usa aliança. Porquê?»
Titina não lhe respondeu e começo u a ajeitar o vestido.
Bia Sena espreitou de lado para a velha. Tinha recuperado os
sentidos e tentava levantar-se. A rapariga p r o c u r o u ajudá-la, enca-
minhando-a para a casinha. As pernas ainda caranguejadas, a
velhota parou e encostou-se à porta.
«É melhor você levar já a sua esmola, an Mam Zabêl?» e Bia
espraiou os olhos pelo exíguo espaço, a ver se descobria algo para
PÔR-DE-SOL
esconder os farrapos da velha. Enquanto a vestia, riu-se para ela:
«Você teve um chilique, não se aguentou nas canelas. Que
casta de mulher você é?»
A outra permaneceu muda, atenta às roupas. Bia Sena, gene-
rosamente, ia-a vestindo. Um vestido azul c o m muitos botõezinhos,
duas blusas, uma sobre a outra; uma boina basca, luvas de m o t o -
rista e umas polainas de senhora, em camurça, abotoadas desde o
tornozelo até meio da perna.
No quintal viam-se roupas espalhadas, cintos, soutiens, fatos de
banho, vestuário posto de lado porque ninguém o quisera.
Com a biqueira do samatá Titina amontoou algumas peças,
distraidamente. Deu-lhe vontade de rir ao ver sair da casota uma
outra Mam Zabêl, inchada de roupas. Lembrou-lhe um fantoche de
cores, um desgraçado palhaço de um circo sem nome. Resoluta,
atravessou o quintal e a b r i u a porta. O vento m o r n o afagou-a.
Parada, espiou a rua deserta descendo direita até ao mar lá ao
f u n d o , cortada, no entanto, pelo muro da c o m p a n h ia de carvão.
O sol a pino queimava. O mesmo cheiro pestilento de há
bocado incomodou-a.
Transpôs o batente, puxando a porta de seguida.
Hoje não serei capaz de almoçar, pensou, enojada de t u d o
quanto lhe ficara para trás naquele quintal fedorento.
C a m i n h o u pela rua fora, apressada, desejosa de alcançar o
sobrado e estender-se na cama de ferro, c o m p r a d a pela madrinha
quando tivera a febre tifóide.

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Os jornais amontoavam-se sobre um banco baixo, desses onde
se sentam os meninos nas escolas particulares de mestras curiosas.
Damata lê com pachorra sem pressas. Enfronhado na leitura não se
apercebe da cantoria das criadas na cozinha nem da barulheira dos
meninos a brincarem à reianata. A cadeira de lona faz um ruído de
amarras a rangerem todas as vezes que se soergue para agarrar
outro jornal. O ruído incomoda-o quase até à ponta dos nervos.
Estava farto de dizer à Bia para mandar arranjar a cadeira e ela,
invariavelmente, respondia: Home, essa cadeira está boa, Damata.
Teimosa! Viviam há muitos anos, tinham uns poucos de meninos —
mas, assim mesmo, a teimosia dela vinha sendo um entrave ao seu
casamento. No entanto, as casas do Mindelo recebiam-na com
consideração porque Nhô Damata era homem direito e tinha dado
nome aos filhos.
Do bolso do colete tirou a tabaqueira c o m rebordo de prata e
c o m um bater seco na palma da mão fez chegar o tabaco à boca
da tabaqueira de onde retirou a pitada, entre o polegar e o indicador.
Bom cancam esse. Aspirou o tabaco e sentiu as narinas aque-
cidas pelo odor forte da folha torrada e moída. Estirado na cadeira,
preparou-se para passar um bocado bom da tarde.
Sorveu nova pitada e segurou o canto superior da página. Jor-
nais vindos da metrópole com notícias frescas lidas com interesse
de quem vive tão distante dos acontecimentos.
Um golpe de vento fez vibrar as folhas, deixando-as outra vez
com estavam.
Agarrou uma folha caída no chão e novo fio de ar fê-lo levantar
a cabeça e alongar a vista até à porta.
' Nesse m o m e n t o a mulher assomou a cabeça, espreitou e aca-
bou por entrar.
«Estás aí? A h , ainda bem. Sabes uma coisa? la a sair da igreja
q u a n d o vi gente a correr para os lados da rua da Estação», disse e
encostou-se à mesa da máquina de costura. Eu admirei-me porque...

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«Foste à igreja, Bia?», cortou o marido olhando-a por cima dos Dois moços de camisa aberta nos colarinhos passaram por ele
óculos, com o jornal poisado nos joelhos. e gracejaram:
«Bih, Damata, eu tinha-te dito que ia à ladainha», respondeu a «Qualquer dia temos canja, Nhô Damata.»
mulher com estranheza. Foi andando pela rua fora. À esquina parou, olhou um pouco
além das casas baixas pintadas de amarelo, detendo a vista no
«Senta-te, Bia. Vens cansada. O que é que tem a manivela da
segundo andar cor de chocolate a contornar a outra esquina, e
máquina?» Olhava agora para a máquina de mão cuja manivela se
rodopiou o chicote num jeito muito seu.
destravara.
O carro de Nhô Lelona, azul e barulhento, surdiu aos pulos na
«Guida engomadeira ia a passar e eu perguntei-lhe se havia
calçada, vindo dos lados do pé-de-rocha. A roncar, só parou mais
novidade. Não tem nada, está destravada.» Prendeu a nn.anivela com
adiante c o m alarde de matraca. Nhô Lelona voltou-se no assento e
um estalido. «Ela riu-se e disse-me se eu não sabia que o Candinho
fez-lhe um sinal.
e o senhor Muntel tinham acabado de desembarcar.»
«Espera, homem. — D e mão no ar o Damata apressou o passo —
Inclinou-se para o banco e agarrou num jornal para se abanar.
T e n h o um calo na dedona do pé. Não me deixa dar dois passos
«O quê, já foram soltos?» O marido quase deu um salto na seguidos.»
cadeira. Esta rangeu dolentemente.
À porta do carro debruçou-se:
«Caramba, é preciso chamar Nhô Cirilo para consertar este raio.
«Vais ver o Candinho? Soube a novidade agorinha-assim pela
Esta chiadeira dá-me cabo dos nervos, Bia.» Bia. Foi à ladainha e apareceu-me em casa com a nova.»
«Quando cheguei perto da Estação ouvi uns foguetes, uns atrás «Claro, rapaz. Falado desembarcaram por volta das quatro
dos outros. Pareceu-me deveras ser para os lados do Candinho.» horas. Já deve ter a casa cheia de gente. Entra, ainda vamos a
Damata esqueceu o chiar da cadeira para interpelar a mulher. tempo.»
«Quem disse que eles desembarcaram?» Fixou-a e insistiu: «Mas O carro arrancou com um safanão e alguns estalos, deixando
tens a certeza de terem sido soltos, Bia? A h , tenho de ir dar um atrás de si uma fumarada recendendo a gasolina. Damata segurou
abraço ao. Candinho.» o chapéu. Nhô Lelona mantinha o carro sempre sem capota toda a
Pôs-se de pé e agarrou o casaco dependurado num dos lados roda. do ano. O vento fustiga-lhe o cabelo ralo e ele fala alto e c o n -
da cadeira de lona. versa por entre a barulheira do motor.
«Eu não ia inventar uma coisa dessas. Adá, vais sair sem comer, «Eu nem sei por que carga de água o C h i n h a b o n g a resolveu
Damata?», acrescentou passado um momento ao vê-lo a pôr o pô-los cá fora. Envia um telegrama para os prenderem, e m b a r c a m -
-nos sem mais nem menos e, de repente, manda-os embora sem
chapéu.
processo nem nada. Macacos me mordam se percebo alguma coisa
O marido acabou de abotoar o casaco e agarrou o chicote de
disto. Eles tinham escondido os sacos de milho, toda a gente o
cavalo-marinho guardado em cima dos cabides do bengaleiro.
sabia!»
«Damata, é melhor tomares o teu caldo de cachupa antes de
«Tens a certeza que eles fizeram isso?», objectou-lhe o Damata.
saires. Já sabes c o m o são estas coisas. Começam com vivas e dis-
«Sei lá, h o m e m . Olha, no dia em que o sargento Silva os foi
cursos e mais esta conversa e mais aquela. Não, vou chamar a Ade-
buscar, por acaso estava eu à porta a gozar o fresco da pela-manhã
laide para trazer o caldo de cachupa.» Caminhou para a porta e
q u a n d o eles passaram a caminh o do cais. Senhor Muntel até me
chamou.
acenou quando atravessou a rua, mas Candinho — e aqui Nhô
«O que é que tu queres, Bia? Eu volto já. É só dar um abraço Lelona levantou o dedo no ar — d e v i a ter culpa no cartório. Trazia
ao Candinho.» os olhos fincados nos pés e as costas tão lombudas, rapaz. Fazes
A compáhheira continuo u a chamar e o Damata esgueirou-se lá ideia do que ele me pareceu».
para o f u n d o do corredor, passou para o quintal, atravessou-o e «Bem, senhor Muntel é judeu e basta. Não têm vergonha na
saiu para a rua. Bateu o portão e s e g u r o u - o ao mesmo t e m p o . cara. Têm-n a forrada de lata. Mas que raio de calçadas estas. Estes
A lingueta caiu certa sobre o ferro recurvo onde ficou presa. Os solavancos dão cabo dos rins dum cristão, Lelona.»
pombos do muro acima da sua cabeça voaram ficando a saltitar na
rua deserta àquela hora da tarde.
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«Ainda no outro dia faiei neste assunto ao presidente da Candinho poderia ser pai deles. Resolvidos, porém, subiram, encur-
Câmara. Em vez de estar a gastar dintieiro em rede para os t u b a - tando os passos atrás de Nhô Damata e de Nhô Lelona.
rões na Matiota, era mais acertado mandar arranjar estas calçadas. No cimo da escada a desdobrar-se numa ampla varanda de
Eu disse-lhe assim mesmo.» traseiras, Candinho ia recebendo os amigos que o abraçavam,
O carro atravessou rumoroso e aos abanões a rua de Lisboa. dando-lhes grandes palmadas nas costas. Espalhavam-se ao acaso;
«Nós temos boa pedra para calcetar, Lelona», gritava o amigo encostados ao balaustre uns, outros nas cadeiras de verga em
por entre a restolhada do motor. abonançado recostar. Por vezes ia de um sítio para outro, a cumprir
«Boa também para partir a cabeça do presidente e da sua seita. os deveres de dono da casa. Qs dentes postiços subiam-lhe e des-
Do Julinho, do João Silva e do resto da cambada.» ciam-lhe c o m a animação da conversa. As perguntas iam surgindo,
«É verdade, Julinho vai como administrador da Boa Vista. Já esparsas, e ele procurava as respostas com gozo.
sabias? Caramba, Lelona, o teu carro tem bicho-carpinteiro no «O quê? Eu trabalhar de picareta? Nunca!»
corpo.» O peito inchava-se-lhe com a ênfase da réplica.
«Já sabia. Quem tem uma boa pedreira é a Nha Hortênsia. Tra- «O que me engoneou — c o n t i n u o u pouco depois — f o i aquela
balho feito com aquelas pedras fica obra de se ver. Com um rastilho farda de caqui c o m número nas costas, c o m o se fôssemos cadas-
de dinamite, aquilo é uma mina. Eram aí umas calçadas. Um mimol» trados, vejam lá vocês.»
«Falado eia vendeu a pedreira ao senhor Muntel.» Derramava-se em pormenores, acrescentando umas coisinhas, '
pondo de lado outras também.
«É capaz. Esses judeus têm faro. Bem, agora deve voltar com
mais juízo. O doutor Moreira contou-me. Chinhabonga espremeu-os, «Mas fiz-lhes uma boa partida». Os dentes sobem e descem.
«No dia seguinte vestia-a do avesso.»
rapaz, foi um consolo. Por f i m , transferiu-os para o galinheiro onde
passaram oito dias. Aqui entre nós — N h ô Lelona deixou descair um O g r u p o achou graça. O senhor Sequeira, homem de negócios
sorriso sabido com muitos risquinhos junto aos olhos transformados como o Candinho, bate as pernas com um tique nervoso. Dias antes
em dois traços — f o i só para lhes servir de lição. Chinhabonga está-se ficara abalado quando lhe chegou à loja a notícia da prisão do
amigo. Soube-a, o rebocador passara já o canal e mareava a c a m i -
nas tintas para tudo isto.»
nho de Sotavento. Ainda pensara ir ao cais. Desistira, entretanto,
Q velho Ford despojava-se de grossa fita de f u m o , rente ao
voltando afogueado à loja onde, num rodopio com os dois empre-
chão, que se ia espalhando ao longo da subida do Pelourinho com
gados, arrumara os sacos de milho, de feijão-pedra e favona bem à
o cheiro característico da gasolina queimada.
vista. Pô-los junto à saca de açúcar, abrira-lhes bem as bocas enro-
«Ó Lelona, se eles esconderam o milho foi muito mal feito, lando-as para fora e enfiara num deles uma medida de litro em
concordo,» Damata levanta o sobrolho e a testa vira-se-lhe pauta madeira. Posto isto, abalara, temeroso e vendido, a colher mais
de música, «No entanto, essa de se enxovalharem pessoas respei- pormenores. À esquina do Marçal encontrou um grupo junt o ao
táveis c o m o o Candinho e o senhor Muntel, parece-me uma falta candeeiro. Aliás, pouco mais adiantaram. Pareceu-lhes estarem
de consideração. Que diabo, desta maneira aonde iremos nós todos entupidos e com medo de falarem no caso. Deixou-os e, de
parar?» mãos nos bolsos, pela rua adiante a remoer, encontrou-se na
Q carro parou com uma sacudidela brusca e Lelona soltou uma esplanada, rente ao pedestal onde poisa a águia de Gago Coutinho.
praga. Debruçou-se na amurada. Duas mulheres e um garoto rocegavam o
«Estás muito malcriado, rapaz. Andas a aprender com a rapa- carvão. O mar quebrava-se na pequena praia em ondas baixas e
ziada nova?» brincalhonas. Elas enfiavam os balaios deitados, de boca virada
Descontraídos, atravessaram a rua e foram-se aproximando do para a terra, e aguardavam. As ondas passavam sobre eles e que-
prédio amarelo onde morava o Candinho. bravam-se mais à frente, retrocedendo feitas num lençol de água.
Nos balaios ficava meia dúzia de pedras de carvão, O garoto agar-
À porta deste ia um movimento desusado. A notícia da sua
rava um dos balaios e ia a correr despejá-lo no saco encostado a
chegada, feita sem alardes, percorrera lesta a cidade. Alguns rapa-
um canto da praia, perto da amurada, onde estava o carvão a
zes do liceu rondavam por ali, um pouco tímidos. Pois claro, Nhô

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escorrer. Uma das mulheres agarrava no outro balaio e seguia atrás «Olha, Damata, parece-te que eu seria capaz de esconder a
do garoto. Tornavam a colocá-los deitados na praia, a aguardarem c o m i d a para deixar de encher a barriga do nosso povo? Parece-te?
as ondas e, com elas, carvão caído do cais da companhia. Tu sabes bem, Damata, e não o podes negar. Eu pago melhor do
O senhor Sequeira descansara a vista nos pés franzidos das que os outros q u a n d o há descargas e eu, e eu, sim, eu — a voz tor-
duas mulheres de estarem enfiados na água. Podia vir a estar nou-se-lhe firme — t o d o s os sábados dou esmola à minha porta a
metido numa alhada de mil demónios. «Se se lembrarem de men- mais de trinta pobres».
cionar o meu nome, vai ser uma boa encrenca.» Atirara o cigarro Olhou-os a todos, procurou outra vez o lenço e passou-o pela
c o m enfado. O miúdo dera uma corrida, agarrara na beata, acabou fronte húmida.
de a apagar e guardara-a no bolso dos calções. O sol sumia-se com Uma criada a segurar uma bandeja com taças aytavessou a
um halo rubro entre o Monte da Cara e a ponta de Santo Antão, no varanda e desapareceu pela porta da casa de jantar.
mar calmo do horizonte. Senhor Sequeira continuara debruçado na «Bem, vamos beber qualquer coisa», convidou Candinho.
amurada da esplanada aspirando o olor da maresia. Os deveres de dono da casa amorteceram nele, por instantes, o
E agora, encostado ao pilar da varanda do Candinho, conversa calor da discussão.
com Nhô Adalberto da Alfândega, repousado e liberto de escrúpu- Encaminhou os amigos para a grande casa de jantar. No bufete
los. Vozes desencontradas afluíam das casas interiores. havia aperitivos e acepipes salgados. Nha Rosa tinha acabado de
«Vamos ver se descobrimos uma bebida forte lá dentro.» pôr no meio da mesa uma terrina — d e v i a ser canja — c o m um chei-
T o m o u Nhô Adalberto pelo braço e entraram na sala de jantar. rinho a convidar para a destaparem.
O grupo onde se encontrava o Candinho continuava animado, Candinho volveu à varanda a dar uma espiadela. Encostado ao
a trocar impressões à roda do grande acontecimento. Damata varal, de mão em pilão a segurar o queixo, pensativo, foi assim que
cofiava o bigode. A p r u m a d o , o queixo encolhido, a outra mão atrás ele deparou com o Damata.
das costas a segurar o chicotinh o de cavalo-marinho trazido do Sul Aproximou-se, passou-lhe o braço e desabafou antes de se
nas suas andanças de funcionário público, companheiro de todas arrepender:
as horas, acrescente-se, em dado momento interpelou o amigo «Ó rapaz, se eu não fosse teu amigo e tu meu amigo, ainda
numa espécie de censura: agora, por causa dessa coisa que tu disseste quase me deu vontade
«Porque vocês esconderam os sacos de mantimentos sabendo de te ter dado duas taponas».
a falta que havia cá fora?» Damata soltou o braço.
Colhido de chofre, Candinho quase gritou: «Hom'essa, Candinho!»
«Isso é mentira. Nem Chinhabonga acreditou numa coisa dessas. «Sim, senhor, duas taponas bem puxadas. O que é que tu julgas
Intrigas, t u d o intrigas desse biltre do Julinho». de mim?»
Relanceou a vista pelos pés a fazerem roda à sua volta, tirou o Os seus olhos claros espiam Damata com meia raiva. Este, irri-
lenço e limpou o suor da fronte. tado, pelo insólito da circunstância, ripostou-lhe:
«Você comece por aí a barafustar e qualquer dia você está de «Vai passear, Candinho. Eu sou um homem sério. Se perguntei
novo no xadrez», grunhiu o Fanha. por que escondeste os mantimentos foi por querer saber a razão
Candinho não fez caso da intromissão porque c o n t i n u o u . por que o fizeste. Ora essa!»
«Vocês não adivinham porque ele fez isso, pois não?» Este saiu fora de si. Nada via na sua frente a não ser uma névoa
Esperou antes de prosseguir. Lelona veio lá de dentro e, ainda não atinava de onde.
a alDotoar os fundilhos, juntou-se ao grupo. «Já disse. Eu não escondi nada. Já disse.»
Candinho sentia a raiva a subir-lhe à garganta. Exasperado sim senhor, ergueu os punhos fechados. O lábio
«Quer guindar-se à custa dos outros. Foi uma maneira de lam- inferior tremeu-lhe por instantes e a baba humedeceu-lhe em toda
ber as solas de Chinhabonga.» a superfície. Um dos punhos sempre fechado, torceu-o para limpar
Excitado, deu dois passos pela varanda e, virando-se brusca- a boca. Um resto de baba escorreu-lhe, incerta, para o queixo mal
recortado.
mente para o Damata, pôs-lhe a mão sobre o ombro:

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«Se eu apanho aquele biltre do Julinho —barafusta a i n d a — , Senhor Muntel limpava os óculos e os olhos piscos seguiam
juro que o afogo. Biltrel Velhaco! Isso tudo foi para conseguir o com atenção os círculos que a mão ia descrevendo nas lentes,
lugar de administrador, eu sei. Mas afogo-o.« seguras com o lenço, entre o polegar e o indicador.
«Então Candinho?» Acenderam-se as luzes na rua e, através das vidraças, filtrava-se
Os amigos tinham tornado à varanda e tentavam apaziguá-lo. o reflexo das lâmpadas que iluminavam mal a cidade. Candinho deu
Já sabiam. Ele fervia em pouca água, mas a ira deixava-o tão volta ao comutador e a claridade engoliu as sombras espalhadas
depressa c o m o surgia. pelos cantos. Fanha suspende uma garrafa. Desrolhou-a com habi-
«Então nada. Damata quer armar-se, não é mais nada». —Virou-se lidade de conhecedor. O champanhe espumou nas taças, várias
para ele: «Sempre foste um bocado engoniado, ouviste?» rolhas saltaram é a festa animou-se.
«Num dia destes! Francamente.» Os estudantes, deslocados ao pé daquela gente mais velha,
«Moços, vocês não estão direitos da cabeça?» pensam em retirar-se. Afinal o senhor Muntel não lhes chegara a
contar nada. Era um enrascado. Chaleira de rabo!
«Ei C a n d i n h o, parece foste buscar ideias subversivas ao gali-
nheiro. Vamos mas é mandar-te para lá outra vez», chalaceou o O velho judeu dizia-lhes nesse momento:
senhor Sequeira. «Foi uma brrincadeirra parra mim. Minha mulher quando che-
O riso deslaçou-os por momentos. garr da Alemanha vai rirr desta aventura».
«Deus nos livre! Voltava de lá industriado e então, e então! Fanha acercou-se deles.
Bonito! O nosso Candinho virado cabecilha de revolução. Bonito!» «Sua mulher vai rir c o m o cachorro, n'é, senhor Muntel?»
— piscou o olho e riu com os outros. O judeu mal percebe o crioulo de Fanha. Fanha já se tinha vol-
«Deixa. Acabava a miséria e a pouca-vergonha de os negocian- tado para os rapazes.
tes esconderem o milho todas as vezes que a chuva escasseia» — «Ei, moços, vocês não bebem? Tragam copos para esses moços
soprou a voz grossa de Fanha meio fusco com dois g r o g u i n h os do liceu, para os nossos futuros doutores e poetas.»
porventura já bebidos no botequim da Nininha. O champanhe das garrafas desrolhadas com aparato espirrava
Fanha fez o aparte para os mais chegados. No entanto, a sua sobre o encerado.
voz pausada varreu o grupo e chegou ao fundo da varanda. Candinho enchia os copos aos amigos. Nhô Adalberto, encos-
tado ao guarda-prata, saboreava um cálice de grogue. Voltado para
Os amigos levaram o Candinho para a sala onde os estudantes
ele, o senhor Sequeira lembrou-se:
rodeavam o senhor Muntel. Também se associara à festa. Um
«Já sabes? O J u l i n h o foi nomeado administrador do concelho
homem sem familia, sozinho, nalgum lado terá de festejar a sua
da Boa Vista»,
liberdade, não é verdade? Fez muito bem em aparecer em casa de
«Cala-te com esta conversa. Ainda estragas a festa ao C a n d i -
nhô Candinho , sim senhor. Sabe-se lá quando viria a família da
nho», retrucou-lhe Nhô Adalberto mostrando os dentes acavalados
Alemanha. O senhor Muntel fez muito bem cá vir, claro. Oh, senhor
uns sobre os outros. Bebeu de um trago o resto da bebida para
Muntel, qual é melhor, o campo de concentração ou o galinheiro?
logo continuar.
Malandros os rapazes!
«Este grogue deve ser das propriedades do Candinho. O pai
«Uma porrcarria, rapazes, uma porrcarria.» possuía boas terras de regadio em Santo Antão. Repara, tchê,
Limita-se a responder. As palavras saem-lhe morosas, contudo repara na fusca do Fanha.»
os estudantes espicaçam-no. Querem saber. C o m o tinham sido tra- Fanha é pé-descalço, contrabandista, carteirista e um bêbedo
tados, se o Chinhabong a lhes dera alguma explicação, enfim, um de primeira. Mas tem acesso às festas de confraternização. São fes-
ror de perguntas. tas sem convite e Fanha nunca falta. Quando o Silva voltou de Lis-
A sala encheu-se com as vozes dos homens. Fanha acercou-se boa por ter concluído a formatura lá estava ele também . Desafo-
das garrafas envolvidas em gelo e serradura, dentro de um caixote rado, deportado várias vezes para o Sal, ninguém lhe estranha a
a um canto da sala. presença.

70 71
«É um desaforado. O que lhe vale é que ninguém o toma a
sério.»
Encostado à porta, Lelona assoava-se e ria com gosto.
Picado de ideia súbita entretanto, Fanha deu meia volta e tor-
nou para a casa de jantar.
Os amigos foram-se despedindo. A moleza da noite c o n t a m i -
nava-os e deixavam-se ir porque também se fazia tarde. Nhô Adal-
berto procurava a bengala. No limiar da casa de jantar esbarrou
c o m o Fanha, Não se conteve e agarrou-o pelo braço, seu velho

SALAMANSA
hábito.
«Hé, moço quando acabas de ser estouvado? las-me atirando
ao chão.»
Os dentes brancos, muito certinhos, o braço sobre os ombro s
do velhote, Fanha cuspiu num soluço:
«Vou-me escoar por aí.» E olhava para a escada. Levantou a
barbela e esticando os lábios, o dedo a apontar para o Candinho:
«Está no mato sem cachorro.»
C a n d i n h o estava no mato sem cachorro , sim senhor. O casaco
atirado ao acaso, arregaçou os punhos, pensativo. Depois, escolheu
uma cadeira onde se deixou cair, desencantado. A festa não tirara
de cima de si o enxovalho de toda aquela história de ter sido preso.
Homem de posição na terra, respeitado, qual o interesse de C h i -
nhabonga em ter-lhe feito aquela partida? Porquê, gente? Sempre
foi uso os comerciantes esconderem o milho nos anos de carestia.
Vagueou a vista pelas taças espalhadas nas mesinhas e afagou
o queixo. O cão no quintal sacudiu a corrente e ladrou. O vento
levantou-se desabrido para a noite.
Arrepiado, vestiu o casaco e foi debruçar-se nas grades da varanda.
O latido do cão fez-se ouvir mais uma vez na noite fresca.

74
«É um estado já c r ó n i co nele. Começa logo pela manhã ao sair Risonho ainda, disposto a repetir a façanha, Fanha apontou o
de casa. Ele mora no Lombo-de-Trás. É uma fita pegada. Pelo gargalo da garrafa em direcção da cabeça dele.
caminho vai entrando em todos os botequins por onde passa, até «Você também é capaz de ter milho escondido», c o n c l u i u já
chegar na Morada». mais sério e c o m p o n d o um ar brigão.
Pigarreou grosso. Alguém puxou pela manga do comerciante. Deixou-se levar,
«O Candinho agora tem de tomar cuidado com o contrabando limpando sempre a cabeça e a testa.
de grogue. Tem de dar tudo ao manifesto porque senão. Oh rapaz, «Esse Fanha quando bebe é insuportável.»
e a fita que ele fez na varanda?» «As suas fuscas dão sempre nisto. É verdade, quando bebe
«Quem, o Candinho?» mais um bocadinho ninguém o atura.»
«Quem havia de ser». «Dias-há não o vejo fusco.»
Olharam um para o outro e começaram a rir com vontade. «As vezes é pegajoso e chato. Quando apanha uma pessoa não
«Partes gagas», rematou o senhor Sequeira. é capaz de a largar.»
Uma pausa preguiçosa caiu entre eles e nhô Adalberto aprovei- As vozes misturavam-se, subiam no ar, e amortecidas acabaram
tou-a para alcançar uma garrafa j u n t o ao espelho do aparador. por ficar para trás do Candinho, do Nhô Adalberto e do senhor
Encheu o cálice com atenção. O líquido branco desapareceu de Sequeira.
uma golada e ele encheu-o de novo. «Não tem importância — s e n h o r Sequeira ia sacudindo os pin-
«Lelona disse-me agorinha-assim que a nha Hortênsia vendeu gos de bebida que lhe tinham borrifado o fato de linho branco — , a
a pedreira ao senhor Muntel. Devia estar bem atrapalhada para fazer gente já sabe, ele é casca grossa.»
uma tolice assim.» Parou junt o do bengaleiro e compôs o chapéu na cabeça.
«Os judeus são espertos c o m o o diabo.» « C a n d i n h o , ei C a n d i n h o — N h ô A d a l b e r t o s e g u r o u - o p e l o
Senhor Sequeira remói invejoso da oportunidade perdida de um b r a ç o — , parece-me Damata foi-se embora.»
bom negócio. «É verdade, as pedreiras nem precisam de chuva para Senhor Sequeira ia já no f u n d o do corredo r mas ainda ouviu o
medrarem». Calou-se e a pausa foi cortada pelos gritos guturais de Candinho responder:
Fanha, requentado pelas bebidas e pelo calor da noite-fechada. «E nós «Damata? Mas porquê?»
aqui c o m pena da viúva, para não lhe tirar o sustento, para não lhe Duas rugas fundas cavam-lhe e base do nariz até ao queixo.
estragar a vida è aparece um grão-de-bico dum judeu». O rosto do Candinho, porém, é jovem e bem conservado para a sua
idade de homem maduro.
«Ouve uma coisa — a t a l h o u Nhô Adalberto — , o Damata foi-se
Passou a mão pela testa, elevou-a fronte acima pelo cabelo
embora?»
adiante, até à nuca suarenta.
«É deveras, o Damata não está por aqui.» «Mas porquê?», repetiu. «Alguém lhe fez algum mal?»
Relanceou o olhar pela sala. Fanha, em cima de uma cadeira, Na sala falava-se da saída do Damata, ofendido com o Candinho.
fusco c o m o uma tentação, dava pequenos gritos, de braços esten- Bastante toldado pela bebida, Fanha badalou com despropósito:
didos, segurando uma garrafa com uma mão e a taça na outra. Mal «Vamos procurar nhô Damata.»
se aguentava na cadeira e a botelha inclinada vertia o líquido onde Ninguém lhe respondeu. O entusiasmo quebrara-se. Senhor
calhava. Muntel, em passinho indeciso, num andar de Charlot, virava-se para
Senhor Sequeira resolveu ir buscar o chapéu para se ir embora. um lado e para outro a dizer adeus com as mãos gorduchas. Atrás,
Deslizava no meio da confusão de vozes. Alegre, Fanha despejou- mestre Fanha imitava-o, exagerando os pés para os lados e batendo
-Ihe um resto de bebida na calva quando ele passou ao pé. os braços c o m o asas:
«Deixa-te de estupidez.» «Quá, quá, quá!»
O velho comerciante parou e levou a mão espalmada à cabeça. A hilaridade t o m o u conta de todos. Parecia um palhaço. Sen-
Fanha ria, ria, empoleirado na cadeira. tindo-se espiado porém, rematou a façanhice c o m um gesto feio,
«Estupidez o quê?» feiíssimo, para as costas do judeu.

72 73
Baltasar entretem-sepela casa, passeando de uma sala para
outra, parando tempo sem conta à porta da sala aberta para o jar-
d i m , esfregando as mãos ou mantendo-as atrás das costas, pen-
sando, devaneando.
O jasmineiro florido traz até ele um aroma cheio de reminis-
cências. E o pato que ele e os colegas roubaram à dona Chica num
carnaval de há tantos anos e depois tinham ido guardar no quintal
da irmã? Nessa noite de luar cru, aberto sobre as casas baixas da
cidade, o ar recendia aos jasmins cujas pétalas se tinham soltado
durante a tarde.
De uma vez safara-se por essa mesma porta para ir ter com a
Linda. Sim, Linda, uma da rua do Cavoquinho. Pusera um jasmim
na lapela e, fechando o portão de mansinho, ei-lo na rua batida pelo
vento que varria a cidade.
Linda era menina da rua do Cavoquinho, é certo. Enchera-lhe,
porém, as suas noites de rapazinho a despontar para a vida de
gente crescida.
Quando lá ia, normalmente, estava acompanhada. Eram o Júlio
do cinema, o Humberto e mais dois ou três, e também algumas
colegas dela, companheiras dessa vida de estar com uns e com
outros, marinheiros, rapazes do liceu, desembarcados de terra-longe.
Linda já tinha tido um homem casado. Esse pagava-lhe a renda
do quarto e trazia amigos para as patuscadas. Comiam arroz de
atum com malagueta ou caldo de peixe com farinha de pau ou
ainda linguiça frita. Comiam, riam, bebiam grogue.
Essas pândegas, muitas vezes, iam terminar em Saiamansa,
praia sabe-de-mund o lá na outra ponta da ilha. Jantavam à luz da
lua e deitavam-se na areia a contemplar a noite serena. Era uma
das coisas a moerem-no cá por dentro: não ter tomado parte nas
farras de Saiamansa.
Linda também tocava violão e cantava. Oh, se cantava! La, la,
la, menina deixa de disparate, la, la, la. Já não se lembra. Eram t a n -

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tas as mornas e sambas cantadas naquele quarto fumarento da «Deixa-te disso.»
lamparina de petróleo poisada sempre sobre uma lata vazia de Sentindo-se forte com a súplica, o desejo tomara-o c o m o se já
cigarros capstain. A luz frouxa esticava-se numa língua de f u m o e fosse homem experimentado. Respirou fundo e possuiu-a como a
desviava-se, incerta, de um lado para outro, enfarruscando as gar- uma flor se receia venha a desfolhar-se entre as nossas mãos. Linda
rafas vazias, Alinhavam-se arrumadas sobre a mesa, ao longo da bateu as pálpebras por momentos e desceu-as, ensombrando com
parede mal rebocada. os cílios caídos a face serena e ardente.
Ela acabara por deixar o homem casado. Baltasar continuou a contar os jasmins já abertos.
«Sabes —dissera-lhe, um dia, enquanto ele, de costas sobre a Que teria sido feito de Linda?
cama de ferro, os braços sob a nuca, contava as vigas do t e c t o — , De uma vez sovara-a. Encaminhàva-se para lá depois do jantar
sabes, deixei-o porque ele gostava de fazer porcarias.» e viu sair do quarto dela uns moços da ponta-de-cais, desses do
Em c o m b i n a ç ã o , sentada ao f u n d o da cama, coçava a cabeça, c o n t r a b a n d o no meio da baía. Roçou por eles e, entrando no quar-
continuando no mesmo tom. tito térreo, deparou com a Linda sentada no pilão, de cotovelos f i n -
«Eu gosto de fazer essas coisas c o m o deve ser. Porcarias não cados na mesa. O queixo apoiava-se sobre as costas da mão, em ar
são comigo.» de modorra.
Acompanhara a frase com um virar significativo de olhos. Uma vela colocada na boca de uma garrafa, melo consumida,
Baltasar sentiu-se recompensado. Ele, ao menos, era decente. alumiava a mesa e os copos espalhados.
Recompensado e orgulhoso por Linda desabafar com ele. Sentara-se Viu-o entrar, agarrou a garrafa com um resto de bebida, arras-
na cama e puxara-a a si. A cabeça dela roçara-lhe o ventre, coce- tou-a ao longo da mesa com lentidão e, mesmo sentada, escondeu-a
gando-o. Baltasar jamais esqueceu aquele dia. Essa boca-da-noite, atrás do pilão, junto à parede, rente à perna da mesa.
aliás, marcou a sério o início das relações mantidas com Linda anos Baltasar percebera. Os moços tinham trazido grogue e Linda
a fio e, para precisar bem, ainda alguns meses depois de ter casado. apanhara uma fusca alentada. Aqueles olhos não o enganavam.
A princípio procurava-a por mero prazer; depois por necessi- Avançou para ela, raivoso e ciumento, e deu-lhe uma valente bofe-
dade de a possuir, de sentir o seu corpo morn o e esguio, de des- tada. Ela não reagiu, mas quando tentou secundar o gesto, levan-
cansar c o m a cabeça aconchegada entre os seus seios rijos. Por tou-se irada e, de mãos na cintura, chamou-lhe muitos nomes,
vezes, ele sentia nas orelhas, nas faces, a humidade do suor que acabando por lhe dizer: «Ainda cheiras a chichi!» A cambalear,
lhe aflorava à sua pele de crioula e lhe escorria ao longo do vinco empurrou-o para a porta. Não conseguindo pô-lo na rua, estacou
dos seios. de repente e voltou-lhe as costas. Subindo a roupa até à cintura,
Pouco a pouco , verificara uma coisa curiosa, la-se t o r n a n do curvou-se, mostrando a polpa cheia e, batendo repetidas vezes nas
senhor do corpo de Linda, Namorava a que viria a ser sua mulher, nádegas com a mão espalmada, desatou em berraria.
mas o desejo impelia-o para Linda. Toda a cidade murmurava, mas «Aqui, aqui, aqui é que mandas em mim.»
ele que havia de fazer? Descontrolado, só se lembra ainda agora de a ter cobrido de
Nessa boca-da-noite Linda roçara-lhe os lábios pelo u m b i g o e pontapés e fugir, enfim, cansado e vencido.
levantara o queixo, mostrando os dentes por entre a boca meio Nem o vento já na rua a fustigar-lhe o rosto conseguira apagar
cerrada. Ele só podia enxergar bem, bem, as suas pernas longas e a raiva de que se viu possuído então.
lisas. Com o esforço deixara-se cair de costas sobre a cama. Ali Recorda-se destes factos e afigura-se-lhe desejar o corpo de
procurou alento para a puxar. Linda como há vinte anos. Nunca mais soubera dela.
Lembra-se de, nessa ocasião, uma aranha correr célere para a Deixou a sala, caminhou pelo corredor e alcançou o quintal. Só
ponta da teia, segura numa das vigas do tecto. A teia tremera, os parou junto à cisterna. A criada, junto à porta da cozinha, olhou-o
olhos baixaram e pararam nas alças da combinação de seda j a p o - surpresa. C o m o se não o tivesse visto, enfiou-se para o f u n d o da
nesa comprada de graça na loja do Arã. cozinha e dali c o n t i n u ou a espreitá-lo. Resoluto, entrou atrás dela.
Pronto, conseguira pô-la em posição indefesa. Ela tinha-lhe «Antoninha, lembras-te da Linda?»
pedido: «Qual Linda, senhor doutor?»

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«Linda, uma que morava na rua do Cavoquinlio.» dia havia duas épocas, o povo começara a debandada para S. Tomé,
A n t o n i n l i a riu, um riso curcutido. O riso feriu-llie os ouvidos. as pessoas do seu tempo ou tinham emigrado para a América ou
«Adá, porque pergunta isso, senlior doutor?» tinham-se deixado ficar naquela modorra do Mindelo, impotentes
Um pouco desconcertado, não atinava aonde A n t o n i n l i a queria para lutarem contra o vento endiabrado que empurrava as águas
cliegar. para outras pontas. O que o prendia ali? Nada, nada.
«Quer saber mesmo de Linda da rua do Cavoquinho?» «Tenho de voltar para minha casa em S. Paulo, ali mesmo per-
Baltasar f i c o u calado. Ninguém ignorava quem eram aquelas tinho do Cais do Sodré.»
meninas da rua do Cavoquinho. Eram meninas de mau porte. Pelo O lamento escapa-se-lhe inconscientemente.
menos, eram-no no seu tempo de rapazinho. Meninas de todas as A n t o n i n h a , de cócoras, guarda o balaio debaixo do fogão alto
quintas-feiras irem ao hospital para a vistoria. Entre uma e outra feito de pedra e concreto. Espreita para dentro da fornalha uma
examinação preenchiam os dias, se dias se pudessem chamar às batata que pusera lá a assar, sob a cinza quente. Sempre de c ó c o -
noitadas de patuscadas com os empregados da Shell, do Telégrafo, ras, torceu o busto e admirou-se:
ou ao saracoteio da coladeira a qualquer hora para os estrangeiros. «Adá, senhor doutor, senhor doutor está a falar sozinho?»
Estes deixavam alguns xelins mas não davam para nada. O vento entrava por revoadas no quintal, enrodilhava a poeira,
«Linda era irmã de meu pai que Deus tem.» afunilando-a c o m o as covas de catumbembê.
«Como, vocês são parentes?» Porque se lembrara de Linda? Tantos anos já passaram sobre
«Somos. Ela era irmã c_odê^de papai. Ela é minha tia», acres- essa ligação deitada para trás das costas, depois dalgumas cenas
centou após um curto silêncio. com a mulher. Acabou com ela de vez ao embarcar para o c o n t i -
«E que foi feito dela?» nente. Tantos anos! Formara-se, tinha os filhos criados, tornara-se
«Da minha tia Linda? Ela foi pâ S. Tomé.» um bom chefe de família e não querem lá ver? Era capaz de fazer
Antoninha remexe na fornalha do fogão com um ferro. alguma tolice se encontrasse a Linda de novo.
«Eu também qualquer dia vou pâ S. Tomé.» Linda andava descalça, o calcanhar muito liso, sempre esfre-
Ele já não a escutava. gado com pedrinha do mar. Não os tinha rachados c o m o muitas
Essa gente de S. Vicente ia toda para S. Tomé . Para quê, se mulheres de pé-descalço, isso não. E funnava com uma elegância,
iam para lá levar vida de mulheres parideiras de filhos de contrata- senhores. De perna traçada, recostava-se à mesa escalavrada do
dos angolanos, e, ainda por cima, tinham de aturar aqueles filhos quarto onde recebia os amigos, onde comia e onde ia para a cama
da mãe dos capatazes lá das roças? c o m ele e c o m outros, atirando o f u m o com o mesmo à vontade
«Porque é que queres ir para S. Tomé?», surpreendeu-se a que mais tarde veio a encontrar nas frequentadoras das salas de
perguntar à criada. «Não estás bem aqui na tua terra, Antoninha?» chá aí ao subir do Chiado. Desconcertara-o por vezes, com um
«Bem, eu estou, senhor doutor. Mas eu tenho meu filho e eu certo ar masculinizado adoptado nos últimos tempos. Saía para a
quero dar-lhe duas letras. Sabe, esta nossa terra está nhanhida.» rua de cigarro na boca e calcorreva-as, sempre de cigarro na boca,
A n t o n i n h a desfia as suas preocupações num arrastar m o n o - a escandalizar a cidade toda, os pés bem esfregados com pedrinha
córdico de palavras. do mar, o lenço cor-de-rosa apertado c o m um laço no alto da
«O pai de meu filho deixou-me. Meu filho passa os dias na cabeça, o vestido de seda do Japão a desenhar-lhe o corpo onde
ponta-de-praia e no rabo-de-salina, a vadiar, a polir as calçadas. Ele era preciso.
não respeita a mamãe. De resto ela já está velha não pode com ele. «Deixa amar — dizia e l a — , deixa gozar.»
T e n h o de ir pâ S. T o m é para poder dar duas letras ao meu filho.» E rematava a frase com um levantar arrogante de cabeça.
Enxota com o pé uma galinha que, de cabeça levantada e Baltasar caminhou por entre os cavacos espalhados no quintal
atenta, entrara, atrevida, na cozinha. e parou junto à cisterna.
Baltasar, à porta, abrange o amplo quintal onde elas debicam Do f u n d o da cozinha um cantarolar baixo vai crescendo em
pelos cantos. Viera passar uns tempos a S. Vicente, todavia estava ritmo, A coladera escorre da boca de Antoninha e invade-o c o m o
desejoso de voltar. A irmã passava os dias a lamentar a chuva arre- uma carícia, depois afaga-o, entontece-o — a h ! c o m o a nossa terra

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é sabe deveras! — transportando-o às areias de Saiamansa onde irá
rebolar-se e beijar a espuma salgada do mar.
A n t o n i n h a , esquecida das suas preocupações, garganteia com
sabura:
'm bá pâ Saiamansa
Oh, sô sabe...
'm bá rolá na areia
Oh, sô sabe
Oh menina colá na mi
pá 'm pode brinca ma bô... ÍNDICE
Oh, Saiamansa, praia de ondas soltas e barulhentas c o m o
meninas intentadas em dia de S. João. Oh, Saiamansa, de peixe Cais-do-Sodré 7
frito nos pratos cobertos no f u n d o dos balaios e canecas de milho
ilhado p o r t i t i a em caldeiras com areia quente. Areia de Saiamansa,
Linda a rolar na areia. Nina 17
Deixa o quintal, passa pelo quartinho de trás e some-se nas
salas da casa grande.
>^ Rolando de nha Concha 23

Desencanto 37

Esmola de Merca 45

Pôr-de-sol 59

Saiamansa ; 73

82 83

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