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LÍNGUA KARAJÁ
Relatório com o perfil tipológico de língua. Projeto
914BRA4010.
10 de março de
2011.
PROJETO DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA DO KARAJÁ
COORDENADORA: Cristiane Oliveira
PRODUTO: RELATÓRIO PERFIL TIPOLÓGICO DE LÍNGUA
INTRODUÇÃO
Somos Iny mahãdu, gente Iny. A sociedade nacional nos conhece mais como os Karajá, nome que
há muito tempo foi usado por outros índios para referirem-se a nós, e que acabou ficando mais
conhecido. Juntamente com os nossos parentes Javaé (Ixãju mahãdu) e Xambioá (Ixã biòwa),
também conhecidos como os Karajá do Norte, formamos a “nação” Iny, pois compartilhamos da
mesma matriz cultural e linguística.
Segundo censo da FUNASA de 2010, a nossa população atual é de cerca de 3200 pessoas
distribuídas em cerca de 20 aldeias. Quase todos nós Iny falamos a nossa língua que é,
geralmente, a primeira língua adquirida pelas crianças em quase todas as aldeias. Chamamos a
nossa língua de Iny rybè, ou seja, a fala dos Iny. Ela foi classificada no tronco linguístico Macro-Jê,
a família Karajá, constituída por quatro variantes ainda faladas hoje: o Karajá do sul, o Karajá do
norte, o Javaé e o Xambioá.
Fonologicamente o Karajá tem 27 fonemas, quinze consoantes e doze vogais. Algumas palavras,
os tori (não-índios) têm muita dificuldade em pronunciar, principalmente aquelas que possuem
fonemas que não existem na língua portuguesa, como nosso fonema consonantal “t” [à], que é
implosivo, ou seja, a gente fala puxando o ar pra dentro dos pulmões. Também as nossas vogais
centrais média e alta apresentam dificuldades para os tori. Por exemplo, distinguimos a vogal /a/
em uma palavra como ira “a cabeça dele”, de uma central média /↔/, em uma palavra como irà
Orais Nasais
Anteriores Centrais Posteriores Anterior Central Posterior
i π u ĩ
I U
e ↔ o \~ õ
E (ə) O
a (ã)
Nasal m n
Tepe r
Africada tS dZ
Fricativa † s ß h
Aproximante l
Lateral
Como o Iny rybè era, tradicionalmente, uma língua ágrafa, os linguistas do SIL propuseram, a
partir de 1956, um sistema ortográfico para permitir que as crianças Iny pudessem começar a
aprender a escrever em nossa língua. Vários manuais e cartilhas utilizando esta grafia foram
produzidos pelos linguistas do SIL e, posteriormente, por linguistas brasileiros, tendo permitido a
alfabetização de várias gerações de Iny. Este sistema ainda está em uso nas escolas, mas
diferentes linguistas brasileiros têm indicado certos problemas com esta ortografia, sendo que
nós próprios estamos no processo de discutir algumas modificações para simplificar a
aprendizagem da escrita na nossa língua. No quadro abaixo, indicamos as correspondências
entre as letras do alfabeto Karajá original e os símbolos fonéticos.
O Karajá apresenta estrutura silábica simples, restrita ao padrão (C)V. Nas palavras, o
acento cai majoritariamente na última sílaba, ao contrário dos verbos, que normalmente são
acentuados na raiz. As posposições, são grafadas no final do nome sendo separada por hífen,
neste caso, o acento geralmente recai na posposição.
A morfologia do Karajá é aglutinativa. Isso quer dizer que formamos palavras juntando uma
sequência de morfemas, cada um contribuindo para o significado global. Por exemplo, uma
importante aldeia Javaé, a aldeia de Boto Velho, se chama Inã+we+boho+na que quer dizer,
literalmente em português o lugar (na) onde houve a quebra (boho) da barriga (wee) do povo
Karajá (Iny).
Também a estrutura dos verbos na língua Iny rybè é aglutinativa, juntando-se sufixos e prefixos à
raiz. Observe, por exemplo, como dizemos uma forma verbal como “não falamos”. Partimos das
palavras ryy “boca” e beè “água”. Então as juntamos para formar a raiz rybè “fala. Esta raiz,
recebe, então, prefixos e sufixos, como indicado abaixo:
(5) r-a-rybè-reny-õ-ra
3A-VT-falar-PL-NEG-PST
“Não falamos”
Pessoa Possessivo A Sa So O
1 -wa- r-/ar- r-/ar- wa- wa-
2 -a- t-/b- t-/b- a- a-
3 -i- r- r- i- i-
(8) a-Τu-re
2S-sujo-estar
“(você) está sujo”
(9) i-Τu-re
3S-sujo-estar
“(ele) está sujo”
(11) r-i-wa-heteny-reny-re
3A-VT-1O-bater -PL-PST
“(eles) me bateram”
Outra diferença importante que o Karajá apresenta em relação à língua portuguesa é na ordem
dos vocábulos na frase. Em português, na maioria das vezes, falamos o sujeito, depois o verbo e
no final o objeto, portanto é uma língua padrão SVO (sujeito-verbo-objeto), por exemplo: “O
menino comeu o bolo”. No Karajá, o padrão mais frequente é o verbo vir no final. O Karajá é,
portanto, uma língua SOV (sujeito-objeto-verbo), exemplo:
(12) Koboi koworu-ò rara
Koboi roça-para (Posp) foi
“Koboi foi para a roça.”
Para fazer perguntas que tem resposta sim ou não, introduzimos em segunda posição o morfema
aõbo:
(13) Koboi aõbo koworu-ò rara?
“Koboi foi para a roça?”
Nossa língua é tão bonita e possui tantas propriedades peculiares que vários pesquisadores vêm
aqui para tentar compreendê-la melhor. Os linguistas que inicialmente se interessaram em
estudar a nossa língua foram David e Gretchen Fortune nos anos 50. Desde então, vários
pesquisadores da área vêm aqui para tentar entendê-la melhor. Além dos pesquisadores tori,
temos também nossos professores e pesquisadores Iny que desenvolvem estudos e análises
pertinentes. Mesmo assim, ainda são poucos os trabahos sobre o Karajá, precisamos de mais
gente disposta a tentar analisar nossa língua.
Apesar de termos vários séculos de contato com os tori, na maioria das aldeias, a preservação da
nossa língua e cultura é muito forte, nós não abandonamos nossos costumes. As crianças
adquirem o Iny rybé ( fala dos Iny, Karajá), como primeira língua, no seio da família, e o tori rybé
(fala dos brancos, português), somente durante o processo de escolarização. Infelizmente, em
algumas aldeias, o povo não fala mais o Iny rybé (Karajá) e aprendem a falar apenas em
português, como os nossos irmãos de Burudinã, uma aldeia que fica pertinho de uma cidade em
Goiás e os Xambioá que moram no norte da Ilha do Bananal.
É cada vez maior a conscientização, entre os povos indígenas, da preservação de sua língua e
cultura como forma de manter sua identidade cultural frente à sociedade brasileira. Por isso, o
Museu do Índio, órgão da FUNAI, em parceria com a UNESCO e o Banco do Brasil vem
desenvolvendo desde 2009 o Projeto de Documentação de línguas e Culturas Indígenas
Brasileiras que contempla cerca de doze etnias de diferentes regiões do Brasil. Os Karajá, Javaé e
Xambioá estão entre os povos inicialmente selecionados.
Referências
Fortune, D. & Fortune, G. “Karajá men’s-women’s speech differences with social correlates”. Rio
de Janeiro, Inst. de Antropologia Prof. Souza Marques. Arquivos de Anatomia e Antropologia 1,
1975.
FORTUNE, David L. Karajá Grammar. Arquivo lingüistico do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1964.
MAIA, M. A. R. . Construções do tipo QU em Karajá. Veredas (UFJF), Juiz de Fora, MG, v. 4, n. 2, p.
43-52, 2000.
RIBEIRO, Eduardo R. Direction in Karajá. En: Zarina Estrada Fernández & Rosa María Ortiz
Ciscomani (eds.), Memorias del VI Encuentro de Lingüística en el Noroeste, p. 39-58. Hermosillo:
Editora UniSon, 2002.