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Cláudia Roncarati
Jussara Abraçado
(Organizadoras)

PORTUGUÊS BRASILEIRO II
contato lingüístico, heterogeneidade e
história

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, RJ – 2008
Copyright © 2008 by Cláudia Roncarati e Jussara Abraçado (Organizadoras).
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel
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Projeto editorial: Jorge Viveiros de Castro
Conversão para ebook: Freitas Bastos
Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP

P886
Português Brasileiro II: contato lingüístico, heterogeneidade e história / Claudia Roncarati e Jussara
Abraçado (organizadoras) — Niterói : EdUFF, 2008.
398p. ; 23 cm.
Inclui bibliografias
ISBN 978-85-228-0466-5
1. Língua Portuguesa - Brasil. 2. Linguagem e língua - variação. 3. Lingüística I. Título.
CDD 170.4

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Márcia Menendes Motta
Maria Laura Martins Costa
Mariângela Rios de Oliveira
Vânia Glória Silami Lopes
Sumário
Capa
Projeto e-books
Folha de Rosto
Créditos
Apresentação
Parte 1 - Contato lingüístico
A influência do princípio do peso na ordem verbo-sujeito no português
de contato do Alto Xingu1
Marcas entonacionais em dialetos de fronteira: o continuum entre o
português brasileiro e o espanhol uruguaio em enunciados interrogativos
totais
O bilingüismo pomerano-português na região de Pelotas
Parte 2 - Heterogeneidade
Retratos da variação entre você e tu no português do Brasil: sincronia e
diacronia
Variação sociolingüística e teoria lingüística
Reanálise da consoante em final de palavra: coda ou ataque de núcleo
vazio?
A variação lingüística no Brasil
Restrições de natureza cognitivo-comunicativa: marcação versus
expressividade retórica em fenômenos variáveis
Algumas restrições aos proparoxítonos em português28
Estudo diacrônico da inversão sujeito-verbo no português brasileiro:
fenômenos correlacionados
A construção de uma metodologia dialetal: Para uma avaliação do
andamento do Projeto ALiB
Crenças de professores e alunos de português de escolas públicas de Juiz
de Fora-MG45
Haver, ter ou fazer na expressão de tempo decorrido
A ordem das orações nos discursos falados e escritos
Aportes sociolingüísticos à alfabetização
Temporais na margem esquerda da oração: indexação na fala e na escrita
Palatalização e soância: interação entre variação e teoria fonológica
O deslocamento das marcas flexionais nominais e verbais em português,
como conseqüência da mudança do paradigma prosódico: o exemplo do
Francês
A fala popular do Estado do Rio de Janeiro numa perspectiva geo-
sociolingüística
A variação na ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais:
condicionamentos morfossintáticos e prosódicos
Expressões lexicalizadas no português brasileiro: construção conjunta e
uso comunitário do léxico
Crenças e atitudes lingüísticas: quem fala a língua brasileira?111
Desfazendo um mito: a repetição na escrita e suas funções
Parte 3 - História
A questão da constituição histórica do português brasileiro: revendo
razões136
Aspectos gramaticais do português brasileiro afetados pelo contato entre
línguas: uma visão de conjunto
“Bárbaros à porta”: uma reflexão histórica sobre a língua portuguesa no
Brasil da atualidade161
Apresentação
Quando assumimos a coordenação do GT de Sociolingüística da
ANPOLL para o biênio 2006-2008, uma de nossas metas foi a de dar
continuidade à publicação dos estudos e pesquisas de ponta realizados no
âmbito da Sociolingüística no Brasil. Para tal, convidamos as professoras
Cláudia Roncarati e Jussara Abraçado, organizadoras do livro Português
Brasileiro, para organizar este volume, que decidimos chamar de Português
Brasileiro II: contato lingüístico, heterogeneidade e história. O nome foi
escolhido para formalizar uma publicação periódica própria do GT, que se
mostrou de tão grande valor científico e acadêmico na primeira edição que,
rapidamente, foi esgotada devido ao enorme sucesso.
Este volume está dividido em 3 partes, organizadas a partir do viés
temático predominante dos 26 artigos que compõem esta coletânea. Na
primeira parte, Contato lingüístico, os 3 artigos refletem pesquisas oriundas do
contato lingüístico estabelecido entre o português e as línguas indígenas; o
português e as línguas de imigrantes; o português e as línguas de fronteira,
abordando questões de política e planificação lingüística para estas
comunidades de contato. Na segunda parte, Heterogeneidade, concentram-se a
maioria dos artigos, porquanto refletem a área da Sociolingüística, que possui
o maior número de pesquisadores do GT, qual seja a área de variação
lingüística. Os 20 artigos apresentados nessa parte refletem questões de
variação e mudança identificadas e descritas em diferentes níveis lingüísticos: o
subsistema fonético-fonológico, o subsistema morfossintático e a dimensão
discursiva. Também são alocados nessa parte os estudos que abordam
questões de Sociolingüística e o ensino de línguas e adotam uma perspectiva
multidisciplinar da Sociolingüística com outras teorias lingüísticas. Na terceira
parte, História, há 3 artigos que convidam a uma reflexão sobre a história do
português no Brasil.
A publicação do Português Brasileiro II: contato lingüístico, heterogeneidade
e história é um presente para toda a comunidade acadêmica da área de Letras e
Lingüística. Com este livro, reforçamos o alto nível de produtividade dos
membros de nosso GT, divulgando os estudos e pesquisas de ponta realizados
nas diferentes abordagens teóricas e metodológicas que delineiam a área da
Sociolingüística em nosso país.
Mônica Savedra
Jürgen Heye
PARTE 1

Contato lingüístico
A influência do princípio do peso na ordem verbo-sujeito no
português de contato do Alto Xingu1

Jussara Abraçado – UFF


INTRODUÇÃO
Na reserva indígena do Alto Xingu existe uma modalidade de português que serve,
principalmente, de veículo de interação entre indivíduos índios e não-índios e que, cada vez
mais, vem sendo também utilizada como veículo de troca de informações em eventos lúdicos
intra e intertribais.
Na análise que faz do português xinguano, Emmerich (1984) dá ênfase às características
pidginizantes observadas nesta modalidade do português: o surgimento em contexto
multilíngüe; a ocorrência da comunicação praticamente pelo modo pragmático na fase inicial
dos contatos; o caráter reduzido e/ou simplificado do português xinguano; e sua função de
língua de contato, servindo sobretudo para o intercâmbio econômico.
Mesmo enfatizando a relação entre o português xinguano e as línguas pidgins, a autora
não deixa de assinalar as características divergentes entre a formação do português xinguano e
o surgimento de uma língua pidgin:
É bem verdade que a situação xinguana diverge decisivamente daquela em que surgiram os pidgins de um modo geral:
as relações amistosas que caracterizam, em todos os momentos, a interação entre índios e caraíbas divergem
basicamente do que se conhece da maioria dos pidgins: a inacessibilidade do modelo padrão ou superstrato, dadas as
relações de subordinação (EMMERICH, 1984, p. 73).
Pode-se optar pela caracterização do português xinguano como resultante de um processo
de aquisição de uma segunda língua (L2). Tal caracterização, entretanto, não o desconfigura,
no que se refere à sua classificação como língua emergente, uma vez que, na literatura sobre
línguas pidgins e sobre aquisição de L2, a relação entre a pidginização e os estágios iniciais de
aquisição de L2 é freqüentemente destacada tomando como suporte características (presentes
no português de contato do Alto Xingu) que se assemelham nos dois processos:
a) tendência a estruturas fonológicas menos complexas;
b) ausência de morfologia derivacional e flexional;
c) tendência a uma ordem fixa, em geral SV(O) e à não-utilização de construções
encaixadas;
d) léxico reduzido.
O português de contato xinguano, conforme já foi atestado por Emerich (1984),
configura um contínuo caracterizado por graus de fluência. Em seu estudo, a autora segmenta
o contínuo, tomando como ponto inicial os falantes monolíngües nas línguas nativas. A partir
daí, propõe graus de fluência que agrupem:
I. aqueles que entendem, mas não utilizam o português de contato;
II. os que fazem uso do português primordialmente para intercâmbio econômico e que
dominam apenas um reduzido inventário lexical;
III. os que utilizam o português em contatos esporádicos ou iniciais, sendo a
comunicação efetuada por meio de estruturas reduzidas e com fundamental apoio dos
gestos e da entoação;
IV. os que se comunicam utilizando estruturas gramaticais de emergente complexidade
morfossintática;
V. aqueles com regular fluência no português de contato;
VI. os com maior desenvoltura discursiva no uso do português.
Neste trabalho, coletamos e analisamos dados extraídos da fala de sete informantes da
aldeia Kamayurá que se encontram inseridos nos três últimos graus de fluência da
classificação proposta por Emmerich. Dedicamo-nos, exclusivamente, à analise das
ocorrências da ordem verbo-sujeito (VS) no português de contato xinguano, por
entendermos que, teoricamente, as circunstâncias que envolvem as ocorrências da VS são
altamente favoráveis à ocorrência da ordem sujeito-verbo (SV). Senão, vejamos:
a) Na ordem básica do português (SV(O)) e do Kamayurá ((O)SV), a posição canônica do
sujeito é antes do verbo;
b) A ordem VS no português coloquial, de acordo com a literatura especializada, é uma
ordem marcada, menos freqüente;
c) Conforme vimos anteriormente, tanto em processos de pidginização quanto nos
estágios iniciais de aquisição de L2, observa-se a tendência a uma ordem fixa que, em
geral, é SV(O).
É nosso objetivo concentrar o foco da atenção nos SNs sujeitos pospostos, buscando
avaliar a atuação, no fenômeno estudado, de um princípio proposto em análise
translingüística da ordem de palavras: o princípio do peso.
O PRINCÍPIO DO PESO
Greemberg (1963), ao estudar a ordem de palavras num corpus formado por 30 línguas,
postulou dois princípios para dar conta da regularidade constatada e da variabilidade
observada nas línguas estudadas:
I. Princípio da dominância: a ordem dominante é aquela menos sujeita à restrição;
II. Princípio da harmonia: harmônica é a ordem na qual se observa uma tendência a um
alinhamento na posição dos modificadores em relação ao elemento nuclear.
O princípio da dominância é ilustrado por Croft (1990) por meio de uma Tabela que
retrata o cruzamento da ordem entre nome (N) e adjetivo (A) com a ordem entre nome (N) e
demonstrativo (Dem) nas línguas do mundo:
Tabela 1 – Princípio da dominância
DemN NDem
NA X X
NA X -

Fonte: CROFT (1990, p. 54)

Segundo a Tabela proposta, NA é dominante porque ocorre tanto com DemN quanto
com NDem, enquanto AN ocorre somente com DemN. Da mesma forma, DemN é
dominante, uma vez que ocorre tanto com NA quanto com AN, ao contrário de NDem que
ocorre somente com NA. As ordens que não são dominantes (AN e NDem) são chamadas
de recessivas por Greenberg.
A partir dos princípios da dominância e da harmonia, Greemberg introduziu a noção de
“motivações em competição”: enquanto a dominância favorece algum tipo de ordem, como,
por exemplo, a ordem NA, a harmonia pode favorecer um alinhamento do adjetivo com
outros modificadores, dando origem à variação que se observa translingüisticamente.
Mas foi Hawkins (1980, 1983) quem forneceu elementos para confirmação e explicitação
do princípio da dominância. Ao estudar a ordem nome-modificador, postulou a atuação de
duas outras motivações em competição: “o princípio do peso” (heaviness) e o “princípio da
mobilidade” (mobility):
I. Princípio do peso: estabelece a existência de uma tendência segundo a qual os
modificadores mais pesados aparecem mais comumente após o nome, enquanto os
mais leves, ao contrário, costumam antecedê-lo;
II. Princípio da mobilidade: estabelece a existência de modificadores mais sujeitos à mudança
na ordem do que outros.
Dos princípios propostos por Hawkins, o que particularmente nos interessa é o princípio
do peso. Associando a noção de peso ao tamanho dos modificadores, o autor apresenta uma
escala na qual os modificadores por ele estudados estão dispostos de acordo com o seu peso:
(+pesados) (- pesados)

Cláus. relativa < sintag. genitivo < adj. < dem. < num.

Conforme destaca Croft (1990), há uma correspondência perfeita entre a análise de


Hawkins e a ordem dominante postulada por Greemberg, no que se refere a nomes e
modificadores: DemN, NumN, NA e N-REL (sendo REL = cláusula relativa). Entretanto, o
princípio do peso não deve ser entendido como um princípio paralelo ao da dominância e da
harmonia, ou como mais uma motivação em competição, conforme postulado pelo próprio
Hawkins. O princípio do peso, como acentua Croft (1990), explica o princípio da dominância.
Isto é: a ordem dominante é aquela em que os elementos mais leves antecedem os elementos
mais pesados. Dessa forma, Croft propõe que o princípio do peso tenha o seu domínio
ampliado em relação à ordem de palavras em geral, não se restringindo somente à ordem
nome-modificadores.
A VS NO PORTUGUÊS XINGUANO
Pesquisas anteriores sobre a ordem VS no português coloquial apontam como principais
as seguintes características do SN sujeito posposto: a) veicular informação nova; b) ser
indefinido; e c) não desencadear concordância (PONTES, 1986; LIRA, 1982; NARO;
VOTRE, 1991).
Com exceção da concordância – que, a nosso ver, é um efeito da posposição e que se
manifesta no verbo e não no SN – consideramos que as duas outras características estão
intimamente relacionadas. Isto é, a informação nova normalmente é mais extensa do que a
informação velha e um SN indefinido, por sua vez, geralmente constitui uma informação
nova. A partir de então, formulamos a hipótese de que a combinação desses três fatores
contribui para que um SN se torne cognitivamente mais ou menos pesado. Sob esta ótica, um
SN grande, que veicule informação nova e que seja indefinido é bastante pesado, enquanto
um SN pequeno, que veicule informação velha e que seja definido é substancialmente mais
leve.
Por razões puramente práticas, para evitar um grande número de alternativas resultantes
das possíveis combinações, as categorias consideradas assumem aqui um caráter binário: [+/-
Grande], [+/- Informação Nova] e [+/- Definido], perfazendo um total de oito alternativas.
Em relação ao tamanho, um outro esclarecimento se faz necessário: consideramos pequenos
aqueles SNs constituídos por até duas sílabas; os constituídos por três ou mais sílabas foram
categorizados como grandes.
Apresentamos, a seguir, as alternativas devidamente exemplificadas:
a) [+GD, +IN, -DEF]
[...] Aí o pessoal perguntô cume que tava... de lá. “Tá bom, ele tá jogano futebol”. “Ah, acho que ele tá bom. Acho que
ele já cumeçô num pega febre de novo”. Pegamo de novo... Aí ele vai embora até Brasília. Lá que aconteceu alguma coisa
pra ele (K4)
b) [+GD, +IN, +DEF]
E: Tem que pescar muito, né?
I: Tem que pescar muito.
E: Quando tem Kuarup vem todas as tribos aqui?
I: Vem, vem tudo... menos Kamaricuma... Vem Kalapalo. Vem tudo. (K3)
c) [ +GD, -IN, +DEF]
[...] “É claro que eu tô ganhano lá na FAB”. Eu falei assim pra ele: – Cume qu’eu... cume... Etienne eu já disse pra você
cume que eu vô tê quatro braço pá ajuda você, rapai”, falei assim pra ele. Ficano aqui, né, atraiz dessa... Aí eu tava cuma
camisa assim velha... já foi embora a camisa. Falei: “essa camisa voi de lá”.(K5)
d) [-GD, -IN, -DEF]
I: [...] tem muito caraíba tá chegano aí morre tudo, né. Aquele num escapa não.
E: E quem é que trouxe a gripe pra vocês? Não foi feitiço?
I: É do vedicero, né, eu num sei quem é trouxe isso. (K2)
e) [-GD, +IN, -DEF]
Peraí, eu vô contá tudo isso. Aí eu falei “poxa vida”. Depois chegô um com... com a caixa cuma caraíba bota mordo no...
com a caja, é. Bunidinho, viu. Que tem uma... no coração. Caxa, caja bonito! Igual preta, ne, pretinha...(K4)
f) [+GD, -IN, -DEF]
I: Kamaiurá não gosta bicho.
E: Ah, não come nenhum?
I: Não come nenhum.
E: Não comem anta?
I: Não comem anta, não comem catitu, só come [...] catitu.
E: E Veado comem?
I: Veado não come não.
E: E paca?
I: Paca come todo mundo. (K6)
g) [-GD, +IN, +DEF]
E: Mais ele... eu acho que esse Apoema pode ficá igual o Olímpio, né?
I: Há... Num sei não, viu. Pra mim... pra mim... pra mim seria muito ruim, viu. Cara que é legal mesmo, que fico aí... tem
dois cara legal, né. Ficô... ficô Sergio aí, fico ruim, fico chato aí pra gente. (K5)
h) [-GD, -IN, +DEF]
[...] Depois chefe, meu pai, tá correno, pega esse putuna, pegô aqui, caiu meu pai, depois outro tá sumino, e outro
kamayurá que a pegô no peito quase vai saí, tá pensano: ah, eu tem carabina, um carabina, é, munição tem só dois. (K2)
O resultado referente às ocorrências da ordem VS no português xinguano pode ser visto
na Tabela 2:
Tabela 2 – VS no português xinguano
ALTERNATIVAS OCORRÊNCIAS
A 34
B 23
C 19
D 18
E 15
F 11
G 9
H 4
TOTAL 133

Como se pode constatar, a maior incidência de sujeitos pospostos se deu justamente em


(A), que abarca os SN mais pesados na escala de peso proposta (grande, veicula informação
nova e é indefinido). Inversamente, apenas 3% dos casos de VS se encontram na alternativa
(H), na qual as três categorias são marcadas desfavoravelmente em relação ao aumento do
peso. As demais alternativas ocupam posições intermediárias.
Observando-se, também, a importância de cada categoria em relação às duas outras – a
partir da comparação dos percentuais de ocorrência das alternativas C [+GD, -IN, +DEF],
em que somente a extensão do SN contribuiria para o respectivo aumento do peso; D [-GD, -
IN, -DEF], em que a categoria definitude seria a principal responsável pelo peso do SN; e G
[-GD, +IN, +DEF], em que caberia apenas ao status informacional do SN a definição de seu
peso – verifica-se haver uma hierarquia que, numa escala descendente, é a seguinte: [+/-GD]
> [+/-DEF] > [+/-IN]. Tal escala indica a prevalência da extensão de uma unidade na
caracterização de seu peso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, desenvolvemos análise sobre a ocorrência da ordem VS no português de
contato xinguano, investigando dados extraídos da fala de sete informantes da aldeia
Kamayurá. Concentramos o foco da atenção exclusivamente sobre o SN sujeito posposto,
buscando avaliar a atuação, no fenômeno estudado, de um princípio proposto em análise
translingüística da ordem de palavras: o princípio do peso. Tomando como base pesquisas
anteriores sobre a ordem VS no português coloquial, postulamos que a combinação de três
fatores (tamanho, definitude e status informacional) contribuiria para tornar um SN
cognitivamente mais ou menos pesado. Feita a análise, encontramos resultados que apontam
para a confirmação de nosso postulado, mas que também indicam ser a extensão do SN
posposto o fator mais importante, dentre os testados, na definição de seu peso.
REFERÊNCIAS
CROFT, William. Typology and universals. Cambridge: University Press, 1990.
EMMERICH, Charlotte. A língua de contato no Alto Xingu: origem, forma, função. 1984. Tese
(Doutorado)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1984.
GREENBERG, Joseph H. Some universals of grammar with particular reference to the order
of meaningful elements. In: ______. (Ed.). Universals of grammar. Cambridge, Mass.: MIT
Press, 1963. p. 59-90.
HAWKINS, John A. On implicational and distributional universals of word order. Journal of
Linguistics, Cambridge, v. 16, p. 193-235, 1980.
_____ . Word order universals. New York: Academic Press, 1983.
LIRA, Solange de Azambuja. Nominal, pronominal and zero subject in Brazilian Portuguese. 1982.
PH.D. (Dissertation)–University of Pennsylvania, Philadelphia, 1982.
NARO, Anthony Julius; VOTRE, Sebastião. A base discursiva da ordem verbo-sujeito em português.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1991. Mimeo.
PONTES, Eunice. Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática, 1986.
VOTRE, Sebastião. Lingüística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. Mimeo.
Nota
Texto resultante de trabalho apresentado no I Fórum Internacional da Diversidade Lingüística (Porto Alegre, UFRS, julho de
2007).
Marcas entonacionais em dialetos de fronteira: o
continuum entre o português brasileiro e o espanhol
uruguaio em enunciados interrogativos totais

Letícia Rebollo Couto – UFRJ


Cláudia Cunha – UFRJ
Maristela da Silva Pinto – UFRJ
Gláucia Felismino – UFRJ
INTRODUÇÃO
Este artigo propõe uma descrição e uma discussão preliminar do que seriam as
configurações tonais de enunciados interrogativos totais ou absolutos (aqueles com
resposta sim/não) em duas subvariedades do português brasileiro (PB) e em duas
subvariedades do espanhol uruguaio (EU). O objetivo deste estudo experimental é
verificar, a partir desses enunciados interrogativos totais, se há um continuum dialetal
na variação prosódica de contornos melódicos. Nesse sentido, descrevemos e
comparamos realizações de falantes das cidades do Rio de Janeiro (RJ) e Santana do
Livramento (SL), no lado brasileiro, e das cidades de Rivera (R) e de Montevidéu (M),
no lado uruguaio.
Dentro do Brasil, se viajarmos pelas capitais do país em direção ao sul,
observamos que diferenças lingüísticas distinguem uma capital da outra; às vezes
essas diferenças são maiores, às vezes menores, mas são sempre acumulativas. Quanto
mais distante do ponto inicial, maiores serão as diferenças. Já é ponto pacífico nos
estudos de variação geoletal que extremos geográficos podem não ser mutuamente
inteligíveis, mas são unidos por uma cadeia de inteligibilidade mútua. Este princípio é
conhecido na dialetologia como continuum dialetal geográfico. As diferenças entre um
dialeto e outro são maiores ou menores de acordo com sua distância geográfica.
Nesse sentido, na nossa busca por um contínuo dialetal prosódico, escolhemos dois
pontos extremos, Rio de Janeiro, para o Brasil e Montevidéu, para o Uruguai. A partir
desses dois extremos gostaríamos de localizar as realizações dos dialetos de fronteira
tanto do português quanto do espanhol no que diz respeito aos enunciados
interrogativos totais.
Os viajantes cariocas têm, na fronteira, a impressão de que os brasileiros dali já
falam como uruguaios. Os habitantes de Montevidéu, por sua vez, acreditam que na
fronteira com o Brasil os falantes de espanhol têm interferência do português e falam
“cantado”, como os brasileiros... Essas atitudes ou crenças baseadas na percepção da
diferença teriam algum tipo de fundamentação prosódica?
(1) Como essas impressões do contínuo prosódico, percebidas como “interferências”, se refletem
nos enunciados interrogativos totais, do ponto de vista da organização tonal e do ponto de vista da
organização temporal?
Por que escolhemos os enunciados interrogativos? Porque os enunciados
interrogativos são, segundo Sosa (1999), pontos estratégicos do sistema se quisermos
observar a variação dialetal prosódica. Os enunciados interrogativos distinguem-se
dos assertivos em português e em espanhol fundamentalmente por sua entoação. Para
Sosa (1999, p. 198), “é na entoação das perguntas absolutas onde encontramos as
distinções sistemáticas mais claras entre os dialetos hispano-americanos”, sobretudo
no que diz respeito à configuração melódica final do enunciado, ou seja, o seu
tonema.
A partir do enunciado ¿Le dieron la hora del vuelo?, Sosa (1999) compara o tonema
de enunciados interrogativos totais em seis variantes hispano-americanas e em quatro
variantes peninsulares do espanhol. Os resultados são:
América Tonema Curva
1. Buenos Aires L+H*H% Ascendente
2. Bogotá L*+H% Ascendente
3. Ciudad de México L*+HH% Ascendente
4. San Juan, Puerto Rico H+H*L% Descendente
5. Caracas H+H*L% Descendente
6. La Habana H+H*L% Descendente

Espanha Tonema Curva


1. Sevilha L*H% Ascendente
2. Barcelona L*+H% Ascendente
3. Pamplona L*+HH% Ascendente
4. Madrid L*H% Ascendente
O pretonema nesses enunciados, ao contrário do tonema, é invariável: L*+H. Há
várias diferenças de implementação fonética do tonema nos enunciados
interrogativos. Diferenças que são explicitadas pelo autor a partir da notação Métrica
Auto-segmental e da visualização da curva da Fo (freqüência fundamental), a fim de
distinguir variantes dialetais. A maior diferença encontrada pelo autor são as variantes
caribenhas (capitais de Puerto Rico, Venezuela e Cuba) que realizam o tonema
descendente, ao contrário do postulado pela bibliografia para o espanhol até então.
Não há dados referentes a Montevidéu. Cabe, portanto, perguntar:
(2) O Espanhol Uruguaio coincide com a realização de Buenos Aires, considerando que
Montevidéu e Buenos Aires pertencem à mesma área geoletal, Rio de la Plata?
No português brasileiro, Moraes (2002, 2006) propõe distinções fonológicas entre
três diferentes tipos de enunciados interrogativos totais, em função de suas diferentes
interpretações pragmáticas (neutro, estranheza, pedido). O enunciado interrogativo
neutro, ou seja, o que cumpre a função pragmática de pedido de informação, teria um
pretonema baixo (L*) ou descendente (L*+L), ao contrário do espanhol, e um
tonema descendente, a partir de uma parábola ou curva circunflexa (L+H*L%).
Assim como nas variantes caribenhas do espanhol, o enunciado interrogativo total
neutro em PB sobe na tônica e desce na pós-tônica final. Entretanto, em PB, a pré-
tônica é baixa, daí o efeito circunflexo (baixa-alta-baixa) enquanto nas variantes
caribenhas em espanhol a pré-tônica descrita por Sosa é alta. Os estudos contrastivos
entre padrões e modalidades de frases de Moraes foram feitos a partir da variante do
Rio de Janeiro.
(3) O que acontece em Santana do Livramento, com esse padrão interrogativo total com valor
neutro, coincide com a variante do Rio de Janeiro, proposta por Moraes?
No que diz respeito à organização temporal e a sua variação dialetal do PB, Cunha
(2000) analisa a duração de vogais pré-tônicas, tônicas e pós-tônicas finais em três
capitais brasileiras (Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre). Nos seus resultados, a
partir de dados de leitura e fala espontânea, o alongamento das vogais tônicas é
sempre maior do que o de qualquer sílaba. Entretanto, Porto Alegre é a cidade que
apresenta as sílabas tônicas mais longas em leitura. Há, portanto, diferenças de
implementação da duração em sílabas tônicas e átonas devido aos registros e aos
diferentes dialetos. A autora assinala como uma tendência a se considerar o peso
incrementado da sílaba pós-tônica nos falares do sul.
(4) Qual o papel da duração na implementação dos diferentes contornos entonacionais regionais?
Além da variação geoletal, os enunciados interrogativos totais também podem
variar em relação à sua interpretação, do ponto de vista pragmático, ou seja, de acordo
com o status da informação no enunciado. Do ponto de vista pragmático, os
enunciados interrogativos totais podem apresentar-se de forma neutra, menos
marcada no que se refere ao foco, ou a alguma de suas partes focalizadas. O foco,
para Zubizarreta (1988), é a parte do enunciado que não faz parte do pressuposto, ou
seja, do conhecimento ou informação considerada como compartilhada pelo falante.
Destacar ou relevar certas partes de um enunciado é o que se denomina focalização
ou foco estreito, segundo Sosa (1999, p. 170). O autor retoma as definições de
Canellada e Madsen para foco, ao lembrar que, quando numa sílaba vemos um
máximo dos três parâmetros prosódicos, é sinal de que essa “palavra” tem uma carga
enfática extraordinária e está focalizada, ou seja, isolada e ressaltada sobre o fundo. E
também a definição de Fant, para quem a proeminência tonal é usada a fim de
ressaltar a informação nova (focalizada) de um enunciado. Para Sosa (1999), um meio
bastante comum nas línguas romances seria o de variar o tipo de acento tonal
associado à palavra a ser destacada.
Assim, em enunciados interrogativos totais, de um pretonema não marcado do
Espanhol (L*+H) passaríamos a um pretonema marcado (L+H*), sob foco. Esse tipo
de notação não é consensual e ainda está em fase de discussão, como se lê em Face
(2006).
Neste estudo sobre enunciados interrogativos totais, consideramos, além da
variação dialetal, a variação pragmática na implementação do foco. Assim, nós
variamos no nosso experimento o foco, considerando: a) ora o enunciado sem foco,
ou seja, o enunciado interrogativo neutro que corresponde a um pedido de
informação; b) ora o enunciado com foco no tonema, o que resulta num enunciado
interrogativo com estranheza na parte final do enunciado; e c) ora o enunciado com
foco no pretonema, o que resulta num enunciado interrogativo com estranheza na
parte inicial do enunciado.
(5) A variação de foco no tonema ou no pretonema afeta a configuração tonal ou a organização
temporal dos enunciados interrogativos totais neutros? Há diferenças geoletais?
A região de fronteira entre Brasil e Uruguai tem sido objeto de estudo sob várias
perspectivas lingüísticas, inclusive fonéticas, mas até o que chega ao nosso
conhecimento, nenhum trabalho foi realizado ainda sob uma perspectiva prosódica.
Trata-se de uma região historicamente marcada pelo contato lingüístico e pelo
intercâmbio comercial e cultural de um lado e de outro. O Uruguai é o único país da
América Hispânica que se independizou do Brasil, e não da Espanha, o que de
alguma maneira deve estar refletido na sua forma de falar.
A partir das cinco questões acima, propomos uma analise prosódica experimental,
a fim de detectar variantes regionais no que diz respeito à implementação do padrão
interrogativo total, e propor, se possível, um contínuo de variação entre o português
brasileiro e o espanhol uruguaio, tomando como pólos extremos o Rio de Janeiro e
Montevidéu, e, como pólos contíguos, Santana do Livramento e Rivera.
METODOLOGIA
Foram gravados in loco quatro falantes nativos de cada cidade. As informantes,
todas mulheres, ouviram um contexto e responderam lendo enunciados
interrogativos a partir de uma sentença base. A sentença Francisco mora na Europa,
composta tanto por um tonema (Europa) quanto por um pretonema (Francisco)
paroxítono, foi lida por cada informante: a) no contexto interrogativo neutro; b) no
contexto interrogativo com foco no pretonema “Francisco”; e c) no contexto
interrogativo com foco no tonema “Europa”. Cada resposta foi lida três vezes
seguidas, o que resulta num total de 144 enunciados (4 locutoras, 4 cidades, 3
contextos, 3 realizações). Esses enunciados foram analisados a partir dos programas
de análise acústica: Praat (análise da Fo, e da Duração, bem como segmentação
manual de cada enunciado) e Prosogram (transcrição prosódica e estilização do
contorno da Fo). Os dois programas, desenvolvidos por Boersma e Weenink (1993-
2006) e Mertens (2004), respectivamente, têm as vantagens de serem muito conviviais
e de estarem disponíveis gratuitamente na rede. Quando combinados (segmentação +
estilização do contorno da Fo), esses dois programas permitem uma visualização
excelente dos fenômenos acústicos relacionados às interpretações fonológicas que
pretendemos apresentar no que diz respeito à entoação de enunciados interrogativos
totais e à sua variação dialetal ou pragmática.
Os locutores
As 16 informantes nativas nasceram na respectiva cidade em que foram gravadas.
São todas do sexo feminino, com idade entre 18 e 30 anos e nunca moraram fora do
seu local de nascimento. Para ilustrar os resultados principais da nossa análise
escolhemos apenas um enunciado por contexto de 4 informantes consideradas
prototípicas, a fim de demonstrar aqui nossa proposta de notação Métrica Auto-
segmental.
Os enunciados
Os enunciados Francisco mora na Europa? (PB) e ¿Francisco vive en Europa? (EU)
apresentam a mesma estrutura silábica, com o mesmo padrão acentual, paroxítono,
no pretonema “Francisco” e no tonema “Europa”. Este é o padrão acentual mais
freqüente nas duas línguas. Os falantes nativos leram sentenças e produziram
enunciados interrogativos totais a partir da mesma sentença Francisco mora na Europa?
após terem ouvido três diferentes contextos para as sentenças:
a) Neutro, sem foco (Foco 0)
Entrevistador (pergunta): Como você perguntaria pra alguém se o Francisco mora na Europa?
Informante (responde): Francisco mora na Europa? (lendo a ficha, sem sublinhado)
b) Pretonema com foco (Foco 1)
Entrevistador (explica): Alguém diz que o Francisco mora na Europa, mas você não concorda porque você tem certeza que
quem mora na Europa é Pedro, o irmão de Francisco.
Entrevistador (diz): Francisco mora na Europa
Informante (responde): Francisco mora na Europa? (lendo a ficha, com sublinhado)
c) Tonema com foco (Foco 2)
Entrevistador (explica): Alguém diz que o Francisco mora na Europa, mas você não concorda porque você sabe que ele mora
nos Estados Unidos.
Entrevistador (diz): Francisco mora na Europa.
Informante (responde): Francisco mora na Europa? (lendo a ficha, com sublinhado)
Trata-se de uma coleta de dados semidramatizada a partir da qual o enunciado da
ficha é lido três vezes seguidas pelo informante. Em geral a segunda performance de
cada frase foi a considerada melhor e selecionada para esta demonstração. A análise
dos enunciados e a segmentação foram realizadas num primeiro momento no
programa Praat; os enunciados foram segmentados em três bandas: a primeira para as
vogais, a segunda para as sílabas e a terceira para a nossa atribuição de tons. Uma vez
segmentados, os dados foram submetidos ao Prosogram, o resultado é a curva de Fo
estilizada, numa escala de semitons, a partir da qual observamos as diferenças de Fo e
Duração.
A análise da configuração tonal
Para a atribuição dos acentos tonais, na terceira banda do Praat, recorremos ao
sistema de notação Métrico Auto-segmental (AM), baseado na oposição binária de
tons Altos (H) e Baixos (L). A sílaba acentuada é marcada pelo (*) e a sílaba final do
enunciado pelo (%). Considera-se como tonema o último grupo acentual do
enunciado (no nosso caso Europa) e como pretonema tudo o que está antes do
tonema (no nosso caso Francisco mora na...). Adotamos também, tal como propõe Sosa
[1999], a notação (¡) para indicar que (¡H) é mais alto que o tom alto (H), anterior.
A análise da organização temporal
A organização temporal do nosso estudo está centrada na análise da duração das
vogais do pretonema “Francisco” e do tonema “Europa”, em posição pré-tônica,
tônica e pós-tônica final, nas duas variantes dialetais do português e nas duas do
espanhol. As medidas foram feitas a partir da segmentação manual dos enunciados no
Praat, as diferenças de duração que assinalamos na análise podem ser observadas pelo
tamanho das céllas correspondente às vogais e sílabas segmentadas no Prosogram,
embora não estejam especificados os valores absolutos em milisegundos (ms) nessa
segmentação. Os valores absolutos de duração foram objeto de um estudo isolado,
analisados em histogramas e organizados em função das silabas e da sua tonicidade,
tanto no pretonema “Francisco” quanto no tonema “Europa”.
A CONFIGURAÇÃO TONAL EM PERGUNTAS TOTAIS
Espanhol Uruguaio: Montevidéo (M)
O enunciado interrogativo neutro no Espanhol Uruguaio de Montevidéu
caracteriza-se por um pretonema “Francisco” ascendente (L*+H) e um tonema
“Europa” descendente, como se vê na Figura 1. Os enunciados interrogativos sem
foco foram produzidos pelas quatro informantes mulheres com um contorno
melódico final em queda (H*+¡HL%):
Figura 1 – Configuração tonal em perguntas totais (EU – Mulher de
Montevidéu)

O pretonema apresenta um acento tonal ascendente a partir da sílaba pós-tônica


de FrancisCO. A duração vocálica decresce 47% na sílaba tônica FranCISco, com um
tom baixo (L*) e cresce 69% na sílaba pós-tônica final, à qual corresponde o tom alto
(H). A sílaba alta do pretonema, e a mais longa, é a final.
O tonema apresenta um acento bitonal extra alto, mas em queda na sílaba pós-
tônica de EuroPA. A duração vocálica decresce em 42% na sílaba tônica EuROpa,
realizada num tom alto (H*) e cresce num 105% na sílaba pós-tônica final, que inicia
com um acento bitonal extra alto, mas em queda (¡HL). A sílaba mais alta do tonema,
e a mais longa, é a pós-tônica final.
As vogais ou os centros silábicos do tonema “Europa” (121 ms-85ms-174 ms) são
mais longas que as do pretonema “Francisco” (47ms-32ms-54ms) no enunciado
interrogativo. Entretanto, o tom alto do pretonema tem a mesma altura do tom alto
no tonema. No tonema o acento tonal (H*+¡HL%) é também mais complexo do que
no pretonema (L*+H).
Espanhol Uruguaio: Rivera (R)
O enunciado interrogativo neutro no Espanhol Uruguaio de Rivera caracteriza-se
por um pretonema “Francisco” ascendente (L*+H) e um tonema “Europa”
descendente, como se vê na Figura 2. Os enunciados interrogativos sem foco foram
produzidos pelas quatro informantes mulheres com um contorno melódico final em
queda (H*+¡HL%):
Figura 2 – Configuração tonal em perguntas totais (EU – Mulher de Rivera)

O pretonema apresenta um acento tonal ascendente a partir da sílaba pós-tônica


de FrancisCO. A duração vocálica sofre um decréscimo de 4% na sílaba tônica
FranCISco, com um tom baixo (L*) e cresce em 41% na sílaba pós-tônica final, à qual
corresponde o tom alto (H). A sílaba alta do pretonema, e a mais longa, é a pós-
tônica final.
O tonema apresenta um acento bitonal em queda na sílaba pós-tônica de EuroPA.
A duração vocálica decresce em 32% na sílaba tônica EuROpa, realizada num tom
alto (H*) e cresce em 199% na sílaba pós-tônica final, que inicia com um acento
bitonal extra alto, mas em queda (¡HL). A sílaba mais alta do tonema, e a mais longa,
é a pós-tônica final.
As vogais ou os centros silábicos do tonema “Europa” (133 ms-101ms-302 ms)
são mais longas que as do pretonema “Francisco” (53ms-51ms-72ms) no enunciado
interrogativo. Entretanto, o tom alto do pretonema tem a mesma altura do tom alto
no tonema. No tonema o acento tonal (H*+¡HL%) é também mais complexo do que
no pretonema (L*+H).
Português Brasileiro: Santana do Livramento (SL)
O enunciado interrogativo neutro no português brasileiro de Santana do
Livramento caracteriza-se por um pretonema “Francisco” ascendente (L*+H) e um
tonema “Europa” descendente, como se vê na Figura 3. Os enunciados interrogativos
sem foco foram produzidos pelas quatro informantes mulheres com um contorno
melódico final em queda (L*+HL%):
Figura 3 – Configuração tonal em perguntas totais (PB – Mulher de Santana
do Livramento)

O pretonema apresenta um acento tonal ascendente a partir da sílaba pós-tônica


de FrancisCO. A duração vocálica cresce em 21% na sílaba tônica FranCISco, com
um tom baixo (L*) e decresce em 55% na sílaba pós-tônica final, à qual corresponde
o tom alto (H). A sílaba mais longa do pretonema é a tônica, mas a mais alta é a pós-
tônica final do pretonema.
O tonema apresenta um acento bitonal em queda na sílaba pós-tônica de EuroPA.
A duração vocálica cresce em 7% na sílaba tônica EuROpa, realizada num tom alto
(H*) e cresce em 143% na sílaba pós-tônica final, que inicia com um acento bitonal
alto, mas em queda (HL). As sílabas mais altas do tonema são as sílabas átonas, mas a
mais longa é a pós-tônica final.
As vogais ou os centros silábicos do tonema “Europa” (120 ms-129ms-313 ms)
são mais longas que as do pretonema “Francisco” (83ms-105ms-47ms) no enunciado
interrogativo. Entretanto, o tom alto do pretonema é mais alto do que o do tonema.
No tonema o acento tonal (L*+HL%) é mais complexo do que no pretonema
(L*+H).
Português brasileiro: Rio de Janeiro (RJ)
O enunciado interrogativo neutro no português brasileiro do Rio de Janeiro
caracteriza-se por um pretonema “Francisco” descendente (H*+L) e um tonema
“Europa” descendente, como se vê na Figura 4. Os enunciados interrogativos sem
foco foram produzidos pelas quatro informantes mulheres com um contorno
melódico final circunflexo, e, portanto, em queda (L+H*L%):
Figura 4 – Configuração tonal em perguntas totais (PB – Mulher do Rio de
Janeiro)

O pretonema apresenta um acento tonal descendente a partir da sílaba pós-tônica


de FrancisCO. A duração vocálica decresce em 16% na sílaba tônica FranCISco, com
um tom interpretado como alto (H*) e decresce em 29% na sílaba pós-tônica final, à
qual corresponde um tom mais baixo (L). A sílaba mais longa do pretonema é a pré-
tônica, mas a mais alta é a tônica.2
O tonema apresenta um acento bitonal circunflexo em queda na sílaba pós-tônica
de EuroPA, tal como descreve Moraes (2002, 2006). A duração vocálica cresce em
28% na sílaba tônica EuROpa, realizada num tom alto (H*) e cresce em 23% na
sílaba pós-tônica final, que inicia com um acento tonal alto, mas em queda (HL). A
sílaba mais longa do tonema é a pós-tônica final, mas a mais alta é a tônica.
As vogais ou os centros silábicos do tonema “Europa” (110 ms-153ms-188 ms)
são mais longas que as do pretonema “Francisco” (44ms-38ms-27ms) no enunciado
interrogativo. O tom alto do tonema é mais alto que o do pretonema. No tonema o
acento tonal (L+H*L%) é também mais complexo do que no pretonema (H*+L).
CONCLUSÃO PARCIAL: ENUNCIADOS INTERROGATIVOS TOTAIS E
VARIAÇÃO DIALETAL
Os resultados obtidos nesta primeira parte do estudo merecem uma discussão
parcial, comparativa. Os padrões tonais de Montevidéu e Rivera, no que diz respeito
às duas variantes do espanhol uruguaio coincidem entre si. Entretanto, nas variantes
do português brasileiro, Santana do Livramento e Rio de Janeiro apresentam
importantes divergências, como se vê no Quadro 1:
Quadro 1 – Configuração tonal em perguntas totais
Cidade Pretonema Tonema
M (EU) Subida (L*+H) Queda (H*+¡HL%)
R (EU) Subida (L*+H) Queda (H*+¡HL%)
SL (PB) Subida (L*+H) Queda (L*+HL%)
RJ (PB) Queda (H*+L) Queda (L+H*L%)

Vejamos, primeiro, o que acontece no pretonema “Francisco”:


1) No espanhol uruguaio, em Montevidéu e Rivera, o padrão é ascendente a partir
da pós-tônica. Nas duas variantes do espanhol uruguaio, esse primeiro (H), na pós-
tônica do pretonema, chega a ser tão alto quanto o último (H) do tonema, também na
pós-tônica.
2) No português brasileiro, o padrão é ascendente a partir da pós-tônica em
Santana do Livramento, tal e qual no espanhol uruguaio, mas é descendente no Rio
de Janeiro. Em Santana do Livramento o primeiro tom alto (H), o da pós-tônica no
pretonema, é o mais alto do enunciado, enquanto no Rio de Janeiro será o segundo
tom alto (H*), o da tônica no tonema, o mais alto do enunciado.
Essa importância da pós-tônica no pretonema, identifica a realização de Santana
do Livramento com as de Montevidéu e Rivera, do ponto de vista da configuração
tonal. Entretanto, no que diz respeito à organização temporal do enunciado, essa
identificação se reduz. Quanto à duração vocálica, no EU de M e R predomina o
alongamento da pós-tônica final no pretonema, enquanto, no PB do RJ e SL,
predomina a redução vocálica da pós-tônica em detrimento da tônica, como se vê no
Gráfico 1:
Gráfico 1 – Organização temporal em perguntas totais (Foco 0)
Pretonema (FRANCISCO)

Vejamos a seguir o que acontece no tonema “Europa”:


1) No espanhol uruguaio o padrão entonacional apresenta um tonema em queda a
partir da pós-tônica final, ao contrário do que descreve Sosa [1999] para o espanhol
de Buenos Aires (H*H%). Assim, nos enunciados interrogativos totais, tanto a
variante de Montevidéu quanto a de Buenos Aires terminariam numa subida na pós-
tônica final em ¿Le dieron la hora del vuelo? – se considerarmos a frase experimental de
Sosa [1999]. Entretanto, na fala de Buenos Aires, “del+vue+lo” termina numa subida
contínua enquanto na fala de Montevidéu a subida chegaria ao ápice na pós-tônica,
mas, depois, cairia, formando assim um padrão circunflexo (baixo-alto-alto-baixo):3

Buenos Aires Montevidéu


del+vue+lo del+vue+lo
(L + H*H%) (L + H*+¡HL%)

2) No português brasileiro o padrão entonacional apresenta um tonema


circunflexo e, portanto, em queda, tal como descreve Moraes [2002, 2006].
Entretanto, o padrão circunflexo na fala carioca se implementa a partir da tônica alta, a
mais alta de todo o enunciado interrogativo.4 Já na fala do dialeto de fronteira o
padrão circunflexo chega a seu ápice não na sílaba tônica, que é baixa, mas na pós-
tônica final.
Portanto, no que diz respeito à configuração tonal a pós-tônica final é chave para
todas as variantes menos para a do Rio de Janeiro, cujo movimento tonal está
centrado a partir da sílaba tônica. Entretanto, no que diz respeito à organização
temporal, tanto nas duas variantes do português quanto nas duas variantes do
espanhol, a pós-tônica final é a sílaba pivô dos enunciados interrogativos totais, como
se vê no Gráfico 2:
Gráfico 2 – Organização temporal em perguntas totais (Foco 0)
Tonema (EUROPA)
Nas duas variantes do espanhol, a duração da tônica é a mais breve das três
sílabas, o que acentua a proeminência da pós-tônica final. Nas duas variantes em
português a tônica não chega a ter a depressão de duração que registramos em
espanhol; entretanto, a diferença entre tônica e pós-tônica final é acentuada na
variante da fronteira, o que identifica a realização de SL às de R e M. É na realização
do RJ que observamos a menor diferença de duração entre a tônica e a pós-tônica
final. O que confirma a importância de duração e de movimento tonal da pós-tônica
final no dialeto português de fronteira, marcando um contínuo com o que acontece
além da fronteira geográfica e lingüística, nas variantes de R e M, em espanhol.
FOCO NO PRETONEMA
O que acontece com o padrão entonacional do pretonema e com sua organização
temporal quando este está sob foco?
No espanhol uruguaio observamos duas estratégias diferentes. Na fala de
Montevidéu o foco altera a configuração tonal do pretonema e a Fo da sílaba tônica
que sobe e passa a ser a mais alta do enunciado. Na fala de Rivera, o foco não altera a
configuração tonal, mas a subida da pós-tônica no pretonema passa a ser a mais alta do
enunciado:
Figura 5 – Configuração tonal em perguntas totais (espanhol uruguaio)
Foco no Pretonema “FRANCISCO”
5a – Mulher de Montevidéu                                   5b – Mulher de Rivera

No português brasileiro também observamos duas estratégias diferentes. Na fala


de Santana do Livramento, o foco altera a configuração tonal do pretonema e a Fo
ascendente da sílaba tônica passa a ser a mais alta do enunciado. Na fala do Rio de
Janeiro, o foco não altera a configuração tonal, mas a subida da pré-tônica e da tônica no
pretonema faz com que elas sejam as mais altas do enunciado em detrimento da
tônica no tonema, que continua alta, mas já não é mais a parte mais alta do
enunciado:
Figura 6 – Configuração tonal em perguntas totais (Português Brasileiro)
Foco no Pretonema “FRANCISCO”

6a – Mulher de Santana do Livramento                                   6b – Mulher do Rio de Janeiro

No português brasileiro há um movimento tonal ascendente importante na tônica


na fala de Santana do Livramento e na pré-tônica e tônica na fala do Rio de Janeiro. São
dois tons dinâmicos em oposição à subida da tônica na fala de Montevidéu e da pós-
tônica na fala de Rivera, para o espanhol uruguaio. O foco no pretonema “Francisco”
altera, portanto, a configuração tonal de Montevidéu, no EU, e a de Santana do
Livramento, no PB, mas não a configuração tonal de Rivera, no EU, nem a do Rio de
Janeiro, no PB. É o que se vê no Quadro 2:
Quadro 2 – Configuração tonal em perguntas totais:
Foco no Pretonema (FRANCISCO)
Cidade Neutro Foco 1
M (EU) Subida (L*+H) Queda (H*+L)
R (EU) Subida (L*+H) Subida (L*+H)
SL (PB) Subida (L*+H) Queda (H*+L)
RJ (PB) Queda (H*+L) Queda (H*+L)

No que diz respeito à organização temporal, o foco altera sensivelmente a escala


de duração das quatro subvariedades estudadas no pretonema, mas não altera em
nada os resultados anteriores no que se refere ao tonema, como se observa no
Gráfico 3:
Gráfico 3 – Organização temporal em perguntas totais (Foco 1)
Foco no Pretonema (FRANCISCO)

3a. Duração vocálica do Pretonema                                   3b. Duração vocálica do Tonema

Quanto à duração, o Gráfico 3a é bastante diferente do Gráfico 1, enquanto o


Gráfico 3b é praticamente idêntico ao Gráfico 2. Com foco no pretonema, no
Gráfico 3a, a variante de Montevidéu é a única que mantém o alongamento da pós-
tônica, nas variantes do Rio de Janeiro, Santana do Livramento, e, do lado uruguaio, na
variante de Rivera, cresce a importância em duração da sílaba pré-tônica e tônica, em
detrimento da pós-tônica.
FOCO NO TONEMA
Vejamos agora o que acontece com o padrão entonacional do tonema e com sua
organização temporal quando este está sob foco.
No espanhol uruguaio observamos duas estratégias diferentes. Na fala de
Montevidéu o foco não altera a configuração tonal neutra do tonema já descrita
(Figura 1). A F0 da sílaba tônica e A F0 da pós-tônica continuam sendo as mais
relevantes, entretanto o pico do tonema sob foco, que antes era igual ao do
pretonema, passa a ser ligeiramente mais baixo. Na fala de Rivera, o foco altera a
configuração tonal neutra do tonema (Figura 2). A tônica baixa acentua a
proeminência da pós-tônica no tonema sob foco, mas o pico de F0 é mais baixo do que
no pretonema:
Figura 7 – Configuração tonal em perguntas totais (espanhol uruguaio):
Foco no Tonema “EUROPA”

7a – Mulher de Montevidéu                                   7b – Mulher de Rivera

No português brasileiro também observamos duas estratégias diferentes. Na fala


de Santana do Livramento o foco no tonema não altera a configuração tonal já
descrita (Figura 3). A sílaba tônica baixa acentua a proeminência da pós-tônica; mesmo
estando o tonema sob foco, a pós-tônica do pretonema continua sendo a mais alta do
enunciado. Na fala do Rio de Janeiro, o foco altera a configuração tonal neutra do
tonema e o movimento mais importante é o da tônica seguido de uma pós-tônica em
queda; o circunflexo não se desfaz mas a sílaba pré-tônica tem um ataque alto:
Figura 8 – Configuração tonal em perguntas totais (português brasileiro):
Foco no Tonema “EUROPA”

8a – Mulher de Santana do Livramento                                   8b – Mulher de Rio de Janeiro

O foco no tonema “Europa” altera, portanto, a configuração tonal neutra de


Rivera, no EU, e a do Rio de Janeiro, no PB, mas não a configuração tonal de
Montevidéu, no EU, nem a de Santana do Livramento, no PB. É o que se pode
observar no Quadro 3:
Quadro 3 – Configuração tonal em perguntas totais:
foco no Tonema (EUROPA)
Cidade Neutro Foco 2
M (EU) Queda (H*+¡HL%) Queda (H*+¡HL%)
R (EU) Queda (H*+¡HL%) Queda (L*+HL%)
SL (PB) Queda (L*+HL%) Queda (L*+HL%)
RJ (PB) Queda (L+H*L%) Queda (H*+HL%)

No português brasileiro há um movimento tonal ascendente importante na pós-


tônica na fala de Santana do Livramento (EuroPA) e na tônica e pós-tônica na fala do
Rio de Janeiro (EUROpa). No espanhol uruguaio há um movimento tonal ascendente
importante na pós-tônica na fala de Rivera (EuroPA) e na tônica e pós-tônica na fala de
Montevidéu (EUROpa).
Nos pólos extremos, as variantes do Rio de Janeiro e de Montevidéu diferenciam-
se no foco do tonema pelo fato de que a subida da pós-tônica na fala de Montevidéu é
mais alta que a da tônica, enquanto na fala do Rio de Janeiro o pico de Fo está na
tônica, embora se mantenha ainda alto na pós-tônica. Nos pólos contíguos, as variantes
de Rivera e de Santana do Livramento têm exatamente o mesmo padrão tonal nas
realizações de enunciados interrogativos totais com o tonema sob foco. Coincidem
entre si e não com as variantes de Montevidéu ou do Rio de Janeiro.
No que diz respeito à organização temporal, o foco altera sensivelmente a escala
de duração das quatro subvariedades estudadas, com diferentes combinações no
tonema e no pretonema, como se vê no Gráfico 4:
Gráfico 4 – Organização temporal em perguntas totais (Foco 2):
foco no Pretonema (FRANCISCO)

4a. Duração vocálica do Pretonema                                   4b. Duração vocálica do Tonema

No Pretonema das duas variantes do PB, mantém-se a importância da sílaba


tônica sobre a pós-tônica em termos de duração. No EU, em Montevidéu a pós-
tônica é a sílaba mais longa. Entretanto, na fala de Rivera cresce a importância da
tônica, tal e qual nas duas variantes do PB.
No Tonema, sob foco, mantém-se a importância de duração da pós-tônica final
nas quatro variantes para marcar o final do enunciado interrogativo total. Entretanto,
há diferenças importantes no que diz respeito ao estatuto da sílaba tônica.
Considerando os dois pólos extremos, no Rio de Janeiro, a tônica é a segunda em
importância enquanto, em Montevidéu, a duração da tônica se reduz, o que amplia a
proeminência da pós-tônica.
Considerando os dois pólos contíguos vemos claramente a transição entre um
sistema e outro. No PB, o dialeto de fronteira mantém a duração da tônica em
segundo lugar, como no RJ, mas o alongamento da pós-tônica aproxima esta variante
das realizações do EU. E no EU, o dialeto de fronteira aumenta a duração da tônica,
aproximando-se assim das realizações do PB.
Portanto, no que se refere às duas variantes de fronteira, no lado uruguaio, há um
aumento de importância da tônica no EU, enquanto, no lado brasileiro há um aumento
de importância da pós-tônica no PB, o que aproximaria essas duas variantes entre si e as
diferenciaria dos pólos extremos, Montevidéu e Rio de Janeiro.
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SOSA, Juan Manuel. La entonación del español: su estructura fónica, variabilidad y
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______. La notación tonal del español en el modelo Sp-Tobi. In: PRIETO, P. (Ed.).
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ZUBIZARRETA, Maria Luiza. Prosody, focus and word order. Cambridge: The MIT
Press, 1988.

Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer ao Professor Doutor João A. de Moraes pelo incentivo constante à pesquisa, pelos
comentários sempre bem humorados, pelas sugestões de leitura, pela paciência, pela compreensão e, sobretudo,
pela sua luz na interpretação dos resultados apresentados neste estudo. Sem ele esta pesquisa nunca teria existido.
A Cirineu Cecote Stein, nosso agradecimento tanto pelas horas que dedicou a montar a parte ilustrativa deste
artigo, quanto por seus comentários, críticas e sugestões. Ao professor Doutor Juan Manuel Sosa, agradecemos
sua generosidade. Como Professor Visitante da UFRJ, em 2004 e em 2005, ele soube levar-nos sempre além
pelos caminhos da entoação, graças à sua brilhante tese, mas também a seu sorriso caraquenho e à sua amizade.
Nosso grande obrigado também à Professora Doutora Anne Catherine Simon, que tão amavelmente nos
acolheu junto a sua equipe no Projeto Valibel da Universidade Católica de Louvain, e, claro, ao Projeto Europeu
de Bolsas Coimbra, organismo que financiou nosso estágio de pesquisa nessa excelente e cordial instituição belga
de janeiro a março em 2007. Fruto desse estágio em Valibel e das discussões com os membros de sua equipe é a
escrita deste trabalho. Gostaríamos de agradecer ainda às professoras da Universidad de la República, Virginia
Bertolotti e Doutora Magdalena Coll, que tão amigavelmente nos orientaram na pesquisa de campo em 2006 e
na bibliografia referente aos estudos desta região de fronteira. Esperamos que este seja o primeiro de muitos
estudos em cooperação com elas.

NOTAS
Interpretamos o acento tonal do pretonema como H*+L, ao contrário do que propõe Moraes (2002, 2006) para o
enunciado interrogativo de fala carioca L*+L. Optamos por esta notação considerando o conjunto das realizações
das quatro informantes cariocas – sobem na tônica e descem na pós-tônica no pretonema dos enunciados
interrogativos com ou sem foco – em oposição às realizações das informantes de Santana do Livramento. Nossa
interpretação coincide com a de Moraes (2002, 2006), no sentido de marcar a queda final no pretonema, mas
difere com relação à interpretação do tom baixo inicial no enunciado interrogativo, considerado, no nosso caso,
alto por levar em conta essa ligeira subida na tônica que se acentua quando o pretonema está sob foco, como se vê
na Figura 8b.
Este padrão circunflexo nos enunciados interrogativos totais do EU lembra mais o padrão circunflexo do PB do
que o padrão descendente caribenho, e marca uma diferença dialetal importante com Buenos Aires.
Talvez por esta razão Moraes (2002, 2006) tenha considerado a sílaba acentuada do pretonema como (L*), pois o
ponto culminante de Fo nos enunciados interrogativos de fala carioca estaria na tônica do tonema, o que não
ocorre nem na variante de Santana do Livramento, cujo ponto culminante está na pós-tônica do pretonema, nem
nas duas variantes do espanhol uruguaio, cujo ponto culminante de Fo está localizada em dois pontos do
enunciado, tanto na pós-tônica do pretonema, quanto na pós-tônica do tonema.
O bilingüismo pomerano-português na região de
Pelotas

Paulino Vandresen – UCPel


INTRODUÇÃO
Neste capítulo apresentamos uma descrição do bilingüismo pomerano-
português em duas comunidades de colonização alemã, na região de Pelotas. O
objetivo dessa descrição é discutir o processo de manutenção e/ou
deslocamento das funções das línguas em contato nessas comunidades: o
pomerano, dialeto alemão dos imigrantes, e o português.
Além disso, pretendemos identificar os fatores sociais que estão
favorecendo o deslocamento de funções ou mesmo a substituição do dialeto
pomerano pela língua majoritária, o português. Neste sentido, serão também
analisadas as atitudes dos informantes em relação às línguas em contato,
detectando suas preferências de uso, competência comunicativa e perspectivas
sobre a manutenção do dialeto pomerano, nas duas comunidades.
Dentre estes fatores, pretendemos também analisar a influência do
isolamento geográfico, fazendo uma comparação de resultados entre duas
comunidades: uma rural e outra urbana. Arroio do Padre, apesar de ser sede de
município, tem características rurais, com 90% de sua população dedicada a
atividades agrícolas, em regime de pequena propriedade rural. Está no centro
de uma ilha lingüística, em que as redes de comunicação podem operar em
pomerano ou português. Três Vendas, por outro lado, é um bairro de Pelotas,
uma das maiores cidades do Rio Grande do Sul. Originalmente, era área
agrícola de colonização pomerana mas foi incorporada à área urbana pela
expansão de Pelotas. As redes de comunicação nas famílias podem ser em
pomerano e português, mas fora do lar a maioria das interações se dá com
falantes monolíngües de português.
O início da colonização alemã nessa região ocorreu em 1858, a partir de
São Lourenço do Sul. Feita predominantemente por emigrantes pomeranos,
foi resultado de um empreendimento idealizado e coordenado por Jacob
Rheingantz, em área comprada do então governo imperial na Serra dos Tapes.
O compromisso do colonizador com o governo imperial era introduzir no
mínimo 1.400 imigrantes europeus na região adquirida, então parte do
município de Pelotas. No final do século XIX, com a chegada de novos
colonos e a procura de terras pelos filhos das primeiras levas de imigrantes, a
colônia pomerana foi-se estendendo para Arroio do Padre (1887), Morro
Redondo (1892), e Três Vendas (KOLLING, 2000, p. 12).
A população de Três Vendas é predominantemente pomerana, formada
por descendentes dos primeiros imigrantes e por famílias procedentes das
comunidades pomeranas do interior de Pelotas e municípios vizinhos. Por ser
evangélico-luterano, o grupo pomerano de Três Vendas se mantém
diferenciado dos demais moradores na organização religiosa e educacional.
Nesses contextos e no lar, o pomerano ou o alemão padrão podem ser usados
na comunicação. Nos demais contextos comunitários, existem maiores chances
de contato com monolíngües de língua portuguesa.
Arroio do Padre é um dos mais novos municípios do Rio Grande do Sul,
originário do 10º Distrito do município de Pelotas. Conta com uma população
de 2.563 habitantes, em sua grande maioria agricultores, distribuídos em 588
pequenas propriedades, a maioria (87,38%) com menos de 25ha. O município
está dividido em pequenas comunidades, servidas por igreja, escola e pequeno
comércio. Mesmo a sede do município não apresenta um grande
conglomerado de casas, podendo-se afirmar que toda a região do município
tem um predomínio de características rurais.
Com forte tradição escolar, os imigrantes pomeranos criaram escolas
étnicas, que ensinavam em alemão padrão até a época da Segunda Guerra
Mundial. Criou-se aí uma situação de diglossia no sentido clássico de Ferguson
(1959), em que o alemão padrão era usado nas situações formais (no culto e na
escola), e o dialeto pomerano no lar e nas situações informais.
Até 1937, início da Campanha de Nacionalização do Ensino no Governo
de Getúlio Vargas, as comunidades pomeranas se mantiveram relativamente
isoladas geograficamente, com poucos contatos com falantes do português.
Esta situação fez com que muitas delas (como Arroio do Padre)
permanecessem monolíngües por razões culturais e religiosas. Os imigrantes
pomeranos eram majoritariamente protestantes. Esta situação os isolava das
comunidades luso-falantes católicas, dificultando contatos lingüísticos e
casamentos interétnicos.
A partir da segunda metade do século XX, com o fechamento das escolas
étnicas, o domínio do alemão padrão vai desaparecendo e, devido à escola em
língua portuguesa, o português assume o papel de língua escolhida para as
situações formais, continuando o pomerano como a língua do registro
informal, especialmente como língua do lar. Em entrevistas com professores
em escolas do município de Arroio do Padre confirmou-se que o pomerano é,
efetivamente, a língua usada no contexto familiar, de tal forma que ainda
existem crianças que iniciam a escolarização sem falar o português. Por outro
lado, o português falado pelos alunos das séries iniciais tem forte interferência
da língua materna, especialmente na distinção entre consoantes surdas e
sonoras, vibrante simples e múltipla, e as vogais e ditongos nasais.
METODOLOGIA
Neste estudo do bilingüismo pomerano/português não adotamos a
definição clássica de Bloomfield (1933, p. 56): “Nativelike control of two
languages” (controle como falante nativo de duas línguas) por ser muito
excludente. Sabemos hoje que o domínio que muitos falantes têm de duas ou
mais línguas pode variar quanto às habilidades (entender, falar, ler e escrever),
bem como quanto ao uso e competência lingüística ao longo da vida, criando,
assim, o conceito de bilingualidade, variação da competência lingüística ao
longo da vida do indivíduo (HEYE, 2003, p. 37).
Embora a grande maioria de nossos informantes falem e entendam
pomerano e português, nas entrevistas apareceram descrições de interação
entre pais e filhos ou avós e netos em que os mais velhos falam o pomerano e
os mais jovens respondem em português, mostrando que nas comunidades
estudadas há descendentes de pomeranos que afirmam entender mas que não
falam o dialeto materno. Mesmo a alternância de código, em muitos casos, é
explicada por maior competência lexical sobre o tópico em uma das línguas
em contato. Por esse motivo consideramos bilíngüe também o indivíduo que
tenha conhecimento passivo de uma das línguas em contato e possa, dessa
forma, interagir com outros bilíngües em situações reais de comunicação.
Com o intuito de alcançar os objetivos propostos para a descrição das
funções das línguas em contato nas duas comunidades e as atitudes lingüísticas
dos falantes, entrevistamos uma amostra de 150 informantes em Arroio do
Padre (abrangendo várias comunidades escolares do município) e outra de 60
informantes em Três Vendas. Ambas as amostras foram estratificadas em
grupos etários de até 24 anos, de 25 a 50 e mais de 51 anos. Em cada grupo
etário, foi entrevistado igual número de representantes para o sexo masculino e
feminino.
Na aplicação dos questionários participaram quatro bolsistas de iniciação
científica da UCPel, sendo três bilíngües (dois deles com bom desempenho em
pomerano). O fato de alguns pesquisadores falarem o pomerano e serem
reconhecidos como membros da comunidade lingüística e religiosa facilitou o
acesso aos informantes e a obtenção dos dados para este trabalho. Além disso,
entrevistamos professoras de séries iniciais, autoridades educacionais e
religiosas e grupos familiares para avaliar a escolha das línguas nas redes de
comunicação.
O BILINGÜISMO (MULTILINGÜISMO) EM ARROIO DO PADRE E
TRÊS VENDAS
Um dos aspectos pesquisados nas duas comunidades foi o conhecimento e
uso de línguas assumidos pelos informantes. Verificou-se que todos os 210
informantes falam o português e que tiveram esta língua como meio e objeto
de instrução na escola. O pomerano é falado e entendido por todos os
informantes de Arroio do Padre, mas em Três Vendas, na faixa etária mais
jovem, oito informantes declararam não falar o pomerano. Mas quatro deles
declararam que entendem esta língua e que ocorrem diálogos em que
pais/avós usam o pomerano e eles respondem em português. No questionário
incluímos perguntas sobre o conhecimento do alemão padrão tendo em vista o
histórico de seu ensino nas escolas da região e seu eventual uso no culto e
leitura da bíblia. Com referência ao alemão padrão, dos 210 informantes, 79
declararam entender e 43 declararam também falar esta língua aprendida no
contexto religioso evangélico-luterano. Estes falantes se concentram na faixa
etária de mais de 51 anos.
A manutenção do dialeto pomerano nas duas comunidades está ligada,
particularmente, ao seu uso com os pais no ambiente familiar. Em Arroio do
Padre (que caracterizamos como área isolada e rural) o pomerano é a língua
mais usada nas relações familiares. Como podemos constatar na Tabela 1,
93,3% dos 150 informantes usam “quase sempre” o pomerano nas relações
comunicativas com os pais. Somente na faixa etária mais jovem há alternância
de uso entre pomerano e português. Já em Três Vendas (caracterizada como
área urbana e em contato intenso com o português), 40% do grupo jovem
declara que “nunca” usa o pomerano com os pais e, conseqüentemente, nesses
casos, o pomerano está sendo substituído pelo português. Nas faixas etárias
seguintes, entretanto, não há deslocamento do pomerano mantendo-se o seu
uso como “quase sempre” em 75% dos informantes de 25 a 50 anos e em
95% dos informantes com mais de 51 anos.
Tabela 1 – Uso do pomerano no lar
FAIXA ETÁRIA E REGIÃO
TOTAL
Até 24 anos 25 a 50 anos Mais de 50 anos
USO DO
POMERANO COM ARROIO
FAMILIARES ARROIO TRÊS ARROIO TRÊS ARROIO TRÊS TRÊS
DO
DO PADRE VENDAS DO PADRE VENDAS DO PADRE VENDAS VENDAS
PADRE
(%) (%) (%) (%) (%) (%) (%)
(%)
Quase
84 20 98 75 96 95 93,3 63,3
sempre
COM OS
Às
PAIS 16 40 2 25 4 5 6,7 23,3
vezes
Nunca 0 40 0 0 0 0 0 13,3
Quase
72 10 86 75 96 80 84,7 55
sempre
COM
IRMÃOS Às
28 35 20 25 4 15 15,3 25
PARENTES vezes
Nunca 0 55 0 0 0 5 0 20
Quase
- - 88 10 98 55 93 32,5
sempre
COM
Às
ESPOSO(A) - - 12 55 2 30 7 42,5
vezes
Nunca - - 0 35 0 15 0 25
Quase
- - 80 10 90 50 85 30
sempre
COM OS(AS)
Às
FILHOS(AS) - - 20 30 10 35 15 32,5
vezes
Nunca - - 0 60 0 15 0 37,5

Analisando os outros dados da Tabela 1(esposo(a) e filhos(as)), verifica-se


que em Arroio do Padre, o uso do pomerano não está excluído em nenhuma
situação e aparece com percentuais elevados de 93% com esposo(a) e 85%
com filhos(as). Mas, em Três Vendas, o uso preferencial do pomerano cai para
32,5% e para 30%, respectivamente.
É preciso observar que os informantes de até 24 anos foram selecionados
em grupos de jovens (solteiros), não havendo, por isso, informações sobre
interação com esposos(as) e filhos(as), nesse grupo.
No Gráfico 1 retomamos a análise da manutenção/deslocamento das
funções das línguas em contato nas interações comunicativas no lar (com pais,
irmãos e parentes) levando em conta os fatores: faixa etária e isolamento
geogáfico (rural/urbano):
Gráfico 1 – Uso do pomerano no lar (pais, irmãos e parentes)

Observando os dados, vemos que tanto em Arroio do Padre (96%) quanto


em Três Vendas (87,5%), os informantes com mais de 51 anos usam quase
sempre o pomerano nas interações no lar. A diferença entre o rural e o urbano
é pequena porque, há 40 anos, Três Vendas ainda tinha características rurais.
Esta geração teve sua escolaridade desenvolvida somente em português
durante a Segunda Guerra ou na década seguinte. Mas seus pais haviam sido
educados em escolas alemãs de boa qualidade, nas quais se pregava a ideologia
da “germanidade ou Deutschtum” altamente favorável à manutenção do
alemão, idéia também compartilhada no campo religioso pelos pastores
luteranos daquela época (KOLLING, 2000, p. 113-119).
Os informantes da faixa etária de 25 a 50 anos apresentam um pequeno
aumento percentual no uso do português, mas em nenhuma família o
pomerano está excluído da função de língua do lar.
Na interpretação do alto índice de uso do pomerano nessas duas faixas
etárias temos de levar em consideração que as respostas dadas às pergundas do
questionário – principalmente sobre a língua falada com os pais – retrata a
situação vivida na casa paterna. É, portanto, um dado diacrônico de 10 a 50
anos atrás.
Na faixa etária mais jovem temos a maior diferença eventualmente causada
pelo fator do isolamento geográfico e oposição urbano/rural. Enquanto em
Arroio do Padre 78% dos informantes usam quase sempre o pomerano, em
Três Vendas apenas 15% o fazem e 47,5% nunca usam o pomerano com pais,
irmãos e parentes. Nota-se, portanto, que mais da metade dos informantes da
geração mais jovem de Três Vendas usam o português como língua dominante
no lar, apontando para um deslocamento do pomerano nesse contexto de
interação.
USO DO POMERANO NA COMUNIDADE
Neste contexto o uso do pomerano ou do português mostra uma diferença
ainda mais acentuada entre as duas comunidades estudadas. A razão dessa
maior diferença é que a interação ocorre em rede aberta. Como Três Vendas
não é uma comunidade lingüisticamente homogênea, contando com muitos
monolíngües em língua portuguesa, o uso do pomerano se torna mais restrito.
Arroio do Padre apresenta uma população mais homogênea em que
praticamente todos são bilíngües.
Observando os dados do Gráfico 2 vemos que o pomerano é quase
sempre usado por 74% dos informantes acima de 51 anos, nas interações fora
do lar.
Nessa faixa etária, em Três Vendas, o uso preferencial do pomerano reduz-
se a 7,5%, ao passo que 92,5% dos informantes declararam que somente às
vezes usam o pomerano, havendo, portanto, um uso mais freqüente do
português.
Gráfico 2 – Uso do pomerano na comunidade (amigos, vizinhos,
comércio etc.)
Na faixa etária de 25 a 50 anos, em Arroio do Padre, a situação é bastante
semelhante aos mais idosos, com pequena queda percentual no uso do
pomerano. Em Três Vendas, o deslocamento das funções interacionais do
pomerano é mais acentuado.
No grupo mais jovem (até 24 anos), mesmo em Arroio do Padre há uma
clara diminuição no uso do pomerano: 8% declaram nunca usar o pomerano
nesse contexto e 44% só o usam às vezes. Isto significa que mais de 50% dos
jovens se comunica habitualmente em Português. Na área urbana, 70% dos
informantes jovens nunca usam o pomerano nesses contextos. Como os
demais 30% só o usam “às vezes”, verifica-se que o português é a língua
dominante nas interações comunitárias desse grupo.
FUNÇÕES INTERNAS
Fazer contas, rezar, sonhar, xingar... são classificadas por Mackey (2000 p.
36) como funções internas, pelas quais também competem as línguas em
contato, numa situação de bilingüismo. Conforme mostra o Gráfico 3, em
Arroio do Padre o uso do pomerano é dominante apenas na faixa etária acima
dos 51 anos. Nas subseqüentes, seu uso diminui gradualmente, sendo que 50%
dos jovens nunca usam o pomerano nessas funções. Em Três Vendas, a
maioria dos informantes mais velhos admite usar só “às vezes” a sua língua
materna nessas funções e cerca de 100% dos mais jovens nunca usam o
pomerano para tais funções. Xingar foi a função para a qual o pomerano teve
mais indicações e “fazer contas” teve o menor índice, possivelmente por causa
da escolarização em português.
Gráfico 3 – Funções internas no uso do pomerano (rezar, cantar, sonhar,
fazer contas, xingar etc.)

ATITUDE LINGÜÍSTICA
Os dados apurados nos questionários, assim como as entrevistas livres,
mostraram uma atitude favorável ao uso e à manutenção do pomerano nas
duas comunidades. Verificou-se a existência de regras tácitas para uso do
pomerano no lar, com pessoas mais velhas e, em Arroio do Padre, mesmo
com crianças em idade pré-escolar, “pois, elas precisam aprender o pomerano
em casa”. Mas encontramos também algumas manifestações contrárias,
principalmente em Três Vendas, sob a alegação de que o uso do pomerano no
lar prejudicaria a aprendizagem do português na escola ou de que era “um
dialeto que nem os alemães entendem”. Mas os resultados dos questionários
mostram que em Arroio do Padre 81% dos informantes insistem ou insistirão
no uso do pomerano. Compreensivamente, este percentual é de somente 45%
em Três Vendas como mostra o Gráfico 4.
Gráfico 4 – Insiste no uso do pomerano em casa (atitude lingüística)
A expectativa sobre as chances de o pomerano continuar a ser falado
também divide as duas comunidades. Em Arroio do Padre, a grande maioria
dos informantes (93,3%) acredita que o pomerano continuará a ser falado na
comunidade. Já em Três Vendas, apenas 41,7% dos informantes acreditam
nessa possibilidade, conforme mostra o Gráfico 5:
Gráfico 5 – O pomerano continuará a ser falado na comunidade?

Como já informamos anteriormente, procuramos verificar quais as línguas


faladas por cada informante e a preferência de seu uso na fala. Pode-se inferir
que a língua preferida é aquela em que o informante se auto-atribui maior
competência lingüística. Os resultados mostrados no Gráfico 6 mostram
preferência pelo alemão em um pequeno percentual de informantes (6%).
Conforme informações colhidas junto a lideranças religiosas esta competência
em alemão padrão pode ter sido adquirida com pais que freqüentaram escola
alemã ou a escola dominical evangélico-luterana. Quanto aos dados sobre o
pomerano e o português verificou-se, novamente, uma clara divergência na
atitude lingüística entre as comunidades estudadas: em Arroio do Padre há
preferência clara pelo pomerano (81,4%) e em Três Vendas uma maioria de
63,4% prefere falar o português. É interessante observar que os 12% que
preferem falar português em Arroio do Padre pertencem à faixa etária mais
jovem.
Gráfico 6 – Preferência de uso na fala (atitude lingüística)
O PAPEL DOS FATORES SOCIAIS E DAS REDES DE
COMUNICAÇÃO
Observando os dados apresentados anteriormente, verifica-se que há uma
significativa diferença na função das línguas em contato entre as duas
comunidades estudadas. Em Arroio do Padre o uso do pomerano no lar e na
comunidade é predominante e há uma atitude lingüística favorável à sua
manutenção. Esta atitude ou lealdade lingüística ao pomerano tem garantido
sua manutenção, graças à localização da comunidade dentro de uma ilha
lingüística pomerana, em que praticamente todas as pessoas são bilíngües e,
por exercerem atividades agrícolas, suas redes de comunicação são fechadas e
densas, favorecendo a resistência a forças inovadoras, como a troca pelo
português. Como vimos nos dados, mesmo na faixa de 25 aos 50 anos
prevalece o uso do dialeto pomerano no lar, apesar de esta geração e a mais
velha (mais de 51 anos) terem freqüentado escolas em língua portuguesa.
A comunidade pomerana de Três Vendas apresenta ainda um padrão
elevado de preservação do pomerano na geração com mais de 51 anos. Temos
de considerar, entretanto, que as informações sobre suas redes de
comunicação no lar, com os pais, tem um aspecto diacrônico. Refletem o uso
lingüístico de quando estavam na casa de seus pais. Por outro lado, as
interações com esposo(a) e filhos(as) têm também significado sincrônico. Por
estarem em área urbana, as redes de comunicação são abertas, favorecendo o
uso do português e criando pressões para aumentar a competência
comunicativa nessa língua.
Dessa forma, a oposição rural/urbano explica, em parte, as diferenças nos
padrões de escolha das línguas, devido aos interlocutores. Para melhor
determinar os padrões de escolha entre o pomerano e o português nas duas
comunidades definimos 12 tipos de interlocutores potenciais e solicitamos que
oito falantes bilíngües de cada faixa etária definissem seus padrões de escolha.
Além disso, adotamos uma fórmula estatística usada por Gal (1979, p. 159)
para calcular o índice de uso do dialeto pomerano nas duas comunidades.
Usamos “A” (de Alemão) para pomerano (que é um dialeto alemão) e “P”
(para português). A fórmula para calcular o índice A (dialeto pomerano) é:
A + AP
índice A =
A + AP + P
Utilizando a fórmula de Gal, foi calculada a proporção de uso potencial do
pomerano (índice A) por cada um dos 24 informantes, em cada uma das 12
situações interacionais. Dessa forma, podemos ordenar nossos informantes
conforme seu índice A – Dialeto pomerano. Da mesma forma, calculamos o
índice esperado pelos padrões da escolha para cada tipo de interlocutor. O
resultado é uma matriz que leva em conta a forma diferenciada de cada
informante fazer suas escolhas lingüísticas habituais.
As Tabelas 2 e 3 fornecem informações importantes a respeito do uso das
línguas em contato. Em cada Tabela se percebe, por exemplo, que o pomerano
se mantém no contexto familiar (no lar). Os primeiros 5 interlocutores
potenciais – avós e sua geração, pais e sua geração, esposo(a), filhos e irmãos
apresentam índice A de uso do dialeto pomerano elevado nas duas comunidades,
tendo Arroio do Padre um índice maior. “Amigos e vizinhos” também tem
índices elevados. Mas os interlocutores potenciais (de 7 a 12) apresentam
índices relativamente baixos. As Tabelas mostram, portanto, uma clara
oposição de uso do pomerano/português entre os 6 primeiros e os 6 últimos
interlocutores potenciais: pomerano (com índices A de 1.00 a .83 em Arroio
do Padre e de 1.00 a .68 em Três Vendas) nos primeiros 6 e português nos 6
últimos, sendo que o índice A (dialeto pomerano) chega a zero na interação
com autoridades em Três Vendas. Mesmo em Arroio do Padre o índice A fica
entre .50 e .10 nesses seis últimos contextos interacionais.
Tabela 2 – Padrões de escolha da língua em Arroio do Padre
INTERLOCUTORES POTENCIAIS
INF. IDADE 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 ÍNDICE A
1 15 A AP - - AP AP P P P P P - .44
2 24 A A - - AP AP AP AP P AP AP P .80
3 11 A AP - - P P P P P P P - .22
4 13 A AP - - P P P P P P P - .22
5 19 A AP - - AP AP AP AP P P P - .66
6 24 A A - - AP AP AP P P AP AP P .70
7 16 A AP - - P AP AP P P P P - .44
8 17 A AP - - P AP AP P P P P P .40
9 49 A A AP AP AP AP AP AP P AP AP AP .91
10 34 A A A AP AP AP P P P P P P .50
11 39 A A A AP AP AP P P P P P P .50
12 40 A A A AP AP AP P P P P P P .50
13 42 A A AP AP AP AP AP AP P P AP P .75
14 41 A A AP AP AP AP AP AP P P P P .66
15 33 A A A AP AP AP P P P P P P .50
16 47 A A AP A A AP AP P AP AP AP AP .91
17 71 A A A A A AP AP A AP AP A AP 1.00
18 62 A A A AP AP AP P P AP P AP P .66
19 64 A A A AP AP AP P P P AP A P .66
20 64 A A A A AP AP P P P AP AP P .66
21 59 A A AP AP AP AP P P P AP P P .58
22 73 A A A A A AP AP A AP A A AP 1.00
23 58 A A AP AP AP AP P P P P P P .50
24 62 A A A A AP AP AP P P AP A P .75
ÍNDICE A 1.00 1.00 1.00 1.00 .83 .91 .50 .29 .10 .41 .45 ..21

Interlocutores potenciais
1. Avós e sua geração
2. Pais e sua geração (tios)
3. Esposo(a)
4. Filhos e sobrinhos
5. Irmãos e primos
6. Amigos, vizinhos da mesma geração (ex-colegas de escola)
7. Vendedores (lojas, venda, supermercados), caixas de banco, etc.
8. Professor(a) (agora ou quando esteve na escola, colégio)
9. Médico, enfermeira, agente de saúde
10. Pastor (informantes são todos protestantes)
11. Deus (orações)
12. Autoridades (prefeitura, Estado, etc.)
Tabela 3 – Padrões de escolha da língua em Três Vendas
INTERLOCUTORES POTENCIAIS
INF. IDADE 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 ÍNDICE A
25 15 PA PA - - P P P P P P P - .22
26 21 A AP - - PA P P P P P P P .30
27 19 AP AP - - P P P P P P P P .20
28 12 PA PA - - P P P P P P P - .22
29 14 PA PA - - P P P P P P P - .22
30 16 PA PA - - P P P P P P P - .22
31 15 PA PA - - PA P P P P P P - .33
32 17 AP AP - - PA P P P P P P - .33
33 26 A AP P P PA P P P P P P P .25
34 35 A AP P P PA PA PA P P P P P .41
35 48 A A AP AP AP PA PA P P P P P .58
36 49 A A AP AP AP AP AP P P AP AP P .75
37 27 AP AP P P PA PA PA P P P P P .41
38 31 AP AP P P PA PA PA P P P P P .41
39 47 A A PA PA PA PA PA P P P P P .58
40 47 A A AP AP AP AP AP P AP AP AP P .83
41 59 A A AP PA PA PA PA P P P P P .58
42 65 A A A A PA PA PA P P P P P .58
43 53 A A AP P P PA PA P P P P P .41
44 62 A A A PA PA AP PA P P P P P .58
45 72 A A A A A A AP A AP A A P .91
46 55 A A AP PA PA PA PA P P P P P .58
47 53 A A A PA PA PA PA P P P P P .58
48 69 A A A A A AP AP A AP AP AP P .91
INDICE A 1.00 1.00 .75 .68 .57 .83 .66 .08 .12 .25 .16 0

Outra informação interessante das Tabelas 2 e 3 é mostrar as diferenças


lingüísticas entre as três faixas etárias. Em Arroio do Padre o índice médio de
escolha do pomerano é .84 para os mais velhos, .54 para a faixa etária de 25 a
50 anos e de .48 para os mais jovens. Em Três Vendas as médias são,
respectivamente: .64, .42 e .21.
Como nos gráficos anteriores, vê-se que o pomerano perde funções para o
português nas gerações mais jovens, principalmente na área urbana, em que
redes de comunicação mais abertas favorecem o uso do português. Com um
índice A médio de .21, dificilmente a geração jovem de Três Vendas conseguirá
transmitir o pomerano a seus filhos.
As Tabelas 2 e 3, se comparadas, apresentam também informações sobre o
grau de competência no pomerano e no português (já comentado
anteriormente). Nas entrevistas realizadas para a Tabela 3 foi feita uma
pergunta adicional na qual o interlocutor poderia ser abordado em português
ou em pomerano (P/A): “Qual a língua usada com mais freqüência?”. Se era o
dialeto alemão (pomerano) a Tabela marca “AP”, se era o português “PA”. Se
verificarmos este detalhe nas Tabelas e se fizermos uma comparação com os
resultados do Gráfico 5 (81,4% prefere o pomerano em Arroio do Padre
contra apenas 30% em Três Vendas) podemos inferir que a competência
lingüística em língua portuguesa é maior entre os informantes de Três Vendas
e, pelo mesmo raciocínio, a competência lingüística em pomerano é maior em
Arroio do Padre. Este fato ajuda a explicar os padrões de escolha das línguas
nas duas comunidades. A forte interferência do pomerano no português falado
na área rural de Arroio do Padre e sua estigmatização pelos monolíngües é
igualmente um fator que pesa na escolha das línguas nesta comunidade.
Os índices mais baixos de escolha do pomerano na geração mais jovem
pode estar ligada à crescente escolarização nas duas comunidades. Mesmo os
filhos de agricultores de Arroio do Padre estão tendo condições de freqüentar
o ensino básico até a 8ª série, graças ao transporte escolar, em uma escola
atendida por professores vindos de Pelotas. Também já foi criado,
formalmente, um curso de ensino médio no município. Com o aumento do
grau de escolaridade e com os meios de comunicação em língua portuguesa
passa a ocorrer nova pressão de escolha do português associada a assuntos ou
tópicos da conversação para a qual os bilingües não conhecem o léxico em
pomerano.
CONCLUSÕES
Através da descrição apresentada sobre a situação do bilingüismo
pomerano-português na região de Pelotas, verificamos que o dialeto pomerano
apresenta índices elevados de manutenção em Arroio do Padre. Esta situação
deve-se, segundo nossa análise, ao fato de ser uma comunidade homogênea
em que quase todos são bilíngües e possuem uma atitude lingüística favorável
ao uso quase exclusivo do pomerano nas interações familiares. Esta lealdade
lingüística ao pomerano cria as condições mínimas para que as novas gerações
adquiram tal dialeto como língua materna. Mesmo fora do lar, o falante pode
optar entre as duas línguas, com ou sem alternância de código.
Essas redes de comunicação familiares e comunitárias são responsáveis
pela transmissão e pela manutenção do pomerano, que é visto, ainda, como
forte elemento de herança étnica e cultural nesta comunidade. O português
leva vantagem nas interações fora do lar, principalmente com interlocutores
que representam a sociedade dominante, tais como professores, médicos,
fiscais, delegados etc. É notável, também, o avanço do português no fator
diageracional. A oscilação do índice A (dialeto pomerano) de .84 no grupo
mais idoso para .48 no grupo jovem mostra a força do português tentando
deslocar o pomerano, ajudado pela força da escolarização e dos meios de
comunicação.
Na área urbana de Três Vendas, as interações fora do lar ocorrem
freqüentemente com falantes monolíngües do português, não havendo
possiblidades de uso do pomerano. Seu uso se mantém no lar, conforme
mostram as Tabelas 1 e 3, mas, como já alertamos anteriormente, os dados se
ressentem de uma conotação diacrônica, por revelar para os mais velhos uma
situação vivida no passado. Os dados sobre os índices de escolha do grupo
jovem, com índice A .21 e a preferência de uso do português por 63,4% de
todos os informantes entrevistados mostram que o português está deslocando
o pomerano na comunidade urbana de Três Vendas.
REFERÊNCIAS
BLOOMFIELD, L. Language. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1933.
CAMPOS, Cynthia Machado. A política da língua na era Vargas. Campinas, SP:
Ed. da UNICAMP, 2006.
FERGUSON, C. A. Diglossia. Word, New York, n. 15, p. 325-340, 1959.
FISHMAN, J. Bilingualism with and without diglossia: diglossia with and
without bilingualism. Journal of Social Issues, Malden, n. 2, v. 2, p. 29-38, 1967.
______. Who speaks what language to whom and when? In: WEI, Li. (Org.).
The bilingualism reader. London: Routledge, 2002. p. 89-106.
GAL, Susan. Social determinants of linguistic change in bilingual Austria. New York:
Academic Press, 1979.
HEYE, Jürgen. Considerações sobre bilingüismo e bilingualidade. Palavra, Rio
de Janeiro, n. 11, p. 30-38, 2003.
KOLLING, Nilo Bidone. Educação e escolas em contextos de imigração pomerana no
sul do Rio Grande do Sul. 2000. Dissertação (Mestrado)–Universidade Federal de
Pelotas, Pelotas, 2000.
MACKEY, William F. The description of bilingualism. In: WEI, Li. (Org.). The
bilingualism reader. London: Routledge, 2000. p. 26-54.
VANDRESEN, Paulino. Política lingüística e bilingüismo em uma comunidade
teuto-brasileira. In: VANDRESEN, Paulino (Org.). Variação, mudança e contato
lingüístico no português da região sul. Pelotas: EDUCAT, 2006.
WEI, Li. Methodological questions in the study of bilingualism. In: WEI, Li.
(Org.). The bilingualism reader. London: Routledge, 2000. p. 475-486.
PARTE 2

Heterogeneidade
Retratos da variação entre você e tu no português do
Brasil: sincronia e diacronia

Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ/CNPq


APRESENTAÇÃO
O estudo proposto, como o próprio título anuncia, pretende retratar
diferentes corpora e sincronias para dar, entre um clique e outro, um panorama
geral das conseqüências geradas pela inserção de você no sistema pronominal
do português brasileiro. Partindo dos resultados obtidos nos séculos XIX e
XX, em que se verificou o início do processo de gramaticalização ou
pronominalização de você, quer-se enveredar pelos séculos XX-XXI, quando se
implementou efetivamente a inserção dessa nova forma no sistema
pronominal. Comparando os resultados de duas sincronias diferenciadas,
procura-se mostrar a dissociação entre sincronia e diacronia para que se possa
evidenciar como “a variação sincrônica e a diacrônica se determinam
mutuamente”. A estabilidade e a mudança se complementam e convivem em
cada estado da língua (COMPANY, 2003) e o estudo se propõe a apresentar
fotografias desse processo.
INTRODUZINDO A QUESTÃO
Os resultados do processo histórico da gramaticalização de Vossa Mercê >
você em português têm despertado interesse, nos últimos anos, em diferentes
pesquisadores das diversas regiões do Brasil.5 A conjugação de investigações
diacrônicas e sincrônicas, com base em amostras diversificadas, já nos dá
alguma confiança para o estabelecimento de generalizações descritivas de
sincronias pretéritas. Vosmecê, mecêa, vosse, você e a própria forma original Vossa
Mercê aparentemente chegaram ao Brasil sem a força cortês dos primeiros
tempos – século XIII-XIV. A partir de meados do século XVIII, os usos
tornam-se divergentes. A forma vulgar você torna-se produtiva nas relações
assimétricas de superior para inferior, podendo assumir, em algumas situações
sociopragmáticas, “conteúdo negativo intrínseco”, em oposição à sua
contraparte desenvolvida Vossa Mercê. No Brasil, a concorrência passa a ser
maior entre tu e você em relações solidárias mais íntimas a partir do século XIX.
Tais valores, entretanto, permanecem disponíveis, principalmente no
português europeu em que você não se generaliza como ocorre no Brasil. Aqui
tal estratégia não era negativamente marcada. “O Você, com maiúscula, usado
pela elite, para designar a elite, é [no Brasil do Oitocentos] uma forma de
prestígio” (SOTO, 2001, p. 242). Levando-se em consideração os fluxos e
contra fluxos da variação você/tu no século XX, alguns estudos demonstraram
que o uso majoritário de tu – forma recorrente no século XIX – apenas será
suplantado por você por volta dos anos 20/30 do século XX. No último quartel
do século XX, no entanto, há um retorno do pronome tu à fala carioca sem a
marca flexional de segunda pessoa.6
Diversos trabalhos pontuais vêm sendo feitos no Brasil7 com o objetivo de
identificar os fatores que determinam a variação você e tu na posição de sujeito;
a variação entre os possessivos teu, seu e de você; o uso do imperativo de segunda
pessoa, os clíticos acusativos e dativos etc. O que nos interessa, entretanto,
nesse momento, é analisar a correlação entre esses fenômenos na tentativa de
resgatar e mapear cronologicamente as causas da implementação irregular de
você no quadro de pronomes, identificando os fatores que retardam ou
aceleram as alterações no sistema. Nesse sentido, pretende-se responder às
seguintes questões: 1) Em que lugar as marcas originais ou resquícios formais
de segunda pessoa do singular ainda resistem ou vão-se manter? 2) Quais os
reflexos estruturais da inserção de você nas outras categorias pronominais
(pronomes acusativos e possessivos)? 3) Houve fusão, mistura do paradigma
de 2ª pessoa com o de 3ª pessoa ou a criação de um paradigma pronominal
supletivo?
ALGUMAS POSTULAÇÕES TEÓRICAS NORTEADORAS
Retomando o problema da transição (WEINREICH; LABOV; HERZOG,
1968), discute-se com Lichtenberk (1991) que o gradualismo é inerente à
gramaticalização. Por ser um fenômeno contínuo, a gramaticalização não é um
processo que possa se extinguir. Tal perspectiva não contradiz os princípios da
teoria sociolingüística laboviana (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968),
que defende que os fatores que produzem mudanças, não só no âmbito
lingüístico, como também no da vida humana, não são abruptos e repentinos,
mas atuam lenta e gradualmente, e é por isso que a mudança lingüística requer
a observação de dois ou mais estágios de uma língua.
Por seu caráter contínuo, a gramaticalização pressupõe, principalmente nos
estágios iniciais, a coexistência entre novos valores/usos ao lado dos antigos
(princípio da estratificação) e a permanência de propriedades lexicais nas formas
gramaticalizadas (princípio da persistência). Quanto a esse último princípio,
postulado por Hopper (1991, p. 124), diz-se que “alguns traços do significado
lexical original de um item tendem a aderir à nova forma gramatical, e detalhes
de sua história lexical podem refletir-se na sua distribuição gramatical”.
Outro princípio proposto pelo autor, que norteia a perspectiva adotada
aqui sobre os reflexos estruturais ocasionados pela inserção de você no sistema
pronominal, é o da decategorização. Defende-se que no processo de
gramaticalização pode ocorrer perda ou neutralização das marcas morfológicas
e propriedades sintáticas das categorias plenas e adoção dos atributos das
categorias secundárias.
Adaptando, grosso modo, os princípios de Hopper (1991), acredita-se que,
com a gramaticalização de Vossa Mercê > você, não houve perda completa dos
traços categoriais originais (expressão nominal de tratamento) e muito menos a
assunção definitiva de propriedades da nova classe (pronome de 2ª pessoa) da
qual você passou a fazer parte. Criaram-se, assim, algumas incompatibilidades
entre as propriedades formais e as semântico-discursivas. Com a inserção de
você no quadro pronominal do português, percebe-se a persistência da
especificação original de 3ª pessoa, embora a interpretação semântico-
discursiva passe a ser de 2ª pessoa [-EU]. Quando se verifica uma mescla ou
mistura de tratamento do tipo “Vou te dizer uma coisa, você tem muito o que
aprender com o meu futebol [...] Tua mãe já fez sua mochila?,8 a interpretação
semântica é inegavelmente de 2ª pessoa [-EU], mesmo que o pronome você
esteja ora se combinando a formas de 2ª [-eu] (“te dizer”, “tua mãe”), ora se
correlacionando a formas de 3ª pessoas [ϕeu] (“sua mochila”, “você tem”).
Como afirma Company (2003), é um processo dialético permanente entre
várias tendências ou motivações comunicativas que se complementam e se
equilibram. Uma variante pode vencer a outra a partir de um emprego novo
discursivamente motivado, gerando, assim, desequilíbrios e inovações. É nesse
processo dialético de forças comunicativas e de tendências, ora conservadoras
(outorgando estabilidade), ora inovadoras (desestabilizando e gerando
mudanças), que se produzem fenômenos de gramaticalização.
A hipótese que norteia este trabalho é a de que uma mudança lingüística
como a ocorrida com a gramaticalização de Vossa Mercê > você é contínua e
gradual, com reflexos de um passado bem remoto e projeções do que já se está
consolidando no presente. Como os processos de mudança não afetariam o
sistema lingüístico em sua totalidade, a implementação de você no sistema não
ocorreu da mesma forma em todas as subcategorias pronominais e criou-se
um paradigma pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a
terceira pessoa do singular. Você e tu coexistem no singular e vocês é
praticamente categórico no plural na posição de sujeito; nas demais posições,
contudo, nem o pronome complemento o/a/os/as nem o possessivo vosso se
mantiveram produtivos, em seu lugar, empregam-se com maior freqüência te
variando com você, lhe e objeto nulo; teu/tua variando com seu/sua, de você(s) e
flexões e o uso do imperativo formado a partir do presente do indicativo
(imperativo de 2ª pessoa) variando com o do subjuntivo (imperativo de 3ª).
Parte-se, pois, da hipótese da formação de um paradigma misto que se está
constituindo e pode-se cristalizar, criando um voceamento (a partir de você) no
português brasileiro similar aos diferentes sistemas de voseamento na América
hispânica.
A análise aqui apresentada, como dito anteriormente, dará rápidos flashes,
ressaltando épocas e fontes distintas. Começaremos pelo século XIX,
fotografando o início do duelo entre você e tu numa mesma carta. Não se trata,
entretanto, das cartas pessoais e oficiais de brasileiros ilustres que circulam nos
nossos arquivos públicos. As cartas são de leitores dos jornais oitocentistas,
pessoas desconhecidas, pessoas escondidas no anonimato e espalhadas por
três grandes localidades: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. São pessoas
simples e comuns com um diferencial importante à época: constituíam uma
classe de letrados com acesso à imprensa. Um salto no tempo e o foco da
câmera se fecha numa área específica, o Rio de Janeiro, vislumbrando a
contemporaneidade. Fotografaremos então o século XX, a partir de uma
amostra diferenciada: as peças teatrais. Os personagens ficcionais ganham vida
no palco carioca e o nosso álbum registra a tentativa de você superar o pronome
tu. A câmera registra os contextos de resistência de tu ao longo dos
novecentos. Clicando aqui e ali, a objetiva captará nas peças teatrais de
praticamente todas as décadas a implementação avassaladora de você ao lado
das reviravoltas de um tu-sujeito sem marcas verbais desinenciais em fins do
século XX. Entraremos no novo milênio pelos roteiros de cinema. Fotografias
justapostas? A convivência tu ~ você estará nas telas em duas produções
ficcionais cinematográficas brasileiras. Uma delas, Cidade de Deus, ambientada
na periferia do Rio de Janeiro, retrata a fala de uma famosa favela carioca. A
outra, Amores Possíveis, registra as relações afetivas, familiares e profissionais da
classe média alta carioca. Virando a página, vamos ao álbum...
ANÁLISE DE DADOS: RESULTADOS OITOCENTISTAS E
NOVECENTISTAS
Fotos oitocentistas: as cartas de leitores em três cidades brasileiras – os
indícios da mistura de tratamento
O estudo realizado por Barcia (2006), com base em cartas de leitores de
jornais brasileiros oitocentistas, publicadas em três estados diferentes (Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), analisou as formas de tratamento do século
XIX. A distribuição regional, a heterogeneidade das cartas e dos remetentes –
que pertenciam a diferentes estratos sociais – configuram a amostra como
representativa dos usos lingüísticos do Brasil oitocentista.
A autora observou que a segunda pessoa legítima – pronome tu – era a
estratégia favorita nos contextos de menor formalidade. Todavia, entre os anos
de 1871 e 1900, identificou a coexistência das formas tu e você – estratégias em
competição – numa mesma correspondência em referência ao mesmo
interlocutor. Tal fato ocorreu somente nas cartas de Minas Gerais, como
ilustram os exemplos a seguir retirados de periódicos de Ouro Preto:
(1) Não te mettas mais a escriptor publico não, porque, segundo tenho ouvido, você espichou-se
redondamente em fallar na luz eterna, no chorar as lagrimas [...] Não sejas tolo [...] não te mettas a
tomar partido [...] Teo amigo e mordomo do Serralho (Carta de leitor; Diário de Minas; Ouro Preto /
MG; 25/11/1876).
(2) [...] e por isso esqueces a promessa que me fisestes para ao despois de empregares effectivamente.
Olha, e ... eu tenho guardado todo o silencio sobre a tua cartinha de 24 de junho; entretanto, já você
vai se esquecendo de mim! Ah! Sou muito infeliz!! Oh! Não abandones a tua querida (Carta de leitor;
O Diabinho; Ouro Preto / MG; 12/10/1887).
Em (1), apesar do seu teor de crítica, há um tom pessoal na carta, que
favorece o predomínio quase absoluto do íntimo tu com apenas uma
ocorrência do intruso você. Interessante observar que o único dado de você
ocorre em contexto de discurso reportado. O autor da carta ao mudar o eixo
interlocutivo, muda também a forma de tratar. A forma você é utilizada na fala
do outro, já que o autor remete ao que dizem outras pessoas e não ele quando
emprega “segundo tenho ouvido”. É como se o remetente da carta não
quisesse se comprometer com o que está escrito e por isso abandona o tu-
íntimo. Nesse caso, ainda teríamos uma motivação discursivo-pragmática que
distingue, de certa forma, a variação tu-você. No segundo exemplo, entretanto,
não se observa uma motivação para a entrada de você. Aparentemente, você e tu
aparecem em variação no mesmo contexto funcional.
Em termos do controle do paralelismo de formas, o remetente dirigiu-se
inicialmente a seu destinatário em (1) por tu (não te mettas), introduzindo em
seguida a forma você (você espichou-se). Mais adiante retomou o pronome tu e suas
variantes de segunda pessoa (não sejas tolo; não te mettas; teo amigo). Em (2),
ocorreu a mesma mescla de tratamento. O remetente começou
sistematicamente empregando a segunda pessoa (esqueces; fisestes; empregares; olha;
tua), mas perdeu tal regularidade com a entrada da forma você (você vai...),
retornando ao tu no fim da carta (não abandones a tua).
Tal variação entre tu e você numa mesma carta, como ocorre,
principalmente, em (2), confirma o princípio da estratificação proposto por
Hopper (1991) que estipula a coexistência entre o novo e o velho em um
domínio funcional amplo. As camadas mais antigas não são necessariamente
descartadas, mas coexistem e interagem com as recentes, pois não há descarte
imediato da forma mais antiga, no caso tu, em detrimento da forma emergente
você, mas um período de transição, de convivência entre as estratégias de
referência ao interlocutor. A Tabela a seguir, extraída de Barcia (2006), além de
apresentar as formas de tratamento dirigidas ao destinatário que foram
identificadas nas cartas de leitores oitocentistas (Vossa Mercê e variantes, você, tu e
vós), evidencia a mescla de tratamento localizada na amostra, ou seja, a
combinação de formas: você com tu, com Vossa Mercê, com vós e assim por
diante numa mesma carta:
Tabela 1 – A combinação de Vossa Mercê e variantes, você, tu e vós nas cartas
de leitores
Formas precedentes Vossa Variantes de Você Vós Tu TOTAL
Mercê(s) Vossa Mercê
2ª pessoa do singular 3/55 7/111 50/65 60/376
- -
(tu) (5%) (6%) (77%) (16%)
2ª pessoa do plural 1/55 94/111 6/65 101/376
- -
(vós) (2%) (85%) (9%) (27%)
3ª pessoa do singular 48/55 3/111 2/65 53/376
- -
(você) (88%) (3%) (3%) (14%)
3ª pessoa do singular
9/104 37/41 46/376
(variantes de - - -
(9%) (90%) (12%)
V. M.ce)
3ª pessoa do singular 70/104 1/111 71/376
- - -
(V. M.ce) (67%) (1%) (19%)
3ª pessoa do plural 8/104 8/376
- - - -
(V. M.ces) (8%) (2%)
15/104 4/41 3/55 6/111 6/65 34/376
Primeira da série
(14%) (10%) (5%) (5%) (9%) (9%)
2/104 1/65 3/376
Referência isolada - - -
(2%) (2%) (1%)
104/376 41/376 55/376 111/376 65/376 376/376
TOTAL
(28%) (11%) (15%) (29%) (17%) (100%)

Fonte: Barcia (2006)

Barcia (2006) mostra, nessa tabela, que a mistura de formas tratamentais


ocorria ainda de maneira tímida no século XIX. Em apenas 5% dos casos, você
apareceu precedido de tu e em 2% antecedido por vós. Os maiores índices de
freqüência estavam relacionados à manutenção da forma de tratamento
escolhida: você antecedido por você com 88% de freqüência. Apesar de serem
poucos dados, tais resultados elucidam que você já vinha adquirindo status de
pronome pessoal, pelo fato de aparecer nos mesmos contextos que
favoreceriam o uso de tu ou vós, especializando-se como forma de 2ª pessoa
(HOPPER, 1991). Faz-se necessário destacar que você apresentava
comportamento divergente do tratamento nominal original Vossa Mercê e suas
variantes, uma vez que Vossa Mercê, ao contrário da forma gramaticalizada você,
somente se correlacionou à 3ª pessoal gramatical, seja no singular (P3) com
67%, seja no plural (P6), com 8%.
Em virtude da sua distribuição regional e, sobretudo, pelo fato de essas
cartas de leitores retratarem o comportamento lingüístico de um grupo mais
amplo de pessoas da sociedade oitocentista, os resultados obtidos por Barcia
(2006) dão indícios da gramaticalização de você. Se a combinação de você com
formas de 2ª pessoa gramatical (te, teu etc.) já aparecia, mesmo que com baixas
freqüências de uso, nas cartas de leitores mineiros, em fins do século XIX –
texto escrito – pode-se inferir que, no uso oral, esse sincretismo lingüístico era
ainda mais produtivo.
Ajeitando o foco e descortinando o século XX com peças teatrais
cariocas – categorias gramaticais de 2ª e 3ª pessoas do singular
Machado (2006) analisou as estratégias de referência ao interlocutor
utilizadas nos diálogos estabelecidos entre personagens ficcionais de peças
teatrais do século XX. Foram oito comédias de costumes da vida familiar
fluminense, produzidas e ambientadas no Rio de Janeiro deste período.9 Os
cenários compreendiam, preponderantemente, ambientes privados — casa,
pensão onde residiam os personagens — e apresentavam relações íntimas,
tratando de situações corriqueiras do cotidiano. O corpus foi constituído da
seguinte forma pela autora:
Quadro 1 – A constituição do corpus de Machado
A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
Peça Autor Data
Quebranto Coelho Neto 1908
O simpático Jeremias Gastão Tojeiro 1918
O hóspede do quarto nº 2 Armando Gonzaga 1937
Dona Xepa Pedro Bloch 1952
Tôda donzela tem um pai que é uma fera Gláucio Gill 1962
Comunhão de bens Alcione Araújo 1980
Intensa Magia Maria Adelaide Amaral 1995
Clube do leque Isis Baião 1995

Fonte: Machado (2006)

Machado (2006) estabeleceu um controle rigoroso de todas as formas


relacionadas a você e tu em diferentes categorias gramaticais para identificar os
contextos de resistência e de implementação de você no sistema pronominal. O
complexo quadro da autora dá um panorama geral do século XX:
Tabela 2 – A distribuição das estratégias pronominais no singular em
função das categorias gramaticais
compl./ adj. verbal/
sujeito compl. verbal não prep. possessivo total
nom. prep.

Peças em a você/
a ti/
análise para
para teu(s)/ seu(s)/
tu você te você o/a lhe você/ 2ª 3ª
ti/entre tua(s) sua(s)
entre
outros
outros
Quebranto 29/33 4/33 53/76 0/76 7/76 16/76 9/10 1/10 43/94 51/94 134/213 89/213
(1908) (88%) (12%) (70%) (0%) (9%) (21%) (90%) (10%) (46%) (54%) (63%) (37%)
O simp..
13/123 110/123 24/118 6/118 29/118 59/118 4/17 13/17 9/94 86/94 50/353 303/353
Jeremias
(11%) (89%) (20%) (5%) (25%) (50%) (25%) (75%) (9%) (91%) (14%) (86%)
(1918)
O hósp..
0/142 142/142 0/62 2/62 18/62 42/62 0/10 10/10 0/93 93/93 0/307 307/307
Quarto 2
(0%) (100%) (0%) (3%) (29%) (68%) (0%) (100%) (0%) (100%) (0%) (100%)
(1937)
Dona Xepa 1/132 131/132 4/21 8/21 2/21 7/21 0/8 8/8 3/78 75/78 8/239 231/239
(1952) (1%) (99%) (19%) (38%) (10%) (33%) (0%) (100%) (4%) (96%) (3%) (97%)
Tôda... fera 3/330 327/330 25/42 0/42 3/42 14/42 0/35 35/35 11/90 79/90 39/497 458/497
(1962) (1%) (99%) (60%) (0%) (7%) (33%) (0%) (100%) (12%) (88%) (8%) (92%)
C.de bens 0/315 315/315 9/36 1/36 10/36 16/36 0/21 21/21 0/85 85/85 9/457 448/457
(1980) (0%) (100%) (25%) (3%) (28%) (44%) (0%) (100%) (0%) (100%) (2%) (98%)
Intensa
0/177 177/177 10/29 2/29 2/29 15/29 0/29 29/29 8/126 118/126 18/361 343/361
Magia
(0%) (100%) (34%) (7%) (7%) (52%) (0%) (100%) (6%) (94%) (5%) (95%)
(1995)
C. do leque 29/74 45/74 15/25 2/25 2/25 6/25 0/3 3/3 5/33 28/33 49/135 86/135
(1995) (40%) (60%) (60%) (8%) (8%) (24%) (0%) (100%) (15%) (85%) (36%) (64%)
75/ 1251/ 140/ 21/ 73/ 175/ 13/ 120/ 79/ 615/ 307/ 2255/
Total 1326 1326 409 409 409 409 133 133 693 693 2562 2562
(6%) (94%) (34%) (5%) (18%) (43%) (11%) (89%) (11%) (89%) (12%) (88%)

Fonte: Machado (2006)

Machado (2006, p. 54) observou “uma alteração substancial na natureza


dos pronomes entre a peça Quebranto (1908) e as obras posteriores, uma vez
que naquela predominavam as formas pronominais de 2ª pessoa gramatical (tu,
te, ti, teu(s)/tua(s)) – 63% – e nestas prevaleciam as formas de 3ª pessoa
gramatical (você, o/a, lhe, seu(s)/sua(s)) – 86%, 100%, 97%, 92%, 98%, 95% e
64%”. O pronome tu, segundo a autora, sofreu uma acentuada queda ao longo
do século: na obra de 1908 correspondia a 88% dos pronomes na função de
sujeito e, nas obras posteriores, os índices não ultrapassaram 11%. Interessante
observar que, na peça Clube do leque (1995), o pronome tu apresentava 40% de
sujeito pronominal preenchido com verbo na 3ª pessoa do singular.
Como se pode observar na análise da Tabela 2, a presença do pronome-
sujeito tu é marcante apenas no início e no fim do século XX, ao longo do
período “a preservação dos pronomes de 2ª pessoa fica a cargo das formas te,
teu(s)/ tua(s)”. O principal contexto de resistência é o oblíquo átono te que
mantém índices sempre acima dos 18%, atingindo 60% na peça de 1962. Os
possessivos teu(s)/tua(s) apresentam índices abaixo dos 15% nas peças
posteriores a 1908, mas estão presentes a partir dos anos 1950. Machado
(2006, p. 55) afirma que “a preservação dessas formas deve-se possivelmente
ao caráter ambíguo que as estratégias pronominais de 3ª pessoa passaram a
apresentar após a inserção de você no quadro pronominal do PB”.
Quanto ao plural, a autora identificou apenas 95 dados, que não constam
da Tabela 2. Foram 3% de vos e todo o restante relacionado a formas de 3ª
pessoa gramatical (vocês, os/as, lhes, seu(s)/sua(s)). A inserção no sistema de vocês
parece ter-se implementado com maior vigor. A Tabela 3, a seguir, apresenta as
formas verbais relacionadas a você e tu na análise de Machado (2006):
Tabela 3 – A distribuição das formas verbais no singular
VOCÊ TU TOTAL
Peças em análise Não Não Não TOTAL
Imperativos Imperativos Imperativos
imperativos imperativos imperativos
Quebranto 9/13 4/13 46/165 119/165 55/178 123/178 178/1545
(1908) (69%) (315) (28%) (72%) (31%) (69%) (11,5%)
O simp... Jeremias 82/127 45/127 109/166 57/166 191/293 102/293 293/1545
(1918) (65%) (35%) (66%) (34%) (65%) (35%) (19%)
O hósp... Quarto 2 25/64 39/64 00/00 00/00 25/64 39/64 64/1545
(1937) (39%) (61%) - - (39%) (61%) (04%)
Dona
33/69 36/69 39/39 00/39 72/108 36/108 108/1545
Xepa
(48%) (52%) (100%) (00%) (67%) (33%) (07%)
(1952)
Tôda...
64/131 67/131 42/47 05/47 106/178 72/178 178/1545
fera
(49%) (51%) (89%) (11%) (60%) (40%) (11,5%)
(1962)
C.de
214/282 68/282 87/87 00/87 301/369 68/369 369/1545
bens
(76%) (24%) (100%) (00%) (82%) (18%) (24%)
(1980)
Intensa Magia 52/96 44/96 35/35 00/00 87/131 44/131 131/1545
(1995) (54%) (46%) (100%) (00%) (66%) (34%) (08%)
C. do
78/119 41/119 105/105 00/105 183/224 41/224 224/1545
leque
(66%) (34%) (100%) (00%) (82%) (18%) (15%)
(1995)
557/901 344/901 463/644 181/644 1020/1545 525/1545 1545/1545
Total
(62%) (38%) (72%) (28%) (66%) (34%) (100%)

Fonte: Machado (2006)


A autora mostra a persistência das formas verbais relacionadas ao pronome
tu a partir do imperativo, principalmente, nas peças da segunda metade do
século XX. Salienta, entretanto, que a inserção de você no quadro pronominal
do português brasileiro não atingiu as formas imperativas, pois a 2ª pessoa
conseguiu se manter.
Vejamos outras fotos. Os roteiros de cinema.
Luz, câmera e ação: a variação você ~ tu em roteiros de cinema
Os resultados apresentados a seguir referem-se à análise das formas tu e
você identificadas em dois roteiros cinematográficos cujo enredo está
ambientado num período contemporâneo à sua produção cinematográfica
(LOPES; MACHADO, 2005). Um dos roteiros é o da comédia romântica
intitulada Amores Possíveis (HALM, 2001) que registra a classe média alta carioca.
As relações interativas retratadas no filme se desenvolvem basicamente entre
pais, casais e amigos, além de situações periféricas de interações transacionais:
no restaurante ou no escritório, por exemplo. O segundo roteiro é do filme
Cidade de Deus (MANTOVANI, 2003). Trata-se de uma produção ficcional
cinematográfica baseada no romance homônimo de Paulo Lins. A história se
passa em um dos locais mais violentos do Rio de Janeiro, a favela Cidade de
Deus. O personagem-narrador, Busca-Pé, analisa a lógica da favela e do
desenvolvimento do tráfico no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970. Fora de
qualquer categorização, o roteiro apresenta características peculiares e até
inéditas. Todos os atores envolvidos eram jovens, anônimos e moradores de
comunidades carentes do Rio de Janeiro. Eles interferiram nas falas originais e
improvisaram de acordo com seus próprios sentimentos, dando um tom quase
documental ao filme.
Categorias gramaticais de 2ª e 3ª pessoas: a manutenção de resquícios
formais de segunda pessoa do singular
Para análise dos dados nos dois roteiros de cinema,10 consideraram-se
como “2ª pessoa do singular gramatical ou formal”, os pronomes pessoais na
função de sujeito (tu) como no exemplo (3), de complemento direto não
preposicionado (te) em (4), de complemento preposicionado (contigo) em (5),
além dos pronomes possessivos (teu/tua) em (6) e as desinências verbais
correspondentes à segunda pessoa do singular no imperativo (7). A fim de
facilitar a comparação dos resultados, rotulou-se a forma você e variantes como
“3ª pessoa do singular gramatical ou formal”, ainda que se reconheça em você
um pronome que se refere, em termos semântico-discursivos, à segunda
pessoa ou ao não-eu (interlocutor, ouvinte, receptor real). Entram no paradigma
de você: pronome pessoal sujeito (você) como em (8), complemento direto ou
pronome oblíquo átono (você, lhe, o), complemento preposicionado (com você),
pronome possessivo (seu/sua) em (9) e as desinências verbais correspondentes
à terceira pessoa do singular no imperativo ou não. O objetivo era observar,
como retratado por Machado (2006), em que categorias gramaticais o você se
fixou e quais os contextos de resistência de tu:
(3) Zé Pequeno-Bené: “Aí tu num pode ir embora com essa mulher não, rapaz?” (Cidade de Deus,
2003, p. 107);
(4) Pedro1-Carlos1: “Posso te dizer uma coisa?” (Amores possíveis, 2001, p. 15);
(5) Thiago-Barbantinho: “Vou apostar uma cerveja contigo como tu não nada melhor do que eu”
(Cidade de Deus, 2003, p. 72);
(6) Pedro1-Carlos1: “Adoro o teu cheiro... é intenso” (Amores possíveis, 2001, p. 62);
(7) Carlos2-Pedro2: “Desliga esse relógio” (Amores possíveis, 2001, p. 15);
(8) Dandara-Carlos 3: “Você é muito paranóica com o Pedro” (Amores possíveis, 2001, p. 22).
(9) Carlos3-Dandara: “Como é mesmo o seu nome?” (Amores possíveis, 2001, p. 22).
A Tabela a seguir apresenta os dados das categorias gramaticais localizadas
nos roteiros dos dois filmes que retratam diferentes espaços sociais urbanos do
Rio de Janeiro. Amores Possíveis fotografa a classe média alta e Cidade de Deus
registra a fala de uma comunidade menos favorecida da sociedade carioca:
Tabela 4 – Categorias gramaticais de 2ª e 3ª pessoas do singular nos
roteiros Amores Possíveis (2001) e Cidade de Deus (2003)
Amores Possíveis Cidade de Deus
Categorias Tu (P2) Você (P3) Tu (P2) Você (P3)
200/200 93/168 75/168
Pronome reto -
100% 55% 45%
8/37 29/37 35/46 11/46
Pronome possessivo
22% 78% 76% 24%
59/65 6/65 20/21 1/21
Pronome oblíquo (complemento sem preposição)
91% 9% 95% 5%
1/20 19/20 1/10 9/10
Pronome oblíquo (complemento com preposição)
5% 95% 10% 90%
Imperativo 58/60 2/60 128/156 28/156
96% 4% 82% 18%

No roteiro de Amores Possíveis, representando a variedade culta, você


aparece categoricamente como pronome-sujeito. Em Cidade de Deus, por sua
vez, predomina o emprego de tu sobre você. Nos dois casos, seja com você ou
com tu, o verbo aparece na 3ª pessoa do singular (“você” vira meu sócio ou
“tu” vira meu sócio). As amostras são bem marcadas como estereótipos
sociais que, aparentemente, contrapõem a supremacia do você, neutralizado
como tratamento íntimo na classe média alta, ao lado do tu sem marca
desinencial, que prevalece na fala popular. Os resultados da Tabela evidenciam,
entretanto, mais semelhanças do que diferenças. Excluindo-se a divergência
entre o comportamento do pronome sujeito e dos possessivos que seguem o
tratamento predominante em cada roteiro (você, seu no culto e tu, teu no
popular), os contextos de resistência da 2ª pessoa formal são os mesmos.
Reina o imperativo majoritário com 96% em Amores Possíveis e 82% em
Cidade de Deus, seguido pelo pronome oblíquo átono te com 91% e 95%
respectivamente. Os resultados confirmam a hipótese de que a integração de
você no sistema pronominal não se implementou da mesma maneira em todas
as categorias gramaticais ou subcategorias pronominais. Há, como já havia
apontado Machado (2006), resquícios formais da segunda pessoa gramatical
no paradigma de você.
Combinação de formas e paradigma pronominal supletivo
Para analisar as combinações mais produtivas com tu e você, controlou-se o
paralelismo discursivo que ocorre entre você e tu nos moldes descritos por
Lucca (2003). A intenção era verificar se a mescla ou mistura de tratamento,
timidamente observada no estudo de Barcia (2006) para o século XIX e
paulatinamente implementada no século XX (MACHADO, 2006),
apresentava, ou não, índices percentuais mais reveladores. Na quantificação
dos dados, observou-se se o item analisado era o primeiro numa série como o
você de (10) e o primeiro tu de (11). Além disso, quantificou-se a forma que
antecedia o dado analisado. O item analisado poderia estar precedido por uma
forma na 2ª pessoa gramatical, como ocorre com o segundo tu de (11) que está
precedido por outro tu. O item pode ser antecedido por uma forma na 3ª
pessoa gramatical como em (12): você precedendo outro você. A mescla do
tratamento está evidenciada de (13) a (15). Em (13), sua (3ª pessoa) está
precedido por tua (2ª pessoa). Em (14), tem-se o te como primeira referência e
uma seqüência de formas de terceira e de segunda pessoas: você precedido de te;
você precedido de você e, por fim, te precedido por você. Em (15) também ocorre
a mescla de formas:
(10) Zé Pequeno-Jovem: “Morena, você quer dançar comigo?” (Cidade de Deus, 2003, p. 134);
(11) Cenoura-Zé Pequeno: “Ih, moleque. Tu é moleque. Tu tá achando que eu sou otário,
molequinho?” (Cidade de Deus, 2003, p.115);
(12) Júlia2-Carlos2: “Quando você trepa com seu parceiro, você usa camisinha?” (Amores Possíveis,
2001, p. 34);
(13) Carlos-filho: “Então tá, meu amor. Tua mãe já fez sua mochila?” (Amores Possíveis, 2001, p.
15);
(14) Júlia-filho: “Vou, claro que vou. Te cuida com aquele cara. Se você for ao banheiro para fazer
xixi, você tranca a porta. Eu não estou a fim de que esse fulano te veja pelado. Vem cá.” (Amores
Possíveis, 2001, p. 17);
(15) Cenoura-Mané Galinha: “Tô te propondo sociedade. Você vira meu sócio, tu vira meu sócio,
Galinha” (Cidade de Deus, 2003, p. 151).
A Tabela a seguir apresenta os resultados nos dois roteiros:
Tabela 5 – Combinação de formas de 2ª e 3ª pessoas do singular nos
dois roteiros
Formas antecedentes Amores Possíveis Cidade de Deus
Tu (P2) Você (P3) Tu (P2) Você (P3)
53/260 207/260 136/223 87/223
1a ocorrência numa série
20% 80% 61% 39%
25/52 27/52 54/75 21/75
Precedido de 2ª pessoa formal
48% 52% 72% 28%
14/76 62/76 13/31 18/31
Precedido de 3ª pessoa formal
18% 82% 42% 58%

Na análise do paralelismo discursivo, percebe-se a famigerada “mistura de


tratamento” condenada pelas gramáticas tradicionais do português. Conforme
observado anteriormente, a depender do roteiro, a primeira ocorrência da série
discursiva poderá ser você ou tu: aquele predomina no roteiro representativo da
variedade culta (Amores Possíveis) com 80% de freqüência e este ocorre na
variedade mais popular (Cidade de Deus) com 61%. Desencadeando a estratégia
mais produtiva de cada subgrupo social (você ou tu), as combinações formais
apresentam maiores índices de freqüência confirmando o paralelismo.
Entretanto, mesmo sabendo que é mais freqüente o emprego de você (3ª pessoa
formal) precedido de outra forma de 3ª pessoa com 82% em Amores Possíveis e
58% em Cidade de Deus, é interessante observar a presença, numa série
discursiva, de qualquer expressão de 2ª pessoa (imperativo, pronome oblíquo
ou possessivo) precedendo você e vice-versa: 3ª pessoa antecedendo tu: 18% em
Amores Possíveis e 42% em Cidade de Deus, o que configura a mescla de
tratamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As fotos em seqüência, embora tenham sido tiradas em momentos,
perspectivas e olhares diferenciados, conseguem captar a linearidade do
fenômeno. Os resultados evidenciam a formação de um paradigma
pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a terceira pessoa do
singular com reflexos paralelos em algumas subcategorias pronominais. A
mistura de tratamento já aparece prematuramente no século XIX com baixos
índices percentuais e se configura como um prenúncio da inserção de você no
sistema pronominal. O duelo entre você e tu não se dará de forma definitiva,
pois a forma inovadora e gramaticalizada não se implantará em todas as
categorias gramaticais da mesma maneira. Esse prenúncio já está anunciado
nas primeiras fotografias do século XX, mas os contextos de resistência
formal da segunda pessoa perduram até o século XXI.
Nas fotos mais recentes, a disputa se conserva e o emprego de você e tu
como sujeito será determinado ou favorecido por fatores diversos: sociais,
regionais, etários, etc. Como acusativo, entretanto, o te mostra-se produtivo,
seja ao lado do você ou do tu-sujeito. O imperativo de segunda pessoa também
resiste. Quanto aos possessivos, observou-se, na variedade culta que opta pelo
você, a preservação da forma de 3ª pessoa (seu), ao passo que o grupo social em
que tu é mais produtivo, o pronome teu ocorre mais. Aparentemente,
confirmam-se nossas hipóteses iniciais. Da mesma maneira que há diferentes
sistemas de voseamento na América hispânica, teríamos no Brasil a coexistência
de vários sistemas de tratamento. Se, na Argentina, como afirma Fontanella de
Weinberg (1977), a coexistência de dois subsistemas vos e tú nos séculos XVI e
XVII gerou a fusão de ambos, resultando no surgimento de uma paradigma
supletivo para o voseo, por que não podemos considerar a criação de um
paradigma misto que estaria se constituindo ou se cristalizando no Brasil? As
respostas estão se delineando conforme novas fotografias vão mapeando o
imenso e complexo espaço-social brasileiro.
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foundations for a theory of language change. In: LEHMANN, W.; MALKIEL,
Y. (Ed.). Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968.
p. 97-195.
NOTAS
Obviamente o elenco de estudos levantados aqui não dará conta da totalidade dos trabalhos realizados
no Brasil, mas ilustrará o avanço nas pesquisas realizadas. No âmbito histórico, há um grupo da UFRJ
que tem feito análises com base em corpora diversificados: peças teatrais brasileiras e portuguesas dos
séculos XVIII e XIX (cf. SILVIA; BARCIA, 2002; LOPES; DUARTE, 2003, 2004) e XX (MACHADO,
2006); cartas oficiais e pessoais escritas no Brasil setecentista e oitocentista (cf. LOPES; DUARTE, 2003;
MACHADO, 2006; RUMEU, 2004; LOPES; MACHADO, 2005); cartas de leitores do século XIX
(BARCIA, 2006). Para a descrição da fala carioca, há os trabalhos de Paredes Silva (2000, 2003). Na
região sul, há os trabalhos de Odete Menon e Ana Zilles (AMARAL, 2003). Em Minas Gerais, temos os
trabalhos orientados por Jânia Ramos (CHAVES, 2006; VITRAL; RAMOS, 2006 etc.). Na fala
brasiliense, há o estudo de Lucca (2005), entre tantos outros.
Cf. Paredes Silva (2000, 2003).
Ver nota 1, além de Abraçado (2000); Arduin (2005); Monteiro (1994); Negrão e Müller (1996); Soto
(2001); Silva (1996); Scherre et al. (2000).
Exemplo extraído do roteiro do filme Amores Possíveis (HALM, 2001, p. 130).
A exceção seria a peça Clube do Leque (1995), que se passa em uma cidade ficcional, mas se baseia nos
costumes cariocas.
Os dados foram levantados e codificados pelos bolsistas da UFRJ-PIBIC/CNPq, Monique de Oliveira
Dias de Jesus, Aline Santos da Silva e Felipe Gustavo Diogo Antonio.
Variação sociolingüística e teoria lingüística

Christina Abreu Gomes – UFRJ/CNPq


INTRODUÇÃO
O objetivo desse artigo é discutir o papel da variação sociolingüística e sua
relação com a teoria lingüística a partir de um modelo teórico que propõe a
centralidade da variação na gramática do falante. No texto Empirical Foundations
of a Theory of Language Change, Weinreich, Labov e Herzog (1975, p. 103)
mencionam claramente que qualquer avanço em qualquer campo da
Lingüística teórica é fundamental para o entendimento da variação e da
mudança. O modelo laboviano é um modelo que postula a variação como
parte do conhecimento lingüístico, embora não proponha uma arquitetura de
gramática em que os aspectos variáveis estejam capturados. No entanto,
estudos de diversas áreas da lingüística – aquisição, percepção, fonética,
incluídos os da sociolingüística – têm demonstrando que a variabilidade
observada na cadeia da fala tem papel fundamental no processamento, na
produção e na representação do conhecimento lingüístico
(PIERREHUMBERT, 2003). Os Modelos baseados no Uso (BYBEE, 2001;
PIERREHUMBERT, 2003) e o Modelo de Exemplares (JOHNSON, 1997)
provêem a base teórica para a postulação da variabilidade como central e sua
representação. Labov (2006) reforça a idéia de que a postulação da variação
inerente estava relacionada com a questão da mudança ao questionar a adoção
do modelo de exemplares para a modelagem de dados variáveis.
Serão apresentados dados de produção de crianças adquirindo o português
falado na comunidade de fala do Rio de Janeiro; dados que revelam que as
crianças são sensíveis à distribuição de variantes sociolingüísticas de sua
comunidade de fala e que a as diferenças observadas no estágio aquisitivo
podem fornecer pistas interessantes sobre a natureza do conhecimento
lingüístico. Faz-se necessário, portanto, a discussão do caráter central da
variabilidade lingüística na gramática, aí incluída a socialmente estruturada, em
relação à organização, à representação da linguagem e à sua contribuição para
questões teóricas centrais da Lingüística.
VARIAÇÃO E GRAMÁTICA NOS MODELOS
MULTIREPRESENTACIONAIS
De acordo com os Modelos baseados no Uso (PIERRENHUMBERT,
2003) a faculdade da linguagem apresenta propriedades probabilísticas
presentes na representação, no processamento, na mudança, na aquisição e na
produção. A gramática é definida como a organização cognitiva da experiência
do falante com a língua e aspectos dessa experiência têm impacto na
representação, aquisição e mudança lingüística (BYBEE, 2006). O modelo
probabilístico é aquele que serve para a resolução de problemas de tomada de
decisão sob incerteza. No caso dos dados lingüísticos, a distribuição
probabilística de qualquer unidade é atualizada através da experiência; o
conhecimento implícito de detalhes quantitativos da pronúncia e da estrutura
lingüística faz parte da competência, e se desenvolve cedo a partir de uma
predisposição inata de observar a fala. Para modelar esse conhecimento são
necessários dois ingredientes: um mapa cognitivo e uma representação análoga
da realidade física, conforme proposto no modelo de exemplares de Keith
Johnson. Memórias extremamente detalhadas da experiência são estocadas.
Essas percepções gradualmente preenchem uma região do mapa cognitivo
correspondendo a uma categoria ou rótulo. Uma categoria encontrada várias
vezes vai ser representada por numerosas memórias que povoam densamente
a região correspondente ao rótulo ou categoria. Categorias menos freqüentes
terão uma representação mais empobrecida. A classificação perceptual de um
novo dado é realizada por meio de uma regra de escolha estatística que
computa o rótulo mais provável dada a localização e a contagem de
distribuições competidoras, da região do novo dado. O mesmo modelo opera
na produção: a produção se realiza ativando uma sub-região do espaço de
exemplar para uma categoria. As propriedades agregadas dessa sub-região
servem como metas de produção do planejamento articulatório
(PIERREHUMBERT, 2001).
O léxico mental, memória dos itens lexicais adquiridos ao longo da vida, é
organizado em redes, isto é, os itens lexicais estão organizados em redes de
associações por similaridade fonética e semântica, em vez de constituírem uma
lista não estruturada de itens. As formas sonoras dos itens lexicais estão
representadas no léxico e constituem generalizações a partir da fala. Já a
Fonologia, conjunto de informações relativas à estrutura sonora abstrata da
língua, representa generalizações sobre as formas das palavras no léxico. A
Fonologia não é abstraída diretamente da fala, mas indiretamente por meio das
abstrações das formas estocadas no léxico mental. Trabalha-se, portanto, pelo
menos, com a hipótese de dois níveis de representação: um nível de
representação da forma fonética das palavras, abstraída das ocorrências do
input, e um nível mais abstrato de estruturas fonológicas abstraídas das formas
fonéticas estocadas. Essa proposição estabelece uma correlação hierárquica
entre os níveis de representação e entre léxico e abstração fonológica.
O modelo de exemplares oferece a adequação necessária para capturar a
variação sociofonética na gramática, ao contrário dos modelos clássicos que
estabelecem que a representação lexical abstrata é invariante (GOMES;
CRISTÓFARO-SILVA, 2004). Na representação por exemplares, o
conhecimento lingüístico armazenado é a memória da totalidade das
experiências lingüísticas dos falantes. Os falantes podem estocar e acessar
aspectos fundamentais para veicular significado, uma vez que são criadas
automaticamente na memória associações entre informação lingüística e lexical
expressas no sinal da fala, que podem ser processadas através do mapeamento
de padrões fonológicos não só em relação ao significado de uma ocorrência
particular como também em relação a outras dimensões como a identidade
social do falante (FOULKES; DOCHERTY, 2006).
Portanto, os modelos multirepresentacionais e o modelo de exemplares
apresentam uma postulação de arquitetura da gramática em que a variabilidade
é capturada e central e não o resultado de operações cognitivas que se aplicam
a uma base nuclear invariante. O modelo de exemplares permite que se
incluam na representação as informações indexadas associadas a variantes
sociolingüísticas, como idade, sexo, formalidade etc. Foulkes (2007) observa
que “exemplar models may therefore potencially be the best candidates for a
unitary acount of the disparate source of variation”. No entanto, os modelos
de exemplares foram propostos com base em um conjunto de evidências
obtidas em pesquisas de percepção da fala (PISONI, 1997; JOHNSON, 1997).
Portanto, há muito a ser feito do ponto de vista de evidências que envolvam o
funcionamento de tal modelo na produção ou mesmo como se dá a aquisição
lingüística tomando o modelo por base.
A lingüística contemporânea, principalmente a de base gerativista, cunhou
o primado da simplicidade formal no estabelecimento da gramática, no
entanto, com um mapeamento complexo para derivação de formas
superficiais. Já a postulação do modelo de exemplares implica numa
representação complexa, simplificando o processamento (GOMES;
CRISTÓFARO-SILVA, 2004).
VARIAÇÃO NA AQUISIÇÃO: REGRA/PROCESSO OU
PROPRIEDADES DISTRIBUCIONAIS DO INPUT
Tradicionalmente nos estudos sociolingüísticos a variação socialmente
estruturada tem sido referida como regra. Embora esse termo seja uma
herança do período em que o modelo foi proposto, observa-se que, embora
inerente, a variação assume um caráter de processo nos trabalhos, quer seja
pela postulação de interpretações invariantes para a representação subjacente,
como no caso da variação fonológica, quer seja pela adoção de modelos
teóricos que postulam a variação como periférica, como na sociolingüística
paramétrica. Por outro lado, se adotarmos um modelo de representação
complexo que contempla a variação, como o modelo de exemplares, está
implícito que a variação sociolingüística assume um caráter representacional
(GOMES; CRISTÓFARO-SILVA, 2004).
Evidências de estudos sobre aquisição podem contribuir para essa
discussão. Estudos de aquisição fonológica têm demonstrado que as crianças
se baseiam em informações distribucionais do input que afetam a acuracidade
de sua produção em relação ao alvo (VODOVIPEC, 2004), à ordem em que
segmentos e estruturas silábicas são adquiridos (ZAMUNER; GERKEN;
HAMMOND, 2005) e até mesmo às diferenças desenvolvimentais observadas
para as mesmas estruturas. Por exemplo, Gomes e outros (2006), em estudo
sobre a aquisição de estruturas fonológicas variáveis do português brasileiro,
observaram a realização do (r) em coda em dados de crianças entre 2 e 5 anos
de idade da comunidade de fala do Rio de Janeiro. Foi observado que as
crianças mantiveram os mesmos percentuais de realização da coda em
infinitivo verbal em qualquer período aquisitivo observado, em torno de 3% e
12%. Em outras palavras, não há informação robusta no input de realização da
coda final do infinitivo verbal que permita uma representação e conseqüente
produção com predominância da realização da consoante em coda. Nesse
caso, assume-se, como hipótese teórica, que a representação principal ocorre
em torno de uma sílaba CV nesses casos, diferentemente do que vemos nos
outros casos de (r) em coda (nominais em final de palavra e coda no interior
de palavra). A distribuição das ocorrências dos três tipos pode ser observada
no Gráfico 1, a seguir:
Gráfico 1 – Freqüência de CV(r) em função da classe morfológica e
posição por faixa etária

Um outro aspecto importante para a discussão em torno do caráter da


variação na gramática – central ou periférica; representacional ou processual –
é o status das variantes observadas no período aquisitivo. A questão é até que
ponto sua ocorrência reflete um processo observado na comunidade da fala,
ou representa um processo gradual de mapeamento da distribuição das formas
disponíveis no input à medida que abstrações são adquiridas. Guy e Boyd
(1990) apresentaram evidências de que as crianças só refletem a distribuição
dos condicionamentos do t/d deletion após adquirirem a categoria de passado
irregular do inglês. Os dados obtidos por Vieira (2006), em estudo sobre a
flexão variável de 3ª pessoa do plural em crianças revelam que, embora seja
possível identificar a ocorrência de formas flexionadas em crianças com idade
inferior a 3 anos, essas ocorrências não implicam necessariamente aplicação de
um processo ou regra variável, mas são um mapeamento de uma forma
possível apresentada na fala direcionada à criança. Utilizando o pacote
VARBRUL para o processamento estatístico dos dados, as produções da
criança proferidas subseqüentemente à ocorrência na fala do entrevistador
foram analisadas no grupo de fatores “efeito gatilho”, isto é, ocorrência de
flexão na presença ou na ausência de forma de plural na fala imediatamente
anterior do adulto.
Os exemplos a seguir ilustram a produção das crianças nas duas situações:
(1)
E: e onde que eles vivem?
Cr-15: eles vivem num sítio...
E: então lê pra mim, vai que... que eles estão fazendo?
Cr-15: táø correndo
(2)
Cr-31: Os tles porquinhos saílam de casa.
Os irmão dos porquinhos foiø pra casa.
Os resultados obtidos estão na Tabela 1 a seguir:
Tabela 1 – Efeito gatilho em função da faixa etária
1; 11 - 2;01 2;10 – 3;0 3;08 4;0 – 4;04 4;11 – 5;0
Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR
[sem gatilho] 7/41 17 .21 2/8 25 .30 0/13 0 42/85 49 .56 25/39 64 .70
[com gatilho] 19/19 100 4/4 100 -— 39/39 100 4/5 80 .84

Analisando os dados de crianças com idade até 3 anos, a distribuição das


ocorrências em função da presença/ausência de forma no plural antecedente,
vemos que a ocorrência da forma flexionada é categórica quando a forma de
plural está na fala imediatamente precedente, e é bastante incipiente quando a
criança não tem um modelo precedente. Portanto, as formas de 3ª pessoa do
plural observadas são, provavelmente, repetições da forma apresentada no
input à criança e não necessariamente a aplicação de um processo variável.
Tomasello (2000),11 observa que, nos estágios iniciais da aquisição, até que
algumas estruturas estejam efetivamente abstraídas pelas crianças, a ocorrência
de determinadas formas na fala das crianças pode ser um reflexo do que elas
ouvem. Somente a partir de um determinado estágio do período aquisitivo é
que a flexão passa a ser independente e pode refletir o mapeamento de formas
equivalentes no input, resultando numa gramática que incorpora a variabilidade
disponível no input.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São marcantes as contribuições que os estudos sociolingüísticos de base
variacionista têm trazido para a compreensão da mudança lingüística nos
últimos 40 anos. No entanto, constituem ainda campos importantes de atuação
e contribuição dos trabalhos a participação na discussão sobre a natureza do
conhecimento lingüístico e o papel da variação nos modelos teóricos que
servem como quadro de referência para a análise. Uma vez que se observam
tendências diversas de tratamento teórico dos dados, que vão desde a adoção
da teoria da Otimalidade, por exemplo, no estudo da variação fonológica, ou
de orientações funcionalistas ou gerativistas no estudo da variação e mudança
sintática, está claro que há posições diversas entre os variacionistas sobre a
relação entre variação e conhecimento lingüístico. Há, portanto, a
oportunidade de um debate enriquecedor entre os pesquisadores da área.
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phonology based on input: a closer look at the relation of cross-linguistic and
child language data. Lingua, [S.l.], n. 10, p. 1403-1426, 2005.
NOTA
“[...] human children in the ontogenetic period from 1 to 3 years of age are virtual ‘imitation machines’,
as they attempt to understand and reproduce virtually all of the activities they see in the culture activities
around them (CARPENTER; NAGELL; TOMASELLO, 1998). This early tendency towards imitative
learning in both non-linguistic and linguistic activities is perhaps best understood as the initial
ontogenetic expression of the human organism’s biological adaptation for culture” (TOMASELLO,
2000).
Reanálise da consoante em final de palavra: coda
ou ataque de núcleo vazio?

Dermeval da Hora – UFPB/CNPq


Juliene Lopes Ribeiro Pedrosa – UEPB/UFPB
INTRODUÇÃO
O fato de a coda silábica ser preenchida ou não contribui para
estabelecermos distinção entre as línguas, e aquelas que a preenchem nem
sempre contam com os mesmos segmentos. Outro fato interessante é
observarmos que algumas línguas apresentam codas com comportamentos
diferenciados, dependendo de sua posição, se interna ou final.
Uma classificação bastante usual, quando se trata do molde silábico das
línguas, é dizer que há dois tipos principais de línguas: aquelas que permitem
apenas sílabas abertas (CV) e aquelas que toleram tanto sílabas abertas quanto
sílabas fechadas (CVC).
O que nos interessa aqui é discutir o segundo grupo de línguas, dentre as
quais se situa o português brasileiro (PB), procurando avaliar se a coda
preenchida, neste molde silábico, tem o mesmo comportamento, quer na
posição interna, quer na posição final, e se estamos mesmo diante de uma
coda ou diante de consoantes que são, na verdade, ataques silábicos com
núcleos vazios.
A coda silábica no PB, sob a perspectiva variacionista, tem sido objeto de
estudo de alguns pesquisadores: Quednau (1993), Tasca (1999), Espiga (2003)
e Hora (2006) trataram da coda silábica preenchida pela lateral /l/; Votre
(1978), Callou, Moraes e Leite (1994), Monaretto (1992, 1997) e Skeete (1996)
discutiram a coda preenchida pelo rótico; Brescancini (1996, 2002) e Hora
(2000) trataram da coda preenchida pela fricativa coronal /s/. Das consoantes
do PB que ocupam a posição de coda, a nasal tem sido a menos trabalhada,
talvez devido a seu comportamento peculiar. Isto, inclusive, nos leva a não
considerá-la também neste estudo.
Os estudos supracitados estão voltados, cada um deles, para um tipo de
coda. Não houve a preocupação, e também este não era o objetivo, de verificar
o que existe em comum em seu comportamento. Reunindo resultados de
trabalhos desenvolvidos com base nos dados do Projeto Variação Lingüística
do estado da Paraíba – VALPB (HORA, 1993) voltados para as três codas /s,
l, r/, discutiremos se existe algo de comum entre elas.
Nossa hipótese de trabalho é que essas consoantes se comportam
diferentemente quando preenchem posições diferenciadas na coda. Isso, por
sua vez, tem implicações que levam a uma releitura da coda final. Para
respaldar nossas discussões, buscaremos apoio em Harris e Gussmann (1998)
e Ewen e Hulst (2001).
Para desenvolver a idéia proposta, este capítulo está assim estruturado: em
“A sílaba e a coda”, apresentaremos algumas noções que norteiam a posição
teórica escolhida; em “O comportamento das codas silábicas /s, l, r/ em
posição medial e final”, trataremos das codas selecionadas; em “Coda silábica:
análise”, esboçaremos a análise propriamente dita; e, em seguida,
procederemos às considerações finais.
A SÍLABA E A CODA
A partir de 1968, inúmeros estudiosos começaram a perceber a necessidade
de se voltar para a sílaba, alguns usando uma abordagem de fronteira
(MCCAWLEY, 1968; ANDERSON; JONES, 1974; CLAYTON, 1976;
HOOPER, 1976). Fudge (1969) e Kahn (1976) introduziram uma visão
hierárquica da sílaba e Shibatani (1973), Clayton (1976) e Hooper (1976)
defenderam a sílaba como a unidade das restrições fonotáticas.
Com o aparecimento da estrutura hierárquica, envolvendo não só a
estrutura silábica, mas também a estrutura prosódica mais alta, e a
desconstrução do segmento em termos de uma hierarquia das camadas de
traços, a proposta do Sound Pattern of English (SPE) foi substituída por uma
visão sobre as representações que favoreceram uma estrutura mais elaborada.
Na fonologia auto-segmental, a seqüência de segmentos foi substituída por
uma seqüência de pontos, chamados pontos esqueletais, que formavam os
pontos âncoras para os traços ou classes de traços. Nessa perspectiva, Nespor
e Vogel (1986) propuseram a organização hierárquica em sílabas, pés, palavras
prosódicas, grupos clíticos, frases fonológicas, frases entoacionais e
enunciados.
Ao identificar o número de sílabas, o falante está demonstrando seu
conhecimento acerca da arquitetura envolvida na sua realização. De um ponto
de vista fonético, cada sílaba tem um pico de sonoridade, isto é, um segmento
que é mais sonoro do que outro. Logo, a sonoridade é uma propriedade
relativa. Em termos auditivos, o pico de sonoridade é mais proeminente do
que os segmentos vizinhos, e forma o elemento silábico. No caso do
português, por exemplo, as vogais são inerentemente mais sonoras do que as
consoantes e só elas constituem o pico silábico. Entretanto, há línguas, como o
Inglês, em que os segmentos soantes podem ser o pico silábico.
Sobre a representação fonológica da sílaba, há propostas diferenciadas. A
selecionada aqui é a de Selkirk (1982), segundo a qual a sílaba pode ter os
seguintes constituintes: há uma divisão principal da sílaba em ataque12 e rima, e
a rima, por sua vez, se divide em núcleo e coda, conforme o Diagrama 1:
Diagrama 1 – Representação fonológica da sílaba
Fonte: Selkirk (1982)

Há concordância quanto a essa proposta, mas há posicionamentos


divergentes, quando se trata, por exemplo, da representação da coda.
Em análise realizada por Harris e Gussmann (1998), observando línguas
diversas em relação aos padrões silábicos, foi constatado que há línguas que
permitem o padrão CVC no interior da palavra, mas não o permitem no final:
Nós concluímos nossa comparação das análises da coda e do ataque das consoantes em final de
palavras voltando à questão tipológica que começamos em 2.1. Lá, notamos como a classificação
tradicional de línguas dos tipos ‘CV’ e ‘CVC’ é refutada pela distinção quadriforme que surge das
escolhas separadas que as gramáticas evidentemente fazem com relação às sílabas internas fechadas
e as consoantes finais (HARRIS; GUSSMANN, 1998, p. 30).
Para os autores, o reconhecimento das rimas ramificadas (domínio interno)
e o domínio final (sílabas fracas) como independentes permitem capturar a
tipologia VC de forma paramétrica simples:
Um parâmetro controla se ou não uma gramática permite ramificar rimas: OFF evita sílabas
fechadas. O outro controla se ou não um núcleo de domínio final é permitido permanecer vazio: se
ele é OFF, então toda palavra na língua deve terminar em uma vogal; se é ON, a língua permite
consoantes finais. A interseção desses dois parâmetros independentes é mostrada no Quadro 1:

Quadro 1 – Adaptado de Harris; Gussmann (1998, p. 30)

Em vista do exposto, os autores concluem que a consoante final não é uma


coda, mas constitui o ataque de uma sílaba que contém um núcleo vazio.
O COMPORTAMENTO DAS CODAS SILÁBICAS /s, l, r/ EM
POSIÇÃO MEDIAL E FINAL
Os dados que serviram de base para as análises apresentadas nesta seção
foram os do VALPB, cujos informantes, perfazendo um total de 60, estão
estratificados segundo sexo, faixa etária e anos de escolarização, todos
oriundos da comunidade de João Pessoa/PB. A análise quantitativa foi
realizada com o pacote de programas VARBRUL (PINTZUK, 1988).
Coda fricativa coronal /s/
Para a análise da fricativa coronal, utilizaremos os resultados de Hora
(2003) sobre a coda medial e os de Ribeiro (2006) sobre a coda final.
Os dados de Hora (2003) revelam que a coda fricativa coronal, em posição
interna, não se apresenta de forma homogênea, pois ora se realiza como
alveolar [s, z]: e[s]fera, re[z]vala, ora como palatal palatal [ʃ, ʒ]: go[ʃ]to, de[ʒ]de
e, em contextos sonoros, ainda poderá se mostrar enfraquecida [h]: me[h]mo,
de[h]de. O apagamento dessa coda, uma outra variante possível, contudo, é
improdutivo, ocorrendo especificamente, no caso do corpus avaliado, apenas
com o me[Ø]mo.
É importante mencionar que no corpus observado por Hora (2003), a
ocorrência da palatal ou da alveolar está condicionada ao contexto fonológico
seguinte, como em (1):
(1)
pa[s]ta                            de[z]de
go[s]to                            re[z]vala
le[s]te                              a[z]no
ca[s]ca                            me[z]mo
e[s]fera                            de[z]leixo
No falar paraibano, a presença da coda palatal só se realiza quando o
contexto seguinte é uma oclusiva dental; nos demais casos, a variante
selecionada é, quase sempre, a alveolar.
Assim, quanto ao uso, há uma predominância da alveolar, seguida pela
palatal, com poucos casos da glotal e do apagamento, conforme apresentado
no Gráfico 1, a seguir:
Gráfico 1 – Comportamento do /s/ em coda medial
Diante das poucas ocorrências da glotal (6%) e do apagamento (1%), Hora
(2003) optou por fazer uma análise contrastiva apenas entre a fricativa alveolar
e a palatal, para determinar o contexto de uso dessa última.
A variação do /s/ na coda final, segundo Ribeiro (2006), também se
apresenta sob a forma alveolar [s,z], palatal palatal [ʃ, ʒ] e glotal [h]. Diferente
da coda interna, o apagamento é bastante produtivo, como comprovamos no
Gráfico 2:
Gráfico 2 – Comportamento do /s/ em coda final

Devido à pouca freqüência de uso das palatais e glotais, Ribeiro (2006)


preferiu amalgamá-las com as alveolares, formando dois grandes blocos: a
presença da fricativa (alveolar, palatal ou glotal) e a sua ausência (apagamento),
resultando em 75% de preservação e 25% de apagamento da coda final.
Os dados mostram que o comportamento da coda interna não é
semelhante ao da coda final, visto que temos realizações diferenciadas para
cada posição ([s, z, ʃ, ʒ, h] para a coda interna e [s, z, ʃ, ʒ, h e Ø] para a coda
final).
Além desse fato, o comportamento dessas realizações também não é
homogêneo, já que o apagamento é presente na posição final, mas não é aceito
na coda interna e a ordem das restrições também é diferenciada entre as duas
posições.
Coda lateral /l/
Do conjunto de dados coletados do VALPB,13 foram detectadas 3.703
ocorrências da lateral em posição de coda, cuja realização se distribui nas
seguintes variantes: (a) 3.109 casos de vocalização [w] (84%); (b) 583 casos de
apagamento [Ø] (15,6%); (c) oito casos de aspiração [h] (0,2%); e (d) três casos
de velarização [ł] (0,1%), como no Gráfico 3:
Gráfico 3 – Comportamento do /l/ em coda medial e final

Considerando o baixo índice de ocorrência das variantes aspiradas e


velarizadas, constatamos que a relação variável está mais direcionada à
vocalização e ao apagamento.
Contudo, deve-se observar que a realização das variantes mencionadas não
é a mesma para a coda em posição medial e final. Comprovamos, nos dados,
que a variante aspirada [h] ocorre no interior de palavra e o apagamento ([Ø]),
principalmente no final de palavra, restringindo seu uso medial à presença das
vogais posteriores como contexto precedente, a exemplo do Quadro 2:
Quadro 2 – Distribuição das variantes da lateral /l/ em coda
Variantes Posição Exemplos
Interior de palavra pa[w]co
[w]
Final de palavra jorna[w]
[Ø] Interior de palavra (precedido por /u/, /o/ ou /ó/) cu[Ø]pa
Final de palavra to[Ø]do
pó[Ø]vora
pape[Ø],azu[Ø]
pa[h]co
[h] Interior de palavra
fa[h]ta
Interior de palavra pa[ł]co
[ł]
Final de palavra jorna[ł]

Da descrição apresentada, reforçamos que o /l/ apresenta comportamento


bastante distinto se em coda medial ([w,h,ł]) ou final ([w,Ø,ł]). E que as
variantes mais produtivas são a vocalização e o apagamento.
Coda rótica /r/
No levantamento referente ao rótico no corpus do VALPB, analisamos
separadamente as duas posições da coda: final e interior de palavra.
Em posição de coda no interior da palavra, foram encontradas cinco
realizações fonéticas. Das 4.595 ocorrências registradas, 3.998 foram para
realizações a aspiração [h] – (87%), como em ca[h]ta; 457 foram para o
apagamento [Ø] – (10%), como em fo[Ø]ça; 48 para o tepe [r] – (1%), como
em pa[r]do; 66 para o glide posterior [w] – (1,4%), como em ne[w]vosa; e 26
para o glide anterior [j] – (0,6%), como em po[j]ca.
Os resultados obtidos mostram que as variantes mais produtivas são o
rótico aspirado e seu apagamento, embora este último esteja condicionado às
fricativas em contexto fonológico seguinte, como podemos comprovar em (2)
e melhor visualizar no Gráfico 4:
(2)
ce[h]veja      ~ ce[Ø]veja
ga[h]fo        ~ ga[Ø]fo
go[h]jeta      ~ go[Ø]jeta
ma[h]cha     ~ ma[Ø]cha

Gráfico 4 – Comportamento do /r/ em coda medial


Das variantes encontradas, apenas duas ocorrem em posição final, a
aspiração e o apagamento, tal como em (3):
(3)
ma[h] #                    ~ ma[Ø]#
tumo[h]benigno       ~ tumo[Ø]benigno
ma[h]calmo             ~ ma[Ø]calmo
da[h]sugestões         ~ da[Ø]sugestões
Os exemplos em (3) demonstram que o contexto seguinte, se vazio ou
preenchido por uma consoante, correlaciona-se à variação entre a aspirada e o
apagamento.
O Gráfico 5 permite melhor visualização dos resultados obtidos para essas
duas variantes. Das 11.492 ocorrências, 10.471 foram para o apagamento
(91%) e 1.021 para a aspiração (9%):
Gráfico 5 – Comportamento do /r/ em coda final

Do total de ocorrências, 350 foram analisadas separadamente, uma vez que


elas tinham como contexto seguinte uma vogal, favorecendo o processo de
ressilabação. Implicando, portanto, em surgimento de um ataque no lugar da
coda silábica. Casos como “mar”, se seguido de um item lexical iniciado por
vogal, podem resultar em, por exemplo, “ma[r]alto” ou, de forma menos
freqüente, em “ma[Ø]alto”.
Podemos constatar, a partir dos resultados apresentados, que o rótico em
coda se apresenta de forma inversa a depender da posição que a sílaba ocupa
no vocábulo. A coda medial favorece o rótico aspirado [h] em detrimento do
seu apagamento [Ø], já a posição de coda final favorece o apagamento do
rótico [Ø] em detrimento da sua aspiração [h].
CODA SILÁBICA: ANÁLISE
As descrições apresentadas na seção anterior levam-nos a constatar que
existe, de fato, comportamento diferenciado, quando se trata do
preenchimento da coda nas posições interna e final. Essa constatação leva-nos
a resumir, no Quadro 3, o comportamento da coda no falar paraibano:
Quadro 3 – Representação da coda silábica
Tipo de coda
Interna Final
Posições
/s/ [s] [z] >> [ʃ] [ʒ] [s] >> []
/l/ [w] >> [Ø] [w] >> [Ø]
/r/ [h] >> [Ø] [ø] >> [h]

O Quadro 3 apresenta as variantes mais produtivas em cada posição, sendo


observada a ordem de dominância entre elas, expressa pelos colchetes
angulares duplos.
Coda silábica: posição interna
A coda, em posição interna, apresenta comportamento diferenciado entre
si, permitindo que a separemos em dois grupos: de um lado, a coda fricativa;
de outro, a líquida.
A coda fricativa, pela sua natureza obstruinte e pelo seu caráter consistente
de consoante, se considerarmos a escala de força, é sempre mantida, o que não
acontece com a líquida.
A variação presente na fricativa envolve seu ponto de articulação. As
fricativas coronais anteriores alveolares são as mais freqüentes, seguidas das
fricativas coronais anteriores palatais e, por fim, as fricativas posteriores
glotais, que aconteceram nos itens mesmo ~ me[h]mo e desde ~ de[h]de. Isso
nos mostra uma tendência à perda do ponto de articulação, o que, de certa
forma, demonstra um enfraquecimento da fricativa coronal nessa posição.
No caso da líquida, por sua natureza maleável, e também pela sua
proximidade às vogais na escala de força, há tendência ao enfraquecimento e
também à semivocalização, culminando, a depender do contexto fonológico
precedente ou subseqüente, em seu apagamento.
O que restringe o apagamento da líquida vibrante é a presença da
consoante fricativa em posição subseqüente, como em “garfo, curva, curso,
várzea, marcha, gorjeta”, implicando seu apagamento.
No caso da líquida lateral, é a vogal precedente, a exemplo de “culpa,
toldo” que desencadeia o apagamento, uma vez que sua semivocalização gera
ditongos constituídos de segmentos homorgânicos, que, no caso do Português,
são proibidos.
Para as líquidas, quer vibrante quer lateral, importa observar que papel
fundamental para o apagamento desempenha a saliência fônica. Em ambos os
casos, quanto maior for a saliência entre os segmentos adjacentes, maior será a
chance de sua manutenção, quanto menor a saliência, maior a probabilidade de
seu apagamento.
Coda silábica: posição final
Retomando o Quadro 3, observamos que, em posição final, há uma
tendência de a coda apagar, independentemente de sua natureza fonológica, se
fricativa ou líquida, o que demonstra a debilidade da coda nessa posição.
No caso da coda líquida lateral, constatamos uma dominância de uso da
semivogal em relação ao apagamento. Observamos, mesmo assim, que a coda
consonantal é evitada, o que nos leva a supor que a posição final não é
propícia à coda consonantal.
É importante ressaltar que alguns estudiosos preferem analisar a semivogal
dentro do núcleo e não na posição de coda, considerando essa estrutura
silábica aberta.
A coda líquida vibrante, por sua vez, apresenta-se predominantemente
apagada na posição final, ratificando a preferência por estruturas silábicas sem
coda, já que o uso da fricativa implicaria em coda consonantal.
Os resultados da fricativa coronal, à primeira vista, seriam um argumento
contrário à nossa hipótese pela restrição à coda consonantal em posição final,
pois o uso da alveolar domina o apagamento.
Contudo, acreditamos ser esse fato que corrobora a não-preferência por
coda em posição final. Isso porque teríamos duas possibilidades de análise da
consoante final: uma seria o seu apagamento, priorizando as sílabas CV e a
outra seria entender essa consoante como ataques silábicos de núcleo não
preenchido foneticamente, ou seja, ambas conduzem ao mesmo resultado: não
haver coda consonantal final.
A proposta de se analisar as línguas não só por seu molde CVC ou CV, mas
também pela posição que as sílabas ocupam na palavra (EWEN; HULST,
2001) e de que a sílaba pode apresentar um ataque com núcleo foneticamente
não preenchido (HARRIS; GUSSMANN, 1998) ganham força com os
resultados da coda /s/.
Segundo Hyman (1985), a sílaba pode ser constituída por unidades de peso
ou moras, denominação proposta por Trubetzkoy no Círculo Lingüístico de
Praga. Por essa concepção, a consoante de início de sílaba (ataque) não possui
uma mora independente, não interferindo, assim, no peso da sílaba. Além do
mais, de acordo com essa teoria, a duração é uma propriedade independente
das outras propriedades do segmento, permitindo, dessa forma, uma
reassociação entre os segmentos, como no caso de um apagamento do
segmento na sílaba.
Argumentamos, contudo, que as consoantes fricativas, por serem
contínuas, poderiam ter o seu tempo prolongado e, por conseguinte, poderiam
formar um ataque de uma sílaba cujo núcleo não é preenchido foneticamente,
já que, com o prolongamento da consoante, o tempo silábico seria atendido,
podendo o núcleo estar vazio.
Tal idéia é comprovada pela epêntese que acontece em algumas realizações
dessa fricativa: mai[zi], dói[zi], deu[si], uma variante presente em nossa
realidade lingüística.
Outro reforço para a nossa hipótese vem da descrição estruturalista de
Camara Jr. (2002). Segundo esse autor, os nomes terminados por consoantes
no singular, dentre eles os nomes que possuem o /s/ em coda final,
corresponderiam a uma forma teórica com um tema de vogal e: *paze, *felize.
Na realidade, por essa proposta, as codas finais /s/ já seriam relidas como
ataques de núcleo vazio ou teórico, que seriam efetivamente preenchidos na
formação de plural.
Assim, diante desses indícios temos argumento para repensar a condição
de coda final do /s/, deixando essa proposta aberta a sugestões e discussões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, buscamos comprovar alguns argumentos sobre
o comportamento diferenciado entre as codas interna e final, utilizando dados
referentes às codas /s, l, r/ na fala pessoense.
Através desses dados, conseguimos visualizar que, nesse dialeto, há
preferência pelo não preenchimento da coda, principalmente por consoantes,
corroborando o fato de que essa é a posição mais débil da sílaba.
A posição de coda interna, por ser, muitas vezes, contrastiva (poste – pote,
talco – taco, termo – temo), apresenta forte tendência ao enfraquecimento ou
à semivocalização, permitindo até o apagamento em contextos menos
salientes.
A coda final não guarda contraste e é a posição mais débil tanto da sílaba
quanto da palavra, reforçando o seu apagamento. Os dados revelam que a
variante zero é comum aos três segmentos, sendo bastante produtiva com a
coda /r/. No caso da coda /l/, só é dominada pela semivocalização, que pode
ser analisada como elemento do núcleo e não da coda. O caso da coda /s/, no
entanto, apresenta um maior uso da variante alveolar do que a variante zero,
embora esta também seja produtiva.
A coda fricativa coronal /s/ permite a reanálise da consoante final como
ataque de um núcleo foneticamente não preenchido, que pode, em outro
momento, ser preenchido por uma vogal, como atestam os casos encontrados
no dialeto estudado.
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NOTAS
Para Camara Jr. (2002, p. 53), o ataque corresponde à fase crescente da sílaba e a coda corresponde à
decrescente. O núcleo é o ápice da sílaba.
O levantamento dos dados sobre a lateral, sua codificação e armazenamento, foram executados pelo
bolsista de Iniciação Científica (CNPq), Elton Jones Barbosa Andrade (2003).
A variação lingüística no Brasil

Dercir Pedro de Oliveira14 – CPTL/UFMS


Os estudos variacionistas no Brasil, com vestimentas diferentes, são
resultados de pesquisas que datam da segunda metade do século XIX, já com
alguma sistematicidade, pois, como diz Silva Neto (1976, p. 73), nossos
filólogos só se têm ocupado com peculiaridades regionais e comparações entre
as pronúncias lusitana e brasileira.
Este texto tem por objetivo mostrar que a diversidade lingüística está
presente no português do Brasil desde a sua formação e que, há algum tempo,
estudiosos se preocupavam em descrever as variações de forma genérica e,
posteriormente, nos meados do século XX, as análises já apareciam de modo
sistemático. Isto ocorre com a dialetologia e, depois, com a sociolingüística.
A variação lingüística que foi, primeiramente, objeto de estudo da
dialetologia e, muito mais tarde, da sociolingüística, resultado de inúmeras
influências raciais de povos que para cá vieram, e dos que aqui habitam,
aparece já na época do descobrimento, pois os colonizadores, segundo Silva
Neto (1976, p. 235) “vinham de todas as partes de Portugal, de modo que
refletiam as várias peculiaridades dialetais portuguesas, que, no Brasil, em
contato e interação se fundiram num denominador comum, de notável
unidade”.
A diversidade lingüística não é fato de descoberta recente, embora ainda
haja afirmações controvertidas em relação ao seu estudo. Alguns estudiosos,
mesmo que com ênfase no léxico, já se preocupavam com aspectos dialetais no
começo do século XIX. Isto para citar apenas os estudos da língua portuguesa.
De modo sistemático, apesar de os estudos dialetológicos terem surgido no
século XIX, a variação lingüística começa a ser objeto de investigação
científica com o advento da Dialetologia no Brasil com Rossi (1963) e seus
colaboradores ao elaborarem o Atlas Prévios dos Falares Baianos. Posteriormente,
na década de 1960, surge a Sociolingüística. Ressalte-se que já em 1958 Fischer
discutia a correlação de variáveis independentes para realizar pesquisas
variacionais.
Dermeval da Hora (2003, p. 73) afirma que:
A variação lingüística agora ainda é de interesse exclusivo dos sociolingüistas, embora isto esteja
rapidamente mudando. Outros campos da lingüística e particularmente da lingüística histórica têm-
se beneficiado da aplicação sistemática da noção de variação, então, passa a ser vista não como algo
aleatório, mas como subsistemas em competição e heterogeneidade estruturada.
Os estudos variacionistas, baseados na teoria laboviana, apesar dos pesares,
é o que têm permitido apresentar uma descrição mais estruturada da variação.
Tais estudos têm sustentação na regra variável em oposição à categórica; nas
variáveis dependentes e independentes, lingüística e extralingüística; e, por fim,
no tratamento estatístico que permite a correlação entre as variáveis. Ressalte-
se que, nos estudos variacionistas, passar da variação para a mudança é só uma
questão de tempo. Às vezes, muito tempo.
Hora (2003), referindo-se a Weinreich, Labov e Hezgog (1968) afirma que:
Para os autores, uma teoria de mudança deve lidar com o modo como uma comunidade é
transformada no curso do tempo, de forma que, em algum sentido, tanto a língua como a
comunidade permaneçam as mesmas, mas a língua adquira uma forma diferente.
A importância de buscarmos a sistematização dos estudos variacionais com
o estabelecimento de teorias, com sustentação argumentativa a toda e qualquer
prova, deve-se à origem da língua portuguesa falada no Brasil, cujo trajeto
histórico nos mostra uma fotografia dos dialetos, falares, sotaques, espécies de
linguagem, empréstimos, influências indígenas e negras, e, ainda, da
identificação das classes sociais e atividades profissionais, realçando as relações
interpessoais por meio da língua geral, dos crioulos, tudo com reflexo nas
diferentes manifestações lingüísticas utilizadas atualmente. Acrescente-se tudo
isso ao país continental que é o Brasil.
Em seu livro Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, Silva Neto
(1976) faz ponderações acerca do início da comunicação lingüística no Brasil.
Transcrevo, a seguir, alguns dados informativos a título de exemplificação.
Examine, pois:
a) Como se vê, há muitas semelhanças entre o português dos índios e o português dos negros. Isso
é, aliás, bem natural, pois tanto o índio como o negro, em atrasado estágio de civilização,
aprenderam o português como língua de emergência. (p. 36)
b) A língua geral, pelo contrário, era simples e de reduzido material morfológico; não possuía
declinação nem conjugação. Tinha o aspecto de língua de necessidade, criada para intercâmbio” p.
50 “[...] a língua geral (ou seja o Tupi) usada pelos índios que conviviam com os brancos e
mamelucos em suas relações com o gentio. (p. 121)
c) Na fonética, há dois exemplos expressivos. Um é o caso da iotização de [λ] (pronúncias como
muié, maiada) que igualmente se dá nos crioulos de Cabo Verde, da Guiné, nas Ilhas do Príncipe e
de São Tomé [...]. No nosso caso particular e histórico, observamos que os aloglotas (mouros, índios
e negros) se mostraram sempre incapazes de pronunciar [λ]. O segundo caso é o caso da não
pronúncia do [s] final, característica dos falares rurais brasileiros: “os livro”, “as mesa” (falares rurais
brasileiros: aldeias, acampamento militar, quilombo e fazendas). Vestígio do crioulo colonial.
d) “Também no que refere a grande parte dos fatos fonéticos existe unidade expressiva”.
[οw] >[ο] poco, compro
Essa redução comum aos dialetos de Damão, Goa, Ceilão, Macau, Cabo
Verde, Guiné, representa extensão de fato já conhecido no português lusitano.
Observe:
[ej] > [e] bandera, berada
[ʎ] > [i] cuié, atrapaiá
Esse fato é característico dos crioulos. Por exemplo, ainda:
[nd] > [n] tomano, comeno
O [r] final desaparece como em:
Falá, fazê, amô
e) Na sintaxe, do mesmo modo, ocorrem fatos comuns a nossos falares rurais e ao linguajar das
classes urbanas mais modestas. Entre os mais típicos:
1) ter no lugar de haver;
2) preposição em com verbo de movimento;
3) mim como sujeito de orações infinitas (p.142).
O exame do trecho transcrito nos mostra que, tomando a chamada norma
culta como referência, a modalidade falada do português do Brasil atual, no
que respeita à linguagem popular, é muito semelhante ao crioulo colonial,
remontando aos séculos XVI e XVII. Assim, as variações e mudanças
ocorridas no português do Brasil são motivadas, como já dito, pelas diferentes
procedências dos portugueses que para cá vieram (Minho e Douro) e pela
presença de diferentes raças que habitavam o país nos primórdios, tais como
índios, negros e árabes que necessitaram de uma língua – emergencial, com
simplificação estrutural – para poderem comunicar-se. Além disso, Lucchesi
(2003, p. 281), na formação do PB, observa que: “O ponto de partida de todo
processo de transmissão lingüística irregular15 desencadeado pelo contato entre
línguas é a perda da morfologia flexional na aquisição inicial da língua alvo por
parte de falantes de outras línguas”.
A sociolingüística tem mostrado ao longo dos anos que fortes argumentos
para as variações lingüísticas do português do Brasil estão centrados na própria
constituição da língua. Justificativas para uma ou outra realização fazem parte
da sua origem. As diferentes atualizações da língua, que, em muitas
circunstâncias, batem de frente com as normas gramaticais, devem-se, como
diz Cunha (1986, p. 71), ao que se segue:
Foi pela organização rural que começou o Brasil; antes de possuir cidades possui engenhos,
fazendas, sítios. A classe que tomou feição aristocrática ou de nobreza situava-se no mundo rural;
vinha dos engenhos, das fazendas, dos sítios; e era ela que impunha as sedes administrativas
[...]Bahia, a velha capital da Colônia, e o Rio de Janeiro do domínio português jamais constituíram
centros irradiadores de culturas comparáveis a México e Lima, que, então, rivalizaram em esplendor
com Toledo, Madrid ou Sevilha.
Nesta passagem, Cunha nos encoraja ainda mais a aceitar o português do
Brasil, com suas características fonéticas, morfológicas, lexicais e sintáticas, até
certo ponto independentes do português europeu; portanto, com suas
peculiaridades locais e distantes da língua dos acadêmicos de Coimbra, dos
escritores d’além mar, de membros mais sofisticados da Corte, enfim do
purismo exacerbado, que, inegavelmente, impede a comunicação. Em
decorrência disso, pode-se deixar de lado o caráter situacional da linguagem.
A sociolingüística e a dialetologia têm-se debruçado nos estudos
variacionais, visando à identificação e à sistematização dos fatos lingüísticos,
relacionados ao uso do português do Brasil. Dos estudiosos mais antigos tais
como, Paranhos da Silva (1879), Amaral (1922), Marroquim (1934), dentre
outros, para os mais recentes, como Rossi (1963), Braga (1986), Tarallo (1983),
Mollica (1977), apenas para citar alguns, pode-se dizer que a diversidade
lingüística do português está, de certo modo, bem descrita. Ressalte-se, porém,
que a pesquisa lingüística é como a verdade, deve-se buscá-la sempre.
Embora constitucionalmente o Brasil seja considerado um país
monolíngüe, pelo que já foi escrito neste texto e pelos trabalhos de
dialetólogos e sociolingüistas, a homogeneidade lingüística brasileira, não por
motivos óbvios, corresponde à realidade.
No que respeita ao obrigatório reconhecimento da diversidade dialetal,
Mattos e Silva (2004, p. 69) afirma que:
São reconhecidas pelos brasileiros as entonações típicas de diversas áreas do Brasil; as realizações
variadas das pretônicas que opõem, grosso modo, Norte e Sul do Brasil; marcam paulistas por
oposição a cariocas as sibilantes implosivas, aquelas com realizações predominantemente sibilantes,
e estas com realizações chiantes; opõem certas áreas, sobretudo do Sul, em relação ao resto do
Brasil, a inexistência da distinção entre duas realizações do r intervocálico, um anterior outro
posterior e assim por diante.
A exposição acima faz referência às variações fônicas, como diz a
pesquisadora, de maneira nada sofisticada. Há de se considerar, por outro lado, as
variações lexicais e sintáticas, que, num estudo quantitativo, estarão centrados
no cruzamento das variáveis dependentes lingüísticas com as variáveis
extralingüísticas, principalmente, escolaridade, faixa etária, origem, sexo e
classe social.
O estudo da variação lingüística, dadas as suas características continentais,
exige, no aspecto lexical, um estudo muito criterioso a partir das múltiplas
influências: português europeu, negros, índios, no período de formação, e
italianos, espanhóis, poloneses, alemães, no período da colonização.
Obviamente, onde existem quilombos, aldeias e colônias, as influências e os
empréstimos têm alta freqüência. Apenas para exemplificar, vejamos algumas
manifestações lexicais de algumas regiões brasileiras:
a) No Sul: galopito, ginete, changueiro, campeiraço, gaúcho, tchê, gaudério, gaitero, china, pampa,
coxilha, bergamota, carafá, muchacho, mirar, vaquejada, cincha, cochomilho, ilhapa, lonanco;
b) No Nordeste: aipim, macaxeira, baitola, chué, berimbau, tapioca, dendê, araçá, agogô, acarajé,
orixá, caatinga, mugunzá, cacimba, lapiana, pinchar;
c) No Centro-Oeste: matula, chamamé, sesta, chalana, mangaba, siriema, mutum, guavira, piúva,
tuiuiú, gueirova, bolicho, curicaca, quebra torto, buenas, varadouro, tropim, tijuco, putiã, piroga,
gambira, funda;
d) No Sudeste: marimba, quitanda, muxiba, bocó, canindé, pacaembu, biguá, maracanã, gariroba,
guariroba, tiririca, baguassu, cajuru, caipira, cachaça, bruaca, chupeta, cumbuca.
Ressalte-se que se deve levar em conta, igualmente, a produtividade lexical
oriunda de mecanismos de criação léxica, tais como os processos derivativos e
compositivos, abreviações, linguagem figurada etc.
De outra parte, Marroquim (1996, p. 122) afirma que:
A luta entre a língua culta e o dialeto se processam no campo da sintaxe. A primeira recebe o léxico
variadíssimo de uso popular, como um enriquecimento vocabular aproveitável e aproveitado. É
intransigente, porém, quanto à sintaxe, pois é ela a estrutura viva da língua; é na sua articulação que
reside a alma e o caráter do idioma [...] já algumas formas sintáticas dialetais firmaram-se de tal
forma na linguagem de todas as classes, que estão entrando na literatura.
O português do Brasil tornou-se, na sintaxe, já há algum tempo, uma
língua de tópico, conforme Oliveira (1996), por meio do deslocamento do
objeto ou do circunstante, e, ainda, pela reiteração do sujeito. A construção de
tópico aparece com o mecanismo da topicalização e do deslocamento à
esquerda. Observe, pois:
A bicicleta eu comprei-a na loja.
A bicicleta eu comprei na loja.
O professor ele é incompetente.
Com a caracterização do PB como língua de tópico, sua classificação
topológica passaria a ser TSVO.
Alguns aspectos sintáticos, fazendo um contraponto com a gramática
tradicional, ressaltam a diversidade do PB, que, de certo modo, está presente
em todo o país. Veja-se:
a) Pronome reto como objeto:
Chame ele pra mim.
b) Construção com objeto nulo:
Comprei ontem cedo na quitanda.
c) O pronome “mim” como sujeito do infinitivo:
É pra mim fazer o trabalho.
d) Seqüência lingüística com ter existencial:
Tem reunião de departamento amanhã cedo.
e) A expressão “a gente” em substituição ao pronome “nós”:
A gente faz a proposta.
f) Começo de frase com pronome oblíquo:
Me dá um dinheiro aí.
g) Construção passiva com verbo no singular e sujeito no plural:
Conserta-se relógios.
h) Sintagma nominal com pluralização apenas do determinante:
Os aluno estudioso.
i) Verbo de movimento com a preposição em:
Cheguei na cidade.
j) Enfraquecimento da flexão:
Tu
Ele           foi
Nós
Eles
l) Relativa com pronome lembrete:
A aluna que eu falei com ela, mora no sítio.
Essas realizações variacionais sintáticas são mais presentes na modalidade
falada, observados contexto e situação. Uma ou outra forma faz parte,
também, da modalidade escrita.
Em Como falam os brasileiros, Leite e Callou (2002, p. 57) afirmam que:
A variação existente hoje no português do Brasil, que nos permite reconhecer uma pluralidade de
falares, é fruto da dinâmica populacional e da natureza do contato dos diversos grupos étnicos e
raciais nos diferentes períodos da nossa história. São fatos dessa natureza que demonstram que não
se pode pensar no uso de uma língua em termos de “certo” e “errado”, “bonita” ou “feia”.
De acordo com o trecho transcrito não existe na linguagem falada
realizações que não tenham uma trajetória histórica. Nada surge do nada e a
sociolingüística e a gramática histórica, principalmente, têm procurado mostrar
isso. Assim é que existem variantes de prestígio e variantes estigmatizados ou,
ainda, as chamadas variantes padrão e variantes não-padrão.
Por fim, o encerramento dessas considerações sobre a variação lingüística
no Brasil se dá com o que diz Cunha (1986, p. 79):
Nenhuma língua permanece uniforme em todo o seu domínio e ainda num só local apresenta um
sem-número de diferenciações de maior ou menor amplitude. Porém essas variedades de ordem
geográfica, de ordem social e até individual – pois cada indivíduo tem o seu idioleto, como hoje se
diz, isto é, procura utilizar o sistema idiomático da forma que melhor lhe exprime o gosto e o
pensamento – essas variedades, repisemos, não prejudicam a unidade superior da língua nem
influem na consciência que têm os que a falam diversamente de se servirem de um mesmo
instrumento de comunicação, de manifestação e de emoção.
Depois de tudo o que foi dito ao longo do texto, é imperioso afirmar que
as descrições sociolingüísticas, principalmente as que têm por base a Teoria da
Variação Laboviana e as elaborações dos Atlas lingüísticos regionais e do
Brasil, darão cabo das diversidades lingüísticas do Brasil já em circunstâncias
bem avançadas.
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1968. p. 97-195.
NOTAS
Professor titular de Lingüística e Língua Portuguesa, do Departamento de Educação, do Campus de Três
Lagoas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil.
O conceito de transmissão lingüística irregular é aqui tomado para designar processos de contato
massivo e prolongado entre as línguas, nos quais a língua do segmento que detém o poder político é
tomada como modelo de referência para os demais segmentos. [...] Quando uma grande população de
adultos em muitos casos falantes de línguas diferenciadas e mutuamente ininteligíveis – é forçada a
adquirir uma segunda língua emergencialmente [...].
Restrições de natureza cognitivo-comunicativa:
marcação versus expressividade retórica em
fenômenos variáveis

Edair M. Gorski – UFSC


Maria Alice Tavares – UFRN
Raquel Meister Ko. Freitag – UFSC
INTRODUÇÃO
Valendo-nos de preceitos da sociolingüística variacionista (WEINREICH
et al., 2006; LABOV, 1972, 1994, 2001) e do funcionalismo lingüístico norte-
americano (GIVÓN, 1979, 2001, 2002), analisamos fenômenos de variação
lingüística envolvendo duas categorias gramaticais ou, nas palavras de Givón
(1984), “domínios funcionais”: a coordenação em relação de continuidade e
consonância, e a expressão do passado imperfectivo. Abordamos tais fenômenos sob a
ótica da função desempenhada pelas variantes e aplicamos princípios e
categorias do funcionalismo na interpretação dos resultados, alinhando-nos a
uma vertente de pesquisa referida por Neves (1999) como
“sociofuncionalismo”. Postulamos, pois, que a dimensão lingüística da variação
pode ser explicada pela atuação de princípios funcionais de base cognitivo-
comunicativa que regem a língua e contribuem para o direcionamento da
implementação da variação e da mudança. Interessa-nos, neste texto, discutir
dois desses princípios: o de marcação (GIVÓN, 2001, 2002) e o de expressividade
retórica (DUBOIS; VOTRE, 1994).
Com o propósito de contribuir para as discussões acerca do poder
explanatório desses princípios, trazemos resultados referentes a grupos de
fatores de natureza lingüística: relações semântico-pragmáticas e níveis de articulação
para o caso da coordenação em relação de continuidade e consonância, e
extensão da situação e polaridade para o caso do passado imperfectivo.
Os dados analisados são oriundos do projeto VARSUL16/Florianópolis,
estratificados segundo o sexo, a escolaridade (quarta série do ensino
fundamental, oitava série do ensino fundamental, ensino médio completo) e a
idade (9 a 12 anos, 15 a 21 anos, 25 a 45 anos, mais de 50 anos). Para o
primeiro fenômeno foi analisada uma amostra de 48 informantes, 12 por faixa
etária; para o segundo, 36 informantes, não sendo considerada a faixa etária
das crianças.
Nas seções seguintes, apresentamos alguns pressupostos teórico-
metodológicos, os princípios cognitivo-comunicativos de marcação e de
expressividade retórica, e os resultados dos grupos de fatores lingüísticos para
os dois fenômenos variáveis, interpretados à luz dos princípios em questão.
ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
A base teórica deste estudo busca integrar pressupostos de duas teorias que
vinham sendo desenvolvidas em separado no âmbito da lingüística até cerca de
meados da década de 1980: a) a sociolingüística variacionista laboviana; e b) o
funcionalismo lingüístico norte-americano, com especial atenção às propostas
de Talmy Givón. As explicações acerca dos fenômenos de variação e de
mudança oferecidas por cada uma dessas perspectivas não são excludentes, o
que em muito facilita sua integração.
A sociolingüística e o funcionalismo compartilham, entre outras, as
seguintes concepções teórico-metodológicas: a) entendem que a língua possui
natureza heterogênea e variável; b) consideram fundamental que o analista
examine a língua utilizada em contextos reais; c) defendem que a língua está
continuamente mudando; e d) valem-se de tratamento empírico com
quantificação estatística como evidência para atestar fenômenos de variação e
de mudança. Além disso, alguns estudiosos funcionalistas vêm demonstrando
interesse relativamente à influência do contexto social sobre o uso da língua
(ANDROUTSOPOULOS, 1999; BISANG, 1998), fator central para os
sociolingüistas.
Outro ponto em comum entre as teorias em tela é o papel de destaque
atribuído à freqüência de uso das formas lingüísticas. Para a sociolingüística, o
uso depende do ambiente lingüístico e/ou do contexto social, o que define a
natureza do sistema lingüístico como probabilística e pressupõe o emprego de
técnicas quantitativas para a observação das regularidades – em termos de
freqüência de uso – que o governam (LABOV, 1994). Para o funcionalismo, as
formas são unidades de processamento, armazenadas, acessadas e
constantemente afetadas pela experiência, inclusive pela freqüência de
ocorrência, pois a representação cognitiva pode ser alterada pela exposição a
repetidas instâncias de uso de uma construção inovadora (BYBEE; HOPPER,
2001).
PRINCÍPIOS COGNITIVO-COMUNICATIVOS
Como já mencionado, buscamos, em forças universais de base cognitivo-
comunicativa, explicações para as tendências de uso que observamos
relativamente aos dois fenômenos de variação lingüística sob apreço. É difícil
distinguir forças de natureza cognitiva daquelas de natureza comunicativa, pois
a interação não acontece independentemente do que está na mente de cada um
dos interlocutores, e o que está na mente, por sua vez, é influenciado pelo que
acontece na interação (TOMASELLO, 1998, 2003). Assim, optamos pelo
adjetivo composto “cognitivo-comunicativo” para fazer referência às forças
em questão.
Para o funcionalismo, a gramática é adaptada para o uso social diário da
língua e é por ele constantemente re-configurada. Não se trata de uma
propriedade fixa dos cérebros humanos, mas, sim, de um sistema dinâmico,
emergente, que sofre revisão constante em termos de estocagem cognitiva à
medida que é organizado e reprojetado na fala cotidiana. Portanto, é necessário
que consideremos a gramática como comunicativamente sensível e
cognitivamente realística para que cheguemos a uma explicação consistente
sobre como os seres humanos utilizam a língua (THOMPSON; COUPER-
KUHLEN, 2005).
As forças cognitivo-comunicativas são entendidas, pelo funcionalismo,
como princípios que regem a gramática. Entre eles, estão a iconicidade, o
dinamismo comunicativo, a coerência temática, a marcação e a expressividade
retórica. Neste estudo, o foco recai sobre os dois últimos princípios,
comentados a seguir.
O princípio da marcação17 está associado à complexidade e à
previsibilidade: significados e funções complexos e menos previsíveis tendem a
ser codificados através de formas compostas por mais “marca”, isto é, formas
compostas por um maior número de material lingüístico – fonemas,
morfemas, palavras. Nessa linha, Givón (2001) aponta a existência de uma
relação icônica entre o processamento cognitivo da língua e sua representação
material no discurso, já que processos de produção mais complexa são
codificados lingüisticamente por meio de formas materiais mais marcadas.
Segundo Givón, formas que pertencem a uma mesma categoria gramatical
diferenciam-se quanto ao grau de marcação: as marcadas tendem a ser
utilizadas em contextos cognitivo-comunicativos complexos; por sua vez, as
formas não-marcadas tendem a ser utilizadas em contextos mais simples. Ou
seja, as formas gramaticais podem vir a receber usos especializados,
particularizados para certos contextos em razão de seu grau de marcação
lingüística.
Givón (2001) define critérios para a identificação de formas marcadas: 1)
complexidade estrutural: a forma marcada costuma ser mais complexa (em
termos de extensão e/ou número de morfemas) que a não-marcada; 2)
distribuição de freqüência: a forma marcada costuma ser menos freqüente que
a não-marcada, o que lhe rende maior saliência cognitiva; e 3) complexidade
cognitiva: a forma marcada costuma ser cognitivamente mais complexa,
aumentando a necessidade de atenção, o esforço mental e o tempo de
processamento.18 Esses critérios podem ser aplicados não apenas a casos de
oposição binária, mas também a casos de categorias que agrupam mais de duas
formas, pois possibilitam a organização escalar das formas segundo os
diferentes graus de marcação que apresentam.
A marcação também pode servir para estabelecer o equilíbrio cognitivo
contextual: formas marcadas tendem a ocorrer em contextos menos marcados,
e formas menos marcadas são atraídas por contextos mais marcados,
funcionando como uma espécie de auto-regulação do sistema. Essa inclinação
à polarização tem sido descrita como marcação expressiva ou princípio da
expressividade retórica (DUBOIS; VOTRE, 1994), e atua a fim de equilibrar o
esforço de (de)codificação decorrente de aspectos de um fenômeno
semântico-discursivo. O princípio da expressividade foi proposto como uma
reformulação do princípio de marcação em termos do que “é preciso repensar
o princípio de marcação, também, no que concerne à complexidade cognitiva,
no sentido de que não é qualquer aumento de cadeia que vai implicar
naturalmente um aumento das tarefas de decodificação” (DUBOIS; VOTRE,
1994, p. 12). Em outras palavras, um procedimento discursivo marcado
tenderia a reduzir ou eliminar o esforço de codificação.
Como veremos a seguir, as variantes E, AÍ, DAÍ, ENTÃO, que codificam
o domínio funcional da coordenação, têm seus contextos lingüísticos de uso
explicados pelo princípio da marcação. Por outro lado, as variantes IMP
(pretérito imperfeito do indicativo -va/ -ia) e PPROG (forma perifrástica
estarIMP + Vndo), que codificam o domínio do passado imperfectivo, têm seu
uso explicado pelo princípio da expressividade retórica.
E, AÍ, DAÍ, ENTÃO: UMA QUESTÃO DE MARCAÇÃO
E, AÍ, DAÍ e ENTÃO são os conectores coordenativos mais freqüentes
no português brasileiro oral. Trata-se de itens gramaticais cujo papel reside na
interligação entre duas orações ou dois segmentos mais amplos do discurso
em relação de continuidade e consonância.19 Esse tipo de coordenação integra
a categoria mais ampla da junção oracional, em oposição à subordinação
(GIVÓN, 2001).
Provenientes de fontes distintas e em épocas distintas, E, AÍ, DAÍ e
ENTÃO tornaram-se conectores através de processos de gramaticalização.20
Cada conector recém-chegado passou a conviver e a competir por espaço com
os demais, o que permite que sejam tomados como formas variantes na
expressão da relação de continuidade e consonância entre orações e partes
mais amplas do discurso. Embora desempenhem uma mesma função, esses
itens claramente se distinguem quanto a graus de marcação lingüística.
Aplicando os critérios para identificação de formas mais e menos marcadas
propostos por Givón, observamos que E é o menos extenso dos conectores,
além de ser átono, em oposição a AÍ, DAÍ e ENTÃO, que são tônicos. AÍ e
DAÍ são medianos no que diz respeito à extensão formal, ao passo que
ENTÃO é o mais extenso dos conectores, possivelmente exigindo mais
atenção e tempo de processamento que os demais. Além disso, E é o mais
recorrente, sendo responsável por 1.457 dados (40%) do total de 3.631 dados
encontrados na amostra; AÍ e DAÍ possuem freqüência quase idêntica, de 828
e 818 ocorrências, respectivamente (23%); e ENTÃO é o menos freqüente,
com 528 ocorrências (15%). DAÍ é mais marcado que AÍ, pois é um pouco
maior.
De acordo com Givón (2001), se uma forma gramatical é mais marcada do
que outra de mesma função, será preferencialmente utilizada em contextos de
produção lingüística mais complexos, que exigem mais esforço em termos de
processamento cognitivo. Sendo assim, nossa expectativa era que os falantes
utilizassem mais freqüentemente ENTÃO para indicar coordenação entre
orações e segmentos maiores do discurso nos momentos em que estivessem
procurando transmitir informações mais complexas em termos semântico-
pragmáticos.21 Por sua vez, E tenderia a ser mais empregado em contextos
menos complexos. No que diz respeito a AÍ e DAÍ, esperávamos que fossem
mais recorrentes em contextos de média complexidade, devido a seu caráter
mediano de marcação em comparação com E e ENTÃO.
Para testar essas hipóteses, tomamos uma série de fatores ligados ao uso de
conectores como possíveis indicadores de graus distintos de complexidade da
informação. Cada conjunto de fatores foi controlado como variável
independente passível de condicionar a opção dos falantes por um ou outro
dos conectores coordenativos sob enfoque. Aqui, apresentamos resultados
obtidos para duas dessas variáveis: 1) relações semântico-pragmáticas; e 2)
níveis de articulação.
Identificamos as seguintes relações semântico-pragmáticas estabelecidas
entre orações e segmentos maiores do discurso interligados por E, AÍ, DAÍ e
ENTÃO: a) seqüenciação textual: sinalização da ordem pela qual as unidades
conectadas sucedem-se ao longo do tempo discursivo, salientando o
encadeamento de uma porção discursiva anterior com uma posterior, como
em (1); b) seqüenciação temporal: apresentação de eventos no discurso de acordo
com a ordem em que ocorreram no tempo, envolvendo a pressuposição de
que o segundo evento ocorreu mais tarde em relação ao primeiro, como em
(2); e c) conseqüência: introdução de uma informação que representa
conseqüência em relação a uma causa mencionada previamente, como em
(3).22
(1) Quando ela- nós pegávamos goiaba, que ela tirava tudo da nossa mão, corria atrás de nós, às
vezes até chegava dar em nós, né? Eram as coisas mais engraçadas. E às vezes nós brincávamos de
bandeirinha, de pegar, essas coisas, quando éramos mais pequenas, né? (SC FLP FJP 02)
(2) Tem que lavar o arroz, botar na- na- no fo- ah, não! Tem que botar a água, aí bota o óleo, bota o
sal, aí bota o arroz. Deixa eu ver o que mais. (SC FLP FJG 11)
(3) Talvez ela vai vender um terreno que ela ganhou e talvez ela compre um terreno e compre um
cachorro pra gente, porque lá em casa não tem muito espaço, daí ela não quer comprar um cachorro.
(SC FLP MCP 07).23
A seqüenciação textual é a menos complexa dessas relações, pois envolve
apenas a progressão de informações ao longo do tempo discursivo,
assinalando a ordem seqüencial pela qual elas são apresentadas e
desenvolvidas. Trata-se de uma estratégia puramente coesiva, que não dispara,
no interlocutor, a necessidade de busca por outras matizes de significação além
do reconhecimento de que uma certa informação relaciona-se ao mesmo
tópico/assunto que a informação anterior. Isso permite um processamento de
informações mais rápido e econômico. A seqüenciação temporal possui um
traço de significado a mais, pois indica a cronologia dos eventos narrados,
colocando em evidência não apenas a ordenação discursiva, mas também a
ordenação temporal cronológica, o que faz dela uma relação mais complexa
que a de seqüenciação textual. Finalmente, a relação de conseqüência apresenta
um grau de complexidade maior, já que estão em jogo informações que
representam conseqüência em relação ao que foi dito anteriormente. O
estabelecimento dessa relação requer uma elaboração mental complexa,
deixando vir à tona um viés argumentativo.
Nossa hipótese era a seguinte: como a seqüenciação textual é menos
complexa, deveria ser codificada preferencialmente por E, e ENTÃO deveria
indicar especialmente conseqüência, a mais complexa das relações. Os
resultados, apresentados na Tabela 1, mostram evidências favoráveis a essa
hipótese: E é o conector em 51% das ocorrências de seqüenciação textual (peso
relativo de 0,69) e ENTÃO é o conector em 28% das ocorrências de
conseqüência (peso relativo de 0,81). AÍ predomina na sinalização de uma relação
de complexidade média, a seqüenciação temporal (33% e peso relativo de 0,65).
DAÍ tem seu uso mais favorecido na expressão da conseqüência (34% e peso
relativo de 0,71), o que pode ser explicado pelo fato de que, embora seja
menos marcado que ENTÃO, é o segundo conector em ordem crescente de
marcação entre os aqui analisados:24
Tabela 1 – Distribuição de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO – relações semântico-
pragmáticas
E AÍ DAÍ ENTÃO
RELAÇÕES Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR
Seqüenciação textual 861/1.686 51 0,69 279/1.686 16 0,38 266/1.686 16 0,39 280/1.686 17 0,53
Seqüenciação temporal 465/1.209 39 0,46 402/1.209 33 0,65 302/1.209 25 0,52 40/1.209 3 0,25
Conseqüência 131/736 18 0,17 147/736 20 0,53 250/736 34 0,71 208/736 28 0,81
TOTAL 1457/3.631 40 828/3.631 23 818/3.631 23 528/3.631 15

Em relação aos níveis de articulação, E, AÍ, DAÍ e ENTÃO aparecem nos


seguintes contextos: a) entre duas orações, como em (4); b) entre dois
segmentos tópicos, como em (5); c) entre dois subtópicos, como em (6); e d)
entre dois tópicos/assuntos, como em (7). Este último nível caracteriza-se por
uma grande ruptura entre as informações articuladas, pois há mudança de foco
de um “conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes entre si”
(JUBRAN; URBANO, 1993, p. 361) para um novo conjunto do mesmo tipo:
(4) Eles sentiram que eu não ia deixar mais a filha deles também, aí começaram a dar mais liberdade.
(SC FLP MAP 04)
(5) A professora tinha o interesse de que os pais conhecessem como é que estava a situação do
aluno. E, até por ser um- uma coisa mais fácil, o contato mais fácil, quando o pai não ia na escola
saber, a professora ia na casa dos pais, né? (SC FLP MBC 21)
(6) Aí vieram pra cá, perderam tudo, que quando eu fiquei grande que eu fui conhecer o- o Ribeirão,
o Rio Vermelho foi depois, agora, de grande. O meu filho mais velho me trouxe e me levou lá pra
mim conhecer. Ele disse: “Oh, não, vou levar a senhora pra senhora conhecer a terra onde a
senhora nasceu.” Então tinha uma senhora chamada Alaíde, que era amiga de infância da minha mãe,
e tinha vontade de me conhecer. (inint) quando eu nasci, eu vim pra cá. Aí então eu fui na casa dessa
senhora, dona Alaíde. (SC FLP FBP 08)
(7) Então eles acham que a gente tem que dar freqüência pra criança, porque a criança estava
trabalhando. Mas não, a escola é uma coisa e o trabalho da casa é outro, né? Então foi assim, muito
difícil de hospedagem. Primeiro ano me hospedei com meus tios, o segundo ano já me hospedei
com a ex-diretora. (SC FLP MAG 12)
Para Givón (2001), diferentes níveis de articulação representam diferentes
níveis de coerência discursiva, da mais local, com maior continuidade
referencial, temporal, aspectual etc., cujo grau máximo ocorre na articulação de
orações, à coerência mais global, com maior descontinuidade, cujo grau
máximo ocorre na articulação de tópicos/assuntos. Segundo o autor, quanto
mais interconexões existirem entre informações seqüenciadas no discurso,
mais acessíveis mentalmente elas serão, e, assim, sua interpretação será menos
complexa. Em contraste, quanto maior for a ruptura entre as informações,
mais complexa será sua interpretação.
Em nossa amostra, como o nível de maior descontinuidade entre
informações é o da articulação entre tópicos, uma vez que há mudança de
assunto, acreditávamos que ENTÃO tivesse seu uso favorecido aí, pois, como
se trata do nível que acarreta maior complexidade de processamento das
informações, sua codificação lingüística costuma ocorrer por meio de formas
mais marcadas. Por sua vez, E deveria receber destaque na articulação entre
orações, nível que demanda processamento menos complexo, já que as
informações tendem a estar mais integradas.
Atestando essa hipótese, os resultados, apresentados na Tabela 2, mostram
que a articulação entre orações funciona como um ímã para E (peso relativo
de 0,84). AÍ tem seu uso levemente favorecido entre segmentos tópicos (peso
relativo de 0,56) e entre subtópicos (peso relativo de 0,54). Salientam-se como
condicionadores de DAÍ os dois níveis de articulação intermediários e o mais
amplo, sendo o maior peso relativo atribuído a esse conector o que se refere à
interligação entre subtópicos (0,62). Os mesmos níveis inclinam-se
positivamente em direção a ENTÃO, com pesos relativos de 0,55 a 0,76.
Note-se que o maior favorecedor de ENTÃO é o nível de articulação entre
tópicos/assuntos, o que vai ao encontro da hipótese de ser este conector, o
mais marcado, propenso a ocorrer no nível de articulação mais global,
caracterizado por grande ruptura entre informações anteriores e posteriores:
Tabela 2 – Distribuição de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO – níveis de articulação
E AÍ DAÍ ENTÃO
ARTICULAÇÃO Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR
Entre orações 543/831 65 0,84 127/831 16 0,31 100/831 12 0,22 61/831 7 0,31
Entre segmentos tópicos 854/2654 32 0,38 678/2654 26 0,56 701/2654 26 0,59 421/2654 16 0,55
Entre subtópicos 43/100 43 0,34 17/100 17 0,54 16/100 16 0,62 24/100 24 0,62
Entre tópicos 17/46 37 0,23 6/46 13 0,45 1/46 2 0,59 22/46 48 0,76
TOTAL 1457/3631 40 828/3631 23 818/3631 23 528/3631 15

Portanto, observamos haver, no caso da variação entre os conectores E,


AÍ, DAÍ e ENTÃO, uma forte influência do princípio da marcação. E, o
conector de menor marcação lingüística, é mais freqüente em contextos menos
complexos de coordenação de informações, ao passo que ENTÃO, o conector
de maior marcação, é mais freqüente em contextos mais complexos. Por sua
vez, AÍ, de média marcação, destaca-se em contextos de média complexidade,
e DAÍ, o segundo mais marcado dos conectores, predomina em contextos de
média e alta complexidade.
PASSADO IMPERFECTIVO: EXPRESSIVIDADE EM EVIDÊNCIA
O valor semântico-discursivo de passado imperfectivo, no português falado
no Brasil, apresenta duas formas de realização: a forma de pretérito imperfeito
do indicativo (IMP) e a forma perifrástica constituída pelo auxiliar estar
acompanhado do morfema de pretérito imperfeito do indicativo e verbo
principal no gerúndio (PPROG), como em (8) e (9), respectivamente:
(8) Na época que eu mais precisei dele, que eu mais precisava de um apoio, foi quando a minha mãe
morreu. (SC FLP FAP 03)
(9) Aí também foi na época que a gente voltou, a gente estava precisando economizar pra começar
nossa vida. (SC FLP FAP 01)
O passado imperfectivo,25 é uma função caracterizada temporalmente pela
relação de ordenação e sobreposição, e aspectualmente, pela relação de inclusão.
Em relação ao tempo, o passado imperfectivo refere-se a uma situação anterior
ao momento de fala e simultânea ao ponto de referência, também anterior, daí
a noção de passado. E, em relação ao aspecto, o passado imperfectivo refere-se
a uma situação cujo intervalo inclui o ponto de referência, o que manifesta o
andamento da situação em relação à referência, daí a noção de
imperfectividade. Em (8), a situação precisava é anterior ao momento de fala e
ocorre concomitantemente a um ponto de referência, estabelecido pela oração
subordinada adverbial temporal “quando a minha mãe morreu”. A situação, apesar
de já ter ocorrido, é apresentada como em andamento em relação ao ponto de
referência; na oração anterior “Na época que eu mais precisei dele”, o mesmo item
lexical é apresentado como perfectivo (valor associado à forma de pretérito
perfeito). Em (9), a situação estava precisando também se refere a uma situação
passada – anterior ao momento de fala – e concomitante a um ponto de
referência, também passado: “Aí também foi na época que a gente voltou”. Observe-
se que com o mesmo item lexical, no mesmo contexto, com o mesmo tipo de
ponto de referência (oração temporal), podem ser utilizadas duas formas para
expressar passado imperfectivo: IMP e PPROG. Quando as formas IMP e
PPROG apresentam essas propriedades semânticas, podemos considerá-las
como variantes na expressão do passado imperfectivo (FREITAG, 2007).
Na variação entre IMP e PPROG para a expressão do passado
imperfectivo, esperávamos que o princípio da marcação (GIVÓN, 2001)
também influenciasse na escolha entre as formas, dado que a forma IMP,
morfema modo-temporal, além de se mostrar a mais freqüente nesse domínio,
é menos complexa estrutural/ cognitivamente do que PPROG, perífrase
estarIMP + Vndo. Entretanto, os resultados mostram que o princípio da
marcação manifesta-se “ao contrário”: formas marcadas tendem a ocorrer em
contextos menos marcados, e formas menos marcadas são atraídas por
contextos mais marcados, o que, no entender de Dubois e Votre (1994),
refere-se à atuação do princípio da expressividade retórica, responsável pela
equilibração do esforço de codificação decorrente de aspectos de um
fenômeno semântico-discursivo. Apresentamos, a seguir, os resultados de dois
grupos de fatores atuantes na expressão do passado imperfectivo no português
que evidenciam a atuação do princípio da expressividade retórica: a
extensão/duração de uma situação e a polaridade (FREITAG, 2007).
O português não apresenta um sistema gramaticalizado de
extensão/duração de uma situação. Para codificar esse tipo de informação,
fazemos uso de recursos lexicais, como advérbios e nomes que denotem
extensão ou duração temporal. Porém, é possível considerar a hipótese de que
na expressão do passado imperfectivo as formas IMP e PPROG se
diferenciem quanto ao uso em função da extensão temporal.
Assumindo e adaptando a classificação de Mendes (2005), a expressão do
passado imperfectivo conta com quatro possibilidades para a extensão do
intervalo temporal: instantâneo, em (10); curto, em (11); longo, em (12); e muito
longo, em (13).
(10) Daí a moça tinha ido para o hospital e o cara morreu. Daí a gente, a hora que a gente estava
olhando, eles tiravam o cara morto ainda. (SC FLP FGJ 07)
(11) Fui [posto] na rua da aula de história, de química, de ciências, mas também aprontava pra
caramba. De ciências eu fui umas três vezes, de história eu cheguei a ser suspenso da aula dele, uma
semana, é, eu parei de fazer barulho, fui obrigado, né? Fui suspenso, só estava pegando no meu pé. (SC
FLP MCJ 13)
(12) Agora até que a gente estava lendo, só que no começo do ano a gente estava lendo bastante. (SC
FLP FGJ 07)
(13) Dizem que ela estava bem doente. É, foi o ano passado, o meu irmão esteve aqui, ele entrou de
férias e veio passar uns dias aqui em casa, porque ele mora no Rio, né? e ele falou que ela estava
morando pra cá. Tinha vendido, parece, uma casa lá no Rio e veio morar pra cá. (SC FLP FAP 03)
A hipótese para o controle da extensão da situação na expressão do
passado imperfectivo considera aspectos relativos à origem das formas e ao
princípio da persistência (HOPPER, 1991). Na escala de aspecto imperfectivo
de Comrie (1976), o PPROG está relacionado com a expressão de aspecto
progressivo – o sentido aspectual mais estrito do imperfectivo –, que toma
uma situação em andamento em relação a um ponto temporal (ponto de
referência), estendendo a duração da mesma. É possível que essa propriedade
possa persistir no processo de gramaticalização e generalização semântica da
forma, com a associação de PPROG a tempo instantâneo/curto. Já a forma
IMP, de acordo com a proposta de Travaglia (1987), está relacionada ao
deslocamento/distanciamento da realidade; também evocando a persistência,
pode ser associada a tempo longo.
Os resultados da Tabela 3 delineiam a polarização entre IMP e PPROG no
que se refere à extensão da situação: de fato, quanto maior a extensão do
intervalo temporal da situação, maior é a tendência pela opção por IMP, e o
contrário é válido para PPROG: quanto menor a extensão do intervalo
temporal da situação, maior é a tendência de uso de PPROG. O peso relativo
de 0,38 restringe o uso de IMP em intervalos classificados como instantâneos,
enquanto o peso relativo de 0,71 favorece seu uso em intervalos temporais
classificados como muito longos. A distribuição dos resultados é crescente:
intervalos temporais classificados como curtos têm peso relativo de 0,44,
enquanto intervalos temporais classificados como longos têm peso relativo de
0,57:
Tabela 3 – Distribuição de IMP e PPROG – extensão da situação
IMP PPROG
EXTENSÃO DA SITUAÇÃO Freq. % PR Freq. % PR
instantânea 167/348 48 0,38 181/348 52 0,62
curta 81/140 58 0,44 59/140 42 0,56
longa 207/286 71 0,57 79/286 29 0,43
muito longa 89/108 82 0,71 19/108 18 0,29
TOTAL 546/884 62 336/884 38

O princípio da expressividade retórica (DUBOIS; VOTRE, 1994) pode ser


evocado para explicar a correlação entre forma e expressão de extensão da
situação no passado imperfectivo. Por hipótese, quanto mais duradoura uma
situação, mais complexa estrutural e cognitivamente, pois demandaria maior
esforço de processamento. A relação entre uma forma menos marcada e uma
situação mais marcada quanto à extensão temporal se manifesta pela
associação entre IMP e situações longas e PPROG e situações
curtas/instantâneas.
Quanto à polaridade da situação, podemos resumi-la à situação
expressando passado imperfectivo estar ou não sob escopo de negação. Em
termos de freqüência absoluta, orações afirmativas são muito mais recorrentes
do que orações negativas. Entretanto, os contextos em que ocorrem orações
negativas podem ser analisados do ponto de vista do princípio da marcação
(GIVÓN, 2001), segundo o qual o critério da complexidade estrutural
pressupõe que a oração negativa é marcada em relação à afirmativa.
Considerando que na expressão do passado imperfectivo há uma forma
estruturalmente mais marcada (PPROG) do que a outra (IMP), como se dá a
interação entre formas e negação em função do critério da marcação? Nossa
expectativa inicial era que contextos marcados (com presença de negação)
tendessem a atrair formas marcadas. Todavia, os resultados para a polaridade
da situação, na Tabela 4, mais uma vez apontam para o equilíbrio cognitivo:
contextos de oração afirmativa tendem a favorecer a ocorrência da forma mais
complexa, PPROG, enquanto contextos de oração negativa tendem a
favorecer a ocorrência da forma menos complexa, IMP. Novamente, atua o
princípio da expressividade retórica (DUBOIS; VOTRE, 1994), em que a
forma marcada tende a ser utilizada em contexto menos marcado e a forma
não-marcada é preferível em contexto marcado:
Tabela 4 – Distribuição de IMP e PPROG – polaridade operando sobre
a situação
IMP PPROG
POLARIDADE Freq. % PR Freq. % PR
+ 435/752 58 0,46 317/752 42 0,54
- 111/130 85 0,72 19/130 15 0,28
TOTAL 546/884 62 336/884 38

Assim, na expressão do passado imperfectivo, a forma IMP,


estruturalmente mais simples, tende a ser mais recorrente com situações que
são classificadas como longas (em oposição a situações instantâneas/curtas,
menos complexas) e de polaridade negativa (em oposição à polaridade
positiva/afirmativa, menos complexa). A menor complexidade estrutural de
IMP (precisava) é equilibrada por sua recorrência em contextos considerados
mais complexos; o mesmo pode ser dito de estarIMP + Vndo (estava precisando),
forma estruturalmente mais complexa, cuja complexidade estrutural é
compensada pela recorrência em contextos menos complexos.
O princípio da expressividade retórica também foi evocado por Bispo
(2003), ao estudar a variação entre a relativa canônica e a relativa cortadora na
fala de Natal/RN.26 Nesse caso, assim como no passado imperfectivo, há
aumento na forma sem aumento na complexidade cognitiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, abordamos dois fenômenos de variação lingüística no
português brasileiro contemporâneo, a coordenação em relação de
continuidade e consonância e a expressão do passado imperfectivo. No caso
da alternância entre os conectores coordenativos E, AÍ, DAÍ e ENTÃO, o
princípio da marcação é fundamental para a interpretação das restrições sobre
o uso desses conectores advindas de variáveis independentes de natureza
lingüística.27 Observamos que os conectores tendem a ter seu emprego
favorecido segundo seu grau de marcação: E, menos marcado, predomina em
contextos de menor complexidade, e ENTÃO, mais marcado, em contextos de
maior complexidade. AÍ e DAÍ, de grau médio de marcação, destacam-se em
contextos de grau médio de complexidade.
Diversos estudos vêm constatando a existência de semelhante correlação
entre o grau de marcação de formas de categorias gramaticais variadas e o uso
que se dá a elas nas situações de comunicação do dia-a-dia (vejam-se, por
exemplo, GIVÓN, 2001; GRYNER, 2002; MOLLICA, 2003; TAVARES,
2004; GÖRSKI; FREITAG, 2006). Tais resultados ratificam o poder
explanatório do princípio da marcação no que diz respeito à dimensão
lingüística da variação. Esse princípio costuma exercer ação regularizadora
sobre fenômenos variáveis: variantes de menor marcação lingüística tendem a
ser favorecidas em contextos de menor complexidade, ao passo que variantes
de maior marcação tendem a predominar em contextos de maior
complexidade.
Contudo, no caso do passado imperfectivo, verificamos uma tendência
inversa: a taxa de ocorrência da forma IMP, menos marcada, é maior em
situações que são classificadas como temporalmente longas (em oposição a
situações instantâneas/curtas, menos complexas) e de polaridade negativa (em
oposição à polaridade positiva/afirmativa, menos complexa). Por sua vez, a
taxa de ocorrência da forma PPROG, mais marcada, é maior em situações
consideradas menos complexas.
Similar comportamento foi observado por Dubois e Votre (1994) em seu
estudo sobre a enumeração no francês falado em Montreal: estratégias menos
marcadas de enumeração predominavam em contextos mais complexos, e
estratégias mais marcadas em contextos menos complexos. Os autores, para
dar conta dessa distribuição, propuseram o princípio da expressividade
retórica, do qual lançamos mão para explicar o caso do passado imperfectivo,
mostrando que a menor complexidade estrutural de IMP parece ser
equilibrada por seu uso freqüente em contextos mais complexos. Por sua vez,
a maior complexidade estrutural de PPROG parece ser compensada por sua
alta recorrência em contextos menos complexos.
Portanto, o princípio da marcação é útil para a explicação de certos
fenômenos variáveis, ao passo que o princípio da expressividade retórica
parece ser mais adequado para a explicação de outros fenômenos variáveis. No
entanto, resta uma série de questões ainda sem resposta. Por exemplo, o
princípio da marcação e/ou o princípio da expressividade retórica contribuem
para a explanação de fenômenos variáveis em quaisquer níveis da língua
(fonologia, morfologia, sintaxe, discurso)? A marcação e a expressividade
podem ser tomadas como “motivações em competição” (DU BOIS, 1985) em
um mesmo caso de variação? Talvez isso seja possível em situações em que
haja mais de duas formas alternantes: as tendências distribucionais de algumas
delas poderiam ser reflexo da atuação da marcação, enquanto as tendências
distribucionais das demais poderiam ser reflexos da atuação da expressividade
retórica.
Para finalizar, sugerimos algumas obras que permitem o aprofundamento
dos tópicos aqui tratados: 1) no segundo capítulo de Functionalism and grammar
(1995), intitulado “Markedness as meta-iconicity: distributional and cognitive
correlates of syntactic structure”, Givón apresenta critérios para a mensuração
de graus de marcação lingüística; 2) no livro Lingüística funcional: teoria e prática,
organizado por Cunha; Oliveira; Martelotta (2003), o capítulo sobre
pressupostos teóricos apresenta e ilustra com dados do português o princípio
da marcação; 3) a tradução do clássico de Weinreich, Labov e Herzog (1968),
Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística, feita por Marcos
Bagno (2006), é de leitura obrigatória para quem se interessa pela área de
Sociolingüística. Há também estudos, alguns mencionados ao longo deste
texto, que recorrem a um ou outro desses princípios para analisar fenômenos
variáveis no português brasileiro.
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NOTAS
Variação Lingüística Urbana na Região Sul do Brasil.
A proposição do princípio da marcação tem origem na Escola de Praga, como um desdobramento da
noção saussureana de valor lingüístico, e aplicava-se, inicialmente, a casos de oposição binária do tipo
[+/-]: um membro do par tem presente uma propriedade, com marca formal (ex.: casas é marcado [+
plural]) e o outro membro a tem ausente, sem marca formal (ex.: casaϕ não marcado [- plural]).
Os critérios 1 e 2 referem-se a propriedades concretas, observáveis no discurso, e, por isso, mais
facilmente mensuráveis. Embora maior complexidade estrutural (critério 1) e baixa freqüência (critério 2)
possam ser consideradas indícios de que uma certa forma é mais complexa em termos de processamento
cognitivo do que outra de mesma função, apenas testes de natureza cognitiva podem mensurar mais
diretamente indícios referentes ao critério 3 (por exemplo, testes que avaliem velocidade de
processamento de itens lingüísticos).
Existem também outros conectores de mesma função, porém menos freqüentes e de distribuição
diferenciada. Entre eles, o que mais se destaca em Florianópolis é o depois (TAVARES, 2003).
A gramaticalização é o processo de rotinização pelo qual formas lingüísticas freqüentemente utilizadas
tornam-se habituais, e, portanto, gramaticais. Com base em dados do latim e das várias fases da língua
portuguesa, Tavares (2003) faz uma análise das etapas de gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO,
além de discutir a questão de sua categorização como conectores coordenativos.
Por informação compreendemos fatos/eventos e argumentos/idéias (SCHIFFRIN, 1987).
Nas gramáticas normativas, essas três relações costumam ser incluídas sob o rótulo de “coordenação
aditiva” e ilustradas com o conector E. Vejam-se alguns exemplos: Deram o braço e desceram a rua. Tio
Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote (CUNHA, 1994, p. 534, 554); O galho partiu e o
menino caiu da árvore. Eu li a carta e entreguei-a a Pedro (SAID ALI, 1969, p. 105, 133).
Embora os quatro conectores sejam utilizados na codificação de todas as relações semântico-pragmáticas
e níveis de articulação considerados, apresentamos apenas um exemplo de cada tipo por uma questão de
espaço. Em estudos anteriores (TAVARES, 2003, 2006), foram controladas também outras duas relações
semântico-pragmáticas, retomada e finalização, que, devido a sua menor taxa de ocorrência, não foram
incluídas nesta análise.
O programa estatístico VARBRUL (PINTZUK, 1988) forneceu-nos percentagens e pesos relativos.
Devido ao grande número de dados, realizamos rodadas binárias distintas do programa, considerando
cada variante versus as demais. Realizamos também rodadas eneárias, que confirmam o quadro de
condicionamentos apontado pelas rodadas binárias.
No domínio da imperfectividade, o passado imperfectivo recobre os valores progressivo, em (1);
iterativo, em (2); e habitual, em (3), além de casos de ambigüidade aspectual (imperfectivo genérico, valor
em que a especificidade aspectual não é relevante nem para o falante nem para o ouvinte naquele
contexto comunicativo (TORRE CACOULLOS, 2001), em (4).
(1) Era dez da noite, a mãe fazia a janta, quando a gente recebeu a notícia que ele se acidentou. (SC FLP
MBC 23)
(2) Setenta e três. Foi campeão pelo Figueirense. E era Figueirense fanático e do Flamengo. Quando o
Flamengo perdia, ele quebrava o rádio. (SC FLP MAC 19)
(3) Então a gente perdia tempo à beça esperando que viesse outro ônibus. O ônibus quebrava toda hora,
toda hora. Mas era a maior dificuldade, sabe? pra gente se locomover de ônibus. (SC FLP MAC 18)
(4) E o meu avô estava brigando com eles, né. (SC FLP FAP 01) [a situação pode ser interpretada como
uma única briga que se estende (valor progressivo) ou uma briga habitual].
A relativa cortadora, que traz repetido o referente do relativo, é estruturalmente mais complexa, porém é
de complexidade cognitiva menor que e relativa canônica. Esta é estruturalmente menos complexa, mas
demanda maior esforço cognitivo em seu processamento, uma vez que o referente do relativo não é
expresso textualmente (BISPO, 2003).
Além das variáveis relação semântico-pragmática e nível de articulação, controlamos outras, como o grau
de conexão existente entre as partes do discurso interligadas pelo conector e os traços semânticos do
verbo da oração introduzida pelo conector, não apresentadas aqui por questão de espaço. Os resultados
que obtivemos para essas outras variáveis também podem ser explicados pela atuação do princípio da
marcação.
Algumas restrições aos proparoxítonos em
português28

Hildo Honório do Couto – UnB


INTRODUÇÃO
As palavras portuguesas podem ser paroxítonas, oxítonas e proparoxítonas.
Desses padrões, o proparoxítono é o mais idiossincrático. Talvez uma das
causas estruturais para essa idiossincrasia seja o fato de ele exigir que a palavra
seja no mínimo trissilábica, ao passo que os dois outros se aplicam já no nível
dos dissílabos. Como sabemos, a palavra “ótima” é justamente a que consta de
duas sílabas ótimas, ou seja, CV. CV. A proparoxitonidade exige que a palavra
seja no mínimo CV.CV.CV. Aí já começam as peculiaridades desse padrão
acentual. Mas, como veremos na discussão que se segue, há razões sociais e
históricas para elas.
Não é para menos que o padrão proparoxítono seja o mais marcado da
fonologia da língua portuguesa. O menos marcado é o paroxítono, sendo que
o oxítono fica numa posição intermediária. As estatísticas de ocorrência desses
padrões acentuais já revelam tal tendência. No português padrão, a
paroxitonidade ocorre em cerca de 70% das palavras, a oxitonidade em 20% e
a proparoxitonidade em apenas 10%. Nas variedades populares e rurais da
língua, a proparoxitonidade tende a desaparecer, o que é compensado por um
considerável aumento da oxitonidade e uma leve redução da paroxitonidade.
Nessa variedade da língua, os números são aproximadamente os seguintes, de
acordo com uma sondagem provisória: paroxítonos 64%; oxítonos 36%.
A redução na proparoxitonidade se dá basicamente mediante a conhecida
regra de queda da vogal postônica, que reduz “có.rre.go” a “cór.go”,
“a.bó.bo.ra” a “a.bó.bra” e “chá.ca.ra” a “chá.cra” (cf. “Chacrinha”). Há casos
menos óbvios, como “cô.mo.do” virando “com.do/con.do” e “bê.ba.do”
virando “bêb.do/bêbo”, donde “bebum”. Essa regra já existia no latim. O
normativista da época, Probus, confeccionou uma lista de palavras
proparoxítonas que estavam sendo submetidas a ela, no chamado Appendix
Probi. Ele formulava sua correção da seguinte forma: “spé.cu.lum non
spé.clum”, “más.cu.lus non más.clus”, “óc.u.lus non ó.clus”. A propósito, foi
justamente a forma considerada errada por Probus que evoluiu para o
português: speclum > espelho, masclus > macho, oclus > olho. A forma que
ele considerou culta entrou mais tarde, como empréstimo erudito, sob a forma
de palavras como “es.pé.cu.lo”, “más.cu.lo” e “ó.cu.lo(s)”, bem como os
derivados “especular”, “masculino” e “ocular”.
Talvez seja devido à regra de queda da postônica que, em português, a
proparoxitonidade seja tão pouco produtiva. O fato é que, tanto para a
paroxitonidade quanto para a oxitonidade, podemos formular alguns
princípios, como tentei mostrar em Couto (2006). Assim, se a penúltima sílaba
é pesada, o acento recai preferencialmente sobre ela; como segunda opção,
marcada, ele pode cair na última. Se a última sílaba é pesada, o acento recai
preferencialmente sobre ela; como segunda opção, marcada, ele pode cair na
penúltima. Se a penúltima e a última sílabas são leves, o acento recairá
preferencialmente sobre a penúltima, como segunda opção na última e, só
como terceira opção, na antepenúltima. Na verdade, não há regras fonológicas
positivas que prevejam que configurações vocabulares devem ser
proparoxítonas. O que há são regras negativas, ou seja, regras que estabelecem
que configurações fonológicas não podem ser proparoxítonas. Determinados
sufixos dissilábicos são pré-acentuados, de modo que a palavra que os recebe
será proparoxítona. São praticamente todos termos eruditos, ou tidos como
tais, que entraram na língua como empréstimo, geralmente do latim e do
grego. Eis alguns exemplos: veículo, manápula, alienígena, soporífero,
aeródromo, americanófilo etc.
Eu já tratei das referidas regras negativas no texto recém-mencionado.
Talvez, a única coisa que não ficou devidamente enfatizada nele seja o fato de
a última e a penúltima sílabas serem determinantes para as regras de acento. O
peso da última determina os dois padrões acentuais básicos: se ela é leve, o
acento deve recair de preferência (de forma não-marcada) na penúltima sílaba
(cá.sa, ba.nâ.na) e secundariamente na última (bo.có); se ela for pesada, a
preferência se inverte, devendo o acento recair prioritariamente nela própria
(co.lhêr, re.co.lhêr) e só secundariamente na penúltima (é.ter, ca.té.ter). O peso
da penúltima sílaba, que não afeta a paroxitonidade (pá.to/pár.to,
co.bér.ta/co.lé.ta) nem a oxitonidade (ros.tí/po.tí), tem a ver com a
proparoxitonidade, embora de modo negativo. Se ela for leve, a palavra pode,
em princípio, ser proparoxítona (cá.ga.do), mas não preferencialmente
(ca.gá.do); se pesada, a palavra não pode ser proparoxítona, como em (2a-f)
abaixo. Mas peso na última sílaba também interdita a proparoxitonidade, como
em (8a-e).
Aqui, o que eu pretendo fazer é procurar respostas para algumas das
restrições à proparoxitonidade. Para tanto, faz-se necessário discuti-la como
parte de uma realidade dinâmica, na qual a sincronia do presente conteria
reminiscências de fatos do passado que já não se manifestam em superfície ou,
quando se manifestam, fá-lo apenas em variedades marginais. Em suma, as
restrições se assemelham aos genes recessivos da genética que, mesmo não se
manifestando na superfície, ainda subsistem de modo latente. Um traço que
não se manifesta no filho pode reemergir no neto ou no bisneto. O mesmo
ocorreria na língua. Haveria traços/regras recessivos.
CONFIGURAÇÕES SILÁBICO-VOCABULARES QUE ADMITEM A
PROPAROXITONIDADE
Além de não haver regras fonológicas que a expliquem, como as sugeridas
acima para a paroxitonidade e a oxitonidade, a proparoxitonidade está sujeita a
algumas restrições para as quais ainda não encontrei nenhuma explicação na
sincronia atual da língua. Em alguns casos, essas restrições parecem ter algo a
ver com o tipo de consoante que ocorre no aclive da última sílaba. Começo
apresentando, em (1) uma lista de configurações fonológico-vocabulares que
podem ser proparoxítonas. A consoante do aclive da última sílaba está
sublinhada porque, como veremos mais abaixo, algumas consoantes não são
admitidas nessa posição em proparoxítonos:
(1)

(a) pó.li.po(s) (a’) plá.ti.po(s), sá.tra.pa(s), á.co.pro(s), múl.ti.plo(s)

(b) sí.la.ba(s) (b’) ín.cu.bo(s), a.crós.ti.co(s), cé.le.bre(s)

(c) sé.qui.to(s) (c’) prá.cri.to(s), sâns.cri.to(s), tri.pro.blás.ti.co(s)

(d) cá.ga.do(s) (d’) cân.di.do(s), drá.vi.da(s), cá.te.dra(s)

(e) cí.ni.co(s) (e’) á.ba.co(s), plás.ti.co(s), trí.bra.co(s)

(f) có.rre.go(s) (f ’) pró.fu.go(s), trâns.fu.ga(s), sô.fre.go(s)


(g) Sí.si.fo(s) (g’) trí.gli.fo(s), a.e.rós.ca.fo(s)

(h) dá.di.va(s) (h’) cár.co.va(s)

(i) cá.li.ce(s) (i’) vór.ti.ce(s), dú.pli.ce(s), frú.ti.ce(s)

(j) Tâ.mi.sa(s) (j’) pró.te.se(s), pa.rá.fra.se(s)

(k) Fá.ti.ma(s) (k’) an.dró.gi.no(s), i.só.cli.no(s), prís.ti.no(s)

(l) câ.no.ne(s) (l’) prés.ti.mo(s), pró.dro.mo(s)

(m) câ.ma.ra(s) (m’) cu.prí.fe.ro(s), a.ca.rós.po.ro(s)

(n) cá.fi.la(s) (n’) trê.mu.lo(s), zé.bru.lo(s)

Como vê em (1a-f), todas as oclusivas, ou seja, /p, b, t, d, k, g/, podem


ocorrer como aclive da última sílaba. Quanto às não-oclusivas, são admitidas
também as labiodentais (1g-h), as sibilantes (1i-j), as nasais (1k-l) e as líquidas
(1m-n). Deve ser ressaltado que a existência de mais sílabas antes da
antepenúltima não afeta o padrão (1g). Por fim, os exemplos da segunda
coluna (a’-n’) mostram que pode haver consoante adicional no aclive de
qualquer uma das sílabas e/ou na coda da antepenúltima sílaba (plás.ti.co(s)).
Pode também haver /s/ na coda da última sílaba, entre parênteses nos
exemplos de (1) e nos subseqüentes. Não encontrei exemplos com a estrutura
CCV.CCV.CCV, embora a gramática fonológica do português não pareça
excluir nomes como “Prótroclo”, tanto que nos esportes, é perfeitamente
possível alguém que seja “pró.tri.plo” (a favor do salto triplo), ou que haja
movimentos “pré.tri.plo” (antes dele). Quanto a CCVC.CCV.CCV
(Próstroclo?), parece não ser admissível, embora José Olímpio Magalhães
informe que já ouviu “prós.tra.tra”. Tampouco a inexistência de aclive na
última sílaba não afeta o padrão acentual, como se vê em “crâ.ni.o(s)”,
“sá.bi.o(s)”, “tá.bu.a(s)”, “e.rrô.ne.o(s)”, entre outros.
Nas três seções seguintes, examino as configurações silábico-vocabulares
que não admitem a proparoxitonidade. Em “Configurações silábico-
vocabulares que não admitem a proparoxítonidade I”, temos aquelas cuja
forma não-marcada é a paroxitonidade e a marcada a oxitonidade, uma vez
que a penúltima sílaba é pesada. Em “Configurações silábico-vocabulares que
não admitem a proparoxitonidade II”, discuto aquelas em que o acento não-
marcado recai sobre a última sílaba e o marcado sobre a penúltima, devido ao
fato de a última sílaba ser pesada. Os casos em que nem a penúltima nem a
antepenúltima são pesadas estão exemplificados em (1) e discutidos em
diversas partes do artigo. Por fim, lembro, na conclusão, alguns temas que não
têm sido tratados pela fonologia, mas que parecem ser importantes na
dinâmica da língua como meio de comunicação entre membros de uma
comunidade de fala.
CONFIGURAÇÕES SILÁBICO-VOCABULARES QUE NÃO ADMITEM
A PROPAROXITONIDADE I
Já adiantei acima que algumas configurações silábico-vocabulares não
admitem a proparoxitonidade. O primeiro é constituído de palavras cuja
penúltima sílaba é pesada, ou seja, têm um núcleo ramificado (dominando
duas vogais, ditongo) e/ou uma coda. As consoantes que podem ocorrer em
coda silábica são /l/, /ɾ/, /s/ e /N/. Em (2) temos um exemplo de cada. Na
primeira coluna temos as formas proibidas (2a-f); na segunda vêem-se as
formas esperadas em tais casos, a opção não-marcada; na terceira, a segunda
opção admitida, ou seja, a oxitonidade:
(2)

(a) *cô.bal.to(s) (a’) co.bál.to(s) (a’’) res.pal.dá (popular)

(b) *cô.ber.ta(s) (b’) co.bér.ta(s) (b’’) re.cor.dá (pop.)

(c) *má.ras.mo(s) (c’) ma.rás.mo(s) (c’’) ma.ras.má (pop.), cas.bá

(d) *cá.lan.go(s) (d’) ca.lân.go(s) (d’’) ca.ran.dá

(e) *cá.gai.ta(s) (e’) ca.gái.ta(s) (e’’) con.fei.tá (pop.)

(f) *tê.sau.ro(s) (f ’) te.sáu.ro(s) (f ’’) a.plau.dí (pop.)

A única coisa que esses exemplos têm em comum é a penúltima sílaba


pesada. Nos quatro primeiros exemplos, o peso se deve à existência de uma
coda (l, r, s, n). Nos dois últimos, o peso se deve à presença de um ditongo (ai,
au). Isso é justamente a causa da interdição das formas (2a-f): penúltima sílaba
pesada. Os exemplos da terceira coluna são perfeitamente legítimos. Também
eles fazem parte do acervo lingüístico da comunidade de fala brasileira. O mais
importante é que em (2) temos uma restrição que já existia em latim. Nessa
língua, havia a seguinte regra:
(3) Se a penúltima sílaba for longa (pesada), o acento deve recair sobre ela própria; se ela for breve (leve), o acento
deve recair sobre a sílaba anterior.
Como mostram os exemplos de (2a-f), o português parece ter herdado
apenas a primeira parte da regra. Quanto à segunda parte, que estabelece que
se a penúltima sílaba for leve o acento deve recair na sílaba anterior, não lhe foi
transmitida. Pelo contrário, a esmagadora maioria das palavras com penúltima
sílaba leve é constituída de paroxítonos, como se pode ver nos exemplos de
(4a-n). Essa lista contém exemplos de paroxítonos correspondentes a cada um
dos proparoxítonos de (1a-n):
(4)

(a) fo.lí.po(s) (a’) ca.che.pô(s), de.sa.pô (pop.)

(b) ca.lá.ba(s) (b’) be.ri.bá (s), a.ca.bá (pop.)

(c) pe.quí.to(s) (c’) ma.ne.tô(s), pa.le.tó(s)

(d) ce.vá.do(s) (d’) mo.la.dô(s), cha.ro.dó(s)

(e) pe.ní.co(s) (e’) ca.bo.có(s), ca.li.cô(s)

(f) bo.rrê.go(s) (f ’) a.go.gô(s), co.bo.gó(s)

(g) la.rí.fo(s) (g’) ba.la.fó(s), mo.fo.fô(s)

(h) ca.tí.va(s) (h’) je.ri.vá(s), ca.ti.vá (pop.)

(i) to.lí.ce(s) (i’) fu.ma.cê(s), ta.qua.ri.cé(s)

(j) ca.mí.sa(s) (j’) ba.ti.zá (pop.), ba.ti.zô (pop.)

(k) bi.cô.ne(s) (k’) Po.co.né, ma.ti.nê(s)

(l) pe.tí.ma(s) (l’) co.ri.má(s), pa.ri.má(s)

(m) to.má.ra (m’) ca.ma.rá(s), su.ma.rá(s)

(n) va.cí.la(s) (n’) bui.qui.lá, va.ci.lá (pop.)


Na primeira coluna, estão expostas as formas preferenciais para tais casos,
não-marcados, ou seja, a paroxitonidade. No entanto, configurações silábicas
com penúltima sílaba leve podem ainda ter o acento em duas outras posições,
começando pela oxitonidade, que é a primeira opção marcada (4a’-n’). Como
mostram os exemplos de (1), é nessa configuração (penúltima sílaba leve) que
podem ocorrer os proparoxítonos, o mais marcado da fonologia do português.
Enfim, essa configuração é a única que admite todos os padrões acentuais, e a
única que admite a proparoxitonidade.
O fato é que, se a palavra é proparoxítona, a penúltima sílaba tem de ser
leve, mas a recíproca não é verdadeira, ou seja, nem todas as palavras com
penúltima sílaba leve são proparoxítonas. Pelo contrário, mesmo nelas, as
proparoxítonas são exceções.
É interessante notar que a presença de mais uma consoante no aclive de
qualquer das sílabas, assim como a coda nas sílabas anteriores à penúltima não
alteram em nada a dinâmica do acento, tanto no caso presente como nos
demais examinados neste ensaio.
Além dos casos de (2a-f), há outras configurações silábicas que não podem
ser proparoxítonas. Esses outros casos já não têm uma justificativa tão patente.
Em (5a-g) temos uma primeira lista dessas configurações proibidas. Em (5a’-
g’), vêem-se as formas gramaticais não-marcadas; em (5a’’-g’’), as gramaticais
marcadas:
(5)

(a) *cá.ta.ia(s) (a’) ca.tá.ia(s) (a’’) tu.ca.iá (s)

(b) *bê.le.ua(s) (b’) be.lê.ua(s) (b’’) ja.re.uá (s)

(c) *cá.na.lha(s) (c’) ca.ná.lha(s) (c’’) ba.ta.lhá (coloquial)

(d) *mê.do.nho(s) (d’) me.dô.nho(s) ([med u](s) (d’’) bo.ca.nhô (coloquial)

(e) *gá.rru.cha(s) (e’) ga.rrú.cha(s) (e’’) ru.bi.xá(s)

(f) *mô.le.jo(s) (f ’) mo.lê.jo(s) (f ’’) bo.ce.jô (coloquial)

(g) *cí.ga.rro(s) (g) ci.gá.rro(s) (g’’) pi.ga.rrô (coloquial)


Aparentemente, a penúltima sílaba das palavras de (5a-g) é leve. Diante
disso, elas deveriam poder ser proparoxítonas. O que está ocorrendo, então?
Na verdade, nem todas essas restrições têm a mesma explicação. Comecemos
pelo caso menos complicado, ou seja, o de (5a-b). Sobre casos como esses, o
filólogo José de Oiticica (1955) afirmou o seguinte: “Nos Estudos de
Fonologia, contestei a divisão da palavra guaianás em guai-a-nás, preferindo
gua-ia-nas, considerando o i consonantal, correspondente ao y espanhol
guayanás”. De acordo com sua interpretação, essas duas palavras se
enquadrariam na estrutura silábica CV.CV.CV, com todas as sílabas leves. Isso
não impediria as formas em questão de ser proparoxítonas. Acontece que,
mais tarde, Oiticica chegou à conclusão de que “houve, em português, uma
ditongação, seguida de um i consonantal não grafado, como se fosse: guai-ia-
nás. Ainda segundo o autor, “em maior, temos, na realidade, mai-ior, como em
feia, ouvimos, fei-ia”. Após essa divisão silábica, ele considerou “o primeiro i
claramente vocálico e o segundo, claramente consonantal” (OITICICA, 1955).
Era o que faltava para entendermos a agramaticalidade de (5a-b): as duas
palavras conteriam um ditongo na penúltima sílaba, o que as tornaria pesadas.
Como lembrado por José Olímpio Magalhães, se partirmos da pronúncia com
hiato, a proibição estará explicada. A forma “cá.ta.i.a” seria inadmissível.
Outros filólogos contemporâneos de Oiticica apresentaram interpretações
semelhantes. Um deles é Nascentes (1964, p. 17, passim). Há autores mais
recentes que são da mesma opinião, como Back e Mattos (1972, p. 85, 89) que,
não obstante, chamam o glide em questão de “som de transição”. De qualquer
forma, as palavras “raios”, “meios”, “Mauá” e “jóias” são silabificadas por
eles, respectivamente, do seguinte modo, ipsis litteris: /‘Ray.yux/, /‘mey.yux/,
/maw.’wa/ e /‘jOy.yax/. O fato constatado por esses precursores foi, posterior
e independentemente, chamado de ambissilabicidade no contexto da fonologia
auto-segmental (CLEMENTS; KEYSER, 1983), sobretudo como usada na
representação da fonologia auto-segmental (GOLDSMITH, 1990). Vejamos,
em (6), a representação arbórea de (5)(a)-(b) segundo essa vertente da
fonologia:
Em um primeiro momento, as semiconsoantes/semivogais (glide) são
ligadas ao aclive da última sílaba, numa estrutura CV. CV. CV, como propusera
Oiticica (1955). No entanto, o C que domina essas semiconsoantes (/j, w/) se
espraia para o núcleo (N) da sílaba precedente, transformando-o em núcleo
ramificante. Nessa posição, ou seja, dominados pelo N precedente, os
elementos /j/ e /w/ passam a funcionar como segunda vogal de um ditongo.
Com isso, a penúltima sílaba fica pesada, como as de (2e-f), motivo pelo qual a
palavra que a contém não pode ser proparoxítona. Não se trata de uma
solução ad hoc, uma vez que está prevista em duas fontes independentes.
Oiticica e os demais autores supracitados perceberam o que os falantes
efetivamente sentiriam no que tange à silabificação de palavras como essas.
A explicação para as formas de (5)(c) a (5g) já não é tão óbvia. Comecemos
pelas duas primeiras delas, ou seja, *cá.na.lha e *mê.do.nho. Elas conteriam
uma consoante palatal no aclive da última sílaba. Mas, o que têm as palatais /
ʎ/ e /ɲ/ que as proíbe de estarem nessa posição? Eu gostaria de sugerir duas
explicações, uma relativamente simples, presente na sincronia da língua, outra,
nem tanto. A primeira explicação é o fato de em muitos dialetos brasileiros
essas palavras serem pronunciadas como [ka.’na.ja] e [me.’dõ.ju]. Em alguns
dialetos, uma palavra como “Antônio” é realizada como [ã.’tõ.ju], ou seja,
como se na escrita fosse “Antonho”. Assim sendo, a explicação para esse caso
seria a mesma sugerida para os dois exemplos representados em (6). Haveria
um glide no aclive da última sílaba, que se ambissilabificaria, fazendo a
penúltima sílaba ficar pesada, por conter um ditongo.
Há uma outra pronúncia idioletal/dialetal para a consoante palatal de
formas como “ca.ná.lha” que também poderia justificar a agramaticalidade das
formas em questão. Na verdade, no português coloquial de grande parte do
Brasil, via de regra, ela é pronunciada como [ka.’na.lja], não [ka.’na.ʎa]. O que é
mais, a forma [ljV] geralmente alterna com [li.V]. Tanto que a expressão “alho
e óleo” sai como [‘a.li.u i ‘ɔ.li.u] (PONTES, 1972, p. 16). Quando minha filha
tinha oito ou nove anos, disse que “filha” terminava como “Brasília”, ou seja,
para ela ambas as palavras terminam em [-lja]. Diante desses fatos, se a palavra
tivesse acento na sílaba anterior [-ná-], na verdade teríamos pro-
proparoxítonas, ou seja, acento na quartúltima sílaba, algo como [‘ka.na.li.a].
Do mesmo modo, diante da associação entre as formas [‘õɲu], [‘o.nju] e
[‘o.ni.u], *mê.do.nho é agramatical porque seria sentido como se tivesse acento
na quartúltima sílaba também, ou seja, [*‘me.do.ni.u]. A fonologia do
português não admite esse padrão acentual.
A pronúncia [ljV] para o que se tem considerado tradicionalmente como
[ʎV] também já tinha sido notada por Pontes (1972). A palavra “fi.lha” foi
representada por ela como /‘fi.lya/. Interpretação semelhante foi dada por ela
também à palatal nasal, com o que “te.nho” foi representado como [‘tẽyu] ou
[‘tẽỹu]. Nos dois casos, seu [y] está para [j] da IPA. É claro que Pontes parte de
premissas inteiramente diferentes das minhas. No entanto, suas observações
são interessantes porque é a primeira vez que essa interpretação das
consoantes palatais foi sugerida por escrito, pelo menos até onde pude
investigar.
Essas pronúncias dialetais/idioletais na verdade confirmam a história dos
fenômenos em questão. Os fonemas /ʎ/ e /ɲ/ não existiam no latim; eles são
inovações românicas. Uma palavra como “fi.lha”, por exemplo, provém de
“fi.li.a” do latim, forma que ainda sobrevive em derivados como “fi.li.al”,
“fi.li.ar” e outras. Argumentos parecidos valem para a outra forma. Assim,
“tenho” proveio de “téneo”, com o possível estágio intermediário “ténio”;
“línha” vem de “línea”, pelo mesmo processo; “cicónia” deu “cegônha”, e
assim por diante.
Passemos às formas de (5e) e (5f), ou seja, *gá.rru.cha e *mô.le.jo,
respectivamente. Qual a razão de sua agramaticalidade? Até onde pude
investigar, trata-se dos exemplos mais complicados, só superados pelo último
(5g), que vem logo a seguir. Não encontrei nenhuma evidência sincrônica, em
nenhum dialeto brasileiro, que permitisse explicações como as que apresentei
para os exemplos precedentes. Aqui temos de recorrer apenas à diacronia,
usando a etimologia. Começando pela primeira palavra, sabemos que as
fricativas laterais surda /ʃ/ e sonora /ӡ/ inexistiam em latim. Também elas são
inovações românicas. Em muitas palavras, os fonemas em questão resultaram
da evolução de dois fonemas latinos, ou seja, de duas posições na cadeia
fonotática. Algumas das fontes da variante surda são os grupos consonantais
/pl/, /kl/ e /fl/. Assim, “chumbo” proveio de “plumbu”, “chave” de “clavi”
e “chama” (de vela) de “flama”. Mas, talvez mais importante seja uma outra
fonte. Por exemplo, “paixão” vem de “passione”. Como se vê, no último
exemplo a palatal /ʃ/ provém da seqüência [siV]. Aliás, isso parece ser uma
tendência generalizada nas línguas. Por exemplo, em inglês norte-americano,
uma seqüência de palavras como “this year” /ðɪs ji: / tende a ser pronunciada
como [ðɪʃji: ].
Quanto à contraparte sonora /ӡ/, também ela se origina em uma
obstruinte seguida de [i], embora por um processo mais tortuoso, uma vez que
em latim não existia /z/. Assim, “fujo” vem de “fugio”, certamente com
algum estágio intermediário em que [g] evoluiu para uma contínua. Para dar
apenas mais um exemplo, temos “basiu” dando “beijo”, com sonorização
intermediária da contínua.
Minha sugestão é a de que os falantes sentiriam as duas palavras (5e-f)
como se fossem, subjacentemente, algo como [‘ga.xu.si.a] e [‘mo.le.zi.u], que
são pro-proparoxítonas, ou seja, com acento na quartúltima sílaba, fato
inadmissível pelas regras de acentuação portuguesas. No caso específico da
contraparte surda /ʃ/, quem sabe não haveria algum tipo de memória
inconsciente de que ela já foi também /pl/, /kl/ ou /fl/?
O último exemplo (5g) é o mais difícil de explicar, entre todos os
anteriores. Para complicar ainda mais as coisas, temos o fato de a vibrante
múltipla alveolar [r] ter-se transformado em vibrante múltipla uvular [R] em
algumas variedades da língua. Esta última, por seu turno, evoluiu para fricativa
velar surda [x] e, finalmente, para glotal [h]. Tudo isso ainda ocorre em
diversos idioletos/dialetos do português brasileiro, embora haja uma tendência
de [x] se sobrepor a todas elas. A palavra “cigarro” aparece sob a forma de
[si.’ga.ru] (pronúncia obsolescente), [si.’ga.Ru] (talvez mais rara ainda) e
[si.’ga.xu] (a mais comum na língua), com a variante [si.’ga.hu].
Em qualquer dessas pronúncias, a penúltima sílaba parece ser leve, o que
permitiria a proparoxitonidade. No entanto, não é o que acontece. Como nos
dois exemplos anteriores, temos de recorrer à etimologia. Com efeito, a origem
da vibrante múltipla é uma geminada latina. A palavra portuguesa “terra”
provém do latim “terra”. Esta deve ser dividida silabicamente como “ter.ra”.
Com isso, a penúltima sílaba é pesada, por conter coda. O verbo que deu em
português “referir” é “re.fér.re”, com acento na penúltima, por ser pesada. Na
maioria das flexões desse verbo, no entanto, o acento vem na antepenúltima
sílaba, o que exige que a geminada [rr] se simplifique em [ɾ], como em
“ré.fe.ro” (eu refiro). A árvore silábica de “referre” seria como se vê em (7a).
Talvez o falante de português “sinta” que uma palavra como “so.te.rra” seja,
subjacentemente, como está representado em (7b), a despeito de a consoante
em questão geralmente ser pronunciada como fricativa velar surda, isto é,
[so‘tɛ.xa]:

Na forma latina “re.fer.re” (7a), a penúltima sílaba é pesada, pois contém


coda, a primeira parte da consoante geminada. Minha sugestão é, de novo, de
que haveria algum tipo de memória dos fatos de origem, ou seja, os falantes
atuais de português ainda sentiriam a primeira sílaba da palavra “terra” como
se fosse pesada (ter.ra), embora a coda já não exista foneticamente. A
representação (7b) mostra que, se essa sugestão for válida, o fonema /x/ seria
“sentido” como se fosse geminado como o [rr] de origem.
Na verdade, essa interpretação não se apóia apenas na teoria e na
etimologia. Por motivos diferentes, alguns autores sugeriram que a vibrante
múltipla seria efetivamente uma espécie de repetição da vibrante simples,
como J. Mattoso Camara Jr. Reportando-se a formas latinas como “fe.rum”,
“ca.sus”, “co.lis” e “a.ger”, cuja consoante simples tem uma contraparte
geminada “fer.rum”, “cas.sus”, “col.lis” e “ag.ger”, ele afirmou o seguinte:
Assim, podemos admitir que o /r/ pós-vocálico, foneticamente imperceptível, por causa da
delimitação vocabular, em ar roxo, existe também potencialmente em arrôcho embora sem
realização fonética; a sua presença fonêmica manifesta-se, apenas pela manutenção do som forte do
/r/ seguinte, que ficou fonêmicamente não-intervocálico (CAMARA JR., 1953, p. 110).
Infelizmente, na segunda edição de seu livro, o autor voltou atrás,
desistindo dessa interpretação, devido à crítica de um resenhador que não
entendia nada de fonologia do português. O importante, porém, é que,
inicialmente, ele teve uma intuição que parecia ir na direção correta, a despeito
de a maioria dos fonólogos serem contra ela como, por exemplo, Jorge
Morais-Barbosa (1983) que apresenta uma detalhada discussão sobre a
interpretação das consoantes vibrantes. Ele também informa que a vibrante
simples [ɾ] passou a ter uma pronúncia uvular [R] no final do século XIX, o
que é pouco na história de uma língua. O autor fala, ainda, da evolução de [R]
para [x], “sobre a qual não dispomos de elementos que permitam datar suas
origens” (p. 192), mas que é “muito freqüente em Lisboa” (p. 188). Menciona
até mesmo a variante [h], mas referindo-se ao Brasil. Em suma, mesmo após
deixar de ser vibrante múltipla, que equivaleria ao fim e ao cabo à geminada
latina, ou seja, mesmo depois de passar a ser pronunciada como [x] ou [h], essa
consoante é sentida pelos falantes como se ainda tivesse a característica da
vibração múltipla. Aliás, ela ainda ocorre em alguns dialetos e idioletos
brasileiros, além de ser generalizada em Portugal.
Existem outros argumentos em prol da interpretação aqui apresentada. Um
deles é a escrita. Como sabemos, ela é altamente conservadora, fazendo uma
clara distinção entre “fera” (animal feroz) e “ferra” (verbo “ferrar”). A divisão
silábica ortográfica não deixa dúvidas, ou seja, “fe-ra” e “fer-ra”,
respectivamente.
Fatos semelhantes ocorrem, por exemplo, no francês. Na palavra “haut”
(alto) não existe nenhuma consoante inicial, a transcrição fonética é [o]. No
entanto, essa palavra se comporta fonologicamente como se uma consoante
([h]?) existisse aí. Por exemplo, quando acrescentamos o artigo “le” ([lǝ]) a
uma palavra iniciada por vogal, como “ami” (amigo), o [ǝ] sincopa-se,
resultando [la’mi]. Quando ele é acrescentado a uma palavra iniciada por
consoante, o [ǝ] permanece, como em “le doigt” [lǝ dwa] (o dedo). Em “le
haut” (o alto) o [ǝ] do artigo se mantém, [lǝ o], exatamente como antes de
“doigt”. Em suma, os falantes de francês sentem palavras como “haut”,
“Havre” e outras como se ainda tivessem o [h] inicial, que existia na origem,
mas não se manifestam mais foneticamente.
CONFIGURAÇÕES SILÁBICO-VOCABULARES QUE NÃO ADMITEM
A PROPAROXITONIDADE II
Há mais um tipo de configuração silábica que não permite a
proparoxitonidade, exemplificado em (8a-e). Contrariamente aos casos
estudados na seção anterior, porém, aqui a opção não-marcada é a oxitonidade
(8a’-e’), e a marcada a paroxitonidade (8a’’-e’’). Como fica patente a partir
destes exemplos, a palavra não pode ser proparoxítona quando a última sílaba
for pesada, ou seja, terminar em /ɾ/, /l/ ou /N/, tomando-se /N/ como
símbolo da nasalidade e sem entrar na espinhosa questão do status fonológico
da nasalidade vocálica. Como já foi notado acima, a presença de /s/ final não
afeta o padrão acentual, sobretudo quando o peso é causado pela nasalidade
(8c):
(8)

(a) *ré.le.var (a’) re.le.vár (a’’) ca.té.ter

(b) *cô.mu.nal (b’) co.mu.nál (b’’) i.nú.til

(c) *já.ça.nã (c’) ja.ça.nã(s) (c’’) ver.bá.tim, í.mã(s), ór.fã(s)

(d) *Ní.te.roi (d’) Ni.te.rói(s) (d’’) jó.quei(s), úteis

(e) *vá.ra.pau (e’) va.ra.páu(s) (e’’) só.tão(s), en.xá.guam, ór.gão(s), ór.fão(s)

Paralelamente aos exemplos anteriores, é importante ressaltar que, na


primeira coluna, estão as formas proibidas (8a-e). Na segunda coluna, vê-se o
que é exigido pela regra (9), ou seja, a opção não-marcada para essa
configuração silábica (8a’-e’). E na terceira coluna, temos a segunda opção
acentual, marcada, mas ainda gramatical, ou seja, a oxitonidade (8a’’-e’’).
Tais dados requerem alguns comentários, antes de passarmos a indagar o
porquê de sua agramaticalidade. Não encontrei trissílabos paroxítonos
terminados em ditongo para (8e’’), exceto formas verbais como “enxaguam”.
Desse tipo temos ainda formas como “en.xá.güem” e “de.lín.qüem”, porém,
não muitos mais. No entanto, sabemos que a existência de mais sílabas antes
da tônica não afeta em nada o padrão. Sequer exemplos de paroxítono
terminado em ditongo oral cuja semivogal seja [w], ou seja, algo como
[va.’ɾa.paw], foram localizados. Os três exemplos de (e’’), e não deve haver
muitos mais, são todos nasalizados, o que faria a sílaba em questão ser super-
pesada..
Observando os dados de (8) podemos formular a regra (9), que parece ter
algo a ver com a regra (3) exposta acima:
(9) Quando a última sílaba é pesada, o acento deve recair prioritariamente sobre ela (8a’-e’); como
opção marcada, a palavra pode ser paroxítona (8a’’-e’’).
É bem provável que haja uma generalização maior sobre o valor do peso
silábico para o acento. No entanto, não vou investigar esse assunto no
momento. O meu objetivo é, como já foi explicitado acima, averiguar porque
palavras terminadas em sílaba pesada não podem ser proparoxítonas.
Há razões etimológicas para as formas de (8) deverem ser oxítonas. No
caso de (8a’), a forma latina “re.le.vá.re” era paroxítona, com acento em
[-.vá.-]. Como o [-e] final se apocopou, o [-r] que era aclive da última sílaba
passou a ser coda da sílaba precedente, dando “re.le.vár”. O acento latino de
origem não mudou de lugar. O que mudou foi a configuração segmental e,
conseqüentemente, a estrutura silábica. O resultado é que formas que eram
paroxítonas passaram a ser oxítonas. Na verdade, houve uma convergência de
fatores para que elas se tornassem oxítonas, isto é, o acento herdado do latim e
o fato de alterações fonéticas terem tornado a última sílaba pesada.
O mesmo ocorreu com as formas terminadas em /l/. A palavra
“co.mu.nál” provém de “com.mu.ná.li(s)”, que também era paroxítona. Com a
queda do [-i-], precedida da queda do [-s], o [l] do aclive da última sílaba se
adjungiu à sílaba precedente, como coda, produzindo uma sílaba pesada. Com
isso, a palavra passou a ser oxítona também por dois motivos: etimologia e
última sílaba pesada. Tanto essa forma quanto a anterior são preferencialmente
(como opção não-marcada) oxítonas.
É importante lembrar que a vogal alta final que se apocopou sobrevive em
derivados, como em “comunalismo”, além de em “fácil/facilidade”,
“útil/utilidade” etc.
Por fim, temos as palavras terminadas em vogal nasal. A palavra “ja.ça.nã”
não é o melhor exemplo para a presente discussão, uma vez que veio do tupi,
(não do latim), embora de um ponto de vista sincrônico isso não faça a menor
diferença. O que se disser das palavras de origem latina vale para as de outras
fontes também, uma vez que estas últimas se adaptaram ao novo contexto em
que foram inseridas. Porém, uma palavra como “ir.mã”, por exemplo, se
originou do latim vulgar “ger.má.na”, passando por formas intermediárias
como “er.má.na > ir.má.na”. Todas elas são paroxítonas, mas com acento na
mesma vogal que a de “ir.mã”. A palavra “sã” proveio de “sa.na”, entre
inúmeros exemplos semelhantes. Aconteceu o mesmo que notamos nos dois
exemplos anteriores: com a queda da vogal final, o elemento nasal incorporou-
se à sílaba precedente, tornando-a pesada. A consoante nasal que caiu
reaparece em praticamente todos os derivados. Veja-se, por exemplo,
“ir.ma.nar”, bem como “sa.nar”. O que importa é que vogal nasal é vogal mais
elemento nasal, ou seja, vogal mais alguma coisa. Qualquer coisa a mais tem
implicações moraicas. Essa coisa a mais tem sido interpretada como uma
consoante flutuante, neutra (BISOL, 1999, p. 168-169), um arquifonema /N/
(CAMARA JR., 1953, 1970), que ocupa uma posição no esqueleto silábico,
nesse caso, já interpretado pelo modelo auto-segmental.
O mesmo tipo de argumento vale para palavras de outras origens. Se
tivéssemos que derivar uma outra palavra de “jaçanã”, com certeza teríamos
algo como “jaçananismo”, “jaçananizar” etc. O /n/ que havia submergido,
emerge de novo, sempre que aparece uma vogal que lhe sirva de apoio. Não
usei o asterisco (*) nessas formas inativadas porque neste artigo ele indica
apenas agramaticalidade, e formas como “jaçananismo” e “jaçananizar” não
são agramaticais, pelo menos do ponto de vista morfofonêmico
ALGUNS CONTRA-EXEMPLOS
É possível encontrar, em algum registro da língua, um ou outro contra-
exemplo às formas proibidas apresentadas e discutidas acima. Na verdade, os
exemplos que encontrei são muito poucos. Em (10) podemos ver alguns deles:
(10)
(a) ré.cor.de
(b) pê.nal.ti
(c) Rô.nal.des (nome próprio, relacionado a “Rô.nald[i]”)
(d) pê.ssan.ca
(e) iídiche, lés.bi.cha
(f) ápage, côn.ju.ge (etimologia latina: conjux,cônjugis ‘esposo ou esposa’)
(g) má.pa.nai
(h) ál.co.ol
(i) ín.te.rim, pó.si.tron
(j) [‘a.pi.te. ɾu], [eli.’kɔ.pi. te. ɾu], [‘tɛ.ki.ni.ku]
De (10a) a (10d), temos palavras que apresentam uma consoante na coda
da penúltima sílaba, tornando-a pesada, contrariando o estipulado na primeira
parte da regra (3). Mas, como se vê, trata-se de empréstimos de línguas
estrangeiras. Eu só não encontrei contra-exemplo para palavras que
contenham /s/ nessa posição, em contraparte a (2c).
Em (10e) e (10f), temos contra-exemplos à restrição que proíbe (5e-f),
amplamente discutida acima. No caso de “iídiche”, trata-se de empréstimo, é o
nome de uma língua. Como freqüentemente ocorre nesses casos, adota-se algo
parecido com a pronúncia original. Quanto a “lés.bi.cha”, trata-se de um
neologismo introduzido pelos humoristas do programa cômico de televisão
chamado Casseta e Planeta (TV Globo, 27/5/1995). Quanto a “côn.ju.ge”, é
realmente problemático, uma vez que parece não ser empréstimo a língua
estrangeira nem criação neológica ou giríaca, como (10e). No entanto, deve-se
notar que não se trata de palavra popular. Ela é mais usada no jargão jurídico,
que é altamente formal. Nesse caso, seria uma palavra tirada do latim,
portanto, que chegou à língua por via erudita. De certa forma, pode ser
considerada também como um empréstimo, embora seu âmbito de uso esteja
aparentemente se alargando. No que tange a “ápage”, trata-se de um
empréstimo ao grego, cuja existência é ignorada por talvez 99% dos brasileiros.
Os exemplos de (10g) a (10i) são de outro tipo. Mas todos eles infringem a
restrição da primeira parte da regra de (9). O primeiro deles, “má.pa.nai”,
designa uma tribo indígena que teria habitado as margens do Rio Içana,
portanto, é empréstimo, nome de grupo étnico. Tampouco as palavras de (10i)
fazem parte da linguagem quotidiana. No caso, “ín.te.rim” só é usado por
pessoas eruditas, tendo sido pinçado direto do latim por intermédio delas.
Quanto a “pó.si.tron”, é um termo técnico da física, formado a la grega. Além
de empréstimo, só é usado no contexto da ciência. É interessante notar que a
gramática normativa recomenda a forma “po.sí.tro.nes” para o seu plural, com
o fito de evitar acento na quartúltima sílaba, ou seja, “pó.si.tro.nes”. A única
palavra desse grupo que parece ser de uso corrente é “al.co.ol” (10h). Para
começo de conversa, também ela é empréstimo, nesse caso, do árabe. Segundo,
no português coloquial ninguém diria [‘al.ko.ol], nem mesmo [‘aw.ko.ow]. O
que se ouve é [‘aw.kow] e até [‘aw.ku]. Na região rural de Patos de Minas (MG)
eu registrei a forma [‘ar.ku].
Por fim, temos os contra-exemplos de (10j), que infringem a restrição (não
formulada em regra acima) segundo a qual no português não há palavras pro-
proparoxítonas, com acento na quartúltima sílaba. Eles seriam mais
problemáticos porque resultariam da epêntese de uma vogal entre duas
consoantes que não podem formar grupos consonantais de aclive silábico, ou
seja, /pt/, /kt/ e /kn/. É bem provável, no entanto, que pronúncias como as
dadas em (10j) sejam apenas de pessoas eruditas, filólogos, gramáticos. Grande
parte das demais pessoas geralmente diz algo como [e.li.‘kɔp.tu] e até [e.li.‘kɔp].
Quanto a “téc.ni.co”, eu já ouvi pronúncias como [‘tɛ.ni.ku] e até [‘t n.ku].
Mesmo que admitíssemos que as palavras de (10) sejam realmente
pronunciadas como sugerido na grafia e nas transcrições fonéticas, trata-se de
pouco mais de uma meia dúzia de exemplos, no meio de milhares de palavras
regulares da língua. Nos termos da gramática gerativa, eles se encontram na
periferia marcada, não do núcleo da língua.
UMA EXPLICAÇÃO ALTERNATIVA: TRAÇOS RECESSIVOS?
Quando comecei a analisar os proparoxítonos no início da década de 1990,
partindo das constatações iniciais de Silva (1996 [data de publicação, mas já
apresentadas oralmente antes disso]), para casos como os de (5a-b), não tinha
a menor idéia de qual poderia ser a razão para as restrições (3) e (9),
comentadas acima. Tanto que, nos primeiros momentos, eu apenas descrevi os
fatos, como se pode ver em Couto (1997, p. 127-138). Pouco tempo depois,
apresentando a análise em aula para alunos de pós-graduação, lembrei-me que
essas restrições seriam herdadas do latim. Haveria uma espécie de memória,
ainda que em apenas alguns dialetos ou até mesmo idioletos, de fatos que já
não se manifestavam foneticamente. É claro que se tratava de uma
interpretação que ia contra a ortodoxia gerativista. No entanto, pelo menos
para casos como os de (5e-g), parecia não haver outra alternativa de explicação.
Na mesma época, eu estava começando a investigar as relações entre língua
e meio ambiente, usando conceitos da ecologia biológica a fim de construir as
bases epistemológicas de uma nova disciplina, “ecolingüística”, iniciada com
Haugen (1972), Salzinger (1979), Fill (1993) e sumariada em Couto (2007).
Nesse mesmo contexto, foi apresentada a “ecologia da evolução lingüística” de
Mufwene (2001, 2005) que, partindo da genética das populações, vê a língua
primeiro não como um organismo, como fizera Schleicher (1863), mas como
uma espécie parasita e até viral. Esse arcabouço teórico veio confirmar a
interpretação da “memória” de fatos invisíveis em superfície. Tratar-se-ia de
traços recessivos, que ficam latentes na língua como um todo, manifestando-se
em superfície em dialetos/idioletos restritos, se tanto, paralelamente aos genes
recessivos da genética. Com isso, contra-exemplos como os de (10e-f) não
seriam problema. Eles seriam indícios de que estaria havendo uma mutação
lingüística, que os traços recessivos estariam efetivamente desaparecendo.
Àqueles que acham que essa explicação parece estranha, eu gostaria de
fazer algumas perguntas:
1) Por que precisamente a presença de dois fonemas que inexistiam em
latim, /ʃ/ e/ӡ/, no aclive da última sílaba não permite a proparoxitonidade? É
mero acaso o fato de provirem de seqüências como [s+iV] e [g>z+iV],
respectivamente, ou de /pl/, /kl/ e /fl/ no caso de /ʃ/?
2) Por que precisamente um fonema (/x/) que provém de uma geminada
latina /rr/ no aclive da última sílaba não admite a proparoxitonidade (5g)?
3) Por que essas duas restrições são tão parecidas com outras de (5),
sobretudo (5a, c-d), em que as consoantes em questão são todas palatais e
ainda se manifestam foneticamente em alguma variedade da língua?
4) Será que essas coincidências são mero acaso?
Afinal, a língua não é apenas uma estrutura sincrônica, estática e sem
nenhuma relação com a história. Pelo contrário, a sincronia atual da língua é
produto de um longo processo evolutivo. Tanto que algumas tendências
teóricas têm usado o presente para explicar o passado. Por que não fazer o
contrário? Está na hora de superarmos a “síndrome da sincronia” e
lembrarmos que até mesmo o sistema abstrato tem alguma relação com a
história, por mais indireta que seja e mesmo que ela já não se manifeste em
superfície. A ecologia da evolução lingüística mostrou-nos que a língua é
equiparável à espécie da genética, não ao organismo, e que a língua
comunitária é um conjunto de idioletos. Determinado traço pode existir em
uns poucos idioletos, ou apenas em um deles. Pode até mesmo nem se
manifestar em nenhum deles, existindo apenas de modo latente, como ocorre
com alguns genes recessivos da genética (MUFWENE, 2001, 2005).
OBSERVAÇÕES FINAIS
Recapitulando, a penúltima e a última sílabas têm um papel fundamental na
posição do acento em português, uma vez que é o peso delas que determina
onde ele deve recair prioritariamente. Se a penúltima sílaba é pesada, o acento
deve recair sobre ela (2a’-f ’), podendo ocorrer também na última como opção
marcada (2a’’-f ’’). Se a última é pesada, o acento dever vir preferencialmene
sobre ela (8a’-e’), podendo ocorrer também na penúltima (8a’’-e’’), como
opção marcada. Se ambas forem leves, a preferência geral da língua é colocar o
acento na penúltima sílaba (4), podendo ele ocorrer também na última (4a’-n’)
como a primeira opção marcada. Isso vale para os dissílabos e para as palavras
com mais sílabas. No caso das palavras com três sílabas ou mais, ele pode
ocorrer também, excepcionalmente, na antepenúltima (1), como segunda e
última opção marcada. Trocando em miúdos, a proparoxitonidade só se aplica
em último caso.
Não é para menos que a proparoxitonidade esteja sujeita a tantas restrições.
Estatisticamente, mal chega à metade do número de oxítonas, que já é um
padrão marcado e perfaz menos de um terço dos paroxítonos, mesmo na
variedade mais formal da língua. Em variedades mais populares e rurais, a
proparoxitonidade chega a desaparecer, mediante aplicação de uma regra,
queda da postônica, herdada do latim tardio. Com isso, aumenta drasticamente
o número das oxítonas e um pouco o das paroxítonas.
Tudo isso tem a ver com a história da língua. Os paroxítonos e os oxítonos
emergiram na língua por via popular, enquanto os proparoxítonos chegaram
até ela por via erudita. Tanto que os filólogos falavam em Lei da Persistência
da Sílaba Tônica na passagem do latim ao português. Essa “lei” era
freqüentemente violada quando a palavra era proparoxítona. Assim, “mulíere”,
“íntegru”, “cáthedra” e “óbligo” se converteram em “muliére”, “intégru”,
“cathédra” e “oblígo” no latim vulgar, antes de dar “mulhér”, “intêiro”,
“cadêira” e “obrígo”, respectivamente. O fato é que os proparoxítonos atuais
normalmente são empréstimos ao latim, ao grego ou a outras línguas, não
palavras que nos chegaram pela evolução fonética normal. Por isso, não se
pode entender a proparoxitonidade, bem como nenhum outro aspecto da
língua, ignorando sua história pois, como diz Labov (1975), há dados no
presente que nos permitem vislumbrar o passado. Dito de outro modo, há
reminiscências do passado no presente. Isso porque a variação do presente é a
manifestação de fatos passados.
É bem verdade que alguns autores tentaram explicar as restrições em tela
neste ensaio. Entre eles, poderíamos lembrar o já mencionado Wetzels (2006).
Mas, como bom e competente gerativista que é, ignora a história. A única
realidade que o modelo que ele usa vê são dados sincrônicos e possíveis
interpretações que a teoria pode fornecer a respeito desses dados. Mesmo na
sincronia, ignora também sistematicamente a variação. Porém, é justamente
nela que podemos encontrar fósseis de fatos passados que ainda são sentidos
pela comunidade de falantes como um todo, como se ainda existissem, de
acordo com o exemplo do /h/ inicial francês.
Gostaria de terminar lembrando que a lingüística estabelecida não dá a
devida atenção a esse tema nem a outros que são importantes na dinâmica das
línguas. Entre os temas fonético-fonológicos sistematicamente ignorados estão
algumas questões prosódicas, que refletem algumas preferências da língua, além
das restrições (regras) que os fonólogos estudam. Assim, os dois padrões
acentuais dos dissílabos, ou seja, paroxitonidade (já.ca) e oxitonidade (ja.cá),
continuam válidos nos polissílabos (va.rân.da, ja.ca.ran.dá), embora esses
últimos possam ser, excepcionalmente, proparoxítonos (chá.ca.ra). Não se tem
averiguado, por exemplo, se no caso de haver sílabas complexas, em que
posição elas ocorrem preferencialmente. Por exemplo, a língua prefere que elas
venham na primeira sílaba dos dissílabos paroxítonos (prá.to, frás.co, pás.to,
ás.co), ou não (lê.tra)? Ou preferem que a complexidade venha na sílaba
tônica? Parece que não são bem-vindas na língua palavras com mais de uma
sílaba complexa (cré.bro, trí.plo). Muito menos nos proparoxítonos, como em
“pró.dro.mos”, “Pá.tro.clo” e, talvez, “Prá.tro.clo”.
No caso dos proparoxítonos, vimos que a penúltima e a última sílabas não
podem ser pesadas, sendo que as demais posições podem ser complexas
(prá.ti.ca, prá.cri.to, prós.ta.ta, sâns.cri.to, fé.re.tro). Será que, havendo sílaba
complexa, não haveria uma certa preferência (tendência) por sua ocorrência na
antepenúltima sílaba (prós.ta.ta, plás.ti.co), na penúltima (sá.tra.pa) ou na
última (múl.ti.plo, qui.lô.me.tro)? Havendo duas sílabas complexas, quais das
três (trí.bra.co, Pá.tro.clo)? No caso de (1h’), não encontrei exemplos com
aclive complexos, como “prá.ti.va!”, “pá.cri.va!” e “pá.co.vra!”, nem com aclive
e coda na antepenúltima sílaba, como em “prás.ti.vo!” (! está para palavra
inativada). Não entanto, nenhuma dessas formas parece ser fonologicamente
agramatical. Seria interessante fazer testes de aceitabilidade, a fim de averiguar
se os falantes as consideram palavras potenciais da língua. Aparentemente,
tudo isso faz parte da dinâmica fonético-fonológica do português, e deveria ser
estudado juntamente com a variação e a evolução histórica.
A língua não é apenas uma gramática composta de princípios, parâmetros e
regras formando um todo coeso invariável e imutável.
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NOTAS
Gostaria de agradecer a Seung-Hwa Lee por seus comentários. Agradeço também a José Olímpio
Magalhães, cujas críticas me fizeram ser mais atento a diversos pontos. Nenhum dos dois, porém, tem
qualquer responsabilidade pelas idéias aqui expressas.
Estudo diacrônico da inversão sujeito-verbo no
português brasileiro: fenômenos correlacionados

Izete Lehmkuhl Coelho – UFSC


Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott – UFAM/PG-UFSC
Marco Antonio Martins – PG-UFSC
INTRODUÇÃO
Descrevemos e analisamos, neste trabalho,29 o processo de variação e
mudança dos fenômenos sintáticos construção de foco, concordância verbal de terceira
pessoa do plural e colocação do clítico se, aparentemente, correlacionados à ordem do
sujeito, no português de Santa Catarina entre os séculos XIX e XX. Nossa
análise terá como base empírica amostras extraídas de peças de teatro de
autores catarinenses (do litoral do Estado de Santa Catarina).30
Para tanto, articulam-se pressupostos de dois quadros teóricos: de um lado,
os pressupostos da teoria da variação e mudança (WEINREICH; LABOV;
HERZOG, 1968; LABOV, 1994); de outro lado, os pressupostos da teoria
gerativa, mais especificamente aqueles atrelados ao Programa Minimalista
(CHOMSKY, 1995).
Os objetivos específicos são complementares, a saber: a) caracterizar e
explicar as motivações que condicionam as ordens sujeito-verbo-complemento
e verbo-sujeito-complemento (SV(O)/VS(O)), buscando observar, a partir da
análise das variáveis tipo de verbo, posição do verbo e século, se há indícios de
mudança em tempo real; e b) correlacionar o fenômeno da ordem do sujeito
com a posição de foco, a marcação da concordância verbal e a colocação do clítico se, com o
intuito de discutir o encaixamento lingüístico desses fenômenos no sistema do
português ao longo dos séculos.
O texto está assim organizado. Na segunda seção, apresentaremos
resultados de estudos diacrônicos acerca da variação da ordem do sujeito e de
fenômenos sintáticos aparentemente correlacionados a essa ordem. Na terceira
seção, discutiremos os resultados obtidos na análise de cada um dos
fenômenos ao longo dos séculos, a fim de verificar se o português de Santa
Catarina do século XIX e o do século XX podem ser considerados sistemas
diferentes, configurando um caso de competição de gramáticas, nos termos de
Anthony Kroch (1989). Na quarta e última seção sistematizaremos os
resultados da discussão aqui proposta e daremos sugestões de leitura.
DESCRIÇÃO DOS FENÔMENOS: RESULTADOS DIACRÔNICOS
Sobre a ordem do sujeito no português
O português do Brasil (PB), como muitos trabalhos de sociolingüística já
demonstraram apresenta uma ordem sujeito-verbo-complemento basicamente
enrijecida nos dias atuais, associada em geral à natureza do verbo e à natureza
do sintagma nominal (SN) que ocupa a posição do sujeito. Estudos
diacrônicos como os de Berlinck (1989, 1995) e Coelho (2006), por exemplo,
mostram que, nos séculos XVIII e XIX, o português apresenta freqüências de
VSO em todos os tipos de construções verbais e com todos os tipos de SNs,
diferentemente do que acontece no século XX.
Observemos, então, a variação da ordem no português do século XIX, em
pares de exemplos extraídos de peças de teatro de autores catarinenses:
1) a. É verdade, Sr. Bibiano, o Sr. ainda não contou-me toda a historia da formação da meza
eleitoral. [Brinquedos de Cupido, 1859]31
b. Qual seu Bibiano, respondia-me elle, em eleições ninguém me passa a perna [Brinquedos de
Cupido, 1859]
2) a. O recibo é depois, quando o velho resgata o compromisso commigo [Brinquedos de Cupido,
1859]
b. A questão é sabermos de que modo caudinharam o Sr. Bibiano, quando contava elle a victória
certa. [Brinquedos de Cupido, 1859]
3) a. Não, senhora; eu amo, e não penso; porque se a razão fosse superior ao amor [Brinquedos de
Cupido, 1859]
b. Não está lá, porque de lá venho eu [Um cacho de mortes, 1881].
4) a. Aí está em que a comadre gasta as patacas: sustentar quanto súcio aí vem dessas terras d’além
mar! [Raimundo, 1868]
b. Além d’isso alli vem a posteridade dos palitos [Brinquedos de Cupido, 1859]
Os paradigmas de (1) a (4) apresentam variação da ordem do sujeito nos
mesmos contextos (morfo)sintáticos, praticamente irrestrita. Há casos de
variação com verbos transitivos e inacusativos, em construções principais ou
subordinadas, bem como casos em que o sujeito é marcado com traços
[+animado] e [-animado] e pode-se realizar morfologicamente como sintagma
nominal ou como pronome.
Dando uma primeira olhada nos casos ilustrados de (1) a (4), podemos
dizer que a ordem verbo-sujeito das sentenças dos exemplos em (3b) e (4b) é
muito mais natural do que em (1b) e (2b) nos dias atuais. Vejamos esses dois
últimos casos, considerando nosso critério de gramaticalidade:32
5) a?? Qual seu Bibiano, respondia-me elle, em eleições ninguém me passa a perna
b. Qual seu Bibiano, elle me respondia, em eleições ninguém me passa a perna
6) a?? A questão é sabermos de que modo caudinharam o Sr. Bibiano, quando contava elle a victória
certa
b. A questão é sabermos de que modo caudinharam o Sr. Bibiano, quando elle contava a victória
certa
Como podemos observar nos exemplos acima, enquanto no século XIX
sentenças como as ilustradas em (1b) e (2b) são freqüentes, no português atual
parecem agramaticais ou, pelo menos, pouco comuns (5a) e (6a). As
possibilidades de variação da ordem em construções transitivas parecem
pouco naturais, contrariamente ao que acontece com construções inacusativas,
como evidencia a variação em (3) e (4), perfeitamente possível nos dias atuais.
Os exemplos ainda ilustram que, em relação à natureza morfológica do sujeito,
enquanto o português do século XIX admitia sujeito pós-verbal, tanto
pronominal quanto nominal, o português atual prefere sujeito pós-verbal
nominal.33 E quando há clíticos em jogo, como no exemplo (5b), a ordem
sujeito-verbo vem, preferencialmente, acompanhada por próclise [SclV], outro
fenômeno que sofreu mudança ao longo dos séculos (CYRINO, 1993).
Note-se, ainda, que em (5) estão em jogo sentenças do tipo V1, com verbo
em primeira posição, como em (5a), e sentenças do tipo V2, com verbo em
segunda posição, como em (5b). A segunda muito mais comum nos dias atuais
e se assemelha à possibilidade de construções com um padrão XVY, ou seja,
um padrão de construção transitiva. Estudos de Kato e Tarallo (1988) e Kato
(2002) já se têm preocupado com esse padrão de sentença, que se tem
mostrado bastante freqüente no português atual, um padrão do tipo V2.
Consideremos agora o paradigma em (7), com nosso critério de
gramaticalidade:
7) a. Agora é que é o bonito! Vai um rapaz da campanha, nem ponta de barba!, diz ao Zé Maria:...
[Raimundo, 1868]
b. Agora é que é o bonito! Um rapaz da campanha vai lá... (PB atual)
c. Agora é que é o bonito! Lá vai um rapaz da campanha... (PB atual)
Parece que atualmente o português prefere usar XV a VX
independentemente do tipo de verbo, como (5b) e (7b, c) ilustram, com a
posição à esquerda do verbo preenchida ora por sujeitos ora por advérbios
localizadores (espaciais ou temporais). Essa preferência de V2 a V1, mesmo
nos casos em que permite variação da ordem (VS inacusativa), pode ser uma
das primeiras explicações à queda de VS(O) no português atual.
Os exemplos acima são evidências favoráveis às seguintes hipóteses que
iremos investigar:
a) O português do século XIX admitia variação da ordem do sujeito, em
diferentes contextos (morfo)sintáticos, irrestritamente.
b) O tipo de verbo condiciona fortemente a variação da ordem nos dias
atuais: verbos (in)transitivos apresentam uma ordem SVO basicamente fixa, e
verbos inacusativos admitem variação.
c) Enquanto o português do século XIX admitia V1 e V2, o português
atual prefere V2 a V1; uma espécie de padrão XVY.
Para dar suporte empírico às discussões acerca da ordem do sujeito
apontadas acima, tomaremos o estudo diacrônico de Coelho, apresentado no
V Congresso da ABRALIN, a respeito da variação da ordem SV(O)/VS(O) (e
outras possíveis variações) em 1.466 construções declarativas com sujeito
preenchido, extraídas de seis peças de teatro de autores catarinenses, dos
séculos XIX e XX. Foram encontradas 1.315 ocorrências de SV(O) (90%) e
apenas 151 ocorrências de VS(O) (10%) nas peças analisadas. As variáveis
selecionadas pelo pacote estatístico VARBRUL (PINTZUK, 1988) foram, por
ordem de significância, tipo de verbo, material antes de V (V1, V2 e V3/4), século
(XIX e XX) e animacidade do SN. As três primeiras variáveis constituem o
objeto da discussão a seguir.
Começaremos nossa discussão pela variável século:
Tabela 1 – Freqüência e probabilidade de VS(O), segundo a variável
século
Variável século Apl/Total % PR
Século XIX (1859, 1868, 1881) 84/574 15 0,71
Século XX (1980, 1992a e 1992b) 67/892 08 0,36
Total 151/1466 10

Os resultados mostram uma queda de VS(O) do século XIX para o século


XX (de 15% para 8%). Esse movimento está diretamente correlacionado à
variável tipo de verbo da construção: são certas construções monoargumentais
que ainda admitem ordem VS no português atual, como fica evidente nas
Tabelas 2 e 3, a seguir:
Tabela 2 – Freqüência e probabilidade de XVS, segundo a variável tipo
de verbo
Tipo de verbo Apl/Total % PR
Verbo inacusativo 81/258 31 0,74
Verbo de ligação 32/325 10 0,66
Verbo intransitivo 03/64 05 0,33
Verbo transitivo direto 20/606 03 0,30
Verbo transitivo indireto 04/102 04 0,38
Verbo bi-transitivo 11/111 10 0,73
Total 151/1466 10

Tabela 3 – Percentuais de VS(O), segundo as variáveis século e tipo de


verbo
Cruzamento entre século e tipo de verbo Século XIX Século XX
Verbo inacusativo 39/104 38% 42/154 27%
Verbo de ligação 15/138 11% 17/187 09%
Verbo intransitivo 03/32 09% 00/32 00%
Verbo transitivo direto 14/218 06% 06/388 02%
Verbo transitivo indireto 03/28 11% 01/74 01%
Verbo bi-transitivo 10/54 19% 01/57 02%
Total 84/574 15% 67/892 08%

A Tabela 3 mostra, nitidamente, um caso de mudança em tempo real. No


século XIX, a ordem do sujeito era variável em diferentes contextos sintáticos
(construções transitivas, intransitivas e inacusativas). Já no século XX, as
construções transitivas e intransitivas são basicamente categóricas na ordem
SVO, enquanto a inacusatividade da construção caracteriza-se como o
requisito fundamental de ocorrência de variação. Tais resultados vêm
confirmar os estudos variacionistas de Berlinck (1995) e de Coelho (2000 e
2006).
Consideremos agora resultados percentuais que mostram uma correlação
entre construções V1 e V2 (SV e XV) e século:
Tabela 4 – Percentuais de SV(O)/VS(O), segundo as variáveis século e
material antes de V
Cruzamento entre século e material antes de V (V2) Século XIX Século XX
Construção V1 26/46 57% 20/46 43%
como SV 160/472 34% 312/472 66%
Construção V2
como XV(S) 35/71 49% 36/71 51%
Total de ocorrências de V2 194/543 36% 349/543 64%

Como ilustram os resultados da Tabela 4, há uma queda de V1 do século


XIX para o XX (de 57% para 43%). Retomando os dados individualmente,
podemos observar que no século XIX eram freqüentes construções V1 com
verbos transitivos, como ilustra o exemplo em (1b). Essa possibilidade no PB
atual ficou restrita a monoargumentais, em especial a verbos inacusativos,
confirmando os resultados da Tabela 3 e os julgamentos de gramaticalidade
postos nos exemplos supracitados.
Quanto ao padrão V2,34 os resultados da tabela 4 mostram que há um
aumento no século XX de ocorrências que trazem o sujeito imediatamente
antes de V. Tanto no século XIX quanto no XX, entretanto, quando V2
aparece em VS(O) o contexto sintático apresenta-se inalterado confirmando o
que Torres Morais (1993)35 já havia constatado, isto é, nenhuma assimetria
entre construções principais e subordinadas, como ilustra (8). O movimento
do verbo nessas construções deve acontecer para uma posição em TP, por
exemplo (e não em CP), enquanto o sujeito deve permanecer em VP. (8b) é
evidência para essa simetria, já que o núcleo de CP está ocupado com o
elemento que:
8) a.O senhor nunca esteve aqui antes? Aqui é um lugar bom! [Flores de inverno, 1992]
b. Rapaz, parece [que está vindo um monte de gente pra cá. [Os lobos, 1980]
Para explicar essa preferência de V2 a V1, assumimos aqui a discussão de
Kato (2002). A autora diz que deve haver uma espécie de filtro prosódico, na
interface PF, licenciando construções com um argumento preenchendo a
posição à direita do verbo (e não dois), como em Me respondia elle (em vez de
Respondia-me elle). Para a autora, o PB prefere o padrão XVY, podendo X se Y
figurarem como constituintes gramaticais, ou na sua ausência, como elementos
discursivos. Quando um verbo seleciona dois argumentos, um deles deve-se
mover, necessariamente, para uma posição à sua esquerda.
Enfim, o fato de o português do século XIX passar para o do final do
século XX, de inversão variável e possibilidade de V1 para ausência de
inversão e ausência de V1 em construções (in)transitivas, parece evidência
favorável à hipótese de que o sistema do português atual em relação ao
movimento dos constituintes deve ter-se modificado. Com a perda da ordem
VS(O) (in)transitiva, o português prefere mover pelo menos um dos
argumentos para a esquerda do verbo, preferencialmente o sujeito (para a
posição de especificador de TP, por exemplo), produzindo a ordem SVO (ou
XVY).
Do contrário, como o verbo inacusativo seleciona apenas um argumento
interno, e como a posição de base desse argumento é a de complemento do
verbo, a ordem VS é derivada naturalmente. E, então, o que motivaria a ordem
SV inacusativa? Adotando a argumentação de Kato sobre o filtro prosódico,
podemos explicar que o movimento do argumento interno de um inacusativo
para uma posição de especificador de TP pode ter acontecido para evitar V1;
uma restrição rítmica. Na falta de movimento do argumento interno, outro
constituinte deve se mover para a posição à esquerda do verbo (um localizador
espacial ou temporal, por exemplo), derivando, nesse caso, a ordem XVY,
ilustrada em (8).
Considerando os resultados sobre a ordem do sujeito e a posição do verbo
aqui apresentados, delinearemos nas seções subseqüentes resultados
diacrônicos de estudos sobre as construções de foco, sobre a marcação da
concordância verbal de terceira pessoa e sobre a colocação (pré- ou pós-
verbal) do clítico se nas gramáticas do português. Nosso objetivo é buscar
pontos de convergência na sintaxe desses fenômenos a fim de, na terceira
seção deste texto, correlacioná-los à perda da inversão sujeito-verbo no
português de Santa Catarina entre os séculos XIX e XX.
Construções de foco
Diversos estudos a respeito de estruturas de focalização salientam que foco
é uma maneira de marcar certos efeitos discursivos na sentença. Marca o que é
freqüentemente considerada a informação nova da sentença, isto é, a
informação não compartilhada pelo ouvinte/leitor (MODESTO, 2001;
KATO, 2000; KATO; MIOTO, 2005; COSTA et al., [19--]).
Na literatura, de modo geral, fala-se em pelo menos dois tipos de foco:
foco na sentença inteira, conhecido como foco identificacional e foco no SN,
conhecido como foco informacional. Sentenças existenciais ou
apresentacionais manifestam, em geral, foco identificacional, uma vez que
transmitem exclusivamente informação nova, isto é, apresentam uma situação.
Na verdade, por informação nova entende-se a informação não compartilhada
pelo ouvinte/leitor, como ilustram os exemplos abaixo:
(9)
a. Taes quase as oscilações das marés; mudam q’ aqui as arêas para obstruir acolá [Brinquedos
de Cupido, 1859]
(i.e. dentre as várias coisas que poderiam acontecer com a natureza – apresentação de uma situação)
b. Depois de tantos anos de trabalho assíduo, vem coroar-me os cabelos brancos a irrisão da
sorte [Raimundo, 1868]
(i.e. dentre as várias coisas que poderiam acontecer depois de tanto trabalhar – apresentação de uma
situação)
Os dois casos em (9) ilustram a apresentação de uma situação não
esperada, dentre um conjunto de possibilidades. A literatura mostra que o
português marca esse tipo de foco, preferencialmente, com sujeito posposto. É
o que vamos confirmar abaixo, com a freqüência de uso desse tipo de
construção nas peças de teatro por nós analisadas.
A noção de foco que corresponde ao foco informacional está atrelada
também à informação nova (não pressuposta), e, em geral, atende ao conjunto
de pergunta-resposta –qu (quem). Vejamos (10) e (11):
(10) Diálogo
Eugênio – Quem é Klaus?
Klaus – Sou EU36 [Flores de inverno, 1992]
(11) Diga à Senhora que está aqui O SR. LUDOVINO [Brinquedos de Cupido, 1859]
Nos dois exemplos, as informações novas EU e O SR. LUDOVINO
contêm a informação solicitada pelo uso da palavra-qu. Consideremos agora
(12) para discussão das possibilidades de se reconhecer o elemento focalizado
através de pergunta-resposta do tipo qu-:
(12) A. Quem está aí?
B. Está aqui O SR. LUDOVINO
B` O SR. LUDOVINO está aqui
Note-se que as sentenças em B de (12) são duas possibilidades de
respostas: com sujeito à direta do verbo, como nos exemplos do século XIX
(ilustrados em (11)), e com sujeito à esquerda do verbo (como nos exemplos
em B`).37
Para dar suporte empírico às discussões, analisamos novamente as 1.466
construções declarativas com sujeito preenchido extraídas de seis peças de
teatro de autores catarinenses. Investigamos agora as construções que
manifestam alguma informação nova, seja na sentença inteira, seja no sintagma
nominal que se realiza como sujeito. Os resultados estatísticos podem ser
observados nas Tabelas 5 e 6, a seguir:
Tabela 5 – Percentuais de tipo de foco nas ordens SVO e VSO
Cruzamento entre tipo de foco e ordem do sujeito SVO VSO
Foco na sentença inteira
03/50 06% 47/50 94%
(foco identificacional)
Foco no SN-sujeito
62/158 39% 96/158 61%
(foco informacional)
Total 65/208 31% 143/208 69%

Tabela 6 – Percentuais de VS(O), segundo as variáveis século e tipo de


foco
Cruzamento entre século e tipo de Foco na sentença inteira (foco Foco no SN-sujeito (foco
foco na ordem VSO identificacional) informacional)
Século XIX 23/23 100% 60/76 80%
Século XX 24/27 88% 36/82 44%
Total 47/50 94% 96/158 61%

Como mostram os resultados estatísticos gerais, há uma forte correlação


entre VS e foco identificacional, diferentemente do que acontece quando o
foco recai no SN-sujeito, de 94% a 61%. Quando o foco é identificacional, isto
é, quando é apresentada uma nova situação (foco na sentença inteira), a Tabela
6 mostra que o português atual mantém a preferência pela ordem VS(O)
(88%), como no português do século XIX (100%), mas já aponta para uma
possibilidade de ordem SV(O). Quando o foco recai no SN-sujeito, os
resultados mostram que a ordem preferida no século XIX para foco
informacional era VS(O) (80%), passando no século XX para apenas 44%.
Em síntese, os resultados apresentados nas Tabelas 5 e 6 mostram que o
enrijecimento da ordem SVO produz também uma mudança no sistema do
português a respeito dos processos de focalização: a) quando a sentença inteira
é focalizada, o português prefere a ordem VSO, tanto no século XIX como no
século XX; b) quando o foco recai no sujeito, o português atual,
diferentemente do português do século XIX, prefere a ordem SVO.
Marcação da concordância verbal de terceira pessoa do plural
Alguns estudos variacionistas (como NARO; SCHERRE, 2007;
MONGUILHOTT, 2001, entre outros) apontam para a influência dos grupos
de fatores posição do sujeito em relação ao verbo, traço humano no sujeito e tipo de verbo
(entre outros) no condicionamento da variação da concordância verbal de
terceira pessoa do plural no português atual.
Levando em conta resultados desses estudos e resultados diacrônicos a
respeito da ordem (como BERLINCK, 1989, 1995; COELHO, 2006, entre
outros), resolvemos verificar a correlação entre concordância verbal de terceira
pessoa do plural e ordem do sujeito em seis peças de teatro de autores
catarinenses escritas nos séculos XIX (1859, 1868, 1881) e XX (1970, 1980,
1993). Levantamos um total de 165 dados de concordância verbal com sujeito
preenchido de terceira pessoa do plural, dos quais sete dados não
apresentaram marca de concordância.
Nossa expectativa é a de que a marcação da concordância verbal se dará
com maior recorrência na ordem SV e a não-marcação da concordância verbal
na ordem VS inacusativa, no português atual. Esperamos, também, encontrar
maior incidência de concordância verbal com sujeito invertido no século XIX,
pelo fato de haver nesse período uma maior freqüência de posposição e de
marcas de concordância no verbo. Parece que, em função desse uso, o falante
reconhecia facilmente o sujeito invertido como sujeito da sentença marcando a
concordância. Com o passar dos séculos, a ordem sujeito-verbo foi ficando
cada vez mais enrijecida (SVO) e o sujeito invertido passou, então, a ser
“confundido” com o objeto da sentença, por ocupar uma posição
aparentemente de complemento.
Como havíamos previsto acima, os resultados confirmaram nossa hipótese
de que a marcação da concordância verbal estaria atrelada à ordem SV e a não-
marcação da concordância verbal à ordem VS inacusativa, no português atual.
Nossa hipótese de uma maior incidência de concordância verbal com sujeito
invertido no século XIX também se confirmou, como indica a Tabela 7
abaixo: no século XIX, 100% de marcação na concordância com sujeito
invertido e no século XX, a percentagem desce para 85%:
Tabela 7 – Freqüência de concordância verbal, segundo o cruzamento
entre os grupos de fatores ordem do sujeito e século
SV VS Total
Século XIX 36/36 = 100% 13/13 = 100% 49/49 = 100%
Século XX 92/96 = 96% 17/20 = 85% 109/116 = 94%
Total 128/132 = 97% 30/33 = 91% 158/165 = 96%

Em função da relação do grupo de fatores posição do sujeito com outros


grupos de fatores, verificada em Monguilhott (2001), controlamos o traço [+/-
animado] e o tipo de verbo para verificar se nos dados de escrita também
observaríamos a mesma relação. Quanto ao grupo de fatores animacidade do
sujeito, encontramos os seguintes resultados gerais: 98% de concordância
quando o SN é mais animado, caindo para 91% quando o SN é menos
animado. Os resultados confirmam que o sujeito com traço mais animado
apresenta tendência à marcação da concordância verbal. Para confirmar a
relação entre posição do sujeito e animacidade, fizemos um cruzamento entre
os grupos de fatores, conforme a Tabela 8:
Tabela 8 – Freqüência de concordância verbal, segundo o cruzamento
entre os grupos de fatores ordem do sujeito e animacidade
Animacidade SV VS TOTAL
+ Animado 91/93 = 98% 14/14 = 100% 105/107 = 98%
-Animado 37/39 = 95% 16/19 = 84% 53/58 = 91%
Total 128/132 = 97% 30/33 = 91% 158/165 = 96%
O cruzamento mostra que o sujeito invertido marcado com traço [-
animado] é o que apresenta menor tendência à concordância verbal. Para
exemplificar, apresentamos dados da nossa amostra, em que os SNs que estão
na posição de sujeito são marcados com traço [-animado]:
(13) E se o meu nome e a minha cara aparece no jornal, eles logo pensam que eu tenho grana.
[Stradivarius, 1993]
(14) Falta pilha, açúcar, comida, água, música [Os lobos, 1980]
Em relação ao grupo de fatores tipo de verbo, os resultados confirmam a
nossa expectativa, já que os inacusativos se mostram como o contexto mais
favorecedor para a não-marcação da concordância (90%). Observando o
cruzamento entre os grupos de fatores tipo de verbo e século, verificamos que os
inacusativos apresentam uma menor freqüência de marcação da concordância
no século XX, diferentemente do que acontece no século XIX, como os
exemplos (15) e (16) e a Tabela 9 ilustram, a seguir:
Tabela 9 – Freqüência de concordância verbal, segundo o cruzamento
entre os grupos de fatores tipo de verbo e século
Intransitivo Transitivo10 Cópula Inacusativo
Século XIX 4/4 = 100% 18/18 = 100% 15/15 = 100% 12/12 = 100%
Século XX 7/7 = 100% 44/46 = 96% 21/21 = 100% 37/42 = 88%
Total 11/11 = 100% 62/64 = 97% 36/36 = 100% 49/54 = 92%
38

(15) Tinha que acontecer estas coisas comigo. [Stradivarius, 1993]


(16) São contíguos os nossos dormitórios, vivemos na mesma casa e observo os seus hábitos como
o Sr. Alfredo observará os meus. [Brinquedos de Cupido, 1859]
Nos casos ilustrados em (14) e (15), temos exemplos de não-marcação da
concordância na ordem verbo-sujeito, quando o verbo é inacusativo e o SN é
não animado, contexto que mais favorece a não concordância. Uma das
razões, já discutida por Pontes (1986), seria o fato de em função da posição do
sujeito, posposta ao verbo, e do traço [-animado], este sujeito passar a ser
encarado como objeto pelo falante não desencadeando, portanto, a marcação
da concordância. Outro motivo refere-se ao tipo de argumento que o verbo
inacusativo seleciona, argumento este que nasce na posição de complemento e
lá pode permanecer.
Já em (16), temos um verbo cópula, que pertence à classe dos inacusativos,
com sujeito posposto, exibindo marcas explícitas de concordância. Esta
marcação talvez se justifique em razão da saliência fônica, forte condicionador
da concordância verbal já atestado em Lemle e Naro, 1977; Naro, 1981;
Scherre e Naro, 1997; Monguilhott, 2001. Embora não tenhamos controlado
este grupo de fatores, sabemos que o verbo ser apresenta o grau mais elevado
na escala da saliência, já que há grande mudança na forma plural (é/são), o que
deve interferir na marcação da concordância.
Por fim, a variação na concordância verbal de terceira pessoa do plural nos
dados diacrônicos se manifesta apenas nas peças do final do século XX e é
condicionada pelo tipo de verbo (inacusativo), pelos traços semânticos do
sujeito, traço [-animado], e pela posposição do sujeito. Esses resultados
confirmam a variação na concordância verbal de terceira pessoa do plural
encontrada nos dados sincrônicos.
Colocação (pré ou pós-verbal) do clítico se
Estudos como os de Torres Morais (1993), Paixão de Sousa (2004) e
Galves, Brito e Paixão de Sousa (2006) evidenciaram que a posição dos clíticos
está correlacionada à ordem do sujeito e à posição do verbo nas gramáticas do
português. Ancorados nestes estudos, apresentaremos nesta seção um estudo
da colocação (pré- ou pós-verbal) do clítico se em uma amostra de 82
sentenças finitas,39 extraídas de seis peças de teatro de autores catarinenses
apresentadas/publicadas nos séculos XIX e XX.
De um modo geral, a análise preliminar dos dados nos sugere que
estruturas com negação (neg) são contextos categóricos de ênclise [clV] em
sentenças finitas com o clítico se, como se observa, respectivamente, nas
sentenças em (17) e (18),40 a seguir:
(17) É um pouco embaraçosa, é. Declaro-te que: ou serei máo advogado, ou contra amor não se
advoga. [Brinquedos de Cupido, 1859]
(18) E você queria ver o que? Não se lembra de como são as coisas? [Sim, eu sei, 1992]
Em relação a todos os demais contextos, observa-se variação na colocação
do clítico em orações finitas no português entre os séculos XIX e XX. Antes
de apresentarmos os resultados estatísticos, consideremos com mais vagar dois
contextos em particular: estruturas dependentes e construções V1.
Em estruturas dependentes (estruturas subordinadas) há uma forte
tendência à ocorrência da próclise, conforme (19); encontramos, no entanto,
na amostra analisada, duas ocorrências de ênclise neste contexto em textos do
século XIX, como exemplificado em (20).41
(19) a. D’aqueles que se definharem no trabalho de dizer – apoiado! [Raimundo, 1868]
(20) O Sr. Bibiano diz-nos que retira-se para negocio urgente, por isso não o convidamos para dar
nos o prazer de ir comnosco ao theatro. [Brinquedos de Cupido, 1859]
Tendo em vista a generalização de Tobler-Mussafia, segundo a qual um
clítico não pode ocorrer em primeira posição na estrutura, e diferentemente do
que se encontra na gramática do PB atual em que a próclise é (quase)
generalizada (PAGOTTO 1993; GALVES 2001; MARTINS, 2005, entre
outros) mesmo com o verbo em primeira posição, esperamos encontrar nos
dados diacrônicos ênclise categórica em contextos V1 no português dos
séculos XIX e XX. Na análise dos dados encontramos, no entanto, uma
ocorrência de próclise em contextos de V1 num texto escrito na década de 80
do século XX, de Ademir Rosa, como exemplifica (21):
(21) Vai acabar mais louco. Se olhe no espelho, faz quanto tempo que você não se enxerga? [Os
lobos, 1980]
Em relação à análise estatística dos contextos de variação, as variáveis
selecionadas pelo programa VARBRUL foram ordem do verbo e século de
publicação/apresentação das peças. Discutiremos, em primeiro lugar, considerando
os resultados apresentados na Tabela 10, a correlação entre a colocação
enclítica de se e a variável século:
Tabela 10 – Freqüência de ênclise, segundo a variável século
Século Apl/total %
Século XIX (1859, 1868, 1881) 27/52 52
Século XX (1980, 1992a e 1992b) 7/30 23
Total 34/82 41

De acordo com os resultados apresentados na Tabela 10, observamos uma


redução de construções com se enclítico do século XIX para o século XX na
amostra analisada (de 52% para 23%). Essa redução nos leva a aventar a
hipótese de que construções com se enclítico são licenciadas por uma
gramática vigente no século XIX e não mais (ou com uma freqüência bastante
reduzida) por uma gramática vigente no século XX.
O contexto relacionado à posição do verbo na sentença foi o primeiro
selecionado pelo programa estatístico. Seguindo a restrição Tobler-Mussafia
corrente na lingüística, a análise estatística dos dados sugere que estruturas
cujo verbo ocupe a primeira posição (V1) são fortes contextos favorecedores
da ênclise (95%, conforme dados da Tabela 11, a seguir). Como já foi
mencionado, encontramos apenas uma ocorrência de próclise nesse contexto
num texto já do século XX. Em relação a esse aspecto, importante se faz
salientar que a gramática do PB prefere próclise (quase) generalizada
(GALVES, 2001, entre outros).
Tabela 11 – Freqüência de ênclise, segundo a variável ordem do verbo
em sentenças finitas
Ordem do Verbo em sentenças finitas Apl/total %
V1 → #[V 18/19 95
V2 → #[XV 11/29 32
V3 → #[(X)XXV 5/34 15
Total 34/82 41

Os dados a seguir exemplificam, respectivamente, contextos de V1 nos


quais há maior freqüência de uso da ênclise, contextos de V2 e contextos de
V3 que são inibidores de estruturas com se enclítico:
(22) Sim. Mas é por isso mesmo. Amam-se e há rivalidades. Ignoram o parentesco e ha ciúmes. Vê
tu o meu embaraço. [Brinquedos de Cupido, 1859]
(23) Neste mundo engole-se tudo e a senhora não é mais pintada do que as outras que têm engolido
também! [Um cacho de mortes, 1881]
(24) Agora o difícil ... É quando estas luzes se apagam e tudo volta a ficar igual, tudo volta a
mesmice. [Os lobos, 1980]
É importante observar que a natureza de X no contexto #[XV (em
construções com V1, V2 e V3 aos quais se faz referência na Tabela 11) pode
ser: a) um constituinte descolado (como é o caso de (23)); b) um advérbio de
certa natureza (25);42 e c) um sujeito lexical (26):
(25) Sympathiso muito com este moço Graças a Deus! Sei que estou remido! Lá se foram todas as
minhas teorias! [Raimundo, 1868]
(26) Minha ama finge-se alegre e eu sei que ella está aflicta, pois até esta hora meu amo não aparece.
[Brinquedos de Cupido, 1859]
Tomando para análise ainda as construções #[XV nas quais X é um sujeito
lexical, controlamos a variável ordem do sujeito, a fim de verificar a correlação
desta com a posição enclítica ou proclítica de se nos diferentes séculos. Como
podemos observar nos resultados apresentados na Tabela 12, a seguir, a
freqüência de se enclítico cai em contextos com sujeitos pré-verbais, de 45%
no século XIX para 0% no século XX:
Tabela 12 – Freqüência de ênclise, segundo as variáveis ordem do
sujeito e século
SV VS TOTAL
Século XIX 9/20 45% 3/9 33% 12/29 41%
Século XX 0/16 0% 4/6 67% 4/22 18%
Total 9/36 7/14 16/51 31%

As sentenças extraídas da amostra em (27) e (28) exemplificam os


contextos em que sujeitos pós-verbais favorecem construções com se enclítico
e sujeitos pré-verbais favorecem construções com se proclítico:
(27) Lá vai à saúde do nosso passageiro!... Vamos lá, encham-se OS COPOS. Viva o Sr. D. Manoel!...
[Raimundo, 1868]
(28) Pois então conte isso a ele. Eu sou uma triste ilusão de mulher, somente. VALENTINA se
dissipou na vida, e a vida juntamente com ela. Não há razão para esperar mais nada. É como dar
socos no ar. [Flores de inverno, 1992]
Na análise de Galves, Britto e Paixão de Sousa (2006), no PE
(diferentemente do português clássico) em construções #[XV a ênclise pode
ser licenciada quando o sujeito for adjunto (em contextos #S[V → SVcl) ou
pré-verbal (em contextos #[SV → SVcl). Considerando a análise das autoras, a
perda de V1 pode ser uma evidência de que a ênclise (do clítico se, em
especial) está associada à ordem SV(O) com sujeito pré-verbal ou adjunto aos
limites sintáticos e fonológicos da sentença na gramática do PB.
Para Torres Morais (1993), a perda da inversão sujeito-verbo que deu
origem à gramática do PB estaria relacionada à reanálise nos padrões de
colocação dos clíticos na gramática do português. O PB teria perdido a
projeção da categoria funcional AGR1 (que acomodaria o verbo quando
movido), de modo que a única opção licenciada para a acomodação dos
clíticos nessa gramática é a próclise. Essa mudança na gramática do português
teria seu início, também, no século XIX.
CORRELAÇÕES SINTÁTICAS
Buscaremos nesta seção correlacionar os resultados diacrônicos
apresentados em “Descrição dos fenômenos: resultados diacrônicos”, em
torno dos fenômenos construções de focalização, concordância verbal de
terceira pessoa e colocação do clítico se, com a posição do sujeito, no
português de Santa Catarina entre os séculos XIX e XX.
Sobre as construções de focalização, do tipo foco identificacional e foco
informacional, observamos em “Construções de foco” duas distribuições
diferentes entre os séculos XIX e XX. Quando o foco é identificacional, isto é,
quando é apresentada uma nova situação, mostramos que o português atual
mantém a preferência pela ordem VS(O) (88%), como no português do século
XIX (100%). Quando, porém, o foco recai no SN-sujeito o padrão do século
XX se distingue do padrão do século XIX, preferindo marcar o foco no SN
anteposto ao verbo.
No que se refere à marcação da concordância verbal de terceira pessoa do
plural, verificamos, em “Marcação da concordância verbal de terceira pessoa
do plural”, uma marcação de 100% nos casos de verbos com sujeito invertido
no século XIX. No século XX, essa marcação já não se mostra categórica, com
uma freqüência de 85%. Os resultados parecem indicar que a concordância de
número entre o sujeito e o verbo na ordem SVO decorre do fato de o sujeito
ter-se movido para uma posição de especificador de TP; ao passo que, na
ordem VS, o sujeito possivelmente permanece em alguma posição dentro do
VP (na posição de complemento, por exemplo), o que justificaria também a
ausência de concordância.
Os resultados estatísticos apresentados em “Colocação (pré ou pós-verbal)
do clítico se” apontam para uma correlação entre os fenômenos da colocação
do clítico se, da ordem do sujeito e da posição do verbo em sentenças finitas
no processo de mudança que envolveu o português entre os séculos XIX e
XX. A análise dos dados sugere que, de um lado, uma gramática vigente no
século XIX com construções V1 e que permite variação na ordem do sujeito
na estrutura da sentença estaria correlacionada ao licenciamento de se enclítico
e, de outro lado, uma gramática do século XX com construções V2 e
restrições (sintáticas e semânticas) na ordem do sujeito – com uma ordem
SV(O) mais fixa – licenciaria se proclítico.
A mudança desses fenômenos, ao longo dos séculos XIX e XX, pode ser
visualizada no gráfico a seguir:
Gráfico 1: Correlação entre freqüência de VS(O), foco informacional
com VS (O), concordância verbal de terceira pessoa com VS(O) e
construção com se enclítico

Podemos observar no gráfico que há uma queda na freqüência de


construções VSO, de foco informacional em VS, de marcação de concordância
verbal de terceira pessoa e de estruturas com se enclítico do século XIX para o
século XX no português de Santa Catarina. Por um lado, no século XIX
observa-se maior possibilidade de: a) VSO em V1 ou V2 (15%); b) foco
informacional em VS (80%); c) marcação categórica de concordância verbal
com VS (100%), e d) preferência a construções com se enclítico (52%). Por
outro lado, no século XX, encontra-se: a) uma ordem SVO rígida (com 8% de
VS apenas); b) maior percentual de foco informacional em SV (56%); c)
variação na marcação da concordância verbal, principalmente em VS (85%); e
d) preferência a construções com se proclítico (com apenas 23% de estruturas
com se enclítico).
Esses fenômenos parecem ligados uns aos outros no tempo, como se
mudanças na marcação do foco informacional, na concordância verbal de
terceira pessoa e na colocação do clítico se estivessem correlacionadas a uma
posição mais fixa do sujeito no português atual, uma ordem SV(O). Esse
conjunto de fenômenos relacionados parece apontar para uma reorganização
do sistema do português de Santa Catarina no século XX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados estatísticos a respeito das (im)possibilidades de ordens
SV(O)/VS(O) em textos de autores catarinenses, ao longo dos séculos XIX e
XX, apresentados em “Descrição dos fenômenos: resultados diacrônicos”,
apontam para as seguintes direções:
1) A ordem do sujeito, no século XIX, é variável e, no final do século XX,
está restrita a contextos inacusativos. Acreditamos que essa restrição esteja
relacionada diretamente ao fato de verbos dessa natureza selecionarem
argumentos internos, que são gerados na posição de complemento.
2) No século XIX, o português admitia construções V1 e V2, sem
restrição. Já no final do século XX, o português prefere V2 a V1, com a
posição à esquerda do verbo preenchida, preferencialmente pelo sujeito;
ordem SV.
3) Com relação às construções de foco na sentença e foco no sintagma
nominal (tipo identificacional e informacional), o português do século XIX
permitia ambos na ordem VS, mas o português do século XX, quando o foco
recai no SN-sujeito prefere a ordem SV(O).
4) Encontramos evidências de que a marcação da concordância verbal está
atrelada à ordem anteposta SV(O); ordem que vem ficando cada vez mais
enrijecida no PB. A concordância, nesse caso, passa a ser obrigatória, pois o
argumento se desloca para a posição de especificador, lugar onde os traços de
concordância são checados. Por outro lado, a não-marcação da concordância
verbal se correlaciona à VS inacusativa, no português atual. Neste caso, a
concordância se mostra variável, pois o argumento permanece na posição de
complemento.
5) Quanto à correlação entre o fenômeno da inversão sujeito-verbo e a
posição do clítico se, nossos resultados mostram que o português atual prefere
estruturas com verbo em segunda posição (V2) e se proclítico, derivando a
ordem [XclV], enquanto o português do século XIX parece que preferia
construções com se enclítico.
Como observamos em “Correlações sintáticas”, os resultados estatísticos
correlacionados mostram que a ordem do sujeito no século XIX era gerada
por uma gramática que permitia variação, enquanto, no século XX, outra
gramática (ou sistema) se manifesta. Nesse sistema novo, as mudanças
sintáticas vinculam-se a uma ordem SVO basicamente fixa (V2), com foco
informacional, concordância variável e construções com se proclítico,
preferencialmente em SV. Esse sistema parece conviver com marcas de um
sistema antigo (vigente no século XIX), caracterizado por resquícios de VSO
em certos contextos transitivos, bem como possibilidade de foco, de
concordância obrigatória e de ênclise em VS. No percurso da mudança entre o
português do século XIX e o do século XX, convivem, portanto, diferentes
gramáticas (ou sistemas que competem entre si), nos termos de Kroch (1989).
Por fim, o conjunto de trabalhos referidos em “Descrição dos fenômenos:
resultados diacrônicos” mostra análises sobre cada um dos fenômenos
sintáticos aqui discutidos: ordem do sujeito, construções de foco, concordância
verbal e posição do clítico. Remetemos o leitor a esses trabalhos para
encontrar maiores informações. No que se refere às questões teóricas a
respeito da mudança lingüística, em especial ao encaixamento lingüístico
desses fenômenos em uma língua natural, o leitor poderá obter mais
informação nos textos de Weinreich, Labov e Herzog (1968), Labov (1994) e
Kroch (1994, 2001).
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NOTAS
Este trabalho reúne resultados estatísticos de três textos discutidos na Sessão Coordenada Estudo
diacrônico da inversão sujeito-verbo no PB: fenômenos correlacionados, apresentada no V Congresso
Internacional da ABRALIN, de 28 de fevereiro a 3 de março de 2007.
É importante observar que as amostras analisadas para a observação dos diferentes fenômenos sintáticos
foram extraídas de um mesmo corpus diacrônico. Esse corpus é oriundo de um projeto em curso
coordenado pela professora Doutora Izete Lehmkuhl Coelho vinculado ao Projeto Variação Lingüística
Urbana da Região Sul (VARSUL) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O projeto conta
com a colaboração dos doutorandos Marco Antonio Martins e Isabel Monguilhott, assim como de
bolsistas da graduação, vinculados ao Projeto VARSUL.
Os exemplos serão seguidos do título da peça e da data de encenação ou de publicação.
Vamos usar o símbolo ?? para identificar as sentenças estranhas, que raramente seriam encontradas no
PB atual, e ? para identificar as sentenças que poderiam ser encontradas, mas que não seriam tão boas em
decorrência de algum outro elemento deslocado, como o clítico, por exemplo.
Sobre o condicionamento da forma de realização do SN (nominal ou pronominal) na ordem VS, veja-se
Coelho (2000).
É importante lembrar que a literatura gerativa considera uma língua V2 rígida, como o alemão, por
exemplo, quando o verbo flexionado aparece nas orações principais obrigatoriamente em segunda
posição e é imediatamente precedido por um sintagma nominal ou adverbial, enquanto na subordinada
essa restrição não se sustenta. A explicação para as construções V2 estaria relacionada ao movimento do
verbo para a posição de núcleo de CP e de algum constituinte XP para a posição de especificador.
A autora faz uma análise bem detalhada das construções V1 e V2, do português arcaico ao português do
século XIX.
Representaremos o SN-sujeito focalizado com letras maiúsculas.
Note-se que em B’ a preferência é pelo padrão XVY.
Os dois casos de verbo transitivo sem marcas de concordância encontrados, na amostra estudada foram
de sujeito com verbo no infinitivo flexionado.
Excluímos dessa análise construções com o clítico se em complexos verbais. Para uma análise a respeito
da colocação dos clíticos nestes contextos remetemos a Vieira (2003).
Estas sentenças não foram computadas na análise estatística (isto é, nas 82 sentenças analisadas) por não
apresentar (na amostra em questão) variação em relação à colocação pré e pós-verbal do clítico se.
Paixão de Sousa (2004), na análise da colocação dos clíticos no português em textos de autores nascidos
entre os séculos XVI e XIX, observa que casos de ênclise em orações dependentes são raros, mas
atestados na gramática do PCl, 19 ocorrências dentre as 7.773 sentenças analisadas pela autora.
Não entraremos na questão acerca da natureza dos advérbios nestes contextos. Para uma discussão a esse
respeito remetemos a Galves, Britto e Paixão de Sousa (2006).
A construção de uma metodologia dialetal: Para
uma avaliação do andamento do Projeto ALiB

Jacyra Andrade Mota – UFBA/CNPq


Suzana Alice Marcelino Cardoso – UFBA/CNPq
INTRODUÇÃO
A Dialectologia, no curso da sua história, vem exibindo a construção de
uma metodologia que visa a alcançar a descrição diatópica da área geográfica
examinada, buscando, por outro lado, encontrar e apresentar os veios da
relação entre a diversidade espacialmente atestada e as variáveis sociais que
afetam a realidade social de uma comunidade lingüística.
Ao assumir a tarefa de identificar, descrever e situar os diferentes usos em
que uma língua se diversifica, conforme sua distribuição espacial, sociocultural
e cronológica, a Dialectologia apresenta, na sua gênese, dois interesses
fundamentais: o reconhecimento das diferenças ou das igualdades que a língua
reflete e o estabelecimento das relações entre as diversas manifestações
lingüísticas documentadas ou entre elas e a ausência de dados registrados,
circunscritos a espaços e realidades pré-fixados. Estudando a língua,
instrumento responsável pelas relações sociais que se documentam entre
membros de uma coletividade ou entre povos, a Dialectologia não pôde deixar
passar ao largo a consideração de fatores extralingüísticos, inerentes aos
falantes, nem relegar o reconhecimento de suas implicações nos atos de fala.
Dessa forma, idade, gênero, escolaridade e características gerais de cunho
sociocultural dos usuários das línguas consideradas tornam-se elementos de
investigação, convivendo com a busca de identificação de áreas
geograficamente definidas do ponto de vista dialetal.
São, assim, duas diretrizes, dois caminhos, no exame do fenômeno
lingüístico, que se identificam nos estudos dialetais: a perspectiva diatópica e o
enfoque sociolingüístico, o que lhe atribui a adjetivação de monodimensional
ou pluridimensional, conforme se atenha à diatopia, exclusivamente, ou a esta
acrescida do controle de fatores sociais.
A Dialectologia no Brasil não poderia fugir a essa destinação histórica no
traçado da metodologia utilizada nos trabalhos de cunho geolingüístico. Inicia-
se como monodimensional, fornecendo dados de natureza espacial, como se
vê consignado nos primeiros Atlas publicados. Esta visão marcada pela
diatopia está no Atlas Prévio dos Falares Baianos (1963), no Esboço de um Atlas
Lingüístico de Minas Gerais (1977) e no Atlas Lingüístico da Paraíba (1984). No
curso dessas primeiras quatro décadas da Geografia Lingüística no país,
porém, começa a assumir uma outra diretriz: preocupa-se em controlar a
variável social gênero do informante. É o que se vê registrado no Atlas
Lingüístico de Sergipe (1987) e no Atlas Lingüístico do Paraná (1995) que exibem o
caminho pluridimensional, mais precisamente, bidimensional, no tratamento
dos dados.
A realização de um Atlas lingüístico do Brasil — Projeto Atlas Lingüístico
do Brasil (Projeto ALiB) — que começa a ganhar concretude no finalizar do
segundo milênio, beneficiando-se do que a história dos estudos dialetais vem
construindo e atentando para a realidade do mundo atual, particularmente do
que caracteriza a vida brasileira, assume uma postura pluridimensional.
A METODOLOGIA DO ALIB
Considerando-se o caminho escolhido, examinam-se alguns aspectos da
metodologia adotada, tais como a rede de pontos, os questionários, o perfil
dos informantes, com o objetivo de avaliá-los e de apontar as dificuldades
intervenientes no percurso percorrido.
Rede de pontos
A rede de pontos é constituída por 250 localidades, geograficamente
distribuídas por todo o Brasil, levando em conta características culturais,
situações de limites internacionais e estaduais e a densidade demográfica de
cada região e de cada Estado, como se verifica no Quadro 1, a seguir:
Quadro 1 – Rede de pontos do ALiB e densidade demográfica da região
e do estado
DENSIDADE Nº DE
REGIÃO ESTADO
DEMOGRÁFICA PONTOS
NORTE ACRE 0,8 02
AMAPÁ 0,6 02
AMAZONAS 3,8 05
PARÁ 8,0 10
RONDÕNIA 1,6 02
RORAIMA 0,4 01
TOCANTINS 1,7 02
TOTAL 16,9 24
ALAGOAS 4,0 04
BAHIA 19,2 22
CEARÁ 11,0 12
MARANHÃO 8,0 09
PARAÍBA 5,2 06
NORDESTE PERNAMBUCO 11,5 12
PIAUÍ 4,1 05
RIO GRANDE DO
3,9 05
NORTE
SERGIPE 2,7 03
TOTAL 69,6 78
ESPÍRITO SANTO 4,5 05
MINAS GERAIS 27,0 23
SUDESTE RIO DE JANEIRO 22,0 14
SÃO PAULO 55,0 38
TOTAL 108,5 80
PARANÁ 14,5 17
RIO GRANDE DO SUL 15,5 17
SUL
SANTA CATARINA 7,8 10
TOTAL 37,8 44
GOIÁS 7,2 09
MATO GROSSO 3,6 09
CENTRO-
OESTE MATO GROSSO DO
3,2 06
SUL
TOTAL 17,0 24
Essa rede de pontos é menos densa do que a dos Atlas regionais — à
exceção do Atlas Lingüístico Sonoro do Pará (ALISPA), que integra um
projeto maior, o do Atlas Geo-Sociolingüístico do Pará —, em face das
dimensões continentais que deve abarcar, do “Oiapoque ao Chuí”, como
previa Nascentes (1953b), de modo a fornecer uma macro-visão da realidade
lingüística do português do Brasil, priorizando as isoglossas que delimitam
grandes áreas dialetais. O Quadro 2 exibe o confronto entre a rede de pontos
dos Atlas regionais publicados43 e a estabelecida pelo ALiB para os estados a
que se referem esses Atlas:
Quadro 2 – Confronto entre a rede de pontos dos atlas regionais e a do
ALiB
Nº DE PONTOS
ESTADOS / ATLAS REGIONAIS ATLAS
ALiB
REGIONAIS
Bahia (APFB) 50 22
Minas Gerais (EALMG) 116 23
Paraíba (ALPB) 25 06
Sergipe (ALS I e II) 15 03
Paraná (ALPR) 65
17
Paraná (ALERS) 106
Santa Catarina (ALERS) 86 10
Rio Grande do Sul (ALERS) 102 17
Pará (ALISPA) 10 10
Amazonas (ALAM) 09 05

Por outro lado, a rede de pontos do ALiB distingue-se também da dos


Atlas regionais pela inclusão apenas de sedes municipais, englobando cidades
de médio e grande porte, entre as quais se incluem as capitais de estado à
exceção de Brasília e Palmas, em virtude das datas em que foram fundadas. Tal
procedimento distingue-se daquele seguido pela Geolingüística hoje dita
tradicional, que priorizava os pequenos centros, marcados pela antigüidade e
pelo isolamento.
Os parâmetros fixados para a definição da rede de pontos atendem, por
outro lado, à característica da realidade contemporânea, marcada pelo
povoamento mais intenso dos grandes centros urbanos cuja conformação da
população reflete a presença altamente representativa de populações provindas
do interior que intensificam o fluxo de contato cidade-campo, interior-capital.
Os questionários
Os questionários, dirigidos ao levantamento específico de fatos fonético-
fonológicos, inclusive prosódicos, semântico-lexicais, morfossintáticos e
pragmáticos, contêm questões de natureza metalingüística e temas destinados
ao registro do discurso livre do informante. A utilização das mesmas questões
em todo o país apresenta, porém, pontos positivos e negativos, destacando-se,
entre os primeiros, a possibilidade de intercomparação dos resultados e, como
negativos, a dificuldade de obtenção de alguns itens dos questionários, seja por
desconhecimento dos próprios referentes por parte do informante — como,
no questionário semântico lexical (QSL), os nomes de objetos característicos
de áreas rurais (soca, cangalha, canga, bruaca, temas das questões 047, 055, 056 e
058, respectivamente), em registros realizados em áreas urbanas — seja, no
questionário fonético-fonológico (QFF), pela utilização de denominações
diferentes da que se pretende obter, em face da distinta realidade sócio-
histórica, econômica e cultural das áreas brasileiras, como, por exemplo,
azougue para ímã e galega para loura, referentes, respectivamente, às questões 13
e 136 desse questionário, perguntas para as quais se esperava obter a mesma
resposta, em todo o território nacional, de modo a apurar a variação fonética, e
não a diversidade lexical de que pode-se revestir o item lexical perguntado.
As implicações decorrentes dessa imperiosa contingência a que se vê
submetida a metodologia dialetal no tocante à elaboração de questionários
para aplicação nacional estiveram sempre presentes na visão dos
organizadores, não resultando de inadvertência ou desconhecimento. Em vista
disso, os questionários foram testados em duas versões sucessivas, em
diferentes localidades. Se questões com tais restrições foram mantidas, este
fato deveu-se à relevância do item ou ao pressuposto — nem sempre
confirmado — de tratar-se de item semântico que, pela sua transparência e
singeleza, receberia as mesmas denominações em todas as áreas.
Informantes
Os informantes do ALiB, como ocorre, em geral, nos trabalhos dialetais,
devem ser naturais da área pesquisada, assim como seus pais (biológicos ou
adotivos), sem muitos afastamentos dessa área e socialmente integrados em
sua comunidade. Diversificam-se, porém, sistematicamente, quanto ao gênero
— 550 homens e 550 mulheres —, à faixa etária — uma mais jovem, de 18 a
30 anos, e uma mais velha, de 50 a 65 anos — e, nas capitais, à escolaridade —
quatro indivíduos com o nível fundamental incompleto e quatro com o
universitário.
Uma questão que se pode levantar diz respeito ao fato de terem sido
selecionadas duas faixas etárias, as extremas, excluindo-se uma faixa
intermediária que, como sabemos, é também representativa para considerações
de natureza sociolingüística. Tal fato se explica pela necessidade — imperiosa!
— de se contingenciarem custos e tempo de execução. O melhor seria,
sabemos todos os envolvidos com este tipo de investigação, ter um maior
espectro da amostra, com mais elementos para concluir sobre os dados. Nada
obstante e para atender à viabilização da pesquisa sem comprometimento da
informação, optou-se por tomar exatamente as duas faixas extremas pela
possibilidade que oferecem de exibir os caminhos da variação e da mudança
lingüísticas.
Quanto ao nível de escolaridade e no que diz respeito à categoria “nível
fundamental”, necessário se faz um comentário. A expectativa, com a
aplicação dos questionários, era a de se obterem respostas às perguntas, mas
também de se registrar a leitura de um texto selecionado. Para este último
desiderato contou-se com, de certo modo, uma surpresa: os nossos ditos
escolarizados com o nível fundamental de instrução nem sempre têm o
domínio da leitura. Dessa “fatalidade” do ensino no Brasil não se pôde escapar
nem se teve ou se tem como remediar. Em decorrência, muitos dos registros
de informantes dessa categoria não vão apresentar a leitura do texto. Mas esta
é a dura realidade da Educação no Brasil e não um deslize da metodologia do
ALiB.
O QUE VÊM REVELANDO OS DADOS DO ALIB
A inclusão na metodologia do ALiB de diferentes tipos de questionários e
de outros parâmetros, ao lado do diatópico, possibilita que se amplie o
conhecimento da diversidade dialetal, detectando também outros tipos de
variantes (diafásica, diastrática, diageracional, diagenérica) e apontando
possíveis mudanças em curso, em direção a variantes de maior prestígio. Nos
itens a seguir, exemplificam-se alguns desses casos.
Variação diatópica
A variação diatópica, um dos aspectos da diversidade dos usos de uma
língua que mais se evidenciam na cultura geral, vem encontrando nos dados do
ALiB, particularmente nos que mais detidamente se exploram presentemente,
os dados das capitais dos Estados, amostras significativas. Por um lado,
exemplos de que a unidade de denominação se mantém em certos itens; de
outro, a diversidade que permite recortes distintos e rearranjos diferenciados
de regiões geográficas.
Para ilustrar a primeira situação, considerem-se os resultados obtidos nas
capitais brasileiras para a pergunta 17 do Questionário Semântico-Lexical, arco-
íris. A denominação geral registrada em todos os pontos — 25 pontos, 200
informantes — foi arco-íris,44 com apenas quatro ocorrências diferenciadas,
dadas como segunda resposta:
arco celeste — Teresina
arco-da-aliança — Cuiabá
arco-da-velha — São Paulo
arco-da-velha — Porto Alegre
Mister se faz assinalar que três das denominações referidas foram
registradas a informantes da segunda faixa etária, isto é, entre os mais velhos,
e, no caso do Projeto ALiB, com idade entre 50 e 65 anos, e todos situados
entre aqueles com o grau de escolaridade fundamental. A ocorrência de Porto
Alegre foi registrada a informante da faixa etária I, de nível universitário.
Se se tomar para este mesmo item semântico-lexical as denominações
registradas nos Atlas lingüísticos regionais já publicados, verifica-se que a
variedade de denominações é ampla e reveladora de diferentes motivações.
Para ilustrar este contraste capital-interior, observem-se os dados de Cardoso
(2004) que se resumem no quadro a seguir:
Quadro 3 – ARCO-ÍRIS nos Atlas regionais
ESTADOS
FORMAS Paraíba(25) Sergipe(15) Bahia(50) M.Gerais(116) Paraná(65)
ARCO 01
ARCO-CELESTE 24 03 18
ARCO-DA-ALIANÇA 06 03 08
ARCO-DA-VELHA 02 14 57 44
ARCO-DE-BOI 01 01
ARCO-DE-CELESTE 01
ARCO-DE-VELHO 04 08 09
ARCO-DO-CELESTE 01
ARCO-DO-SOL 03
ARCO INSELENTE 02
ARCO-ÍRIS 17 13 43 89 64
AS BARRAS 04
AS TORRES 02
BARRA DE NUVEM 02
CU-DE-BOI 01
MÃE-D’ÁGUA 01
NAVIO 01
OLHO-DE-BOI 08 01 02 01
OS VÉUS 01
OS VIEIRAS 01
RABO-DE-GALO 05
RABO-DE-PAVÃO 01
SETE-E-UM-COURO 01
SUB-DOURADA 01

Fonte: Cardoso (2004, p. 74)

O segundo caso mencionado, a diversidade de usos, ilustra-se com dados já


registrados nas capitais para, por exemplo, as perguntas 39, 117, 157 e 159 do
Questionário Semântico-Lexical (QSL), como se mostra a seguir com o
conjunto de denominações que reúne o apurado em diversas regiões:
Pergunta
lexicais registrados
Itens

039 - bergamota, laranja cravo, mexerica, poncã, tangerina


TANGERINA

117 - bola do joelho, bolacha, bolacha do joelho, catraca, maçã do joelho, menina do joelho,
RÓTULA pataca, patela, patela do joelho, roda, rótula

157 -
atiradeira, badoque, baleadeira, estilingue, funda, setra, peteca
ESTILINGUE

157 -
arraia, pandorga, papagaio, pipa
ESTILINGUE

Variação diastrática
Do ponto de vista da variação diastrática, a análise de registros de
informantes de nível fundamental vem apontando uma série de variantes
fônicas e morfossintáticas, como, por exemplo, a iotização da lateral palatal ou
da lateral alveolar seguida da vogal /i/, em vocábulos como veio (velho), sandaia
(sandália), respectivamente; a despalatalização da lateral palatal, como em mulé
(mulher); culé (colher); a palatalização do iode, como em telha (teia), a
neutralização entre a lateral e o tepe, nos grupos consonânticos de oclusiva ou
fricativa labial + /l/, como /kl/, /pl/, /fl/, como em crara (clara), pranta
(planta), frô (flor); a metátese, nos grupos de oclusiva mais tepe, como em
partilera (pratileira), bargia (braguilha); a emissão sincopada de formas
proparoxítonas, como pólv(o)ra, fósf(o)ro, sáb(ad)o; as realizações africadas
palatais depois de semivogal anterior alta, como em muntcho (muito) e dodjo
(doido).
Do ponto de vista morfossintático podem ser citadas estruturas como nós
vai, a gente cantemo, eles vai, o pessoal véve; formas indicativas ovo (ouço), cabo (caibo) e
formas plurais como chapéis (chapéus), degrais (degraus).
Variação diafásica
Exemplos de variação diafásica, ou, mais precisamente, diastrático-diafásica
analisados por Mota (2002) encontram-se quando se comparam as respostas a
questões do QFF com as ocorrências obtidas em discursos livres, no decorrer
do inquérito ou em sua parte final, nos temas sugeridos ao informante para
que ele os desenvolva livremente (relato de fatos marcantes de sua vida, fatos
contados por terceiros etc.), como em:
a) muito realizado, quase categoricamente, como , como resposta à
questão “Qual é o contrário de pouco?” (QFF, 77), em inquéritos realizados
em capitais nordestinas, e como , , várias vezes, durante o
inquérito, com maior freqüência na fala de indivíduos de menor grau de
escolaridade, dado o caráter diastrático da variante palatalizada;
b) mesma registrada como como resposta à questão 156 do QFF, e
com a fricativa laríngea , em outros trechos do inquérito, em
discursos livres; e
c) realizações do tipo trabalhano, cozinhano, ameaçano, gritano, esperano, desceno,
sabeno, correno, com simplificação, por assimilação, do morfema identificador do
gerúndio, documentado, com freqüência, mesmo em falantes de escolaridade
alta, em elocuções espontâneas, emitidas rapidamente, embora esses mesmos
informantes realizem fervendo, remando e dormindo, como respostas,
respectivamente, às questões 27, 52 e 148 do QFF.
A variante diastrática pode também distinguir, em alguns casos, referentes
distintos, como se verificou, com relação ao vocábulo mulher, em 32 inquéritos
de Salvador, Aracaju, Maceió e Recife, analisados por Carneiro e Mota (2006):
a realização com a consoante lateral palatal (mulher) ocorreu categoricamente
como resposta à questão 129 do QFF, assim formulada: “Eva foi a primeira
__”, enquanto a variante com despalatalização da lateral (mulé) registrou-se, em
geral na fala de informantes de nível fundamental, nos sintagmas mulé da vida,
mulé da rua, mulé de cabaré, mulé vagabunda, em relação à prostituta, tema da
pergunta 142 do QSL.
Variação diageracional
Documenta-se a variação diageracional, principalmente no nível léxico-
semântico, em ocorrências do tipo “tá de boi”, “boca da noite”, “argueiro”,
documentadas na fala de indivíduos da segunda faixa etária, de referência,
respectivamente à menstruação (QSL 121), começo da noite (QSL 28.) e cisco que cai
no olho (QSL 90) formas, em geral, desconhecidas pelos falantes jovens.
O trecho a seguir, extraído do inquérito à informante de faixa etária 2, de
nível universitário, natural de Maceió, ilustra a variação diageracional e, ao
mesmo tempo, diastrática:
INF. – A gente aqui, ói, aqui tem vários nome, né, a gente pode chamá: menstruação muita gente
chama boi, muita gente chama regra, muita gente diz assim: naqueles dias, tá entendendo?
INQ. – Agora, essa muita gente, assim, vamos dizer, é mais o quê, o pessoal mais jovem, o pessoal
mais velho...?
INF. –Boi geralmente é aquelas pessoas ignorante, antiga..., né? Agora a gente não, a gente já diz
menstruação, né?
INQ. – E regra, quem é que fala, é esse pessoal mais antigo, também?
INF. – Também, é... A minha sogra mesmo dizia muito assim: “naqueles tempo” Aí até meu marido,
aí, às vezes, com o costume dela, ele sempre diz, sabe, quando eu estou meia nervosa, ele diz: ói,
toda vez que você está naqueles tempo, você fica....
A hesitação, com relação ao verbo pegar, entre as formas tinha pego e tinha
pegado, documentada na questão 103 do QFF — incluída com o objetivo de
verificar-se a alternância entre vogais médias, abertas ou fechadas, em sílaba
acentuada (pégo e pêgo) — em falantes da 2ª faixa etária, é um outro exemplo
de variação geracional, ilustrativo da substituição que se vem observando, pelo
menos em algumas áreas do português do Brasil, das formas participiais
analíticas pelas sintéticas, independentemente do verbo auxiliar que as
acompanha ou da existência anterior de duplo particípio (como em falo por
falado, trabalho por trabalhado, noivo por noivado, etc.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Implantado há dez anos, o Projeto Atlas Lingüístico do Brasil, que retoma
um desejo de há muito manifesto pelos dialetólogos brasileiros dos meados do
século XX, tem, na sua curta história, fatos a destacar.
Primeiramente, sem se ter conseguido um financiamento global, mas
contando com auxílios de instituições financiadoras da pesquisa, em
momentos diversos, a membros do Comitê Nacional, e com a colaboração
advinda das Universidades que mantêm vínculo com o Projeto, atingiu-se, no
presente, a documentação de 50% dos pontos da rede, exatamente 125, tendo
já concluído o levantamento em sete estados. Isto significa dispor-se de uma
parte representativa do corpus, sobretudo por contar-se com a integralização
dos dados em todas as capitais.
Em segundo lugar, o Projeto ALiB vem contribuindo para o
desenvolvimento das pesquisas de natureza dialetal, despertando interesse pela
Geolingüística e estimulando a criação de equipes voltadas para esse ramo dos
estudos lingüísticos. Tem, por outro lado, contribuído com pesquisas
individuais ou de grupos, sobretudo ao tornar disponível para os interessados
na área os Questionários ALiB que vêm sendo utilizados na sua forma própria
ou servindo de modelo para a criação ou adaptação de outros. Esse papel do
ALiB fez com que Mota e Cardoso (2006b) reconhecessem uma quarta fase na
história dos estudos dialetais brasileiros, cujo início está vinculado à
implantação desse Projeto nacional, expandindo assim o que Ferreira e
Cardoso (1994) propuseram em substituição à divisão de Nascentes (1952,
1953a, 1953b).
A série Documentos (AGUILERA; MOTA; MILANI, 2004; MOTA;
CARDOSO, 2006b) vem trazendo informações sobre a metodologia seguida,
com apresentação de textos teóricos e depoimentos que informam sobre esses
primeiros momentos do Projeto, enquanto se aguarda a publicação do Atlas
propriamente dito, cujo volume 1 encontra-se em fase de elaboração.
Ao se proceder a esta avaliação do andamento do Projeto ALiB pode-se,
com uma visão crítica da realidade das condições de pesquisa na área de
Letras, concluir que, dentro das possibilidades que se apresentam, foi feito o
melhor que se pôde, porque para mais não se teve engenho e arte.
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baianos. Rio de Janeiro: INL-MEC, 1963.
NOTAS
Entre os quais se incluem teses de doutorado de abrangência geral do estado.
Levantamento iniciado pela Bolsista Voluntária Milena Pereira e continuado/concluído pela Bolsista
PIBIC Kássya Correa, como parte de suas atividades no período de vigência da bolsa (2006-2007).
Crenças de professores e alunos de português de
escolas públicas de Juiz de Fora-MG45

Lucia F. Mendonça Cyranka – UFJF


Claudia Roncarati – UFF/CNPq
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como foco central o estudo de crenças lingüísticas no
contexto da escola pública da cidade mineira de Juiz Fora. Trata-se de um viés
de trabalho com a língua materna que busca investigar crenças que, por
hipótese, teriam implicações no desenvolvimento de habilidades lingüísticas de
alunos.
As novas perspectivas trazidas pelos avanços da Lingüística nas últimas
décadas desencadearam certa inquietação no interior das escolas e na prática
de professores de português. Tudo indica que, hoje, uma parcela considerável
desses professores entende a necessidade de mudar as perspectivas de seu
trabalho com a educação em língua materna, mas a transição da teoria para a
prática ainda gera uma desconfortável sensação de incompetência projetada na
resistência da parte de muitos, resistência essa que, entre outros fatores, pode
levar à cristalização de metodologias estéreis do ponto de vista do
desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos.
É consabido que ainda há os que se recusam, em nome da “boa tradição”,
a substituir o ensino da metalinguagem com um fim em si mesmo pelas
atividades enriquecedoras dos usos da linguagem que levam os alunos a
refletir, por exemplo, sobre a natureza dela, sobre a variação lingüística e sobre
a análise dos gêneros textuais.
Trabalhando apenas com a gramática normativa e a descritiva, sequer
fazem referência aos processos de construção lingüística, isto é, de observação
e reflexão sobre a língua, o que se faria por meio da gramática reflexiva e
mesmo da gramática de uso, que “é não-consciente, implícita e liga-se à
gramática internalizada do falante”.46 Permanecem ainda, na sala de aula,
distantes de graves e inadiáveis tarefas, como sejam: (i) formar “falantes cultos,
isto é, aqueles que sabem escolher a variante adequada, de acordo com as
situações de interação” (PRETI, 1997, p. 18); (ii) levar os alunos a analisarem a
fala e a reconhecerem nela, juntamente com a escrita, um contínuo que leva,
de diferentes maneiras, a práticas sociais; (iii) inaugurar, entre os alunos, o
prazer do texto e desenvolver, com eles, ações de letramento47 indispensáveis à
formação do leitor e do escritor maduros.
A investigação sobre como os usuários avaliam a variedade utilizada por
eles próprios e por seu interlocutor pode abrir caminho para possibilitar a
otimização da aprendizagem escolar e motivar o desenvolvimento de
competências lingüísticas, dentro de uma visão mais ecológica48 no ensino de
língua.
Cumpre notar que a Lingüística Aplicada, sobretudo a partir da década de
1990, vem-se dedicando, majoritariamente ao estudo de crenças de professores
e alunos em relação ao ensino/aprendizagem de línguas. No Brasil, as
investigações, nesse campo, associam-se a pesquisas qualitativas (por exemplo,
MOITA-LOPES, 1994; CAVALCANTI, 2000), de base etnográfica (por
exemplo, ERICKSON, 1986). Há também um outro ramo que se dedica a
estudo de crenças sobre aquisição de segunda língua (KALAJA; BARCELOS,
2003) e ao estudo dos seus efeitos em professores de línguas em formação
(BARCELOS, 2006; SILVA, 2006; BASSO, 2006). No entanto, ainda persiste
um quadro de insuficiência com relação a estudos mais especificamente
orientados sobre crenças envolvendo questões relativas ao
ensino/aprendizagem da língua portuguesa à luz da inquirição sociolingüística.
Por isso mesmo, acreditamos que uma das possíveis contribuições do
estudo aqui resenhado é oferecer uma investigação empiricamente sustentada
para ampliar a compreensão sobre efeitos ou conseqüências pedagógicas
advindos de crenças de professores e alunos de português do Ensino
Fundamental.
Nesse sentido, partimos das seguintes perguntas de base:
(i) Há correlação entre as crenças dos professores sobre o que são língua,
linguagem, variação e aprendizagem lingüística e as crenças e as atitudes dos
alunos sobre sua própria variedade dialetal?
(ii) Se afirmativo, as crenças dos professores podem ter algum reflexo nas
atitudes desfavoráveis do aluno em relação à própria capacidade de domínio
das variantes padrão?
Ao contrário do que se tem visto nos estudos de crenças e atitudes
lingüísticas na área do ensino da língua portuguesa (AMARAL, 1989;
SANTOS, 1996), que têm buscado discriminar e mensurar atitudes de
professores em relação aos dialetos de seus alunos, acreditamos que a nossa
pesquisa apresenta um recorte metateórico diferencial, já que investigamos
tanto as crenças dos professores quanto as atitudes49 dos alunos. Nosso foco
aqui, portanto, é dual: por um lado, visa a auscultar crenças do aluno e do
professor de português do Ensino Fundamental em relação à sua concepção
de língua, linguagem e variação lingüística; por outro, a examinar as atitudes
dos alunos em relação à variedade lingüística que utilizam, inclusive à que a
escola parece pretender que ele adote prioritariamente.
No presente artigo, por motivos de restrição de espaço, só tratamos dos
testes de crenças, reservando a discussão sobre os testes de atitudes para
futuras publicações.
A configuração editorial que imprimimos às seções desse artigo é a
seguinte: inicialmente, tratamos do problema da avaliação lingüística na
perspectiva laboviana, em que se inscrevem os estudos sobre crenças e atitudes
lingüísticas; a seguir, enfatizamos a necessidade de se ampliar o âmbito dessa
vertente de pesquisa em relação aos julgamentos subjetivos de professores e
alunos concernentes a crenças sobre ensino/aprendizagem da língua
portuguesa, à semelhança do que já vem sendo feito, por exemplo, no campo
da Lingüística Aplicada em relação ao ensino de línguas com foco na formação
do professor; logo após, introduzimos as noções de crença e atitudes, para,
então, nos deter nos procedimentos metodológicos de elaboração e de
tratamento estatístico dos testes de crenças aplicados a professores de
português de escolas da rede pública de Juiz de Fora-MG e a formandos do
Curso de Letras do 2ª semestre de 2006 da Universidade Federal de Juiz de
Fora. Por fim, discutimos os resultados, salientando alguns de seus impactos
no aluno, no professor e no professor em formação.
ATITUDES E CRENÇAS: UM PROBLEMA DE AVALIAÇÃO
LINGÜÍSTICA
Não é possível introduzir uma discussão sobre as atitudes e crenças
lingüísticas, sem associá-la ao problema da avaliação, um dos pilares
sustentadores da inquirição sociolingüística sobre a variação e a mudança
lingüística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968).50 A avaliação social diz
respeito a qualquer nível de atenção dos falantes em relação à fala e busca
compreender de que maneira os membros de uma comunidade de fala avaliam
determinada mudança, qual o efeito dessa avaliação na mudança e até que
ponto o estigma social influencia diretamente o curso da mudança lingüística.
A avaliação deve levar em conta respostas e reações subjetivas dos membros
da comunidade diante de uma determinada mudança em curso, em todos os
níveis de consciência (desde a discussão manifesta até reações inacessíveis à
introspecção).
O estudo de atitudes e crenças lingüísticas é, pois, uma das questões
fundadoras dos estudos variacionistas. Nessa perspectiva teórica, os trabalhos
que discutem o grau de rejeição ou valorização da escola em relação ao dialeto
do aluno e vice-versa devem ser tratados sob a ótica do problema da avaliação
lingüística. Todas as outras questões – a baixa auto-estima do aluno causada
pelo desprestígio conferido à sua variedade dialetal; o conflito sociocultural
entre os dialetos e a própria noção de preconceito lingüístico – estão, em larga
medida, mas entre outros fatores, associados ao valor social atribuído às
variantes, ao grau de consciência da variação dialetal e à crença na
superioridade da escrita em relação à fala.
Pesquisas envolvendo atitudes lingüísticas tratam do exame dos julgamentos
dos falantes em relação à língua ou ao dialeto utilizado por seu interlocutor,
estando subentendidas aí as mudanças implementadas na língua em relação à
variedade considerada padrão. Os componentes dessas atitudes são o que
pensam, o que sentem e como reagem os falantes expostos a estímulos
lingüísticos que lhes são apresentados.
O estudo das crenças tem sido objeto de pesquisas em Sociologia, Filosofia,
Educação, Antropologia, Psicologia e em Lingüística Aplicada ao ensino de
línguas. Barcelos (2006, p. 15) assim sumariza o que tem sido feito no Brasil na
área da Lingüística Aplicada:
Os estudos a respeito de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas têm crescido bastante nos
últimos anos no Brasil e no exterior. No Brasil, um número razoável de teses e dissertações vem
sendo defendido nos diversos programas de pós-graduação no país [...] Além disso, um grande
número de artigos [...] e capítulos de livros [...], bem como a publicação de um livro a respeito de
crenças sobre aquisição de segunda língua (KALAJA; BARCELOS, 2003) sugerem a importância
desse conceito para a Lingüística Aplicada. Nunca se publicou tanto a respeito de crenças no Brasil
e no exterior desde 1995.
Tais estudos têm considerado as crenças dentro da área da cognição, que se
constitui na interação social, moldada por processos culturais e sociopolíticos.
A esse respeito, afirma a mesma autora (BARCELOS, 2006, p. 17) que “a
concepção atual de cognição incorpora muitos outros componentes da vida
mental humana, tais como capacidade simbólica, o eu, a vontade, crenças e
desejo”.
É consensual, no escopo dessas pesquisas, o reconhecimento da
dificuldade de se chegar a uma conceituação unificadora sobre crenças,
construto de grande complexidade. Como afirma Pajares (1992), por exemplo,
se por um lado, as crenças, tendem a ser estáveis, difíceis de serem alteradas por
se formarem cedo, por outro lado, estando ligadas ao contexto, podem ser
modificadas ou substituídas por outras a partir da reflexão.
A definição de Barcelos (2006, p. 18) ilustra como a noção de crença vem
sendo interpretada na área do ensino de línguas:
Entendo crenças, de maneira semelhante a Dewey, como uma forma de pensamento, como
construções de realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em
nossas experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação.
Como tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais.
Para essa autora, as crenças exercem um papel crucial na prática do
professor de línguas: o desvelamento de crenças de professores e alunos
permite uma melhor adequação de objetivos, conteúdos e procedimentos, e,
conseqüentemente, chances de maior eficácia do processo
ensino/aprendizagem. Borg (2003), ao resenhar algumas das crenças de
professores na área de ensino de línguas, emprega o termo “cognição de
professores”, referindo-se àquilo que os professores pensam, acreditam e
sabem sobre o processo de ensinar línguas. Considera ele que as crenças e as
práticas de professores são mutuamente informativas com os fatores
contextuais e podem contribuir para determinar até que ponto os professores
conseguem programar a instrução de acordo com suas crenças. Outros
estudos (FANG, 1996; LAMPERT, 1985) enfatizam, ainda, que as crenças de
professores não são consistentes com suas práticas, já que os professores
lidam com interesses contraditórios e ambíguos em suas práticas. Johnson
(1994), por sua vez, considera que, sobrecarregados com as forças atuantes
sobre a sala de aula, os professores podem adotar posturas que não condizem
com o que pensam, visando a manter o fluxo da instrução e a autoridade em
sala de aula.
Nesse sentido, Barcelos (2006, p. 25) vê uma estreita relação entre crenças
e ações. É Richardson (1996) quem propõe três maneiras para se entender ou
perceber as relações entre crenças e ações:
Relação de causa-efeito: Embora não se trate de uma relação simples, ela existe, de fato, visto que há
uma relação recíproca de influência de crenças e ações.
Relação interativa: Trata-se do efeito da reflexão do professor e do aluno sobre o processo de
ensino/aprendizagem. A percepção do benefício de certas práticas pode determinar a mudança ou o
surgimento de novas crenças. “Não é uma relação de causa e efeito. É uma relação em que a
compreensão dos limites contextuais ajuda na compreensão das crenças” (BARCELOS, 2006, p. 26)
Relação hermenêutica: Aqui se considera a complexidade das relações entre o discurso e a prática,
investigando não apenas os desencontros entre crenças e ações, mas também a influência dos
fatores contextuais na percepção/mudança das crenças.
Portanto, essas três formas não são excludentes, mas cada uma delas
amplia a visão que se deve ter das relações entre crenças e ações. É importante,
por exemplo, que se consiga compreender mais facilmente a influência dos
fatores contextuais na contradição, por parte dos professores, entre o que
acreditam e fazem, ou seja, o hiato entre teoria e prática. Nesse sentido, os
pesquisadores avaliam que o desencontro entre os interesses dos professores e
aqueles da organização escolar, como um todo, constitui um dos fatores
contextuais (entre outros, por exemplo, exigência dos pais, diretores, escola e
sociedade; arranjo da sala de aula; políticas públicas escolares; disponibilidade
de recursos; condições difíceis de trabalho; salas cheias; alunos desmotivados;
programa fixo; resistência dos alunos a novas maneiras de aprender; carga
horária excessiva de trabalho etc.) que moldam a realidade das salas de aula e
que inibem a habilidade dos professores em adotar práticas que refletem suas
crenças (BARCELOS, 2006, p. 30).
Já no âmbito dos estudos sociolingüísticos, Santos (1996, p. 8), em sua
abrangente pesquisa sobre atitudes e crenças escolares relativas ao ensino de
português na escola, esclarece, preliminarmente:
Crença seria uma convicção íntima, uma opinião que se adota com fé e certeza. [...] Já atitude seria
uma disposição, propósito ou manifestação de intento ou propósito. Tomando atitude como
manifestação, expressão de opinião ou sentimento, chega-se à conclusão de que nossas reações
frente a determinadas pessoas, a determinadas situações, a determinadas coisas seriam atitudes que
manifestariam nossas convicções íntimas, ou seja, as nossas crenças em relação a essas pessoas,
situações ou coisas (Destaque nosso).
Williams (1973, p. 113), ao tratar sobre atitudes dialetais e estereótipos,
assim conceitua atitude lingüística:
Já ficou constatado pelos pesquisadores (e.g. LABOV, 1966, SHUY 1969, WILLIAMS 1970a) que as
atitudes lingüísticas são o outro lado da moeda do dialeto social. Isso significa que, se temos traços
lingüísticos que estão correlacionados com a estratificação social dos falantes, então parece plausível
– e as pesquisas têm confirmado isso – que esses traços podem servir de pistas para a avaliação do
ouvinte quanto ao status social dos falantes. (Tradução nossa)51
Como se vê, enquanto os teóricos da Lingüística Aplicada, em geral, falam
em crenças e ações, os sociolingüistas, utilizam os termos crenças e atitudes.
Na perspectiva dos estudos sociolingüísticos, há que se ressaltar que,
dentre os problemas de base tratados pela Sociolingüística, está o da relação
entre crença e atitude. Dittmar (1976, p. 181) observa que a mensuração das
atitudes lingüísticas baseia-se em dois quadros teóricos diferentes: os
mentalistas e os behavioristas. Enquanto os primeiros propõem que as atitudes
sejam analisadas a partir de três componentes (afetivo, cognitivo e conativo),
os behavioristas preferem considerá-las a partir apenas da dimensão afetiva
(avaliativa). No entanto, para Rokeach (1968), as atitudes são primariamente
constituídas por crenças. Para Fishbein (1965), enquanto as atitudes dizem
respeito ao aspecto afetivo do sujeito em relação a determinado objeto, as
crenças revelam a dimensão cognitiva e ativa desse mesmo sujeito em relação ao
objeto.52
Para esclarecer melhor a questão da relação entre crenças e atitudes, Santos
(1996, p. 14) apresenta o seguinte exemplo: diante da mesma manifestação de
crença “O português é muito difícil”, alunos e professores podem ter atitudes
opostas. Enquanto os primeiros rejeitam o objeto, (isto é, a aprendizagem da
disciplina português) por causa dos obstáculos à aprendizagem que ele implica,
os professores podem ter uma atitude positiva em relação a ele, justamente por
se sentirem valorizados, já que são capazes de dominar o conhecimento de um
objeto tão complexo. Por outro lado, os alunos podem ter outros tipos de
crenças sobre o português, que podem levá-los a ter uma atitude positiva sobre
esse objeto.
Daí a necessidade de não se restringir a uma única manifestação de crenças.
É aconselhável se fazer o levantamento de um conjunto de crenças dos
sujeitos, chegando-se mesmo a um sistema de crenças sobre o objeto investigado,
enfoque que adotamos em nossa pesquisa, ao tentarmos associar uma série de
crenças relativas ao mesmo objeto.
O componente ativo das crenças se refere, conforme Santos (1996, p. 11)
“a intenções de comportamento, ou seja, crenças sobre o que deve ser feito em
relação ao objeto”. Se é possível fazer o levantamento de um conjunto das
crenças dos professores e dos alunos sobre questões relativas à língua, à
linguagem, à variação e à aprendizagem lingüística, então é possível chegar a
um sistema de crenças que pode explicar melhor as atitudes dos professores em
relação à variedade lingüística de seus alunos e, por conseguinte, as atitudes
desses alunos em relação ao seu próprio desempenho lingüístico.
Como se vê, os componentes ativo e cognitivo, excluídos pelos
behavioristas da consideração das atitudes, surgem no tratamento das crenças,
que apresentam também um aspecto avaliativo.
Da estreita relação entre crenças e atitudes, como já explicitado, confirma-se
que uma mudança num desses setores pode acarretar também mudanças no
outro. Santos (2006, p. 15) afirma ainda: “Várias pesquisas produziram
evidências de que a atitude de um indivíduo pode ser mudada, se forem
mudadas suas crenças sobre o objeto”.
Tal assertiva é extremamente importante para as questões fundadoras do
presente estudo.
O TESTE DE CRENÇAS
Para essa investigação, utilizamos, como medida direta, um questionário de
questões fechadas propostas a alunos de quatro escolas públicas e uma particular
do município de Juiz de Fora (MG), aos professores de português dessas
escolas e aos formandos de Letras do segundo semestre de 2006 da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
A inclusão de formandos do Curso de Letras serviu como parâmetro para
avaliar os resultados das reflexões, em sociolingüística, que vêm ocorrendo nos
cursos de formação de professores de português.
Nossa expectativa era a de que o teste com os professores, em consonância
com as perguntas fundadoras, funcionaria como uma forma de se controlar os
resultados das investigações com os alunos, isto é, quanto mais as crenças dos
professores fossem desfavoráveis à variedade lingüística dos alunos, mais
desfavoráveis seriam as atitudes desses últimos em relação à proposta da
escola, mais descrentes estariam eles de sua própria capacidade de se expressar
com competência, segundo os padrões escolares esperados. Essas eram nossas
hipóteses implicacionais.
Relativamente a essa correlação entre crenças e atitudes, leia-se o que
afirma Basso (2006, p. 74): “a aprendizagem dos alunos é melhorada quando
eles percebem as expectativas e as intenções dos professores, e quando os
professores percebem, acuradamente, as expectativas e as intenções de seus
alunos”. E mais à frente (p. 75): “De maneira geral, os dados revelam muitas
convergências, o que confirma a posição de Barcelos quanto à influência das
crenças dos professores nas crenças de seus alunos”.
O universo de aplicação do teste de crenças foi assim recortado. Para
responder ao teste, selecionamos, aleatoriamente, 30 alunos da 8ª série do
Ensino Fundamental de cada uma das 5 escolas públicas. Numa das escolas
públicas, havia apenas 15 alunos nessa série, de modo que, à exceção dela, 30
de cada grupo responderam ao teste, perfazendo um total de 135 alunos
avaliados. As escolas foram escolhidas a partir de sua localização geográfica
dentro do perímetro do Município de Juiz de Fora: 1 localizada no centro da
cidade; 2, em bairros considerados centrais, isto é, próximos ao centro da
cidade; 1 na periferia da cidade, limítrofe com a zona rural, e outra localizada
na zona rural.53 Ainda que a pesquisa tenha sido especialmente orientada para
as escolas públicas, estendemos a aplicação do teste a uma escola particular,
situada no centro da cidade, para possibilitar, ainda que de forma
complementar, a comparação dos dois universos distintos.54
Como já aludido, o questionário constituiu de uma avaliação de crenças
sobre a língua e seu ensino na escola. Foram listadas 25 assertivas, para que
alunos de 8ª série, seus professores e formandos do Curso de Letras as
julgassem falsas ou verdadeiras. A última assertiva foi proposta para ser
respondida facultativamente, visando a elicitar alguma informação secundária
que pudesse esclarecer aspectos de interesse geral de pesquisa sociolingüística.
O quadro abaixo apresenta o universo testado:
Quadro 1 – Sujeitos que responderam ao questionário
Alunos 135
Professores 22
Formandos de Letras da UFJF 33
Total 190

Os dados obtidos no teste foram processados no Laboratório de Estudos


Estatísticos na Saúde, do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Submetidos ao programa SPSS (Statistics Package for Social
Sciences), foram mensurados através do teste qui-quadrado, para comparar as
proporções relativas ao conteúdo das respostas e avaliar a relação entre estas e
a escolaridade dos sujeitos avaliados. O teste qui-quadrado é adequado para
variáveis qualitativas, com duas ou mais categorias, e mede o grau de
discrepância entre um conjunto de freqüências observadas e um conjunto de
freqüências esperadas. É também utilizado para avaliar a associação entre duas
variáveis qualitativas. O teste qui-quadrado permitiu-nos melhor avaliar as duas
hipóteses em jogo:
hipótese inicial (Ho): não existe associação entre as variáveis qualitativas;
hipótese alternativa (H1): existe associação entre as variáveis qualitativas.
Nesse teste, a forma de se avaliar a rejeição ou a não-rejeição da hipótese
inicial é feita observando-se se o p-valor é maior ou menor que o nível de
significância escolhido 0,05 (5%). O p-valor < 0,05 (5%) sugere haver
interferência de fatores determinantes das respostas, no presente caso,
justamente a diferença de escolaridade: alunos de 8ª série do Ensino
Fundamental, formandos do Curso de Letras e professores de Português.
Sendo o p-valor >0,05 (5%), essa hipótese deve ser rejeitada, isto é, os fatores
determinantes da escolha da resposta não devem ser atribuídos à diferença de
escolaridade.
Para melhor delinear o universo dos professores e dos alunos de Letras que
responderam a esse teste, foi-lhes solicitado que, em folha própria,
fornecessem informações adicionais sobre sexo, local de trabalho, curso de
habilitação profissional, tempo de formando (no caso dos professores), tempo de
exercício de magistério (havia alunos de Letras que já lecionavam, ainda que em
caráter de aprendizagem) e opinião sobre sua formação em sociolingüística e
características sociais de seus alunos. O quadro abaixo informa o resultado dessa
parte da pesquisa:
Quadro 2 – Resultados da análise dos dados relativos às características
de professores e formandos de Letras que responderam ao teste de
crenças
Professores
Formandos de Letras (33)
(22)
1/22 =
Sexo masculino 7/33 = 21,2%
4,5%
21/22 =
Sexo feminino 26/33 = 78,7%
95,4%
22/22 =
Curso/Letras completo -
100,0%
Curso/Letras incompleto 33/33 = 100,0%
10/22 =
Mestrado/Doutorado -
45,4%
Especialização na área de 8/22 =
-
Linguagem 36,3%
Recém-formado 0 -
3/22 =
1 a 5 anos de formado -
13,6%
19/22 =
Mais de 5 anos de formado -
86,3%
Prof. de alunos de classe 9/22 =
-
média 40,9%
Prof. de alunos de classe 5/22 =
-
socioeconômica baixa 22,7%
Prof. de alunos de classe 8/22 =
-
média e baixa 36,3%
Excelente formação 3/22 =
6/33 = 18,1%
sociolingüística 13,6%
Boa formação 9/22 =
16/33 = 48,4%
sociolingüística 40,9%
Estudo em sociolingüística 4/22 =
8/33 = 24,2%
razoável a fraco 18,1%
Sem qualquer estudo em 5/22 =
2/33 = 6,0%
sociolingüística 22,7%
1/22 =
Não declarado 1/33 = 3,0%
4,5%
Tempo de magistério Entre 5/22 = (10/33 = 30,3%)
2 a 10 anos 22,72%
                                  Entre 4/22 = A experiência declarada pelos for mandos neste item, refere-
10 e 20 anos 18,1% se à atuação no magistério, na qualidade de bolsistas, durante
                                  Entre 13/22 = o Curso de Letras (monitoria, treinamento, iniciação ao
20 e 36 anos 59,0% magistério etc.)

Este quadro demonstra que, no universo analisado:


a) o sexo preponderante é o feminino (professor: 95,4%; formandos, 78,7%);
b) poucos professores têm especialização na área de linguagem (36,3%);
c) a maior parte dos professores têm mais de cinco anos de formados (86,3%);
d) os professores lecionam tanto para alunos de classe média (40,9%) quanto para alunos de classe
média e baixa (36,3%);
e) a formação sociolingüística dos professores é considerada, por eles mesmos, como boa (40,9%),
ou aquém do razoável (18,1%); os formandos avaliam melhor sua formação nessa área (48,4%);
f) o tempo de magistério dos professores é maior entre 20 e 36 anos (59,0%);
g) entre os formandos, a atuação fica restrita à atividade de monitoria e treinamento (30%).
Para a realização do teste, foram apresentadas 25 assertivas constantes no
quadro abaixo, que relaciona também o p-valor referente ao teste qui-quadrado,
para avaliar as diferenças relativas à escolaridade:
Quadro 3 – Assertivas associadas a crenças e respectivos p-valores
referentes ao teste qui-quadrado, para avaliar diferenças em função da
escolaridade (Ensino Fundamental, alunos de Letras e professores de
português)
p-
Assertivas
valor
A língua ESCRITA é mais correta que a FALADA. 0,000
Eu FALO bem. 0,001
Eu ESCREVO bem. 0,005
Para saber ESCREVER bem, basta conhecer as regras de ortografia. 0,000
Os adultos FALAM melhor que os jovens. 0,000
Para ESCREVER bem, é preciso ler muito. 0,012
Para ESCREVER bem devo melhorar meu jeito de FALAR. 0,000
O bom professor de português FALA sempre de acordo com as regras de gramática. 0,000
A linguagem dos livros é sempre melhor e mais bonita do que meu FALAR. 0,000
Para aprender a ESCREVER, o aluno deve aprender a FALAR como seu professor de
0,008
português.
A escola deve corrigir a FALA dos alunos.
As pessoas analfabetas FALAM errado. 0,018
Para se ESCREVER direito, deve-se aprender gramática. 0,000
A língua ESCRITA é mais importante do que a FALADA. 0,000
Saber FALAR bem é tão importante quanto saber ESCREVER bem. 0,005
Eu gosto de FALAR do mesmo jeito da minha família e dos meus amigos. 0,001
O meu jeito de FALAR é igual ao das pessoas com quem convivo no lugar onde moro, por
0,005
isso eu tenho orgulho do meu jeito de falar.
A língua ESCRITA é mais complicada do que a língua FALADA. 0,466
Só a escola ensina a ESCREVER bem. 0,000
Em qualquer situação da vida, posso FALAR do mesmo jeito. 0,009
Quem já aprendeu a LER já pode ESCREVER qualquer tipo de texto. 0,030
Só há um modo de FALAR corretamente: aprender o que a escola ensina. 0,002
Eu devo ESCREVER do mesmo jeito que falo. 0,000
O jeito de FALAR em Minas é bonito. 0,042
Há outras falas mais bonitas que a de Minas. Exemplo a de _____________. 0,144
0,000

Como se pode notar, houve o cuidado em evitar declarações negativas para


afastar ambigüidades que costumam acontecer em presença de duas negações.
O Quadro 3 revela que, das 25 assertivas, relativamente a apenas duas
delas, as que estão em negrito, não houve associação entre a resposta e o nível
de escolaridade:
• O meu jeito de falar é igual ao das pessoas com quem convivo no lugar
onde moro, por isso, eu tenho orgulho do meu jeito de falar.
• O jeito de falar em Minas é bonito.
Para essas duas questões, como mostra o Quadro 3, o p-valor foi >0,05
(5%), respectivamente, 46,6% e 14,4%. Em ambas, os sujeitos se dividiram em
torno de 50%.
As demais expressões de crenças apresentadas, como se pode observar,
envolvem três diferentes categorias de relação:
(i) do sujeito com a escrita;
(ii) do sujeito com a fala;
(iii) entre fala e escrita.
Vejamos, então, o detalhamento de cada uma delas, começando pelas
assertivas (i) crenças em relação à escrita.
Foram seis as declarações desse tipo:
(i/a) Eu escrevo bem.
(i/b) Para escrever bem, basta conhecer as regras de ortografia.
(i/c) Para escrever bem, é preciso ler muito.
(i/d) Para escrever direito, deve-se aprender gramática.
(i/e) Só a escola ensina a escrever bem.
(i/f) Quem já aprendeu a ler já pode escrever qualquer tipo de texto.
Como se pode observar, as assertivas (i/b), (i/d), (i/e) e (i/f) contêm
afirmações equivocadas sobre a aquisição da competência de escrita, equívoco,
aliás, que provavelmente está na base das dificuldades e até mesmo do
bloqueio de muitos alunos, no desenvolvimento de habilidades que os levem
ao domínio dessa competência. Os resultados, no entanto, demonstraram que
elas ainda são verdadeiras, para esses alunos da 8ª série, na seguinte proporção:
43,2% para a assertiva (i/b) – Para escrever bem, basta conhecer as regras de ortografia;
75,6% para a assertiva (i/d) – Para escrever direito, deve-se aprender gramática; 27,5%
para a assertiva (i/e) – Só a escola ensina a escrever bem; e 19,8% para a assertiva
(i/f) – Quem já aprendeu a ler, já pode escrever qualquer tipo de texto.
Quanto aos formandos de Letras e aos professores, em relação à assertiva
(i/b) – Para escrever bem, basta conhecer as regras de ortografia, esse equívoco parece
estar sendo corrigido: 100% dos formandos de Letras a consideram
categoricamente falsa, felizmente, embora ainda haja um resíduo de
professores (4,5%) que a considerem verdadeira.
Em relação à assertiva (i/f) – Quem já aprendeu a ler já pode escrever qualquer
tipo de texto, os formandos de Letras e os professores categoricamente a
consideram falsa (100%).
O prestígio maior, no entanto, parece ser ainda o da teoria gramatical,
assertiva (i/d) – Para escrever direito, deve-se aprender gramática. Ela é ainda essencial
para se aprender a escrever bem, segundo a opinião de 75,6% dos alunos da 8ª
série, 29% dos formandos de Letras e 40,9% dos professores de português. A
nosso ver, o que se torna preocupante, nesses resultados, é o fato,
lamentavelmente generalizado, de que ainda há professores que não
privilegiam a gramática de uso ou a gramática reflexiva, insistindo em uma
tradição calcada em regras e classificações.
A grande porcentagem de rejeição do valor de verdade da assertiva (i/e) Só
a escola ensina a escrever bem – constitui um reconhecimento das outras instâncias
de letramento, embora o índice de concordância por parte dos alunos do
Ensino Fundamental seja ainda preocupante (27,5%).
A assertiva (i/c) – Para escrever bem é preciso ler muito – foi proposta para
verificar o grau de adesão a essa crença, que faz parte da cultura letrada. Ela é
verdadeira para 85%, dos alunos, 62,5% dos formandos de Letras e 86,4% dos
professores. Embora ela seja verdadeira, é indispensável também o trabalho
específico com os gêneros discursivos e a prática de construção textual, para se
construir a competência de escrever bem.
Como conseqüência de tudo isso, há que se destacar, ainda, que as
respostas à assertiva (i/a) – Eu escrevo bem – demonstram que os alunos de 8ª
série, em grande parte (33,3%), ainda consideram que não têm essa
capacidade. Pudemos observar também que, mesmo ao concluir o Curso de
Letras, 24,2% dos formandos não podem afirmar que dominam essa
competência. Os professores, esses sim, todos estão seguros disso (100%).
O conjunto (ii), crenças em relação à fala, foi associado às seguintes assertivas:
(ii/a) Eu falo bem.
(ii/b) Os adultos falam melhor que os jovens.
(ii/c) O bom professor de Português fala sempre de acordo com as regras de gramática.
(ii/d) A escola deve corrigir a fala dos alunos.
(ii/e) As pessoas analfabetas falam errado.
(ii/f) Eu gosto de falar do mesmo jeito da minha família e dos meus amigos.
(ii/g) Em qualquer situação da vida, posso falar do mesmo jeito.
(ii/h) Só há um modo de falar corretamente: aprender o que a escola ensina.
(ii/i) Há outras falas mais bonitas que a de Minas.
Dentre essas nove assertivas, quatro delas – (ii/c) O bom professor de Português
fala sempre de acordo com as regras de gramática; (ii/d) A escola deve corrigir a fala dos
alunos; (ii/e) As pessoas analfabetas falam errado; (ii/h) Só há um modo de falar
corretamente: aprender o que a escola ensina – afirmam a influência da escola ao
construir, nos alunos, crenças negativas em relação a sua competência de uso
da língua, mesmo na sua fala espontânea.55
Se, por um lado, no entanto, é preocupante a porcentagem alta de alunos
da 8ª série (71,1%) que, ao final do Ensino Fundamental, acreditam que o bom
professor de português fala sempre de acordo com as regras de gramática56 –
assertiva (ii/c), mito que uma boa porcentagem dos próprios professores de
português (23,8%) ainda afirma ser realidade – por outro lado, tudo indica que,
nos cursos de Letras, pelo menos no universo que serve de parâmetro para o
presente estudo, as reflexões sobre certo e errado em linguagem já estejam
dando bons resultados: apenas 3,0% dos formandos participam dessa crença.
O mesmo se pode dizer em relação à afirmativa (ii/e) As pessoas analfabetas
falam errado, que 60,5% dos alunos da 8ª série e 13,6% dos professores
consideram verdadeira, mas a totalidade dos formandos de Letras
consideraram falsa.
Observe-se, no entanto, os resultados da assertiva (ii/d) A escola deve corrigir
a fala dos alunos. Ela é verdadeira para 62,8% dos alunos, 40,6% dos formandos
de Letras e 38,1% dos professores. Esse é um indício forte de que a descrença
dos alunos na competência de uso de sua própria língua é construída no dia-a-
dia, dentro da escola.
A assertiva (ii/h) – Só há um modo de falar corretamente: aprender o que a escola
ensina – é verdadeira para 34,2% dos alunos, mas, felizmente, o é para apenas
3,0% dos formandos de Letras e para 4,5% dos professores.
A assertiva (ii/b) – Os adultos falam melhor que os jovens –, considerada ainda
verdadeira por 38,3% dos alunos da 8ª série, parece ser reflexo de sua auto-
estima baixa, construída ao longo de seus oito anos de vida escolar, crença
reiterada no confronto com os resultados da assertiva (ii/a) – Eu falo bem:
40,8% desses alunos ainda julgam que não falam bem.
A assertiva (ii/f) Eu gosto de falar do mesmo jeito da minha família e dos meus
amigos –, quando considerada falsa, sugere uma insatisfação, por parte dos
sujeitos, em relação à variedade lingüística de seu meio. 53,7% dos alunos do
Ensino Fundamental manifestando esse sentimento nos reportam às
conclusões de Santos (1976). Ao final de sua pesquisa, em que utiliza testes de
atitudes aplicados em alunos de escola pública da cidade do Rio de Janeiro, o
autor conclui que os alunos provenientes das classes pobres, a partir do
segundo segmento do Ensino Fundamental, passam a estigmatizar a variação
lingüística de seus pais. Nesse caso, a escola não terá cumprido seu papel de
conscientizar os alunos sobre o significado social das variedades lingüísticas.
Retomamos suas palavras (SANTOS, 1976, p. 9):
[...] a escola funcionou como fator de integração entre os educandos quanto às atitudes em relação
às variantes julgadas (e dentro dos contextos em que foram julgadas), sem haver um apagamento da
estratificação social entre eles. É possível que, com o aumento da idade e da instrução, os
adolescentes do estrato social de mais prestígio venham a se aproximar das atitudes dos pais. Mas é
certo que os jovens do ES-1[estrato pobre] não se aproximarão dos padrões de atitudes dos seus
responsáveis.
O interessante é que, entre os professores, o índice de rejeição (54,5%) é
também alto, bastante equivalente ao dos alunos (53,7%). Entre os formandos
de Letras, 21,9% rejeitam o jeito de falar de seus pares.
A mesma reflexão cabe em relação à assertiva (ii/i) – Há outras falas mais
bonitas que a de Minas. É significativo o percentual de alunos da 8ª série que a
consideram verdadeira: 69,2%.
Como conseqüência, em relação à responsabilidade dos agentes escolares
que colaboram diretamente na construção do sistema de crenças, que pode
determinar as atitudes lingüísticas, Santos (1976, p. 15) constatou: “Várias
pesquisas produziram evidências de que a atitude de um indivíduo pode ser
mudada, se forem mudadas suas crenças sobre o objeto”.
As respostas relativas à assertiva (ii/g) – Em qualquer situação da vida, posso
falar do mesmo jeito – trazem tranqüilidade: apenas 11,8% dos alunos de 8ª série
parecem ainda insensíveis à necessidade de adequar sua fala às situações de
uso. Os formandos de Letras e os professores, categoricamente, a
consideraram falsa.
Os resultados associados (iii) a crenças em relação à fala e à escrita foram
vinculados às seguintes assertivas:
(iii/a) A língua escrita é mais correta que a falada.
(iii/b) Para escrever direito, devo melhorar meu jeito de falar.
(iii/c) A linguagem dos livros é sempre melhor e mais bonita do que meu modo de falar.
(iii/d) Para aprender a escrever, o aluno deve aprender a falar como seu professor de Português.
(iii/e) A língua escrita é mais importante que a falada.
(iii/f) Saber falar bem é tão importante quanto saber escrever bem.
(iii/g) A língua escrita é mais complicada que a falada.
(iii/h) Eu devo escrever do mesmo jeito que falo.
Dentre estas assertivas, as cinco primeiras, ainda que eivadas de
preconceito lingüístico, tiveram, principalmente entre os alunos da 8ª série, alto
índice de concordância. Confiramos: (iii/a) – A língua escrita é mais correta que a
falada – 75,2%; (iii/b) – Para escrever direito, devo melhorar meu jeito de falar – 66,1%;
(iii/c) – A linguagem dos livros é sempre melhor e mais bonita do que meu modo de falar –
58,3%; (iii/d) – Para aprender a escrever, o aluno deve aprender a falar como seu professor
de Português – 25,4%; (iii/e) – A língua escrita é mais importante que a falada –
29,4%. Com relação à última assertiva, esse índice mais baixo de concordância
sugere que já se vai caminhando para uma maior valorização, na escola, das
práticas de oralidade.
Entre os professores, o índice, embora menor, é, ainda, lamentavelmente
alto: 42,9% para a assertiva (iii/b) – Para escrever direito, devo melhorar meu jeito de
falar. Entre os formandos de Letras, ele é bem menor ainda, o que é apreciável:
12,1%.
A assertiva (iii/f) – Saber falar bem é tão importante quanto escrever bem – foi
considerada verdadeira por 87,3% dos alunos, 62,5% dos formandos de Letras
e 95,2% dos professores.
A assertiva (iii/g) A língua escrita é mais complicada que a falada foi considerada
falsa por 25% dos alunos, 60,6% dos formandos de Letras e 45,5% dos
professores.
Finalmente, a assertiva (iii/h) – Eu devo escrever do mesmo jeito que falo só foi
considerada verdadeira por 10,8% dos alunos. Todos os demais (89,2%) e
l00% dos formandos de Letras e dos professores a consideraram errada, o que,
felizmente, não é de surpreender. Afinal, essa – a aquisição da escrita –
constitui a grande arena em que se debatem todos os agentes do ensino. Se há
forte preconceito contra a oralidade na escola, é natural que a escrita goze de
lugar privilegiado. Felizmente, pelo menos em teoria, está clara a diferença
entre as duas modalidades. Resta trabalhá-las eficaz e adequadamente.
A assertiva Há outras falas mais bonitas que a de Minas Gerais abriu a
possibilidade de os respondentes se expressarem sobre uma eventual
preferência por outros falares diferentes do de Minas Gerais. O objetivo dessa
assertiva foi o de sondar a existência ou não de tal crença, o que poderia ser
também um indício de como eles se sentem diante da variedade lingüística de
sua própria região. Apenas 1 professor e 1 formando de Letras declararam
preferência pelo falar sulista (Rio Grande do Sul e sulista, respectivamente).
Dentre os demais respondentes, alguns declararam ser preconceito lingüístico
a preferência por esse ou aquele falar regional.
Essa assertiva com relação às falas preferidas revelou que, dos 135 alunos
que responderam ao teste, apenas 77 expressaram sua opinião nesse sentido.
Dentre eles, 61,0% declararam gostar mais do falar carioca; 15,5% mostraram
preferência pelo fa1ar do Sul (12 explicitamente nomearam o gaúcho; 2, o falar
de Santa Catarina; 1, o falar do Paraná e 1 chamou-o genericamente de falar
sulista); 4,2% prefere o falar paulista e 9% o do Nordeste (5 explicitamente
nomearam o falar baiano; 1, o falar de Recife e 2, genericamente, o falar
nordestino).
A preferência tão grande pelo falar carioca (61,0%) pode estar ligada à in-
fluência econômica e cultural da cidade do Rio de Janeiro sobre Juiz de Fora,
ambas separadas por apenas 192km, ligadas por excelente estrada de rodagem,
a BR-040. De fato, a sociedade juizforana parece estar muito mais ligada ao
modo de vida carioca do que ao da capital do Estado, Belo Horizonte. Essa
influência é histórica, se considerarmos, por exemplo, que a primeira rodovia
macadamizada da América Latina foi construída para ligar Juiz de Fora a
Petrópolis (RJ), tendo sido inaugurada em 1861, por D. Pedro II. Na época da
expansão das comunicações radiofônicas, na década de 1930, e mesmo da
televisiva, na década de 1950, as emissoras eram cariocas praticamente as
únicas conhecidas e acessadas pela população de Juiz de Fora. De qualquer
modo, permanece bastante significativa a influência carioca sobre os
juizforanos.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DO TESTE DE CRENÇAS
Os resultados revelam que os alunos da 8ª série das escolas avaliadas estão
inibidos relativamente à competência de uso de sua própria língua: em geral,
não consideram que falam nem que escrevem bem. E mais, condicionam o
desenvolvimento dessa competência a falsos instrumentos, como aprender
regras de gramática ou de ortografia. Como conseqüência, apresentam baixa
auto-estima, além de alimentarem, já nesse nível, o preconceito lingüístico,
algumas vezes contra seu próprio modo de falar. Estão seguros de que a escola
pode ajudá-los e esperam isso.
Já entre os professores, que, de um modo geral, não compartilham de
muitas das crenças equivocadas de seus alunos, alguns ainda se mostram
presos a outras crenças sem fundamento, como a de que é preciso “corrigir” a
fala do aluno, de que os analfabetos falam errado, de que sem saber gramática
não se aprende a escrever. Nesse caso, demonstram-se desfavoráveis à
variedade lingüística de seus alunos e acabam colaborando para que eles não
acreditem em sua própria capacidade de se expressar com competência,
segundo os padrões escolares esperados.
O que se deve perguntar, no entanto, a nosso ver, é por que a escola ainda
não conseguiu desfazer tantos equívocos. As atividades escolares de reflexão
sobre a língua e a linguagem, fundamentadas em princípios científicos, são o
caminho seguro para a desconstrução de falsas crenças e do preconceito
lingüístico, para se desenvolver competências de uso da variedade culta da
própria língua.
Vimos que Richardson (1968), examinando as relações entre crenças e
ações/atitudes, apontou a necessidade da reflexão do professor e do aluno
sobre o processo ensino/aprendizagem, para as mudanças ou surgimento de
novas crenças. Nesse caso, cremos, o professor pode desempenhar um papel
importante no apoio ao aluno no sentido de levá-lo a desenvolver uma boa
auto-estima, acreditando na possibilidade de se tornar um usuário competente
de sua língua, capaz de transitar tanto pelas situações de maior formalidade
quanto por aquelas de total descontração.
Levantando um sistema de crenças dos professores e dos alunos, pôde-se
construir um quadro ilustrativo do que se vai desenhando nas escolas e, por
conseguinte, no universo conceitual dos alunos sobre
ensino/aprendizagem/competência de uso de sua própria língua.
Quanto aos formandos de Letras, tudo indica, vão avançando na
construção de crenças mais compatíveis com o avanço dos estudos de
linguagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS – FOCO NO ALUNO, NO PROFESSOR E
NO PROFESSOR EM FORMAÇÃO
Esta pesquisa possibilitou evidenciar, de maneira pontual, a origem de
algumas das inconsistências do trabalho escolar com a língua portuguesa. Sem
dúvida, sabe-se que, nesse sentido, há outras questões já amplamente
apontadas e discutidas na literatura que se vem construindo sobre o tema. No
presente caso, o estudo das crenças possibilitou a aproximação do investigador
com seu objeto de análise, isto é, o estudo das crenças lingüísticas no contexto
da escola pública da cidade mineira de Juiz de Fora.
Os achados relevantes desse teste, que consistiu de 25 assertivas sobre as
relações com a fala, a escrita e entre ambas, demonstraram:
(i) por parte dos alunos, um preconceito significativo contra a própria fala:
40,8% ainda julgam que não falam bem; uma desvalorização da fala da família
e dos amigos (53,7%); a crença de que o bom professor de Português fala
sempre corretamente (71,1%). Por parte dos formandos, apenas 3,0%
compartilham desta última crença, muito embora 72,7% consideram que falam
bem. Por parte dos professores, é categórica a crença de que falam bem; mas
ainda 38,1% acham que devem corrigir a fala dos alunos, embora não julguem
que só a escola ensine a falar corretamente (90,9%);
(ii) por parte dos alunos, uma crença de que não escrevem bem (33,3%) e
de que, para adquirirem tal competência, basta conhecer regras de ortografia
(43,2%) e de gramática (75,6%); não obstante, somente 27,5% avaliam que
apenas a escola ensina a escrever bem. Quanto aos formandos, 75,8% afirmam
que escrevem bem e categoricamente discordam da crença de que o
conhecimento de regras ortográficas leva a uma boa escrita; 71% não
acreditam que aprender gramática implica em escrever bem. Categoricamente
os professores julgam escrever bem; a crença de que é necessário aprender
ortografia para se escrever bem é falsa para 95,5% deles, mas ainda 40,9%
consideram verdadeiro que é preciso aprender gramática para escrever bem;
(iii) por parte dos alunos, uma crença de que a escrita é mais correta
(75,2%), mais importante (29,4%) e mais complicada (75%) do que a fala. Por
parte dos formandos e dos professores há uma coincidência: 90,9%
consideram falsa a crença de que a escrita é mais correta; (87,9%) dos
formandos julgam não ser necessário melhorar o jeito de falar para escrever
direito e 57,1% dos professores participam da mesma crença. As crenças dos
alunos de que não falam bem e de que sua fala deve ser corrigida constituem
um indício da insuficiência do trabalho com a oralidade na escola, o que
redunda em baixa auto-estima e em descrença na própria competência
lingüística.
Com base nesses resultados, podemos concluir que nossas hipóteses
aventadas se confirmam:
1) Há correlação entre as crenças dos professores sobre os conceitos de
língua, linguagem variação e aprendizagem lingüística e as crenças e as atitudes
dos alunos sobre sua própria variedade dialetal.
2) As crenças dos professores têm reflexo nas atitudes desfavoráveis do
aluno em relação à própria capacidade de domínio das variantes padrão.
Uma evidência significativa a favor dessas hipóteses é a de que 75,6% dos
alunos do Ensino Fundamental avaliam que o conhecimento gramatical é
indispensável para o domínio da escrita padrão. O ponto importante a ser aí
destacado é o de que a crença dos professores quanto a este quesito apresenta
um resultado ainda preocupante: 59,1% consideram falsa essa crença, mas
40,9% ainda a julgam verdadeira. Tal postura, ainda persistente nos
professores, provavelmente influencia as atitudes desfavoráveis dos alunos
com relação à sua identificação com a variedade culta, o que poderia ser
atenuado com a adoção de uma pedagogia culturalmente sensível que
minimizasse a interação assimétrica no sentido de diminuir a distância entre o
prestígio conferido à variedade do professor e aquela do aluno. No entanto, já
há sinais de que esse quadro está mudando: apenas 29% dos formandos em
Letras participam dessa crença.
Os resultados da pesquisa também demostraram alunos em conflito,
divididos entre a aprovação de sua variedade lingüística e a declaração de que
não sabem escrever, nem falar bem. Percebe-se, portanto, que,
subliminarmente, um sistema de crenças vai sendo construído na direção
oposta do que a escola pretende. As manifestações de crenças dos professores
revelam o quanto de participação ainda têm nesse conflito, já que alguns deles
ainda parecem estar influenciados por um sistema de crenças repleto de
equívocos, quanto à língua, à linguagem, à variação e à aprendizagem
lingüística.
As evidências comprovam, portanto, uma relação entre as crenças
lingüísticas dos professores e as dos alunos influenciando no processo de
aquisição da variedade culta da língua, fator indispensável – como assim
pontua a definição da política lingüística proposta pela ABRALIN (SCLIAR-
CABRAL, 1999) – à construção da cidadania, para que possam se integrar na
comunidade lingüística de que fazem parte e cuja variedade prestigiam. Isso
remete à necessidade de se fundamentar a prática do trabalho escolar com a
língua materna em sólidas bases de estudos sociolingüísticos.
Ora, tal evidência aponta claramente para a necessidade de a escola
reconhecer a legitimidade da variedade vernacular, a ponto de trabalhá-la em
sala de aula, mostrando-se não propriamente compassiva, mas detentora do
conhecimento de que ela vale para seus fins, tanto quanto a variedade
prestigiada vale para outros diferentes fins. Enquanto a escola insistir em negar
o caráter sócio-histórico-funcional dessa variedade, ela permanecerá na
perplexidade, quando se defrontar com resultados cada vez mais pobres do
ponto de vista do desenvolvimento, nos alunos, da competência de uso da
língua culta.57 Isso porque, em vez de aproximar, ela os distancia da crença de
que são capazes de adquirir a competência de uso dessa variedade, ainda que
mais prestigiada e diferente da que utilizam.
Lembramos aqui o que afirmam Leite e Callou (2004, p. 16): “Cumpriria, a
uma educação realmente democrática e igualitária, reconhecer a diversidade e
com ela trabalhar, no sentido de possibilitar a todos os usuários da língua o
acesso às normas prestigiadas e às mesmas oportunidades”.
Futuras investigações devem continuar, nesse sentido, a ressaltar a
necessidade de se levar em conta o componente avaliativo dentro das relações
entre falantes, notadamente nas relações escolares, já que ali pode ser o lugar,
por excelência, da construção de crenças relativas ao trabalho escolar com a
língua materna. Apesar do muito que a sociolingüística tem trabalhado a fim
de descontruir preconceitos na área da linguagem, cremos que muito deve ser
feito ainda para que esses resultados expressivos cheguem à escola e às
relações professor/aluno.
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NOTAS
Este texto é uma versão resumida de parte da tese de doutoramento de Lúcia F. Mendonça Cyranka,
orientada por Cláudia Roncarati e defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF, na linha
de pesquisa Sociolingüística e Educação, em 2007. Agradecemos aos Professores Lúcia de Santiago
Dantas Quental (UFRJ), Mário Roberto Lobuglio Zágari (UFJF) e Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB),
pelas indicações bibliográficas e valiosas sugestões, que em muito contribuíram para elucidar importantes
aspectos teórico-metodológicos referentes à engenharia e análise dos testes. Na versão deste artigo, as
visões da orientanda e da orientadora se fundem e confluem em uma resenha crítica da pesquisa
empreendida.
Travaglia (1997, p. 111). Ver também, nessa mesma obra, p. 30-37, os demais conceitos de gramática.
Soares (2003, p. 91) assim conceitua letramento: “Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da
escrita denomina-se letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever
para atingir diferentes objetivos – para informar ou informar-se, para interagir com os outros, para
imergir no imaginário, no estético, para ampliar conhecimentos, para seduzir ou induzir, para divertir-se,
para orientar-se, para apoio à memória, para catarse [...]; habilidade de interpretar e produzir diferentes
tipos de gêneros de textos; habilidades de orientar-se pelos protocolos de leitura que marcam o texto ou
de lançar mão desses protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo
interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e
conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, segundo as circunstâncias, os objetivos, o
interlocutor”. Já Bortoni-Ricardo (2004, p. 24) entende que o letramento é geralmente empregado para
indicar um acervo cultural preservado por meio da escrita e prefere utilizar o termo ‘letramentos’, no
plural, para dar conta de culturas de letramento, visando a preservar a idéia de que não existe só uma
cultura de letramento.
Van Lier (1997, p. 183) propõe denominar ecológica a perspectiva que considera os contextos de uso e a
aprendizagem de língua.
Na seção subseqüente, apresentamos uma diferenciação detalhada entre crença e atitude.
Os outros problemas fundadores da Sociolingüística são atinentes ao condicionamento, à transição entre
os estágios da mudança, ao encaixamento de uma mudança no sistema de relações lingüísticas e na
matriz social circundante e à implementação da mudança lingüística.
“The point has already been made by a number of researchers (e.g. Labov 1966, Shuy 1969, Williams
1970a) that linguitics attitudes are the other side of the social dialect coin. That is to say, if we have
language features that are known to be correlated with the social stratification of speakers, then it seems
plausible – and research has borne out – that such features may serve as cues in the listener’s estimate of
a speaker’s social status” (WILLIAMS, 1973, p. 113).
Para esse autor, a crença sobre um objeto pode ser descrita segundo sua relação com outro objeto ou
conceito, de tal modo que uma afirmação que relacione o objeto da crença a qualquer outro objeto
constitui uma expressão de crença.
É preciso esclarecer que o centro da cidade de Juiz de Fora é ainda considerada zona residencial nobre.
Para um detalhamento da caracterização sócio-cultural das escolas e dos critérios lingüísticos e
geopolíticos de sua escolha, remetemos à leitura da tese de Cyranka (2007).
Relativamente à assertiva (ii/e), é claro que outras instâncias da sociedade, como a mídia, também podem
contribuir para alimentar esse preconceito. Mas, no caso, estamos tratando somente da pressão escolar.
Estamos considerando aqui o conceito de gramática vigente no ambiente escolar, isto é, o que está
associado ao conceito de língua padrão e em relação ao qual o Projeto NURC-SP (PRETI, 1997)
apontou indícios para sua desmitificação.
O jornal Folha de São Paulo, de 8 de fevereiro de 2007, mostra, em sua primeira página, um quadro de
perplexidade: “os mais baixos índices de rendimento entre os alunos do ensino médio e da 8ª série do
ensino fundamental desde a primeira aplicação das provas, em 1995”. Por sua vez, o jornal Tribuna de
Minas, de Juiz de Fora, em sua edição de 7 de fevereiro de 2007, também em sua primeira página,
anuncia: “Uma nova face do fracasso escolar na rede pública de Juiz de Fora vem à tona. Dessa vez, os
dados remetem ao resultado do concurso realizado pelo Colégio Técnico Universitário (CTU) para
candidatos à primeira série do ensino médio. Dos 1.622 estudantes da oitava série do ensino fundamental
que participaram da seleção, 76% deles provenientes de escolas municipais e estaduais, somente 147
alcançaram a pontuação mínima nas provas. No total, 90,94% não conseguiram acertar nem a metade
das provas de português, matemática, história, geografia, biologia, química e física. A coordenação do
exame revela que o mau resultado se repete ao longo dos anos”.
Haver, ter ou fazer na expressão de tempo decorrido

Marcia dos Santos Machado Vieira – UFRJ


TEMA E OBJETIVOS
Analisa-se, neste artigo, um dos empregos de haver, ter e fazer identificado
em estudo sobre o comportamento multifuncional desses verbos, realizado no
Projeto de pesquisa PREDICAR (Formação e expressão de predicados complexos:
polifuncionalidade verbal): o de marcador de tempo cronológico em estruturas
como “haver/fazer/ter + expressão temporal (+ que)”.
Descrevem-se os condicionamentos sociais e lingüísticos dessas formas
alternativas no domínio funcional da expressão de tempo decorrido. Para a
delimitação desses condicionamentos, consideraram-se variáveis, tais como:
variedade nacional do português; modalidade discursiva; modo de organização
discursiva; ordem das expressões temporais; possibilidade de substituição por
expressão adverbial equivalente (sem verbo); possibilidade de inserção da
preposição desde antes da expressão com haver/fazer/ter; configuração formal da
expressão (com ou sem conector QUE; nome ou sintagma nominal);
configuração semântica do termo que designa somatório de tempo (contável
ou não-contável); possibilidade de supressão de haver, ter e fazer da expressão
temporal, sem prejuízo comunicativo; valor aspectual da expressão (durativo,
relativo a um período de tempo, a uma certa duração; ou pontual, relativo ao
ponto no tempo em que teve início a delimitação de tempo) e gênero textual
(editoriais, notícias, crônicas ou anúncios em jornais; entrevistas; redações).
Com esta pesquisa, pretende-se, em última instância, colaborar para uma
descrição mais consistente do assunto em obras gramaticais e didático-
pedagógicas.
ENFOQUE TEÓRICO-METODOLÓGICO: AMOSTRA DE FALA E
ESCRITA PORTUGUESA E BRASILEIRA E ORIENTAÇÃO
SOCIOFUNCIONALISTA
Para o tratamento do assunto, conta-se com uma amostra de enunciados
coletados em textos orais do português europeu e do português brasileiro58
que são submetidos a uma análise multivariacional por meio do pacote de
programas GOLDVARB. A análise fundamenta-se em pressupostos da Teoria
de Variação e Mudança (WEIREINCH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV,
1994, 2003). A essa perspectiva conjuga-se um enfoque funcionalista relativo:
(i) ao estatuto categorial dos verbos em alternância – que, se pressupõe, está
localizado no continuum de gramaticalização de verbo predicador a verbo
funcional; (ii) à compreensão de que as três formas verbais alternam porque
pertencem a um mesmo domínio funcional – ainda que possam indicar valores
semânticos (mais ou menos) distintos; e (iii) ao entendimento de que a
alternância em foco tem motivações funcionais (sociais e/ou comunicativas).
Na análise, também são consideradas orientações da Teoria da Gramática
Funcional do Discurso (DIK, 1997, e seus seguidores) quanto à formação de
predicações e à descrição de predicadores e operadores gramaticais, bem como
algumas descrições sobre o comportamento desse emprego dos verbos haver,
fazer e ter (BOSQUE; DEMONTE, 1999; MACHADO VIEIRA, 2001; entre
outras). A pesquisa baseia-se, portanto, num enfoque sociofuncionalista do
fenômeno em foco.
ESTRUTURAS “HAVER/TER/FAZER + EXPRESSÃO TEMPORAL
(+ QUE)”: PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
As construções com marcadores temporais haver, ter ou fazer caracterizam-
se por não admitirem todas as formas de flexão de pessoa e número: tais
verbos só ocorrem na 3ª pessoa e, segundo a norma culta padrão, no singular.
O sintagma nominal com valor temporal (SNtemporal) articula-se a tais verbos e se
refere a “tempo cronológico”:
(i) tem como núcleo um substantivo que indica uma “medida de tempo”
(por exemplo, semana, mês, ano, século, tempo, instante) e pode ser contável ou não-
contável (semestre, dia; (muito) tempo);
(ii) não é substituído por pronome átono correspondente (Fará, esta semana,
quarenta dias que não chove e que não venta. *?Só não os fará se acontecer um milagre!);
(iii) pode ser anteposto (numa ordem mais marcada) ou posposto a fazer
(Muito tempo há que não pratico esportes. / Há muito tempo que não pratico esportes.);
(iv) não ocorre com artigo definido; aparecerá artigo no caso (mais raro) de
o substantivo que indica medida de tempo ser antecedente de uma relativa
com haver, ter ou fazer impessoal (Pensava nos (muitos) meses que fazia que seu marido
havia partido. / Lembrava o tempo que tinha que ela não o via.).
A referência a “transcurso de tempo” pode ocorrer mediante
configurações sintáticas distintas:
(a) haver/ter/fazer + SNtemporal+ que SO
Ainda este mês, em seu penúltimo dia, faz trinta e cinco anos que Patrocínio morreu. (PB escrito, Jornal do Brasil,
5/1/1940, “De corpo presente”)
(b) haver/ter/fazer + SNtemporal + SO
Faz agora sábado quinze dias eu amassei (pão).
As estruturas (a) e (b) podem apresentar variantes no que tange à
ordenação dos elementos lingüísticos (como, por exemplo, em: Que Patrocínio
morreu, faz trinta e cinco anos ou Eu amassei pão faz quinze dias).
(c) fazer + SNtemporal + desde que SO
Ainda este mês, em seu penúltimo dia, faz trinta e cinco anos desde que Patrocínio morreu.
A preposição “desde/de” indica o evento/estado de coisas que marca, no
tempo, o ponto inicial a partir do qual se constata um determinado período de
duração, estabelecendo-se uma contagem de tempo.
(d) haver/ter/fazer + SNtemporal + desde SN
Ainda este mês, em seu penúltimo dia, faz trinta e cinco anos da/desde a morte de Patrocínio
(e) SN + haver/ter/fazer + SNtemporal + SV
A morte de Patrocínio faz trinta e cinco anos consta neste texto jornalístico.
Observe-se, ainda, que haver/ter/fazer pode ocorrer, num enunciado, apenas
com o SNtemporal quando o interlocutor recupera, no discurso ou no contexto
sociocomunicativo, o estado de coisas ao qual a construção faz referência,
como é o caso das respostas:
“– Sua irmã não estuda?! – Ih:::! Há muito tempo!”
“– Já alugou a casa? – Faz mais de uma semana.”

O COMPORTAMENTO SEMIGRAMATICAL DE HAVER, TER OU


FAZER EM EXPRESSÕES TEMPORAIS
Entende-se que, nesse tipo de estrutura, tais verbos funcionam como
elementos semigramaticais que pertencem a uma categoria funcional híbrida –
operandum auxiliar (nos termos de DIK, 1997) – que reúne propriedades que os
relacionam às categorias de verbo predicador (em uma de suas extensões de
sentido) e constituinte gramatical de expressão adverbial. Apresentam-se, portanto,
como extensões de uso que se situam no continuum de gramaticalização
(HOPPER, 1991) de verbo predicador a verbo gramatical/instrumental.
Sua aproximação à categoria de verbo predicador deve-se, basicamente, a
duas características:
(i) O SN com referência temporal mantém relação de complementação
com haver, ter e fazer. Isso pode ser percebido em enunciados como:
E - Você está lá (nessa escola) há muito tempo?
F - Três anos que estudo lá. [PB oral, PEUL];
(ii) O verbo que compõe a expressão temporal pode ser substituído por
verbos predicadores como completar, somar. Essa substituição parece mais
aceitável em alguns casos do que em outros. A título de exemplificação,
comparem-se os enunciados abaixo:
Eu não sei há quanto tempo eu moro lá, mas há uns trinta anos por aí... numa casa de vila em que
morava a minha esposa quando solteira) [PB oral, NURC]
Eu não sei quanto tempo ?completa eu moro lá, mas somam uns trinta anos por aí... numa casa de vila.
O entendimento de haver, ter e fazer como verbo
semigramaticalizado/instrumental integrando uma expressão adverbial
temporal baseia-se em quatro indícios.
Alguns outros aspectos examinados permitem mostrar o estatuto funcional
híbrido do uso impessoal de fazer no continuum léxico-gramática, seu caráter
semigramaticalizado:
(i) Um deles é a especialização morfossintática de tais verbos, que ocorrem
rotineiramente numa estrutura específica, relativamente fixa e previsível, e na
3ª pessoa do singular;
(ii) Outro aspecto de sua gramaticalização está no processo de
especialização semântico-funcional que revelam, ao assumirem com o SN
temporal (que não tem comportamento de “objeto afetado”, característico de
estruturas transitivas) uma unidade sintático-semântica com um significado
específico (de “ter passado um determinado lapso de tempo, desde certo
fato”);
(iii) Um terceiro indício encontra-se na possibilidade de tais verbos,
marcadores de tempo decorrido, serem suprimidos, como se verifica nos
exemplos abaixo:
mas há dois dias atrás eu peguei minha filha se pendurando ali no parapeito [PB oral, NURC]
mas dois dias atrás eu peguei minha filha se pendurando ali no parapeito;
(iv) Um quarto indício diz respeito ao fato de tais estruturas equivalerem a
adjuntos adverbiais. Evidências dessa equivalência funcional estão na
mobilidade dessas estruturas no enunciado (Faz uma semana encontrei o
livro/Encontrei o livro faz uma semana), na possibilidade de substituição dessas
estruturas por adjuntos adverbiais ou advérbios (Cheguei de viagem faz um mês/no
mês passado); no fato de algumas estruturas comutarem com adjuntos adverbiais
com preposição desde (como no exemplo abaixo), particularmente as estruturas
com verbo haver:
eu tô com uma rotina já há muito tempo, que, me deixa, muito, afastada do comércio do bairro [PB oral, NURC]
(eu tô com uma rotina já desde muito tempo, que, me deixa, muito, afastada do comércio...
O emprego da preposição desde antes de fazer + SN temporal parece
inaceitável e agramatical com o conteúdo lexical que ainda persiste em fazer
(*Desde faz quinze dias eu amassei (pão); *Estou estudando desde faz dois meses). Já
antes de haver + SN temporal é aceitável, dependendo da informação veiculada
(duração a partir de um ponto no tempo): Estou estudando desde há dois meses.59
Na função de expressar tempo decorrido, parece que fazer difere um pouco de
haver: com fazer, a ênfase está na idéia do processo de “completar-se” um
determinado período de tempo; e com haver sobressai a idéia de “existência”
de certa duração de tempo ou certa localização no passado. Esse pode ser um
indício de que fazer ainda não está tão gramaticalizado quanto haver impessoal
em estruturas com referência cronológica. Ter impessoal temporal parece
situar-se entre os dois;
(v) Outro indício consiste no fato de que a possibilidade de substituição de
haver, ter ou fazer por outra forma verbal restringe-se a um conjunto bastante
limitado de verbos com comportamento semigramaticalizado (haver, ter, fazer, ir
para;60 ou seja, substituição entre eles) ou de verbos que a um deles se
relacionem apenas semanticamente (“completar(-se)”, “perfazer”, “somar”).
A ALTERNÂNCIA DE HAVER, TER OU FAZER NO PORTUGUÊS
Gráfico 1 – Distribuição dos 361 dados da amostra pesquisada: 81% de
haver, 11% de ter e 7% de fazer
A maior produtividade da variante haver na amostra (81%) – com peso
relativo que varia 0.81 (input inicial) a 0.95 (no nível selecionado nas avaliações
estatísticas de co-atuação de variáveis independentes) – já era esperada. Previa-
se este resultado por duas razões, basicamente: pelo fato de este ser o verbo
mais indicado pelas obras escolares tradicionais, principalmente em situações
de maior formalidade; e pela suposição de que haver, nesse tipo de estrutura,
encontra-se em processo de gramaticalização mais avançado do que ter e
fazer.61
As variantes ter e fazer são pouco produtivas tanto no Brasil quanto em
Portugal. É interessante destacar que não há, na amostra européia, qualquer
ocorrência da variante ter. Todos os 41 dados do corpus pertencem à amostra
brasileira. E dos 27 dados de fazer, apenas dois casos estão na amostra do
português europeu delimitada neste trabalho. Pela distribuição dos dados na
amostra investigada, pode-se supor que, em Portugal, prevalece uma situação
de regra variável quase categórica (LABOV, 2003). Favorecem essa hipótese o
alto índice percentual de emprego de haver (96.2%, 51 dos 53 dados) em
expressões temporais, os raros casos de fazer e, em certa medida, o efeito de
.86 do condicionamento da variedade européia em favor de haver (contra .42 na
variedade brasileira) – obtido na análise multivariacional binária que avaliou
estatisticamente a co-atuação de fatores internos e externos em relação a
empregos de haver contra empregos das alternativas ter e/ou fazer (a depender
da variedade nacional). Para avaliar a pertinência de tal suposição, ainda é
preciso ampliar a amostra européia, já que a amostra deste estudo contém
maior número de dados do português do Brasil (item 2).
A alternância entre as três formas verbais em expressões temporais parece
ser um fenômeno do Português Brasileiro.
Gráfico 2 – Distribuição percentual dos dados por variedade do
Português

Confirma-se, então, a hipótese de que há diferença entre as duas variedades


nacionais do português: para expressar tempo decorrido, o falante
praticamente não recorre a uma forma alternativa ao verbo haver no português
europeu.
Em função dos resultados já destacados, optou-se por análises, além
daquela mencionada no parágrafo anterior (dados de ter e fazer contra os dados
de haver), que focalizassem: (i) dados de haver contra ter apenas no português
brasileiro; e (ii) dados de haver contra fazer considerando dados das duas
variedades e, em seguida, apenas os dados do português brasileiro. Com tal
procedimento, procurou-se detectar as variáveis que influem na alternância,
existente particularmente no Brasil, assim como que fatores têm efeito no
condicionamento de haver e que fatores se destacam no condicionamento de
uma alternativa verbal para haver (ter e/ou fazer).
Dentre as variáveis independentes pesquisadas, destacaram-se, no
tratamento estatístico, as seguintes: em todas as rodadas, grau de escolaridade,
modo de organização discursiva, ordem das expressões temporais e presença ou ausência de
QUE na expressão temporal; na rodada haver x fazer/ter, modalidade expressiva e
possibilidade de substituição da expressão temporal por expressão adverbial
equivalente sem verbo; na rodada haver x fazer, modalidade expressiva; na
rodada haver x ter, natureza (verbal ou nominal) da estrutura sintagmática que a
expressão temporal modifica.
Em relação à modalidade expressiva, é preciso destacar que, dos 361 dados
da amostra, 284 são de fala e 77, de escrita. Destes 77, só não ocorre haver em
duas expressões temporais do corpus; nelas, ocorre a variante fazer. Essas duas
ocorrências estão entre os dados da variedade brasileira. Em função dessa
situação, só se pôde considerar a variável modalidade expressiva em duas
rodadas. O efeito de tal fator no condicionamento de haver foi o seguinte: o
peso relativo variou de .37 a .41, na fala, e de .77 a .87, na escrita. Em outras
palavras, o fenômeno variável em estudo concentra-se na língua falada. Na
língua escrita, ainda prevalece a variante recomendada tradicionalmente nos
livros didáticos, principalmente em Portugal.
Os resultados obtidos nas rodadas que selecionaram a variável grau de
escolaridade confirmam a hipótese que implicou sua inclusão entre os fatores
externos investigados: as alternativas a haver apresentam um baixo índice de
rentabilidade entre falantes de nível superior e maior produtividade entre os
usuários com ensino fundamental.
Gráfico 3 – Distribuição percentual de haver e fazer/ter por nível de
escolaridade: 1º ciclo do Ensino Fundamental (em 90 expressões
temporais), 2º ciclo do Ensino Fundamental (em 66 expressões), Ensino
Superior (em 205 expressões)

Para o exame do grupo de fatores “modo de organização do discurso”,


cogitou-se a possibilidade de se identificar alguma relação entre a
produtividade de certa variante verbal e o tipo textual em que se insere o
enunciado com a expressão temporal em análise. Imaginava-se que as
narrativas seriam um contexto favorecedor de expressões com haver, por conta
do estado de cristalização em que se podem encontrar algumas construções
como, por exemplo, há muito tempo....
Os resultados estatísticos revelam um favorecimento de haver em
seqüências opinativas (com variação de .72 a .86). O efeito dos demais fatores
é de .44 a .34, em seqüências descritivas; e de .42 a .37, em seqüências
narrativas. Quanto à freqüência das variantes por tipo textual na amostra, a
distribuição é bem próxima, destacando-se sempre o emprego de haver. Há
maior diferença entre haver (75/81 ocorrências, 92%) e fazer/ter (6/81
ocorrências, 8%) em relatos de opinião.
Gráfico 4 – Distribuição percentual de haver e fazer/ter por seqüências
opinativas (81 expressões neste caso), descritivas (70 expressões) e
narrativas (210 expressões) da amostra

A variável lingüística “ordem da expressão temporal na oração” apresentou


a seguinte influência na tendência ao emprego de haver: de .78 a .85, quando a
expressão se encontra no interior da oração (por exemplo, “Incêndio do 350, há
quase 1 ano, matou 5 pessoas e feriu 16.” [PB escrito, O Globo]); de .39 a .42, quando
é o primeiro elemento da oração; e de .16 a .19 quando está no fim da oração.
Gráfico 5 – Distribuição percentual de haver e fazer/ter no início (81
expressões), interior (127 expressões) ou fim (153 expressões) da oração
Esse resultado, de certa forma, sinaliza que expressões com haver têm a
mobilidade típica de modificadores circunstanciais (meio, início ou fim/ordem
canônica) e expressões com fazer/ter já não apresentam a mesma mobilidade.
Este é um indício do estágio de maior gramaticalização que se cogita para a
variante haver, em relação às demais. É interessante destacar os seguintes
resultados: na rodada haver x fazer, o efeito desses fatores é similar (.83 de
tendência a haver no interior da oração; .40 no início; .17 no fim); já na rodada
haver x ter, o efeito se revela menos intenso (.71 no interior; .47 no início; .31
no fim). O fato de, neste caso, haver uma tendência à maior mobilidade de
expressões com ter do que com fazer parece sinalizar que fazer é o verbo com
estatuto semigramatical em menor estágio de gramaticalização.
A questão da ordem da expressão talvez se relacione ainda à perspectiva de
apresentação da idéia de transcurso de tempo. A referência cronológica é
enfatizada, está em destaque ou não? É usada para introduzir informação nova
ou alguma mudança temática? Machado Vieira (2001) supõe, por exemplo, que
a diferença entre Faz dois anos que conheci João, Faz dois anos conheci João e Conheci
João faz dois anos consiste no fato de que, nos dois primeiros exemplos, a
circunstância temporal está em destaque no discurso, porque é a informação
nova ou introduz trecho de texto em que há mudança de assunto, então há
assunto novo; e, no último, não. Para avaliar tal suposição, já está em
andamento, no âmbito do Projeto PREDICAR, a recodificação dos dados aqui
considerados e de novos dados variáveis que possibilitem a investigação de
fatores como: o enunciado em que ocorre a expressão temporal impessoal
apresenta informação nova, inferível, ancorada ou velha (PRINCE, 1981) e
qual é o status informacional da expressão em si? Para apreender melhor esse
fenômeno seria interessante estudá-lo em termos prosódicos.
Com relação à configuração estrutural da expressão de tempo decorrido,
os resultados revelam que haver ocorre em poucas estruturas seguidas pelo
conector QUE. Tal configuração é mais freqüente em estruturas com os
verbos fazer e ter. Talvez isso indique que haver está mesmo mais afastado da
função de Vpredicador, revelando-se mais como um componente
semigramatical de expressão temporal.
Gráfico 6 – Distribuição percentual de expressões com haver ou
fazer/ter + SN temporal + QUE (53 casos) e expressões com haver ou
fazer/ter + SN temporal (308 casos)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao ter suas propriedades de verbo predicador minimizadas, haver, fazer e ter
renovam-se semântica e gramaticalmente, assumindo a função de marcar
referência temporal. Nesse domínio funcional, tais verbos atuam, então, como
elementos funcionais com propriedades que os relacionam às categorias de
verbo predicador e elemento gramaticalizado (constituinte gramatical de expressão
adverbial). Apresentam-se, portanto, como extensões de uso que parecem
situar-se diferentemente entre os pólos lexical e gramatical do continuum de
gramaticalização de verbo predicador a verbo instrumental.
No fenômeno variável em foco, destacaram-se as motivações funcionais.
Com os resultados aqui expostos, percebeu-se que a variante haver é a mais
produtiva em expressões temporais, seja na modalidade escrita ou oral, na
variedade brasileira ou européia.
Para compreender melhor o fenômeno de alternância de haver, fazer e ter
nas construções que sinalizam referência a tempo cronológico, é importante
pesquisar o processo de gramaticalização de cada verbo, ampliar a amostra de
expressões temporais nas duas variedades e modalidades consideradas
(principalmente, em fontes do português europeu) e considerar aspectos
comunicativos que foram destacados como possíveis interferências nos efeitos
detectados.
REFERÊNCIAS
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Janeiro: Lucerna, 1999.
BOSQUE, I.; DEMONTE, V. (Org.). Gramática descriptiva de la lengua española.
Madrid: Real Academia Española: Espasa Calpe, 1999.
DIK, Simon C. The theory of functional grammar. v. 2: complex and derived
constructions. Berlin: Mouton de Gruyter, 1997.
HOPPER, Paul J. On some principles of grammaticalization. In:
TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. (Ed.). Approaches to grammaticalization.
Amsterdam: John Benjamins, 1991. v. 1, p. 16-35.
LABOV, William. Principles of linguistic change. Oxford: Blackwell, 1994.
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R. (Ed.). Sociolinguistics: the essentials readings. Oxford: Blackwell, 2003. p. 235-
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MACHADO VIEIRA, Márcia dos Santos. Caracterização do comportamento
multifuncional de fazer. In: BRANDÃO, S.; MOTA, M. A. (Org.). Análise
contrastiva de variedades do Português: primeiros estudos. Rio de Janeiro: In-Fólio,
2003. p. 77-102.
______. Sintaxe e semântica de predicações com verbo fazer. Tese (Doutorado em
Língua Portuguesa)–Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro,
2001.
MÓIA, Telma. Leitura inclusiva de achievements e accomplishments em frases com
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______. Semântica das expressões temporais com HAVER. In: ENCONTRO
NACIONAL DA APL, 14., [S.l.]. Actas... [S.l.: s.n.], 1998. p. 219-238.
PERES, João Andrade. Towards an integrated view of the expression of time
in portuguese (First Draft). Cadernos de Semântica, Lisboa, n. 14, 1993.
PRINCE, Ellen F. Toward a taxonomy of given-new information. In: COLE,
Peter (Ed.). Radical pragmatics. New York: Academic, 1981. p. 223–255.
TORAL, Marta Pérez. Sintaxis histórica funcional del español: el verbo “hacer”
como impersonal. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1992.
VIEGAS, Maria Filomena. Aspectos da semântica dos localizadores temporais em
português. 1996. Dissertação (Mestrado)–Faculdade de Letras, Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1996.
WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I. Empirical
foundations for a theory of language change. In: LEHMANN, W.; MALKIEL,
Y. (Ed.). Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968.
p. 97-195. 
NOTAS
A amostra foi constituída com base no acervo dos Projetos CRPC-Lisboa (Corpus de Referência do
Português Contemporâneo e Português Fundamental) e VARPORT (Análise Contrastiva de Variedades
do Português – <http://www.letras.ufrj.br/varport>) – Brasil e Portugal –, NURC-RJ, PEUL e em
jornais brasileiros e portugueses (Jornal da UFRJ, O Globo e Jornal do Brasil em 2005; Diário de Notícias e
Jornal de Notícias em 2005/2006). Conta, ainda, com dados do português brasileiro oriundos de textos do
acervo do Projeto Discurso & Gramática e de redações escolares. Embora muitos tenham sido os
inquéritos/textos de língua falada consultados, só se conseguiu compor uma amostra de 361 ocorrências
de expressões temporais com haver, fazer ou ter. Nessa amostra, 308 dados são do português brasileiro e
apenas 53 são do português europeu.
Tal possibilidade é citada por Móia (1998).
Por exemplo: Vai para dez anos que não a vejo.
Essa suposição já desencadeou novos estudos no âmbito do Projeto PREDICAR: Maíra de Paiva, aluna
de iniciação científica, já prepara projeto de dissertação de Mestrado sobre a gramaticalização de HAVER
em expressões temporais e Ana Paula Fernandes Klem, também aluna de iniciação científica, dedica-se a
leituras para a elaboração de um projeto de dissertação de Mestrado a respeito da gramaticalização de
TER, que prevê a análise desse item em expressões temporais.
A ordem das orações nos discursos falados e escritos

Maria Luiza Braga – UFRJ/CNPq


Beatriz dos Santos Soares – UFRJ
Cassiano Luiz do Carmo Santos – UFRJ
Diego Leite de Oliveira – UFRJ
Elisiene de Melo Barbosa – UFRJ/I.C. CNPq
A QUESTÃO
Estudos sobre a fala e a escrita, amiúde, fazem referência aos tipos e processos de
combinação de orações como um parâmetro capaz de caracterizar e distinguir as duas
modalidades. As interpretações atribuídas a esse parâmetro são, no entanto, conflitantes,
como pode ser verificado em Halliday (1994) e Chafe (1982), a título de exemplo. Segundo o
último, a fala se caracteriza por cadeias paratáticas, sintaticamente simples, enquanto a escrita
tende a apresentar uma combinação mais complexa de orações, tal como subordinação. Já de
acordo com o primeiro, o potencial do sistema é mais ricamente desenvolvido e mais
completamente revelado na fala, uma vez que esta modalidade responde continuamente a
mudanças no contexto e, ao fazê-lo, exibe um rico padrão de variação que não é explorado na
escrita. As duas modalidades são complexas, mas a manifestação dessa complexidade varia: a
escrita explora mais os recursos lexicais enquanto que, na fala, o significado é expresso mais
pela gramática do que pelo vocabulário e, conseqüentemente, a estrutura sentencial é
altamente complexa.
As razões para a discrepância referida acima são de várias ordens. Elas podem decorrer de
um controle inadequado da fonte de dados. Como mostra Biber (1995), o cotejo entre fala e
escrita pressupõe rigor no que tange aos tipos e gêneros textuais nos quais são coletadas as
ocorrências que fundamentam a análise. Uma vez que a distribuição de numerosas
propriedades gramaticais é sensível aos gêneros textuais, a utilização de gêneros textuais
diferentes, como base de dados, pode levar a resultados conflitantes.
Uma outra provável causa das divergências interpretativas concerne aos tipos oracionais
abrigados pelos rótulos coordenação e subordinação. Assim, quando Halliday menciona a
complexidade da estrutura sentencial, estaria se referindo somente às orações encaixadas ou
também às orações hipotáticas? Mais relevante é a falta de convergência entre as categorias
subordinação, tal como concebida pela abordagem gramatical do século XX, e encaixamento,
da abordagem de Halliday. Uma vez que Halliday recorta os processos de combinação de
orações através de uma classificação tripartite − parataxe hipotaxe e encaixamento − é
possível que os tipos oracionais abrigados pelo rótulo subordinação em Chafe não
correspondam àqueles incluídos pelo encaixamento de Halliday. Também não fica claro se as
seqüências paratáticas, mencionadas por Chafe, incluem apenas as orações justapostas ou,
também, aquelas introduzidas por conector coordenativo ou advérbio sentencial em processo
de gramaticalização.
Relacionada à questão anterior, cumpre salientar a não-uniformidade de tipos oracionais
abrigados pelos rótulos mais gerais, sejam eles parataxe, hipotaxe e encaixamento, na versão
de Halliday ou coordenação e subordinação da abordagem gramatical tradicional.
Face ao que tange os tipos e processos de vinculação de orações, nas últimas décadas,
lingüistas de orientação funcionalista têm proposto tipologias de processos de combinação de
orações que transcendem à oposição coordenação/subordinação. O mencionado Halliday
sustenta que as orações complexas sejam investigadas segundo dois sistemas de relações: o
das relações táticas, que aferem o grau de interdependência sintática entre as seqüências
constitutivas da oração complexa, e o das relações lógico-semânticas, voltado para a
investigação das relações semânticas que se instauram entre duas orações. De acordo com o
primeiro sistema, o das relações táticas, as orações podem-se vincular por parataxe ou
hipotaxe. Parataxe é a relação simétrica e transitiva que se estabelece entre elementos com
estatuto igual; hipotaxe é a relação assimétrica e não-transitiva que se estabelece entre
elementos com estatuto desigual, vale dizer, um dominante e um dependente. O que está em
jogo, em relação a esses dois processos, é o traço dependência que, segundo Halliday, é
formal, isto é, sinalizado pela forma verbal não-finita ou pela presença de um conector
subordinativo iniciando a oração dependente. Um outro traço, encaixamento, estabelece a
distinção entre parataxe e hipotaxe, por um lado, e subordinação, por outro.
A tipologia aludida acima não é a única que escapa à dicotomia coordenação versus
subordinação. Lehmann (1988), por exemplo, defende uma proposta gradiente a partir do
seguinte conjunto de parâmetros: rebaixamento hierárquico da oração subordinada; nível
sintático do constituinte ao qual as construções se vinculam; dessentencialização da oração
subordinada; gramaticalização do verbo principal; entrelaçamento entre as duas orações;
explicitude do elo interoracional. Cada parâmetro é concebido de forma gradiente. Assim, o
primeiro dos parâmetros − rebaixamento hierárquico da oração − é representado como o
continuum abaixo:
Parataxe Encaixamento
Diáde
Orações independentes Orações adjungidas Orações mediais Orações não-finitas Orações governadas
correlativa

A proposta de Lehmann é tipológica e visa a dar conta dos processos de combinação de


orações em todas as línguas, o que não é o objetivo de nosso trabalho. O fato de o continuum
acima abrigar tipos oracionais que não são encontrados no português do Brasil – como é o
caso das orações mediais prototípicas, que tendem a sinalizar morfologicamente a mudança
do sujeito – não invalida sua sugestão de que as orações sejam analisadas como um feixe de
propriedades gramaticais.
Sugestão semelhante já havia sido aventada por Haiman e Thompson (1984) que
defendem a inadequação do rótulo subordinação, usualmente concebido como um primitivo
a dispensar a especificação de suas propriedades.62 Em face de um estado de coisas
insatisfatório, os dois autores defendem que as orações sejam analisadas segundo um mesmo
conjunto de propriedades, não necessariamente correlacionadas aos grandes processos de
vinculação, vale dizer, coordenação e subordinação, e que, posteriormente, as orações sejam
cotejadas entre si.
Neste trabalho, incorporamos o espírito das propostas arroladas acima e analisamos as
orações de causa, comparação, conformidade, e condição de acordo com uma variável: sua posição em
referência à oração com a qual se interliga. Dada a variabilidade potencial da ordem das
orações adverbiais, cumpre indagar se os quatro tipos aludidos ostentam o mesmo padrão no
que diz respeito à ordem não-marcada e se este padrão é consistente nas modalidades falada e
escrita.
Com vistas a esses objetivos, examinamos as orações de causa, comparação, conformidade e
condição que foram coletadas em um mesmo corpus, constituído por 300 seqüências textuais
faladas e 300 escritas. A amostra falada totaliza 75.672 palavras e a escrita, 96.316 palavras. As
seqüências textuais são de variados tamanhos e foram agrupadas segundo fossem
predominantemente narrativas, argumentativas ou descritivas.63 As seqüências textuais orais
foram recolhidas na Amostra Censo e as escritas, na Amostra Midiática, bancos de dados que
integram o acervo do PEUL – Programa de Estudos sobre o Uso da Língua, sediado na
UFRJ. Baseados nos critérios freqüência e distribuição contextual (GIVÓN, 1995; CROFT,
1993; CRYSTAL, 1985), identificamos a ordem não-marcada de cada tipo oracional em
estudo e procedemos ao cotejo entre fala e escrita.
Na seção seguinte, apresentamos os resultados para cada tipo oracional.
Orações de causa
Os enunciados de causa foram introduzidos pelos conectores porque, como, que, já que e por,
para os quais são apresentados exemplos de (1) a (5).
(1)
F: Eu disse: “eu estou, chorando de dor.” “Então a senhora vem aqui no consultório”. Mas nisso eu já tinha batido uma
porção de radiografias, não é?
E: Ham.
F: Inclusive eu lá na casa de saúde de Bonsucesso, quando uma das enfermeiras me viu, ela ficou apavorada, porque
tinha visto eu ser jogada uns dois metro de altura e cair no chão. Então ela pensou que eu tivesse morrido!
[Falante 18, Amostra Censo 1980]
(2)
O diesel é usado na partida e depois o gás vai sendo injetado, por meio de bicos no coletor de admissão. A mistura pode
chegar a uma proporção de 95% de GNV e 5% de diesel. Só não usa 100% de gás porque, como o motor não tem velas, é
necessário um pouco de diesel para provocar a ignição.
[O Globo, 1º jun. 2005]
(3)
Tinha que descer com lata, subir com lata, pegar bacia de roupa e descer, lavar lá em baixo. Depois subir de novo com a
bacia. Chega em casa, acabava de estender a roupa, descia de novo apanhar água. Mas agora é melhor, que a gente pode
lavar roupa em casa, não precisa descer para apanhar água. Agora está tudo melhor.
[Falante 6, Amostra Censo 1980]
(4)
A vítima, que era conhecida como João Foquinho, foi morta com um corte no pescoço a cem metros de sua casa, na
Rua Virgínia Vidal, quando fazia uma caminhada. Para a polícia, o crime não tem explicação, já que os assassinos levaram o
conteúdo da pochete de João, mas deixaram para trás um relógio, um cordão e as chaves da residência do câmera. A moto de João
também desapareceu.
[O Globo, 24 dez. 2005]
(5)
Durante a operação, quatro menores e um homem foram detidos no Ciep Tancredo Neves, na Rua do Catete, por terem
invadido o vestiário da quadra de esportes da escola. Depois de passar pela 9ª DP, os menores foram levados para a Delegacia
de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
[O Globo, 23 out. 2002]
Na fala, a identificação da ordem das orações de causa em relação a sua oração nuclear
pode ser delicada visto que, em certos contextos, alguns enunciados de causa parecem
semanticamente pertinentes tanto à oração precedente quanto à seguinte. Ademais,
constituem uma única unidade entonacional (CHAFE, 1988) não oferecendo, portanto, pistas
quanto a sua interligação sintática. O trecho (6), produzido em resposta a uma solicitação do
entrevistador sobre o que significa enxerto, no universo das escolas de samba cariocas, ilustra
uma destas ocorrências ambíguas.
(6)
E: Que é isso?
F: Enxerto é, por exemplo, A Beija-Flor e a Portela: azul e branco. Eu estou de azul e branco, então eu posso penetrar
ali dentro e desfilar numa boa.
E: Ham.
F: Porque na... em quase todas escolas de samba assim existe isso, enxerto não é? Porque às vez a escola é pequena. Então,
você não pode (para) componente de um bloco para desfilar com ela? Então para ele é uma boa. Eles vão apanhar
aquele componente.
[Falante 42, Amostra Censo 80]
Em (6), após uma primeira tentativa abortada de explicação, o falante produz o enunciado
porque às vez a escola é pequena, que pode ser interpretado quer como uma explicação para a
existência de enxertos nas escolas de samba, quer como explicação para o fato de um
membro que não pertence a uma escola particular poder, mesmo assim, desfilar por ela.
Dados como esses, compatíveis com uma dupla interpretação, foram excluídos do quadro64
em que é apresentada a distribuição das ocorrências. Também foram eliminadas do cômputo
as orações de causa que ocorrem intercaladas entre argumentos da oração nuclear.65
Quadro 1 – Ordem das orações de causa
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 5
Porque
Posposição 59 77 35 21 23 12
Anteposição 1
Que
Posposição 15 4 11
Anteposição 1
Já que
Posposição 1 10 5 1
Por Anteposição 1 1 2
Posposição 1 6 2 1
Anteposição 2 5
Como
Posposição

O Quadro acima mostra que, no que diz respeito à fala e à escrita, as diferenças mais
interessantes concernem à própria distribuição dos conectores pelas duas modalidades: que
ocorre exclusivamente na fala enquanto a locução já que e a preposição por, quase que
categoricamente na escrita. Mostra, igualmente, que, à exceção das orações de causa
encabeçadas por como, que se antepõem categoricamente às nucleares (PAIVA, 1991; NEVES,
1999), as demais tendem a se pospor a suas orações nucleares, independentemente do tipo
textual. A manipulação da ordem não-marcada parece, no entanto, sensível ao tipo de
conector: é mínima e restrita à fala em se tratando de porque, que e já que; é mais provável na
escrita em se tratando da preposição por.
As orações antepostas de causa introduzidas por porque ocorreram nas seqüências
narrativas, geralmente caracterizadas pelo grande envolvimento emocional dos falantes com
os eventos em questão. Elas tendem a elaborar informações apresentadas previamente como
é o caso de (7) ou, então, a expressar informação compartilhada pelos interlocutores, como é
o caso de (8):
(7)
...ai quando desci, já desci gritando. Meu pai me agarrou, assim.Tinha (balbucio) que me levar para o pronto socorro
para tomar injeção para mim dormir. Aí pronto: fiquei dormindo, ele subiu foi ver minha mãe, depois me trouxe para
casa. Ai, depois passou, eu não fui mais ver ela. Porque eu não sabia me controlar, eu não podia ir ver. Para irritar ela, não
adiantava, não é?
[Falante 6, Amostra Censo 1980]
(8)
“Rose, ela está para ganhar neném, ela está com hemorragia”. Eu tinha lido naquele Menino ou Menina, então eu fiquei
bem entrosado sobre esta parte, né?
E: Ham
F:”Rose, isso é hemorragia.” A Rose: “Que é que nós vamos fazer?” “Liga para doutora Janete. Rose, cadê minha
cueca?” Eu perdi a cueca, eu não sabia mais onde estava. Porque lá não tem elevador, eu desci a escada.
[Falante 42, Amostra Censo 1980]
Em (7), o falante, frente à tentativa de suicídio da mãe, já arrancara os cabelos e já chegara
ao hospital gritando, sinais de descontrole; em (8), o entrevistado já havia descrito seu
apartamento, localizado em um prédio pequeno e modesto no subúrbio.
Percentualmente mais numerosa, a anteposição das orações encabeçadas pela preposição
por se restringe à escrita. Os enunciados antepostos servem à re-introdução de informação já
mencionada no co-texto precedente, lembrando tópicos sentenciais: ocorrem na posição
inicial, tendem a expressar informação dada e circunscrevem o quadro de referência relevante
para o que vai ser expresso pela oração seguinte. Essa interpretação é reforçada pela presença
de vírgula, como ilustra o trecho seguinte:
(9)
Lembre-se que para conhecer e curtir toda a ilha com calma, é bom reservar três dias – e tratar tudo com antecedência.
Por ser uma área de preservação ambiental, a entrada é restrita a 5 mil pessoas por dia e na temporada há quem fique no
continente aguardando a volta de alguns visitantes para enfim conseguir embarcar.
[Jornal do Brasil, 11 set. 2005]
Porque, a conjunção prototípica para a expressão de causa, apresenta uma distribuição
simétrica no que concerne aos textos falados e escritos: emprego mais recorrente nas
seqüências argumentativas e utilização mais restrita nas porções narrativas e descritivas. Que,
por seu turno, ocorre apenas na fala e apresenta uma distribuição diversa daquela exibida por
porque, como mostra a freqüência rarefeita nas seqüências textuais argumentativas. Já que e por,
de uso mais escasso, tendem a se concentrar nos textos escritos, particularmente narrativos,
apresentando distribuição complementar no que tange às porções argumentativas e
descritivas.
No que tange à ordem marcada − anteposição − todas as orações se caracterizam por
expressar informação dada ou acessível, conformando-se ao princípio que prevê que a
informação dada ou disponível preceda a informação nova na linearidade do discurso.
Orações comparativas de igualdade
A relação semântica de comparação de igualdade foi sinalizada por uma grande variedade
de conectores: (tanto) quanto, (tanto) como, enquanto, no mesmo nível que, que nem, igual. Alguns
foram empregados apenas na modalidade falada casual, como é o caso de que nem, igual, em
processo de gramaticalização (LIMA-HERNANDES, 2005); outros foram utilizados tanto
nos textos orais quanto escritos.
Diante dessa variedade de conectores e do fato de que a relação comparativa de igualdade
pode ser expressa por estruturas sintáticas distintas, submetemos nossos dados a diferentes
recortes, visando a identificar as variáveis lingüísticas que poderiam estar associadas à
anteposição e posposição da oração em estudo. Inicialmente, distinguimos as estruturas
correlatas, exemplificadas em (10) e (11), das não-correlatas, exemplificadas em (12) e (13),
obtendo a distribuição que se vê no Quadro 2.
(10)
Os especialistas em economia pelos quatro cantos do país pregam que há uma luz no fim do túnel. Os milhões de
brasileiros certamente também têm esperanças de dias melhores. O que difere 2004 dos anos anteriores? Tão simples
quanto a pergunta é a resposta. Estamos em um período eleitoral. Nunca tantos candidatos disputaram vagas nas
prefeituras e nas câmaras. Mais uma vez, eles vão ocupar espaços na mídia e pedirão os votos dos eleitores.
[O Povo, 12 jan. 2004]
(11)
E: A tendência é piorar a situação?
F: A situação tanto pode piorar como pode melhorar, isso aí ninguém sabe, segundo dizem, por aí, que o mundo vai
acabar dois mil e nós já estamos quase lá, falta pouco, certo? Mas daqui para lá eu já devo até ter embarcado lá para
outro lado, mas tudo bem, vamos ver como é que fica.
[Falante 7, Amostra Censo 1980]
(12)
Durante seis anos, sem saber, fui submetido a uma espécie de doping legal. Antes, davam essa sustância a cavalos, mas
depois de exames chegaram à conclusão de que era muito forte até mesmo para os cavalos − disse o americano de 44
anos, numa declaração que cai como uma bomba depois que Rusedski afirmou, semana passada, que além dele outros 46
tenistas foram flagrados com doping, mas nenhum caso foi divulgado.
[Extra, 13 jan. 2004]
(13)
Também me acham preconceituoso quando mudo de assunto, ao falarem, por exemplo, na misteriosa sabedoria oriental,
botando no mesmo saco chineses (que em si já são numerosos sacos), japoneses, coreanos e até indianos. Claro, não
existe sabedoria oriental homogênea nenhuma, assim como não existe uma única cultura africana. Dão-me aulas, para citar
um caso, sobre a comida japonesa e como a misteriosa sabedoria oriental descobriu séculos antes de nós que o peixe é
uma fonte sadia de proteína animal e que alimentos crus não só podem ser saborosos como mais nutritivos.
[O Globo, 10 abr. 2005]

Quadro 2 – Posição das orações comparativas de igualdade em estruturas correlatas e


não-correlatas
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 2 2
Estruturas correlatas
Posposição 2 4 1
Anteposição 1 2 4
Estruturas não-correlatas
Posposição 3 6 4 4 5 18

Os números acima mostram que, no que diz respeito à estrutura das orações comparativas
de igualdade, as não-correlatas constituem a categoria não-marcada, interpretação que é
confirmada pela freqüência e reforçada pela ausência de restrições contextuais: elas são
empregadas em todas as seqüências textuais investigadas. Independentemente da
configuração sintática, os mesmos números mostram que a posição não-marcada é
representada pela posposição, categórica na fala.
Um outro recorte privilegiou os conectores que encabeçavam o enunciado comparativo e
a configuração estrutural da oração complexa de comparação de igualdade. Assim, o
composto oracional pode ser constituído por orações que especificam todos os argumentos,
como (14) exemplifica, ou apresentar uma das orações sem especificação de argumentos,
como se vê em (15) e (16), em virtude do compartilhamento de informação:
(14)
Há importantes diferenças entre “política fiscal e política monetária” e “regime fiscal e regime monetário”: enquanto
aquelas referem-se ao estado corrente ou atual das variáveis fiscais e monetárias, estes aplicam-se não só ao que está acontecendo
com elas, mas, principalmente, com, lhes venha a acontecer, em um considerável horizonte de tempo; as primeiras são
conjunturais e os segundos estruturais.
[Jornal do Brasil, 8 nov. 2004]
(15)
No interior do carro há um cockpit de fibra de carbono. É como se fosse um monoposto dentro do cupê. Estruturas
deformáveis no bico e na traseira do Audi evitaram grandes prejuízos no acidente de sábado. Suspensão e motor saíram
ilesos, assim como o piloto.
[O Globo, 8 jun. 2005].
(16)
F: Não é? Hoje em dia, a gente vê muito mulher fazendo esse serviço, não é? então, assim como ela pode varrer a rua,
não é? E ela não [é] é e ela tem <q-> tanto ih! A mulher está provando, aí, não é? E comprovando que ela é tão
inteligente quanto o homem, não é?
E: Ham.
F: Não porque eu tenha tido duas filhas mulheres que eu defenda isso não.
[Falante 45, Amostra Censo 1980]

Quadro 3 – Orações complexas de comparação de igualdade constituídas por orações


com todos argumentos especificados
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 1 1 3
Enquanto
Posposição 3 2 9
Anteposição
Como
Posposição 1 2 2
Anteposição
Quanto
Posposição 1
Anteposição
Que nem
Posposição 2

Em se tratando da estrutura sintática constituída por duas orações com todos os


argumentos especificados, a ordem não-marcada é a posposição. Os segmentos comparativos
com ordem marcada – anteposição − tendem a ser iniciados por enquanto, conectivo arrolado
pelos manuais gramaticais tradicionais entre as conjunções temporais. Os dados analisados
sugerem, no entanto, que este item está-se especializando na sinalização de comparação de
igualdade, contexto em que coloca em cotejo dois enunciados sintaticamente independentes,
contrabalançando-os ao modo das orações coordenadas de contraste. A alteração potencial
da ordem mostra, porém, que o enunciado que se move carrega consigo o conectivo,
propriedade associada aos processos hipotáticos (HALLIDAY, 1994). As orações antepostas
compartilham outra propriedade: elas elaboram aspectos de um tópico aludido nas seqüências
imediatamente anteriores, constituindo informação parcialmente dada, como se pode
observar em (15) e (16):
(15)
O canal de comunicação das novelas com o mundo dos espíritos está mais aberto do que nunca. Enquanto em
“América” Tião (Murilo Benício) sente a presença do pai e tenta fazer contato com ele através de um médium; em “Alma gêmea” Serena
(Priscila Fantin) vê sempre o reflexo de Luna (Liliana Castro) no espelho e descobre que ela e a bailarina são a mesma
pessoa.
[O Globo , 11 set. 2005]
(16)
Cerca de dez homens assaltaram o Clube Militar, na Rua Jardim Botânico, 391, no Jardim Botânico, ontem de
madrugada. Enquanto a maioria esperava do lado de fora, três integrantes do bando entraram como se fossem hóspedes.
Logo depois, eles puxaram armas e renderam dois vigilantes e a recepcionista, anunciando o assalto. Os três
funcionários viram os assaltantes arrancarem um caixa-eletrônico, que foi colocado em uma Fiorino do tipo furgão.
[O Povo , 10 abr. 2005]
Quanto à outra estruturação sintática, a freqüência é apresentada no Quadro 4, a seguir:
Quadro 4 – Orações complexas de comparação de igualdade constituídas por orações
que deixam de especificar todos os argumentos
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição
Enquanto
Posposição 1 1
Anteposição 1 1
Como
Posposição 1 1 1 2 7
Anteposição 2 2
Quanto
Posposição 1 2 1
Anteposição
Que nem
Posposição 2 1
Anteposição
Igual
Posposição 1 1 1
Anteposição
No mesmo nível que
Posposição 1

Constata-se, através do exame do quadro anterior, o padrão consistente das orações


comparativas no que diz respeito a sua ordem em face da oração nuclear: independentemente
do conectivo que as introduz e da sua configuração sintática, elas tendem a ocorrer pospostas,
restringindo-se as escassas ocorrências de anteposição aos textos escritos.
No que tange às orações comparativas de igualdade, as diferenças entre fala e escrita são
notáveis: elas dizem respeito ao rol de conectivos capazes de introduzi-las e, sobretudo, ao
potencial de explorar a ordem dos segmentos que compõem a oração complexa. Na fala, as
orações comparativas de igualdade dispõem-se categoricamente após a oração nuclear; já na
escrita, as condições de produção permitem ao escritor manipular a ordem neutra com
evidentes conseqüências retóricas.
Orações de conformidade
Para a abordagem gramatical que se desenvolve após 1959, as orações de conformidade
integram o elenco das adverbiais, ao lado das orações de causa, comparação, concessão,
condição, consecução, finalidade, proporção e tempo. Este tratamento difere daquele
oferecido pelos enfoques anteriores à NGB que as viam como integrando o rol das
comparativas ou das modais (MACIEL, 1931); difere igualmente da abordagem atribuída por
Leech (1998) e Quirk e Greenbaum (1985) às congêneres em inglês, que as consideram como
integrando as cláusulas de comentário (comment clauses).
A identificação desse tipo de enunciado pode ser problemática, visto a compatibilidade da
leitura de conformidade com outras relações semânticas, como é o caso de (17), que admite,
também, uma interpretação de modo, e de (18), que admite, também, uma interpretação de
proporção:
(17) Não sou hipócrita e nem mentiroso em negar isso. Desejo nesse momento de apreensão da família salgueirense,
que o presidente Aluía Augusto Fu Duran tenha a cabeça fria para manter a escola como Miro deixou.
[O Povo, 4 nov. 2004]
(18)
E: Sobre o que é esse programa? Eu nunca assisti.
F: É ela também, ela faz muita caridade, né?
E: Ham.
F: Ela... reclamações, queixas e reclamações, ela atende é bura.... conforme o pessoal telefona. Ah! buraco na rua
Quase metade das orações de conformidade é constituída por verbos dicendi e serve à
introdução da voz de outrem no discurso, como ilustra o trecho (19) e, a respeito delas, pode-
se questionar se se encontram vinculadas a uma oração nuclear ou se configuram como um
dos recursos sintáticos para a expressão das relações lógico-semânticas de projeção
(HALLIDAY, 1994):
(19)
E: Me conta um dia de trabalho seu aqui no prédio. Como é que é?
F: Bem, um dia de trabalho meu eh... como mesmo eu falei para vocês, eu pego das seis e largo às oito. Aí, né? E de meio-
dia até às quatro e de oito até às dez. São oito horas de serviço.
[Falante 47 – Amostra Censo 1980]
As outras orações de conformidade tendem a ser integradas por predicados de verbos
existenciais e sensoriais (HALLIDAY, 1994), como exemplificam (20) e (21), respectivamente,
(20)
Segundo ele, não serão necessários testes em larga escala, pois ela (vacina) será ministrada em duas doses, entre o ao 15º
e o 30º dia de vida dos recém-nascidos, o que eliminaria o risco de obstrução intestinal, como ocorreu em teste feito nos
EUA.
[O Globo, 23 fev. 2005]
(21)
F: Sujeito senta ali e fica esperando uma hora, uma hora e meia, como eu já tenho visto ali, que é em frente ao carro meu,
minha venda de peixe, por um ônibus.
[Falante 3 – Amostra Censo 1980]
A hipótese da autonomia das orações de conformidade é reforçada, nos textos escritos,
pela presença de sinais gráficos de pontuação − pontos e travessão −; nos textos orais, elas
tendem a constituir uma unidade entonacional independente. O papel dessas orações parece
ser mais o de introduzir um testemunho, uma comprovação a respeito dos estados de coisas
sobre os quais o escritor/leitor está discorrendo, do que exprimir uma circunstância que
realça uma oração nuclear. Uma evidência a favor dessa interpretação é fornecida por aquelas
orações que incidem sobre SNs, como é o caso de (22):
(22)
Um dos desafios da educação contemporânea é oferecer um horizonte espiritual, dotado de conteúdo ético e moral,
capaz de ensejar em algum momento uma mudança de prioridades em nossa compreensão e em nosso relacionamento
– uma “revolução do coração, como notou Toynbee.
[O Globo, 6 mar. 2004]
Instâncias como (23), que autorizam que se fale em oração complexa de conformidade,
são escassas:
(23)
A carteira assinada para os funcionários é uma das normas exigidas pela Secretaria de Educação.
− Temos de trabalhar conforme estabelece a Lei trabalhista, já que a prefeitura responde, solidariamente, nas ações
judiciais − afirma a secretária Sonia Mograbi.
[Extra, 7 abr. 2005]
O quadro abaixo, com as ocorrências conformativas distribuídas segundo a modalidade e
o tipo textual, mostra que essas orações tendem a ser introduzidas, não-marcadamente, pelo
conectivo como, em ambas as modalidades. Os dois outros conectores encontrados em nossos
corpora – conforme e segundo − são de baixa ocorrência. Fala e escrita se distinguem no que diz
respeito à recorrência e distribuição por tipos textuais: nos textos escritos, as orações
conformativas tendem a se aglomerar nas argumentações, enquanto na fala são um pouco
mais freqüentes nas seqüências descritivas.
Quadro 5 – Posição das orações de conformidade nos textos escritos e falados
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 1 1 3 3
Como Intercalação 1 1 4 4
Posposição 1 4 9 3
Anteposição
Conforme Intercalação 1
Posposição 2
Anteposição 1
Segundo Intercalação
Posposição 2 1

Os números sugerem que a posposição constitui a ordem não-marcada. Orações de


conformidade se intercalam com relativa freqüência entre os argumentos da oração nuclear,
como exemplifica (24). Relativamente à anteposição, ordem marcada, observa-se que todos os
dados são integrados por verbos dicendi que chamam ao texto uma voz conhecida do
interlocutor, porque já mencionada ou, então, recuperável pelo contexto, como é o caso de
(25):
(24)
Começa o jogo, todo mundo está te aplaudindo e gritando teu nome. Então é o tempo todo teu nome, teu nome, teu
nome que,... às vezes, a pessoa se torna até uma pessoa – quer vibrar demais, se torna, como eles falam no futebol,
mascarado, que prejudica um time. Que o jogador que tem a máscara e que é o mascarado, aquele que dibra.
[Falante 21, Amostra Censo 1980]
(25)
Como revelou O GLOBO, em pelo menos mais cinco capitais há situações críticas Belo Horizonte, Teresina, Campo
Grande, Macapá e Brasília. O quadro é conhecido: faltam equipes médicas, motoristas para ambulâncias, escasseiam
medicamentos etc.
[O Globo, 8 abr. 2005]
Em relação à variável que nos interessa − posição em face da oração nuclear − os
enunciados conformativos distinguem-se dos demais considerados neste artigo, já que a
intercalação representa uma alternativa bastante explorada, constituindo mais uma evidência a
favor de nossa hipótese, que as considera como um tipo diverso das demais adverbiais.
Orações de condição
As orações de condição são iniciadas quase categoricamente pela conjunção se,
independentemente do domínio da articulação (SWEETSER, 1990): conteúdo, epistêmico e
de ato de fala, como exemplificam os trechos (26), (27) e (28):
(26)
F: O prato assim, da pessoa que vive só,
E: Ham
F: em geral, é sempre o mais prático. Por exemplo, se você tem arroz feito, você parte para um bife, entendeu? Faz um bife,
estala um ovo, pronto, aquilo vai rápido. É a comida que o camarada solteiro, em geral, que mora sozinho, come. É um
bife com arroz, ou então já deixa o feijão pronto na geladeira, porque torna-se mais fácil
[Falante 9 – Amostra Censo 1980]
(27)
F: Porque, pela lei natural da vida, o mais novo, o mais fresquinho, (est) não? Traz (est) mais novidades.
E: Ham
F: Não só, vamos dizer assim, pela lei da reencarnação... não sei se‚ verdade ou não, mas eu... como gosto de acreditar
em tudo e não acreditar em nada, eu acho assim: que se elas vieram depois de mim, então, elas vieram me trazer alguma
coisa; elas vieram completar a minha vida; não eu a delas.
[Falante 43 – Amostra Censo 1980]
(28)
F: ... você tem que viver o momento.
E: Ham
F: Não, porque agora eu estava esperando vocês para quatro horas, certo? Eu ia lá fazer uma tatuagem na mina.
E: Ham.
F: Então, quer dizer, ela, se quiser, que espere. Vocês chegaram primeiro, não é? Não é?
[Falante 15 – Amostra Censo 1980]
A conjunção caso e a locução conjuntiva desde que são de ocorrência rarefeita e restritas às
seqüências argumentativas.66 A distribuição das orações de acordo com a ordem e o conector
que as introduz é exposta no Quadro 6:
Quadro 6 – Posição das orações de condição nos textos falados e escritos
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 20 58 21 6 35 12
Se
Posposição 1 4 1 17 3
Anteposição
Caso
Posposição 1
Anteposição 1
Desde que
Posposição 2
Os enunciados de condição iniciados por se antepõem-se não-marcadamente a sua oração
nuclear. Essa ordem não é específica do português; ao contrário, é observada em numerosas
línguas não relacionadas tipológica ou geneticamente, fato que levou Haiman (1978) a
considerá-las como tópico.67
A manipulação da ordem é mais provável nas seqüências argumentativas e, a esse respeito,
as diferenças entre fala e escrita são interessantes: são mais prováveis na escrita (17/52=32%)
do que na fala (4/62=6,5%).
A posposição, ordem marcada, explica-se por razões textuais-discursivas. Assim, vários
enunciados de condição funcionam como uma ressalva ou restrição ao conteúdo que vinha
sendo desenvolvido, elaborando aspectos referidos anteriormente ou introduzindo
informação nova, como exemplificam os trechos (29) e (30); geralmente são produzidas após
pausa e/ou marcador discursivo, no caso dos discursos orais, e vírgula, no caso dos textos
escritos.
(29)
F: ... formar um jornalzinho e tal, que vai falar dos favelado, mas, entre eles lá, sabe? Questionava-se mesmo, porque nas
posições muito radicais e defendendo, de repente, até os interesses mesmo do... claro que tinha posições... falava até da
questão da gente, mas como que vai falar a questão da gente, se a gente não está lá falando dela, se não é a gente que está falando,
não é? E as pessoas foram sentindo e começaram a abrir espaço pra gente.
[Falante 20 – Amostra Censo 1980]
(30)
A ampliação do uso das lombadas eletrônicas na cidade, anunciada esta semana pela CET-Rio, órgão da Prefeitura do
Rio de Janeiro, pode ser uma medida importante para coibir os abusos cometidos no trânsito, desde que acompanhada de
ampla campanha de esclarecimento aos motoristas.
[Extra, 8 jan. 2004]
Outras instâncias se explicam a partir de considerações sobre o (sub)tópico em
desenvolvimento, como é o caso de (31), a seguir. No co-texto imediatamente precedente, o
escritor discorria sobre o combate à fome, apresentado como tarefa prioritária do governo
Lula. Essa peça de informação é recuperada sob a forma do SN ação social que funciona como
sujeito da oração nuclear que precede a condicional. A oração de condição − se a inflação fugir
do controle − posposta, constitui informação nova e introduz o novo sub-tópico a ser
construído daí em diante.
(31)
Em seu primeiro discurso à Nação, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva apontou o combate à fome como tarefa
prioritária de seu governo. Trata-se, sem dúvida, de um grande desafio. Mas nenhuma ação social terá êxito no país se a
inflação fugir do controle. Quem mais sofre com a disparada dos preços são exatamente as camadas mais pobres da
sociedade. A classe média e os mais abastados perdem porém ainda encontram defesas, investindo e antecipando o
consumo. As famílias de baixa renda tornam-se vulneráveis e passam a viver na linha da subsistência. Sem alternativa, os
pobres ficam mais pobres.
[Jornal do Brasil, 1 nov. 2002]
Um outro subgrupo inclui os enunciados condicionais que se pospõem a orações
nucleares com constituintes focalizados pelos itens só ou até; nesse contexto os enunciados
em pauta tendem a expressar informação nova, o que explica seu tamanho, como se ilustra
em (32).
(32)
Políticos que, traficando votos ou comprando opiniões, pensam silenciar debates ou deter, pela força de leis
enferrujadas, o processo de modernização da sociedade, estão dando murro em ponta de faca. Esse processo é muito
mais profundo do que imaginam, não se refere a um ou outro tema específico, mas constitui a maneira de viver no
mundo de hoje.
Nas sociedades em transformação, as instituições só se legitimam se forem capazes de, honestamente, aferir os desejos e
necessidades dos cidadãos e trabalhar para que lhes seja dado um estatuto legal. No que concerne à intimidade dos indivíduos elas
podem ser interlocutoras, jamais censoras ou polícia.
[O Globo, 11 abr. 2005]
As orações de condição com ordem marcada, como um todo, tendem a exprimir
informação nova, explicando-se dessa forma o fato de as pospostas serem mais “pesadas”,
isto é, maiores. Deve ser mencionado, entretanto, que a correlação posição e codificação de
informação nova é estatística, não categórica. Como já mencionamos a propósito do exemplo
(30), orações de condição pospostas à oração nuclear podem exprimir uma informação já
dada, velha. A análise do discurso precedente mostra que elas são mais prováveis quando o
complexo oracional reitera uma outra oração complexa de condição, cujo conteúdo é re-
elaborado e enfatizado por razões retóricas, como pode ser verificado em (33):
(33)
A ampliação do uso das lombadas eletrônicas na cidade, anunciada esta semana pela CET-Rio, órgão da Prefeitura do
Rio de Janeiro, pode ser uma medida importante para coibir os abusos cometidos no trânsito, desde que acompanhada
de ampla campanha de esclarecimento aos motoristas. A punição é um recurso extremo e só tem sentido se for precedida
e acompanhada de ações educativas; caso contrário, os tais pardais e lombadas acabam se transformando em meros
instrumentos caça-níqueis o que, definitivamente, não é admissível. A função dos responsáveis pelo trânsito é muito
mais educativa que punitiva. Portanto, é fundamental que a prefeitura apresente à população os resultados práticos do
uso dessas engenhocas eletrônicas. A única maneira de fazer isso é mostrar os números da imprudências e,
conseqüentemente, dos acidentes nestes locais – antes e depois da instalação das lombadas.
[Extra, 8 jan. 2004]
No que diz respeito à distribuição pelos tipos textuais, as diferenças entre fala e escrita são
de natureza quantitativa: as orações de condição tendem a se concentrar nas seqüências
argumentativas e se escassear nos outros tipos textuais.
A posição das orações de causa, comparação, conformidade e condição nos discursos
falados e escritos
Os quadros apresentados até então buscavam desvendar as correlações entre a ordem
oracional e variáveis distintas: modalidade, tipo textual e tipo de conectivo. Alguns dos
conectores são de baixa freqüência e tal fato levou à pulverização dos dados,
conseqüentemente, a células pequenas que podem obscurecer os padrões que almejamos
identificar. Com vistas a superar a visão micro do nosso fenômeno, oferecemos o quadro
seguinte no qual são mostrados os números para cada tipo oracional, ignorando-se os
conectores que encabeçam as orações:
Quadro 7 – Distribuição das orações de causa, comparação, conformidade e condição
segundo a posição
Fala Escrita
Narração Argumentação Descrição Narração Argumentação Descrição
Anteposição 6 1 1 1 2
Causa Posposição 74 83 46 37 30 14
Intercalação
Anteposição 1 4 6
Comparação Posposição 3 8 4 4 9 19
Intercalação
Anteposição 1 1 4 3
Conformidade Posposição 1 4 2 12 3
Intercalação 1 2 4 4
Anteposição 20 59 21 6 35 12
Condição Posposição 4 1 19 3
Intercalação

As informações a serem extraídas do quadro concernente à posição das orações de causa,


comparação, conformidade e condição podem ser assim sintetizadas:
a) as orações de causa e condição são as mais recorrentes, distribuição que se contrapõe à
escassez de orações de comparação e conformidade;
b) os dados provam que não se pode falar sobre uma ordem não-marcada para o conjunto
das orações adverbiais. Reforçam a posição de Haiman e Thompson (1984), segundo a qual
as orações devem ser analisadas individualmente de acordo um conjunto de parâmetros que
levem em consideração suas propriedades formais e papéis textuais;
c) as manipulações da ordem não-marcada são mais freqüentes na escrita do que na fala; a
exceção fica por conta as orações de causa;
d) a posição intercalada é explorada de forma consistente apenas pelas orações de
conformidade;
e) o “efeito” de diferença entre fala e escrita parece decorrer mais das escolhas relativas ao
conector que introduz as orações na fala e na escrita do que da posição;
f) as diferenças entre as modalidades, no que diz respeito a nosso fenômeno, são uma
questão de grau, vale dizer, quantidade de ocorrências;
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, investigamos a ordem das orações de causa, comparação, conformidade e condição
nos discursos falados e escritos, a fim de contribuir para a solução de uma interpretação
conflitante quanto ao papel dos tipos oracionais nas mencionadas modalidades. A
discrepância tem a ver com o papel da subordinação, ora considerada como propriedade
caracterizadora da fala, ora como propriedade caracterizadora da escrita. Consideramos que
essa incongruência pode ter sido motivada por razões metodológicas: controle inadequado
dos tipos e gêneros textuais que constituíam a fonte de dados, não caracterização do que é o
processo de subordinação, e tratamento igual de um conjunto de processos e orações que
podem ser distintos.
Com o objetivo de superar os percalços a que nos referimos, constituímos uma amostra
formada por um conjunto de seqüências textuais predominantemente narrativas,
argumentativas e descritivas, de onde foram extraídas as ocorrências que fundamentaram
nossas análises. Uma vez controlada a base de dados, procedemos ao exame da ordem de
cada tipo oracional em relação a sua oração nuclear. Nossos resultados mostraram a
especificidade da posição de cada tipo oracional em sua correlação com o conector que as
iniciava. Mostraram, principalmente, que as diferenças entre fala e escrita são mais de ordem
quantitativa do que qualitativa.
REFERÊNCIAS
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1995.
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1969.
SWEETSER, Eve. From etymology to pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
NOTAS
Os parâmetros sugeridos pelos dois autores são os seguintes: identidade entre sujeito, tempo e modo das orações
interligadas; redução de uma das orações; incorporação gramaticalmente sinalizada, de uma das orações; inclusão de uma das
orações no escopo da outra; ausência de iconicidade temporal entre as duas orações; identidade entre as duas orações quanto
à perspectiva do ato de fala.
A distribuição de palavras segundo o tipo textual é a seguinte:

Narrativo Argumentativo Descri

Fala 29.160 29.865 16.647

Escrita 6.362 34.759 35.195

Apresentaremos o número de ocorrências, sem percentagens, visto que nosso controle da amostra se fez pelo número de
palavras que compõem as seqüências textuais, não pelo número de suas orações.
Em se tratando de orações de causa, comparação e condição, a intercalação foi pouco explorada, razão por que não será
considerada. Esta posição é relevante para as orações de conformidade, como mostraremos em 2.3.
A distribuição de orações introduzidas por desde que é interessante: a única ocorrência na fala apresenta-se anteposta
enquanto as duas ocorrências na escrita se manifestam pospostas à oração núcleo.
As outras duas propriedades que contribuíram para essa interpretação têm a ver com o fato de as orações condicionais e os
tópicos expressarem informação dada e compartilharem as mesmas marcas morfológicas, em algumas línguas de Papua Nova
Guiné, em especial Hua.
Aportes sociolingüísticos à alfabetização

Maria Cecília Mollica – UFRJ/CNPq


Fernando Loureiro – Pró-Reitoria de Extensão /UFRJ
OBJETIVOS
Este artigo tem como objetivo oferecer ao professor de língua, em
especial, ao alfabetizador, subsídios sociolingüísticos à primeira etapa de
aprendizagem do código escrito. Muito tem sido dito a respeito do tema, mas
há pouca reflexão sobre o conhecimento de que o docente alfabetizador
precisa para iniciar os alunos no processo de apropriação de leitura e escrita,
respeitando-lhes o perfil sociolingüístico: muitos autores falam sobre a
importância de se qualificar adequadamente os professores para o trabalho
com a linguagem.
Um ponto importante é sempre ressaltado: o falante nativo, aluno, já traz
um saber de sua língua que lhe capacita a comunicação de forma totalmente
satisfatória. Nesse arsenal de conhecimentos, inclui-se a variedade que lhe é
própria, seja rural, urbana ou rurbana, nos termos de Bortoni-Ricardo (2004).
Essa questão é fundamental à medida que o alfabetizador em formação tem
que saber que os alfabetizandos possuem uma linguagem oral, prestigiada ou
não prestigiada, que deve ser respeitada.
Assim, nossa meta, neste texto, é a de refletir sobre as contribuições da
Sociolingüística no processo de formação de professores alfabetizadores em
Educação de Jovens e Adultos (EJA), considerando a experiência de quatro
anos desenvolvida nos cursos de formação inicial e continuada do Programa
de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos em Espaços Populares.
VARIAÇÃO INERENTE: O PRINCÍPIO DA HETEROGENEIDADE
Além de oferecer aportes ao alfabetizador que lida com o conceito de
analfabeto funcional, tal como discutido em Scliar-Cabral (2006), há de se
introduzirem conceitos da realidade das línguas naturais. O princípio da
mudança lingüística não pode deixar de ser conhecido, com as devidas
adaptações, pelo professor em vias de qualificação. Essa questão é importante
à medida que o alfabetizador tem de saber que os educandos possuem uma
linguagem oral plena de cancelamentos de segmentos sonoros e
morfossintáticos, muitos dos quais são recuperados com dificuldade pelo
aprendiz de escrita, já que são processos de mudança avançada na língua e não
erros no sentido mais tradicional (BORTONI-RICARDO, 2006).
A Teoria da Variação assume como pressuposto central a noção de
variabilidade inerente, dado que os sistemas são heterogêneos, sistemáticos e
não aleatórios. Por variação, entende-se a coexistência de duas ou mais formas
que correspondem ao mesmo significado e se manifestam por força de
características regionais e sociais das comunidades de fala. Como afirmam
Mollica e Braga (2003, p. 11):
Cabe à sociolingüística investigar o grau de estabilidade ou de mutabilidade da variação, diagnosticar
as variáveis que têm efeito positivo ou negativo sobre a emergência dos usos lingüísticos alternativos
e prever seu comportamento regular e sistemático. Assim, compreende-se que a variação e a
mudança são contextualizadas, constituindo o conjunto de parâmetros um complexo estruturado de
origens e níveis diversos. Os condicionamentos que concorrem para o emprego de formas variantes
são em grande número, agem simultaneamente emergem de dentro ou de fora dos sistemas
lingüísticos.
Neste sentido, um grupo social compartilha normas de uso que sofrem
normalmente avaliação positiva ou negativa, o que permite explicações mais
amplas sobre a existência de marcas estilísticas e de identidades sociais no
discurso, como afirma Labov (1972, p. 203):
The existence of variation and heterogeneous structures in the speech communities investigated is
certainly well-estabilished in fact. It is the existence of any other type of speech community that may
be placed in doubt. There is a kind of folk-myth deeply embedded among linguists that before they
themselves arrived on the scene there existed a homogeneous, single-style group who really “spoke
the language” Each investigator feels that his own community has been corrupted from this normal
model in some way – by contact with other languages, by the effects of education and pressure of
the standard language, or by taboos and admixture of specialized dialects or jargons. But we have
come to the realization in recent years that is the normal situation – that heterogeneity is not only
common, it is the natural result of basic linguistic factors.
As relações entre os conceitos de variação e mudança tornam-se, então,
fundamentais para se trabalhar com determinados grupos sociais, como
adultos em processo de alfabetização.
ANÁLISE DE PROCESSOS VARIÁVEIS: A PESQUISA EM
SOCIOLINGÜÍSTICA
A partir de aportes importantes da lingüística, em geral, e da
sociolingüística em particular, o alfabetizador em formação vai adquirindo
progressivamente o instrumental teórico necessário para o maior
entendimento dos problemas comumente encontrados em classes de
alfabetização de crianças e adultos, como os que envolvem processos variáveis.
Sobre o papel da posição na concordância nominal no português, afirmam
Naro e Scherre (2007, p. 37):
Scherre (1988) em sua tese de doutorado, retoma a análise da concordância nominal e demonstra
que uma análise da concordância nominal que leve em conta apenas a variável posição linear
encobre regularidades lingüísticas importantes e propõe uma análise alternativa que considera uma
nova variável, advinda do cruzamento entre as variáveis: (1) posição linear; (2) classe nuclear e não-
nuclear e (3) relação entre classe nuclear e não-nuclear.
Em Mollica (2003), são mostrados resultados de testagem com alunos da
rede pública do Rio de Janeiro sobre concordância nominal, com base nos
parâmetros utilizados em Scherre (1988), levando-se em conta o peso de
variáveis como “marcas precedentes” e “posição dos elementos no SN”.
Controlada a influência de uma variável relacionada ao processo de
alfabetização (“com/sem instrução” pedagógica para a realização do
exercício), os alfabetizandos tendem a marcar mais os elementos em segunda e
terceira posição, quando recebem instrução dirigida, porque nas escolas
normalmente se trabalham SNs do tipo “As meninas bonitas” (Art + Nom +
Adj). Mollica (2003, p. 74) assinala que:
Essa parece ser a configuração mais usada pelos falantes, em geral, e pelos aprendizes de escrita,
pois é a encontrada nas cartilhas de alfabetização. Sendo assim, a instrução dirigida para marcar
elementos à esquerda e à direita do segundo elemento do sintagma, geralmente nuclear é indicada
como estratégia de superação de problemas relacionados à marcação de plural na escrita dentro dos
sintagmas nominais.

Durante o processo de alfabetização, então, é importante observar em que


itens e em que contextos os fenômenos variáveis se apresentam mais
freqüentemente, assim como é necessário conhecer o perfil sociolingüístico
dos alfabetizandos. Conseqüentemente, a análise de dados de descrições
sociolingüísticas, publicada em teses, dissertações, em revistas e anais de
congressos, deveria ser mais acessível ao alfabetizador por meio do professor
formador, disponibilizando o que realmente é relevante para o seu trabalho.
PRECONCEITO LINGÜÍSTICO E O PRINCÍPIO DO RESPEITO ÀS
VARIEDADES LINGÜÍSTICAS
Tomar consciência de que os sistemas lingüísticos naturais mudam significa
aceitar o princípio de que as línguas apresentam alternâncias de usos de modo
sistemático, como já foi mencionado. Weinreich, Labov e Herzog (1968), no
estudo clássico “Empirical fundations for a theory of language change”,
destacaram como pressuposto teórico central da sociolingüística o caráter
ordenado e social da variação e da mudança de uma língua numa comunidade
de fala:
Linguistic and social factors are closely interrelated in the development of language change.
Explanations which are confined to one or the other aspect, no matter how well constructed, will
fail to account for the rich body of regularities that can be observed in empirical studies of language
behavior.
Uma questão importante, portanto, apresenta-se para o alfabetizador: a
compreensão de que as variáveis que caracterizam a influência da fala no
processo de alfabetização estão relacionadas ao efeito de fatores lingüísticos e
não-lingüísticos, a exemplo do grau de formalidade do discurso, que atua de
forma significativa quando o indivíduo estabelece parâmetros para falar e
escrever “certo” e “errado” (BORTONI-RICARDO, 2006). Há de se levar em
conta também diferenças clássicas entre fala e escrita como já destacara
Mollica (2000, p. 15):
As marcas lingüísticas sujeitas à variação dependem da ação das variáveis estruturais, sociais e outras
que tais, empregadas com maior ou menor probabilidade: uma taxa alta de um dado conjunto de
marcas configura então um padrão lingüístico. Admite-se que exista pelo menos uma variedade
(norma ou padrão) popular e uma variedade (norma ou padrão) standard. Entende-se por padrão
culto um certo conjunto de marcas lingüísticas em acordo ou desacordo com os cânones da tradição
gramatical: a variedade não-standard é própria da modalidade oral, utilizada em contexto informal,
em discurso espontâneo e não planejado. Ela se diferencia da denominada variedade culta ou norma
culta, que se compõe de empregos típicos de discurso planejado, utilizada predominantemente na
escrita e comprometida com a tradição literária.
Com base nessa fundamentação teórica, os alfabetizadores encontram
referencial para compreender os fenômenos morfossintáticos no português,
como é o caso da variação na concordância nominal, que se sujeitam a efeito
relevante de fatores sociais. A elaboração de exercícios específicos passa a ser
estratégica ao lidar com preconceitos lingüísticos relacionados a variedades
características de cada um dos estratos sociais, tanto na fala quanto na escrita.
Entendemos que os poucos tópicos aqui discutidos são de grande
relevância para a formação do alfabetizador quanto à formulação de atividades
pedagógicas em EJA, pois fornecem instrumentos para se trabalhar com as
informações obtidas nas aulas iniciais a serem realizadas com os alfabetizandos
de sua classe. Neste sentido, afirma Mollica (2007, p. 67):
O arcabouço teórico-metodológico da Teoria da Variação, cujos pilares encontram-se no texto
emblemático de Weinreich, Labov e Herzog (1968), apresenta-se como contribuição pontual ao
ensino, já que subsidia teoricamente trabalhos sobre fatos lingüísticos variáveis, sua causa e seus
contextos mais prováveis de uso. Tornou-se importante analisar o uso no seio das comunidades de
fala, correlacionando os empregos variáveis da língua a aspectos lingüísticos e sociais, antes julgados
como aleatórios, verificando-se a existência da heterogeneidade sistemática.
Labov (2007, p. 2), ao expor as bases de um programa de letramento
fundamentado nos pressupostos da sociolingüística, evidencia a importância
da ligação entre pesquisa e prática pedagógica:
The content and pedagogical approach of Spotlight is the result of ten years of research on the
decoding abilities of struggling readers in low income schools. The decoding problems that are the
focus of Spotlight have emerged from the results of intervention programs with almost 1,000
children in the 2nd through 5th grades of inner city schools in Philadelphia, Atlanta and Southern
California, equally divided among White, African American and Latino children. The identification
of reading problems and the approach to reading improvement draw upon three types of research:
(1) Linguistic analysis of reading errors in a computer-controlled pre and posttest of the reader’s
knowledge of graphemic/phonemic relations.
(2) Sociolinguistic studies of children’s home language, in and out of school
(3) Studies of the relative success of various methods of countering alienation from reading and the
school process.
Scliar-Cabral (2006) ressalta igualmente a importância de se investir na
formação contínua do alfabetizador. Assim, os subsídios sociolingüísticos
devem apresentar as noções basilares, de modo a formar o referencial do
alfabetizador para a construção de seu material de trabalho. Nos termos de
Mollica e Leal (2006), ao longo da experiência como professor, os
alfabetizadores passam a realizar, por si próprios, a transferência de
parâmetros do letramento social ao escolar.
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Temporais na margem esquerda da oração:
indexação na fala e na escrita

Maria da Conceição de Paiva – UFRJ/CNPq


COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Nos estudos de orientação funcionalista e de lingüística textual, voltados
para o uso da língua na sua modalidade falada ou escrita, a disposição
sintagmática de constituintes ganha vulto, pois oferece um vasto campo para
esclarecer a forma como uma determinada ordem interage com o componente
semântico e o componente discursivo. Como propõem Payne (1992), Givón
(1983) e Dryer (1995), a flexibilidade de constituintes lingüísticos não pode ser
compreendida apenas no âmbito da dependência entre termos nucleares e
não-nucleares (domínio sintático), pois reflete processos mentais ligados à
relevância da informação codificada, aos limites de atenção focal e aos
imperativos de coerência discursiva.
Essa perspectiva é particularmente relevante para a compreensão das
possibilidades de ordenação de constituintes não-nucleares, como os adjuntos
adverbiais, sejam os advérbios propriamente, os sintagmas preposicionais ou as
orações adverbiais. O interesse é ainda maior, quando se considera que,
paradoxalmente, se constata para esses constituintes flexibilidade e tendência à
fixação de uma posição, que pode atingir tanto itens lexicais específicos
(principalmente no caso dos advérbios) como algumas classes semânticas.
Os circunstanciais temporais incluem-se perfeitamente no quadro
delineado acima. Embora gramáticos do português (conforme, por exemplo,
CUNHA, 1975) assumam uma espécie de posição “default” para os adjuntos
adverbiais, qual seja, a sua posposição aos constituintes argumentais, diversos
trabalhos já puderam constatar a diversidade de posições que esses
constituintes satélites podem ocupar na oração (NEVES, 1992; ILARI et al.,
1990; MARTELOTTA, 1994; MACEDO; SANTANCHÉ, 1998; TARALLO
et al., 1993; ROCHA, 2001; PAIVA, 2002; CEZARIO; ILOGI; COSTA, 2005;
CEZÁRIO; ANDRADE; FREITAS, 2005; BRASIL, 2005; LESSA, 2007;
PAIVA et al., 2007; PAIVA et al., 2008). Ressaltam, no entanto, algumas
regularidades, principalmente no que tange aos sintagmas preposicionais: a sua
alta freqüência nas posições periféricas (margem esquerda ou margem direita
da oração) e sua restrição nas posições mediais (TARALLO et al., 1993;
ROCHA, 2001; PAIVA, 2002; CEZARIO; ILOGI; COSTA, 2005;
CEZARIO; ANDRADE; FREITAS, 2005; PAIVA, 2008).68 Assim, Paiva
(2008) mostra que, de forma bastante regular, na modalidade falada e na
modalidade escrita, os Spreps temporais tendem a ocupar a extremidade
esquerda da oração (46% em dados de fala e 41% em dados de escrita).
A saliência das posições periféricas desperta um interesse particular pelas
oposições semânticas e discursivas que elas instauram. Principalmente as
circunstanciais, temporais ou locativas, na periferia esquerda da oração têm
sido objeto de múltiplos estudos, em razão das várias questões que suscitam
nos níveis sintático, semântico e discursivo (SHAER, 2004; FAUCONNIER,
1984; CHAROLLES, 2003, 2005; CHAROLLES; VIGIER, 2005; BORILLO,
2005; LE DRAOULEC; PÉRY- WOODLEY, 2003, 2005, entre outros).
Neste artigo, retomamos algumas dessas questões a partir de uma análise
de dados do português falado e escrito. Focalizamos especificamente os
sintagmas preposicionais temporais (com preposição explícita ou cancelada)
situados na margem esquerda da oração.69 Com o objetivo de melhor delimitar
os aspectos que nos interessam, na primeira parte deste artigo tecemos
algumas considerações a respeito das assimetrias entre margem esquerda e
margem direita da oração. Na segunda parte, discutimos as funções discursivas
dos temporais situados na margem esquerda, focalizando seu papel na coesão
de segmentos textuais.
Nesta análise, partimos do pressuposto de que sintagmas preposicionais
temporais, assim como outros constituintes circunstanciais que se situam na
periferia esquerda da oração, são de natureza extrafrásica. Exatamente por isso,
podem operar como elementos de coesão discursiva, uma função coesiva que
se manifesta em dupla direção: na ligação com o discurso precedente, pela
remissão a coordenadas temporais já mencionadas ou inferíveis do contexto
anterior, e com o discurso subseqüente, na medida em que introduzem
enquadres (ou cenários temporais).
Embora essa proposição esteja no centro de diversos estudos (SHAER,
2004; AUSTIN; ENGELKBERG; RAUH, 2004; CHAROLLES, 1997, 2003,
2005; CHAROLLES; VIGIER, 2005; LE DRAUOULEC; PÉRY-
WOODOLEY, 2003, 2005; BORILLO, 2005; HASSELGÄRD, 2004) seria
interessante destacar que, na sua maioria, tais trabalhos baseiam-se em dados
da língua escrita. Uma questão em aberto refere-se à forma como esse papel
coesivo dos Spreps temporais na periferia esquerda se instancia em textos
falados. Como mostraremos na última parte deste artigo, uma comparação
controlada de dados das duas modalidades permite-nos depreender
particularidades ligadas principalmente aos tipos semânticos mais
freqüentemente convocados para a introdução de enquadres temporais.
Para a realização dessa análise examinamos uma amostra de dados de fala,
representada por entrevistas sociolingüísticas que integram a Amostra Censo
1980, e de uma amostra de língua escrita constituída por textos jornalísticos de
diferentes gêneros (editorias, crônicas e reportagens).70
ASSIMETRIAS ENTRE MARGEM ESQUERDA E MARGEM DIREITA
DA ORAÇÃO
Diversos autores têm mostrado que adjuntos situados na margem esquerda
da oração distinguem-se daqueles que se colocam na posição final, em
diferentes dimensões. Do ponto de vista do seu escopo, assume-se, de forma
mais ou menos generalizada, que os circunstanciais na periferia esquerda da
oração possuem um alcance mais amplo do que os que se situam na margem
direita, mais restritos à predicação. Esta visão vai de encontro ao fato de que,
na verdade, o circunstancial na margem direita permite, na verdade, uma
ambigüidade entre leituras mais altas e mais baixas. Como bem insiste Shaer
(2004), o problema com a equação entre posição estrutural e função
semântico-discursiva é o pressuposto de que “leituras” associadas à posição
mais baixa (posição à direita) não estão disponíveis para circunstanciais
situados na margem esquerda. Assim, por exemplo, em sentenças não-
genéricas, um circunstancial indicativo de duração, se situado na margem
direita seria compatível com uma interpretação up-to-nowe uma interpretação
existencial; se situado na margem esquerda, seleciona necessariamente uma
interpretação up-to- now.71 O autor refuta tal diferença mostrando que os
adverbiais situados na ME são igualmente compatíveis com ambas as
interpretações, desde que o contexto forneça as informações necessárias.72
Os defensores da assimetria entre circunstanciais na margem direita e na
margem esquerda apóiam-se em argumentos sintáticos para explicar as
diferenças semânticas entre eles: os primeiros se situam numa posição
estrutural mais baixa, enquanto os segundos se vinculam a uma posição
estrutural mais alta. Assim, Shaer (2004, p. 289) afirma
It has long been recognized that temporal adverbials on the left perihery of the English sentence
make subtil but significantily different contributins to the sentence than these on its right periphery.
It has also been recognized that the most plausible source of this assimetry is a structural one – in
other words, that there is “systematic correlation between the position and the meaning of the
temporal adverbials [...]”.
Nesses termos, os circunstanciais na margem esquerda seriam
conseqüências de um movimento do constituinte para uma posição mais alta
do que a posição à direita. Shaer apresenta argumentos contrários a essa
posição, destacando que ela está longe de resolver todas as ambigüidades
ligadas à ordem dos circunstanciais. Propõe, ao contrário, que os temporais
situados na margem esquerda ocupam uma posição extra-sentencial (são
órfãos, nos termos do autor), ou seja, são colocados em uma posição
independente, que escapa às relações hierárquicas da sentença. É essa
liberdade que os torna elementos susceptíveis de operar nas ligações
discursivas, aproximando-se, assim, de outras construções que tendem
igualmente a ocupar essa posição em decorrência de topicalização ou
deslocamento à esquerda.
Essa posição está de acordo com a de outros autores que consideram esses
adjuntos na margem esquerda como constituintes exofrásticos, menos
integrados à frase (BORILLO, 2005; CHAROLLES, 2003, 2005;
CHAROLLES; VIGIER, 2005; LE DRAOULEC; PÉRY-WOODLEY, 2003,
2005), ou seja, eles atuam sobre a predicação a partir do exterior, sem
propriamente integrá-la. Esse “desligamento” pode ser acompanhado de
índices suprasegmentais como pausa ou entonação distinta, na fala, ou uma
vírgula, na escrita.
Se uma assimetria semântica entre periferia direita e periferia esquerda é
discutível, a assimetria discursiva entre as duas posições é inquestionável.
Circunstanciais na margem esquerda, além de inscreverem os estados de coisas
descritos em pontos ou intervalos temporais, funcionam como elos de ligação
(links) entre pontos do discurso em dois sentidos: podem remeter para
informações já introduzidas no discuso (“portée en amont” ou “backward-
tie”) e podem remeter para o discurso subseqüente (“portée en aval” ou
“forward-tie”), indexando um conjunto de informações. Os circunstanciais
localizados na periferia direita tendem, por sua vez, a possuir uma função mais
local que, via de regra, não ultrapassa os limites da oração em que estão
inseridos.
Na perspectiva de alguns autores, essa função de remeter para o discurso
subseqüente, ou seja, de introduzir enquadramentos ou cenários temporais sob
os quais podem ser agrupadas diversas orações, é prioritária. Retomando aqui
os termos de Charolles (2003, p. 7):
Contrairement aux adverbiaux postposés qui ont tendance à être rattachés à la prédication, les
adverbiaux antéposés résistent à tout forçage dans ce sens. Ils fixent un critère sémantique par
rapport auquel l’information véhiculée par la phrase en tête de laquelle ils apparaissent doit être
envisagée.
Nessa função, que poderíamos caracterizar como projetiva, os
circunstanciais temporais se aproximam de diversos outros constituintes
“desligados”, como os circunstanciais locativos, os diferentes tipos de
advérbios de enunciação (modalizadores, epistêmicos, asseverativos,
atitudinais), algumas construções topicalizadas e mesmo de algumas orações
adverbiais antepostas (THOMPSON, 1985). Na seção seguinte, detalhamos
essas particularidades funcionais dos circunstanciais temporais situados na
margem esquerda, considerando dados de fala e de escrita.
PAPÉIS DISCURSIVOS DOS CIRCUNSTANCIAIS NA MARGEM
ESQUERDA
Uma das particularidades mais freqüentemente aventadas para os
circunstanciais situados na margem esquerda da oração é a de poderem
estabelecer uma ponte com o discurso anterior, instaurando uma forma de
relação anafórica. Retomando aqui os termos de Shaer (2004, p. 325)
circunstanciais na margem esquerda “establish some point of connection
between the sentence with which they occur and the previous discours”. É
necessário precisar, no entanto, o limite e a forma como se estabelecem essas
ligações, já que os circunstanciais temporais definem pontos ou intervalos
temporais que não têm necessariamente ligação com outras coordenadas
temporais já apresentadas. O exemplo seguinte é ilustrativo:
1) E assim: o senhor tem alguma estória engraçada para contar ?
F- Passagens como? De- de- como jogador de futebol? É? Ah! eu tenho diversas. Eu vou contar
uma que, talvez, seja a mais engraçada. Eu estava jogando futebol, como profissional, e já estava,
assim, em fim de carreira. Então, eu jogava- nessa época eu jogava na- na Portuguesa. A Portuguesa
estava entrando na Federação para jogar entre os clube profissionais, né? E eu fui contratado pela
Portuguesa, já no fim de carreira, já devia estar com meus trinta e quatro, trinta e três anos, por aí
assim. Então, eu já estava quase para encerrar mesmo, né? (Amostra Censo 1980, fal. 14)
No exemplo (1), a ligação entre o Sprep nessa época e o discurso anterior fica
evidente no demonstrativo nessa. É difícil, no entanto, interpretar tal ligação
em termos de correferência, visto que o circunstancial temporal funciona, na
verdade, como uma espécie de síntese das informações já fornecidas pelo
falante: ele já era jogador profissional de futebol e já estava no final da carreira.
Essas informações fornecem um background, uma âncora nos termos de Shaer
(2004) que autoriza a inferência de que o estado de coisas descrito pela oração
em que se aloja o Sprep temporal (eu jogava na Portuguesa) ocorreu no momento
em que o falante já estava terminando sua carreira de jogador de futebol. A
indicação temporal fornecida pelo circunstancial só garante sua
interpretabilidade em relação ao tempo dos eventos que ele sintetiza.
Em algumas situações discursivas, índices morfológicos podem auxiliar no
estabelecimento dessas ligações, instaurando condições mais seguras para um
processo inferencial, como mostra o exemplo (2)
(2) Fomos jogar. Estreamos na Europa, na Turquia. Nessa altura, eu era jogador e treinador, Eu era
jogador, porque eu já tinha jogado em seleções cariocas, entendeu? Eu era um jogador de maior
cartaz na equipe. [...] Bom, aí jogamos. Na estréia, perdemos de quatro a um. Uma vergonha!
(Amostra Censo 1980, Fal. 14).
No trecho (2), o Sprep na estréia remete para o discurso anterior, à medida
que se associa morfologicamente ao verbo estrear (estreamos na Europa, na
Turquia). Se não constitui uma informação velha, o Sprep tampouco se
incluiria na categoria de novos, pois introduz uma informação que pode ser
inferida a partir da forma verbal já utilizada. O ponto temporal definido pela
locução na estréia pode, de certa forma, ser incluído no evento estreamos, apesar
da diferença entre a descrição dinâmica fornecida pela forma verbal e o caráter
estático da forma nominal. Nessa função de estabelecer uma ponte com o
discurso anterior (função “backward” ou “portée en amont”), os
circunstancais temporais aproximam-se das orações condicionais que, na
interpretação de Haiman (1978), atuam como tópicos.73
Dada a função mais ou menos inerente da margem esquerda como ponto
de introdução da informação já mencionada, ou temática, que serve como
ponto de partida para a progressão do discurso, evidentemente muitos
circunstanciais situados nessa posição podem previsivelmente estabelecer
relações anafóricas, como as que ilustramos acima. Daí a considerá-los como
tópicos, no sentido de “aboutness” (DIJK, 1997; LAMBREDCHT, 1994) ou
do ponto de partida psicológico (HALLIDAY, 1994) é questionável. Não nos
aprofundaremos nessa questão, em razão dos múltiplos aspectos nela
envolvidos. Como lembra Charolles (2003) e Fischer (2003), tanto a definição
de tópico como os critérios que definem topicidade são controversos, e, além
disso, nem sempre são muito claras as fronteiras entre tópico e enquadre
temporal ou frame. Nos limitamos a assumir que parece ser bastante raro que
um circunstancial temporal anteposto constitua o ponto de partida do discurso
no sentido “daquilo de que se fala”.74
É inegável o papel preponderante dos circunstanciais que encabeçam
orações na remissão para o discurso subseqüente. Em outros termos, os
constituintes temporais “desgarrados” abrem um enquadre ou um cenário
temporal75 sob o qual podem se abrigar diversas proposições que fazem
progredir o discurso. Nessa perspectiva, o circunstancial na periferia esquerda
não se limita ao seu valor referencial de definir as coordenadas temporais da
frase em que está alojado; ele possui igualmente uma função instrucional
(CHAROLLES, 1997), no caso, a de fornecer um critério temporal que,
potencialmente, pode indexar diversas orações.76
O exemplo abaixo ilustra claramente essa função indexadora:
(3) Em meia nove, a gente ficamos um ano e meio sem perder para ninguém. Sem perder para
ninguém! Qualquer time que vinha, a gente papava. Aí o tio da- o tio da minha esposa, ele jogava no
Bangu. Bangu não. Ele jogava no Campo Grande. E tinha intimidade com esse pessoal aí, no
Madureira. Aí ele levou o veterano do Madureira para jogar com a gente. Pô!, todo mundo
tarimbado, os veterano do Madureira, não é? Não, mas não adiantou assim mesmo! A gente fomos a
um a zero, a gente- Não teve jeito. Aí eles pediram para gente jogar de novo: “não, vocês joga no
nosso campo agora- jogar de novo, que a gente-” vamos fazer uma- uma comidinha para gente lá.
“Tudo bem, legal!” Mas não deu oportunidade da gente ir lá jogar com ele. (Amostra Censo 1980,
Fal. 25)
No trecho acima o Sprep temporal em meia nove possui um valor dêitico-
referencial, na medida em que define um ponto no continuum temporal, no caso
uma data que situa um conjunto de estados de coisas. Do ponto de vista da
sua contribuição para a estrutura informacional do texto, o Sprep introduz
uma informação inteiramente nova, ainda não disponibilizada ou inferível do
discurso anterior (PRINCE, 1981). O aspecto mais importante a ressaltar, no
entanto, é que o Sprep não se restringe a situar o estado de coisas descrito pela
oração que encabeça (ficamos um ano e meio sem perder prá ninguém). Ele expande
seu alcance, introduzindo um critério semântico a partir do qual vários estados
de coisas podem ser interpretados. Dessa forma, o falante é conduzido a
deduzir que a programação do jogo com o Madureira, assim como a vitória do
time do falante, se inscrevem na coordenada temporal definida pelo Sprep em
meia nove.
A abrangência do escopo do temporal é reforçada, por um lado, pela
ausência de outros índices temporais e, por outro, pela compatibilidade
temporal entre a especificação introduzida pelo Sprep e o tempo verbal dos
eventos descritos (tempos verbais no passado). Em resumo, o Sprep situado
no início da oração é capaz de indexar, de acordo com a proposta de Charolles
(2005, p. 12), o conjunto total das informações que compõem a narrativa,
fixando um critério “en fonction duquel les données don’t il est fait dans le
texte sont classées”.
Embora não seja impossível, a colocação do circunstancial na margem
direita da oração (A gente ficamos sem perder um ano e meio sem perder pra ninguém em
meia nove) teria conseqüências muito mais no nível da organização discursiva do
que no da significação. Assim, o jogo com o time do Madureira poderia ter
ocorrido em algum outro momento, fora do escopo do temporal em meia nove.
Evidentemente, ao longo do trecho (3), alguns segmentos podem ficar
exluídos do cenário temporal fornecido pelo circunstancial, em função mesmo
da interferência do falante/escritor no texto. Em outros termos, comentários,
esclarecimentos, retificações que se manifestam em grande parte sob a forma
de incisos ficam fora da esfera de ação do circunstancial. Neste sentido, em (3)
a expressão Bangu não, pelo seu valor meta-discursivo, não se inclui no quadro
definido pelo sprep em meia nove.
Como se pode esperar, essa função indexadora não exclui uma ligação do
circunstancial com o contexto precedente, como se pode constatar no trecho
seguinte:
(4) Talvez um ano mais ou menos, logo após um ano, não chegou um ano, nove meses e pouco, veio
o término da- da guerra, que ela terminou em maio de mil novecentos e quarenta e cinco. Mas, antes,
o Brasil então tomou uma providência, né? O presidente era o Getúlio Vargas, o ministro da guerra
é o falecido Eurico Gaspar Dutra, não é? Marechal. Então foi criado umas unidades que eram umas
unidades de fronteira, vigilância do litoral então foi criados diversos gemacs, gemacs é: grupo de
artilharia móvel de- (hes) de artilharia de costa, não é? Grupo móvel de artilharia de costa. Grupo
móvel de artilharia de costa. Então mandou o primeiro gemac, mandou o segundo gemac, mandou
o terceiro gemac, o quarto, o quinto, o sexto, até o oitavo. (Amostra Censo 1980, Fal. 46)
O exemplo (4) é parte de um longo turno de fala de um falante que conta,
com riqueza de detalhes, alguns acontecimentos ligados à participação do
Brasil na segunda guerra mundial. No trecho tomado como exemplo, o
temporal antes, em negrito, opera numa dupla direção: retroativamente (“portée
en amont”) e projetivamente (“portée en aval”). A ligação de antes com o
discurso anterior fica evidente no fato mesmo de que esse adverbial (um
relacional seqüenciador) requer um ponto de ancoragem que determine sua
referência temporal, no caso, a guerra terminou em maio de mil, novecentos e quarenta
e cinco. Apenas esta remissão ao contexto anterior permite ao interlocutor
identificar que todo o conjunto de eventos que se segue precede o fim da
guerra.
Simultaneamente, o circunstancial antes atua como indexador, na medida
em que fornece um critério, no caso um quadro de referência temporal (antes
do fim da guerra), ao qual se relaciona uma série de eventos: a criação das
unidades especiais de proteção das fronteiras brasileiras assim como seu envio
para as áreas mais vulneráveis naquele momento. Dessa forma, o adverbial
temporal extrapola o limite da oração em que se aloja para estender seu âmbito
de ação por diversas orações. Em outros termos, ele fornece um critério
semântico que se pode aplicar a vários segmentos discursivos.77
Esta função indexadora do circunstancial temporal é explorada de forma
similar e produtiva igualmente na organização dos textos escritos, como
ilustrado em (5):
(5) Mas essa não foi a primeira vez que a relação custo-benefício de uma megaoperação ficou
exposta à crítica. Em fevereiro deste ano, durante o governo Garotinho, a PM entrou com 700 policiais
no Complexo do Alemão. As apreensões foram pequenas e o custo muito alto: um sargento morreu,
além de quatro traficantes, para que apenas três armas fossem tiradas de circulação. Na época, Elias
Pereira da Silva, o Elias Maluco, que já comandava o tráfico não foi preso. (JB, 24/10/02)
O trecho acima integra um editorial do Jornal do Brasil em que se critica
severamente a atuação da polícia na cidade do Rio de Janeiro. O circunstancial
em fevereiro deste ano (um ponto no tempo), seguido de uma especificação
durativa (durante o governo Garotinho), possui um valor instrucional na medida
em que estende seu escopo além dos limites da oração em que está alojado.
Sua posição extrafrásica convoca o leitor a interpretar que, no período
delimitado pelo circunstancial, se inclui uma série de acontecimentos: um
grande número de policiais entrou nas favelas do Complexo do Alemão, os
policiais fizeram poucas apreensões de armas, um soldado e quatro traficantes
morreram. Nesse sentido, o circunstancial possui um valor englobante, que
organiza e homogeniza um bloco de informações.
No trecho em análise, é particularmente interessante o circunstancial
anafórico na periferia esquerda da última oração (Na época, Elias Pereira da Silva,
o Elias Maluco, que já comandava o tráfico não foi preso). A natureza definida da
expressão adverbial conduz o leitor a incluir o último fato descrito no mesmo
universo temporal criado pelo sprep em fevereiro deste ano. Aparentemente, essa
retomada parece desnecessária se forem tomados outros índices do texto. Ao
retomar a especificação temporal, no entanto, o articulista a investe de um
valor argumental particular: apesar do importante aparato policial utilizado na
operação, o objetivo principal (capturar o principal chefe do tráfico na região)
não fora alcançado.
Do que foi visto até este ponto, podemos assumir, acompanhando a
interpretação de Le Draoulec et Péry-Woodley (2005) que os circunstanciais
estão associados tanto à função ideacional como à função textual propostas
por Halliday (1985). Na segunda função, eles constituiriam verdadeiros
elementos de coesão, pois as orações reunidas sob um mesmo índice temporal
constituem um bloco homogêneo em relação a esse critério semântico
(CHAROLLES, 2005).
Uma questão central nessa perspectiva é a de precisar o alcance da
expressão temporal indexadora situada na periferia esquerda da oração. Se um
quadro temporal é aberto, necessariamente ele deve ser fechado em algum
momento, o que requer precisar os recursos/estratégias utilizados para tal fim.
A retomada do exemplo (3) no seu contexto mais amplo permite ilustrar uma
das formas mais usuais de sinalizar a fronteira direita do enquadre temporal:
(6) Em meia nove, a gente ficamos um ano e meio sem perder para ninguém. Sem perder para
ningúem! Qualquer time que vinha, a gente papava. Aí o tio da- o tio da minha esposa, ele jogava no
Bangu. Bangu não. Ele jogava no Campo Grande. E tinha intimidade com esse pessoal aí, no
Madureira. Aí ele levou o veterano do Madureira para jogar com a gente. Pô! Todo mundo
tarimbado, os veterano do Madureira, né? Não, mas não adiantou assim mesmo! A gente fomos a
um a zero, a gente- Não teve jeito. Aí eles pediram para gente jogar de novo: “não, vocês joga no
nosso campo agora- jogar de novo, que a gente-” vamos fazer uma- uma comidinha para gente lá.
“Tudo bem, legal!” Mas não deu oportunidade da gente ir lá jogar com eles. Aí depois, também, o tio
da minha esposa saiu. Ele é detetive. Aí ele começou a fazer um montão de curso aí. Ele agora é
motorista. Quando o presidente vem aqui, ele é segurança do presidente. Aí não deu para gente
jogar de novo! Mas é sempre bom! (Amostra Censo 1980, Fal. 25)
No exemplo acima, o enquadramento temporal definido pelo Sprep em
meia nove, ao que tudo indica, permanence ativo até que uma outra expressão
temporal sinalize sua fronteira. Assim, a introdução do advérbio depois
igualmente na periferia esquerda, pode ser tomada como uma indicação de que
os eventos que a seguem escapam ao escopo do Sprep em meia nove e se
inserem numa outra coordenada temporal, constituindo um outro bloco de
informações. Devido à função seqüencializadora de depois, ele explicita uma
progressão temporal que, necessariamente, vai além do limite imposto pela
primeira locução adverbial.
Não raro a fronteira final do enquadre temporal acionado pela expressão
indexadora é mais difusa e requer uma interpretação das relações que se
estabelecem entre os segmentos do discurso, como mostra o exemplo (7):
(7) Antes do Natal, boatos de que o sargento seria alvo dos traficantes percorreram a região.
Preocupada, a família viajou para evitar o transtorno, porém poucos dias depois de retornar houve o
atentado. Segundo a mulher do PM, em meados de dezembro outro policial militar foi assassinado
em Inhaúma, e os comentários eram que os bandidos iriam matar também o marido dela. (Jornal O
Globo, 9 jan. 2004)
Em se tratando de língua escrita, o recuo do parágrafo é um índice auxiliar
que levaria a crer que todo o trecho se inscreve no cenário temporal aberto
com o SPrep antes do natal. Tal suposição é reforçada pela persistência do
tempo verbal ao longo do trecho, possibilidade que, no entanto, é desfeita pela
segmentação temporal que o autor faz no parágrafo. No que se refere à
segunda oração, duas interpretações são possíveis: o estado de coisas descrito
(a mudança da família) está inserido no ponto temporal definido pelo Sprep
situado na margem esquerda, ou esse estado de coisas pode não ter ocorrido
antes do natal, ou seja, a viagem da família poderia ter ocorrido após o natal.
Entretanto, alguns índices parecem favorecer a primeira interpretação. O
primeiro deles é a ausência de uma outra indicação temporal, o que autoriza a
interpretar que a referência dada por antes do natal se estende para a segunda
oração. Esta interpretação é reforçada por dois outros aspectos: a) dada a
relação de causa-efeito entre os boatos de que o sargento seria alvo de ataque e
a mudança da família é de se esperar que tal mudança tenha igualmente
ocorrido antes do natal; b) uma outra indicação temporal é introduzida logo a
seguir por meio da oração poucos dias depois de retornar para situar a ocorrência
do atentado ele mesmo. Se considerarmos regras mais gerais de organização
do discurso e o papel dos circunstanciais na tessitura textual é de se esperar
que a primeira referência temporal se mantenha até a introdução dessa outra
referência temporal.
A situação exemplificada acima fornece argumentos favoráveis à posição
defendida por Le Draoulec e Péry-Woodley (2003, 2005), de que a extensão
enquadrativa de um adverbial temporal além dos limites da frase em que ele se
situa tem de ser vista no interior de um modelo mais amplo que considere as
relações de discurso, como as propostas, por exemplo, por Mann e Thompson
(1988). A incorporação da segunda frase do texto no escopo do circunstancial
nos meados de dezembro fica, de certa forma, assegurada pela relação de
causalidade que se estabelece entre os dois segmentos do discurso.78
Não há dúvidas de que a extensão de um introdutor de enquadramento
temporal está relacionada à organização temporal do discurso e à forma como
o falante ou escritor dispõe diferentes marcadores temporais ao longo do
texto. Além da demarcação de enquadres temporais pela introdução de outras
coordenadas temporais, índices ligados às propriedades temporo-aspectuais
das formas verbais interagem nessa delimitação:
(8) Fim de abril de mil novecentos e quarenta e três, recebemos um comunicado lá do serviço central do
transporte do exército para comparecer no quartel general. Comparecemos no quartel general. A
gente respondia a chamada, lá no serviço central do transporte do exército. Tinha que comparecer
lá, não é? vamos dizer, para marcar ponto, tinha que ir lá. Então a gente comparecia lá. Aí, então
veio e foi quando o ministro falou. Que ele ia precisar mais uma vez, então, um sacrifício maior da
tropa. Nós íamos viajar por terra, nós íamos viajar por dentro, do Rio de Janeiro a São Luís do
Maranhão.
Aí, nós saímos daqui de fato, trinta e um de maio de mil novecentos e quarenta e três, seis horas da
manhã, com destino a Belo Horizonte, né? E dali trem, via fluvial, foi a viagem do São Francisco,
nove dias. (Amostra Censo 1980, Fal. 46)
No trecho (8), podemos assumir de forma mais ou menos indiscutível que
o Sprep temporal fim de abril de mil novecentos e quarenta e três indexa as duas
primeiras orações (recebemos um comunicado lá do serviço central e comparecemos no
quartel general). O tempo verbal desses dois estados de coisas é compatível com
a referência sinalizada pelo SPrep temporal que encabeça a primeira oração. A
inclusão das frases seguintes é mais problemática. A mudança temporo-
aspectual ao longo do texto, do perfectivo para o imperfectivo, instaura uma
prolongação dos eventos que pode ultrapassar o limite temporal introduzido
pelo circunstancial: embora tenham se iniciado no final de abril de mil
novecentos e quarenta e três, elas podem se estender na linha do tempo. Essa
interpretação é reforçada pelo segmento “nós saímos daqui de fato trinta e um de
maio de mil novecentos e quarenta e três, com destino a Belo Horizonte, né?” em que o
falante torna explícita uma permanência de aproximadamente um mês no Rio
de Janeiro, aguardando o embarque para o destino previsto. Se a mudança
aspectual das predicações indica uma limitação do cenário temporal, a
introdução de uma outra coordenada temporal vem ratificá-la ao demarcar um
novo recorte das informações apresentadas ao longo do trecho.79
Apesar da importância dessa questão, visto que envolve a forma como o
falante/escritor organiza e gerencia as informações ao longo do texto, não as
aprofundaremos nesta ocasião. Nos contentamos em assinalar que é bem
possível que fala e escrita, dadas as suas particularidades de planejamento,
explorem de forma diferenciada índices de fechamento de quadro, uma
questão que requer uma análise mais cuidadosa.
ENQUADRAMENTO E TIPO SEMÂNTICO DO CIRCUNSTANCIAL
Um aspecto que nos interessa mais de perto nesta análise se refere à
disponibilidade dos temporais como introdutores de enquadres ou cenários
temporais. Seria possível dizer que, em princípio, todo circunstancial situado
na margem esquerda da oração é candidato a uma função indexadora,
podendo estender seu escopo por diversas orações (CHAROLLES, 2003,
2005; CHAROLLES; VIGIER, 2005). Essa generalização é, no entanto,
discutível, se considerarmos a influência de aspectos ligados aos domínios
sintático e semântico.
Do ponto de vista sintático, não se pode excluir a possibilidade de que o
poder enquadrativo dos circunstanciais seja influenciado pela posição de
outros constituintes da sentença. Com relação aos locativos, Fuchs e Fournier
(2003), por exemplo, mostram que a posição do sujeito em relação ao verbo
limita ou favorece a função indexadora desses constituintes. Assim, os
locativos são particularmente propensos à introdução de enquadres espaciais
em orações com sujeito anteposto ao verbo (X S V); de forma diferente, eles
ficam limitados no seu poder enquadrativo em estruturas com sujeito
posposto (X V S), em que dificilmente X, um constituinte em função extra-
predicativa, pode operar uma ruptura com o discurso anterior.
Do ponto de vista semântico, diversos trabalhos já atestaram a dificuldade
de se proceder a generalizações quanto a uma ordem não marcada dos
temporais, visto que as diferentes nuances semânticas que eles podem
expressar (localização, duração, delimitação de intervalo etc.) intervêm na sua
tendência de disposição sintagmática (MARTELOTTA, 1994; ILARI, 2001;
CEZARIO; ILOGI; COSTA, 2005; CEZARIO; ANDRADE; FREITAS,
2005; BRASIL, 2005; PAIVA et al., 2006). Assim, por um lado, temporais
seqüencializadores são quase categoricamente situados na margem esquerda da
oração (PAIVA et al., 2006), temporais que indicam simultaneidade ou
delimitam um intervalo entre dois pontos tendem a ser antepostos ao verbo
(MARTELOTTA, 1994; CEZARIO; ANDRADE; FREITAS, 2005); por
outro lado, localizadores e durativos tendem a se situar na periferia esquerda.
Pode-se esperar que as nuanças semânticas do temporal interfiram
igualmente na sua função indexadora, o que é sugerido, por exemplo por
Borillo (2005). Na perspectiva da autora, alguns tipos de temporais são mais
propensos a operarem na introdução de enquadres do que outros
(CHAROLLES, 2005). Assim, os advérbios de datação ou calêndricos, que
introduzem indicações temporais pontuais, e os relationais (três dias mais tarde,
simultaneamente, em seguida) pela sua natureza seqüenciadora, são mais
susceptíveis de abrirem um cenário no qual se incluem vários estados de coisas
do que os temporais quantificadores do tipo durativo (durante muito tempo),
iterativo (todos os dias, sempre, de vez em quando) e de freqüência (raramente, às
vezes). Nos termos da autora:
Il faut donc admettre que les expressions susceptibles de fonctionner comme Adverbes de cadrage
et qui, a ce titre, sont placées en détachement en tête de phrase, n’ont pas à être regroupées dans une
grande catégorie qui les ferait rentrer comme les adverbes conjonctifs et évaluatifs à l’intérieur des
adverbes de phrase. (BORILLO, 2005, p. 134)
Além disso, nuanças semânticas que envolvem a “granularidade” da
expressão temporal, ou seja, a extensão do recorte temporal que ela recobre
(BORILLO, 2005; LE DRAOULEC; PÉRY-WOODLEY, 2005) intervêm
igualmente. Enquanto alguns temporais introduzem recortes temporais mais
estreitos, outros indicam extensões temporais maiores que, pelo menos
teoricamente, podem ter alcance enquadrativo mais amplo.
Os dois aspectos mencionados acima são particularmente interessantes
para uma análise comparativa dos temporais introdutores de enquadre ou de
cenário em textos falados e em textos escritos. Na amostra utilizada neste
estudo foram encontrados, na modalidade falada, 87 sintagmas preposicionais
com função enquadrativa e 60 na modalidade escrita. Esses circunstanciais
foram analisados de acordo com o seu tipo semântico, através da sua
classificação em: localizadores dêiticos, localizadores anafóricos, delimitativos,
durativos, seqüenciais, interativos e freqüenciais. A quantificação dos dados
permite verificar que as duas modalidades se distinguem no que se refere aos
tipos semânticos mais freqüentemente utilizados em função indexadora.
Na amostra de fala, no total de 87 temporais com função enquadrativa, a
grande maioria (58%) é representada por expressões localizadoras de natureza
anafórica do tipo no começo, naquela época ou seqüenciais como antes de + N ou
depois de N, em que N pode estar explícito ou ser recuperado do contexto
(27%). Seguem-se os localizadores dêiticos como um dia, um belo dia ou datas com
15%. A possibilidade mais freqüente é exemplificada em (9):
(9) Naquela época, era tudo muito natural. Não- não me lembro realmente de ter ficado algum dia de
mau humor por causa disso, ou de ter reclamado alguma vez com meu marido por não ter carro, ou
qualquer coisa assim. Eu era sempre - Tudo assim muito- muito espontâneo,muito natural, nada me
amolava. Ele trabalhava em Copacabana. Ele saía daqui, tinha que ir até, o largo pegar um ônibus, ir
até‚ o largo do Pechincha, do largo do Pechincha, pegar um ônibus, ir até à cidade, da cidade, pegar
um ônibus, ir para Copacabana. Isso pra ir e prá voltar.
De forma um pouco diferente, nos textos escritos, os introdutores de
enquadramento temporal são predominantemente do tipo durativos, ou seja,
aqueles que delimitam um espaço entre dois pontos no tempo ou, pelo menos,
o ponto inicial de um estado de coisas que se prolonga na linha do tempo
(48%), como no exemplo seguinte:
(10) Nos últimos anos, alguns procuradores da República têm sido criticados por açodamento,
sobretudo no combate aos crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, usando
muitas vezes a imprensa para praticamente prejulgar indiciados em inquéritos. De outro lado, críticas
à lentidão do Judiciário sobram também para integrantes do Ministério Público que “engavetariam”
processos, por inércia ou por conveniências políticas. (JB, 7/6/2003)
Os demais indexadores temporais se distribuem entre dêiticos localizadores
(27%), seqüenciais (20%) e localizadores anafóricos (5%).
A distribuição diferenciada dos indexadores temporais nas duas
modalidades permite sugerir que língua falada e língua escrita exploram
diferentes tipos semânticos de candidatos a introdutores de enquadramentos
temporais. Assim, nos textos falados preponderam indexadores temporais que,
simultaneamente, remetem para o discurso precedente e organizam um bloco
de informações do discurso subseqüente pela introdução de um índice que
pode abrigar diversos estados de coisas. Garantem, assim, a continuidade do
discurso e sua progressão.
Na língua escrita, embora evidentemente não esteja excluída a remissão
para o discurso precedente, a função enquadrativa parece ser mais saliente do
que a função de ligação com o discurso precedente. Essas diferenças
autorizariam a concluir que, embora as duas modalidades não se distingam
quanto à forma como instanciam a função ideacional dos temporais situados
na margem esquerda da oração, elas apresentam algumas especificidades no
que se refere à função textual desses constituintes “desgarrados”.
CONCLUSÃO
Ao longo deste artigo, apresentamos algumas reflexões acerca das
assimetrias entre circunstanciais temporais situados nas duas periferias da
oração. Focalizamos as particularidades discursivas dos temporais situados na
margem esquerda a partir de uma proposta teórica que atribui uma dupla
função a esses constituintes: eles desempenham uma função ideacional (ou
representacional), introduzindo pontos ou intervalos em que se situam estados
de coisas e, de outro, desempenham uma função textual, na medida em que
operam como elementos de coesão discursiva.
A análise conjunta de dados de língua falada e de língua escrita nos
permitiu depreender algumas diferenças no que se refere principalmente aos
tipos semânticos de indexadores temporais mais freqüentemente explorados
em cada modalidade. As conclusões obtidas, ainda que provisórias, sugerem
que a função indexadora dos circunstanciais tem de ser vista no interior de um
modelo que considere as diferentes nuances semânticas dos temporais. Além
disso, aponta para a necessidade de se verificar o alcance do modelo proposto
em uma gama mais variada de tipos e gêneros textuais, escritos ou falados, a
fim de precisar a complexa inter-relação entre posição e função, por um lado, e
a superposição entre função tópica e função enquadrativa, por outro.
No que se refere ao primeiro aspecto, é difícil evitar uma certa
circularidade sobre a correlação entre posição ou função: é porque o temporal
se situa na margem esquerda que ele adquire uma função “enquadrativa”, ou é
porque ele possui uma função enquadrativa que ele se desloca para a posição
inicial? Em princípio, podemos afirmar que há argumentos mais favoráveis à
primeira posição. Já que o papel enquadrativo dos temporais é compartilhado
por diversos outros tipos de constituintes, adverbiais ou não, há indicações de
que essa função está associada em grande parte à própria posição inicial de
oração, pela sua natureza extrapredicativa.
No que se refere à segunda questão, é possível pressupor, acompanhando a
posição de Fischer (2003) que função tópica e função enquadrativa são pontos
de um continuum em que, se é relativamente fácil distinguir casos transparentes,
sempre haverá uma área de opacidade.
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Notas
De forma paralela, com base em dados do português europeu, Costa (2004) assume que os advérbios são
orientados para a esquerda.
A exclusão dos advérbios se deve acima de tudo às restrições lexicais que operam sobre a posição desses
elementos (Conforme, por exemplo, COSTA, 2004).
A Amostra Censo 1980 foi constituída no período de 1980 a 1984 e é composta por 64 horas de
gravação com falantes cariocas, distribuídos de acordo com as variáveis sexo, idade e escolaridade. A
Amostra de textos jornalísticos foi constituída no período de 2001 a 2003 e é composta por textos
extraídos do Jornal do Brasil, O Globo, Extra e O Dia. Ambas as amostras fazem parte do acervo de dados
do PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da lingua) e estão disponíveis em versão digital.
Segundo essa perspectiva, frases como “João viveu no Brasil durante muitos anos” permitiriam uma
ambigüidade (“João viveu e não vive mais no Brasil”) que estaria ausente de uma frase como “Durante
muitos anos, João viveu no Brasil”.
Ver um exemplo como Por quatro anos, João viveu no Brasil, mas não apenas por quatro anos.
Destaquemos que Haiman define tópico em termos de informação velha, já mencionada, bastante
afastada da definição de tópico em termos de “aboutness”. Para uma discussão detalhada dessa
interpretação, ver Charoles (2003, 2005) e Charolles e Vigier (2005).
Evidentemente não está excluída a possibilidade de que um circunstancial temporal anteposto possa
funcionar como verdadeiro tópico da oração, ou seja, como aquilo de que se fala, como no exemplo
seguinte, calcado em Charolles (2003, p. 22) Maria saiu pra dar uma volta na rua. Embaixo do prédio, um
homem andava de um lado para o outro, várias pessoas conversavam e as crianças jogavam bola. Essa
possibilidade é discutida para os locativos por Fischer (2003).
O termo enquadre (cadre) está sendo empregado aqui no sentido discursivo que lhe dá Charolles (1997,
p. 24), ou seja, para se referir a um bloco integrado e homogêneo de conteúdos proposicionais em
relação a um “critère spécifié” por um introdutor. Nesse sentido, se afasta um pouco da noção de
“frame” semântico.
Em certo sentido, esses elementos se aproximam dos “mental space builders” (FAUCONIER, 1984).
Em outras abordagens, eles são tratados como marcas de segmentação (BESTGEN; VONK, 2000) ou
articuladores textuais (KOCH, 2002).
Na sua função de introdução de um enquadre temporal, os sintagmas preposicionais de tempo se
aproximam do que Chafe (1984) denomina guidepost e apresentam uma função similar à que é atribuída
pelo autor às orações temporais antepostas e desligadas da sua núcleo.
No mesmo trabalho, com base em dados do francês, as autoras (MANN ; THOMPSON, 1988),
destacam ainda que a potencialidade enquadrativa dos circunstanciais temporais não é independente do
tipo de texto. Assim, essa função opera de forma diferenciada em textos narrativos e não narrativos. Os
textos narrativos, prototipicamente seqüenciais parecem ser incompatíveis com um escopo mais amplo
do circunstancial situado no início de frase, já que a própria progressão temporal dos eventos descritos
ultrapassa os limites temporais sinalizados pelo circunstancial.
Além das duas situações discutidas acima, presença de uma outra marca formal e mudança no tempo
verbal, Charolles (2005) destaca a presença de marcadores discursivos e a mudança de tópico como
sinalizadores de fechamento de um enquadre temporal. A introdução de novos referentes no discurso, ou
seja, novos participantes ligados aos eventos descritos, pode indicar para o ouvinte o início de um novo
bloco discursivo que escapa ao escopo do circunstancial. O poder delimitativo da mudança de tópico
discursivo parece ser, porém, menos decisivo do que a presença de marcas formais no discurso.
Palatalização e soância: interação entre variação e
teoria fonológica

Marilucia Barros de Oliveira – UFPA


INTRODUÇÃO
A palatalização já foi tema de vários estudos no português brasileiro (PB),
entretanto, até o momento, parece que nunca se propôs uma hierarquia de
aplicação para essa regra, embora se reconheça que ela se aplica mais
produtivamente a determinados fonemas do PB em detrimento de outros.
Quando se fala de palatalização em posição pré-vocálica no PB, geralmente
se faz alusão à que ocorre com as oclusivas alveolares /t/ e /d/. Há alguns
poucos comentários sobre a palatalização de /n/ na zona rural.80 Já a
palatalização de /l/ em posição pré-vocálica não é praticamente mencionada.
Não foi encontrado em língua portuguesa, até 2007,81 de acordo com o
levantamento bibliográfico realizado, nenhum estudo que tratasse
especificamente deste fenômeno. Entretanto, ele é um dos fenômenos
verificados na passagem do latim para o português. Constitui-se em uma
tendência no PB e em algumas línguas românicas como o espanhol, o italiano,
o romeno, o francês.
Segundo Coutinho (1976), Câmara Jr. (1985), Ilari (1992) e Tarallo (1994),
/l/ palatalizava diante de [j] no latim. Sendo assim, parece pertinente levantar
algumas questões acerca da palatalização de /l/, visto que se mostra
extremamente menos produtiva que a palatalização das oclusivas alveolares
mencionadas no PB.
Antes de proceder à descrição e à análise dos dados, cabe ressaltar que
tanto a Sociolingüística Quantitativa quanto a Fonologia apresentam naturezas
probabilísticas. Aquela apresenta tendências com base nos dados estatísticos
fornecidos pelos programas computacionais, relacionando fatores de natureza
lingüística com os de cunho social. Já a Fonologia aponta tendências levando
em consideração a possibilidade de determinados segmentos se submeterem a
alguns processos fonológicos. A fonologia pode indicar possibilidades de
ocorrência de uma determinada regra e apresentar algumas restrições que
impedem sua ocorrência. Talvez a baixa produtividade da palatalização de /l/
esteja ligada a algumas dessas restrições (OLIVEIRA, 2007).
Este artigo apresentará resultados oriundos de diferentes pesquisas sobre a
palatalização, a fim de ensaiar uma hierarquia de palatalização para o PB e de
mostrar a interação entre os resultados de pesquisas variacionistas e a teoria
fonológica. Aqui, será dada ênfase especial à palatalização de /l/, visto que se
mostrou menos produtiva do que a das outras coronais mencionadas neste
trabalho, o que levou à construção da hipótese de que a produtividade de
aplicação da referida regra tem relação com a qualidade dos segmentos nela
envolvidos.
O QUE DIZEM OS DADOS DE ITAITUBA-PA
Para o estudo da palatalização da lateral alveolar /l/ no falar de Itaituba82
foi utilizada a metodologia sociolingüística. Para o tratamento estatístico dos
dados foi utilizado o programa VARBRUL. Foram estabelecidos oito grupos
de fatores, quais sejam: contexto seguinte, contexto precedente, posição na
palavra, posição do acento, gênero, faixa etária e escolaridade. Ao todo, foram
analisados 4.989 dados. Neste artigo, serão apresentados apenas os resultados
referentes ao grupo de fatores contexto seguinte.83
Variável contexto seguinte
Foram quatro os grupos de fatores selecionados pelo programa de regra
variável. O contexto seguinte foi o terceiro grupo selecionado pelo IVARB,84
programa que realiza rodadas binárias. Os resultados referentes aos fatores
desse grupo estão dispostos na Tabela 1:
Tabela 1 – Variável contexto seguinte
Fatores Ocorrências P. Relativo Exemplos

i 371/472 .37

I 793/960 .52

j 81/83 .89
Input – .86 –

O input, medida global do índice de aplicação da regra, foi igual a .86. Isso
indica que essa regra apresenta alta probabilidade de aplicação no falar
itaitubense.
Os resultados estatísticos mostram que [j] favorece significativamente a
aplicação da regra com peso relativo igual a .89, o maior peso relativo obtido
na análise quantitativa. O contexto [I] também favorece a palatalização, mas
seu peso relativo, igual a .52, indica que a probabilidade de aplicação da regra é
bem inferior à verificada para [j]. Já o contexto [i] apresenta efeito
desfavorecedor. Esse fator recebeu peso igual a .37, o que indica que a
probabilidade de aplicação da regra é desfavorecida quando a variável se
encontra diante de [i].
A princípio, parecia que os dois primeiros fatores poderiam ser
amalgamados, pois era possível pensar que não importava se o segmento que
detonava a regra decorria ou não de uma derivação. Entretanto, alguns
argumentos se somam aos índices estatísticos obtidos e justificam a
manutenção dos fatores dispostos na Tabela 1.
Uma reavaliação lingüística dos segmentos que compunham esse grupo de
fatores mostrava que, tomando-se por base sua geometria, sua avaliação no
IVARB não forneceria dados relevantes quanto ao tipo de segmento que
estaria condicionando mais significativamente a palatalização de /l/. Como se
sabe, é o ponto de articulação que está diretamente envolvido na regra de
palatalização (HORA, 1990; BISOL; HORA, 1995; OLIVEIRA, 2007). Como
se pode ver, todos os segmentos que compunham o grupo de fatores contexto
seguinte apresentavam o mesmo traço de articulação oral, o [coronal]. Sendo
assim, os pesos relativos fornecidos pelo IVARB não poderiam,
aparentemente, apontar nenhuma informação relevante quanto a esse aspecto.
Já havia ficado claro que a palatalização de /l/ ocorria produtivamente, no
falar de Itaituba, diante de segmentos [+voc], [+ant] [-aberton]. Entretanto,
havia diferença entre os pesos relativos que cada segmento apresentava. Assim,
haveria um outro condicionador da regra que deveria ser avaliado nesse grupo
que não era o ponto de articulação. Se apresentavam a mesma geometria
pertinente à palatalização, o que estaria condicionando a significativa diferença
entre os resultados? É isso que se discutirá na seção seguinte.
Uma interpretação fonético-fonológica
Como se sabe, vogais e glides apresentam o mesmo conjunto de traços.85
Eles se constituem em duas categorias de segmentos que apresentam a mesma
geometria. A característica do glide só é atribuída a um determinado segmento
no processo de estruturação silábica (CLEMENTS, 1991; CLEMENTS;
HUME, 1995). Esse dado, somado aos pesos relativos referentes a cada fator,
dava indícios de que a sílaba deveria exercer algum tipo de interferência sobre
esses resultados, visto que a diferença entre eles se mostrava escalonar quando
se levava em consideração a posição que os segmentos ocupavam na sílaba
e/ou no tipo de sílaba. O segmento que se constituía C2 na sílaba que
apresentava a estrutura C1C2V ([j]) era o que mais favorecia a regra. Os dois
outros figuravam em sílabas que apresentavam o padrão CV, mas a posição do
segmento em relação ao acento e à posição da sílaba pareciam também ter
reflexos sobre a palatalização, pois o que se encontrava em sílaba átona final [I]
favorecia a regra enquanto o que não figurava nesse tipo de sílaba a inibia [i].
O alto índice de aplicação da regra de palatalização de /l/ diante de /j/
parecia estar diretamente relacionado à estrutura silábica. Esse contexto
favoreceu a palatalização de /l/ mais do que o contexto [i]. Conforme foi dito,
a diferença entre [i] e [j] tem relação com a posição que ocupam na sílaba, ou
seja, apresenta a mesma geometria. Assim, a diferença referente aos resultados
da palatalização de /l/ estaria ligada à configuração fonética dos segmentos
avaliados. Esta, por sua vez, decorria do tipo de sílaba em que se
encontravam.86
O segmento [j] apresenta soância inferior à de [i] (SILVEIRA, 1982;
WETZELS, 1995). Portanto, apresenta, também, mais contrição do que [i].
Clements e Hume (1995) afirmam que a diferença entre /i/ e /j/ é dada pela
estrutura silábica. Assim, a condição de [j], ou seja, o fato de apresentar maior
constrição é condição imposta por essa estrutura. Note-se que /j/ exige maior
fechamento do que /i/ na sua produção, segundo Silveira (1982), por causa da
posição que ocupa: C2.
Como [j] se localiza numa zona muito próxima da zona das consoantes,
pois apresenta maior constrição do que [i], devido ao esforço que exige na sua
produção, poder-se-ia situá-lo entre as líquidas e os vocóides altos,
argumentando-se em favor de uma gradiência de soância/constrição, em que
[j] ficaria em posição intermediária entre os graus dois e três da escala proposta
em Clements (1989):
Figura 1 – Escala de soância e constrição
Fonte: Clements (1989, p. 19)

Essa proposta tem justificativa também na alternância entre [j] [l] e []. São
segmentos muito próximos, por isso, alternam-se produtivamente. De outra
parte, os graus de soância/constrição apresentariam gradiência.
O fato de a palatalização ser condicionada por segmentos que estão
dispostos numa escala, em ordem decrescente, na direção /i/, /e/, quando se
tomam como exemplos dados do latim, porque a frontal alta apresenta mais
constrição do que /e/, explica a posição de /j/ antes de /i/ nessa escala.
Obtém-se, assim, em termos não absolutos, uma nova escala: [j i] no que se
refere à palatalização de /l/. Essa mesma seqüência pode ser construída
quando se tomam por base também os dados estatísticos, pois /j/ favoreceu a
palatalização mais do que /i/. Cabe reafirmar que a posição de /j/, nessa
escala, é definida pela estrutura silábica, pois sua constrição está ligada à
posição que ocupa na sílaba.
A mesma construção que foi feita para explicar os resultados referentes a
[i] e [j] pode ser retomada para explicar os resultados relativos a [I]. Note-se
que [I], a reduzida que ocorre em sílaba átona final no PB, apresenta
foneticamente mais constrição do que [i]. Sua condição também é dada pela
posição que ocupa num dado tipo de sílaba (CV), a átona final. Isso explica
seu peso relativo intermediário entre [i] e [j].
Esse dado traz à tona a necessidade de buscar na realização fonética
algumas explicações. Guy e Bisol (1991) assinalam a necessidade de considerar
multivalores de traços e o continuum entre eles, o que tem sido proposto
também por Barbosa (1997) e Albano (2001). Muitas vezes, só a recuperação
desse continuum é capaz de permitir que se entendam as variações que ocorrem
numa dada língua.
A interação entre informações empíricas e teóricas ajuda a entender
melhor os resultados referentes aos fatores do grupo contexto seguinte. A
princípio, parece que a análise estatística não tem nada a dizer sobre os
resultados a eles referentes, pois os segmentos que constituem esse grupo
apresentam a mesma geometria. A resposta, como se disse acima, não deve ser
buscada, nesse caso, apenas na fonologia, mas na fonética, pois, aqui, tem-se
uma limitação na teoria dos traços embora seja essa teoria, mais
especificamente a Geometria dos Traços, que ajuda a compreender esses
resultados por meio da escala de soância/constrição proposta em Clements
(1989).
Em termos categóricos [i] e [j] apresentam a mesma abertura e constrição.
Entretanto, quando se considera a gradiência no traço [abertura] desses
segmentos, percebe-se que há um continuum entre eles, ou seja, não têm
exatamente a mesma abertura. [j] é menos soante do que [i]; por isso, apresenta
mais constrição. Em termos fonéticos [I] também é menos soante do que [i].
As vogais, quando se encontram em contextos enfraquecidos, exigem mais
energia articulatória (CAGLIARI, 1974). Apresentam, assim, menos abertura.
Bisol (2002) assinala que uma vogal sem acento possui menos soância do que
uma vogal com acento. Se [j I] são inacentuados, obviamente, apresentam
menos soância do que [i], e assim, menor abertura também e mais constrição.
Ressalta-se, novamente, que a condição desses segmentos é dada pela estrutura
silábica e que glides como [j] são derivados de vogais altas por silabação.87
Cagliari (1974) relaciona a palatalização à energia articulatória. Bhat (1978),
autor que estudou a palatalização em 120 dialetos, assinala que a palatalização
das apicais está diretamente relacionada a segmentos altos, como [i j], e a
posições inacentuadas. Cabe relembrar que [j] derivou de um segmento
vocálico que ocupava posição marginal.
Assim, para usar as palavras de Guy e Bisol (1991), resultados que,
aparentemente, parecem difíceis de serem coadunados à teoria dos traços,
tornam-se claros quando se leva em consideração a escala contínua de valores,
a gradiência desses valores. De outra parte, como dizem os autores (GUY;
BISOL, 1991, p. 129), “O princípio da hierarquia sonora presta coerência à
abordagem variacionista. E os dados o confirmam”.88
Para finalizar, cabe assinalar que os resultados estatísticos revelam que
ocorreu produtiva palatalização diante de [j] e de [I], segmentos que
apresentam alta constrição dentre os contextos fonéticos avaliados. Sendo
assim, parece razoável relacionar a produtiva palatalização de /l/ ao grau de
constrição dos segmentos que se constituem gatilho dessa regra. Para
fortalecer esse ponto de vista, apresentam-se, a seguir, alguns resultados
oriundos de pesquisa realizada em nove Atlas Lingüísticos e de outros estudos
sobre a palatalização.
O QUE DIZEM OS ATLAS LINGÜÍSTICOS
Os atlas consultados para esta pesquisa foram: Atlas Prévio dos Falares
Baianos (1963), Esboço de Atlas Lingüístico para Minas Gerais (1977), Atlas
Lingüístico de Sergipe (1987), que caracterizam os falares baianos, segundo
Nascentes (1953), Atlas Lingüístico da Paraíba (1985), Atlas Lingüístico do Paraná
(1994), Atlas Etnolingüístico da Região Sul (2002), Atlas Lingüístico Sonoro do Pará
(2003), Atlas Lingüístico do Pará (em andamento) e Atlas Lingüístico de Sergipe II
(2005). O levantamento bibliográfico sobre a palatalização, a partir dos dados
dos Atlas Lingüísticos, revelou que a palatalização ocorre mais produtivamente
com as oclusivas alveolares /t d/, aplicando-se mais freqüentemente à oclusiva
alveolar surda. Esses documentos revelaram também a ocorrência de
palatalização da nasal alveolar /n/.
Excetuando-se os Atlas Paraenses (ALiPA e ALiSPA), em que a freqüência
da variante palatal [] superou significativamente a ocorrência da variante
alveolar [l] para /l/, raríssimos registros de palatalização com a lateral alveolar
/l/ foram documentados. Quando ocorreram, restringiram-se praticamente à
forma família.89
A palatalização de /l/ só ocorre no APFB nas formas cálice e malina,
respectivamente uma e duas vezes; e no ALERS, no vocábulo família, de forma
bastante produtiva. Nos demais Atlas não há registro de ocorrência de
palatalização de /l/. Isso sugere que um segmento como /l/, que apresenta
menos constrição que /t d n/, parece ser menos alcançado pela palatalização.
O QUE DIZEM ALGUNS ESTUDOS SOBRE A PALATALIZAÇÃO DE
OUTROS SEGMENTOS
Diversas pesquisas sobre a palatalização apontam o glide, contexto que
apresenta alta constrição, como altamente favorecedor da palatalização. Isto
pode ser confirmado em Hora (1990), Santos (1997), Pagotto (2003), Oliveira
(2007), dentre outros. Os resultados de pesquisas sobre a palatalização no
Brasil revelam também que a sonoridade exerce atuação sobre o fenômeno.
Veja-se o que dizem algumas pesquisas sobre o tema.
Cagliari (1974), ao estudar a palatalização em língua portuguesa, atestou
que essa regra é mais produtiva com /t/ do que com /d/. Segundo o autor,
pode ocorrer palatalização de /t/ e de /d/ ou apenas de /t/. Entretanto,
nunca se tem a palatalização só da oclusiva alveolar sonora. Para ele, isso indica
que a sonoridade se constitui em uma espécie de resistência à palatalização.
Mota (1995) também estudou a palatalização das oclusivas alveolares. Ela
afirma que a oclusiva alveolar surda /t/ sofre a aplicação da regra mais do que
sua homorgânica sonora /d/.
Santos (1997) estudou a palatalização na fala de Maceió, capital onde a
palatalização se encontra em estágio pouco avançado. A autora informa que
não encontrou nenhum caso de aplicação da regra com a oclusiva dental
sonora /d/. Acrescenta que, diferentemente, encontrou 6, 5% de palatalização
da oclusiva dental surda /t/.
Pagotto (2003) também faz referência ao fato de a oclusiva alveolar surda
/t/ palatalizar mais do que sua correspondente sonora /d/ na fala do Rio
Grande do Sul. A mesma informação é corroborada por Vieira (s/d) para a
fala de Curitiba e do Paraná.
Esse obstáculo parece estender-se não apenas aos segmentos alveolares,
pois Rollemberg (1994), ao tratar da palatalização das velares /k/ e /g/,
assinala que ocorreram mais casos de palatalização com a velar surda (59
ocorrências) do que com sua homorgânica sonora (13 ocorrências).
Parece que a sonoridade atua como uma espécie de desacelerador da
aplicação da regra de palatalização. Como /l/, em língua portuguesa, é um
segmento sonoro, a palatalização é freada. Talvez fosse possível até se
estabelecer uma hierarquia de ocorrência de palatalização para /t d l/ no PB.
Eles ficariam assim dispostos, quando se tomam por base as pesquisas aqui
consultadas:
(01)
/t/ /d/ /l/
De acordo com os resultados das pesquisas sobre a palatalização no Brasil,
parece que /t/ palataliza mais que /d/ e esse, por sua vez, mais que /l/. Há,
entretanto, uma outra consideração a fazer sobre essa escala. Ela diz respeito à
palatalização de /n/.
Conforme já foi dito anteriormente, tomando-se por base os estudos
dialetológicos, /n/ parece submeter-se à palatalização mais do que /l/ (Atlas
Lingüísticos). Como ambos são sonoros em língua portuguesa, talvez seja
necessário um outro critério para construir essa gradiência de palatalização.
Além da sonoridade, outro argumento que pode ser usado para explicar a
baixa produtividade da palatalização de /l/ em Língua Portuguesa é a escala de
soância/constrição, conforme se vê abaixo:
(02)
OBSTRUINTES > NASAIS > LÍQUIDAS > GLIDES > VOGAIS
De acordo com a classificação acima, os segmentos menos soantes são as
obstruintes e os mais soantes, as vogais. A aplicação da palatalização (PAL)
teria relação com essa escala de soância/constrição, isto é, essa regra se
aplicaria mais livremente aos segmentos menos soantes, mais constritos, como
as obstruintes, passando depois à nasal e, finalmente, alcançando a líquida. Ter-
se-ia uma nova escala, tomando-se como base a escala de soância/constrição:
Figura 2 – Incidência de palatalização de acordo com graus de soância

Note-se, também, que a escala de soância/constrição parece fornecer uma


pista em relação à atuação da sonoridade. Os dois menos afetados pela
palatalização, /l/ e /n/, são sonoros em Língua Portuguesa. Por outro lado, no
par /t/ /d/, é o segmento surdo que mais palataliza. Uma forma para se
explicar a diferença de produtividade de palatalização entre /t/ e /d/ pode ser
buscada também na constrição. Se a energia articulatória está diretamente
ligada à palatalização, então /t/ palataliza mais do que /d/ porque as
consoantes surdas são consideradas mais fortes do que as sonoras.
A escala que tem como base a soância/constrição parece ser a mais
adequada para explicar a restrição da palatalização, pois /d/, apesar de sonoro,
submete-se mais à palatalização do que /n/ e /l/, de acordo com a pesquisa
bibliográfica realizada.
EM BUSCA DE INTERAÇÃO ENTRE PALATALIZAÇÃO E
CONSTRIÇÃO
A partir dos resultados apresentados, pode-se inferir que regra de
palatalização parece estar diretamente relacionada à constrição, isto é, aquela se
aplica mais freqüentemente a segmentos que apresentam alta constrição.
Clements (1989) apresenta as consoantes dentais, alveolares, palatais e
palato-alveolares e as vogais frontais como integrantes de uma mesma classe
natural de segmentos. Isto significa que esses segmentos podem funcionar
conjuntamente em regras fonológicas. Por exemplo, /t/, /d/, /n/, /l/
poderiam funcionar em regras de palatalização. Chama a atenção o fato de
alguns segmentos no PB palatalizarem mais do que outros: /t/ e /d/
palatalizam mais do que /l/. Talvez isso esteja ligado à relação dos segmentos
consonantais e vocálicos que concorrem para a palatalização.
Note-se que, em língua portuguesa, são os segmentos consonantais
(obstruintes) e vocálicos (vocóide alto), ou seja, os que apresentam mais
fechamento dessas classes, que mais favorecem a aplicação da regra. Parece
que a palatalização está mais propensa a acontecer quando se tem segmentos
consonantais e vocálicos que apresentam menor abertura, conforme se pode
visualizar na Figura 3:
Figura 3 – Relação entre soância/estreitamento e aplicação da regra no
PB
A Figura 3 ajuda a entender melhor a tese apresentada. Note-se que, ao se
traçar uma linha transversal nessa escala, dispondo-se (+) de um lado e (-) de
outro, tem-se o desenho de um estreitamento em direção aos vocóides e
consoantes menos soantes. Cabe lembrar que as classes que apresentam maior
número de valores positivos apresentam também maior soância e menor
constrição, como a própria geometria da Figura 3 sugere. São os segmentos
que se localizam nos pontos extremos da escala de soância (pontos indicados
pela linha reta), dentre vocóides (grau 3) e consoantes (grau o), em direção ao
estreitamento, que mais se combinam para a palatalização.
Parece que vogais e consoantes que apresentam alta constrição têm maior
probabilidade de funcionarem juntas para aplicação da palatalização. São
segmentos do português que apresentam alta constrição, como /t d/, que se
combinam de maneira mais produtiva para a aplicação dessa regra. Isso reforça
o fato de se atrelar a palatalização à energia articulatória, como fez Bhat
(1978), Cagliari (1974).90 Também parece esclarecer, de certa forma, o fato de
/t d/ palatalizarem mais do que /n/ e este mais do que /l/ em língua
portuguesa, de acordo com a bibliografia consultada. Note-se que o segmento
/n/ apresenta menos constrição do que /t, d/ e mais do que /l/.91
Outra evidência dessa relação é o fato de /i/ favorecer mais a palatalização
do que /e/. De acordo com Camara Jr. (1985), Ilari (1992) e Tarallo (1994),
ocorria, no latim, palatalização diante de [i j e]. Entretanto, foi sempre no
contexto de [i j] que houve a palatalização mais produtiva. Apesar de [e i j]
serem frontais, [i j] apresentam menor abertura do que /e/.
Assim, é possível se pensar que dentre as coronais que se palatalizam são,
provavelmente, pelo menos para o PB, os segmentos consonantais que
apresentam maior constrição que irão se submeter mais freqüentemente à
palatalização.
Cabe completar que os resultados das pesquisas consultadas e a
interpretação fonológica construída, além de indicarem que os segmentos
consonantais e vocálicos que apresentam maior número de valores negativos
na escala de soância são os que se combinam mais produtivamente para a
aplicação da regra no PB, apontam a interação entre teoria variacionista e
teoria fonológica.
CONCLUINDO COM ALGUMAS QUESTÕES EM ABERTO
Este artigo não é um estudo exaustivo da palatalização. Seus resultados
devem ser considerados como preliminares e não definitivos, visto que a
palatalização de /l/ não foi praticamente estudada no PB. Muitas outras
questões relacionadas ao fenômeno ainda precisam ser elucidadas. Autores
como Hall (1997), Hora (1990), Calabrese (1996), Hume (1992), Lahiri e Evers
(1991) e Pagotto (2003) ajudam a refletir sobre algumas questões ainda abertas
e polêmicas a respeito do fenômeno. Só uma pesquisa mais ampla ou outras
pesquisas poderão responder a algumas indagações que se manifestaram
durante a construção desta pesquisa e que não puderam ser respondidas, tais
como:
a) Apresentará a palatalização das coronais pré-vocálicas em outras línguas também relação com a
constrição, conforme se vem suspeitando em relação à palatalização do PB?
b) Por que o Estado do Pará, diferentemente de outros Estados brasileiros, inclusive da região
Norte, apresenta alto índice de palatalização de /l/?92
c) Em que medida dados mais recentes comprovariam mais ocorrências de palatalização de /l/ em
outros espaços brasileiros que não diante do glide (em palavras como família)?93
Para finalizar, vale dizer que pouco ainda se sabe sobre a palatalização da
lateral alveolar/l/ no PB. Cabe, assim, a implementação de novos estudos
sobre o fenômeno, a fim de que se possa chegar aos fatores que norteiam a
palatalização desse fonema, bem como de outros fonemas que também se
palatalizam, buscando indicar os fatores gerais que norteiam o fenômeno e
aqueles que atuam na palatalização de segmentos específicos do PB. Assim,
talvez se possa construir de forma mais segura um quadro da realidade
lingüística do PB no que se refere à palatalização das coronais em posição pré-
vocálica.
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NOTAS
Há alguns poucos registros e menções também sobre a palatalização de /k/ e /g/ no português. Essa
variação pode ser encontrada no Atlas Lingüístico de Sergipe (ALS) e em Rollemberg (1994). A autora
relaciona essa variação ao traço [-anterior], como faz Bhat (1978).
Parece que o primeiro estudo específico da palatalização de /l/ encontra-se em Oliveira (2007).
Nessa cidade foram analisados, ao todo, dados de fala de 36 moradores de Itaituba; homens e mulheres
estratificados socialmente por sexo, idade e escolaridade.
Para detalhes sobre os resultados referentes aos demais grupos de fatores, consultar Oliveira (2007).
Os resultados apresentados em Oliveira (2007) revelam que os grupos de fatores sociais foram
considerados mais significativos do que os grupos de fatores lingüísticos. Isso talvez indique por que a
palatalização em Itaituba é tão acentuada, diferente do que se percebe em outros espaços brasileiros. A
alta produtividade da regra deve estar ligada a fatores dialetais e sociais.
Aqui entendido como processo. Corresponde a glide, neste trabalho, [j], quando discutido em relação à
estrutura silábica.
“This suggests that we look for evidence that degree of structure in vocoides plays a role in
syllabification just as it does in consoants” (CLEMENTS, 1991, p. 19).
O português não possui glides no sistema subjacente (cf. BISOL, 2002). Vanderweide (2005) assinala que
os glides apresentam maior abertura do que as líquidas, o que os localizaria entre líquidas e vogais.
Guy e Bisol (1991) assinalam que a escala de soância tem favorecido a compreensão de vários fenômenos
fonológicos. O modelo da fonologia de geometria de traços (FGT), proposto por Clements e Hume
(1995), constitui-se em um modelo que se baseia na constrição, dada sua centralidade na comunicação.
Assim, a organização dos traços de hierarquia tem como suporte a constrição do trato oral. Posto isso,
parece razoável que a escala de soância, escala por meio da qual se recupera a constrição, seja usada com
sucesso na compreensão de vários fenômenos fonético-fonológicos como a palatalização, por exemplo.
Foram encontradas ocorrências de palatalização com as oclusivas velares /k/ e /g/ em alguns desses
Atlas.
A relação entre palatalização e energia articulatória (constrição) já foi sugerida na dissertação de mestrado
de Cagliari (1974). Talvez sua formulação não tenha sido mais bem desenvolvida pela falta de
argumentos teóricos, hoje encontrados na Fonologia de Geometria de Traços, modelo que se baseia na
constrição.
Hall (1997), ao tratar das propriedades das coronais, assinala que /t, d, n/ são mais facilmente
submetidos à assimilação de traços de lugar.
A alta produtividade de palatalização de /l/ no falar de Itaituba parece estar ligada à superação de
restrições devido à atuação de fatores de natureza social e espacial (OLIVEIRA, 2007).
Atualmente, há dois projetos na Universidade Federal do Pará (UFPA) que têm como objetivo estudar a
palatalização de /l/. Um deles prevê estudá-la a partir de dados do estado do Pará e dos dados das
capitais da região Norte. O outro tem como finalidade descrever a palatalização de /l/ a partir da fala das
capitais do Brasil. Esses projetos estão vinculados ao Atlas Lingüístico do Brasil (ALiB). Talvez a pesquisa a
dados mais recentes, que englobam diferentes níveis de escolaridade e idade e oriundos da aplicação de
diferentes instrumentos de coleta de dados, possa apresentar resultados diferentes dos encontrados nos
Atlas brasileiros citados neste trabalho.
O deslocamento das marcas flexionais nominais e
verbais em português, como conseqüência da
mudança do paradigma prosódico: o exemplo do
Francês

Pierre Guisan – UFRJ


A ESCRITA: UMA KOINÉ E UMA MITIFICAÇÃO DA LÍNGUA
Fundamentaremos a nossa demonstração na comparação entre fatos,
estruturas e mudanças evidenciadas pela história da língua francesa, com
fenômenos paralelos ou similares observados na língua portuguesa, em
algumas das suas variações e mudanças, o que deve contribuir para a sua
explicação.
A língua francesa, para quem aborda a sua aprendizagem como língua
estrangeira, apresenta uma particularidade que dificulta consideravelmente os
primeiros passos do discente; com efeito, a escrita parece extremamente
afastada da pronúncia da língua falada real, em particular com um número
elevado de letras ou de grupos de letras que não têm contrapartida fonética.
Este obstáculo encontrado nas aprendizagens simultâneas da língua oral e da
modalidade escrita – tal como geralmente é o caso na maioria das instituições
ou cursos de línguas – também representa uma dificuldade na alfabetização
das próprias crianças de língua materna francesa.
A distância entre a língua real e a sua modalidade escrita já foi objeto de
muitos estudos, e não é própria da língua francesa. Em todas as línguas, a
modalidade escrita que se constituiu e se consolidou, sobretudo, na época da
difusão da imprensa e do livro como mercadoria e bem individual, tornou-se
de fato uma koiné adotada como modelo de variante “correta” da língua,
distinguindo social e ideologicamente as elites do “povo”. Mas esta é uma
outra história, e aqui pretendemos evidenciar um processo que aparentemente
se manifestou com mais força na língua francesa do que em muitas outras
línguas nas suas relações com as suas modalidades escritas.
Com efeito, a grande quantidade de letras “mudas”, ou seja, sem
contrapartida fonética, atesta um estado anterior da língua e,
conseqüentemente, mudanças pelas quais a língua passou, após a consolidação
de um código escrito convencionado. Pode parecer curioso o fato de a
modalidade escrita não ter cumprido uma de suas funções habituais, a de
“fixar” uma norma dita culta da língua falada. Para nós, é mais uma prova de
que a modalidade escrita não foi constituída a partir de uma variante ou dialeto
em especial, mas foi forjada pelos editores, livreiros e escritores, numa
preocupação de difusão geográfica mais ampla dessa nova mercadoria que
surgiu no século XVI: o livro. Logo, tratava se de uma koiné escrita, suscetível
de ser compreendida por um relativamente vasto público de letrados, que, no
entanto, falava variantes ou línguas diferentes, geralmente não inteligíveis entre
elas. A rápida adoção de tal koiné se deu precisamente por não ser língua nativa
de ninguém, logo, sem concorrente.
A REDUÇÃO SILÁBICA E A PERDA DA MARCA MORFOLÓGICA “À
DIREITA”
Entretanto, esta koiné dos editores foi evidentemente construída a partir
das variantes faladas na época, e obviamente as letras e grupos de letras
“mudas” tiveram uma contrapartida fonética, e não foram o produto de uma
fantasia gráfica qualquer. Assim sendo, devemos admitir que a língua francesa,
nas suas diversas variantes, sofreu um processo de redução fonética, de
encurtamento das palavras e dos sintagmas. Pretendemos indicar aqui de que
forma se deu esta mudança, e como esta mesma mudança está ocorrendo na
língua portuguesa.
A redução silábica nas línguas românicas obedece a vários mecanismos que
foram detalhadamente descritos pelos pesquisadores em lingüística histórica a
partir do final do século XIX. O francês aparece como a língua em que tal
processo se realizou com a maior amplitude.94 Com efeito, nenhuma outra
língua românica apresenta tantas palavras monossilábicas, e podemos até
constatar que uma sílaba pode “conter” duas ou mais palavras.95 Exemplo
disso pode ser dado com a frase monossilábica seguinte:
/∫tεm/= je t’aime = eu te amo
Antecipadamente, podemos desde já notar que a marca do sujeito
(pessoal), em francês falado, fica na frente da frase-sintagma, no caso: /∫/. As
inúmeras elisões, liaisons e ditongos testemunham esta tendência à forte
redução silábica. Mas vamos logo à breve descrição histórica das marcas
flexionais do francês “real” tomado aqui como exemplo que, como veremos,
pode ter valor de paradigma.
No que diz respeito à marca do sujeito nos verbos, os textos antigos, que,
numa certa medida, podem ser considerados como bastante confiáveis para
retratarmos as diferentes etapas da língua oral, tínhamos os sistema seguinte:

chante /∫ãtə/
chantes /∫ãts/
chantet /∫ãtət/
chantons /∫ãtəns/
chantez /∫ãtez/
chantent /∫ãtənt/

onde, portanto, todas as letras eram pronunciadas. Constata-se, então, que o


francês aparentemente ainda não se havia distanciado das línguas românicas
que licenciavam o sujeito nulo. Não discutiremos aqui os contextos de
licenciamento ou de resistência que autorizavam o sujeito nulo, o que deveria
ser objeto de um estudo empírico que, pelo que sabemos, ainda ficou de ser
empreendido.
O RECURSO DA MARCA “À ESQUERDA”
A nossa hipótese é que deveríamos levar em conta a progressiva perda de
massa sonora da sílaba pós-tônica, que culminou com o seu total apagamento
entre os séculos XV e XVI, que fez com que a saliência fônica da marca do
sujeito ficasse cada vez menos distinta. Entendemos, logo, que o caráter
paroxítono do francês – e com a conseqüente redução da sílaba pós-tônica –
deveria ser considerado como um fator essencial no fim do licenciamento do
sujeito nulo, ou seja, no preenchimento obrigatório da marca do sujeito antes
do verbo. Em outras palavras, o deslocamento “para a esquerda” da marca da
pessoa seria uma conseqüência posterior da mudança prosódica do
protofrancês – ou do latim tardio da Gália – que substitui a clássica alternância
de vogais breves/vogais longas do latim por um sistema paradigmático que
introduz a tonicidade.
Outra conseqüência notável desta passagem para um sistema non pro-drop é
a perda de autonomia dos antigos pronomes je e tu, que se tornaram meros
clíticos, enquanto em português ainda conservaram o seu status pleno de
pronome, como se vê, por exemplo, na frase: “Eu?”. Ao contrário, a pergunta
equivalente em francês só pode ser: “Moi?”. Dito de outra maneira,
poderíamos até considerar que as desinências flexionais finais dos verbos em
francês foram substituídas, no que diz respeito à marca pessoal ou do sujeito,
por uma marca flexional anteposta. O novo sistema resultaria, assim, numa
conjugação flexionada da forma seguinte:
je /∫ãt/
tu /∫ãt
il /∫ãt/
on /∫ãt/
vous /∫ãte/
ils /∫ãt/
Duas observações cabem aqui. Primeiramente, nota-se a substituição do
pronome nous – que pode ser clítico – pela marca on, que realmente é
absolutamente hegemônica como marcador da pessoa na língua oral. O
mesmo fenômeno ocorre em português falado quando a gente vem cada vez
mais substituir nós na língua falada, de modo que a supressão da desinência
flexional não evidencia o que poderia ser considerado como “erro gramatical”.
Em segundo lugar, percebemos a redução quase completa da flexão final,
com a exceção da dita segunda pessoa do plural. Podemos reparar que o
português falado no Brasil anda nitidamente pelo mesmo caminho. Temos, até,
nós canta, ao lado de a gente canta.
Como já mencionei há pouco, formula-se a hipótese de um fator
condicionante que diz respeito às mudanças prosódicas, ou supra-segmentais,
sofridas pelas línguas românicas nos primórdios da sua história e da sua gênese
que consistiram em trocar os traços pertinentes de duração pelos de acento.
A MARCA NOMINAL DE GÊNERO E DE NÚMERO
Para maior sustentação a tal afirmação, deixamos agora de lado a questão
da flexão verbal pessoal e do preenchimento do sujeito, para abordar a questão
da flexão nominal, com as marcas de gênero de número, que nos parece
reforçar a hipótese do vínculo causal entre mudança prosódica e deslocamento
da marca flexional para frente. De novo, a língua francesa, nas suas mudanças
e nas suas realizações modernas, pode nos fornecer um modelo paradigmático.
Com efeito, ao contrário do que se aprende nos cursos tradicionais de
língua francesa, o plural dos nomes e adjetivos não se forma acrescentando um
“s” no final das palavras, a não ser na modalidade escrita da língua. Na sua
forma oral, a marca do plural reside no determinante – geralmente o artigo –
que antecede o nome e, no caso dos nomes ou adjetivos iniciados por uma
vogal, pela adjunção do fonema /z/ anteposto. Tal é a regra geral. Assim
sendo, o plural de “image” será /zimaj/, embora “images” na convenção
escrita. Evidentemente, o nome será sempre antecedido de um determinante
tal como um artigo (“les”, “des”), ou um numeral (“trois”, “dix”), por
exemplo. A gramática didático-normativa tradicional fala de um fenômeno
chamada de “liaison” (“ligação”). Porém, o fenômeno assim descrito decorre
de uma perspectiva lingüisticamente equivocada, na nossa opinião, e que,
novamente, enfoca a escrita como principal modalidade legítima da língua, na
qual, realmente, a marca do plural aparece posposta.
Toda criança, ao adquirir o francês como língua materna, dirá, por
exemplo, “quatre z’images”, sendo geralmente devidamente corrigida pelos
adultos, embora tal “erro” comprove a regra internalizada do preenchimento
fônico da marca de número antecedente ao nome. Aliás, numa conversa
informal, muitos adultos cultos cometerão o mesmo deslize. A modalidade
escrita, neste caso, se impõe como norma sociolingüística estigmatizante.
Conclui-se, assim, que a famosa “liaison” não corresponde a nenhuma
realidade lingüística, e que estabelece uma confusão entre uma relíquia gráfica
e um paradigma novo na marcação oral do plural, caracterizado pelo
deslocamento “à esquerda”.
Por sinal, vale a pena reparar aqui que o mesmo paradigma da marca de
número se observa na conjugação verbal em francês. Com efeito, a realização
fonética /z/, marca do plural, se intercala entre o sujeito pleno – dito
pronome pessoal clítico – e o núcleo central do verbo, quando este é iniciado
com uma vogal:
nous aimons = /nuzεmõ/
vous aimez = /vuzεme/
ils aiment = /izεm/
Há de se observar que, neste caso, a regularização do paradigma da
marcação do plural parece entrar em oposição com outra regularização, a da
redução da flexão verbal com o apagamento da pós-tônica portadora da marca
do sujeito – da pessoa – que contribui para a emergência do clítico “on”
(equivalente a “a gente”):
on aime = /õnεm/
A generalização das marcas tanto de número como do sujeito-pessoa
deveria permitir a predição do aparecimento da forma:
/õzεm/*
forma cujas ocorrências ainda ficaram de ser investigadas.
A mesma regra vale naturalmente para os adjetivos, embora outros
parâmetros atuem, tais como os relacionados com o lugar ocupado pelos
elementos dentro do sintagma. Entretanto, podemos ver como o paradigma
novo da marca numeral age no exemplo
“des hommes érudits” = /dεzómzerydi/
A comparar com:
uns homens educados = /zõmezeducado/
Até o filólogo Gladstone Chaves de Melo, na sua obra A língua do Brasil,
cita a ocorrência seguinte: “Ques moleque indemunhado!”, na qual a única marca
do número se realiza no exclamativo invariável, de acordo com a gramática
normativa. Na nossa opinião, não se trata tanto da aplicação da marca do
plural a uma palavra em princípio invariável, mas da tendência à atuação de um
parâmetro novo que desloca a marca realizada para a frente do sintagma.
SÍNTESE
Concluindo, podemos constatar:
a) Primeiramente, que o movimento que desloca a realização fônica “para a
esquerda” diz respeito tanto às marcas de número – e de gênero, por sinal –
como às marcas de sujeito – pessoa;
b) em segundo lugar, verificamos que este movimento coincide com o
enfraquecimento fônico das sílabas responsáveis por essas marcas;
c) enfim, notamos que o enfraquecimento se deu por conta da mudança do
paradigma prosódico, ocorrida nas variantes de latim tardio das quais se
originaram as línguas românicas. No caso, a mudança transferiu as marcas
prosódicas pertinentes da duração para a intensidade – a tonicidade – das
sílabas que compõem o sintagma.
A MUDANÇA DO PARADIGMA PROSÓDICO
Nesse ponto é que parece ter acontecido uma mudança fundamental do
sistema distintivo na história das línguas latinas tardias: a passagem da
alternância entre sílabas longas e breves, para um sistema de alternância entre
sílabas tônicas e átonas. Se algumas palavras latinas se distinguiam unicamente
pela diferença de duração da vogal – o exemplo clássico é pōpŭlŭs versus
pǒpūlŭs, respectivamente o povo e o choupo – a evolução conduziu a um sistema
que era distintivo pela intensidade, e não pela duração, como no latim tardio da
Lusitânia, ou seja, no português que diferencia as palavras sábia, sabia e sabiá.
De modo geral, podemos admitir que havia um aspecto disfuncional
crescente num sistema que atribuía as marcas de gênero, número e caso à
última sílaba, pós-tônica, logo, com saliência fônica diminuta. Assim, pode-se
explicar o surgimento de marcas na frente, ou seja, à esquerda, como os
artigos ou os pronomes sujeitos, num primeiro tempo. A etapa posterior
consistiria na cliticização dessas mesmas marcas, em parte ocultada pela grafia
tradicional que preserva o seu aspecto de palavra autônoma.
OS CONTATOS LINGÜÍSTICOS
Com esta proposta de explicação, a pergunta que fica naturalmente é: qual
é a causa dessa mudança do paradigma prosódico? O curioso é a tendência de
todas as línguas neolatinas de preencher o pronome sujeito, assim como da
obrigatoriedade de um determinante que anteceda os nomes, geralmente um
artigo. Logo, parece que a mudança de paradigma prosódica é geral, de modo
que a investigação dos fatores que provocaram tal mudança deveria
provavelmente incluir a questão dos contatos lingüísticos. Para sustentar esta
proposta, podemos observar que o francês medieval conhecia a regra
germânica dita do V2, ou seja, do verbo obrigatoriamente em segunda posição.
O respeito dessa regra certamente acelerou o surgimento do pronome sujeito
preenchido, como marca “à esquerda” da pessoa verbal.
De qualquer modo, constatamos a generalização de uma deriva comum a
todas as línguas românicas que forçou a mudança do paradigma prosódico,
resultando no deslocamento “à esquerda” das marcas de sujeito, de número e
de gênero e o seu preenchimento fonético. O motivo que deslanchou tanto a
mudança de paradigma prosódico, como o movimento de deslocamento, deve
certamente ser investigado do lado dos contatos lingüísticos e dos seus efeitos.
Cabe ainda uma última observação, que torna bastante relativa a força
explicativa dos mecanismos de tipo funcionalista, às quais apelamos na nossa
tentativa de elucidar o movimento de deslocamento descrito acima. Com
efeito, a manutenção de marcas flexionais disfuncionais pode se estender por
mais de mil anos, como foi de fato o caso da declinação nominal do francês
medieval, que a redução fonética tornava absolutamente confusa e que não
podia dispensar a ordem sintática para assinar o caso – função sintática. De
modo que, sem que isso invalide a explicação, há de sublinhar que a mudança
resultante pode ser bastante lenta.
REFERÊNCIAS
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POSNER, Rebecca. The romance languages. Cambridge: Cambridge University
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WILLIAM, Edwin B. Do latim ao português: fonologia e morfologia históricas da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1961.
NOTAS
Observa-se a redução monossilábica de aqua(m) > eau (/o/), de adjuda(m)>aide (/εd/), ou ainda
augustu(m)>août (/ut/), respectivamente em português água, ajuda, agosto.
Não discutiremos aqui o conceito de palavra, que nos aparece como sendo uma noção pertinente apenas
para a modalidade escrita. Sintagmas, semantemas ou morfemas constituem certamente uma
nomenclatura mais adaptada à descrição da língua nas suas modalidades orais. Para simplificar, diremos
que adotamos aqui o espaço tipográfico – inventado no decorrer da Idade Média – como discriminador
das palavras.
A fala popular do Estado do Rio de Janeiro numa
perspectiva geo-sociolingüística

Silvia Figueiredo Brandão – UFRJ


Embora no âmbito do Português do Brasil já haja um número bastante
significativo de pesquisas sobre variação, ainda pouco se conhece sobre a fala
popular da quase totalidade do estado do Rio de Janeiro, que, de acordo com a
proposta de Nascentes (1953) de divisão do Brasil em áreas lingüísticas,
constitui, juntamente com parte de Minas Gerais e com o Espírito Santo, o
Subfalar Fluminense.
Coexistem no Estado diferentes realidades socioeconômicoculturais e,
naturalmente, diversificadas realidades lingüísticas. Na sua zona central
litorânea, situa-se a paradigmática cidade do Rio de Janeiro, ex-capital do país,
ao mesmo tempo irradiadora e aglutinadora de padrões de toda ordem. Nas
demais zonas, encontram-se comunidades litorâneas e interioranas, de
pequeno e médio portes, de perfil rural ou semiurbano. Conhece-se bem o
falar carioca culto e o popular, largamente focalizados, desde os últimos anos
70, pelos Projetos NURC-RJ e PEUL. O mesmo, no entanto, não se pode
dizer da fala das demais regiões, que só mais recentemente têm sido objeto de
estudos lingüísticos sistemáticos.
Diante desse quadro, é natural que se busque verificar, entre outros
aspectos: a) se marcas consideradas tipicamente cariocas se mantêm, no
restante do Estado, com os mesmos índices de produtividade; b) se os limites
dessas marcas se circunscrevem à Região Metropolitana ou se espraiam por
outras áreas; c) quais as implicações (ou motivações) estruturais e
extralingüísticas das variações observadas fora da capital.
Excetuando-se a Região Metropolitana, apenas duas áreas foram
contempladas com estudos lingüísticos: a Região Serrana, que conta com a
análise sobre o -S em coda silábica realizado no Município de Cordeiro por
Gryner e Macedo (2000); as Regiões Norte e Noroeste que dispõem de
pesquisas sociolingüísticas efetuadas com base no Corpus APERJ. No que se
refere à Região Metropolitana, o Atlas Fonético do entorno da Baía de Guanabara
(LIMA, 2006) fornece evidências sobre o espraiamento das tendências
observadas na fala carioca nas comunidades de Nova Iguaçu, Duque de
Caxias, Mauá e Itaboraí. Quanto a outras áreas do Estado, estudos ora em
andamento poderão fornecer, em breve, dados mais concretos para a
formulação de hipóteses e, conseqüentemente, elementos para a elaboração de
novos estudos mais aprofundados: estão em andamento o MicroAtlas Fonético do
Estado do Rio de Janeiro e as recolhas para o ALiB, o Atlas Lingüístico do Brasil.
O FOCO DESTE TEXTO
Desde a década de 1990, pesquisadores vinculados ao Projeto do Atlas
Etnolingüístico dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro – APERJ (BRANDÃO,
2005)96 realizaram ou vêm realizando pesquisas, também numa perspectiva
sociolingüística variacionista, sobre a fala popular fluminense. Com base
nesses estudos, desenvolvidos com apoio nas elocuções livres do Corpus
APERJ, já se podem delinear algumas características da fala de parte do
Estado, quer no plano morfossintático, quer no plano fonético-fonológico.
No plano fonético-fonológico, há, no âmbito do consonantismo, o estudo
de Brandão (1997b) e a dissertação de Rodrigues (2001); sobre o -S em coda
silábica as dissertações de Carvalho (2002); sobre a palatalização das oclusivas
dentais diante de [i]; de Quandt (2004), sobre a lateral anterior em coda silábica
e em ataque complexo; e os estudos de Brandão, sobre o -R em coda silábica
(1995, 1997b) e a lateral palatal (2006, 2007).
Tem-se por objetivo reunir, de forma sintética e numa perspectiva geo-
sociolingüística, resultados dos estudos sobre as variáveis fonológicas acima
mencionadas, e que dizem respeito às Regiões Norte e Noroeste, de modo a
fornecer um quadro que permita estabelecer comparações entre a fala das
comunidades aí inseridas e a da cidade do Rio de Janeiro.
Todas as análises aqui comentadas foram realizadas com os mesmos 78
informantes, do sexo masculino, e nelas controlaram-se, de forma sistemática,
além das variáveis estruturais específicas a cada caso, os grupos de fatores área
geográfica e faixa etária e, eventualmente, também nível de instrução
(analfabetos/escolarizados até a 4ª série do Ensino Fundamental).
As variáveis lingüísticas aqui focalizadas foram privilegiadas por: a) virem-
se mostrando fundamentais para a caracterização das áreas dialetais brasileiras,
como o indicam estudos realizados nas mais diferentes regiões do país; b)
apresentarem significativo polimorfismo de concretizações, dentre as quais se
encontram variantes socialmente prestigiadas e estigmatizadas, algumas das
últimas atribuídas à origem rural dos indivíduos ou a seu baixo nível de
escolaridade, o que as torna, conseqüentemente, marcas identificadoras de tais
grupos de falantes; c) permitirem detectar e aferir processos de variação
estável e de mudança em curso, concorrendo, de um lado, para o
estabelecimento de áreas mais inovadoras ou conservadoras, de outro, para a
discussão de questões de ordem teórico metodológica.
O -S EM CODA SILÁBICA
Como mostram Gryner e Macedo (2000), predomina, nos Municípios de
Cordeiro, Cantagalo, Duas Barras e São Sebastião do Alto, na Região Serrana,
a pronúncia alveolar de -S em coda silábica, com 54% de freqüência, embora já
se verifique um processo de palatalização (31%), condicionado
fundamentalmente por fatores de natureza estrutural (como o ponto e o modo
de articulação da consoante seguinte), e “que tende a ser aplicado por falantes
de nível universitário e pelos mais jovens, entre 13 e 30 anos” (p. 39).
Também Brandão (1997) e Rodrigues (2001) mencionam a alveolar como
norma no conjunto de 13 comunidades distribuídas pelos Municípios de São
Francisco do Itabapoana, São João da Barra, Itaocara, Cambuci, São Fidélis,
Campos, Itaperuna e Macaé.
Rodrigues (2001) focalizou o -S em contexto medial e final de vocábulo,
constatando que a variante alveolar perfaz um total de 56% das ocorrências,
enquanto a pós-alveolar restringe-se a 18% dos dados, os 26% restantes
distribuindo-se pela variante aspirada e pelo cancelamento. A Tabela 1, em que
só se computam as ocorrências referentes à alveolar e à pós-alveolar, permite
observar a distribuição dessas variantes na fala das diferentes comunidades:
Tabela 1 – Índices referentes às variantes alveolar e pós-alveolar de -S,
adaptado da Tabela 13 de Rodrigues (2001, p. 63).
Alveolar Pós-Alveolar
Região Município Comunidade Ocos
Apl. Perc. Apl. Perc.
Norte Barra de Itabapoana 192 85% 33 15% 225
São Francisco do Itabapoana Guaxindiba 209 92% 17 8% 226
Gargaú 177 85% 30 15% 207
São João da Barra Atafona 183 86% 28 14% 211
São João da Barra 151 65% 81 35% 232
Farol de São Tomé 162 72% 63 28% 225
Macaé 132 58% 95 42% 227
Campos dos Goytacazes
Ponta G. dos Fidalgos 157 76% 48 14% 205
São Benedito 153 75% 51 15% 204
São Fidélis São Fidélis 151 63% 81 33% 239
Cambuci Cambuci 202 83% 40 17% 242
Noroeste Itaocara Itaocara 119 60% 81 40% 200
Itaperuna Itaperuna 152 75% 50 15% 202

Fonte: Adaptado de Rodrigues (2001, p. 63, tabela 13)

O seu estudo, que visava a determinar os fatores estruturais e


extralingüísticos condicionadores da palatalização, indicou que, em contexto
medial, há mais tendência à implementação desse processo do que na posição
final, tendo-se mostrado mais relevantes para a aplicação da regra, em ambos
os casos, o modo e ponto de articulação do segmento subseqüente, a área
geográfica e a faixa etária.
No que se refere ao ponto de articulação, é mais freqüente a palatalização
se o -S é seguido de consoante africada pós-alveolar ou de oclusiva dental, em
ambos os contextos, e também de oclusiva velar ou lateral alveolar em
contexto final de vocábulo.
Na segunda etapa do estudo, a variável área geográfica foi reorganizada,
reunindo-se as comunidades segundo o índice percentual de população rural
do distrito em que se inserem, de acordo com dados do CIDE e do IBGE.
Consideraram-se como mais rurais as que apresentam mais de 40% de
população rural e como menos rurais as que se encontram abaixo desse índice,
uma vez que o percentual máximo de população rural nessas áreas é de 60%.
Levou-se, ainda, em consideração, o fato de se situarem no litoral ou no
interior das Regiões Norte e Noroeste.
A variável ficou assim organizada: a) litorânea mais rural: Barra do
Itabapoana, Guaxindiba, Gargaú, Atafona, Farol de São Tomé; b) litorânea
menos rural: São João da Barra e Macaé; c) interiorana mais rural: Cambuci,
Ponta Grossa dos Fidalgos e São Benedito; e d) interiorana menos rural: São
Fidélis, Itaocara e Itaperuna (p. 71).
Na Figura 1, verifica-se que, nas comunidades com maior índice de
urbanização, isto é, nas comunidades com traço [-rural], há maior tendência à
palatalização do que nas comunidades com traço [+rural]:
Figura 1 – Gráfico relativo à variável área geográfica, com base em pesos
relativos

Fonte: Rodrigues (2001, p. 85)

Como ressalta a autora (p. 89), embora em todas as comunidades


predomine a variante alveolar, nas comunidades menos rurais, tanto nas
litorâneas quanto nas interioranas, os indivíduos, por terem maiores
oportunidades de travarem contato com falantes oriundos de outras regiões,
talvez estejam mais predispostos à adoção da variante pós-alveolar. Ressalta
que, em Macaé, para onde se deslocou, por conta da exploração do petróleo,
um significativo contingente populacional advindo de várias partes do país
(sobretudo da cidade do Rio de Janeiro, na qual a pós-alveolar constitui
norma), o índice de palatalização é o mais expressivo.
Quanto à difusão da palatalização pelas diferentes gerações de falantes
“são os mais jovens [faixa A: 18 a 35 anos] os implementadores da regra, que é
menos produtiva à medida que aumenta a idade dos falantes” (p. 89),
conforme Figura 2:
Figura 2 – Gráfico relativo à variável faixa etária
Fonte: Rodrigues (2001, p. 89)

O -R EM CODA SILÁBICA
O -R em coda silábica é o tema de Brandão (1997), que, na perspectiva
sociolingüística, também analisou a variável em contexto medial e final de
vocábulo. Em posição externa, é bastante significativo o cancelamento, regra
com 78% de aplicação e input .85 e que tem nos indivíduos mais velhos seu
mais alto índice de ocorrência (81%), decrescendo para 79% e 75%,
respectivamente, nas faixas B (36-55 anos) e A (18-35 anos).
Como salienta a autora, “outra é a realidade quando o /R/ se encontra em
situação medial de vocábulo” (p. 52), caracterizada pelo polimorfismo de
realizações. Num total de 1.845 ocorrências, obtiveram-se os seguintes
resultados gerais: tepe (5%), vibrante alveolar (21%), aproximante retroflexa
(13%), fricativa velar (44%), aspirada (8%) e cancelamento (10%).
Eliminando-se as ocorrências de cancelamento em coda interna, as
variantes [+ant] – entre elas computados o tepe, a vibrante e a aproximante
retroflexa – correspondem a 43% dos 1.663 dados, enquanto as variantes [-
ant] – as fricativas velar e aspirada – a 57%, o que faz destas últimas a norma
regional. Devido, no entanto, à significativa presença de variantes [+ant],
decidiu-se analisar sua aplicação, mostrando-se relevantes, em primeiro e
segundo lugares, a faixa etária e a área geográfica e, em seguida, os fatores
estruturais classe do vocábulo, contexto subseqüente e intensidade da sílaba (p. 53).
Como mostra a Figura 3, na faixa C (56 anos em diante), concentram-se as
variantes [+ant] (p. r. .79) e, na A, as [-ant] (p.r. .15), o que permite dizer que
está em curso, na região, um processo de posteriorização de /R/:
Figura 3 – Gráfico realizado com base em pesos relativos

Fonte: Brandão (1995, p. 53)

A exemplo do procedimento adotado em relação ao -S, apresenta-se, na


tabela a seguir, a distribuição das variantes [+ant] e [-ant] de -R em coda
interna pelas 13 comunidades, com o acréscimo dos pesos relativos referentes
à atuação da variável área geográfica para a implementação das variantes
[+ant]:
Tabela 2 – Índices referentes às variantes [+ant] e [-ant] de -R pós-
vocálico interno
Variantes Variantes
Município Comunidade
Região [+ ant] [-ant] Ocos
Apl. Perc. P.R. Apl. Perc.
Norte Barra de Itabapoana 56 43% .50 73 57% 129
São Francisco
Guaxindiba 66 48% .64 70 52% 136
do Itabapoana
Gargaú 85 64% .81 47 36% 132

São João Atafona 83 47% .60 91 53% 174


da Barra São João da Barra 46 38% .39 74 62% 120
Campos dos Farol de São Tomé 104 89% .72 12 11% 116
Goytacazes Macaé 12 9% .05 120 91% 132
Ponta G. dos Fidalgos 95 82% .92 20 18% 115
São Benedito 48 38% .49 80 62% 128
São Fidélis São Fidélis 31 30% .38 72 70% 103
Cambuci Cambuci 25 21% .20 95 79% 120
Noroeste Itaocara Itaocara 28 30% .22 65 70% 93
Itaperuna Itaperuna 40 35% .46 75 65% 115

Fonte: Adaptado de Brandão (1995, p. 54, Tabela 4)

Observa-se que os mais altos índices de [+ant] concentram-se em Ponta


Grossa dos Fidalgos (p. r. .92), Gargaú (p. r. .81), Farol de São Tomé (p.r. .72),
Guaxindiba (p. r. .64) e Atafona (p. r. .60), que correspondem a áreas marcadas
com o traço [+rural]. Também quanto a essa variável, destaca-se Macaé, em
que predominam as variantes [-ant], as fricativas, uma vez que o p. r. das [-ant]
é de .05.
Revendo-se, mais recentemente, os dados, realizou-se uma rodada levando
em conta os parâmetros usados por Rodrigues (2001) na organização da
variável área geográfica, com o objetivo de verificar se a tendência ao uso de
variantes [+ant] em comunidades com traço [+rural] se confirmava, o que de
fato ocorreu, como se representa na Figura 4:
Figura 4 – Atuação da variável área geográfica na implementação das
variantes de -R pós-vocálico, com base em pesos relativos

Fonte: Organizada de acordo com os parâmetros usados por Rodrigues (2001)

Por outro lado, a comparação dos resultados presentes na Figura 1 (no que
toca ao contexto medial de vocábulo) e na Figura 4, demonstra que, no que se
refere tanto ao -S quanto ao -R em coda silábica interna, as variantes [+ant] e
[-ant] são motivadas por fatores de natureza sociogeográfica, as primeiras
predominando em áreas com traço [+rural], as segundas em zonas mais
urbanizadas.
AS LATERAIS
Quandt (2004) dedicou-se ao estudo da lateral anterior em coda silábica e
em ataque complexo na fala das mesmas localidades. Sua pesquisa, de caráter
variacionista, também se baseou nos fundamentos da Fonologia Experimental,
pois tinha, como um de seus objetivos, testar a hipótese de que a troca de [l]
por [ɾ] em grupos consonantais
seria motivada pela tendência, de caráter subliminar, à abertura de sílaba, tendo em vista que a
realização do tepe implica a produção de um segmento vocálico, acusticamente próximo à vogal que
o segue. Assim, prato e preto, por exemplo, seriam produzidos como [pɐ´ɾatʊ] e [pǝ´ɾetʊ], sem que, no
nível consciente, o falante disso se apercebesse (p. 16-17).
A análise de /l/ em coda silábica foi realizada com base em um corpus de
4.229 dados, tendo-se registrado formas de concretização que constam da
Tabela a seguir:
Tabela 3 – Índices referentes à variação de /l/ em posição de coda
silábica
ÍNDICES Variação de /l/ em coda silábica
Variantes [w] [ł] [l] [ɾ] [h] [ɻ] [ø]
Ocorrências 3669/4229 12/4229 8/4229 119/4229 2/4229 22/4229 397/4229
Percentuais 87 % 0% 0% 3% 0% 1% 9%

Fonte: Quandt (2004, p. 72)

Como se verifica, a vocalização de /l/ nesse contexto é quase categórica.


Como relata a autora (p. 95-97), as primeiras análises indicaram que a área
geográfica “não se mostrava importante no que se refere à variação de /l/ em
posição de coda silábica, já que, em nenhuma das rodadas empreendidas, essa
variável havia sido selecionada” (p.96), o que determinou sua exclusão das
análises posteriores. Estas foram realizadas com a manutenção das variáveis
sociais faixa etária e nível de instrução, em duas etapas, em que se buscaram
verificar os fatores condicionadores; a) do cancelamento; e b) das variantes
consonantais, em ambos os casos em oposição à vocalização.
Em relação ao cancelamento, somente as variáveis estruturais mostraram-
se salientes (Tabela 4):
Tabela 4 – Variáveis atuantes para o cancelamento de -L pós-vocálico

Contexto antecedente
Dimensão do vocábulo
Variáveis selecionadas Intensidade da sílaba
Modo de articulação da cons.subseqüente
Natureza do segmento subseqüente
Input da regra inicial .10
de seleção .02
Significância .017

No entanto, para a ocorrência das variantes consonantais de -L, faixa etária


e nível de instrução (Tabela 5) mostraram-se altamente relevantes:
Tabela 5 – Variáveis atuantes para as variantes consonantais de -L pós-
vocálico
Variáveis condicionadoras das variantes consonantais
Faixa etária
Posição do segmento no vocábulo
Nível de instrução
Variáveis selecionadas
Modo de articulação da cons.subseqüente
Tonicidade da sílaba
Contexto antecedente
Input da regra inicial .05
de seleção .01
Significância .027

A variável faixa etária, segundo Quandt (2004, p. 110),


[...] permite verificar que os mais velhos estão aplicando mais a regra – que, nesse caso, é a de
realização das variantes consonantais de /l/ – (p.r. .85). A faixa de idade intermediária, que agrupa
indivíduos entre 36 e 55 anos, revela índices probabilísticos próximos à neutralidade (.53), enquanto
os falantes mais jovens, como pode ser observado na Tabela 7 e no Gráfico 2, praticamente não
aplicam a regra, confirmando, então, a hipótese inicial.
o que pode ser visualizado na Figura 5, a seguir:
Figura 5 – Influência da variável faixa etária para a realização das
variantes consonantais de -L em coda

Quanto ao nível de instrução, os indivíduos analfabetos são os que mais


produzem as variantes consonantais:
Tabela 6 – Atuação da variável nível de instrução para a realização das
variantes consonantais de -L em coda
Variável Nível de Instrução
Fatores Oco % P.R.
Analfabeto 139/1707 8% .71
Semi-alfabetizado 24/2125 1% .32

A análise da lateral em ataque complexo levou em conta 1.009 dados, em


que se obtiveram 47% de ocorrências de rotacismo. Nesse caso, a autora optou
por formar um grupo de fatores composto pelas variáveis faixa etária e nível
de instrução, tendo este sido selecionado como o terceiro mais relevante para a
aplicação da regra, depois de tonicidade da sílaba e contexto subseqüente e antes de
sonoridade do segmento antecedente.
Como mostra a Figura 6, um gráfico elaborado pela autora (p. 146), “são
os informantes de idade intermediária (entre 36 e 55) e analfabetos os que
mais produzem o rotacismo em grupo consonantal (p.r. .67), e os mais velhos
semi-alfabetizados os que menos produzem tal fenômeno (p.r. .37)”.
Figura 6 – Atuação da Variável compósita Faixa Etária/Nível de
Instrução para a permuta entre [ l ] e [ɾ] em pesos relativos
Fonte: Quandt, 2004.

A lateral palatal foi focalizada por Brandão (2006, 2007), com base em
3.501 dados, em que predomina a lateral palatal com 2.514 ocorrências (72%),
enquanto a iotização e sua permuta pela lateral alveolar atingem, ambas, o
mesmo índice de 5%. (Tabela 7):
Tabela 7 – Índices relativos à variável (ʎ) em 3.501 dados
Variante OCO Perc. Exemplo
[ʎ] 2.514 72% [‘kiʎɐ] <quilha>
[lj] 610 17% [‘filjʊ ] <filho>
[l] 181 5% [mu´lɛ] <mulher>
[j] 174 5% [ma´jeɾɐ] <malheira>
[ø] 21 1% [‘miʊ ] <milho>

Em todo o corpus há apenas 21 casos de cancelamento, processo que


ocorre, em sua grande maioria, quando há, no contexto antecedente, a vogal
coronal [i], em vocábulos como [mi´ɔ], por melhor, [fuh´kiɐ] por forquilha.
As variantes [lj] e [j] são condicionadas por fatores tanto lingüísticos quanto
extralingüísticos. Já a implementação de [l] deve-se, apenas, a fatores
estruturais: a presença: a) após o segmento, de vogal [+cor], sobretudo de [i],
(mu[´lɛ], co[´le]mos, co[´li]); e b) ou de outra consoante palatal na palavra
(fo[l]inha, i[l]inha).
Do ponto de vista estrutural, concorrem para a implementação: a) da
variante [lj], fatores concernentes à tonicidade da sílaba, ao contexto
antecedente e à classe do vocábulo. Há maior probabilidade de ela ocorrer em
sílaba postônica (.64), depois de vogal alta (p.r..62), sobretudo em nomes
(p.r..55), de que são exemplos, entre outros, qui[lj] a, baru[lj] o; e b) da semivogal
coronal, fatores que dizem respeito ao contexto antecedente, em que
sobressaem as vogais abertas (p.r.62) e à tonicidade da sílaba: as postônicas,
embora com índice próximo à neutralidade (p.r. .55) parecem mais propícias à
ocorrência de [j]. Vocábulos como o[j]a, ve[j]a, casca[j]o, atrapa[j]a, exemplificam
a atuação desses fatores.
Como se observou, apenas as variantes [lj] e [j] apresentaram
condicionamentos de caráter extralingüístico – área geográfica e faixa etária:
Figura 7 – Pesos relativos referentes à atuação da variável área
geográfica para a aplicação de [lj] e de [j]

Fonte: Brandão (2007)

Enquanto [lj] é mais produtiva na área litorânea, mais urbanizada, com


p.r..62, [j] ocorre, fundamentalmente, na área interiorana, de perfil mais rural,
com p.r. .75, nesta última sendo exceção apenas duas das comunidades,
Itaperuna e São Fidélis, exatamente aquelas com maior índice de urbanização.
Quanto à variável faixa etária, observe-se a Figura 8 para a compreensão de
como se distribuem essas duas variantes na fala das diferentes gerações.
Figura 8 – Pesos relativos referentes à atuação da variável faixa etária
para a concretização de [lj] e de [j]
Fonte: Brandão (2007)

A variante [lj], distribui-se pelas três faixas etárias de forma homogênea,


como sugerem os pesos relativos, medianos e bastante aproximados (faixas A:
.51; B: .43; C: .54), o que demonstra ser essa uma regra que, apesar de pouco
produtiva na região, é estável. Já os índices referentes a [j] não só reforçam sua
baixa freqüência, mas também mostram que tal variante está mais presente na
fala dos indivíduos mais velhos (p. r. .64), do que na dos de meia idade (p. r.
.48) ou na dos mais jovens (p. r. .32).
Com base na distribuição das variantes na fala de cada informante, chegou-
se a dois padrões básicos de variação de (ʎ), denominados por Brandão de não-
marcado socialmente e marcado socialmente.
O padrão não-marcado socialmente incluiria, além da variante [ʎ], as variantes
[l], quando seguida de [i] – fo[l]inha, por exemplo – e [lj], essas últimas
consideradas por Camara Jr. (1977, p. 45) “típicas da variedade relaxada”.
O padrão marcado socialmente seria aquele em que, além das duas ou de uma
das referidas variantes, encontram-se o cancelamento (como em [mi´ɔ] ), a
variante [j] e o [l] diante de vogais diferentes de [i] (como em [mu´lԑ]), por
exemplo.
AS PLOSIVAS DENTAIS
Sobre /t/ e /d/ diante de [i], na mesma área, há as pesquisas de Brandão
(1997) e de Carvalho (2002), mais voltadas para a questão da palatalização.
Carvalho (2002) registrou, em 6.774 dados, as seguintes variantes:
Tabela 8 – Índices gerais referentes às variantes das plosivas dentais (td)
num total de 6.774 dados
Plosivas Plosivas Africadas Africadas Pós-
ÍNDICES
Dentais Palatalizadas Alveolares alveolares
Ocorrências 762 1739 619 3.654
Percentuais 11% 26% 9% 54%

Fonte: Carvalho (2002)

Chama a atenção a presença, na amostra, de 619 ocorrências de [ts] e [dz],


africadas alveolares – em vocábulos como gaviet[ts]e e [dz]iz. – pouco
mencionadas em estudos sobre variação e registradas na fala de Florianópolis
por Pagotto (2004), que a relaciona a questões de identidade cultural.
Ao analisar o processo de palatalização, Carvalho reuniu apenas as
variantes palatalizadas e africadas pós-alveolares, contrapondo-as às plosivas
dentais. Como as análises preliminares demonstraram que /t/ apresentava
maior tendência à palatalização, analisou a surda e a sonora separadamente,
obtendo, no que se refere às variáveis relevantes para a aplicação do processo,
os resultados expostos na Tabela 9:
Tabela 9 – Grupos de fatores relevantes para a palatalização de /t/ e
/d/
Palatalização /t/ /d/
Cont. antecedente Área geográfica
Área geográfica Faixa etária
Intensidade/posição Subjacência
Grupos de fatores
relevantes Faixa etária Extensão do vocábulo
Subjacência Cont. antecedente
Natureza da sílaba

Aplicação 2.571/2.775 – 93% 2.822/3.380 – 83%


Input da regra .95 .86
Significância .015 .004

Fonte: Carvalho (2002)


Como se verifica, tanto área geográfica quanto faixa etária mostraram-se
relevantes, sobretudo em relação à plosiva dental sonora. Em todas as rodadas
de análise, comprova-se que, na fala das localidades interioranas, sobretudo as
de traço [+ rural] há maior tendência à palatalização, como se pode observar
na Figura 9:
Figura 9 – Pesos relativos referentes à atuação da variável Área geográfica
em diferentes rodadas de análise

Fonte: Carvalho (2002, p. 120)

Quanto à faixa etária, há maior probabilidade de aplicar-se a regra entre os


indivíduos mais jovens (faixa A: 18 a 35 anos), e menor, entre os mais velhos
(faixa C: 56 anos em diante), mostrando-se neutro o grupo intermediário:
Figura 10 – Índices relativos à atuação da variável Faixa etária em
diferentes rodadas de análise
Fonte: Carvalho (2002, p. 122)

Como observa o autor,


[...] há uma confluência entre os dados desta pesquisa e os de RODRIGUES (2001), o qual aponta
para uma mudança em curso quanto à palatalização do -S, pois os indivíduos mais velhos reúnem
maior quantidade de realizações alveolares, enquanto os mais novos tendem às realizações palatais e
aspiradas. Com isso, ambas as pesquisas na região Norte-Noroeste fluminense sinalizam, em tempo
aparente, um quadro de mudança em curso, em direção à palatalização, que, no que se refere às
plosivas, pelos índices de aplicação da regra (.95 para /t/ e .86 para /d/) já se encontra em estágio
final de implementação, diferentemente do que ocorre com o -S. (CARVALHO, 2002, p. 122-123)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar esta breve descrição de algumas características da fala popular
de parte do estado do Rio de Janeiro, cabe resumir os resultados aqui expostos
com o objetivo de esboçar algumas normas de pronúncia das comunidades em
foco, devendo-se salientar que os fenômenos focalizados, apesar de motivados
por fatores de natureza extralingüística, apresentam forte condicionamento
estrutural.
1) Na fala de 13 comunidades dos municípios de São João da Barra,
Itaocara, Cambuci, São Fidélis, Campos, Itaperuna e Macaé, que integram as
Regiões Norte e Noroeste do Estado:
a) constitui norma a concretização de -S em coda silábica como fricativa
alveolar, a exemplo do que se verifica na fala de Cordeiro, Cantagalo, Duas
Barras e São Sebastião do Alto, na região Serrana, embora se observe o
processo de palatalização, condicionado por fatores estruturais e
extralingüísticos;
b) a palatalização de -S é mais freqüente nas localidades mais urbanizadas,
quer litorâneas, quer interioranas, sendo mais produtiva entre falantes mais
jovens;
c) predominam as variantes [-ant] de -R em coda silábica – fricativa velar e
glotal –, embora, sobretudo entre falantes mais velhos de comunidades rurais,
as variantes [+ant] – tepe, vibrante alveolar, aproximante retroflexa – se
mostrem bastante produtivas;
d) pode-se traçar uma isófona geoetária das variantes [+ant] de -R pós-
vocálico que congrega os falantes mais velhos da área litorânea, desde Barra do
Itabapoana, na divisa com o Espírito Santo, até Farol de São Tomé, no
Município de Campos, e que se interioriza abarcando os indivíduos de todas as
faixas etárias de Ponta Grossa dos Fidalgos;
e) a vocalização da lateral anterior em coda silábica predomina em todas as
áreas, embora se registre sua permuta por segmentos consonantais, o que é
mais freqüente na fala de indivíduos com mais de 56 anos e analfabetos;
f) o rotacismo em ataque silábico complexo, embora menos produtivo do
que a manutenção da lateral, prepondera entre falantes analfabetos da faixa
etária intermediária (36-55 anos);
g) a lateral posterior é predominantemente produzida como palatal,
embora se observe sua concretização como [lj] e [j], a primeira uniformemente
distribuída por todas as gerações, sobretudo na área litorânea; a última, mais
freqüente na fala dos indivíduos mais velhos e na zona interiorana;
h) as oclusivas dentais apresentam polimorfia de realizações (dental,
palatalizada, africada alveolar, africada pós-alveolar), embora seja norma sua
concretização como africada pós-alveolar.
2) As análises empreendidas sugerem que:
a) poucos são os fenômenos variáveis, no âmbito fonético-fonológico, que
apresentam apenas motivações de natureza estrutural, sendo de grande
importância para o conhecimento da opção por uma ou outra variante, o
controle de variáveis como faixa etária, nível de instrução, gênero e, ainda, área
geográfica;
b) as normas de pronúncia de grande parte do estado do Rio de Janeiro
não se identificam integralmente com as observadas na cidade do Rio de
Janeiro e seu entorno, pelo menos no que diz respeito ao -R e -S em coda
silábica;
c) é imprescindível realizar pesquisas no âmbito da fala popular para
melhor se conhecer a realidade lingüística fluminense e, com base nelas, buscar
as macromotivações sociopolíticoculturais determinantes das variações
registradas;
d) projetos como o Atlas Fonético do entorno da Baía de Guanabara (AfeBG), já
divulgado, o Micro Atlas Fonético do Rio de Janeiro (MicroAFERJ) e o Atlas
Lingüístico Sonoro do Rio de Janeiro (ALISON), conjugados ao Atlas Lingüístico do
Brasil (AliB), os três últimos em andamento, em muito irão contribuir para o
desvendamento dessa realidade, bem como para a elaboração de novas
pesquisas sociolingüísticas e, no futuro, para a conseqüente fixação das áreas
lingüísticas fluminenses.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. A história e as contribuições de um projeto na
linha geolingüística. In: AGUILERA, V. (Org.). A geolinguística no Brasil:
caminhos e perspectivas. Londrina: EdUEL, 2005. p. 357-370.
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Encontro do GT de Sociolingüística da ANPOLL, Universidade Federal de
Paraná, Curitiba, 1997a.
______. Aspectos sociolingüísticos de um dialeto rural. In: HORA, D. da
(Org.). Diversidade lingüística no Brasil. João Pessoa: Idéia, 1997b. p. 61-69.
______. O /R/ implosivo no Norte do Estado do Rio de Janeiro. In:
PEREIRA, C. C.; PEREIRA, P. R. D (Org.). Miscelânea de estudos lingüísticos e
literários in memorian a Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 49-
58.
______. Sobre a lateral palatal no português do Brasil. In: ASSIS, R. Estudo da
língua portuguesa e de todas as línguas que fazem a nossa. Belém: EDUNAMA, 2006.
______. Sobre a palatalização num dialeto brasileiro. In: CONGRÈS
INTERNATIONAL DE LINGUISTIQUE ET PHILOLOGIE ROMANES,
22., 1998. Bruxelles. Actes... Tgen: Max Niemeyer, 2000. v. 7, p. 9-86.
______. Um estudo variacionista sobre a lateral palatal. Comunicação
apresentada ao III Seminário Internacional de Fonologia, Pontifícia
Universidade Católica - RS, Porto Alegre, 2007.
CAMARA Jr., Mattoso. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro:
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CARVALHO, S. D. M. A palatalização de /t/ e /d/ no falar das regiões Norte e
Noroeste do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Língua
Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
GRYNER, Helena; MACEDO, Alzira Verthein Tavares de. A pronúncia do s
pós-vocálico na região de Cordeiro-RJ. In: MOLLICA, C.; MARTELLOTA,
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LIMA, Luciana Gomes de. Atlas fonético do entorno da Baía de Guanabara-AFeBG.
2006. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 2 v.
NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Simões, 1953.
PAGOTTO, Emilio G. Variação e identidade. Maceió: EDUFAL, 2004.
QUANDT, Vivian de Oliveira. O comportamento da lateral anterior na fala do Norte-
noroeste Fluminense. 2004. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
RODRIGUES, S. H. A. O -S pós-vocálico na fala da região Norte-Noroeste do Estado
do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
NOTA
Em Brandão (2005), encontram-se dados sobre a equipe, bem como sobre a história e as contribuições
do Projeto APERJ.
A variação na ordem dos clíticos pronominais em
complexos verbais: condicionamentos
morfossintáticos e prosódicos

Silvia Rodrigues Vieira – UFRJ


CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Embora já tenha sido abordada nos estudos lingüísticos sob diversas
perspectivas, a ordem dos clíticos pronominais, especialmente em construções
que contêm complexos verbais, mantém-se como um vasto campo de
investigação. Isso porque se trata de um tema da mais legítima interface, cuja
compreensão não pode prescindir da relação entre os níveis morfossintático e
fonológico.
Neste artigo, que se ocupa da posição do pronome átono em textos orais
do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE), consideram-se
“complexos verbais” (CV) estruturas constituídas por mais de uma forma
verbal em que a última delas é não-finita, estruturas que englobam não apenas
os tempos compostos, mas também construções com verbos aspectuais,
modais, volitivos e causativos/sensitivos.
Verificam-se as possibilidades de colocação do clítico (antes do primeiro
verbo, entre o primeiro e o segundo, e depois do segundo verbo) devido às
relações sintáticas e fonológicas que o pronome átono estabelece com os
constituintes dos diferentes tipos de complexos verbais.
CLITICIZAÇÃO PRONOMINAL: HIPÓTESES E PROBLEMAS
A respeito do estatuto da cliticização, alguns autores advogam que sintaxe e
fonologia podem atuar de forma independente. Klavans (1985, p. 97-98)
postula três parâmetros que determinariam a atuação do fenômeno nas línguas
do mundo:
a) o parâmetro da dominância: INICIAL/FINAL
O parâmetro 1 (também identificado como P1) expressa a possibilidade de
que o clítico se ligue ao constituinte inicial ou final dominado por um sintagma
específico;
b) o parâmetro da precedência: ANTES/DEPOIS
O segundo parâmetro, P2, codifica a outra parte da informação
configuracional, isto é, PRECEDÊNCIA: especifica se um clítico ocorre
ANTES ou DEPOIS do hospedeiro escolhido por P1;
c) o parâmetro da ligação fonológica: PROCLÍTICO/ENCLÍTICO
O terceiro parâmetro (P3) dá a direção da ligação fonológica; trata-se de
uma propriedade do próprio clítico.
Considerando-se o comportamento do pronome átono na língua
portuguesa, a concretização de P1 ocorre, em princípio, de forma idêntica nas
diversas variedades: o pronome submete-se à atuação do constituinte verbal
(que teria por posição canônica o início do “sintagma verbal”). Em relação a
P2, o pronome átono pode assumir a opção “antes” ou “depois” do verbo (no
caso dos complexos, em relação ao primeiro verbo, V1, ou ao segundo, V2),
opção que pode diferenciar as variedades brasileira e européia, segundo os
condicionamentos morfossintáticos atuantes. Determinada a posição sintática
do clítico em relação a um dos verbos, supõe-se, quanto à P3, que as
variedades brasileira e européia diferem quanto à direção fonológica: à direita,
no PB, e à esquerda, no PE.
Interessa investigar, neste estudo, o comportamento das referidas
variedades quanto ao segundo e ao terceiro parâmetros em contextos com
lexias verbais complexas, uma vez que estas são pouco descritas nos estudos
sobre cliticização pronominal. Em linhas gerais, objetiva-se responder às
seguintes questões: a) o que constitui, efetivamente, a norma objetiva da
ordem dos clíticos com complexos verbais na modalidade oral em PB e em
PE?; b) que condicionamentos lingüísticos e extralingüísticos estão envolvidos
nessa variação?; e c) o chamado parâmetro de cliticização fonológica
influenciaria, em alguma medida, o comportamento dos dados por variedade?
A fim de responder às duas primeiras questões, o trabalho vale-se do
arcabouço teórico-metodológico da Sociolingüística Variacionista. A
investigação relativa à terceira questão conta com o aporte da Fonética
Acústica.
A INVESTIGAÇÃO SOCIOLINGÜÍSTICA
Distribuição dos dados e variáveis
Para o tratamento sociolingüístico do fenômeno (VIEIRA, 2002), a
variável dependente conta com três possibilidades de colocação do pronome
átono, em termos superficiais:
• colocação pré-complexo Ex. 1. suponho eu... claro que não me tenho dedicado aos problemas
verbal (pré-CV ou cl V1 V2) do ensino (PE oral, CRPC, inq. 1378, faixa C, nível 3)
• colocação intra-complexo Ex. 2. mamãe não podia me acompanhar... então nem cheguei a ir
verbal (intra-CV ou V1 cl V2) (PB oral, NURC, inq. 261, faixa B, nível 3)
• colocação pós-complexo Ex. 3. eu agora vou perguntar-te se tu sabes (PE oral, CRPC, inq. 479,
verbal (pós-CV ou V1 V2 cl) faixa B, nível 1)

Para a definição dos fatores constitutivos da variável dependente,97 uma


particularidade do fenômeno, em especial, deve ser considerada: a
possibilidade de não haver correspondência entre a posição dos pronomes no
enunciado e a direção da cliticização fonológica. Não se pode determinar, pela
simples audição dos enunciados, que, em um enunciado como pode me dar, o me
esteja ligado ao pode ou ao dar. Tendo em vista a inviabilidade de se constituir a
variável dependente contemplando, de antemão, a cliticização fonológica – por
meio da submissão de todas as ocorrências ao tratamento acústico98 –, optou-
se por constituir um corpus específico para a análise acústica.
O tratamento sociolingüístico foi realizado com base no instrumental
técnico-computacional que configura o pacote de programas GOLDVARB.
Os dados foram extraídos de corpora orais criteriosamente constituídos: a) para
o PB – Norma Urbana Culta Carioca, Programa para Estudos do Uso da
Língua, Atlas Etnolingüístico dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro; e
b) para o PE – Corpus de Referências do Português Contemporâneo (CRPC).
Esses bancos de dados permitiram o controle de três faixas etárias (18 a 35
anos, 36 a 55 anos e acima de 55 anos) e três níveis de escolaridade
(analfabetos, até 8ª série, curso superior).
Registrou-se a seguinte distribuição das 453 ocorrências pelas três variantes
posicionais relativas à ordem dos clíticos em enunciados com complexos
verbais:
Tabela 1 – Distribuição das variantes pré-CV, intra-CV e pós-CV: PE e
PB
Ordem dos clíticos em complexos verbais: modalidade oral
Português Europeu Português do Brasil
Freqüência Percentual Freqüência Percentual
cl V1 V2 70/200 35% 18/253 7%
V1 cl V2 92/200 46% 229/253 90%
V1 V2 cl 39/200 19% 7/253 3%

Gráfico 1 – Ordem do clítico em complexos verbais: PE e PB oral

A colocação intracomplexo verbal é a que obtém a freqüência mais alta nas


duas variedades do português. Fica nítido que essa variante constitui a opção
preferencial no PB (90%). No PE, esse padrão de ordem não chega a alcançar
a metade dos dados (46%) e a colocação proclítica ao complexo verbal figura
em segundo lugar (35%).
Para compreender essa distribuição dos dados, estabeleceram-se os demais
pontos da investigação: a) a composição do complexo, quanto ao tipo de
estrutura e à forma não-finita dos verbos, afeta o padrão de colocação?; b) o
tempo da forma verbal flexionada interfere?; c) a presença de elementos
intervenientes no complexo verbal altera o padrão de ordem?; d) os diferentes
tipos de clíticos determinam padrões de ordem distintos?; e) os chamados
elementos proclisadores atuam em contextos com complexos verbais?; f) caso
atuem, a distância entre esses elementos e o grupo clítico-verbo interfere?; e g)
Fatores extralingüísticos, como faixa etária e escolaridade do informante,
exercem alguma influência sobre o fenômeno?
A fim de responder tais questões, investiga-se a atuação das variáveis
independentes que se apresentam a seguir:
Quadro 1 – Descrição das variáveis independentes para a colocação
pronominal em complexos verbais
(i) Quanto ao pronome:
a) Tipo de clítico Configuração formal do clítico: me, te, se, o/a(s), lhe(s), nos, vos.
b) Função do clítico e Papéis sintáticos (acusativo/dativo) exercidos pelos pronomes
valores do se átonos e valores tradicionalmente atribuídos ao se.
(ii) Quanto ao contexto anterior ao grupo clítico-complexo verbal
a) Presença de elemento Ausência ou presença de diversos elementos antecedentes (SN,
proclisador conjunções, preposições, partículas de negação, advérbios etc.)
b) Distância entre o
Medição da distância em termos de sílabas canônicas: de “zero” a
“proclisador” e o grupo
“onze ou mais sílabas”.
clítico-CV
(iii) Quanto à composição do complexo verbal
a) Tempo e modo verbais de
Todos os tempos e modos encontrados.
V1
b) Forma do verbo não-
Formas não-finitas: gerúndio, particípio, infinitivo.
flexionado
c) Presença de preposição/
Preposição / conector interveniente no complexo verbal (de, que).
conector no interior do CV
d) Presença de sintagmas no Outros elementos – como sintagmas adverbiais, por exemplo (devia-
interior do CV se em princípio criar).3
e) Composição do CV Tipos de complexo verbal verificados no corpus.
99

Com base nos dados da pesquisa, agruparam-se os complexos nos


seguintes fatores:100
• Passiva de ser (V1= verbo ser + V2 = particípio):
Ex. 4. Ah: muito boa tarde agradeço este convite que me é feito (PM,
PPOM, inq. PC3INO)
• “Perífrases verbais”: tempos compostos/“perífrases verbais” modais e
aspectuais (V1 com algum grau de esvaziamento semântico + V2 – mesmo
referente-sujeito):
Ex. 5. acho que como todo casal mais ou menos novo... sempre quando se
vai comprar alguma coisa... a gente tem o problema de dar uma entrada grande...
certo (PB oral, NURC, inq. 084)
Ex. 6. temos que nos acalmar para ter o verdadeiro prazer (PE, CRPC, inq.
455)
• Complexos com V1 + V2 com certa independência semântica e mesmo
referente-sujeito (construções com verbos volitivos/optativos ou declarativos):
Ex. 7. então o meu cunhado virou pra mim... se você quer se empregar... por
que que você não faz um curso? (PB oral, NURC, inq. 261)
• Complexos com V1 + V2 com independência semântica e referentes-
sujeitos distintos (construções com verbos causativos/sensitivos):
Ex. 8. e isto hoje fez-me pensar... fez/ fez-me pensar... muito (PE, CRPC, inq.
455)
Resultados: os condicionamentos da variação
Os grupos de fatores relevantes no condicionamento do fenômeno foram
os seguintes: (i) nas duas variedades do português: constituição do complexo
verbal, tipo de clítico, forma do verbo não-flexionado; e (ii) apenas no PE:
presença de elemento proclisador.
a) Constituição do complexo verbal
Não foi possível observar o comportamento específico da “passiva de ser”,
dado o irrisório número de ocorrências (6). A título de curiosidade, cumpre
informar que não se verificou a realização da variante pós-CV com esse tipo
de complexo, fato que se associa à forma participial presente em sua
constituição.
Em se tratando de complexos cujos verbos pertencem a duas orações, com
referentes-sujeitos distintos – construções causativas/sensitivas (apenas 14
dados) –, não ocorreu, como era de se esperar, qualquer caso de posposição
do pronome considerado complemento de V1 ao complexo (*fez pensar-me;
*deixava ficá-lo). O clítico figura adjacente ao primeiro verbo, nas duas
variedades, confirmando que “os pronomes clíticos ocorrem obrigatoriamente
adjacentes ao verbo causativo ou perceptivo” (MATEUS et al. 1989, p. 860) é
uma característica do português.
Observe-se, a seguir, a distribuição das variantes nos demais complexos:
Tabela 2 – Índices de freqüência das variantes pré-CV, intra-CV e pós-
CV em dados de “perífrases verbais”
cl V1 V2 V1 cl V2 V1 V2 cl
“PERÍFRASE VERBAL”
Freq Perc Freq Perc Freq Perc
Português Europeu 61/173 35% 80/173 46% 32/173 18%
Português do Brasil 12/225 5% 207/225 92% 6/225 3%

A ordem dos pronomes nas chamadas perífrases verbais, tipo de complexo


mais produtivo tanto no PE quanto no PB, apresenta, em cada variedade, o
comportamento geral atestado para o conjunto dos dados da amostra.
1) O PE assume, em primeiro lugar, a variante intra-CV e, em último, a
pós-CV. Como é forte a atuação dos proclisadores na variedade, a variante pré-
CV figura em segundo lugar. Os dados não desmentem o pressuposto de que
as construções com auxiliares modais e aspectuais teriam os pronomes
seguidos ao verbo principal ou ao auxiliar. O que eles acrescentam é a
preponderância da última opção em relação à primeira.
2) As perífrases do PB, por outro lado, apresentam a variante
intracomplexo verbal como opção preferencial na maioria dos casos. Ao que
parece, atuando a “perífrase” como uma espécie de unidade verbal (um
“predicado complexo”), o quadro de opções por variedade não resulta do tipo
de complexo verbal em si, mas está subordinado à atuação do conjunto dos
grupos de fatores relevantes para o condicionamento do fenômeno.
Nas construções com verbos volitivos/optativos ou declarativos, aquelas
em que se postulam duas orações de mesmo referente-sujeito, verificou-se a
seguinte distribuição:
Tabela 3 – Índices de freqüência das variantes pré-CV, intra-CV e pós-
CV em dados de “complexos verbais bi-oracionais com mesmo
referente-sujeito”
cl V1 V2 V1 cl V2 V1 V2 cl
BI-ORACIONAL COM MESMO REFERENTE-SUJEITO
Freq Perc Freq Perc Freq Perc
Português Europeu 5/14 36% 3/14 21% 6/14 43%
Português do Brasil 1/21 5% 19/21 90% 1/21 5%

A variedade européia exibe, nesse caso, comportamento particular no que


se refere aos valores das variantes intra e pós-complexo verbal: a variante pós-
CV passa a ser mais expressiva do que a intra-CV. Tendo em vista as
semelhanças desses complexos com as perífrases verbais – estruturas
constituídas de dois verbos justapostos (um finito e um não-finito) com
mesmo referente-sujeito –, a particularidade na ordem dos pronomes no PE,
nesse caso, pode estar relacionada ao estatuto de cada verbo e de cada clítico
envolvido na construção. Supõe-se que os casos de variante pós-CV, que
aumentam de forma expressiva na variedade européia, se referem a pronomes
que mantêm estreita relação sintático-semântica com o segundo verbo, na
qualidade de complemento pessoal ou de pronome reflexivo/inerente.
O PB, de outro lado, exibe uma diferença muito discreta entre os índices
obtidos para o “complexo bi-oracional de mesmo referente-sujeito” e os
índices comentados para as “perífrases verbais”. Partindo do pressuposto de
que o pronome figura, na maioria dos casos, anteposto à forma verbal não-
flexionada dos complexos acima, não é, de fato, relevante, para a ordem dos
clíticos no PB, a diferença entre os dois tipos de estrutura. A análise revelou
que a discreta mudança de comportamento se associa, essencialmente, aos
dados do pronome se e não ao tipo de complexo verbal.
b) Tipo de clítico/valor do se
Quanto ao tipo de clítico, apresentam comportamento evidentemente
diferenciado o clítico acusativo de terceira pessoa e o pronome se. As demais
formas pronominais submetem-se, em geral, ao condicionamento dos grupos
de fatores atuantes em cada variedade.
É quase categórica a posposição do clítico acusativo de terceira pessoa aos
complexos verbais nas duas variedades. A caracterização fonética desse
pronome – o único do tipo silábico V – diferencia-o de todos os demais. Ao
que parece, a debilidade sonora da forma o/a desfavorece sua sustentação no
interior do complexo verbal. Excetuando-se os poucos casos em que ocorre a
variante pré-CV – regulada, sobretudo, pela presença de elementos
proclisadores no enunciado –, verifica-se que a variante pós-CV constitui uma
estratégia para a alteração do padrão silábico de V para CV (lo/no). Isto se
confirma pelo fato de, nas duas variedades, só ter ocorrido um dado de
posposição do pronome o a uma forma verbal diferente do infinitivo. Ainda
assim, o enunciado – deixava-o ficar – é do tipo “construção
causativa/sensitiva”, complexo que, por sua própria constituição, impede a
posposição do o complemento de deixar ao verbo ficar (*deixava ficá-lo).
Averiguando o comportamento do pronome se em particular, obtiveram-se
os seguintes resultados referentes à variante pré-CV:
Tabela 4 – Condicionamento da variante pré-CV segundo a variável
“valor do se”: PE e PB oral
PE PB
Pesos Pesos
VALOR DO SE Freqüência Percentual Freqüência Percentual
relativos relativos
Reflexivo / inerente 13/46 28% .21 2/111 2% .36
Índice de ind./
32/66 48% .71 9/34 26% .86
apassivador

De fato, o se reflexivo/inerente não costuma ocorrer anteposto ao


complexo verbal e o se indeterminador/apassivador, ao contrário, concretiza-se
como variante pré-CV, nas duas variedades do português. Esses resultados
confirmam que o se reflexivo/inerente tende a ficar adjacente a V2, o verbo
que o domina sintaticamente na maioria dos casos (excetuando-se as
construções em que V1 é o verbo pôr-se/habituar-se), e o se
indeterminador/apassivador se localiza na adjacência de V1.
c) Forma do verbo não-flexionado
Essa variável contribui, sobretudo, para demonstrar o condicionamento da
variante pós-CV. Comprova-se que essa posição, pouquíssimo produtiva no PB
(apenas 7 ocorrências), é bloqueada pelo particípio e pouco produtiva no
gerúndio. É com o infinitivo que essa variante aparece com freqüência:
Tabela 5 – Condicionamento da variante pós-CV segundo a variável
“forma do verbo não-flexionado”: PE e PB oral
PE PB
VALOR DO SE Freqüência Percentual Freqüência Percentual
Particípio 0/20 0% 0/11 0%
Gerúndio 0/14 0% 1/95 1%
Infinitivo 39/167 23% 6/142 4%

Esse quadro gradativo de aplicação da variante pós-complexo verbal


([particípio: zero variante pós-CV] > [gerúndio: +/– variante pós-CV] >
[infinitivo: + variante pós-CV]) condiz com o processo de nominalização das
formas do verbo, visto como uma escala de “conclusão” da temporalidade,
conforme propõe GUILLAUME (apud VALIN et al., 1990). Nessa escala, o
particípio é a forma nominal integralmente concluída, resultado de um
processo em que o verbo se tornou totalmente “detensivo”. O gerúndio
constitui a expressão cursiva do verbo, em que uma parte da expressão verbal
está concluída (em “detensão”) e outra não está (“tensão”). O infinitivo é, dos
“modos quasi-nominais”,101102 a expressão puramente “tensiva” do verbo e,
por assim dizer, a forma não-concluída, o verbo em pura-potência.
À forma “menos nominal” (infinitivo) corresponde a maior produtividade
de ligação do clítico. O gerúndio, categoria intermediária na linha de
“nominalização”, registra baixa concretização da variante pós-CV. Sendo o
particípio a etapa final da perda do traço tensivo, é natural que o pronome não
o acompanhe.
d) Presença de elemento proclisador
Cabe sistematizar, por fim, o comportamento da variável que se relaciona à
tradicional atração pronominal, relevante apenas no corpus europeu:
Tabela 6 – Aplicação da variante pré-CV segundo o condicionamento da
variável “presença de operador de próclise na oração” nos complexos
verbais do PE oral
Pesos
OPERADOR DE PRÓCLISE Freqüência Percentual
relativos
Nenhum 1/45 2% .02
SN sujeito 0/26 0% –
Conjunção coordenativa 0/19 0% –
SAdv – aqui 4/6 67% .85
SAdv – sempre, -mente, locuções 0/15 0% –
Preposição a 0/1 0% –
Preposição para ou de 1/5 20% .36
Partícula de negação 23/30 77% .86
Elemento que, demais conjunções subordinativas e integrantes,
elemento “denotativo”, demais pronomes/advérbios relativos; 41/53 77% .88
palavra QU-

Pela Tabela acima, pode-se sistematizar o funcionamento do grupo da


seguinte forma: 1) atuam como proclisadores: partícula de negação, SAdv do
tipo aqui e diversos elementos tradicionalmente “atratores” (último fator); 2)
não favorecem a variante pré-CV: ausência de operador, SN sujeito, conjunção
coordenativa, SAdv dos tipos sempre/ em -mente/ locução adverbial, preposição
a; 3) as preposições para e de apresentam índice de variante pré-CV, compatível
com a regra geral das variedades.
Como se pode observar, a atuação dos tradicionais “atratores” do
pronome átono constitui forte elemento condicionador da variante pré-CV no
PE. De acordo com as tendências gerais da variedade européia, essa operação
intensifica-se, especialmente, nos contextos com se
indeterminador/apassivador ou quando a segunda forma verbal é o particípio.
A INVESTIGAÇÃO FONOLÓGICA
A investigação relativa à terceira questão postulada neste trabalho – que diz
respeito ao parâmetro de cliticização fonológica – conta com o aporte da
Fonética Acústica. Levando em conta a hipótese de que as variedades brasileira
e européia se diferenciariam pelo parâmetro da cliticização fonológica,
realizaram-se experimentos de modo a aferir se há, em termos acústicos,
respaldo para fundamentar a suposta diferença. Para tanto, o estudo utiliza
dois procedimentos viabilizados pelo Programa CSL (Computerized Speech Lab):
medição dos parâmetros acústicos do acento e síntese de fala associada a testes
de percepção auditiva.
A medição dos parâmetros acústicos
Os enunciados que foram contemplados neste trabalho englobam: (i)
contextos com me, nos e se, acompanhados de vocábulos com padrões
acentuais diversos – antecedidos de sílaba postônica vocabular e seguidos de
sílaba tônica e pretônica vocabular (pode-se ver; pode-se virar; pode-se revirar); (ii)
pares (quase)-mínimos com os pronomes me e te, que viabilizam a comparação
das sílabas pretônicas e postônicas do vocábulo formal com os pronomes
proclíticos e enclíticos (Só menino na cadeira de balanço/Só me nino na cadeira de
balanço.)
Determinaram-se a duração, a intensidade e a freqüência fundamental da
sílaba constituída pelo pronome átono e das sílabas imediatamente anterior e
posterior. A medida utilizada para informar o peso fônico assumido pelo
clítico nos enunciados do PB e do PE tem como ponto de partida sua análise
em termos relativos, isto é, em proporção aos parâmetros obtidos para as
sílabas antecedente e subseqüente.
A hipótese geral da pesquisa pode ser sintetizada da seguinte forma: no PB,
o clítico, ligando-se preferencialmente.
No PE, a sílaba do clítico, sendo enclítica, teria duração e intensidade
semelhantes à da pretônica ou da postônica vocabular, que não divergem de
maneira significativa (MARTINS, 1988). Quanto à freqüência fundamental,
não se postulou uma hipótese específica, tendo em vista que seu
comportamento associável ao acento varia quanto à posição do vocábulo na
frase.
a) Comparação entre a sílaba do clítico e a pretônica/postônica vocabular
As tendências verificadas para a sílaba do clítico em relação à sílaba
anterior (postônica vocabular) e à posterior (pretônica vocabular), em
contextos como pode se virar, podem ser sintetizadas da seguinte forma:
• A sílaba do clítico do PB tem comportamento aproximado ao da
pretônica vocabular, de forma inequívoca, em relação aos parâmetros de
duração e intensidade. Quanto à freqüência fundamental, fica atestada muito
mais a diferença entre a sílaba do clítico e a postônica vocabular (anterior) do
que a sua semelhança com a pretônica vocabular (posterior).
• A sílaba do clítico do PE não se aproxima sistematicamente nem da
postônica vocabular (anterior) nem da pretônica (posterior), quanto aos
parâmetros de duração e intensidade. Quanto à freqüência fundamental,
constata-se a semelhança da sílaba do clítico com a sílaba postônica vocabular
(anterior).
b) Comparação entre a sílaba do clítico e a sílaba pretônica vocabular nos
pares (quase)-mínimos.
• No PB, a média da sílaba do clítico aproxima-se da média da pretônica
vocabular em relação aos três parâmetros.
• A sílaba do clítico do PE não apresenta comportamento compatível com
o da pretônica vocabular no que se refere aos índices obtidos para os
parâmetros duração e intensidade. A semelhança das duas sílabas em relação à
intensidade (ambas são menos intensas do que a sílaba anterior) pode referir-
se, apenas, a uma característica das sílabas átonas européias, pretônicas ou
postônicas. Quanto à freqüência fundamental, tanto os índices obtidos para as
duas sílabas quanto o padrão entonacional em relação ao contexto antecedente
assemelham-se.
• Tomando por base os dois itens anteriores, supõe-se que apenas os
parâmetros da duração e da intensidade atuariam para a diferenciação da
cliticização fonológica nas variedades européia e brasileira.
Síntese da fala
O recurso da síntese da fala viabiliza a alteração de cada parâmetro acústico
tomado isoladamente. Os enunciados resultantes da manipulação dos
parâmetros são submetidos à audição de falantes do português, em teste
perceptivo, para a identificação da ligação fonológica dos pronomes.
a) A manipulação dos parâmetros
A partir dos resultados obtidos com as medições referentes aos parâmetros
acústicos do acento, realizaram-se onze alterações, exclusivamente sobre o
segmento correspondente à sílaba do clítico me, em dois enunciados gravados
por dois informantes brasileiros: ele vinha me comunicar o fato e tenho me visto
cansado.
Quadro 2 – Descrição dos procedimentos para a alteração dos
parâmetros acústicos
Procedimentos para a alteração dos parâmetros acústicos
Redução “leve”: diminuição da duração do segmento me para 70% do original,
seguida de nova redução da duração da vogal e para 70% (o que resulta na redução
do segmento vocálico para 50% do original).
Duração
Redução “forte”: diminuição da duração do segmento me para 50% do original
gravado, seguida de nova redução da duração da vogal e para 50% (o que resulta na
redução do segmento vocálico para 25% do original).
Redução “leve”: diminuição da intensidade do segmento me para 70% do original
gravado, seguida de nova redução da intensidade da vogal e para 70%;
Intensidade
Redução “forte”: diminuição da intensidade do segmento me para 50% do original
gravado, seguida de nova redução da intensidade da vogal e para 50%.
Freqüência Alteração do padrão: de descendente para ascendente. Sendo a sílaba do clítico mais
fundamental baixa do que a sílaba anterior, aumentou-se progressivamente a F0, por meio do
(F0) acréscimo de aproximadamente 20 hz.
Redução “leve” da duração (conforme estabelecido acima) e redução “leve” da
Duração e intensidade
intensidade
(energia) Redução “leve” da duração e redução “forte” da intensidade; Redução “forte” da
duração e redução “leve” da intensidade.
F0 ascendente e redução “leve” da duração;
F0, duração
e F0 ascendente e redução “leve” da intensidade;
intensidade
F0 ascendente e redução “leve” da duração e da intensidade.

b) Os testes perceptivos com falantes de português


Os testes de percepção auditiva foram realizados com o objetivo de avaliar
o reconhecimento da ligação fonológica do pronome – se para a direita ou
para a esquerda – em cada contexto. O teste contou com 11 enunciados
artificialmente modificados somados à apresentação da versão original
referente a cada frase, na fala dos dois informantes, o que totalizou 48
estímulos para julgamento. Cada tipo de enunciado, segundo a alteração
proposta, foi julgado quatro vezes (duas frases x dois informantes) por dez
ouvintes, sendo cinco brasileiros e cinco portugueses, o que perfez um total de
20 votos por contexto por indivíduos de cada variedade.
Observem-se os resultados referentes ao julgamento da ligação fonológica
por ouvintes brasileiros e portugueses:
Tabela 7 – Valores absolutos e percentuais referentes aos votos obtidos
para identificação da ligação fonológica à esquerda em testes de
percepção auditiva com ouvintes brasileiros e portugueses
Ligação para esquerda (vinha-me Ligação para esquerda (vinha-me
ENUNCIADOS comunicar): ouvintes brasileiros comunicar): ouvintes europeus
PROPOSTOS
Freqüência Percentual Freqüência Percentual
S1= versão original 4/20 20% 6/20 30%
S2= redução ‘leve’ da
12/20 60% 10/20 50%
duração
S3= redução ‘forte’ da
18/20 90% 19/20 95%
duração
S4= redução ‘leve’ da
5/20 25% 10/20 50%
intensidade
S5= redução ‘forte’ da
7/20 35% 8/20 40%
intensidade
S6= F0: de
descendente a 5/20 25% 5/20 25%
ascendente
S7= redução ‘leve’ de
10/20 50% 14/20 70%
dur. E intens.
S8= red. Leve da dur.
12/20 60% 12/20 60%
e forte da intens.
S9= red. Forte da dur.
16/20 80% 16/20 80%
e leve da intens.
S11= F0 ascend. e 9/20 45% 4/20 20%
red. leve da intens.
S12= F0 asc. e red.
12/20 60% 13/20 65%
leve de dur. e intens.

Gráficos 2 e 3 – Percepção da ligação fonológica do pronome à


esquerda, segundo os valores percentuais dos votos em testes de
percepção auditiva em relação a 12 contextos: enunciado original
brasileiro (s1) e enunciados manipulados segundo recurso de síntese de
fala (s2 a s12)

Observando os votos para a indicação da ligação fonológica à esquerda,


verifica-se que, em diversos casos (nos oito contextos com os percentuais
destacados em negrito), a percepção dos ouvintes é muito semelhante, não
havendo mais do que 10 pontos percentuais de diferença. Com base nesses
contextos, verificam-se algumas tendências comuns na percepção de ouvintes
brasileiros e portugueses. Do que se pode observar, o parâmetro de cliticização
à esquerda está associado, em primeiro plano, ao parâmetro acústico da
duração: a redução forte do tempo da sílaba do clítico (s3 e s9) acarreta a
escolha quase categórica da ligação à esquerda (80-95%); a redução leve do
tempo da sílaba do clítico (s2, s7, s8, s12), associada ou não a outras alterações,
acarreta opção pelo parâmetro à esquerda em uma média de 60%.
As demais alterações não demonstram relevância nítida nos resultados do
experimento. Na percepção dos brasileiros, a intensidade poderia atuar
discretamente na determinação do parâmetro de cliticização à esquerda: a
redução forte da intensidade (s5) faz aumentar o índice de percepção do
parâmetro à esquerda de 25 (s4) para 35%. Observe-se que, se a alteração for
apenas uma redução leve da intensidade, o enunciado é percebido
praticamente da mesma forma que o original. Na percepção dos portugueses,
os votos não ultrapassam 50% (s5); havendo redução forte da intensidade, o
índice cai para 40% (s4). Ademais, associada aos outros dois parâmetros, a
redução da intensidade do clítico não demonstra atuação favorecedora da
alteração do parâmetro de ligação fonológica.
A alteração da freqüência fundamental do padrão descendente para o
ascendente (s6) não determina a percepção da ligação do clítico para a
esquerda: o julgamento dos ouvintes brasileiros e portugueses para o
enunciado (25%) é semelhante ao da versão original da frase. Além disso,
segundo a percepção dos ouvintes brasileiros, 36% (8/22) dos casos de
maiores dúvidas no reconhecimento do parâmetro referem-se aos estímulos
com que se associa a alteração da freqüência a outros parâmetros.
CONCLUSÕES
Da análise sociolingüística, podem-se indicar as seguintes tendências para a
ordem dos clíticos nos complexos verbais:
1) É quase categórica, nas duas variedades, a posposição do clítico
acusativo de terceira pessoa aos complexos (vai encontrá-lo).
2) O se reflexivo/inerente tende a ficar adjacente a V2 (deve sentar-se ou deve
se sentar) – verbo que o domina sintaticamente na maioria dos casos – e o se
indeterminador/apassivador localiza-se na adjacência de V1 (deve-se estudar ou
deve se estudar).
3) A ordem dos clíticos nos complexos verbais é sensível ao tipo de
estrutura. Nas construções causativas/sensitivas, o clítico ligado sintaticamente
a V1 fica na adjacência de V1 nas duas variedades (mandei-o sair ou o mandei
sair). Nos complexos dos tipos “perífrase verbal” e “bi-oracional com mesmo
referente-sujeito”, verificou-se o seguinte comportamento: a) na variedade
européia, as perífrases, atuando como uma unidade léxico-gramatical,
registram a distribuição das variantes consoante o condicionamento geral
dessas variedades (deve-se estudar), enquanto os complexos bi-oracionais de
mesmo referente sujeito registram maior número de pronomes após V2 (quer
encontrar-se), ao qual eles, na maior parte das vezes, se ligam sintaticamente; e b)
no PB, o pronome, tanto nas perífrases quanto nos complexos bi-oracionais,
aparece imediatamente anteposto à segunda forma verbal (deve se estudar / quer
se encontrar).
4) A forma do particípio, dado o seu caráter “detensivo”, não acolhe
pronome átono posposto a ele (*encontrado-o).
Não obstante o caráter não-conclusivo da análise prosódica realizada – que
conta apenas com alguns dentre os diversos contextos morfossintáticos em
que figura o clítico e não explora todas as potencialidades do aparato técnico-
computacional oferecido pelos métodos da Fonética Acústica –, os resultados
indicam que a medição da duração, da intensidade e da freqüência fundamental
e o recurso da síntese de fala, tomados em conjunto, constituem importante
instrumento para a comprovação empírica do suposto padrão diferenciado de
cliticização fonológica do PB e do PE.
De modo geral, podem-se sistematizar os resultados de base acústica da
seguinte forma:
1) O pronome átono do PB apresentou, quanto à duração e à intensidade,
configurações semelhantes às de uma sílaba pretônica vocabular; no PE, o
pronome assumiu, quanto à duração e à intensidade, as características de uma
sílaba átona (postônica ou pretônica) vocabular.
2) A ligação fonológica do pronome átono no PB direciona-se para a
direita, enquanto o PE assume o parâmetro da ligação fonológica para a
esquerda.
3) O parâmetro acústico do acento que determina a cliticização do
pronome à esquerda parece ser, essencialmente, a duração – abreviada no PE.
Diante dos resultados obtidos para o contexto de complexos verbais,
acredita-se que, no caso do parâmetro da precedência, as opções ANTES e
DEPOIS (seja de V1, seja de V2) propostas por Klavans (1985) não parecem
suficientes para demonstrar a complexidade do fenômeno nas duas variedades
do português.
O PB, em linhas gerais, tem por opção preferencial estar “entre V1 e V2”
com direção fonológica à direita. São fatores desfavorecedores dessa
tendência: a) a forma pronominal o, a(s), a qual, ainda que pouco produtiva no
PB se comparada ao PE, favorece o parâmetro “depois de V2”, especialmente
quando V2 é um infinitivo (vai encontrá-lo); b) a forma pronominal se do tipo
indeterminador/apassivador, que favorece, aliada à presença de elemento
proclisador, o parâmetro “antes de V1” (aqui se pode dirigir = aqui alguém pode
dirigir, diferentemente de aqui (ele) pode se dirigir = aqui ele pode dirigir-se a,
encaminhar-se a...).
No PE, não se pode determinar com facilidade uma opção preferencial
quanto ao parâmetro da precedência, tendo em vista que os condicionamentos
estruturais atuam de forma expressiva. Em primeiro lugar, haveria uma forte
diferença entre as orações chamadas dependentes, que contêm elementos
fortemente favorecedores do parâmetro “antes de V1” (especialmente quando
se trata do pronome se indeterminador/apassivador e quando a forma de V2 é
particípio, como em que se tinha visto), e as orações do tipo raiz/coordenada.
Nestas, os parâmetros “entre V1 e V2” e “depois de V2” são freqüentemente
concretizados, consoante os condicionamentos atuantes na variedade. A
variante pós-complexo verbal, como em quer encontrar-se, é preferida nos
contextos em que: a) a segunda forma verbal é o infinitivo; b) o pronome em
questão é o clítico acusativo de 3ª pessoa ou o se reflexivo/inerente; e c) o
complexo verbal é do tipo “bi-oracional com um só referente-sujeito”. Nos
demais contextos (complexos causativos/sensitivos; segunda forma verbal
gerúndio; presença de elemento interveniente), dá-se a variante intra-CV, como
em: deixei-o ficar, foi-se avistando, estava-se a ver.
O quadro abaixo busca demonstrar a complexidade da variação da ordem
dos clíticos pronominais em complexos verbais, sugerindo o que se espera ser
prototípico de cada variedade em cada contexto:
Quadro 3 – Aplicação do parâmetro da precedência (P2) e da ligação
fonológica (P3), proposto por Klavans (1985), ao comportamento
prototípico da ordem dos clíticos em PE e PB
VARIEDADES PRECEDÊNCIA (P2)
LIGAÇÃO FONOLÓGICA
DO Orações do tipo Orações (P3)
PORTUGUÊS raiz/coordenada “dependentes”
ENCLÍTICA
Português ENTRE V1 e V2 ou
ANTES de V1 (ao elemento proclisador, a V1
Europeu DEPOIS de V2
ou a V2)
Português do PROCLÍTICA
ENTRE V1 e V2
Brasil predominantemente a V2

A sistematização dos resultados sociolingüísticos e prosódicos sugere que


os contextos com complexos verbais constituem fonte fundamental para
avaliar, de um lado, o que constitui característica geral do português e, de
outro, os parâmetros adotados em cada variedade. Nesse sentido, após o
mapeamento preliminar do fenômeno ora apresentado, é preciso aprofundar o
conhecimento do tema, por meio da análise separada de dados por tipo de
complexo verbal e por tipo de clítico, a fim de se confirmar ou não as
tendências gerais verificadas nessa etapa da investigação.
REFERÊNCIAS
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1990.
NOTAS
Não se descartou a possibilidade de a) haver mais de dois verbos na constituição do complexo e de b)
haver mais de um pronome átono relacionado às formas verbais. Entretanto, tais possibilidades não se
configuraram um problema para o tratamento dos dados: houve um irrisório número de complexos
constituídos de mais de dois verbos (apenas 14 ocorrências) e não houve qualquer ocorrência de
complexo com mais de um clítico.
Para tanto, seriam necessárias todas as gravações dos inquéritos, com boa qualidade de gravação, e muito
tempo de pesquisa, levando-se em conta a morosidade que exige esse tipo de análise.
Essa variável pode oferecer pistas para a determinação do direcionamento do pronome quanto à
cliticização. Se, numa dada variedade, se opta sistematicamente pela adjacência do pronome a V1,
antepondo-o ao elemento interveniente no complexo, supõe-se que a ligação do pronome se efetive em
relação à V1 e não à V2.
0 Não se objetiva estabelecer categorias de complexos verbais; pretende-se tão-somente observar o
fenômeno nos diversos grupos encontrados na realidade do corpus em análise.
1 Para o autor, o modo serve para datar as cronoteses (resultado de cortes no movimento do pensamento
sobre um eixo em profundidade) na cronogênese. Os modos – quasi-nominais, conjuntivo e indicativo –
constituiriam três graus diferentes (da intervenção na cronogênese mais precoce à mais tardia) de
completude da imagem-tempo.
2 A realização dos experimentos de natureza acústica contou com a orientação do Professor João Antônio
de Moraes, sem a qual não seria possível tornar concreta a investigação.
Expressões lexicalizadas no português brasileiro:
construção conjunta e uso comunitário do léxico

Vanda Cardozo de Menezes – UFF


INTRODUÇÃO
Basta uma passada de olhos pelos jornais do dia para observar que as
expressões [+/-] lexicalizadas não são um fenômeno marginal no português
brasileiro. Mas como se explica esse uso? Que motivações podem ser
depreendidas nesse processo de nomeação que lexicaliza estruturas sintáticas?
As expressões que servem de amostra ao estudo encontram-se
contextualizadas em textos escritos do gênero “informe jornalístico”,
publicados pelo Jornal do Brasil (JB) e pela Folha de São Paulo (FSP), no período
entre os dias 2 de dezembro de 2005 e 21 de maio de 2006.103 Todas as
expressões, cerca de 250, funcionam como títulos para os diversos minitextos
que compõem a seção e foram identificadas por seu caráter previsível.
A seguir, apenas para dar uma idéia do que estamos tratando, apresentamos
dois exemplos da amostra:
(1) Preto no branco
Sai esta semana o resultado de perícia da PF nos documentos supostamente assinados pro Cláudio
Mourão, ex-tesoureiro de Azeredo. A autenticidade é questionada pelo senador. (FSP, 11 dez. 2005)
(2) Cabelos em pé
Investigada pela Polícia Federal, a lista menciona repasse de R$ 250 mil a Costa Neto. O documento
ainda é extra-oficial, mas deixou todos os partidos de cabelo em pé. (JB, 12 jan. 2006)
Adotamos o termo “expressões lexicalizadas”, em vez de “expressões
fixas” ou “cristalizadas”, para indicar que elas se formaram (ou estão em
formação) via lexicalização, um processo que consolida, em diferentes graus de
estabilização, a atividade de nomeação e que pressupõe o envolvimento de
sujeitos em práticas lingüísticas e cognitivas, ancoradas social e culturalmente.
A lexicalização tem sido com muita freqüência apresentada como um
processo na contramão da gramaticalização. A lexicalização equivaleria a de-
gramaticalização. Lehmann (2002, p. 15) observa que ambos os processos –
implicam redução e graduação, mas de diferentes modos. As finalidades de um e
de outro processo explicam diferenças; a compreensão das motivações
cognitivas e discursivas no uso da língua aponta semelhanças.
REFERENCIAÇÃO E IDIOMATICIDADE
As atuais reflexões sobre referência e referenciação (MONDADA;
DUBOIS, 2003; KOCH, 2002; MARCUSCHI, 2004) podem dar subsídios a
uma ampla revisão de estudos sobre os mais diversos fenômenos lingüísticos,
em diferentes esferas (discursiva, sintática, semântica etc.).
Em relação ao estudo do léxico, a visão tradicional se fixava em algumas
dicotomias: uma noção objetivista de referência, que enfatiza a relação língua e
realidade concreta, versus uma noção subjetivista de referência, que focaliza a
relação linguagem e pensamento; uma concepção de estabilidade referencial,
que corresponderia ao estado das coisas no mundo, versus uma concepção de
desestabilidade generalizada, que impediria qualquer possibilidade de
apreensão. Nessa visão essencialmente dicotômica, as expressões lexicais
multivocabulares são tomadas como agrupamentos definitivamente estáveis
quanto à forma e ao conteúdo; como expressões feitas e acabadas, cujo uso
não requereria dos falantes qualquer habilidade discursiva e não expressaria
qualquer função cognitiva ou comunicativa. Desse modo não é de se estranhar
que essas expressões tenham sido designadas por termos que indicam o traço
comum da repetição, considerada negativamente como indicativa de pobreza
vocabular (“lugar-comum”, “clichê”, “chavão”, “frase-feita”). O discurso – ou
seja, aquele discurso próprio – se daria apenas pela seleção de unidades
lingüísticas simples (princípio de escolha aberta), que se combinariam com outras,
segundo regras de sintaxe da frase.
Erman e Warren (2000, p. 32), retomam a questão das “expressões
cristalizadas”, a que preferem chamar de “expressões previsíveis” e as definem
como “uma combinação de base lexical, constituídas de, no mínimo, duas
palavras e consideradas como um item de escolha em bloco pelos falantes
nativos”. Baseados em pesquisa em textos jornalísticos escritos, os autores
mostram que essas expressões podem apresentar graus diferentes de fixação e
que o falante/produtor se vale do discurso do princípio de idiomaticidade com
muito mais freqüência do que se costuma imaginar.
Bolinger (1976 apud ERMAN; WARREN, 2000), já na década de 1980,
demonstra preocupação com a exclusividade atribuída, pelas abordagens
tradicionais, ao princípio de escolha lexical aberta e chama a atenção para a base
cognitiva do princípio de idiomaticidade. Argumenta que, tendo em vista o fato
de que o cérebro humano é capaz de armazenar na memória unidades
extensas, seria mais natural trabalhar com a hipótese de que nós armazenamos
um grande número de itens complexos, que manipulamos por meio de regras,
comparativamente, simples.
INTERSUBJETIVIDADE E REFERENCIAÇÃO
A trajetória das discussões sobre a relação entre linguagem e realidade é
recorrentemente apresentada nos estudos mais recentes sobre referência e
referenciação. Essa retomada se faz necessária em vista de uma nova
abordagem da questão: as atuais reflexões sobre referência não mais focalizam
uma relação estável entre uma língua histórica socialmente estabelecida e uma
realidade objetivamente concebida (concepção objetivista), nem uma
instabilidade devida ao conhecimento intuitivo, à imaginação, aos sentimentos
humanos (concepção subjetivista), mas remetem a uma atividade discursiva de
construção de realidades socialmente compartilhadas.104 Neste artigo, chamo a
atenção para esse último entendimento, que emerge da concepção discursiva
de referência: compreender a intersubjetividade na referenciação é crucial para
se pensar em estabilização e desestabilização da referência, em
dessemantização, em polissemia, em lexicalização, em construção coletiva de
protótipos e de estereótipos, e em metaforicidade; todos eles, processos
desencadeados pelos falantes em situações diversas de interação; todos, de
particular interesse para os estudos de variação e mudança no léxico.
Mas como conciliar as dimensões cognitiva e intersubjetiva na atividade de
referenciação? Um importante passo é dado ao se questionar a dicotomia
objetividade/subjetividade, que nos vem sendo tradicionalmente imposta. Ao
objetivismo irradiado da filosofia clássica se nos apresenta mais recentemente
a opção pelo subjetivismo radical. Se o primeiro idealiza a língua como
portadora das verdades do mundo; o segundo supervaloriza as intuições e os
valores particulares. O objetivismo descorporifica a língua; o subjetivismo a
descontextualiza.
Reflexões sobre a inconveniência dessa polarização não são uma novidade.
Coseriu (1981, p. 103) aponta a necessidade de se começar a estabelecer que as
estruturações lingüísticas “não são estruturas da realidade, mas estruturações
‘impostas à realidade’, pela interpretação humana”. Ao refutar a idéia de que as
nomeações de base científica sejam interpretações da realidade, Coseriu
novamente ressalta o papel dos indivíduos no relacionamento entre linguagem
e mundo: “a linguagem ‘classifica’ a realidade, mas o faz segundo interesses e
atitudes humanas” (COSERIU, 1981, p. 103).
Nos últimos anos, essas reflexões vêm sendo atualizadas em trabalhos que
adotam abordagens discursivas e/ou cognitivas. Marcuschi (2004, p. 280) faz
uso das expressões perspectiva sócio-cognitiva e cognição distribuída105 ao discutir a
questão, e assim resume o deslocamento do foco: “se até há pouco tempo a
cognição era um aspecto individual que ocorria na cabeça das pessoas, agora se
torna um aspecto observável na relação intersubjetiva e no trabalho comum”.
Lakoff e Johnson (2002, p. 304, 2002), ao apresentarem uma terceira opção ao
entendimento da metáfora, uma síntese experencialista, como a denominam,
desprezam as radicais opções pelo objetivismo ou pelo subjetivismo e
concluem que “tanto o mito do objetivismo como o do subjetivismo ignoram
o modo como compreendemos o mundo por meio de nossa ‘interação’ com
ele”. Salomão (2005, p. 153) refere-se a um trabalho ecológico do sujeito cognitivo,
caracterizando esse trabalho como “ecológico” por orientar sua ação numa
específica moldura (física, mental, social) e por movimentar contínuas semioses para a
construção do sentido como entendimento localmente validado.
Mas não é fácil, reconheçamos, tomar em conjunto conceitos que até então
se nos apresentavam, se não polarizados, ao menos bem delimitados. Talvez
possamos começar refletindo sobre outra dicotomia – a das concepções de
instabilidade e de estabilidade. Nesse sentido, trabalhos desenvolvidos sob a
perspectiva da Sociolingüística, sobre os variados aspectos da língua em uso
(fonéticos, sintáticos, semânticos e discursivos), podem mostrar que as
concepções de objetividade e subjetividade, assim como as de estabilidade e
instabilidade, não são contraditórias; são, antes, relacionadas, quando se admite
que qualquer modificação no conjunto de fatores (lingüísticos e
extralingüísticos) que configura o contexto de uso da língua, pode levar a
mudanças tanto no léxico, como na categorização gramatical. A questão se
prende, em resumo, à necessidade de se abandonar a visão dicotômica e
estabilizante e de se começar a pensar os fenômenos em termos de relatividade
e de concomitância. Se, com isso, estivermos nos distanciando de uma descrição
lingüística mais “científica” (no sentido da máxima objetividade), estaremos,
em compensação, nos aproximando de uma descrição mais adequada do uso
da língua.
INSTABILIDADE/ESTABILIDADE E REFERÊNCIA
A relativização das noções de instabilidade e de estabilidade não é uma
perspectiva nova nos trabalhos sobre variação e mudança. “A atividade
humana da linguagem caracteriza-se por um conflito entre duas faces
aparentemente contraditórias: de um lado, uma aparência de estabilidade e, de
outro, a constante variação e mudança tanto no indivíduo como na
comunidade” (PAIVA; DUARTE, 2003, p. 13).
Mas a apreensão em conjunto dos processos de estabilização e
desestabilização se apresenta, ainda, aos estudiosos, como tarefa difícil e
complexa. Trabalhos no âmbito da Sociolingüística variacionista (ou Teoria da
Variação) vêm dando passos significativos nesse sentido. As análises feitas a
partir dos construtos tempo aparente,106 estudo de painel107 e estudo de tendência108
(LABOV, 1994), representam bem esse esforço para elucidar aspectos
(sociais/individuais) situados na tensão estabilidade/mudança.
Em relação à noção de referência lexical, tem sido mais complicado
considerar a tensão instabilidade/estabilidade, já que no âmbito do léxico a
estabilidade parece ser mais evidente, em razão da natureza da atividade de
nomeação que, de certa forma, aproxima os nomes à realidade. Essa
aproximação, a nosso ver, não tem de ser negada, para que se possa afirmar
que cada expressão nominal representa uma dada categorização e não uma
rotulação objetiva, real e verdadeira. Trata-se, antes, de compreender que a
relação entre linguagem e mundo é uma relação construída pelos falantes, e,
como tal, pode ser modificada ou reconstruída.
Em pesquisa experimental sobre denotação, Labov (1978, p. 229) observa
que em certos contextos parecem ser bem nítidas as fronteiras entre os
referentes relacionados aos nomes “cup”, “glass” ou “bowl” (“xícara”, “copo”,
“tigela”); em outros contextos, essa categorização pode se modificar, deixando,
por exemplo, de considerar as diferentes formas dos objetos designados: o
nome “cup” (“xícara”) poderá ser usado indistintamente em um contexto em
que apenas se beba café ou em outro em que o tipo de líquido não seja
especificado.
As categorias lingüísticas não parecem ser, pois, nem evidentes, nem pré-
estabelecidas; elas são, nas palavras de Mondada e Dubois (2003, p. 28), mais
“[...] o resultado de reificações práticas e históricas de processos complexos,
compreendendo discussões, controvérsias, desacordos”. A referência deve ser
considerada a partir da instabilidade constitutiva das categorias por sua vez
cognitivas e lingüísticas, assim como de seus processos de estabilização.
A LEXICALIZAÇÃO EM CURSO: DE PROTÓTIPOS A
ESTEREÓTIPOS
Os paradigmas teóricos que consideram os aspectos cognitivos da
construção de textos, ao reverem a questão da referência, necessariamente
retomam a noção de categorização. “Cada expressão nominal é uma
categorização, isto é, uma colocação do referente em determinada categoria
cognitivamente estabelecida” (NEVES, 2006, p. 100).
Na abordagem clássica cada categoria é definida em termos de um
conjunto de traços necessários e suficientes. Na categorização prototípica, as
entidades são identificadas com base em atributos que estão em relação de
similaridade com o protótipo. Sendo, pois, o grau de correspondência variável, o
grau de pertencimento a uma categoria é determinado pela situação, de modo
que os limites da categoria são fluidos. O termo protótipo pode ser interpretado
como um membro central ou um conjunto de membros centrais de uma
categoria, ou, alternativamente, como uma esquemática representação do
centro conceptual de uma categoria (TAYLOR, 1989, p.51-59).
Koch (2002, p. 43) resume a relação entre protótipos, lexicalização e
estereótipos:
Mas se, estritamente falando, os protótipos ainda continuariam sendo construções psicológicas e
individuais, a lexicalização vai contribuir para sua ulterior estabilização. Isto é, os nomes, como
rótulos, correspondem aos protótipos e contribuem para sua estabilização no fio dos processos
discursivos. Primeiramente, correspondem a unidades lingüísticas discretas, que permitem uma
descontextualização do protótipo segundo os paradigmas disponíveis na língua, garantindo assim
sua invariância através dos contextos. Depois, porém, a nomeação do protótipo torna possível seu
compartilhamento por inúmeros indivíduos através da comunicação lingüística e faz dele um objeto
socialmente distribuído, estabilizado no seio de um grupo de sujeitos. É, pois, este protótipo
partilhado, que evolui para uma representação coletiva, que vai constituir o estereótipo.
Se toda lexicalização representa certa estabilização referencial, no sentido de
produzir o efeito de um pacto de referência lingüística, esse efeito de estabilidade
aumenta na lexicalização de expressões multivocabulares, já que, nesse último
fenômeno, é muito mais evidente “[...] a passagem de um nível puramente
subjetivo para um nível intersubjetivo” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 42).
EXPRESSÕES LEXICALIZADAS EM TEXTOS JORNALÍSTICOS
As expressões lexicalizadas ocorrem com muita freqüência em textos
jornalísticos. Em outro estudo (MENEZES, 2006) apresentamos os resultados
de um levantamento dessas expressões, em duas edições do Jornal do Brasil, dos
dias 11 e 12 de setembro de 2003.109 O objetivo da pesquisa era verificar a
freqüência de expressões previsíveis nos dois exemplares, que foram
extensivamente lidos, excetuando-se os textos de publicidade, os classificados e
o obituário. Desses textos foram separadas 120 expressões, número que
chamou a atenção quanto ao papel dessas expressões previsíveis em textos
escritos. O estudo também nos mostrou que alguns subgêneros do gênero
jornalístico apresentam expressões lexicalizadas com maior freqüência que
outros.
O corpus de que nos valemos, no momento, é composto por expressões
multivocabulares que funcionam como títulos de textos extraídos de um
subgênero jornalístico chamado de informe, pelo Jornal do Brasil, e de painel, pela
Folha de São Paulo. Dentre as características desse subgênero, nota-se que os
diversos textos que o compõem são em geral curtos e não articulados entre si,
mas se submetem a uma mesma categorização do universo de notícias – os
dois jornais apresentam, cada um, duas sessões de informe ou painel: uma para
notícias referentes à política nacional, outra para as referentes a esportes.
Outras características serão exemplificadas a seguir, como indicação da
funcionalidade das expressões lexicalizadas.
(3) Livro aberto
Uma das propostas em discussão é permitir que os órgãos fiscalizadores – Comissão de Valores
Mobiliários e Secretaria de Previdência Complementar – tenham acesso aos sigilos bancário e
fiscal dos investigados sem precisar de autorização da justiça. (JB,13 dez. 2005)
(4) Sinal verde
O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou ontem o leilão de privatização do Banco do Estado
do Ceará (BEC), inclusive com a regra que garante ao vencedor do processo administrar a folha de
pagamento do governo cearense. Partidos políticos contestavam a regra. (JB (15 dez. 2005)
Nos exemplos apresentados, depreendem-se estratégias de
contextualização bem características do gênero informe. As expressões
lexicalizadas, empregadas como títulos, sintetizam o conteúdo da mensagem e
apresentam bom rendimento comunicativo, atuando como chamada de um
grande número de leitores, todos possivelmente capazes de ativar os referentes
dessas expressões.
A expressão livro aberto é usada, em bloco, para referir “acessibilidade à
informação”, idéia de certa forma explicitada no texto, no segmento “permitir
que tenham acesso aos sigilos bancário e fiscal”. O uso da expressão sinal verde no
último exemplo constrói a idéia de “permissão para seguir em frente” que se
relaciona à idéia de “autorização”, explicitada no texto.
Há casos em que é requerido do leitor um trabalho maior de inferência,
sem, no entanto, trazer muitos riscos à intencionalidade do produtor do texto,
que conta com os leitores para a re-ativação110 do referente construído pela
expressão lexicalizada:
(5) Preto no branco
Sai esta semana o resultado de perícia da PF nos documentos supostamente assinados por Cláudio
Mourão, ex-tesoureiro de Azeredo. A autenticidade é questionada pelo senador. (FSP, 11 dez. 2005)
(6) Pente fino
Na semana que vem, Serraglio retomará a carga sobre três bancos que, segundo ele, ainda estariam
devendo informações à comissão dos Correios: Safra, ABN Amro e BankBoston. (FSP, 14 jan.
2006)

As expressões salto alto e jogando a toalha, a seguir, podem mostrar que, em


muitos contextos, as expressões lexicalizadas, por terem maior estabilidade
referencial, direcionam a interpretação, mesmo quando sua referência é muito
opacamente re-ativada:
(7) Salto alto
Com o crescimento de Serra e Alckmin nas pesquisas, o PSDB começa a rever sua política de
alianças. Até segunda ordem, apenas na Bahia está distante uma candidatura própria à sucessão de
Paulo Souto (PFL). (FSP, 2 jan. 2006)
(8) Jogando a toalha
Um líder da base aliada, especialista em Orçamento, garante que não mais tomará parte nas
discussões sobre o tema a partir do ano que vem. Não agüenta mais as cenas de chantagem explícita.
“É preciso encarar a lei orçamentária como uma peça técnica”, declara. (JB, 1º de jan. 2006)
Alguns textos, na seção informe, surpreendem os leitores, obrigando-os a
deativar o referente da expressão lexicalizada, ativado no primeiro momento. A
construção sintagmática no título deverá ser lida, então, como não-lexicalizada:
(9) Caiu do cavalo
Enquanto desfrutava o descanso em Alagoas, durante as festas de ano novo, Aldo resolveu aliviar o
estresse galopando um cavalo. Caiu!!! (JB, 15 jan. 2006)
(10) Na prateleira
Será lançado hoje, às 20h, na Livraria da Travessa, no Rio, o livro Dinheiro rápido: Um romance de
negócios, do diplomata e consultor de empresas Carlos Serapião Jr. O livro é um thriller empresarial,
ambientado no Rio e em São Paulo. (JB, 6 dez. 2005)
Quanto ao tipo de estruturação sintagmática, a expressão a seguir, toma-lá-
dá-cá exemplifica a lexicalização de uma frase verbal:
(11) Toma-lá-dá-cá
A inclusão de Eduardo Azeredo no relatório final da CPI dos Correios está sendo oferecida ao PT
em troca da desistência do partido de fazer um texto paralelo, com o risco de empastelar as
investigações. Os petistas ficaram de analisar a proposta. (FSP, 21 jan. 2006)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, chamamos a atenção para alguns pontos relacionados às
expressões lexicalizadas (ou em processo de lexicalização) no português
brasileiro: a) essas expressões são usadas com maior freqüência do que
supomos; b) elas têm alto rendimento comunicativo e assumem funções
discursivas diversas, de acordo com o gênero (ou subgênero) do texto que
constroem; c) elas, de certa forma, apresentam maior grau de estabilidade
referencial, pois funcionam em bloco e são coletivamente pré-fabricadas.
A retomada dos estudos lexicais sob a ótica de abordagens discursivas e
cognitivas abre novas possibilidades de estudo sobre o uso do léxico em uma
determinada comunidade. Os movimentos de estabilização e desestabilização
referencial deixam de ser um problema e passam a ser considerados mais
positivamente como fenômenos inerentes ao processo de referenciação; os
meios lingüísticos de que os falantes se valem para falar do mundo passam a
ser considerados como estratégias fundadas cognitiva e discursivamente. Sem
comprometimento da coerência teórica e metodológica, os estudos sobre
lexicalização no português brasileiro poderão juntar-se aos estudos
funcionalistas sobre gramaticalização.
REFERÊNCIAS
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1-14, 1976.
COSERIU, Eugenio. Princípios de semântica estructural. 2. ed. Madrid: Gredos,
1981.
ERMAN, Britt; WARREN, Beatrice. The idiom principle and the open choise
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KOCH, Ingedore G. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
LABOV, William. Denotational structure. Chicago Linguistic Society, Chicago, v.
14, n. 1, p. 220-260, 1978.
______. Principles of linguistic change. v. 1: internal factors. Cambridge: Blakwell,
1994.  
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Tradução de
Mara Sophia Zanotto. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Educ,
2002.
LEHMANN, Christian. New reflections on grammaticalization and
lexicalization. In: Wisher, Ilse; DIEWALD, Gabriele (Ed.). New reflections on
grammaticalization. Amsterdam: J. Benjamins, 2002. p. 1-18.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. O léxico: lista, rede ou cognição social? In:
NEGRI, L.; FOLTRA, M. J.; OLIVEIRA, R. P. Sentido e significação: em torno
da obra de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004. p. 263-282.
MENEZES, Vanda Cardozo de. A metáfora na estruturação de expressões
lexicais previsíveis. In: CONGRESSO SOBRE A METÁFORA NA
LINGUAGEM E NO PENSAMENTO, 2., 2006, Niterói. Anais... Niterói:
ASSEL-Rio: UFF, 2006.
MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos do
discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In:
CAVALCANTE, Mônica; RODRIGUES, Bernadete Biasi; CIULLA, Alena
(Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-52.
NEVES, Maria Helena Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.
PAIVA, Maria da Conceição; DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. A mudança
lingüística em curso. In: ______. (Org.). Mudança lingüística em tempo real. Rio de
Janeiro: Contra Capa: FAPERJ, 2003. p. 13-29.
SALOMÃO, Maria Margarida. Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o
estudo sociocognitivo da referência. In: KOCH, I. G. V.; MORATO, E. M.;
BENTES, A. C. (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p.
151-168.
TAYLOR, J. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford:
Oxford University Press, 1989. 
NOTAS
3 A amostra foi recolhida com a colaboração de Fernando Miranda, bolsista PIBIC/CNPq.
4 As abordagens atuais preferem o termo referenciação ao termo referência, para indicar que se leva em conta
não somente um sujeito do ponto de vista físico, mas ainda um sujeito sociocognitivo mediante uma
relação indireta entre os discursos e o mundo.
5 Em nota, Marcuschi (2004, p. 284) remete a trabalho anterior (MARCUSCHI, 2000), em que discute o
conceito de cognição distribuída e apresenta diversas posições a respeito da questão. “O conceito é
complexo”, afirma o autor, “controverso em alguns casos, mas tem grande utilidade para se pensar em
especial atividades conjuntas e permite tomar a noção de ‘atividade’ como unidade de análise”.
6 O estudo da mudança em tempo aparente está baseado no pressuposto de que diferenças lingüísticas
entre gerações podem espelhar desenvolvimentos diacrônicos, quando outros fatores se mantêm
constantes (PAIVA; DUARTE, 2003, p. 15).
7 O estudo de painel, através da comparação de amostras de fala dos mesmos falantes em diferentes
pontos do tempo, permite captar mudanças ou estabilidade no comportamento lingüístico do indivíduo e
pode fornecer elementos necessários para distinguir entre mudança geracional e mudança na comunidade
(PAIVA; DUARTE, 2003, p. 17).
8 O estudo do tipo tendência, por sua vez, compara amostras aleatórias da mesma comunidade de fala,
estratificadas com base nos mesmos parâmetros sociais, em dois momentos do tempo [...]. Essa técnica,
que nada diz sobre o comportamento lingüístico do indivíduo, permite depreender a direcionalidade do
sistema na comunidade lingüística e verificar em que medida mudanças na configuração social de um
grupo podem se refletir na propagação, na estabilização ou no recuo de processos de mudança (PAIVA;
DUARTE, 2003, p. 17).
9 Essa coleta foi feita com a colaboração de Andréia Mello Rangel e de Isabella Venceslau Fortunato,
bolsistas PIBIC/CNPq.
0 Koch (2002, p. 37) apresenta a re-ativação como um dos momentos em que a memória opera, entre outras
coisas, a reprodução, o processamento textual.
Crenças e atitudes lingüísticas: quem fala a língua
brasileira?111

Vanderci de Andrade Aguilera – UEL


Agora, o que nós não queremos é perder a nossa identidade cultural, entendeu? Nós
somos bugres, nós somos homens da terra, nós somos indígenas, entendeu? Nós
somos o dono da terra, a nossa maneira de ver a coisa aqui em Mato Grosso é
diametralmente oposta à do gaúcho ou do paulista ou do carioca (Informante 108/7).

INTRODUÇÃO
As várias áreas da lingüística, incluindo-se a sociolingüística, a lingüística
histórica, a filologia e a dialetologia têm, no Brasil, uma significativa história de
reflexão sobre os problemas da língua portuguesa falada neste país-continente:
são muitos os pesquisadores e instituições que vêm-se dedicando a esses
ramos da Lingüística e centenas de pesquisas se materializaram em obras, seja
sob a forma de livros e artigos, seja em disseminações em eventos científicos e
vieram à luz, fomentando em escala geométrica outros tantos estudos sobre os
achados anteriores.
No âmbito da sociolingüística, da lingüística histórica e da filologia,
resumidamente, podemos citar pelo menos oito grandes Projetos institucionais
e interinstitucionais, dos quais se originaram centenas de trabalhos científicos
de várias naturezas: NURC, ALFA, CENSO, VALPORT, VARSUL, Filologia
Bandeirante, PROPHOR, PHPB.112
No âmbito da dialetologia, em particular, desde o início do século passado,
iniciando-se de forma sistemática com Amaral (1920) e Nascentes (1922), os
pesquisadores vêm descrevendo e discutindo a distribuição diatópica dos
falares brasileiros. Mais especificamente, Nascentes (1922), em O Linguajar
carioca, sugere uma divisão dialetal do português falado no Brasil, que
compreende dois grandes grupos: o Falar Nortista e o Falar Sulista. No
primeiro grupo, coloca os sub-falares amazônico, nordestino e baiano; no
segundo, os sub-falares mineiro, fluminense e sulista. Esta divisão dialetal,
entretanto, proposta há mais de 80 anos para um Brasil essencialmente rural
(75% da população brasileira vivia no campo no início do século passado,
segundo dados do IBGE), ainda não foi devidamente discutida ou mesmo
avaliada, devido à ausência de um atlas lingüístico que abrangesse o país como
um todo. Até o início do século XXI, mais precisamente até 2004, contava-se
apenas com oito atlas regionais ou estaduais publicados.113
O Atlas Lingüístico do Brasil – doravante ALiB
(<http://www.alib.ufba.br>), projeto criado em 1996, na Universidade Federal
da Bahia, e coordenado por um Comitê Nacional, formado por uma equipe
multiinstitucional – concluiu a coleta de dados nas capitais brasileiras, e em
mais da metade dos 250 pontos previstos, contando, pois, com um farto
material para estudos sob as mais diversas óticas, seja no âmbito da fonética e
da fonologia, do léxico, da semântica, da morfossintaxe, do discurso, e da
metalingüística, entre outros. Sob este último enfoque, o metalingüístico, é que
está calcado o presente estudo.
A inclusão de questões metalingüísticas talvez seja uma regra nos atlas
espanhóis, como acontece nos Atlas Linguístico de Catalunya, Atlas Lingüístico-
Etnográfico de Andalucía, Atlas Lingüístico-Etnográfico de las Islas Canarias e Atlas
Lingüístico de la Península Ibérica, cujas cartas específicas serviram de base para as
discussões de Alvar (1986). No caso da geolingüística brasileira, esta é a
primeira vez que um atlas se propõe investigar, mesmo que de modo menos
complexo, o que pensam os brasileiros sobre a sua língua, sobre a língua dos
que falam diferente em sua cidade, em outros lugares do país e em outras
épocas.
A relevância de estudos dessa natureza se encontra muito bem defendida
em Estudio sociolingüístico de Alcalá de Henares (BLANCO CANALES, 2004) em
que a autora, embora desenvolvesse um trabalho sobre as mudanças
lingüísticas na fala alcalaína voltadas para aspectos fonéticos e
morfossintáticos, considerou que a inclusão de um estudo das crenças e
atitudes seria uma ferramenta a mais para a interpretação dos dados. E com
essa incursão pelo interior de seus informantes pretendia obter
[...] información sobre el sistema de creencias a propósito de sus propias hablas y las de sus
conciudadanos, y ver a qué tipo de actitudes positivas o negativas, dan lugar tales creencias. Ello nos
ayudará a detectar cuáles son – si los hubiera – los hechos lingüísticos estigmatizados y cuáles otros
gozan de prestigio (explicito o implicito). A partir de aquí podremos examinar con mayor claridad la
dirección que están tomando los cambios en marcha y valorar cuál es la tendencia que muestra
mayor presión sobre el habla de los alcalaínos, si es el desprestigio de ciertas variedades lingüísticas,
y por lo tanto, la defensa de su norma, o la firme expansión de algunos fenómenos, apoyada tanto
en el peso numérico de los hablantes como en la propia evolución interna de la lengua. (BLANCO
CANALES, 2004, p. 81-82)
Dessa forma, aproveitando as entrevistas das 25 capitais,114 propomos um
estudo inédito115 sobre a língua falada no Brasil: as crenças e atitudes
lingüísticas de falantes urbanos da língua portuguesa. Trata-se das respostas
dadas, por oito informantes de cada uma dessas capitais, às questões de
números um a seis, de natureza metalingüística, constantes dos Questionários
ALiB (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001).
Assim procedendo, isto é, por meio dessa incursão ao interior de nossos
informantes, pretendemos obter informações sobre o sistema de crenças a
propósito de suas falas, das de seus concidadãos e de seus patrícios, habitantes
de outras cidades ou regiões.
O corpus constitui-se, pois, das 1200 respostas116 previstas no Projeto e que
integram o acervo oral do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil.117
As perguntas de natureza metalingüística (Comitê Nacional 2001, p. 46)
feitas aos 200 informantes são:
1. Como chama a língua que você/ o (a) senhor(a) fala?
2. Tem gente que fala diferente aqui em _________? (citar a cidade onde está)
(Se houver, identificar os grupos que “falam diferente”).
3. Poderia dar um exemplo do modo como falam essas pessoas que “falam
diferente”?
4. Em outros lugares do Brasil, fala-se diferente daqui de ___________ ?
(citar a cidade onde está)
5. Poderia dar um exemplo do modo como falam em outros lugares do
Brasil?
6. No passado, falavam diferente aqui?
Neste artigo procedemos à análise da questão de nº 1,118 com a proposta de
verificar, a partir dessas amostras estratificadas, que língua os brasileiros crêem
falar. Desta forma, pretendemos descrever as diferenças e as semelhanças que
se estabelecem na crença e nas atitudes dos falantes sobre a língua que falam,
quando consideradas as variáveis externas: faixa etária, gênero/sexo, nível de
escolaridade e origem do informante, conforme a divisão do Brasil nas cinco regiões
geográficas: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Trata-se de um trabalho de natureza qualitativa uma vez que os dados não
permitiram um tratamento quantitativo mais amplo, conforme se verá no
desenvolvimento da análise.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Neste espaço fazemos uma breve retrospectiva das leituras a que tivemos
acesso, diretamente ou através da ótica de outros pesquisadores e, na
seqüência, discutimos os conceitos que sustentam este trabalho.
Um olhar panorâmico sobre o estado da arte
Este trabalho fundamenta-se nos princípios das crenças e atitudes
lingüísticas firmados por Wallace Lambert (1964), M. Fishbein (1965) e Milton
Rokeach (1968), analisados por Moreno Fernández (1998); bem como nas
discussões de Alvar (1986), López Morales (1979, 1983, 1989), Moreno
Fernández (1998, 2004), Almeida (1999) e Labov (2006).
Nosso contato com a bibliografia sobre o tema permitiu verificar que, na
Espanha, a crença e as atitudes lingüísticas têm gerado um número
considerável de pesquisas levadas a efeito por estudiosos espanhóis, desde
finais da década de 1970 até os dias atuais, com enfoque nas diversas
manifestações das línguas espanhola, catalã e galega, e suas variedades
regionais, dentro dos limites do país (ROJO, 1981; BIERBACH, 1983, 1988;
CARBONERO, 1985; WILLIAMS, 1987; MARTÍN BUTRAGUEÑO, 1993;
BLAS, 1994; GÓMEZ MOLINA, 1998; BLANCO CANALES, 2004).
Por outro lado, não menos importantes são as discussões de pesquisadores
espanhóis sobre as crenças e atitudes de falantes nativos dos vários países
americanos hispanofônicos, situados nas Américas. Dentre as primeiras
pesquisas sobre o tema, citam-se as de Alvar, junto a portorriquenhos,
dominicanos, colombianos, guatemaltecos, entre outros (1981, 1982, 1983,
1984 e 1986), López Morales (1983) sobre o Caribe Hispanico; e Alvar e Quilis
(1984) sobre as crenças lingüísticas dos cubanos e Quilis (1983) sobre as
atitudes lingüísticas dos equatorianos.
Além desses, pudemos analisar alguns trabalhos levados a efeito por
pesquisadores latino-americanos, naturais dos respectivos países
hispanofônicos, como os de Malanca de Rodriguez et alii, 1981, na Argentina;
Granda, no Paraguai (1981); e Postigo y Díaz, sobre falantes bolivianos na
Argentina (1996).
No Brasil, o primeiro trabalho a que tivemos acesso,119 o de Alves (1979),
trata das atitudes lingüísticas de falantes nordestinos em São Paulo. Depois
deste, houve um hiato de quase 20 anos para o assunto voltar ao centro de
interesse da academia. E, podemos afirmar com segurança, que não nos falta
matéria-prima para trabalhos de alto nível, se levarmos em conta a dimensão
territorial do Brasil; as múltiplas variedades lingüísticas regionais do português
constantemente em luta; as questões de prestígio, rejeição e preconceito
lingüísticos; o problema do bilingüismo e do contato lingüístico em regiões de
fronteira com os países hispanofônicos – Uruguai, Paraguai, Argentina,
Bolívia, Colômbia, Peru, Venezuela e Guianas (estas convivendo com os
falares nativos e as respectivas línguas européias – francês, inglês e flamengo);
e, internamente, em regiões de alta concentração de imigrantes alemães,
poloneses, italianos, japoneses, coreanos, árabes, entre outros; sem esquecer
das centenas de línguas indígenas, faladas por milhares de nativos e mestiços,
que ainda sobrevivem no interior do Brasil.
Dessa forma, os demais trabalhos sobre as atitudes lingüísticas são mais
recentes: Ramos (1998) trata da atitude lingüística de falantes da cidade de João
Pessoa – Paraíba; Bisinoto (2000) analisa a atitude sociolingüística em Cáceres
– Mato Grosso, trabalho ao qual nos reportaremos na análise de nossos dados;
Confortin (2001) discute as atitudes lingüísticas de falantes bilíngües nas
regiões de alta concentração de imigrantes italianos, alemães e poloneses no
interior do Rio Grande do Sul; Barbosa (2002) aborda a questão do não-
sotaque no processo de formação da identidade lingüística dos falantes de
Brasília, capital construída no centro goiano nas décadas de 1950-1960, e
povoada por brasileiros oriundos das mais diversas regiões do país; Mello
(2003) analisa as atitudes lingüísticas de adolescentes americano-brasileiros; e,
finalmente, o já citado trabalho acadêmico de Amâncio (2007), sobre a atitude
lingüística dos falantes na Tríplice Fronteira, ou Cidades Trigêmeas: do lado
brasileiro Barracão, no Paraná, e Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina; e do
lado argentino Bernardo de Irigoyen.
Principais conceitos que embasam este trabalho
Para a discussão sobre “quem fala o brasileiro”, ou “que língua se crê falar
no Brasil”, é importante esclarecer os princípios que dão sustentação teórica a
este trabalho. Para isso apresentamos os conceitos adotados pelos principais
especialistas sobre identidade, crenças e atitudes lingüísticas, bem como os
componentes das crenças e seus métodos de estudo, procurando ilustrar,
quando possível, com resultados de pesquisas levadas a efeito tanto na
Espanha, quanto em países hispanofalantes e no Brasil.
O que é identidade e como se manifesta
Para Moreno Fernández (1998, p. 180) identidade é a característica ou o
conjunto de características que permitem diferenciar um grupo de outro, uma
etnia de outra, um povo de outro. A identidade pode ser definida, também,
sob duas formas a) objetiva, ou seja, caracterizando-a pelas instituições
(educacionais, artísticas, políticas, culturais, sociais, religiosas) que a compõem
e pelas pautas culturais (usos, costumes, tradições) que lhe dão personalidade;
ou b) subjetiva antepondo o sentimento de comunidade partilhado por todos os
seus membros e a idéia de diferenciação com respeito aos demais.
A variedade lingüística pode ser interpretada como um traço definidor da
identidade do grupo (etnia, povo) e, desse modo, qualquer atitude em relação
aos grupos com determinada identidade pode, na realidade, ser uma reação às
variedades usadas por esse grupo ou aos indivíduos usuários dessa variedade,
uma vez que as normas e marcas culturais de um grupo se transmitem ou se
sedimentam por meio da língua, atualizada na fala de cada indivíduo.
O que é atitude lingüística e como se manifesta
A atitude lingüística é uma manifestação da atitude social dos indivíduos,
que pode centrar-se e referir-se especificamente tanto à língua como ao uso
que dela se faz na sociedade (MORENO FERNÁNDEZ, 1998, p. 179-180).
Normalmente as atitudes costumam ser a manifestação de preferências e
convenções sociais acerca do status e prestígio de seus usuários e, nesse caso,
são os grupos sociais de mais prestígio social, ou os mais altos na escala
socioeconômica os que ditam a pauta das atitudes lingüísticas das
comunidades de fala.
Ao se referir ao comportamento do falante em relação à própria variedade,
duas atitudes podem ocorrer: a de valorização e a de rejeição. Foi o que
registrou Alves (1979), citado por Amâncio (2007, p. 46-47), sobre as atitudes
lingüísticas de nordestinos que moravam em São Paulo. Observou que os
migrantes nordestinos (baianos e pernambucanos) de nível superior e classe
econômica mais alta (grupo A) avaliavam positivamente o próprio falar, ou
seja, o de seu estado de origem. Em contraposição, os de condições
socioeconômicoculturais mais baixas (grupo B) consideravam o dialeto
paulista “mais bonito, correto e adiantado” que o falar nordestino, e
manifestavam o desejo de falar como o paulista. A atitude destes falantes do
grupo B, de valorização da fala paulista e de rejeição à fala de sua origem,
reforça o conceito de prestígio lingüístico, ou seja, o processo de concessão de estima
e respeito para indivíduos ou grupos que reúnem certas características e que leva à imitação
das condutas e crenças desses indivíduos ou grupos.
Alves conclui que a adoção de uma variedade de prestígio seria, para estes
informantes, uma porta aberta para a ascensão social, ao contrário da
manutenção da variedade de origem, que os remetia sempre a uma realidade
social da qual gostariam de se desligar. A propósito da avaliação que o falante
faz de sua variedade lingüística, são oportunas as palavras de Moreno
Fernández (1998, p. 181):
[...] no siempre se mira lo propio con los mejores ojos porque es possible encontrar, por ejemplo,
que algunos hablantes de variedades minoritarias tienen una actitud negativa hacia su propia lengua,
generalmente cuando esas variedades no les permiten un ascenso social, una mejora económica o
cuando les imposibilitam el movimiento por lugares o círculos diferentes de los suyos. Esto no
significa que no se valore en absoluto la lengua propia o que no se le conceda el más mínimo
aprecio.
Essa assertiva vai ao encontro das conclusões a que chegaram Malanca de
Rodríguez Rojas et al. (1981) na pesquisa feita na cidade de Córdoba
(Argentina) sobre a atitude dos falantes diante da língua espanhola européia e a
variedade do espanhol falada na localidade. As autoras partem de dois
pressupostos: a) o falante argentino já superou a atitude de hispanofobia “[...]
que provocou em nossos românticos a pretensão de uma língua diferente da
peninsular, como manifestação de liberdade cultural”; e b) a realidade histórica
da imigração significa para ele uma nova maneira de ser argentino, do ponto
de vista étnico, e, além disso, uma nova maneira de falar a língua herdada dos
conquistadores, posto que esta não só reflete a acomodação do espanhol a
uma realidade inédita, senão pela pressão das línguas dos imigrantes.
A pesquisa, realizada com informantes de nível culto, permitiu as seguintes
conclusões: a) o falante cordobês opta por um modelo lingüístico: a língua dos
conquistadores, mas não a dos imigrantes espanhóis, que em nenhum caso se
apresenta como ideal; b) os falantes têm clara consciência dos caracteres que
distinguem o espanhol local do espanhol peninsular e reafirmam a necessidade
de fundamentar a unidade idiomática na diversidade, uma vez que acreditam
que Argentina e Espanha são realidades distintas, bem como as regiões do país
também são distintas entre si; e c) o respeito pela tradição idiomática está
ligado ao prestígio da cultura local, mas inibe o falante de assumir como oficial
alguma variedade regional argentina, acreditando que possam ser usadas, mas
não legalizadas como válidas.
Pontos de vista e métodos de estudo das crenças e atitudes
Fasold (1993) indica dois pontos de vista para o estudo das atitudes: a
mentalista e a condutivista. Esta, a condutivista, interpreta a atitude como uma
conduta, uma reação ou resposta a um estímulo, no caso a língua ou a
variedade usada por uma comunidade de fala.
A concepção mentalista, de natureza psico-sociológica, que nos parece ser
a mais aceita pelos pesquisadores, refere-se a uma categoria intermediária entre
um estímulo e uma ação individual e concebe a atitude como um estado
interno do indivíduo, uma disposição mental em relação a condições e fatos
sociolingüísticos concretos. De acordo com Lambert, a atitude se constitui de
três elementos que se situam no mesmo nível: o saber ou crença (componente
cognoscitivo); a valoração (componente afetivo); e a conduta (componente
conativo), o que significa dizer que a atitude lingüística de um individuo é o
resultado da soma de suas crenças, conhecimentos, seus afetos e sua tendência
a comportar-se de una forma determinada diante de uma língua ou de uma
situação sociolingüística.
Gómez Molina (1998, p. 31), no estudo sobre as atitudes lingüísticas na
região metropolitana de Valência – Espanha, discute o papel que cada um
desses componentes representa na manifestação da atitude lingüística do
falante diante da fala do outro:
O componente cognitivo é, provavelmente, o de maior peso específico; nele intervêm os
conhecimentos e pré-julgamentos dos falantes: consciência lingüística, crenças, estereótipos,
expectativas sociais (prestígio, ascensão), grau de bilingüismo, características da personalidade etc.;
este componente conforma, em grande medida, a consciência sociolingüística.
O componente afetivo se baseia nos juízos de valor (estima-ódio) acerca das característica da fala:
variedade dialetal, acento; da associação com traços de identidade; etnicidade, lealdade, valor
simbólico, orgulho; e do sentimento de solidariedade com o grupo a que pertence. Às vezes os
componentes cognoscitivo e afetivo podem não estar em harmonia.
O componente conativo, por sua vez, reflete a intenção de conduta, o plano de ação sob
determinados contextos e circunstâncias. Mostra a tendência a atuar e reagir com seus interlocutores
em diferentes âmbitos ou domínios: rua, casa, escola, loja, trabalho.
Moreno Fernández (1998, p. 184) registra que, para López Morales (1993),
a atitude está dominada por um só componente – o conativo, separando o
conceito de crença do conceito de atitude e colocando-os em níveis diferentes.
As crenças dão lugar a atitudes diferentes; estas, por sua vez, ajudam a
conformar as crenças, junto com os elementos cognoscitivos e afetivos, tendo
em conta que as crenças podem estar baseadas em fatos reais ou podem não
estar motivadas empiricamente.
Considerando que as atitudes estão formadas por comportamentos
(componente conativo), por condutas positivas (de aceitação) ou negativas (de
rejeição), verificamos que podem ilustrar esta concepção as pesquisas
realizadas no Brasil por Bisinoto (2000), sobre as atitudes lingüísticas em
Cáceres, no Mato Grosso, e por Confortin (2001), sobre as atitudes lingüísticas
de falantes bilíngües:
A região de Cáceres, no Mato Grosso, bem como todo o vale do rio
Cuiabá, era (ou ainda é) marcada por um dialeto, conhecido como o cuiabanês,
cujas principais características, do ponto de vista morfossintático, são a não-
marcação do feminino em construções nominais, do tipo, “meu mamãe, o casa
de mamãe está limpo”; e do ponto de vista fonético pela troca dos ditongos
nasais ão por om, ã por ão, como em “coraçom, amanhão”, por coração e
amanhã. A região do Mato Grosso – bem como todo o Centro-Oeste – até
meados do século XX esteve isolada do resto do país e com baixa densidade
demográfica. A partir do início da construção de Brasília e da transferência da
capital federal para Goiás, a região foi “invadida” por sulistas: gaúchos,
catarinenses e paranaenses, em grande parte fazendeiros latifundiários, que se
dedicavam à agricultura e à criação de gado, cujos dialetos fizeram ressaltar as
diferenças lingüísticas até então vigentes na comunidade, e passaram a ser
estigmatizadas, inicialmente pelos migrantes, depois, gradativamente, pelos
próprios falantes nativos.
Bisinoto entrevistou nativos e migrantes distribuídos em dois grupos: um
formado por profissionais de língua portuguesa (professores, jornalistas,
radialistas e advogados) e outro formado por não-profissionais da língua
portuguesa, escolarizados ou não escolarizados. Ao final, constatou que os
informantes, independentemente de serem nativos ou migrantes, profissionais
ou não-profissionais da língua portuguesa, tinham consciência do falar
característico de Cáceres e do desprestígio atribuído a tal variedade, como se
pode verificar nas conclusões de Bisinoto (2000, p. 103 apud AMÂNCIO,
2007, p. 47):
[...] a variedade lingüística local é estigmatizada socialmente e as formas lingüísticas estereotipadas
evidenciam o enfraquecimento e prenunciam um possível desaparecimento do falar nativo.
Entretanto, vale relembrar que a estigmatização da linguagem não é uma prática unilateral como se
suspeitava, ou seja, não se restringe às atitudes preconceituosas dos imigrantes. Ela é patente na
auto-rejeição do nativo que, quando nega a sua origem, recusa-se a admitir as diferenças,
envergonha-se de seu falar. O nativo internaliza (ou dissimula perante o ouvinte) o estigma
manifestado pelo imigrante, reproduzindo-o. O que difere essencialmente essas atitudes é a sua
motivação. As razões que induzem o comportamento e as reações do imigrante são muito diversas
das que orientam os interesses e a conduta dos nativos.
Confortin (2001) faz um trabalho diferente: analisa as atitudes lingüísticas
de falantes bilíngües (de português e italiano, português e alemão e português e
polonês), provenientes de micro comunidades no Rio Grande do Sul formadas
por imigrantes italianos, alemães e poloneses. Ao final, Confortin identificou
três atitudes diversas com relação aos pares de línguas e culturas contrapostas:
a) atitude de apego à língua materna, um sentimento de orgulho por tudo o
que se relaciona à etnia, sem que isso signifique uma rejeição à cultura
brasileira; b) atitude de adoção, sem restrições, da cultura e da língua brasileira,
atitude esta que parece vir acompanhada de um sentimento de inferioridade
pela cultura materna, que se manifesta em atitudes como não querer falar a
língua materna e disfarçar a própria identidade étnico-cultural; e c) atitude
direcionada a conservar o que pode dos valores da cultura materna, ao mesmo
tempo que cultua a língua e a cultura brasileiras (2001, p. 130).
A autora acrescenta que
Além da identificação dessas atitudes e apesar da heterogeneidade dos informantes, foram
identificadas atitudes constantes em todos os bilíngües quanto aos dois sistemas lingüísticos:
lealdade à língua e à cultura maternas manifestadas no desejo de que a língua de cada etnia seja
ensinada nas escolas como disciplina obrigatória e de que sejam incentivadas e divulgadas atividades
que visem a resgatar e tornar conhecidos aspectos relativos à cultura étnica do italiano, do alemão e
do polonês. (2001, p. 131)
Ambos os estudos demonstram com seus resultados que a atitude
lingüística desses falantes – seja o migrante gaúcho em terra cacerense, ou o
descendente de imigrantes europeus analisando a fala familiar – está alicerçada
no tripé dos componentes cognoscitivo, afetivo e conativo.
Quanto aos métodos de estudo das atitudes, os mentalistas recorrem a dois
grupos: diretos e indiretos. As medições diretas são praticadas sobre materiais
recolhidos por meio de questionários ou entrevistas. Os questionários podem
ter uma estrutura aberta (o informante emite a resposta que crê mais adequada)
ou fechada (oferecem-se ao informante possibilidades limitadas de respostas).
As medições indiretas se aplicam sem que o informante tenha consciência
de qual é o objeto de interesse (a atitude). Entre as medições indiretas a mais
utilizada tem sido a matched guise proposta por Wallace Lambert, nos anos 1960,
denominada em espanhol técnica de pares ocultos, das máscaras ou dos pares falsos.
Em sua origem, são entrevistados falantes bilíngües dominadores das línguas
que se deseja investigar. Esses bilíngües lêem um mesmo texto em cada uma
das línguas estudadas, e as leituras são gravadas numa fita, alternadamente, de
tal forma que pareça que cada texto foi emitido por um falante diferente: os
ouvintes podem chegar a pensar que ouviram o dobro de vozes, de pessoas,
das que realmente participaram do experimento. Os ouvintes bilíngües depois
de ouvir os textos devem apontar várias características dos falantes, não da
língua, traços como a simpatia, a inteligência, a decisão, o atrativo, a origem
social. Para recolher essas pontuações se utilizam escalas – escalas de
diferencial semântico – em cujos extremos se situam os pólos opostos de uma
determinada característica (simpático – antipático) (p. 187).
FALAMOS A LÍNGUA PORTUGUESA OU FALAMOS A LÍNGUA
BRASILEIRA?
A questão da denominação da língua oficial falada no Brasil tem sido alvo
de polêmica desde o século XIX quando se iniciaram os primeiros
movimentos pela independência política de nosso país, até então sob o
domínio português. Políticos, romancistas, poetas, historiadores e lingüistas,
cada qual em sua tribuna, se alternavam nas discussões e na defesa da
existência de uma língua essencialmente brasileira.
Melo (1971) e Houaiss120 (1975) dedicaram-se a retomar o problema e
colocar a questão no seu devido lugar: falamos o português numa variante
brasileira, que é a soma das variantes regionais, concretizadas no léxico, na
fonética, na morfossintaxe e na prosódia.
Parece-nos que, assim como nossos vizinhos argentinos já venceram a fase
da hispanofobia, nós, os brasileiros, vencemos a da lusofobia. No entanto,
puristas de plantão, vez ou outra, procuram reavivar a luta por uma língua sem
“máculas”, sem a contaminação de galicismos (CASTRO LOPES, 1935),
anglicismos (REBELO, 2002),121 e, quem sabe, daqui a pouco de arabismos ou
de sinoismos (é este o nome que se dará à influência chinesa sobre a língua do
Brasil?).
Um problema que demandou muita saliva, tinta e papel ao longo de 200
anos, sensibilizou o grande público? É o que vamos observar na fala de nossos
informantes.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Como já expusemos, o corpus se constitui das respostas dadas à Questão nº
1, destacada da seção Perguntas Metalingüísticas dos Questionários do ALiB
(Comitê Nacional: 2001) pelos informantes de 25 capitais,122 assim distribuídas:
da Região Norte, seis capitais – Macapá (ponto 002), Rio Branco (ponto 003),
Manaus (ponto 006), Belém (ponto 012), Rio Branco (ponto 020) e Rondônia
(ponto 021); da Região Nordeste, nove capitais – São Luís (ponto 026),
Teresina (ponto 034), Fortaleza (ponto 041), Natal (ponto 053), João Pessoa
(ponto 061), Recife (ponto 070), Maceió (ponto 077), Aracaju (ponto 079) e
Salvador (ponto 093); da Região Centro-Oeste, três capitais – Cuiabá (ponto
108), Campo Grande (ponto 115) e Goiânia (ponto 123); da Região Sudeste,
quatro capitais – Belo Horizonte (ponto 138), São Paulo (ponto 179), Vitória
(ponto 190) e Rio de Janeiro (ponto 202); e, finalmente, da Região Sul, três
capitais – Curitiba (ponto 220), Florianópolis (ponto 230) e Porto Alegre
(ponto 243).
Trata-se de uma pesquisa obtida por meios diretos, mediante a gravação
em áudio de questionário de estrutura aberta em que o informante pôde emitir
a resposta que acreditava a mais adequada. Para a avaliação das crenças e
atitudes constam apenas as seis questões na seção Questões metalingüísticas,
inseridas no final da entrevista, depois que o informante respondeu a exatas
429 questões.123
O universo dos informantes124 das capitais constitui-se, pois, de 200
brasileiros, nascidos e radicados nas respectivas localidades pesquisadas, sendo
100 homens e 100 mulheres, dos quais, 100 têm curso superior completo e 100
freqüentaram apenas o fundamental (completo ou incompleto), 100 estão na
faixa dos mais jovens, isto é, entre 18 e 30 anos e os outros 100 estão na faixa
dos 50 a 65 anos. O quadro abaixo permite a visualização do universo dos
informantes:
Quadro 1 – Universo dos informantes
Fundamental Superior
Variáveis externas Total
18-30 50-65 18-30 50-65
Homens 25 25 25 25 100
Mulheres 25 25 25 25 100
Total 100 100 200

Recolha do material
A coleta de dados foi realizada pela equipe de investigadores especialmente
preparada para tal, sob a supervisão de cada um dos diretores científicos.125 As
perguntas metalingüísticas, embora não aprofundem, em sua totalidade,
questões de crenças e atitudes, tal como se espera de pesquisas especialmente
desenhadas para este fim, permitem uma visão geral da avaliação que os
falantes brasileiros fazem da própria língua e da língua falada pelo outro.
A análise que fizemos baseou-se, inicialmente, na entrevista em áudio e,
posteriormente, para facilitar a análise, buscou-se a transcrição de cada uma
delas.
ANÁLISE DESCRITIVA
Nossa análise compreende duas partes: a dos que acreditam falar a língua
portuguesa e a dos que usam outra terminologia.
Minha língua é o português
As respostas dadas a essa questão demonstram que a maioria absoluta
(92%) acredita falar a língua portuguesa, seja por lhes terem ensinado na
escola, seja por nunca terem questionado a denominação e origem dela.
Vejamos alguns comentários, extraídos do corpus:
1 - A língua que eu falo? Essa língua que eu falo... essa nossa aqui é português, né? É só o português
mesmo que é a nossa (002/3).
2 - A língua? Bom, eu aprendi que essa língua que a gente fala é a língua portuguesa, acho... (003/2)
Alguns tinham dúvida se falavam ou não o português, como se pode
observar pela devolução da pergunta ao inquiridor, ou pela exposição dessa
dúvida. Geralmente são os informantes mais idosos e com menor escolaridade
que manifestam essa atitude:
3- Nosso idioma não é purtuguês? (012/4).
4- Eu falo portuguêis, penso que falo portuguêis.(risos). (053/3).
5- Chiii... a minha deve sê portuguesa, né (179/3).
Informantes mais jovens de baixa escolaridade mantinham uma atitude de
neutralidade, ora imputando a outros, de forma indeterminada, a denominação
da língua que falam, ora duvidando se a sua fala poderia ser encaixada naquilo
que a escola denomina de língua portuguesa, devido à distância que sente entre
o que via/ouvia na escola e o que avalia em sua comunicação:
6- Diz que é o português, né? (093/1).
7- Portuguesa.. Acho que é portuguesa. Num é muito clara, mais é... (rindo) embaraçoso (179/1).
Outros demonstraram alguma dificuldade para encontrar um nome para a
própria língua, como se pode observar na fala do senhor de Rio Branco, da
segunda faixa etária, que freqüentou apenas alguns anos de escola:
8- A minha língua? Como é que dá o nome… é o português mesmo (020/3).
A vacilação pode-se dar também pelo inusitado da pergunta que aparece
depois de quase três horas de questionamentos, depois de o informante ter
respondido a mais de 300 questões sobre a língua, mesmo que não lhe tenham
deixado claro o objetivo da entrevista. Vejamos os diálogos entre a inquiridora
(INQ) e dois informantes (INF) idosos, um homem e uma mulher, ambos de
baixa escolaridade, de duas capitais da Região Nordeste:
9- INQ – Como chama a língua que o senhor fala?
INF – ((silêncio))
INQ – A língua que o senhor fala. Não sabe como é que se chama? O senhor sabe!
AUX – Eu sou professora de quê?
INF – De ingrês (risos). A minha língua é... (pausa)
INQ – O senhor fala inglês?
INF – Português (061/3).
10- INF. – Nossa língua?
INQ. – Sim.
INF. – A nossa língua? Que nós estamos falando aqui? Num é portuguesa, não? (079/4).
Em outros momentos, o informante reflete sobre a língua falada ideal e a
da norma que está ao seu redor, demonstrando uma preocupação com o falar
correto, ideal que reconhece como inatingível. Busca também uma causa para
esse estado “deturpado” da língua, atribuindo-o à influência dos grupos de
imigrantes procedentes do mundo inteiro. Não se trata de informante jovem
ou com alto nível de escolaridade, é uma dona de casa com mais de 60 anos
que revela uma consciência lingüística bastante afinada, sensível às variações
lingüísticas que estão ao seu redor.
11- É a portuguesa, né? que o português ninguém sabe falá... a verdade é essa, aí muntcha gente fala
... a gente diz vasculhante, mas num é vasculhante... o nome é basculhante... né? qué dizê que o
português ninguém sabe falá. (É porque há) otras língua que o pessoal fala muntcho aqui no Brasil,
purque o Brasil é que tem todo o pessoal de fora, né? Purque todo país tem aqui no Brasil
(077/4).126
Ao lado da crença sobre a língua falada (o português), observou-se,
também, num informante jovem de baixa escolaridade, neto de indígenas, a
atitude de avaliação negativa, de rejeição mesmo à fala de seus ancestrais. A
resposta foi colhida ocasionalmente pela inquiridora, porque o questionário
não prevê indagações sobre a língua dos antepassados. Conhecedora da
significativa presença de indígenas e mestiços na sociedade roraimense, a
entrevistadora indaga do jovem mestiço se aprendeu a língua dos wapichana.127
A reposta foi dada prontamente: “Não. Esse “wapichana”.... esse negócio aí
não é pra mim, não (003/1).”
Esta primeira parte da análise das respostas deixa evidente que a escola é
um agente muito forte na propagação da língua oficial e de cultura e,
conseqüentemente, na sedimentação da crença de seus usuários. Por outro
lado, a ausência de escolaridade ou o pouco tempo de permanência nos
bancos escolares podem gerar a indecisão e a incerteza, pois, como vimos, os
que demonstraram qualquer oscilação ou dúvida no momento de explicitar a
língua que fala – 11 no total, pertencem ao grupo dos menos escolarizados:
002/3, 003/2, 012/4, 020/3, 053/3, 061/3, 077/4, 079/4, 093/1, 179/1 e
179/3. Outro indício interessante é que, entre esses 11 informantes, quatro são
da Região Norte e cinco da Região Nordeste, na qual se registram os maiores
índices de analfabetismo e, apenas dois são da Região Sudeste. A maior
incerteza, ou vacilação, foi manifestada pelos idosos (8) – que estão afastados
da escola há muitos anos, quiçá quatro ou cinco décadas, portanto, estão
pouco familiarizados com o jargão escolar (aulas de português, curso de
Língua Portuguesa) – e pelos homens (7). Este número, embora pareça
inexpressivo, traz um indício sobre as diferenças entre os papéis feminino e
masculino, corroborando pressupostos teóricos levantados por Labov (2006,
p. 488-489):
Pero en todos los otros casos revisados aquí, son las mujeres quienes son los agentes activos de la
diferenciación sexual. Como innovadoras de la mayor parte de los cambios lingüísticos, crean
espontáneamente las diferencias entre ellas mismas y los hombres. Al adoptar nuevos rasgos
prestigiosos más rapidamente que los hombres, y al reaccionar más marcadamente contra el uso de
formas estigmatizadas, las mujeres son de nuevo las agentes de difereciación principales,
respondiendo más rapidamente que los hombres a los cambios en el estatus social de las variables
lingüísticas.

Minha língua é o brasileiro, ou o cuiabanês ou o nativo


Dos informantes que diferiram, em algum ponto do discurso, da
denominação oficial, obtivemos 16 respostas (8%). Oito informantes
responderam espontaneamente que falam o brasileiro ou a língua brasileira
(006/1, 006/7, 012/6, 026/4, 041/8, 070/1, 077/1, 190/4) e um (243/3), no
pedido de confirmação, declarou falar o brasileiro, tomando-o como sinônimo
de português; dois falam a língua nativa (020/7, 070/5), dois, o cuiabano (108/2,
108/7). Dois jovens de nível fundamental declararam não saber que língua
falam (070/2, 079/1) e um jovem, também do fundamental, afirmou falar a
língua gíria (021/1).
É interessante verificar as respostas desses 13 informantes que admitiram
falar o brasileiro, o nativo e o cuiabano. Instados a rever sua resposta, nove
retificaram para português. Quatro deles não foram questionados sobre o fato
de declararem falar outra língua que não fosse a portuguesa.
Embora admitindo, na segunda resposta, falar o português, o informante
006/7 insistiu que acha errado denominar nossa língua de portuguesa, aliás,
devia ser língua brasileira, né. Aliás já tem movimento aí pra ser língua brasileira. Desses
12, a metade pertence à célula dos que freqüentaram apenas o ensino
fundamental, sendo quatro da faixa etária mais jovem.
O gênero, nesse caso, não interfere na crença de se que fala o brasileiro,
distribuída que está equitativamente entre homens e mulheres. Os de nível
superior (006/7, 012/6 e 041/8), que afirmaram falar uma língua própria do
Brasil, embora não tenhamos confirmações em suas falas, já devem ter tido
contato, em algum momento, com discussões sobre o status da língua que
falamos. O informante 006/7, advogado, funcionário público federal, porém,
em todas as respostas às questões metalingüísticas, deixou bem clara sua
posição de purista da língua local, com afirmações tais como:
12. Não, não, não, ih, não, eu abomino esse negócio de sotaque... o mineiro adora isso, o paulista
fala com aquele... não. Aqui o amazonense... todos falamos iguais, não tem esse negócio. Quando a
senhora vê alguém hãhãhãhãhã, o cara não é daqui ou passou uma temporada fora e absorveu
aquilo. Não, nós falamos aqui televisão e não telêvisão, Roráima e não Rorãima, nós falamus... as
nossas palavras são bem explicadas, letra por letra. Aqui ninguém fala Ri di Janeru, é Rio di Janeru,
Sampaulu, não é Sampaulu é Sãu Paulu.
Sobre a consciência sociolingüística deste informante, expressa no discurso
acima, podem-se levantar questões sobre a segurança e a insegurança
lingüísticas, isto é, a relação entre o que considera correto, adequado e
prestigioso e seu próprio uso lingüístico. É bem verdade que, em todos os
momentos, respeitou o princípio da lealdade, não traiu seu dialeto nortista: as
pretônicas [e] e [o] foram todas articuladas segundo o padrão regional, isto é,
com a abertura para [ԑ] e [ɔ]. Por outro lado, embora reconheça as diferenças
de sotaque entre o nortista e o carioca, considera a local a melhor, a mais pura,
a correta. São oportunas aqui as observações de Labov (2006, p. 305):
Podria proponerse el principio de que todo rasgo abiertamente estigmatizado tiene prestigio en los
contextos sociales en que se usa normalmente, y que a todo rasgo con prestigio se le otorgará un
estigma igual y opuesto en aquellos contextos rivales.

A atitude desse informante parece apontar para a crença de uma língua


brasileira pura, somente falada em Manaus em razão das condições histórico-
econômico-políticas que viveu a capital no início do século XX, no auge do
ciclo da borracha. A avaliação altamente positiva de sua variedade lingüística
continua nas questões seguintes, em que fica mais explícito que as condições
socioeconômicoculturais elevadas da capital amazonense favoreciam a língua
como a mais pura e prestigiosa:
13. Também não, pelo contrário, (antigamente) se falava ainda com maior purismo, porque Manaus
sempre foi uma cidade intelectualizada. Manaus era a Paris dos trópicos, no tempo da borracha, aqui
corria libra, ouro. O único lugar no Brasil que correu libra, ouro, foi em Manaus. Manaus foi a
primeira cidade do Brasil a ser iluminada. Foi a primeira cidade do Brasil a ter Faculdade de
Direito,128 a ter luz nas ruas.
H. Giles e colaboradores propõem as hipóteses do valor inerente e da
norma imposta.129 No caso do informante 006-7, parece aplicar à variedade
que usa a hipótese da norma imposta, segundo a qual a fala amazonense foi
avaliada como a melhor ou mais atraente que outra por ter sido falada por um
grupo de maior prestígio econômico e social na época.
Embora com menos indignação, diante do fato de a língua local estar
sendo contaminada e até abandonada, o informante 7, homem de nível
superior, historiador e apresentador de rádio e de televisão de Cuiabá, assim expressa
sua tristeza, saudosismo e impotência diante das mudanças que se operam na
sociedade local e, conseqüentemente, na fala cuiabana:
14. Por exemplo, no centro de Cuiabá mesmo, existe (sic) alguns que, com estilo intelectual, se
julgam mais sabidos, né. É que havia uma conexão, isto é, um estudo de filologia e mesmo de
sociologia e de antropologia. Quando você analisa a questão do cuiabano saindo para ir pro Rio de
Janeiro pra estudar, que era o ponto onde só tinha (curso superior), Rio de Janeiro, São Paulo,
entendeu, você via que a maioria deles se deixavam (sic) adulterar .pela fala, vinham de lá, como eu
digo no meu livrinho lá “com ti ti ti na boca” (refere-se ao s africado [ʃ] em sílaba travada), um
horror, do carioca, entendeu? E perdia aquela identidade filológica, ou lingüística, entendeu? Perdia
lá... E ainda encontramos esse tipo, que hoje em dia tem até vergonha de falar como cuiabano. Você
que é do sul, sabe dessa guerra que existe, da gozação do cuiabano, né, catxinha de iscuitá, de
cutxitxá né; não é (telefone) celular, é catxinha de cuthitchá.
E continua comentando as críticas de que são alvo os falantes do cuiabanês
por manterem, principalmente os mais idosos, a pronúncia [tʃ] e [dӡ] e em
contextos de [ʃ] e [ӡ] das demais regiões brasileiras, como:
15. Não é verdão, que é o (time de) futebol é... matxitxão (referência a maxixe, legume de coloração
verde, comum na culinária cuiabana) né, é essas coisas assim que pegam na questão do linguajar
cuiabano, entendeu? Então o linguajar do cuiabano do centro de Cuiabá, alguns mais antigos, ainda
mantêm aquele, aquele linguajar pacorrento (sossegado, tranqüilo), entendeu?
E prossegue, mais alentado, com a inserção dos pau rodado:130
16. E tem uns costumes que já sedimentaram na personalidade e na vida dessas pessoas, né? E a par
disso, aí vem a influência dos que chegaram, entendeu? E que hoje são considerados cuiabanos,
aqueles que nós chamamos de pau rodado, né, que veio, ficou e aprendeu muita coisa de Cuiabá e
gostou de Cuiabá. Mas, vira e mexe, como diz o cuiabano, ou quando assunta – porque cuiabano
não fala de repente, fala quando assunta – ele está envolvido por toda aquela situação de Cuiabá.
A informante 108/2, por sua vez, responde espontaneamente que fala o
cuiabano, mas quando indagada sobre a língua falada no Brasil admite ser a
língua portuguesa. Nas demais questões metalingüísticas, a informante deixa
clara a crença de que fala diferente de outras regiões, citando as diferenças
vocabulares entre a sua fala e a de seu companheiro gaúcho.
Poucos informantes teceram comentários sobre a querela português versus
brasileiro. Como vimos acima, apenas um informante (homem, de nível
superior, da 2ª faixa etária) defendeu a existência de uma língua brasileira. Há,
porém, a crença de não se falar no Brasil exatamente o português de Portugal
nem o português culto. Isto está no imaginário de informantes de outras
regiões, como expõem essa professora aposentada de Salvador e esse
advogado de Porto Alegre, ambos da faixa etária II:
17. (Nosso) idioma é português. Agora, claro, que ele é todo mesclado com outros idiomas, então
nós utilizamos palavras de inglês, palavras de francês, palavras de brasileiro, quer dizer que é uma
mistura de português abrasileirado, mas o idioma é português (093-8).
Ou como jocosamente se manifestou a informante 041/8:
18. A língua portuguesa ou brasileira (riso)... brasilenha (riso).
Sobre a língua nativa, ao contrário da língua cuiabana, as manifestações são
bastante fracas, quantitativa e qualitativamente. São apenas duas respostas,
ambas de informantes com nível superior, um dos quais (070/5) apenas
esboçou a resposta, como se fôra um ato falho, e rapidamente corrigiu para
língua portuguesa. O outro (020/7) também não parece trazer qualquer
conotação ideológica, indicando muito mais uma tentativa de dar uma resposta
diferente do que uma crença lingüística distinta dos demais.
CONCLUSÕES
A análise das amostras estratificadas indicou que, para a crença sobre a
língua que falam, a grande maioria, seja pela influência da escola ou da cultura
vigente ou herdada, reconhece falar a língua portuguesa ou o português (92%).
Dos 8% restantes que identificaram outras formas – brasileiro ou a língua
brasileira, cuiabanês e língua nativa – como a denominação mais apropriada
para a língua que falam, verificou-se que quase todos prontamente retificaram
a resposta anterior, retomando a denominação oficial. Os demais não foram
instados a rever a resposta dada espontaneamente.
Quatro depoimentos sobre a crença e atitudes lingüísticas merecem
destaque. O primeiro e o segundo documentam a prevalência do componente
afetivo sobre o cognoscitivo e o conativo: a) de um lado, a veemência do
informante 7 do ponto 006, por ser um defensor do purismo lingüístico de sua
comunidade de fala, ao assegurar que a nossa língua é a brasileira e que já
existe um movimento para a mudança do nome oficial; manifestou em todos
os momentos a segurança lingüística de que trata Moreno Fernández (1998, p.
182), mantendo todas as características fonéticas tipicamente nortistas, que,
para o informante representa a fala normal, correta, sem sotaque. Dessa forma,
corrobora a sobreposição do componente afetivo ao cognoscitivo e conativo; e
b) de outro lado, a defesa, também do informante 7 do ponto 108, em prol de
um dialeto que parece estar com os dias contados, por ser motivo de, além de
rejeição pelos próprios cuiabanos mais jovens e escolarizados, de zombaria
pelos paus rodados, ou seja, os moradores de outras regiões do Brasil que se
fixaram em Cuiabá. Embora com essa atitude fique saliente o componente
afetivo em relação ao saber (cognoscitivo) e à conduta (conativo), trata-se de
um interessante caso de deslealde lingüística (SALVADOR, 1983), pois, apesar
de defender suas raízes lingüísticas, em nenhum momento de sua fala registrou
as variantes discriminadas e próprias do dialeto cuiabano.
O terceiro e o quarto casos ilustram a prevalência do componente
cognoscitivo (saber) sobre o afetivo e o conativo. Em primeiro lugar, a clareza
de raciocínio e de análise sobre as mudanças a que está sujeita a língua
demonstradas pela informante 4 do ponto 077, quando afirma que português
ninguém sabe falar; em segundo lugar, na fala do informante 243/7, ao discorrer
sobre a abrangência dos conceitos língua portuguesa e língua brasileira.
Quanto às diferenças e semelhanças que se estabelecem na crença e nas
atitudes dos falantes sobre a língua que falam, quando consideradas as
variáveis externas: faixa etária, gênero/sexo, nível de escolaridade e origem do
informante, observou-se que: a) a faixa etária é definidora da incerteza e da
vacilação no momento de o informante expor sua crença sobre a língua que
fala: os mais idosos demonstraram essa oscilação com muito mais ênfase que
os da faixa I. No entanto, pode-se concluir que a faixa etária não atua sozinha,
ela está associada ao baixo nível de escolarização. O pouco tempo de
permanência na escola ou o fato de ter se distanciado dela há muito tempo
podem ter colaborado para essa vacilação na hora de denominar a língua que
fala; b) as mulheres, por sua vez, demonstraram menos oscilação do que os
homens, independentemente do nível de escolaridade; e c) a origem do
informante (regiões Norte e Nordeste) demonstrou ser uma variável bastante
forte quanto à incerteza sobre a crença de falar o português, podendo, no
entanto, estar associada à variável nível de escolaridade.
Conforme expusemos de início, o ALiB ao inserir, pela primeira vez na
história da geolingüística do Brasil, no instrumento de recolha de dados,
questões metalingüísticas, que levam a respostas sobre crenças e atitudes
lingüísticas, dá um passo à frente nessa área do conhecimento e abre
perspectivas de aprofundamento de estudos a partir da base que ora oferece
aos interessados no assunto. Por outro lado, espera-se que a inserção de
questões dessa natureza possa motivar futuros autores de projetos geo-
sociolingüísticos a contemplar em suas investigações um tema cujos resultados
poderão indicar a direção da mudança lingüística que se processa em dada
comunidade, bem como esclarecer em que medida os fatos lingüísticos
valorizados ou estigmatizados podem interferir nessa mudança.
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NOTAS
1 Este artigo integra a relação dos trabalhos realizados durante o estágio pós-doutoral levado a efeito na
Universidad de Alcalá de Henares, Espanha, com financiamento da CAPES, sob a orientação do
professor doutor Francisco Moreno-Fernández, a quem deixo aqui firmados meus mais profundos
agradecimentos.
2 Sobre estes projeto v. os sites <http://www.letras.ufrj.br> e <http://www.fflch.usp.br>.
3 Iniciando com o Atlas Prévio dos Falares Baianos (1963), desenvolvido na Universidade Federal da Bahia,
sob a coordenação de Nelson Rossi, seguem-se: Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais,
desenvolvido por uma equipe de professores da Universidade Federal de Juiz de Fora (RIBEIRO et al.,
1977), Atlas Lingüístico da Paraíba (MENEZES; ARAGÃO, 1984), Atlas Lingüístico de Sergipe, também
sediado na Universidade Federal da Bahia (FERREIRA et al., 1987), Atlas Lingüístico do Paraná, na
Universidade Estadual de Londrina (AGUILERA, 1994), Atlas Lingüístico e Etnográfico da Região Sul, o
único atlas a abranger não apenas um só estado, mas uma região composta por três estados, desenvolvido
pelas Universidades Federais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, sob a coordenação de Koch
(2002), Atlas Lingüístico e Sonoro do Pará, com sede na respectiva Universidade Federal (RAZKY et al.,
2002) e, finalmente, o Atlas Lingüístico de Sergipe II, por Cardoso (2004). Atualmente, em fase de
publicação, e em diversos estágios de desenvolvimento, há mais de uma dezena de outros atlas estaduais,
como o do Amazonas, Pará, Rondônia, Acre, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo,
Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, vol. II. Além desses, já se concluíram ou
estão em andamento, sob a forma de dissertação ou teses de doutorado, atlas de menor abrangência, isto
é, que têm como objeto de estudo comunidades menores, na maioria dos casos, um município apenas.
Citam-se os atlas referenciados ao final deste artigo: Londrina (AGUILERA, 1989), Adrianópolis
(ALTINO, 2000), São Francisco do Sul (em andamento), Ilha de Santa Catarina (IMAGUIRE, 1998), Litoral
Sul Paulista (IMAGUIRE, 2004), Ilha de Marajó (CARDOSO SILVA, 2002).
4 O ALiB, ao definir a rede de pontos lingüísticos a serem investigados, estabeleceu um total de 250
localidades, ou municípios, sendo 25 capitais e 225 municípios do interior dos vários estados. Não foram
incluídas a capital federal, Brasília, por ter menos de cinqüenta anos e Palmas, capital de Tocantins,
estado recentemente criado (1990), fruto do desmembramento do estado de Goiás.
5 Tivemos acesso, através da Dissertação de Amâncio (2007), a apenas sete trabalhos sobre atitudes
lingüísticas desenvolvidos no Brasil, até o momento, aos quais nos referiremos ao longo deste texto.
6 Trata-se de um total estimado, uma vez que alguns informantes, por motivos diversos, não foram
argüidos sobre todas as questões. Nos procedimentos metodológicos, este total será discutido mais
adequadamente.
7 O acervo oral, representado pelas entrevistas gravadas, encontra-se depositado na sede do ALiB,
localizada no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
8 A fim de facilitar a discussão, dividimos nosso trabalho em três artigos: o primeiro, ou seja, o presente
artigo, trata das respostas dadas à questão 1; o segundo explora as respostas dadas às questões 2, 3, 4 e 5;
o terceiro versa sobre a questão 6.
9 Os seis trabalhos aqui apresentados constam da dissertação de Amâncio (2007), em cujas informações
me baseei para esses comentários.
0 V. as observações de Houaiss, à p. 143 sobre os reais aspectos negativos da lusofonia, principalmente nos
países africanos que têm o português como língua oficial.
1 Muitos de nós ainda temos presente na memória a ‘cruzada santa’ de Aldo Rebelo, na época deputado
estadual pelo Partido Comunista do Brasil, com o projeto de lei contra os estrangeirismos, em particular
os anglicismos, na língua escrita do Brasil. O projeto de lei previa pesadas multas para os que a
transgredissem. O insólito projeto não foi aprovado e rendeu duras críticas dos lingüistas sob a forma de
artigos em revistas e jornais, depois reunidos em livro por Faraco (2003).
2 Os pontos lingüísticos foram numerados de 001 a 250 no Projeto ALiB, de tal forma que 001 refere-se a
Oiapoque, no Amapá, extremo norte, e 250 a Chuí, no Rio Grande do Sul, extremo sul. V.
(<http://www.alib.ufba.br>).
3 Os Questionários completos, com um total de 435 perguntas, estão divididos em sete seções assim
distribuídas: Questionários Fonético-fonológico (QFF), com 159 questões e 11 de prosódia; Semântico-
lexical (QSL) com 202, Morfossintático (QSM), com 49 perguntas; 4 Questões de Pragmática e 4 Temas
para Discursos dirigidos. Para encerrar, consta um texto para leitura em voz alta.
4 Os informantes foram identificados por numerais de 1 a 8, da seguinte forma: os de nível de formação
fundamental são os de número 1 a 4 e os de 5 a 8, os de nível superior. Quanto ao sexo/gênero, os
números ímpares indicam os homens e, obviamente, os de número par, as mulheres. No total serão
investigados 1 100 informantes.
5 O Comitê Nacional compõe-se de duas diretorias: a executiva e a científica. Esta última é formada pelos
coordenadores regionais que, por sua vez, são responsáveis pela coleta de dados em determinado
número de estados. Couberam a esta autora os estados do Amapá, Paraná e São Paulo, mas atuou
igualmente na coleta das capitais: Boa Vista, Manaus, Belo Horizonte, Vitória, Florianópolis, Campo
Grande e Cuiabá.
6 Mantivemos a transcrição grafemática da fala da informante pela variedade lingüística regional
apresentada: t > tʃ, e outros fenômenos fonéticos observáveis no português falado coloquial, como a
alternância de /v/ e /b/, alçamento de /o/ > /u/ em posição átona final ou pretônica, e apócope do
/r/ das formas verbais infinitivas ou não.
7 Os wapichana, grupo indígena da família aruak, hoje em número de 5000 indivíduos, habitam o território
Raposa Serra do Sol, Roraima, na fronteira com a Guiana Francesa.
8 Não há consenso entre os especialistas sobre quais seriam as primeiras universidades criadas no Brasil
dada a confusão entre criação de curso de Direito e criação de Universidade com curso de Direito. A
maioria registra que as duas primeiras são as Universidades estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. O
curso de Direito, em Manaus, criado em 1909, segundo os estudiosos, não saiu do papel.
9 H. Giles y sus colaboradores han propuesto: hipótesis del valor inherente – possibilidad de comparar dos
variedades y de que alguna de ellas sea considerada como mejor o más atractiva que la otra; hipótesis de
la norma impuesta – una variedad puede ser valorada, por sí misma, como mejor o más atractiva que otra
si es hablada por un grupo com mayor prestigio (una misma variedad puede ser objeto de actitudes
positivas o negativas dependiendo de la valoración que se haga del grupo en que se habla) (p.180-181).
0 Paus rodados são as pessoas de outros lugares que se fixaram em Cuiabá, em oposição aos legítimos
cuiabanos, os de chapa e cruz, isto é, os de nascimento e os que morreram ou irão viver ali até a morte.
Desfazendo um mito: a repetição na escrita e suas
funções

Vera Lúcia Paredes Silva – UFRJ/CNPq


PARA INTRODUZIR
A repetição está, de alguma forma, envolvida em fenômenos que têm sido
objeto de diferentes abordagens – entre eles, a retomada, a paráfrase, a
reformulação, o gatilho, o paralelismo – e tem sido investigada na sua
caracterização e função, especialmente na língua falada e nos gêneros conversa
e entrevista, nos quais se manifesta com alta freqüência (MARCUSCHI, 1996;
HILGERT, 1996; SCHERRE, 1998; OLIVEIRA, 2000, entre outros).
Na contramão daqueles que consideram a repetição um traço de “pobreza de
linguagem”, próprio do discurso menos planejado (OCHS, 1979), Tannen
(1989) acredita que ela possa dar vazão à criatividade, pelo contraste entre o
uso de formas/estruturas fixas, repetidas, e formas de elaboração nova.
Destaca, inclusive, a importância da repetição no texto literário, particularmente
seus efeitos sonoros na poesia. (e, poderíamos acrescentar, nas canções).
Na perspectiva da análise da conversação, a repetição pode ser uma estratégia
de preenchimento, geradora de tempo para a reflexão do falante. Por outro
lado, inúmeros estudos variacionistas já apontaram a importância do
paralelismo no uso contíguo de variantes, o que se observa tanto em
fenômenos de natureza morfossintática como discursivo-pragmática
(SCHERRE, 1998).
A modalidade escrita, por sua vez, não é o lócus da repetição “amaldiçoada
por todos os manuais de estilo” (CASTILHO, 1998, p. 1 13). O de José
Oiticica, um clássico, assim estabelece os requisitos da Originalidade, segundo
o autor, um traço que distingue o detentor de um estilo rico do comum dos
escritores:
Para obter essa riqueza é necessário: 1º evitar as chapas ou banalidades (quer de idéia, quer de
expressão); 2º procurar imagens, comparações e idéias novas ou renovar as antigas; 3º evitar a
repetição de um termo enquanto o leitor se recordar dele; 4º possuir grande vocabulário para
empregar sempre o termo exato e variar as expressões; 5º particularizar os aspectos ou os fatos.
(OITICICA, 1936, p. 93-94, grifos nossos)
Como se vê, Oiticica, na sua avaliação impressionística, não deixa margem
a dúvidas: repetir é vício a ser evitado, dogma que ainda repercute em nossas
salas de aula hoje em dia.
Numa perspectiva mais recente, tanto da lingüística funcional como da lin-
güística textual, envolvendo, por um lado, a continuidade de referência e, por
outro, o processo de referenciação, a repetição pode ser abordada como uma das
estratégias de retomada de um referente no discurso. Na lingüística funcional,
aparece associada ao princípio da continuidade tópica, proposto em Givón (1983),
de acordo com o qual a escolha da forma de expressão de um referente no
discurso estaria diretamente relacionada ao maior ou menor grau de
predizibilidade desse referente naquele ponto do discurso. A escolha poderia
ser feita entre nomes (modificados ou não), pronomes (fortes ou fracos) e
anáfora zero. Observe-se que, em Givón (1983, 1995), o problema da repetição
não é mencionado. Aliás, a concepção de referência em Givón é ainda bastante
tradicional: “um nominal tende a ser o tópico recorrente ou leitmotif do
parágrafo”, aparecendo por isso em orações sucessivas. Embora não o deixe
explícito, corresponde a uma visão de entidades preestabelecidas no mundo e
representadas pelas formas da língua no discurso.
Na última década, porém, a lingüística textual tem mostrado quão simplista
é esta visão de referência, porque não considera o processo de construção
discursiva e de elaboração de significado, que vai sendo construído na escolha
da forma de expressão. Em outras palavras, não se trataria apenas de uma
alternância na forma, em que um nome poderia estar dando lugar ao pronome,
à anáfora zero ou mesmo a outro nome, pressupondo-se a manutenção de um
significado; mas, sim, do acréscimo de novos matizes significativos, através da
mudança na forma de expressão, fazendo evoluir o referente no discurso, ou
seja, através do processo de referenciação. Assim, enriquece-se e complexifica-
se o tratamento dado à continuidade referencial.
Originalmente, a concepção de continuidade tópica/referencial em Givón
está bastante comprometida com a língua falada e, particularmente, com textos
narrativos, que são os que servem de base ao autor e seus colaboradores
(especialmente em GIVÓN, 1983). Já os autores da lingüística textual (KOCH,
1999, 2001; KOCH; MARCUSCHI, 1998) têm-se detido no exame de textos
escritos e, principalmente, textos de natureza argumentativa.
Naturalmente, quanto mais elaborado um texto, quanto mais planejado
(OCHS, 1979) – e nisso se incluem as diferenças entre fala e escrita
prototípicas – mais refletida e cuidadosa é a escolha dos termos para a
retomada de um referente. Conseqüentemente, menos deverá ocorrer a
repetição e melhor serão exploradas as estratégias de construção da referência.
Nesse sentido, o discurso jornalístico constitui uma boa fonte de exemplos,
conforme já demonstraram, aliás, em vários trabalhos Koch e Marcuschi
(1998). Os textos veiculados, além de coesos, mantendo a continuidade
referencial, tendem a apresentar a escrita padrão vigente, o que levaria a evitar
a repetição.
Neste trabalho investigamos a repetição como uma das estratégias de
continuidade de referência/referenciação, numa amostra de uso escrito real,
lançando mão de um tratamento estatístico de base variacionista como
instrumental de análise para aferição do peso de fatores correlacionados ao
fenômeno.
A título de ilustração, tomemos o exemplo abaixo, extraído de uma notícia
do jornal O Dia. Nela, o antagonista – um general – é apresentado com nome
e patente e depois referido sucessivamente como militar e general, pela anáfora
zero e finalmente como autor, na fala citada de um juiz, portanto, apresentado
como parte de um processo:
1) O juiz João Marcos C.B. F. , da 8ª. Vara de Fazenda Pública, indeferiu ontem o pedido de
antecipação de tutela proposto pelo general do Exército brasileiro Luiz C. S. pleiteando a demolição do
prédio do 19º BPM (Copacabana), construído junto à Estação Siqueira Campos do metrô. O militar
alegava que a construção afetava a privacidade no edifício xx da Rua Figueiredo de Magalhães, onde
Ø tem um apartamento no segundo andar [...].
Ontem, o juiz visitou o novo batalhão e em sua decisão considerou que a única reclamação
pertinente feita pelo general havia sido resolvida – as caixas d’água que obstruíam a vista da varanda
do militar foram trocadas por uma mais baixa. Sobre as demais queixas, o juiz escreveu: “A quadra de
esportes se situa fora do alcance da vista da varanda do autor, não havendo como afetar a sua
privacidade [...]” (Notícias – O Dia)

O CORPUS ANALISADO
Trabalhamos com um corpus constituído de três gêneros jornalísticos: a
crônica, a notícia e o artigo de opinião. Foram analisados cerca de 30 textos de cada
gênero e foram levantados todos os referentes com duas ou mais menções.131
Com relação ao conceito de gênero, é preciso que se distinga esta noção das
noções de domínio discursivo e de tipo de texto. Quando se fala em discurso
jornalístico, o que se tem em mente é uma atividade, não definidora de um
gênero, mas desencadeadora de vários gêneros, tal como outras atividades: a
jurídica, a acadêmica, etc. Trata-se, portanto, de uma esfera de produção
discursiva – um domínio discursivo (MARCUSCHI, 2002).
Já crônicas, notícias, artigos de opinião, são gêneros, entendidos como
atualizações, em diferentes situações concretas de uso, de estruturas
disponíveis na língua, com propósitos específicos (PAREDES SILVA, 1997).
Ou, no dizer de Bakthin, “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Os
gêneros, por sua vez, são compostos por estruturas lingüísticas, seqüências ou
segmentos textuais identificáveis por traços lingüísticos – os tipos de textos –
que, diferentemente dos gêneros, não passam de um conjunto limitado, cujos
componentes podem variar conforme o autor: narrativo, descritivo,
argumentativo, expositivo, injuntivo, dissertativo.
Vale a pena determo-nos um pouco nessas diferenças, porque serão
relevantes no correr de nossa argumentação. Assim, a crônica atual é
apresentada como um texto leve, rápido, para consumo. É um texto auto-
referente, em primeira pessoa e procura representar um momento mais
descontraído para o leitor, em meio à turbulência do noticiário. Cinco cronistas
semanais do jornal O Globo estão neste subconjunto.132 Na seleção das
crônicas, foram privilegiados textos que apresentassem uma temática do
cotidiano e a predominância, embora não exclusividade, de seqüências
narrativas.
Com o objetivo de evitar a heterogeneidade no que se refere ao gênero
notícias, nos restringimos às noticias da cidade, excluindo-se o noticiário político,
econômico, esportivo etc. Os jornais consultados foram: O Dia, Extra, Jornal do
Brasil, O Globo.
Quanto aos artigos de opinião, foram extraídos da página de Opinião dos
jornais, mas apenas de O Globo e do Jornal do Brasil, uma vez que os chamados
jornais mais populares não têm artigos de opinião do mesmo teor.133 Podem
ser escritos por jornalistas com colunas fixas, regulares (Villas-Boas Correa,
Dora Kramer etc.) ou por colaboradores eventuais, especialistas das áreas em
que escrevem (políticos, filósofos, engenheiros, professores etc.).
A ANÁLISE
Todos esses textos foram submetidos a tratamento estatístico, utilizando-se
o pacote de programas VARBRUL para análise da variação, e trabalhando-se
basicamente com o mesmo conjunto de variáveis lingüísticas. O ponto de
partida foi a alternância entre as retomadas de um referente por nome,
pronome ou anáfora zero.
Assim, a questão da continuidade tópica ou referencial foi aferida através
dos parâmetros de Givón (1983), codificados como variáveis lingüísticas
(distância, persistência, interferência/ambigüidade). Neste artigo, porém,
interessa-me o fator distância, já que este foi o primeiro grupo de fatores
selecionado pelo programa VARBRUL, o que significa que ele foi considerado
o mais relevante para a escolha entre nome e pronome, nos três gêneros
analisados. A distância referencial foi medida mediante o número de orações em
que se deu a última menção do referente (uma contagem à esquerda,
portanto). A Tabela 1 abaixo apresenta os resultados, em pesos relativos, da
influência desse fator para a preferência por nome vs. pronome nos três
gêneros investigados:
Tabela 1 – Efeito da distância referencial na retomada nominal (vs.
pronominal)
Distância Crônicas Notícias Art. opinião
0 (mesma oração) .18 .07 .02
Oração anterior .23 .15 .14
2 orações .38 .34 .30
3 orações .59 .45 .38
4 orações .69 .69 .30
5 orações .62 .70 .65
6 orações .74 .82 .40
7 ou + orações .86 .81 .87

Observando-se a Tabela 1, vemos que de fato há uma gradação: à medida


que as menções se tornam mais distantes, aumenta a tendência para o uso de
nomes. Na comparação dos pesos relativos da distância na escolha de nomes vs.
pronomes nos três gêneros, como os resultados foram obtidos de rodadas
separadas do programa, importa acima de tudo a hierarquia de pesos, mantida
através dos três gêneros.134 A única quebra da hierarquia está na queda do peso
relativo na categoria 6 orações nos artigos de opinião, resultado que pode ser
atribuído ao número menor de ocorrências nesta categoria. A última categoria
(distância 7) reúne todas as distâncias iguais ou superiores a sete orações.
Ao mesmo tempo, como essa medida avalia a manutenção da referência, e
não do item, interessava-nos controlar o tipo de retomada, isto é, se por item
idêntico – uma repetição, portanto – ou por sinônimo, descrição definida, ou
mesmo pronome, para verificar até que ponto as retomadas evitavam o uso
próximo dos mesmos itens lexicais, isto é, ainda obedeciam à máxima dos
gramáticos tradicionais que se tornou um dos “cavalos de batalha” dos
professores de redação.
Nossa maneira de controlar a repetição nos dados foi por meio de uma
variável que codificava as retomadas como idênticas (portanto, repetidas) ou
modificadas com relação à menção anterior. Retomando-se o exemplo 1 acima,
vê-se que o referente juiz é mencionado de forma idêntica no início dos dois
primeiros parágrafos. Já o general se apresenta em retomadas modificadas – e
ambos os exemplos estão no gênero notícias.
É o cruzamento desses resultados, referentes à distância e à repetição, que
desejamos apresentar e discutir, com suas implicações para alguma distinção
entre os gêneros jornalísticos analisados. Os gráficos abaixo apresentam tais
resultados:
Gráfico 1 – Crônicas com repetição x crônicas sem repetição
Gráfico 2 – Notícias com repetição versus notícias com modificação

Gráfico 3 – Artigos com repetição versus artigos com modificação

Como se trata de textos escritos, vê-se que as retomadas tendem a ser, na


sua maioria, modificadas. Mas há certo relaxamento nessa exigência de
modificação, à medida que a menção precedente se torna mais distante. Assim,
as retomadas sucessivas por item idêntico – repetições, portanto – tendem a
ocorrer mais em distâncias maiores, corroborando a antigo preceito de
Oiticica, de evitar o termo enquanto o leitor ainda se lembrar dele.
Esta tendência revela, porém, aspectos interessantes, quando
correlacionada ao gênero de discurso em causa. Enquanto os índices de retomadas
repetidas vão paulatinamente subindo a partir da distância 3 em notícias e artigos,
nas crônicas, ao contrário, a tendência a retomadas repetidas cai a partir do
mesmo ponto, o que causa certa estranheza por se tratar do gênero mais
coloquial e próximo da fala, no qual, portanto, poderiam soar mais naturais as
repetições. Nestas há uma impressionante regularidade na preferência por
retomadas modificadas, mesmo em distâncias maiores.135
Ao examinar cada gênero mais detidamente, vemos que é nos artigos de
opinião que o percentual de retomadas repetidas se mantém mais elevado,
principalmente a partir da distância de três ou mais orações. Esses resultados
se explicam em parte pela constituição desses gêneros, no sentido dos
segmentos ou tipos textuais que os compõem. Os artigos de opinião, constituídos
predominantemente por seqüências argumentativas (77%), acabam por exigir,
em nome da clareza, a retomada nominal. Como a freqüência mais alta de
retomadas de um referente no texto indica o tópico discursivo ou o tema
principal do texto, sua repetição teria, assim, o papel coesivo de manter presente
e fazer evoluir o tema. Veja-se, por exemplo, o artigo a seguir, que defende a
existência das “agências reguladoras”, do qual se transcreve o primeiro
parágrafo:
2) O conjunto de projetos em curso no governo federal, modificando radicalmente atribuições e
autoridade das agências reguladoras, na prática, significa sua extinção. Por falta de informação ou por
uma visão equivocada do papel das agências é cada vez mais freqüente que um ou outro membro do
governo apareça atirando no que viu e acerte no que não viu. Se essa cruzada quixotesca conseguir
acabar com as agências, perdem todos: o cidadão, o governo e, principalmente, o Rio de Janeiro
(Opinião – O Globo – Moinhos de vento).
E o texto segue, organizando os parágrafos através da retomada do mesmo
nome – agências – com ou sem adjetivo. O segundo parágrafo e o terceiro, não
muito longos, assim se iniciam, respectivamente:
As agências reguladoras foram criadas, em primeiro lugar [...]
Em segundo lugar, as agências foram idealizadas [...]
Desse modo, vemos que a repetição assume uma função organizadora no
texto. A mesma expressão nominal – agência – repete-se, assim, 12 vezes num
total de 18 retomadas da entidade nesse artigo. Observe-se ainda que dessas 18
“retomadas” apenas uma se faz por uma descrição definida – o melhor
instrumento criado pela sociedade moderna.
No entanto, muitas vezes pode haver repetição de itens léxicos sem que isso
configure propriamente continuidade de referência – a repetição é lexical, e não
referencial. Ainda assim, esse tipo de repetição contribui para a unidade temática
do texto. Veja-se, a propósito, a repetição do item órgão nos dois parágrafos
iniciais do artigo de opinião abaixo transcritos:
3) O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio de Mello, ao comentar as
propostas existentes para a instituição do chamado controle externo da magistratura, pôs em
evidência a circunstância de que, ao criarmos um órgão controlador do Poder Judiciário, seríamos
levados, talvez a curto prazo, a criar um outro órgão controlador e assim por diante, ad infinitum.
E, realmente, assim é. Se entendermos fundamental que tenhamos um órgão que controle e fiscalize o
Poder Judiciário, esse órgão ao se desviar de suas finalidades, estaria a requerer a existência de órgão
que lhe seja superior. (Opinião – Jornal do Brasil, Hélio Bicudo – Controle Externo do Judiciário)
Outra motivação para essa preferência nominal está no traço semântico de
animacidade. Estudos anteriores envolvendo o uso de pronomes (cf. PAREDES
SILVA 1988, 2003; GOMES, 1996; MOLLICA, 2003) já haviam mostrado
que, em português, o pronome está mais fortemente associado ao traço
animado do referente. Quando se retoma um inanimado, tende-se a usar a
anáfora zero, se a menção é próxima, ou se prefere repeti-lo nominalmente.
Isso se observa em todos os gêneros analisados. Ora, nos artigos de opinião
predominam os nomes inanimados, daí a preferência por retomadas por SN.
Além disso, a especificidade de alguns referentes centrais desses textos
(“agências reguladoras”, por exemplo) dificulta substituições.
Por outro lado, nas crônicas e notícias, predominam as seqüências narrativas,
em que referentes animados participam de atividades. Nesse caso, a
continuidade referencial é perturbada pela presença de mais de um
referente/tópico – isto é, dos vários personagens da narrativa. No caso da
crônica, a possibilidade de utilizar diferentes formas de referência – nome
completo, sobrenome, apelido, primeiro nome, profissão ou atividade ou
qualquer tipo de descrição definida – não perturba o leitor, que partilha com o
escritor o conhecimento da personagem, geralmente, famosa (políticos, artistas
etc.). Isso, por um lado, evita a repetição, por outro, contribui para a elaboração
da referência, no processo de referenciação. Veja-se a diversidade de
expressões com que o cronista se refere à ex-prefeita de São Paulo, num
mesmo parágrafo:
4) Nisso a prefeita de São Paulo é legítima representante dos seus eleitores. Quando Ø surgiu na vida
pública, era difícil não gostar dela. Mulher, sexóloga, do PT, mãe do simpático roqueiro Supla, casada com um
político muito sério e elegante, Eduardo Suplicy, Marta Suplicy era pura modernidade. Não sei se mudou a
sua voz ou se mudou o meu ouvido, ela logo passou a me transmitir uma arrogância quatrocentona,
plutocrata de esquerda. Muita gente riu quando Marta mandou um concorrente calar a boca durante
um debate eleitoral na TV. Certo, era o Paulo Maluf, mas o gesto foi autoritário. (Crônica – A
Dapieve, O Globo, 11 jul. 2003)
A crônica, caracterizada pelo tom coloquial, com marcas de oralidade, é
justamente o gênero em que menos se encontra a repetição sucessiva de formas
de referência idênticas. Mas não nos esqueçamos de que a crônica é um gênero
literário, produzido por escritores. Trata-se, assim, de um “não-planejamento”
apenas aparente, que é, de fato, planejado. Pelo menos é o que se observa do
ponto de vista da referência.
Quanto às notícias, nelas também podemos encontrar personagens
conhecidos ou famosos, mas não necessariamente. Como seu objetivo
principal é informar, e não entreter, não pode haver pressuposto sobre o
conhecimento prévio do leitor. Além disso, as notícias costumam envolver
mais de um participante, às vezes, com níveis de relevância próximos, então é
preciso dar o nome de cada um, a cada menção, ou identificá-lo pela categoria
profissional a que pertence, ajudando assim a construir uma referência no
discurso. A propósito, veja-se o exemplo abaixo, em que a semelhança de
funções entre os personagens citados chega a dificultar a recuperação do
referente quando mencionado apenas como secretário:
5) O ex-secretário nacional de Esportes Lars Grael negou ontem que Ø tenha visitado o presídio Bangu
III em 1999. Anteontem, o secretário estadual de Esportes, Francisco de Carvalho, o Chiquinho da Mangueira,
afirmou que esteve com Lars na unidade para implantar um projeto de ressocialização, o Pintando a
Liberdade. O projeto jamais foi implantado no presídio. Como O GLOBO noticiou ontem, agentes
penitenciários afirmam que o secretário visitava com freqüência traficantes em Bangu III. (O Globo)

PARA CONCLUIR
Em suma, a análise de diferentes gêneros jornalísticos ajuda a desfazer o
mito da “pobreza lingüística“ associada ao uso da repetição na modalidade
escrita. Se, por um lado, vimos ser ainda verdade que há restrições à repetição
sucessiva quando é possível lançar mão de outros recursos (sinônimos,
apelidos, títulos, cargos etc.) na expressão de um referente, como nos gêneros
notícias e crônicas, por outro lado ela detém uma função importante como
estratégia organizadora e estruturadora do tema do texto, particularmente no
gênero artigo de opinião. Nesse caso, como o que está em jogo são especialmente
idéias, e não personagens, a reiteração de um termo/uma expressão tem papel
coesivo e traz contribuições para a construção do significado e para a clareza
do texto. Desse modo, a repetição pode, enfim, mostrar sua face positiva na
escrita.
REFERÊNCIAS
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______Referencia(cão), repetição e gêneros jornalísticos. Participação em mesa-
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SCHERRE, Maria Marta Pereira. Paralelismo lingüístico. Revista de Estudos da
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New Jersey: Ablex, 1982.
______. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in conversational
discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
NOTAS
1 Note-se que a primeira menção, que introduz o referente no discurso, ou uma menção única não são
computadas em nossa análise. Trabalhamos da segunda menção em diante, por isso estou usando
também o termo retomada.
2 São eles: Artur Xexéo, Artur Dapieve, Joaquim Ferreira dos Santos, Cora Ronai e Zuenir Ventura.
3 Esses jornais chamam de Opinião artigos exclusivamente sobre futebol, como é o caso do Extra.
4 Diferenças de menos de 10 não são consideradas relevantes.
5 Note-se que o modificado inclui a possibilidade de retomada por pronome.
PARTE 3

História
A questão da constituição histórica do português
brasileiro: revendo razões136

Américo Venâncio Lopes Machado Filho – UFBA/Grupo PROHPOR


INTRODUÇÃO
Há muito que, na História, se têm identificado e registrado características
que, crescentemente, distanciam o português brasileiro (PB) do português
europeu (PE), quer no âmbito fônico ou lexical, quer, sobretudo, na
morfossintaxe, a ponto de hoje, por vezes, promover entre seus falantes −
quando em contato direto −, a sensação de se tratar de duas línguas distintas e
não mais de uma entidade lingüística comum.
Essas diferenças manifestam-se, mais evidentemente, nas disputas
fundiárias a que parecem estar sempre sujeitos os povos e, conseqüentemente,
as línguas históricas. De um lado amparadas pelo mito do erro ou da
corrupção lingüística, de origem eminentemente filogênica − que se estabelece
no confronto com a alteridade. De outro, pelo também assombroso
argumento da densidade demográfica dos utentes e da dimensão geográfica de
domínio, de natureza naturalmente retaliativa à posição anterior.
Sem se querer aqui avançar a outras considerações a respeito desse
interminável embate de posse e poder, o certo é que grandes diferenças
existem entre o que se convenciona reconhecer como as duas maiores e mais
visíveis variedades da língua, a européia e a brasileira.
O elenco dos fatos lingüísticos dissonantes entre elas é ingente e tem sido
resenhado por diversos estudiosos da língua, a exemplo de Houaiss (1985),
Mateus (2002), Bagno (2002), Mattos e Silva (2004a, 2004b), para apenas citar
alguns dos mais recentes, que, em perspectivas diferentes, argumentam em
prol ou não da unidade do português, cada vez mais relativa.
Entrementes, Paul Teyssier (1997, p. 97), no seu livro introdutório sobre a
História da língua portuguesa, faz uma indagação que levanta um problema crucial
que se relaciona com o trabalho da lingüística histórica e dos resultados
empíricos que tal ciência pretende alcançar no conhecimento da formação do,
por alguns chamado, mundo da lusofonia: “Como explicar as particularidades
do português do Brasil?”. Particularidades que se, de certa forma, se
relacionam com um caráter alegadamente conservador em alguns aspectos, ao
fim e ao cabo, superam-no em volume e qualidade e surpreendem pelos fatos
inovadores que se lhe contrapõem, nomeadamente em função da simetria
gramatical que parece o português brasileiro (PB) partilhar, em alguns pontos,
com crioulos de base portuguesa.
É nesse sentido que respostas a essa problemática têm, na
contemporaneidade, sido formuladas à sombra de diferentes motivações
interpretativas, que se têm debatido, com vistas a procurar promover uma
explicação científica para o formato lingüístico que a língua portuguesa veio a
assumir na América meridional.
Essas posições serão aqui revistas, sem prejuízo de levantamento de novas
avaliações para a questão.
BREVÍSSIMO OLHAR SOBRE O CENÁRIO SÓCIO-HISTÓRICO POR
QUE PENETROU O PORTUGUÊS
Encontra-se patente na Carta de Caminha a seguinte narrativa:
[...] heram aly xbiij ou xx homees pardos todos nuus
sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas.
traziam arcos nas maãos e suas seetas.
vijnham todos rrijos perao batel
e nicolaao coelho lhes fez sinal que posesem os arcos.
e eles os poseram. aly nom pode deles auer fala ne ente dimento
que aproueitasse polo mar quebrar na costa.[...].
(Fragmento extraído do fólio 1 verso da Carta de Pero Vaz de Caminha - CORTESÃO, 1967)
Fala que se entendesse certamente não houve, não talvez pela vaga do mar,
senão pela distância lingüística que se interpunha àqueles homens. Embora
integrassem a frota de Cabral os chamados “línguas”, como eram conhecidos
os intérpretes da época, seriam os índios, mesmo para aqueles, “jente que
njmguem emtende”, como bem registrou Caminha. (apud CORTESÃO, 1967,
fólio 6r). Não seria em vão que, antes de partir para Calecute, deixaria, então,
Cabral alguns degradados com a função de “aprenderem bem asua fala eos
em/tenderem” (apud CORTESÃO, 1967, fólio 11r).
O fragmento da Carta de Caminha acima reproduzido esboça o que teria
sido o cenário muito inicial de reconfiguração e acomodação lingüística que
teria de vir progressivamente a operar-se naquele novo mundo.
Se atualmente persistem por volta de 180 línguas autóctones, seria
“provável que na época da chegada dos primeiros europeus ao Brasil [...] o
número das línguas indígenas fosse o dobro do que é hoje”, como afirma
Rodrigues (1994, p. 19).
Não obstante, dos dois troncos lingüísticos indígenas brasileiros hoje
reconhecidos pela maior parte dos estudiosos,137 isto é, o Tupi e o Macro-Jê,
era àquele que pertenciam majoritariamente os índios do contato nos
primeiros séculos da colonização no litoral, o que serviu para difundir a idéia,
entre alguns autores, mas não sem controvérsia,138 obviamente, de que, até a
intervenção político-lingüística do Marquês de Pombal, nos meados do século
XVIII, ter-se-ia falado uma língua geral de base mormente tupinambá − língua
da família lingüística tupi-guarani − por toda extensão costeira do Brasil, em
cuja dimensão o português teria sido, no início, mero coadjuvante lingüístico.
Convém lembrar que, em 1595, um pouco mais de meio século após a
publicação da primeira avaliação metalingüística da língua portuguesa, ou seja,
da Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira, já se fazia publicar a
Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, do Padre Anchieta, “pera
melhor instruição dos Cathecumenos, & augmento da noua Christãdade
daquellas partes”, como justifica Augustinho Ribeyro na licença à publicação
dessa obra (ANCHIETA, 1981).
Não obstante todo esse esforço retórico desde então empreendido, eram
os índios exterminados, isto é, passando de 50% da população integrada, nos
finais do século XVI, para ínfimos 2% ao se encerrar o século XIX (MUSSA,
1991, p. 163). Para melhor se poder avaliar a dimensão dessa tragédia, no
século XX, autodeclaravam-se indígenas 734.127 indivíduos, conforme análise
da amostra dos Censos Demográficos de 1991 e 2000, do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2006). Confrontando-se esse dado ao total
da população brasileira, composta de 169.600.000 habitantes, representam os
índios aproximadamente 0,43%.
Em substituição aos índios, vão, como se sabe, cada vez mais, endossar o
cenário sócio-histórico, em velada mas crescente influência, os negros
africanos, vergonhosamente escravizados, à moda social da bruteza humana de
então.
Levados inicialmente aos milhares e depois aos milhões para o Brasil desde
os primeiros anos da colonização iniciada por Dom João III, eram os escravos,
ao longo de todo o tráfico, pertencentes a apenas dois troncos lingüísticos,
cuja importância na composição sócio-histórica é bastante desigual.
Do tronco afro-asiático, foram traficados − não apenas antes do século
XIX − os negros islamizados do ramo Chádico, de língua hauçá, em número
bastante reduzido, para assumir tarefas relacionadas a serviços urbanos,
sobretudo na região do Nordeste, especialmente na Bahia.
É, entretanto, ao tronco congo-cordofaniano a que pertence a maioria dos
escravos, que integravam dois principais ramos de uma única família lingüística
que dele chegou ao Brasil, ou seja, a Níger-Congo.
Do ramo Kwa, principalmente as línguas ewe, fon, mahi (jeje), mina, ijó e
iorubá (nagô); do ramo bênue-congo, negros do grupo bantuídeo, sobretudo
do subgrupo banto: falantes de quicongo, umbundo e mais hegemonicamente
do quimbundo. Esses africanos foram, como mercadoria de primeira
necessidade, distribuídos por todo o Brasil durante o largo período de
escravatura (PESSOA DE CASTRO, 2001).
A idéia, muito difundida, da seleção negativa dos negros que foram
traficados para a América tem, pois, sob essa distribuição glosso-genética, de
ser relativizada, no sentido de que suas bases gramaticais teriam sido talvez
menos distantes umas das outras, no que concerne a uma análise lingüística,
conquanto, para os negros, a mistura etnolingüística promovida devesse ter
sido bastante penosa.
Nesse cenário, não se pode deixar de registrar, como tácito, a constante
chegada de novas levas de portugueses e seu processo de miscigenação ou
mestiçagem, assim como a forte presença de outros europeus nos finais do
século XIX e durante a primeira metade do século XX, na condição de
imigrantes. O espectro desse último fator, porém, deve ser considerado
setorizadamente, em função da forma como se deu sua difusão na grande
dimensão territorial do Brasil.
Para se ter uma visão global da evolução étnica da população brasileira do
século XIX ao século XX, observem-se o Quadro 1 e o Gráfico 1 que lhe
corresponde, abaixo:
Quadro 1 – Evolução da população brasileira segundo a cor − 1872/1991
Cor 1872 1890 1940 1950 1960 1980 1991
9 930 14 333 41 236 51 944 70 191 119 011
Total 146 521 661
478 915 315 397 370 052
3 787 26 171 32 027 42 838
Brancos 6 302 198 64 540 467 75 704 927
289 778 661 639
1 954
Pretos 2 097 426 6 035 869 5 692 657 6 116 848 7 046 906 7 335 136
452
4 188 13 786 20 706
Pardos 5 934 291 8 744 365 46 233 531 62 316 064
737 742 431
Amarelos ... ... 242 320 329 082 482 848 672 251 630 656
Sem
... ... 41 983 108 255 46 604 517 897 534 878
declaração

Fonte: Reis (2000, p. 94)

Gráfico 1 – Evolução da população brasileira segundo a cor − 1872/1991

Fonte: Reis (2000, p. 94)

Uma primeira avaliação global parece indicar que aqueles que pregaram e,
através da imigração, quiseram promover o branqueamento do Brasil, tiveram
sucesso na sua empreitada, ao menos quantitativamente. Todavia, se se
observar a distribuição étnica no espaço territorial do país, tem-se uma outra
leitura. Veja-se a Figura 1, a seguir:
Figura 1 – Etnias em distribuição geográfica no Brasil
Fonte: IBGE, (2006)

Os quatro mapas representam, da esquerda para a direita, de cima para


baixo e em sentido horário, as etnias branca, parda, indígena e preta e sua
distribuição no vasto solo brasileiro. Quanto mais encorpada a cor, mais
densidade demográfica deve ser considerada.
Nessas bases, conjugando-se à análise o Gráfico 1, anteriormente
observado, vislumbra-se um País mais branco, com uma população parda cada
vez mais expressiva, mas em distribuição hegemonicamente invertida, ou
melhor dizendo, um país ao avesso: muito mais branco ao sul e muito mais
pardo ou mestiço ao norte. Os índios remanescentes, como se sabe,
refugiaram-se entre o Cerrado e a Região Amazônica.
A par desses dados relativos à situação social a partir dos primeiros séculos
de formação da identidade lingüística brasileira, muito rapidamente neste
trabalho recompostos, deve-se adjudicar, inexoravelmente, o papel do fator
escolarização.
Mattos e Silva é um dos autores que têm defendido que não se pode pensar
e melhor compreender os estádios de constituição histórica aos quais o
português brasileiro se sujeitou ao longo de sua formação no Brasil, se esse
fator não for considerado, juntamente com dados da demografia histórica e do
rastreio de sua mobilidade.
Seria já a altura de se indagar como poderia a língua portuguesa ter-se
mantido incólume − se é que isso pode ser possível mesmo em circunstâncias
mais regulares −, em face do quadro multilingüístico e pluriétnico que
caracterizou toda sua trajetória no solo brasileiro.
Serafim da Silva Neto (1975, p. 118; 1960, p. 21), muito condicionado às
idéias de seu tempo e à sua visão de mundo, de que se tornou lídimo defensor,
foi um dos que creu numa “vitória” da língua portuguesa ou na “progressiva
mancha de azeite” sobrepondo-se às demais realidades lingüísticas”, diante do
que chamou de “linguagem adulterada dos negros e índios”, que, segundo suas
próprias palavras, “não se impôs senão transitoriamente: todos os que
puderam adquirir uma cultura escolar e que, por este motivo, possuíam o
prestígio da literatura e da tradição, reagiram contra ela”.
A história da escolarização no Brasil, contudo, tem relatado o contrário.
Ribeiro (1999) indica que, no final do século XIX, seria de 85% o contingente
de analfabetos no Brasil.
Se esse quadro melhorou muito, como dados recentes do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) buscam apontar, é, todavia,
bastante desolador, ainda hoje.
Veja-se o Gráfico 2, a seguir:
Gráfico 2 – Taxas de analfabetismo no Brasil
Fonte: IBGE (2006)

Embora possa, a priori, causar algum alento, sobretudo pela descendência


da curva de analfabetismo, o Gráfico 2, acima, não expressa a realidade do
País, como um todo. Ele apenas representa a camada da população sem
qualquer instrução formal, sem considerar o analfabetismo funcional, isto é,
aqueles que embora tenham freqüentado uma instituição de ensino, por três,
quatro ou cinco anos, mal conseguem assinar o próprio nome. Isso em razão
de as escolas públicas nunca terem desempenhado propriamente o seu papel,
sobretudo durante e mesmo ainda após o período da Ditadura Militar,
revelando um processo de falência a seus propósitos educacionais.
Se se observar o Gráfico 3, na seqüência, pode-se ter uma visão menos
distorcida da questão:
Gráfico 3 – Taxas de escolarização no Brasil por anos de freqüência e
sexo

Fonte: IBGE (2006)

Observando-se a Figura 2, a seguir, tem-se uma dimensão mais real do


problema da escolarização no Brasil, sobretudo no que se refere à questão da
estandardização lingüística e aos acessos à informação diferenciada pela
população.
Figura 2 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais
Fonte: IBGE (2006)

Os níveis de analfabetismo parecem, pois, reproduzir o anverso e o reverso


que se estabelecem entre as populações branca e parda, antes vistos nos mapas
de distribuição étnica no espaço territorial do País, na Figura 1.
Curioso, entretanto, é perceber que, mesmo com esse quadro,
independentemente do nível de escolarização, alguns dos fenômenos,
comumente apontados como dissonantes, entre o português europeu e o
brasileiro, são, de forma geral em situações distensas, utilizados por ambas as
camadas da população brasileira, a exemplo dos pronomes pessoais ou
oblíquos tônicos em função acusativa − em decorrência do desaparecimento
de alguns clíticos −, das estratégias de construção de relativas, do apagamento
do objeto direto, enrijecimento da ordem sujeito/verbo, mesmo nas
interrogativas, entre outros.
Convém, todavia, registrar que, como bem afirma Mattos e Silva (2004b, p.
131), “o português no Brasil sempre foi, muito provavelmente, mais de um”,
isto é, perpassa por sua história uma situação de diglossia, cuja gênese tem
diferentes razões. Revisitar as hipóteses explicativas para a formação do
português popular brasileiro é o que se pretende a seguir.
AS DIFERENTES RAZÕES
No incessante e obliterado trabalho de reconstrução que tem a lingüística
histórica empreendido no Brasil, três posicionamentos têm sido mais correntes
na disputa pela pretensiosa tarefa do desvendamento do passado da língua
portuguesa: em linhas gerais, de um lado situam-se os que defendem ter o
português popular brasileiro sofrido um processo de crioulização, com
posterior descrioulização em direção ao português europeu; de outro, os que
crêem que as modificações pelas quais passou a língua no Brasil são
decorrentes preponderantemente de uma deriva secular, já prevista no sistema,
a que se justapõe uma “confluência de motivos”; por fim, os que defendem
que o português é fruto de um processo de transmissão lingüística irregular,
que, diferentemente da crioulização, não chegou a produzir um crioulo, mas
uma variedade da língua.
A primeira hipótese apresentada tem origem remota, ainda nas idéias de
Adolfo Coelho no século XIX, que se baseava, sobretudo, na falta de
concordância no sintagma nominal − fenômeno dos mais visíveis e
estigmatizados na língua, mesmo internamente no Brasil − mas que encontrou
expoente defesa, no século XX, na figura de Gregory Guy (1981), que, mesmo
depois de ter seus argumentos duramente rebatidos por Fernando Tarallo
(1993), ainda hoje, coleciona, nas diversas viagens que regularmente faz ao
Brasil, dados do léxico, da fonética e da sintaxe, com que reiteradamente
consubstancia seu posicionamento nos debates em congressos nacionais e
internacionais.
É entrementes apoiado por John Holm (1992), que vê o português popular
brasileiro como um semi-crioulo, ao ponto de, em defesa de sua posição,
substituir a tradicional pergunta: “Was portuguese creolized in Brazil?”,139 pela
proposta por Guy, em seu trabalho: “How could it be possible to avoid
creolization?”140 (1981, p. 309).
Holm (1992) considera que as diferenças internas do próprio português
brasileiro − que subdivide em Português Popular Brasileiro141 (PPB) e
Português Brasileiro Standard 142 (PBS) − são estruturalmente muito maiores
do que entre o Standard English 143 (SE) e The Black English Variety 144 (BEV)
norte-americanos.
Nega o autor a existência de uma língua geral de base indígena no Brasil
nos primeiros séculos, que teria, a seu ver, na verdade, sido um português de
alguma maneira crioulizado, e ajuiza a proposição de que essa crioulização não
teria tido origem real no Brasil, mas, sim, em São Tomé, de onde teria sido
importado o crioulo que viria a ser veiculado no País durante todo o Ciclo da
Cana-de-Açúcar.
Segundo Holm, traços fonológicos, sintáticos e lexicais − como seria de se
esperar − ligam o crioulo de São Tomé ao PPB:
a) na fonologia, a estrutura silábica CV, que proporcionou a síncope ou
apócope em elementos como negro > nego, voando > voano, dizer > dizê e do -s
final em diversos vocábulos; o processo de palatalização diante da vogal alta
anterior [i], que, segundo o autor, é tão regular nesse crioulo como no PPB; a
alternância entre a lateral alveolar [l] e vibrante alveolar simples [r] no PPB,
que, embora reconheça sua possibilidade na história do português, atribui sua
ocorrência àquele crioulo, em que esses elementos seriam alofônicos.
b) na morfologia e na sintaxe, aponta destacadamente a falta de movimento
nas interrogativas, de que encontra paralelo nas línguas crioulas; as
construções de estruturas relativas, cortadoras ou com cópia, em orações
como O sorvete que eu gosto ou A menina que eu briguei com ela; a dupla negação,
antes e depois do sintagma verbal, a exemplo de Ele não sabe não; a redução
drástica das formas e tempos verbais; modificação da preposição em nas
formas ni, por analogia com a preposição homófona ni do iorubá, todos
próprios, segundo o autor, do crioulo de São Tomé.
Alan Baxter (1995) e Dante Lucchesi (2003) discordam, entretanto, de que
possa ter ocorrido um processo de crioulização generalizado do português
brasileiro. Se isso se deu, segundo eles, foi de forma setorizada, em ambientes
geograficamente delimitados, em que a densidade demográfica e as condições
de acesso à língua-alvo o tivessem justificado − como têm perseguido
demonstrar em suas pesquisas junto a comunidades rurais isoladas, a exemplo
de Helvécia, no sul do estado da Bahia.
Postula Lucchesi (2003, p. 272) que “estruturas do português popular
brasileiro, que resultam de processos de mudanças induzidos pelo contato
entre línguas”, não fazem “dessa variedade lingüística uma língua crioula, ou
mesmo uma variedade independente de sua língua alvo, o português standard”.
Para o autor (2003, p. 273), a explicação para sua conformação encontra-se na
base de uma dialética entre o que denomina de “expansão funcional e
expansão gramatical”, pelas quais sócio-historicamente passou o processo de
aquisição da língua portuguesa no Brasil, num dado momento, no sentido de
uma transmissão lingüística irregular (TLI).
Em linhas gerais, entretanto, assim como a crioulização,
[...] a transmissão lingüística irregular constitui um contínuo de níveis diferenciados de
socialização/nativização de uma língua segunda, adquirida massivamente, de forma mais ou menos
imperfeita, em contextos sócio-históricos específicos. (LUCCHESI, 2003, p. 274)
Diferencia-se esta daquela em função da constância ou alternância da
configuração sociodemográfica e dos níveis de acesso à língua-alvo, que
podem diferentemente permitir o surgimento de uma nova língua natural, no
que tange a uma nova estrutura gramatical, constituindo um crioulo − em que
se possa falar de superestrato e substrato −, ou no surgimento de uma nova
variedade de uma mesma língua, simplesmente alterada, em função das
condições temporárias de menos ou mais robustez dos dados durante a
aquisição disponíveis.
A questão parece ser todavia bastante delicada e bem mais complexa de se
analisar. Seria como definir o real estatuto do Vinho do Porto: uma variedade
de vinho português, como o de suas regiões demarcadas, Dão, Bairrada,
Douro, Verde, Alentejo, ou uma nova bebida à base de vinho, cuja identidade
se estabelece pelo “contato” com a bagaceira no momento da fermentação?
Aliás, até que ponto o conceito de língua é eminentemente lingüístico?
Qual a dimensão, qual a medida, qual o volume de dados que se fazem
necessários para distinguir uma língua, uma variedade, um dialeto, senão a
partir de avaliações sociopolíticas?
Lucchesi (2003, p. 278), todavia, elenca em defesa de seus propósitos um
quadro em que hierarquiza a intensidade do contato lingüístico, com vistas à
definição do cenário próprio da transmissão lingüística irregular e, com base
nele, faz com que se explicitem cinco características correlacionáveis ao
português brasileiro, que, abaixo, não se evita reproduzir analiticamente.
A primeira delas se relaciona com a “eliminação de certos dispositivos
gramaticais mais abstratos e de uso restrito da língua alvo”, a que associa o
fenômeno da eliminação das marcas de 2ª pessoa da flexão verbal,
generalizadamente no Brasil, e a ausência, no PPB, de uso de estruturas do
subjuntivo. Depois, a questão da concordância no SN e entre o SN e o SV, que
se origina no processo de “manutenção da variação no esquema
presença/ausência do dispositivo gramatical da língua alvo”. A terceira delas
tem a ver com a “alteração nas freqüências de uso relativamente à marcação de
determinados parâmetros sintáticos”, exemplificados pela perda de movimento
verbal em interrogativas e pelo preenchimento lexical mais constante do
sujeito, principalmente. A quarta se relaciona com a “recomposição da
estrutura gramatical da língua alvo, eliminando a variação ou reduzindo-a a
uma pequena escala, que tenta associar a uma provável conservação ou
recuperação da morfologia nominal do gênero”. A última delas é a
“manutenção da variação no uso do dispositivo gramatical dentro de um
esquema de variável ternária, com a variante da língua alvo, uma variante
oriunda de um processo original de reestruturação da gramática e a variante
zero”, ou seja, casos como os relacionados com o regime verbal, sobretudo de
verbos bitransitivos como “dar”, em que o dativo pode ser introduzido por
preposição, sem a atribuição morfológica de caso, como sói acontecer no PE,
ou imediatamente após o predicado sem necessidade de uso de preposição,
como ocorre no inglês.
Para Anthony Naro e Marta Scherre (2003, p. 290), no entanto, o formato
da língua portuguesa no Brasil “pode ser comparado com o estágio atestado
nos documentos existentes na época anterior à colonização”, e não terá sido
fruto de um processo de transmissão lingüística irregular nem de crioulização,
isto é, não apresenta “características estruturais novas induzidas pelo contato
entre línguas”, nem tampouco por sua nativização “entre os segmentos de
falantes de outras línguas e seus descendentes” (NARO; SCHERRE, 2003, p.
295). O português brasileiro é, para eles, o resultado do “espraiamento de
estruturas e variações” (NARO; SCHERRE, 2003, p. 296) existentes na
história da língua, cuja freqüência se alterou em função de uma confluência de
motivos.
Baseiam-se, para conformação de sua idéia, notadamente na questão da
concordância de número, quer entre o sintagma nominal (SN) e o verbal (SV),
quer internamente no SN, e no fenômeno de preenchimento lexical de
pronomes na função de sujeito, que têm sido o centro da discussão na maioria
dos trabalhos que operam sobre o tema.
Quanto à última, esclarecem que, embora alguns autores procurem
relacionar o fenômeno a uma compensação promovida pelo enfraquecimento
do paradigma morfológico verbal, no português brasileiro, o sujeito explícito é,
na verdade, “bem menos usado quando falta a marca no verbo”, de que
apresentam dados quantificados originais e de outros pesquisadores brasileiros.
Ademais, afirmam não ser essa uma característica própria dos crioulos nem
dos pidgins.
Em relação à concordância variável, que seria, consoante ao trabalho
observado, a única “candidata a ter tido origem no processo de transmissão
lingüística irregular”, afirmam não ser esse “um fenômeno exclusivamente
brasileiro” (NARO; SCHERRE, 2003, p. 293), já que “a concordância entre
sujeito e verbo na terceira pessoa do plural já era variável nos textos pré-
clássicos, anteriores à presença da língua portuguesa no Brasil” (NARO;
SCHERRE, 2003, p. 292). Mais ainda, de acordo com os resultados de
pesquisas realizadas em Portugal, concluíram que na
[...] língua padrão moderna [...], exatamente como na do Brasil, os mecanismos de concordância
verbal exibem áreas bem amplas de variação mesmo no português europeu contemporâneo escrito
padrão: apenas os casos de sujeito com um só núcleo localizado perto do verbo e sem adjunto plural
são os de registro verdadeiramente categórico no uso real de Portugal. (2003, p. 293)
Em suma, para Naro e Scherre, a língua portuguesa falada em Portugal
antes da colonização do Brasil já possuía uma deriva secular, em continuidade
a uma deriva pré-românica, que foi impulsionada pelas condições encontradas
no território brasileiro (NARO; SCHERRE, 2003). Se de fato houve uma
língua crioula no passado, cedo desapareceu do contexto sociolingüístico.
PERSEGUINDO PARALELOS
Não obstante as hipóteses acima rapidamente observadas, Mattos e Silva,
em comunicação proferida no Congresso Brasil: raízes e trajetórias, que teve
lugar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1992, denuncia que
[...] ainda está por ser elaborada uma reconstituição que conjugue fatores sócio-históricos,
demográficos, lingüísticos do passado e do presente que, reunidos, poderão explicitar e espelhar os
processos sócio-históricos e lingüísticos que interagiram na constituição do português [brasileiro]
(1993, p. 77).
Se o estado da questão se alterou de alguma forma, desde então, sobretudo
dos meados dos anos 1990 para cá, em relação ao levantamento e
conhecimento de dados demográficos e fatores sócio-históricos, com o largo
trabalho de prospecção e de edição de documentos, já iniciado pela lingüística
nacional, o mesmo não se tem observado no que concerne ao confrontamento
interlingüístico do português brasileiro com as línguas com as quais esteve em
contato durante boa parte de sua trajetória histórica, a não ser, como se viu,
tangencialmente a partir de crioulos de base lexical portuguesa.
Ademais, difundiu-se a idéia de que as influências lingüísticas de línguas
africanas e indígenas resumiram-se ao âmbito do léxico ou pontualmente a
alguns aspectos fônicos, sobretudo para explicar o quadro alegadamente
conservador das vogais no Brasil.
Mas se se atentar para o que muito antes foi dito em relação às línguas
africanas quanto à sua participação na composição multilingüística do período
colonial brasileiro, um dado precisa ser adequadamente investigado: o papel
que as estruturas gramaticais de línguas da África, i. e., morfologia e sintaxe,
desempenharam na formatação do português brasileiro, pelo contato massivo
estabelecido, nomeadamente da língua quimbundo; afinal, dos 159 itens de
etimologia africana identificados no Aurélio (FERREIRA, 1986), segundo Peter
(2002), 148 relacionam-se com essa língua, contra apenas 11 vocábulos do
iorubá, o que, de alguma forma, revela seu peso relativo diante das outras
línguas da família Níger-Congo.
Observe-se que Alberto Mussa (1991, p. 145) demonstra que as línguas do
subgrupo Banto sempre foram maioria no Brasil, representando 35%, 65%,
64% e 50%, na composição de todas as línguas africanas nesse território, nos
séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, respectivamente.
Amélia Mingas (2000), da Universidade Agostinho Neto, em Angola,
parece − pelo que se tem notícia − ter realizado o primeiro trabalho de
investigação que objetivou relacionar interlingüisticamente o português ao
quimbundo, intitulado Interferências do kimbundu no português falado em Lwanda.
Nele, observa desde aspectos fônicos a realizações morfossintáticas. Embora,
segundo a autora, tenham sido estas menos afetadas pelo contato do que
aquelas, constituíram-se, sob sua ótica, na parte mais complexa do trabalho.
Para Mingas (2000, p. 67) “é fácil constatar a ausência de acordo de
número entre os actualizadores (os artigos definidos) e os nomes”, como em
Os péØ me dói ou Vigia as criançaØ, em função de, para os falantes do
quimbundo, o morfema -s de número do português, acrescentado ao
determinante, ser “suficiente para indicar a pluralização do nome” (MINGAS,
2000, p. 67), atitude justificada em decorrência de se tratar de uma língua
prefixal. Ademais, a falta de concordância de número entre o SN e SV parece
ser uma interferência do sistema flexional dos verbos no quimbundo, que
exibe apenas uma forma para todas as pessoas do discurso.
Em relação ao gênero, como inexiste diferença entre feminino e masculino,
pessoas bilíngües não-escolarizadas comumente realizam construções com
possessivos sem a correspondente concordância, a exemplo de Meu mãe, minha
pai, meu terra etc.
No tocante ao posicionamento clítico, “por interferência do mesmo tipo
de construção no kimbundo, [em] que o pronome não é nunca enclítico como
em português, mas proclítico” (p. 72), notam-se os seguintes exemplos, aqui
reproduzidos:
a) sô Paulo, lhe atropelaram na venida Brasil
em vez de:
sr. Paulo, atropelaram-no na Avenida Brasil
b) posso gritar, lhe prendem
em vez de:
posso gritar, e prendem-no (p. 72).
Observe-se que não apenas ocorre preferencialmente a próclise em
contextos em que o português europeu demandaria ênclise, mas o uso
indistinto de formas pronominais dativas em construções acusativas, cujos
mesmos exemplos acima servem para comprovar.
Outro aspecto relevante tem a ver com o emprego das formas tu e você e
dos pronomes correlacionáveis no padrão lusitano. Para a autora, como não
existe em quimbundo “o tratamento cerimonioso para a terceira pessoa do
singular, representado em português por /você/” (p. 74), o falante “confunde-
as” no uso:
c ) Kaxena deve chamar você com o teu homem
em vez de:
Kaxena deve chamar-te e ao teu homem (p. 74).145146
Quanto ao emprego de preposições, como existem no quimbundo três
formas locativas, ku (direcional, lugar distinto e distante; interioridade), mu
(interioridade) e bu (superposição, à superfície de), “que podem igualmente,
prefixadas a bases pronominais e/ou nominais, formar sintagmas nominais
com valor espacial” (p. 75), os falantes bilingües de português e quimbundo
não parecem diferenciar as funções espaciais de para, em, a, utilizando-as em
variação, como nos exemplos:
d) Vão depressa na casa do camarada Nazário
em vez de:
Ide depressa à casa...
e) Ainda antes de irem na cama
em vez de:
Antes de irem para a cama
Os fatos acima apontados por Mingas, para o português falado em Luanda,
encontram, indubitavelmente, paralelo no português brasileiro. Se a autora tem
razão em considerar os fenômenos analisados como realmente decorrentes do
contato entre o quimbundo e o português, no sentido de uma interferência
interlingüística, como explicar, então, as mesmas realizações na fala dos
brasileiros?
Voltando-se a bússola para o lado oriental da África, dispõe-se do trabalho
de Pilar Vázquez Cuesta (1994), que objetivou investigar o uso da língua
portuguesa em Moçambique. Indica a autora, logo à partida, que
[...] apenas 13% de moçambicanos falam o português, quer como primeira língua − 1,2% −, quer
em alternância com alguma ou algumas das línguas autóctones do país − 11,8% −, enquanto 87%
são monolíngües, ou poliglotas em línguas e dialectos africanos. (p. 634)
Note-se que desses falantes de línguas africanas, 99% pertencem,
consoante os dados da pesquisa, ao subgrupo banto, dado que estaria na base
para as coincidências entre as variedades do português de Moçambique com o
de Angola.
Observando a obra de Mia Couto, Cuesta (1994), um dos mais
reconhecidos escritores moçambicanos de língua portuguesa, enumera diversas
características a que chama de desvios, em muitos casos coincidentes com “[...]
os incorporados já à sua escrita por autores brasileiros e/ou angolanos” (p.
638). Abaixo, resenham-se alguns dos mais relevantes fenômenos apontados:
1) hesitação nas formas de tratamento de 2ª pessoa com a 3ª pessoa verbal,
isto é, a variação entre tu e você, na intimidade, conquanto você esteja largamente
difundido para tratamento igualitário entre pessoas desconhecidas;
2) colocação livre dos clíticos, quer em próclise em orações principais, quer
em ênclise em subordinadas e negativas, como em O Continente se oceanifica ou
em É por isso que atacam-nos (p. 639);
3) alteração, segundo a autora, no regime de verbos transitivos, utilizados
como intransitivos, como nos exemplos Entraram, sentaram, afinaram a vista
ou Eu hei-de passar a visitar, que parecem mais se relacionar com a questão da
categoria vazia para objetos diretos, do que propriamente com a questão da
regência, como no item 4 abaixo;
4) “ausência do pronome pessoal complemento directo ou a sua
substituição pelo indirecto, como no Brasil ou Angola” (p. 639): E o carro
deixaste lá fora ou Dizem que incertas vezes lhe viram passando montado num
hipopótamo ou ainda Ela deixou lá o pilão, deixou-lhe no tal embaixo;
5) uso reduplicado de elementos de negação, como em Nenhuma não
houve ou Ninguém não perguntou coisa nenhuma;
6) uso de dele/dela por seu/sua: Entalaste a mão dele? / Borboletou dois dedos à
volta do botão da blusa dela;
7) “certa anarquia [sic] no uso ou omissão das preposições” (p. 641): Uma
mãozinha gorda lhe agarrou na gravata / e ouvi-los responder no outro lado da linha;
8) alteração da ordem frasal: E por que esta toda introdução, meu amigo?/ Mas
nenhum até agora foi capaz de ferir o rio e deixar cicatriz nele escrita.
Entre outras oito observações de natureza morfossintática, além, é claro,
de uma extensa lista de “moçambicanismos léxicos” e de itens derivados e
compostos (p. 641).
Conquanto se esteja aqui a avaliar o texto escrito de um informante
provavelmente imprestável para análises lingüísticas, senão literárias, é curioso
observar como alguns dos casos arrolados encontram eco em obras de
escritores brasileiros e angolanos e não menos na fala popular no Brasil.
E novamente se levanta a questão: até que ponto línguas do subgrupo
banto propiciaram o formato que essas variedades não-européias têm
assumido no hemisfério sul do planeta?
POR NOVAS PAUTAS DE RAZÕES
Antes de procurar defender uma das hipóteses apontadas, foi intuito deste
trabalho colecionar e difundir um pouco mais as idéias que têm sido veiculadas
no meio acadêmico acerca da formação do português brasileiro, cuja
identidade e distanciamento em relação ao português europeu se discute há
muito na história.
Pretendeu reacender a questão no sentido de se procurarem, para além dos
dados sócio-históricos e demográficos − inalienáveis, é certo, para o
entendimento da mudança lingüística −, avaliações centradas na observação
das línguas com que o português esteve em contato, sobretudo das africanas.
Embora os estudos da Crioulística tenham rendido bons frutos no
entendimento dos rebentos lingüísticos no Novo Mundo, talvez se tenha
superdimensionado a ocorrência de crioulos em todo o hemisfério sul, a ponto
de não se enxergar senão possibilidades de pidgins e crioulos em todo e
qualquer contato que as línguas de expansão puderam ter havido.
Estudos comparativos, mais profundos e detalhados entre as línguas do
banto e o português, possam, quiçá, dar novos direcionamentos para as
pesquisas nesse campo.
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NOTAS
6 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico − Brasil. Conferência apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra em 19 de maio de 2006.
7 Note-se que alguns autores, a exemplo de Melatti (1986), consideram o Aruák como tronco lingüístico.
8 A esse respeito, veja-se o que propõe Rodrigues (1994, p. 99-109), por exemplo.
9 “Crioulizou-se o português no Brasil?” (Tradução nossa).
0 “Como teria sido possível evitar a crioulização?” (Tradução nossa).
1 Título original: “Popular Brazilian Portuguese”.
2 Título original: “Standard Brazilian Portuguese”.
3 “Inglês-padrão” (Tradução nossa).
4 “Variedade do inglês de preto” (Tradução nossa).
5 Destaque nosso. A identificação dos exemplos não obedece ao que se encontra patente no trabalho da
autora.
6 Grifo nosso.
Aspectos gramaticais do português brasileiro
afetados pelo contato entre línguas: uma visão de
conjunto

Dante Lucchesi – UFBa/CNPq


INTRODUÇÃO
A questão histórica de como a gramática do português foi afetada nas
situações de contato com as línguas indígenas e africanas durante os três
primeiros séculos da colonização do Brasil combina com a questão teórica de
como a estrutura gramatical é afetada nos processos de contato maciço entre
línguas. O paralelo com as situações de formação das línguas crioulas é
inevitável, quando se busca compreender satisfatoriamente que tipo de
mudança afetou o português, no Brasil, ao ser adquirido precariamente como
segunda língua por milhões de índios brasileiros e escravos africanos,
tornando-se, posteriormente, a língua materna de seus descendentes. Por outro
lado, é importante ter em mente que algo de diferente ocorreu, pois não se deu
no Brasil a formação de línguas que, embora guardassem uma base lexical
portuguesa, se estruturassem a partir de elementos gramaticais novos e
distintos do repertório gramatical da língua portuguesa. Se tais línguas
chegaram a emergir ao longo da história do Brasil – pode-se pensar, por
exemplo, em engenhos do recôncavo baiano, ou de Pernambuco, que, no
século XVII, congregavam milhares de escravos africanos, dominados por
umas poucas centenas de colonizadores portugueses –, não lograram subsistir
até os nossos dias. Portanto, é preciso enfrentar a dupla tarefa de identificar as
semelhanças e as diferenças que unem e separam o processo de formação das
variedades populares do português brasileiro e os processos de crioulização da
língua portuguesa nos continentes africano e asiático.
Uma abordagem satisfatória dos processos de variação e mudança que têm
afetado o português desde o início de sua transplantação para o Brasil até os
dias atuais não pode deixar de levar em conta a complexidade e a diversidade
de cenários sociolingüísticos que compõem o processo de colonização do
Brasil e a formação do estado brasileiro a partir do século XIX. Nesse sentido,
uma clivagem básica se impõe, como tenho tentado demonstrar há mais de 12
anos com a fórmula da polarização sociolingüística do Brasil (LUCCHESI,
1994, 1998, 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2004, 2006).
Não é uma fórmula original, porquanto a divisão lingüística do Brasil entre
uma elite que “até ontem” tinha como regra o cânone coimbrão, não se
libertando até hoje dessa submissão lingüística, como o atestam as mais
consultadas gramáticas normativas brasileiras, e o português profundamente
alterado de negros, índios e mestiços, que perfazem o grosso da sociedade
brasileira, já fora registrada por um nome do porte de Serafim da Silva Neto,
na década de 1950, entre registros de outros expoentes dos estudos lingüísticos
brasileiros, como Antônio Houaiss e Mattoso Câmara Jr. Reivindico, porém, o
mérito de fundamentar essa percepção da divisão lingüística do Brasil dentro
do aparato metodológico da sociolingüística variacionista, com o recurso ao
conceito de norma lingüística, originário da escola estruturalista. Assim, pode-se
sistematizar a polarização sociolingüística do Brasil, em dois sistemas
sociolingüísticos, heterogêneos e variáveis, como se formalizam todos os
sistemas lingüísticos em sua dimensão social: de um lado, a norma culta,
constituída pelos padrões de comportamento lingüístico das camadas
superiores, que têm acesso pleno à educação formal e ao espaço institucional
da cidadania; do outro lado, a norma popular da maioria da população brasileira,
formada por analfabetos ou semi-analfabetos, marginalizados e excluídos por
uma absurda concentração de renda que marca e degrada a sociedade brasileira
desde a sua formação até os dias atuais.
Essas duas grandes normas devem guardar sua unidade, enquanto
variedades lingüísticas discretas, não apenas em função da diferença nos
padrões de comportamento lingüístico que encerram, mas também pelos
sistemas diferenciados de avaliação subjetiva da variação lingüística. As
diferenças nos padrões coletivos de comportamento lingüístico compreendem
tanto a diferença nas freqüências de uso das variantes lingüísticas, como o uso
de variantes privativas de cada uma das normas. Como exemplo do primeiro
caso, temos a não aplicação da regra de concordância verbal com a 3ª pessoa,
exemplificada em (1), que, praticamente ausente na fala urbana culta, pode
atingir uma freqüência de quase 90%, nas comunidades rurais afro-brasileiras
isoladas. Já como exemplo de variantes privativas, temos o clítico acusativo da
3ª pessoa, exemplificado em (2), variante recuperada no uso culto pela ação
normativizadora da escola e indisponível para os falantes das comunidades
rurais isoladas, particularmente das comunidades afro-brasileiras. Por outro
lado, a estrutura de duplo objeto, exemplificada em (3) e disponível para os
falantes de muitas variedades populares do português brasileiro (SCHER,
1996), é agramatical para um falante urbano culto. E já adentrando na
avaliação social das variantes lingüísticas, podemos retornar à falta de
concordância verbal, que constitui um estereótipo entre os falantes cultos, mas
não passa de um indicador na maioria das comunidades rurais do interior do
país, podendo converter-se em um marcador, na norma popular urbana – para
lançar mão aqui das categorias desenvolvidas no interior do modelo laboviano
para dar conta do evaluation problem.147 Tais diferenças consubstanciam
processos de variação e mudança distintos, paralelos ou convergentes nas duas
grandes normas sociolingüísticas do português brasileiro: a norma culta e a
norma popular.
1) Eles trabalha na roça.
2) Vou encontrá-la amanhã.
3) Dei os meninos o remédio.
4) Dei o remédio aos meninos
Porém, essa visão sociolingüística tem de, minoritária, conviver com a
visão formalista hegemônica de uma sistema lingüístico unitário que paira
sobre os diversos usos sociais, invariavelmente descartados na condição de
subproduto teórico do desempenho. Desse modo, muitas análises diacrônicas de
matiz formal têm restringido o escopo da sua observação aos padrões de
comportamento lingüístico das camadas superiores da sociedade brasileira –
até porque praticamente só existem registros escritos para a língua da elite
colonial e do império – e, ignorando o que se passou e se passa na fala da
maioria da população brasileira, fazem afirmações gerais sobre “a história do
português brasileiro”.
Buscando reverter essa visão de uma história lingüística única do Brasil,
tenho reunido evidências empíricas de que, na história sociolingüística do
Brasil, processos distintos e independentes de variação e mudança
concorreram, em paralelo, porém guardando mútua influência, para a
formação das duas grandes normas do português brasileiro atual (LUCCHESI,
2004, 2006, no prelo). Nesse cenário histórico de polarização sociolingüística,
os processos de variação e mudança induzidos pelo contato entre línguas
teriam ocorrido na formação histórica da norma popular brasileira e só
indiretamente, mediante o que os sociolingüistas têm chamado de contato
dialetal, afetaram o desenvolvimento histórico da norma culta brasileira,
podendo explicar também por que são tantas as diferenças entre o português
brasileiro e o português europeu, mesmo quando a observação se atém aos
falantes ditos cultos.
Apresentaremos aqui processos de variação e mudança que afetam as
variedades populares do português brasileiro e guardam paralelos notáveis
com os processos de variação e mudança que concorreram para a formação
das línguas crioulas de base lexical portuguesa no continente africano,
podendo, assim, ser analisados satisfatoriamente, em termos heurísticos, com o
mesmo instrumental utilizado para analisar os processos lingüísticos típicos
das situações de contato maciço entre línguas.
Portanto, faremos inicialmente uma rápida sistematização teórica sobre os
processos de variação e mudança que constituem o que temos denominado de
transmissão lingüística irregular, presente nas situações históricas de contato
maciço entre línguas desencadeadas pelo colonialismo europeu, desde o século
XVI até o século XIX. Buscaremos, então, deslindar as diferenças entre os
casos de transmissão lingüística irregular mais radicais, que levaram à formação
das línguas crioulas atualmente conhecidas, e os processos de transmissão
lingüística irregular mais leves, que levaram, não à formação de uma nova
língua, mas a uma nova variedade de uma língua histórica, como é o caso do
português popular do Brasil.
ELEMENTOS PARA UMA CARACTERIZAÇÃO DAS MUDANÇAS
ESTRUTURAIS QUE OCORREM NAS SITUAÇÕES DE CONTATO
ENTRE LÍNGUAS
Para Derek Bickerton (1999), as crianças que nascem na situação de
contato maciço entre línguas são os grandes agentes da crioulização,
particularmente nas situações históricas denominadas de plantations. Assim,
essa primeira geração é responsável pela formação de uma nova língua “a
partir de um input que pode ser caracterizado como um jargão ou um pré-pidgin
que tem pouca, senão nenhuma estrutura gramatical” (1999, p. 49). Bickerton
não usa a expressão transmissão lingüística irregular, embora ela se ajuste como
uma luva ao seu raciocínio, pois ele distingue o processo de aquisição da língua
materna que ocorre na crioulização – um caso historicamente excepcional –
do processo mais comum de aquisição da língua materna em que uma
determinada língua natural passa de geração para geração, que Bickerton
(1999, p. 57) chama de normal:
No caso normal, a criança de quatro ou cinco anos terá de adquirir uma larga gama de itens
gramaticais – o bastante para satisfazer os requerimentos estruturais (em termos de regência,
anáfora e assim por diante) impostas pela sintaxe inata. No caso crioulo, para a maioria desses
requerimentos, a criança simplesmente não tem como encontrar os itens gramaticais apropriados no
pidgin. Portanto, os itens gramaticais terão de ser criados por meio do recrutamento de itens
lexicais, num processo em que o significado referencial desses itens é enfraquecido. (tradução nossa)
Portanto, para Bickerton, o processo de transmissão lingüística irregular
caracteriza-se pela recomposição dos elementos gramaticais que se perdem na
aquisição precária da língua alvo, como segunda língua, por parte dos falantes
das outras línguas na situação inicial de contato.
Temos consciência de que a visão de Bickerton está longe de ser
consensual, mesmo entre os lingüistas do Programa Gerativista, que têm como
axioma fundamental o dispositivo inato da faculdade da linguagem. No âmbito
da crioulística, Bickerton enfrenta uma forte oposição dos chamados
substratistas. Para esses últimos, os falantes das outras línguas, ao se
comunicarem utilizando os itens lexicais da língua alvo, mobilizariam os
mecanismos gramaticais de suas línguas nativas, de modo que esse repertório
gramatical do substrato estaria potencialmente disponível para o processo de
aquisição da língua materna das crianças nascidas na situação de contato,
sobretudo nos casos em que o substrato fosse relativamente homogêneo.
Independentemente de sua fonte – gramaticalização de itens referenciais
da língua alvo orientada pelos dispositivos da gramática universal ou
transferência dos mecanismos gramaticais da(s) língua(s) do substrato – o fato
é que as línguas crioulas se caracterizam pela recomposição original da sua
estrutura gramatical conjugada à manutenção de grande parte do léxico da
língua do grupo dominante, submetidos, esses itens lexicais, a intensos
processos de mudanças fonéticas.
Tendo também como referência o axioma faculdade inata da linguagem,
particularmente a Teoria dos Princípios e Parâmetros, Ian Roberts (1997) procura
definir o processo de crioulização como um processo de mudança na
marcação dos princípios da Gramática Universal. Assim, no processo de
nativização em que se formam as línguas crioulas, as crianças optariam por
parâmetros sintáticos não marcados, mesmo nos casos em que a língua
lexificadora exibisse o parâmetro marcado. Roberts (1997, p. 13-4) destaca a
falta de movimento do verbo no crioulo francês do Haiti (parâmetro não
marcado) frente à obrigatoriedade de movimento verbal que se verifica na
língua francesa, o parâmetro marcado. Outro aspecto destacado por Roberts
(1997, p. 14-16) é a ordem não marcada SVO que predomina entre os crioulos,
mesmo naqueles – tal como o crioulo holandês de Berbice – que tem uma
língua OV como língua lexificadora. A ausência de sujeitos referenciais nulos
seria uma característica geral entre os crioulos, mesmo entre aqueles que
tenham como línguas lexificadoras línguas de sujeito nulo, como o português e
o espanhol. O maior problema da posição de Roberts é teórico, e reside na
definição de marcação, no que concerne às propriedades gramaticais das línguas
humanas.
Conquanto tivesse consciência de tais contradições, sistematizei essas
propriedades do processo de transmissão lingüística irregular formuladas por
Bickerton e Roberts, agregando a perda de morfologia flexional, que
certamente é a característica morfossintática mais notável entre as línguas
crioulas (LUCCHESI, 2003b). Nesse sentido, o processo de transmissão
lingüística irregular pode ser esquematizado, em sua essência, por meio de um
processo de perda de elementos gramaticais que ocorre na aquisição defectiva
da língua alvo pelos falantes adultos das outras línguas, de que resulta o jargão
que se forma na situação inicial de contato, seguida de um processo, mais ou
menos longo, de recomposição dessa estrutura gramatical, cujo resultado, nas
situações de contato mais radical e abrupto, é a formação da gramática original
da língua crioula, ou da língua pidgin plenamente expandida.148
Nesse sentido, é necessário distinguir os elementos gramaticais que são
reconstruídos ao longo do processo de pidginização/crioulização daqueles que
não o são. Muitos crioulistas, como Bickerton (1981, 1984) e Mühlhäusler
(1986), têm contribuído com a identificação de tais características que são
apontadas como próprias do caráter crioulo de uma variedade lingüística.
Dentre os elementos que se perdem na situação inicial de contato e são
reconstituídos no processo de pidginização/crioulização, destacam-se: os
morfemas de tempo, modo e aspecto, os complementizadores, as preposições,
as palavras interrogativas, os artigos, etc. Os elementos que não são
reconstituídos seriam: a morfologia verbal de pessoa e número, a concordância
nominal de gênero e número e a flexão de caso dos pronomes pessoais.
Portanto, as línguas pidgins e crioulas caracterizam-se, tanto pela originalidade
de seus elementos gramaticais em face das línguas que concorreram para sua
formação, quanto pela ausência de certos elementos da morfologia aparente
que eventualmente possam figurar na língua alvo.
Por outro lado, diversos fatores sociolingüísticos, em sua interação
dialética, determinam as características da variedade lingüística que se forma na
situação de contato. Para que ocorra a formação de uma nova entidade
lingüística com uma gramática qualitativamente distinta da gramática da língua
alvo, certas condições históricas e demográficas são requeridas, como aquelas
encontradas nas situações de plantation e nas comunidades quilombolas.149 As
condições cruciais requeridas seriam:
a) a retirada de populações de seu contexto cultural e lingüístico de origem,
como ocorreu com o tráfico negreiro;
b) a concentração de um grande contingente lingüisticamente heterogêneo
sob o domínio de um grupo dominante numericamente muito inferior (a
referência nas situações típicas de crioulização seria a proporção de pelo
menos dez indivíduos dos grupos dominados para cada indivíduo do grupo
dominante);
c) a segregação da comunidade que se forma na situação de contato.
Da superioridade numérica do substrato e da segregação da nova
comunidade lingüística resulta o pouco acesso dos falantes das outras línguas e
de seus descendentes aos modelos gramaticais da língua alvo. Esse pouco
acesso, que já determinou o alto grau de erosão gramatical da língua alvo na
formação do código de comunicação emergencial, cria as condições para que
novos elementos distintos dos da língua alvo sejam introduzidos no processo
de estruturação gramatical da variedade lingüística que se forma na situação de
contato, sejam esses elementos provenientes da gramática da(s) língua(s) do
substrato, sejam eles o resultado de processos de gramaticalização orientados
pelos dispositivos inatos da faculdade da linguagem.150 Portanto, o grau de
reestruturação gramatical ocorrido nos processos de transmissão lingüística
irregular é proporcional a esses fatores sócio-históricos e demográficos, pois a
originalidade da estrutura gramatical das línguas pidgins e crioulas decorre da
impossibilidade de os seus falantes assimilarem os elementos gramaticais da
língua alvo, devido à situação de exploração, repressão e segregação a que são
submetidos.
Por outro lado, o aumento do acesso dos falantes das outras línguas e/ou
de seus descendentes aos modelos gramaticais da língua alvo inibe os
processos de transferência de substrato e de gramaticalização, cruciais para a
formação da estrutura gramatical das línguas pidgins e crioulas,
qualitativamente distinta da estrutura gramatical da língua alvo. Por gozar de
maior prestígio, as variantes gramaticais da língua do grupo dominante acabam
por prevalecer sobre as estruturas das línguas do substrato que eventualmente
poderiam estar sendo transferidas para a variedade lingüística em formação na
situação de contato. Por outro lado, com a maior assimilação dos mecanismos
gramaticais da língua alvo entre os indivíduos dos grupos dominados, as
crianças, na comunidade que se forma na situação de contato, passam a ter
menos lacunas nos dados lingüísticos primários de que dispõem no processo
de aquisição da língua materna, o que inibe potenciais processos de
gramaticalização.
Portanto, a maior diferença entre os processos típicos de pidginização e
crioulização, que representam os casos mais radicais de transmissão lingüística
irregular, e os processos de transmissão lingüística irregular mais leve, como o
caso da formação das variedades populares da língua portuguesa no Brasil, é
que, no primeiro caso, a gramática da variedade lingüística que se forma na
situação de contato é formada basicamente por elementos exógenos,
enquanto, no segundo caso, os elementos gramaticais da língua do grupo
dominante suplantam eventuais processos embrionários de gramaticalização e
de transferência do substrato.
Porém, não se deve deixar de observar que, em ambos os casos, ocorre a
erosão da morfologia aparente da língua alvo, nas variedades de segunda língua
que logo se formam entre os falantes adultos dos grupos dominados. Mesmo
que essa erosão também tenha sido mais leve em muitas das situações em que
o português foi adquirido pelos escravos africanos no Brasil e pelos índios
aculturados, ela não deixou de alcançar, sobretudo, aqueles elementos que são
mais comumente afetados nas situações de contato maciço entre línguas: a
morfologia verbal de pessoa e número, a concordância nominal de gênero e
número e a flexão de caso dos pronomes pessoais. No que concerne a esses
elementos também cabe uma distinção entre os casos de crioulização e os
casos mais leves de transmissão lingüística irregular. Assim, enquanto nos
crioulos de base lexical portuguesa da África, por exemplo, esses elementos
foram virtualmente eliminados (ressurgindo de modo ainda incipiente no
processo de descrioulização), não ocorreu no português popular do Brasil a
sua eliminação, conquanto essa aquisição defectiva tenha dado início a um
amplo processo de variação no uso de tais elementos gramaticais que se
estende até os dias atuais.
Portanto, o amplo e profundo quadro de variação que se observa hoje nas
variedades rurais e populares do português brasileiro, no que concerne à
concordância nominal e verbal e à flexão de caso dos pronomes constitui o
reflexo mais notável do processo de transmissão lingüística irregular que
afetou o português no Brasil em função de sua aquisição imperfeita por
milhões de escravos africanos e índios aculturados e da nativização desse
modelo defectivo de segunda língua pelos descendentes desses segmentos. E
os resultados das análises sociolingüísticas que serão apresentados a seguir
demonstram isso, não apenas pela intensidade e amplitude estrutural dos
processos de variação, como também pelos paralelos notáveis que se podem
estabelecer com os processos de mudança que afetaram esses mesmos
elementos gramaticais nas línguas crioulas de base lexical portuguesa no
continente africano.
PROCESSOS ATUAIS DE VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS POPULAR
BRASILEIRO QUE PODEM SER VISTOS COMO REFLEXOS DE
MUDANÇAS LINGÜÍSTICAS INDUZIDAS PELO CONTATO ENTRE
LÍNGUAS
Os processos de variação na concordância nominal e verbal e na flexão de
caso dos pronomes pessoais, ao tempo em que constituem evidências
empíricas significativas da relevância do contato entre línguas na sua formação,
revelam a clivagem sociolingüística do Brasil. É razoável supor que a fala da
elite colonial e do império só tenha sido indiretamente afetada pelos processos
de variação e mudança induzidos pelo contato entre línguas por meio do
contato dialetal com o português profundamente alterado falado por escravos,
serviçais e subalternos em geral. Deve-se destacar o papel de escravos
domésticos e amas-de-leite, além do eventual convívio entre filhos de senhores
e escravos. Porém, deve-se ter em conta que os escravos domésticos e aqueles
que ocupavam os melhores postos eram recrutados entre os mais ladinos, ou
seja, com maior proficiência em português, e dificilmente um africano boçal,
com pouco ou nenhum domínio da língua portuguesa, ou mesmo um crioulo
falante de um português muito alterado gozaria do convívio mais estreito com
os seus senhores. Em linhas gerais, este seria o cenário mais representativo do
tipo de contato dialetal entre a elite e a grande massa de explorados da
sociedade brasileira até os finais do século XIX e o início do século XX.
Os avanços sociais do século XX e a democratização política da sociedade
brasileira atenuaram essa clivagem sociolingüística, porém a manutenção de
uma aviltante concentração de renda ainda divide a sociedade brasileira
conservando nas grandes diferenças nas freqüências de uso e nos contrastes
dos sistemas de avaliação subjetiva a polarização da realidade lingüística do
Brasil entre uma norma culta minoritária e uma numerosa norma popular.
Portanto, essa clivagem sociolingüística constitui uma evidência empírica
suplementar da relação histórica entre os processos de variação nos aspectos
gramaticais que caracterizam a norma popular brasileira e o contato do
português com as línguas indígenas e africanas. A seguir, serão apresentados os
resultados de análises sociolingüísticas que ratificam tal visão.
A concordância nominal de número e gênero
A variação na aplicação das regras de concordância de número e gênero no
Sintagma Nominal diferencia o português brasileiro do português de Portugal,
como exemplificado respectivamente em (5) e (6):
(5) a. Meus filhos trabalham na roça.
b. Meus filho trabalham na roça.
(6) a. Meus filho trabalha na roça.
b. Meus filho trabalha no roça
A variação na concordância nominal de número afeta tanto a norma culta
quanto a norma popular do português brasileiro (PB), mantendo-se,
entretanto, a clivagem sociolingüística, na grande diferença na freqüência de
aplicação da regra entre as duas normas. Com falantes urbanos de um a doze
anos de escolaridade do corpus do PEUL no Rio de Janeiro, a freqüência de
aplicação da regra de concordância é estimada em pouco mais de 70%
(SCHERRE, 1988). Entre os falantes com nível superior, a freqüência é
certamente maior, apesar de não se disporem de resultados de uma análise
variacionista sobre o corpus do projeto NURC, que reúne amostras de fala de
indivíduos com curso superior completo de cinco capitais brasileiras: Porto
Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife.151 Em contraposição, nas
comunidades rurais afro-brasileiras isoladas do interior do estado da Bahia, no
nordeste do Brasil, a freqüência é inferior a 10% (ANDRADE, 2003).
A marcação do plural, que ocorre predominantemente no determinante
pré-nuclear, foi vista como uma influência do substrato africano por Guy
(1981, 1989, 2005). Por outro lado, o paralelo com o crioulo de Cabo Verde é
notável, pois “neste crioulo, o plural só é obrigatoriamente marcado num dos
elementos da expressão nominal, em geral o primeiro” (PEREIRA, 2006, p.
35):
(7) kel mininu fêmia a fla tcheo.
Aquela menina fala demais.
(8) kes mininu fêmia tá fla tcheo.
Aquelas meninas falam demais.
A variação na concordância nominal de gênero ocorre apenas em algumas
comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, como a comunidade de Helvécia,
no extremo sul do estado da Bahia. Essa comunidade teria passado por um
estágio crioulo em sua formação segundo observações de campo feitas por
Carlota Ferreira no início da década de 1960 (FERREIRA, 1984).
O paralelo entre o padrão de variação observado em Helvécia e o padrão
encontrado na marcação do gênero nos crioulos portugueses da África
também é notável. Em Helvécia, só há variação nos determinantes e
modificadores, tal como exemplificado em (8) e (9), enquanto nos núcleos
nominais a flexão é categórica, conforme exemplo (10) abaixo:
(9) Muitas veze, ‘duece um pessoa, num tem ambulança
(10) Ah, é... é coisa muito bom!
(11) e adepois, juntô com a sogra.
Nos crioulos, a reintrodução da morfologia de gênero no português em
função da descrioulização concorre com os processos de composição,
próprios do basileto (crioulo fundo), e se circunscrevem aos nomes de seres
sexuados. Normalmente, determinantes e modificadores não admitem a flexão
de gênero, como neste exemplo do crioulo da Guiné-Bissau:
(12) I tene un fiju femya bonitu.
(13) I tene un fija bonitu.
Tem uma filha bonita.
Por outro lado, uma alegada deriva secular da língua portuguesa não
poderia ser invocada, porque, ao longo da história da língua portuguesa, a
morfologia de gênero tem-se expandido, como se pode ver no quadro abaixo.
Quadro 1 – Português arcaico vs Português atual
PORTUGUÊS ARCAICO PORTUGUÊS ATUAL
mia senhor minha senhora
mulher espanhol mulher espanhola

A morfologia verbal de pessoa e número


Diferentemente do que sugerem Naro e Scherre (2000, 2007), o português
europeu (PE) diferencia-se do PB por manter quase intacta a flexão verbal de
pessoa e número. Tal vitalidade da morfologia flexional do verbo conserva o
PE como uma língua de sujeito nulo típica, contrastando com o alto grau de
realização fonética do pronome sujeito que se observa no Brasil.152 E,
diferentemente do que um brasileiro desavisado poderia supor, essa
manutenção do paradigma flexional do verbo no PE não está relacionada à
escolarização, pois, nas aldeias e vilas do noroeste de Portugal, conservam os
falantes mais velhos de pouca ou nenhuma escolaridade até o morfema da 2ª
pessoa do plural, com todos os seus alomorfes. Entretanto, na grande maioria
do país, o vós, e seu respectivo morfema verbal, caiu em desuso, predominando
o seguinte paradigma:
Quadro 2 – Paradigma flexional do verbo no PE
(eu) falo
(tu) falas
(você) fala
(ele/ela) fala
(nós) falamos
(vocês) falam
(eles/elas) falam

O emprego desses morfemas verbais de pessoa e número é praticamente


categórico em Portugal, restringindo-se a sua variação a uma flutuação inerente
ao desempenho.
O cotejo com o paradigma que predomina na norma culta brasileira revela
que nela a morfologia flexional de pessoa e número dos verbos se reduziu,
primeiramente, em função da introdução do você como pronome de 2ª pessoa
na grande maioria do território brasileiro, como se pode ver no quadro abaixo:
Quadro 3 – Paradigma flexional predominante na norma culta brasileira
eu falo
você fala
ele/ela fala
nós falamos
vocês falam
eles/elas falam

No seio desse paradigma com três morfemas flexionais, a variação no


emprego do morfema de plural –m é muito reduzida na norma urbana culta
brasileira, e praticamente restrita aos sujeitos pospostos com verbos
inacusativos. O estudo de Graciosa (1991) constatou uma freqüência de
emprego do morfema de 3ª pessoa do plural de 94% em materiais do NURC
do Rio de Janeiro. Esse emprego cai para 65% em sujeitos pospostos, como
exemplificado abaixo:
(14) Já adoeceu três filhotes.
A idéia de uma mudança estrutural em cadeia a partir da desnasalização
induzida por uma deriva secular proposta por Naro e Scherre (1993) para
explicar a variação no uso do morfema de plural -m não se sustenta diante dos
resultados das análises variacionistas levadas a cabo em variedades do PB. A
comparação dos resultados das Tabelas 1 e 2 abaixo demonstra que a
freqüência de aplicação da regra de concordância pode cair em até 52 pontos
percentuais quando o sujeito está posposto ao verbo, enquanto a diferença
entre o nível de aplicação da regra com a mera nasalização e com os alomorfes
mais salientes atinge um máximo de 23 pontos percentuais.153 Se a perda da
concordância tivesse se iniciado no contexto fonicamente menos saliente da
nasalização para afetar por analogia os demais alomorfes, como proposto por
Naro (1981) e Naro e Scherre (1993, 2007), esse deveria ser o contexto em que
o nível de aplicação da regra seria o mais baixo, mas isso positivamente não
acontece:
Tabela 1 – Realização da concordância verbal segundo a posição do
sujeito
PEUL-RJ VARSUL
POSIÇÃO
Oc. Freq. P.R. Oc. Freq. P.R.
Posposição 50/194 26% .08 132/255 52% .13
Outras posições 2368/3017 78% .49 1119/1328 84% .58
TOTAL 3369/4632 73% 1251/1583 79%

Tabela 2 – Realização da concordância verbal segundo o morfema de


plural
Rio de Janeiro (PEUL) Florianópolis (VARSUL)
MORFEMA
nº de oco. freq. P.R. nº de oco. freq. P.R.
-m
1.361/2.229 61% .27 663/903 73% .24
Ex.: canta(m), come(m)
alia
2.008/2.403 84% .56 588/680 86% .60
Ex.: fez/fizeram, é/são etc.
TOTAL 3.369/4.632 73% 1.251/1.583 79%

Em expressivo contraste com o que se observa na norma culta, a variação


na concordância verbal com a 3ª pessoa do plural, como exemplificada em (15)
e (16), é da ordem de 84% nas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas no
interior do estado da Bahia (SILVA, 2003)
(15) Eles ganha pouco.
(16) As mulé num vai.
O nível de variação cai para pouco mais de 60% entre os falantes da norma
popular do interior do estado do Rio de Janeiro e para pouco mais de 50% na
capital (VIEIRA, 1997; NARO, 1981, respectivamente), compondo um
continuum sociolingüístico que já destacamos alhures (LUCCHESI, 2003a,
2004).
Para além da enorme diferença na freqüência de aplicação da regra, a
variação observada no português afro-brasileiro diferencia-se estruturalmente
da observada na norma culta por não estar fortemente condicionada pela
posição do sujeito, como se pode ver na Tabela 3, em que a diferença na
freqüência de aplicação da regra de concordância entre o sujeito anteposto e
posposto não passa de três pontos percentuais (com peso relativo de .51
contra .49):
Tabela 3 – Realização da concordância verbal segundo a posição do
sujeito no português afro brasileiro154
Realização e posição do sujeito Nº ocorrências/Total Freqüência Peso Relativo
Sujeito não-realizado 80/297 27% .61
Sujeito posposto 10/94 11% .51
Sujeito anteposto 158/1134 14% .49
Pronome relativo 13/148 9% .35

Fonte: Silva (2003)

Portanto, estamos diante de fenômenos quantitativa e qualitativamente


distintos. Na norma culta, uma pequena variação fortemente condicionada
pela posposição do sujeito. Na norma popular, uma ampla variação pouco
afetada pelo contexto sintático. Tais evidências empíricas apontam
significativamente para a existência de dois processos históricos distintos.
Para além da pequena variação no emprego do morfema de plural -m e
seus alomorfes, a substituição do pronome nós em função da gramaticalização
da expressão nominal a gente, muito avançada na modalidade oral, está
reduzindo o uso do morfema -mos no uso culto brasileiro. Porém, com o
emprego do pronome sujeito canônico nós, não há variação na concordância
verbal na norma culta, o que pode ser inferido da ausência de estudos sobre o
fenômeno nos materiais do NURC. Além disso, em seu estudo com falantes
com nível secundário de escolaridade no Rio Grande do Sul, Zilles Maya e
Silva (2000) encontraram uma freqüência de aplicação da regra de
concordância verbal de 95%. Por conta disso, as análises que se restringem aos
processos de variação e mudança que afetam apenas a norma culta, afirmam
que, no PB, a redução no uso dos morfemas verbais de pessoa e número
resultaria fundamentalmente de substituições na pauta dos pronomes pessoais.
Porém, nas variedades populares do PB, a variação na concordância verbal
é maciça e atinge todas as pessoas do discurso, independentemente de
substituições na pauta dos pronomes pessoais, com se pode ver no quadro
abaixo:
Quadro 4 – concordância verbal nas variedades populares do PB
eu falo ~ fala
você ~ tu fala
ele/ela fala
nós fala ~ falamos
vocês fala ~ falam
eles/elas fala ~ falam

O nível de variação na concordância com a 1ª pessoa do plural nas


comunidades rurais afro-brasileiras isoladas do interior do estado da Bahia é
semelhante ao encontrado com a 3ª pessoa do plural: 82% de não-aplicação da
regra de concordância junto ao pronome canônico nós, como exemplificado
em (16) – (LUCCHESI – no prelo). Além disso, observa-se uma variação
morfofonológica na realização do morfema, como se pode ver em (17):
(17) porque nós só vai sabê quanto vai saí pa cada produtô quando fô assiná o pojeto. (INF06
CZ)155
(18) Nós somos seis irmão. (INF06 CZ)
Nós fomo tudo tem em Helvécia, mas já faz muito tempo… (INF19 HV)
Aí, comecemo a gostá e casemo. (INF03 CZ)
A queda do /S/ é um fenômeno claramente fonético e muito geral nas
variedades populares do PB. Essa variação também não ocorre com freqüência
na norma culta. Em uma análise variacionista do fenômeno junto a uma
comunidade de favelados da periferia da cidade de São Paulo, Rodrigues (1992)
encontrou um índice de aplicação da regra de 53% entre falantes analfabetos
ou semi-analfabetos. Bortoni-Ricardo (1985) encontrou praticamente a mesma
freqüência (56%) entre migrantes da zona rural que se estabeleceram na cidade
satélite de Brazilândia, na periferia de Brasília. Portanto, observa-se um
continuum sociolingüístico análogo ao observado para a variação no uso do
morfema de 3ª pessoa do plural. Desse modo, a ampla variação na aplicação da
regra de concordância verbal junto ao pronome canônico nós demonstra que,
diferentemente do que se observa na norma culta, a simplificação do
paradigma da flexão verbal na norma popular brasileira ocorreu
independentemente da substituição do nós pelo a gente.
O mesmo se aplica à perda do morfema da 2ª pessoa do singular -s na
norma popular, que ocorreu independentemente da substituição do pronome
tu pelo você. O pronome tu, praticamente desaparecido no uso culto na grande
maioria do território brasileiro, guarda vitalidade na norma popular. Em
grandes cidades, como o Rio de Janeiro, o uso do tu constitui uma das marcas
da fala suburbana. Já na Bahia, o uso do tu caracteriza a fala do interior do
Estado. Com a exceção de algumas poucas regiões – como no sul do país,
onde ainda se usa o morfema -s da segunda pessoa do singular, em forte
variação com a forma não marcada da 3ª pessoa –, a fala popular caracteriza-se
pelo uso categórico do tu com a forma verbal não marcada, podendo-se
assumir que, na norma popular do PB, a concordância verbal com a 2ª pessoa
do singular seria agramatical:
(19) Tu foi na festa ontem?
*Foste (tu) à festa ontem?
(20) Tu fala demais!
*(tu) Falas demais!
Tal situação contrasta flagrantemente com o que se observa em Portugal,
onde o morfema de 2ª pessoa guarda plena vitalidade, tendo um valor social
fortíssimo como marca de intimidade. Lá a falta de concordância é que é
agramatical:
(21) Foste à festa ontem?
* Tu foi à festa ontem?
(22) Falas demais!
* Tu fala demais!
No quadro dos morfemas flexionais de pessoa e número do verbo do
português popular brasileiro, o único para o qual não se observa uma ampla
variação de uso é o morfema da 1ª pessoa do singular. A variação no emprego
desse morfema, exemplificada em (22), circunscreve-se a comunidades rurais
afro-brasileiras, tal como Helvécia, na qual chega ao nível de 35% na fala dos
seus habitantes com mais de 60 anos de idade:
(23) Eu trabalha na roça.
Constata-se, assim, um quadro de ampla e profunda variação da morfologia
flexional de pessoa e número do verbo nas variedades populares do PB,
contrastando com o uso culto, não apenas nas enormes diferenças nas
freqüências de uso, como também nas tendências de mudança e nos sistemas
de avaliação social da variação lingüística. Se a falta de concordância verbal é
avaliada de forma muito negativa entre os falantes cultos, não o é nos
segmentos populares, que só aos poucos vêm assimilando o valor social da
concordância. Esta assimilação se reflete nas tendências de mudança que
ocorrem com o objetivo de implementar a regra na norma popular brasileira,
como se pode constatar na Tabela 4 que exibe uma curva ascendente, na qual
os falantes mais jovens das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas são
aqueles que mais fazem a concordância verbal. Esse cenário também contrasta
com o quadro de variação estável ou mesmo de ligeiro declínio no emprego da
regra de concordância verbal entre os falantes urbanos mais escolarizados,
configurando-se plenamente a clivagem sociolingüística do Brasil, em relação à
concordância verbal.
Tabela 4 – Aplicação da regra de concordância verbal junto à 3ª pessoa
do plural segundo a variável faixa etária em três comunidades rurais
afro-brasileiras
Faixa Etária Nº ocorrências/Total Freqüência Peso Relativo
Faixa I (20 a 40 anos) 141/634 22% .62
Faixa II (41 a 60 anos) 85/602 14% .48
Faixa III (61 em diante) 47/470 10% .36

Essa tendência de implementação das regras de concordância no português


popular brasileiro, por um lado, nega uma alegada tendência secular para a
simplificação morfológica embutida na deriva da língua. Por outro lado, aponta
para um passado em que a erosão da morfologia flexional do verbo foi mais
ampla e profunda. E só um processo histórico da magnitude da aquisição do
português por milhões de escravos africanos e índios aculturados e sua
nativização entre os seus descendentes pode exibir um resultado dessas
proporções. É plausível que, nas variedades de português faladas pelas
primeiras comunidades de africanos, crioulos156 e mestiços formadas no Brasil,
a morfologia flexional do verbo tenha sido praticamente eliminada. Este é um
cenário previsível em situações de contato lingüístico desse tipo, tanto que o
resultado é a ausência de qualquer morfologia flexional de pessoa e número
nos crioulos de base lexical portuguesa, tanto na África, quanto na Ásia e na
Oceania. Nesse sentido, o padrão de fala dos habitantes mais velhos de
Helvécia, na Bahia, onde a variação atinge praticamente todo o paradigma da
flexão verbal de pessoa e número, é o que mais se assemelha à situação das
línguas crioulas de base lexical portuguesa na África:
Quadro 5 – Português afro-brasileiro versus Crioulo português de Cabo
Verde
português afro-brasileiro crioulo português
Helvécia – Ba Cabo Verde
eu falei n’fla
tu falou bu fla
ele falou e fla
nós falou nu fla
vocês falou nhu fla
eles falou es fla

Pode-se pensar, então, que em Helvécia, assim como em muitas


comunidades rurais de todo o interior do país, a morfologia verbal foi sendo
re-introduzida ao longo de todo o século XX, devido à crescente influência
dos grandes centros urbanos para todo o resto do país, sobretudo mediante a
ação dos meios de comunicação de massa. Este cenário que pode ser definido
como descrioulizante, já que se trata de uma recomposição da morfologia da
língua alvo perdida em decorrência do contato lingüístico, não se restringe
apenas à concordância verbal e nominal; vários aspectos gramaticais da norma
culta exibem esse processo de implementação da morfologia do português
culto. Tal é o caso da flexão de caso dos pronomes pessoais.
A flexão de caso dos pronomes pessoais
A propriedade dos pronomes pessoais de assumir formas diferentes con-
soante a sua função sintática foi diretamente afetada, mesmo na norma culta
brasileira, com a introdução das formas nominais você e a gente, que, enquanto
tais, não exibem flexão de caso. Entretanto, essas formas podem-se combinar
também com as formas pronominais flexionadas, correspondentes a essas
pessoas do discurso, formando o quadro de variação exemplificado abaixo:
(24) a. Você me viu, mas eu não vi você ~ mas eu não te~lhe vi.
b. Você me pediu e entreguei o documento pra você ~ e lhe/te entreguei o documento.
c. Você quer, mas eu não vou sair com você ~ contigo.
(25) a. A gente se apresentou, mas não escolheram a gente ~ mas não nos escolheram.
b. A gente viu a Maria, mas ela não viu a gente ~ mas ela não nos viu.
c. A gente pediu, mas a Maria não saiu com a gente ~ não saiu conosco.157
Além dessa variação, resultante da introdução do você e do a gente, verifica-
se uma forte variação com os pronomes de 3ª pessoa, apresentada nos
exemplos abaixo:
(26) eu encontrei ela no cinema. (OD)
eu a encontrei no cinema.
(27)eu entreguei o livro pra ela. (OI)
eu lhe entreguei o livro.
Mattoso Camara Jr. (1972) encontrou propensões estruturais para explicar
essa perda de flexão de caso. Para Camara Jr. (1972), o pronome da 3ª pessoa
do discurso seria o elo mais fraco do paradigma por ter uma natureza nominal,
já que, como os nomes, possui flexão de número e gênero: ele(a)(s). Assim
sendo, seria natural que a tendência secular para a perda da morfologia de caso
que já havia atingido os nomes, na passagem do latim ao português, penetrasse
na pauta dos pronomes pessoais exatamente pelo mais nominal dos pronomes.
Desse modo, o Quadro da variação na flexão de caso dos pronomes pessoais
na norma culta pode ser esquematizado da seguinte forma:
Quadro 6 – Flexão de caso dos pronomes na norma culta do português
brasileiro
Flexão de caso dos pronomes na norma culta do português brasileiro
função sintática
pessoa
sujeito OD / OI oblíquo/adverbial
1ª pessoa do sing. eu me mim, comigo
2ª pessoa do sing. você você ~ te ~ lhe você, contigo
3ª pessoa do sing. ele/ela ele/ela ~ o/a ~ lhe ele/ela ~ si, consigo
1ª pessoa do pl. a gente ~ nós a gente ~ nos a gente ~ nós, conosco
2ª pessoa do pl. vocês vocês ~ lhes vocês ~ si, consigo
3ª pessoa do pl. eles/elas eles/elas ~ os/as ~ lhes eles/elas ~ si, consigo
Porém, no português popular brasileiro em geral, e no português afro-
brasileiro, em particular, ocorrem processos de variação que transcendem o
escopo da variação que afeta a norma culta brasileira. Dentre esses processos,
podemos destacar:
a) a variação na flexão de caso com o pronome da 1ª pessoa do singular:
(28) meu pai me criô (OD)
(29) o marido num quis eu não (OD)
(30) todo mundo depende de mim (oblíquo)
(31) eles depende de eu (oblíquo)
(32) tu vem ficá aqui comigo (adverbial)
(33) ela num quis ir mais eu não (adverbial)
b) a variação na flexão de caso com o pronome da 1ª pessoa do plural, com
a perda do clítico nos:
(34) ela atendeu nós (OD)
(35) ficava vigiano a gente (OD)
(36) ele é nascido e criado mais nós aí no Cinzento (adverbial)
(37) É difícil ele ir mais a gente (adverbial)
(38) Ficô com a gente pequeno (adverbial)
Nessas variedades do PB, nem o mais pronominal dos pronomes, o eu,
escapa do processo de variação, podendo a forma do caso reto ocorrer na
função de objeto direto, como no exemplo (28), no qual concorre com o
clítico me, bem como na função de oblíquo ou adverbial, concorrendo com as
formas tônicas mim e comigo (conforme exemplos (29) a (32)). No caso do
pronome da 1ª pessoa do plural, o processo de variação que se observa no
português afro-brasileiro é ainda mais radical, pois com a forma nós concorre
com a forma a gente em todas as funções sintáticas (conforme exemplos (33) a
(37)), estando virtualmente eliminadas as formas flexionadas nos e conosco.158
Portanto, no português afro brasileiro, as formas dos pronomes pessoais,
formas flexionadas em caso restringem-se à 1ª e à 2ª pessoas do singular, em
variação com as formas não-flexionadas, como se pode ver no quadro abaixo:
Quadro 7 – Os pronomes pessoais no português afro brasileiro
Os pronomes pessoais no português afro-brasileiro
pessoa função sintática
sujeito OD OI oblíquo/adverbial
1ª pess. de/ni/pra mim ~ de/ni eu ~ comigo ~
eu me ~ eu me ~ para mim
sing. mais eu
2ª pess. te ~ lhe ~ você te ~ lhe ~ a
você ~ tu pra/com /de você ~ com tu
sing. ~ tu você
3ª pess.
ele/a ele/a (pra) ele/a de/pra/ni/com ~ mais ele/a
sing.
1ª pessoa nós ~ a pra/a a gente ~
a gente ~ nós pra/de/com ~ mais a gente ~ nós
pl. gente nós
2ª pessoa
vocês --- pra vocês pra/mais vocês
pl.
3ª pessoa de/ni/pra/com ~
eles/as elas/eles pra(a) eles
pl. mais eles/as

De acordo com os parâmetros normalmente adotados para a avaliação das


explicações científicas, as correlações mais simples e diretas têm a precedência.
Assim sendo, por que recorrer a processos sinuosos que se espraiam
sorrateiramente por paradigmas movidos por uma metafísica deriva secular, se
há claras evidências de uma relação empiricamente motivada entre a erosão da
morfologia flexional no português popular brasileiro e o processo de
transmissão lingüística irregular que ocorre nas situações históricas de contato
maciço entre línguas? Mais uma vez, o paralelo com as línguas crioulas da
África não deixa margem à dúvida, explicando de forma muito mais simples e
elegante por que a erosão da morfologia de caso dos pronomes pessoais nas
variedades populares do PB vai muito além das propensões estruturais de uma
alegada deriva secular.
Uma das características mais generalizadas entre as línguas pidgins e
crioulas é a perda da flexão de caso dos pronomes. Com isso, é normal nas
línguas crioulas que a mesma forma do pronome pessoal desempenhe tanto a
função de sujeito, quanto a de complemento verbal ou adjunto adverbial,
como se pode ver nos seguintes exemplos do crioulo caboverdiano:
(39) a. Mi e fliz. ‘eu sou feliz’
b. N _a faze izarsísi. ‘eu estou fazendo o exercício’
c. El dà-m un livr. ‘ele me deu um livro’
(40) a. Bo _a faze izarsísi. ‘você faz o exercício’.
b. El dà-b’ un livr. ‘ele deu a você um livro’
(41) Bo dà-l un livr. ‘você deu a ele um livro’
(42) a. No _a faze izarsísi. ‘nós estamos fazendo o exercício’
b. El ojò-n. ‘ele nos viu’
No quadro abaixo, em que as formas dos pronomes pessoais do crioulo
português de Cabo Verde são apresentadas esquematicamente segundo a
função sintática, pode-se constatar que não há flexão morfológica de caso; o
que existe é uma variação fonológica determinada por processos de cliticização
das formas pronominais:
Quadro 8 - Os pronomes pessoais do crioulo português de Cabo Verde
Os pronomes pessoais do crioulo português de Cabo Verde13
Função sintática
pessoa
sujeito complementos e adjuntos verbais
1ª pessoa sing. Mi ~ m ~ me ~ mi ~ ’m
2ª pessoa sing. Bô ~ bó ~ bu bô ~ bu ~ b’
3ª pessoa sing. Êl ~ ê l ~ êl
1ª pessoa pl. no ~ nu ~ nos nos ~ nus
2ª pessoa pl. bosês ~ osês ~ sês bô
3ª pessoa pl. ês ês ~ ’z
159

Nos demais crioulos de base lexical portuguesa da costa Ocidental da


África (o crioulo da Guiné-Bissau; o forro e angolar, na ilha de São Tomé; e o
principense, na ilha do Príncipe), o quadro é praticamente o mesmo, podendo-
se assumir, com uma boa margem de segurança, que, do lado de cá do
Atlântico, o mesmo processo, com menor intensidade, levou não a essa
eliminação completa, mas ao quadro de profunda variação que ainda se insinua
na fala popular brasileira. Mas, apesar de estar de frente para a África, o Brasil
sempre teimou em dirigir suas aspirações e questionamentos um pouco mais
para o norte, olvidando uma forte relação que unia os dois lados do Atlântico
sul até meados do século XIX, quando foi desbaratada pela sanha do
imperialismo inglês (COSTA E SILVA, 2003).
CONCLUSÃO
Os fatos aqui apresentados demonstram claramente que a erosão na
morfologia nominal, verbal e pronominal que se observa nas variedades
populares do português brasileiro nada mais é do que o resultado menos
intenso do mesmo processo de transmissão lingüística irregular que afetou o
português na costa ocidental da África, dando ensejo ao surgimento de vários
crioulos portugueses nesse continente. Os processos de mudança não atingem
os paradigmas estruturais de maneira uniforme, afetando mais intensamente
aquelas estruturas mais propensas àquele tipo de mudança – não se pode negar
a esse fator estrutural o seu valor heurístico. O que não se sustenta em termos
lógicos é buscar numa remota desnasalização transmontana o móvel para a
erosão da morfologia verbal na norma popular brasileira, ou em uma ainda
mais implausível tendência para a perda do -s final na România Ocidental,
como propõem Naro e Scherre (1993) para explicar o amplo quadro de
variação na concordância nominal de número. Não se pode mais conceber que
processos abstratos possam suplantar a ação e a vida de milhões de indivíduos
em análises científicas da história de padrões coletivos de comportamento
lingüístico.
Além do mais, as claras evidências empíricas do paralelo com as línguas
crioulas da costa ocidental da África tornam muito mais simples e elegante a
correlação com o tipo de mudança mais geral e intensa nas situações de
contato entre línguas. As estruturas gramaticais mais afetadas pelo processo de
transmissão lingüística irregular desencadeado em situações de contato
lingüístico maciço são as flexões desprovidas de valor referencial, como a
flexão de caso dos pronomes pessoais, a morfologia verbal de pessoa e
número (cuja informação é suprida pela atualização do pronome sujeito) e a
concordância nominal de gênero e número. Portanto, nos casos mais radicais
de transmissão lingüística irregular, como os que se observam nas línguas
crioulas, essas estruturas são eliminadas; nos processos menos intensos, tais
estruturas são acometidas de um amplo processo de variação, sem, contudo,
serem eliminadas, como ocorre nas variedades populares do português
brasileiro.
A adoção desse raciocínio pode parecer inevitável. Porém, é preciso ainda
superar imponentes obstáculos. Diante da fabulosa estrutura mental da
faculdade da linguagem, é natural que os lingüistas da melhor cepa sejam
fascinados pelas abordagens formais e muito refratários às explicações que
estabeleçam correlações sociais para explicar mudanças estruturais. De menor
monta nos dias de hoje é o preconceito que animou lingüistas e filólogos nos
meados do século passado a propalarem uma superioridade cultural do
colonizador europeu para expurgar o idioma nacional de qualquer influência
de povos primitivos.160 Portanto, ao vencer tais barreiras, resgata-se, por um
lado, o papel de milhões de indivíduos que tanto contribuíram para a formação
da sociedade brasileira, sendo nela sempre preteridos e marginalizados. Para
além desse valor de maior relevância social, pode-se pensar no valor científico
de se considerar seriamente o contato entre línguas na análise da história de
uma variedade lingüística que se situa além do universo tipificado das
chamadas línguas crioulas.
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NOTAS
7 Para a definição de indicadores, marcadores e estereótipos sociolingüísticos, veja-se Labov (1974), Tarallo e
Alkmin (1987, p. 60-74) e Lucchesi (1994, 2002), entre outros.
8 A expansão gramatical de um pidgin, que se mantém como segunda língua da maioria de seus falantes, é
um processo raro, cujo exemplo de maior destaque é o tok pisin, o pidgin de base lexical inglesa de
Papua Nova-Guiné.
9 Os entrepostos militares e comerciais que os europeus estabeleceram na costa africana, na Oceania e no
sul do continente asiático também possibilitaram a formação de línguas crioulas, mas a diferença no
contexto sócio-histórico vai implicar em algumas diferenças vis-à-vis os crioulos de plantação e
quilombolas, tais como uma manifesta influência gramatical do substrato em alguns crioulos do sul da
Ásia.
0 A polêmica substrato versus universais transborda do plano teórico para o plano da historiografia e,
muitas vezes, esbarra na impossibilidade em identificar lingüisticamente os segmentos do substrato, em
função da ausência de registros históricos.
1 Para maiores informações sobre o Projeto NURC, veja-se, entre tantas outras fontes, a de Callou (1999).
2 Esse fato é destacado por Tarallo (1993) e Duarte (1993, 1995), entre tantos outros.
3 Os resultados dessas tabelas foram extraídos de Monguilhott e Coelho (2002), para a cidade de
Florianópolis, e de Scherre e Naro (1997), para a cidade do Rio de Janeiro.
4 Extraída de Silva (2003).
5 Os exemplos são extraídos do corpus do Projeto Vertentes do Português Rural do estado da Bahia
(<http://www.vertentes.ufba.br>) e indicados pelo número do informante e a sigla da comunidade a que
esse informante pertence: CZ, Cinzento; HV, Helvécia: RC, Rio de Contas; SP, Sapé.
6 Os filhos dos escravos africanos nascidos no Brasil eram denominados crioulos.
7 Essa forma conosco não é muito freqüente no PB.
8 Na amostra de 28 entrevistas informais com duração entre 40 e 60 minutos, realizadas em quatro
comunidades rurais afro-brasileiras isoladas do interior do estado da Bahia, que compõem o acervo de
fala vernácula do português afro-brasileiro do projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia
(<http://www.vertentes.ufba.br>), não foram encontradas ocorrências, nem do clítico nos, nem da forma
compósita conosco.
9 Quadro adaptado a partir das informações de Almada (1961, p. 94-101) e Lopes da Silva (1984, p. 132-
133, 163).
0 Nesse sentido, vale o destaque negativo a Elia (1979).
“Bárbaros à porta”: uma reflexão histórica sobre a
língua portuguesa no Brasil da atualidade161

Rosa Virgínia Mattos e Silva – UFBA/CNPq


INTRODUÇÃO
Em ensaio de 1960, na Coletânea As aproximações, de Agostinho da Silva,
para mim o Professor Agostinho, escreveu Bárbaros à porta. Nesse ensaio o
Professor nos ensina o que quer dizer a palavra bárbaro:
[...] Não significa de modo algum selvagem, mas apenas designa aquele que, balbuciando, demonstra
falar mal uma determinada língua que se convencionou chamar de cultura. Foi isto o que sucedeu
aos gregos, os quais cunharam o termo, foi o que depois entenderam os romanos, e neste caso
muitos mais cultos do que os donos da língua de cultura; na realidade o bárbaro era apenas o
estrangeiro; compreende-se, no entanto, a evolução do significado da palavra e as várias facetas com
que depois se apresentou na sua semântica. (1960, p. 89)
Filólogo, que também era o Professor Agostinho, define “língua de
cultura”:
Consideraríamos então língua cultural, quer expressa em russo, quer em malaio, tudo aquilo que
para alguns poucos entrou de tal modo em sua vida, em seus sistemas de pensar, de sentir e de agir,
que a cada momento é a mesma a surpresa, quando o vêem pronunciado de outro modo. (1960, p.
90)
Mais adiante, no dizer do Professor Agostinho:
[...] Apesar de todas as enganadoras pretensões de políticos de fácil afirmação, apesar de todas as
ilusões daqueles optimistas que só o sabem ser quando fecham os olhos às realidades do universo,
pouquíssimos são os que falam com perfeição essa língua de cultura... cada vez menor é o número
dos que fazem algum esforço para verdadeiramente a entender; cada vez também menor é o número
dos que ainda se não renderam à pressão invasora. (1960, p. 91)
Conseqüentemente com sua argumentação, diz ainda:
A verdade é que o mundo está cheio de bárbaros e nenhum país está livre deles; a língua do
verdadeiro entendimento, da fraternidade, da convivência... a língua, quase diríamos do silêncio, que
levava a que se entendessem os espíritos sem que de mais vibrasse o ar, vai sendo sufocada pelos
que sabem gritar. (1960, p. 92)
Poeta e político, no melhor sentido dessa palavra, o Professor Agostinho
continua:
Os progressos técnicos, que toda a gente está confundindo cada vez mais com o progresso humano,
não criar um suplemento de ócio... O choque mais violento vai dar-se escaotamente, como era
natural, nos países em que existir uma liberdade maior; nos outros... pode não canalizar mais
facilmente a humanidade para a utilização desse ócio... algumas consciências se erguerão dos
destroços... converterão o bárbaro ao antigo e sempre eterno ideal de “vida conversável”. (1960, p.
93-94)
Desculpo-me pelas longas citações, mas as justifico pela sua atualidade.
Destacarei a questão de “ócio”, no que se refere ao Brasil. Com o avanço
acelerado das tecnologias da Informática, muito desemprego ocorreu no fim
do século recém-passado. Lembro-me bem de que antigos funcionários do
Banco do Brasil ficaram desempregados por causa dos caixas eletrônicos.
Outro fato que relembro: voltando eu do trabalho, admirei-me de ver na praia,
por volta do meio dia, muita gente. Era um dia de semana. A razão dessa
surpresa era, apenas, o desemprego. Este continua. Nas ruas da minha cidade,
encontram-se a cada passo, jovens pedintes ou vendendo qualquer coisa: água,
pano para limpar chão ou, então, jovens que arriscam a vida, fazendo
malabarismos nas paradas do trânsito, para conseguirem algumas moedas.
Note-se que, na atual campanha eleitoral, é recorrente entre os candidatos o
tema – “geração de empregos” – porque, sem dúvida, o desemprego é o
grande fantasma ameaçador dos que entre grades e guaritas, buscam defender-
se de assaltos, arrombamentos, roubos... A sonhada “vida conversável” do
poeta Agostinho transforma-se numa vida de medo, susto e até pânico.
Embora nada impeça o “sonho” e a “vida conversável”. Que, de fato, ainda
existem!
QUAIS “OS BÁRBAROS” DE HOJE NA SOCIEDADE BRASILEIRA?
Na década de 1960, eram comuns as expressões “O Brasil é um grande
país de analfabetos” e o “Brasil é um país eminentemente agrícola”. Quanto à
segunda, com as transformações econômicas, o Brasil vem deixando de ser
“eminentemente agrícola”. A partir dessa década, a indústria brasileira vem-se
desenvolvendo, embora, em grande parte, o Brasil seja agrícola, sobretudo na
região sudoeste – como Mato Grosso do Sul, em que infindas fazendas de soja
se desdobram no horizonte. Fazendas mecanizadas, com recursos mecânicos
modernos; no Sudoeste baiano também predominam as fazendas de soja. Soja
industrializada em óleo para cozinhar, leite de soja e a chamada e apreciada
“carne de soja”.
De “um grande país de analfabetos”, o Brasil é hoje um país de analfabetos
funcionais. Segundo o lingüista paranaense Paulo Bearzotti Filho, na Revista
Discutindo a língua portuguesa:
Dados do 5º indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf), por exemplo, mostram que
nada menos que 68% dos brasileiros entre 15 e 64 nos, embora alfabetizados, não vão além da
leitura de textos curtos, dos quais extraem informações evidentes. Somente 25% dos brasileiros
dominam satisfatoriamente a leitura e a escrita. (2006, p. 30)
A mesma questão está discutida no editorial do Jornal A Tarde de 11 de
julho de 2006, intitulado Ensino Falido, considerando não o Brasil, como um
todo, mas o Nordeste brasileiro. Diz o editorialista:
É mais baixo do que se supunha o nível do ensino público, como demonstra a Prova Brasil realizada
pelo Ministério da Educação em novembro passado... Nada menos de 68% dos alunos da 4ª série de
escolas públicas nesta região não entendem o que lêem... Se os alunos não compreendem é porque
ainda não aprenderam a ler... Para eles a redação é arte penosa, porque os obriga a se concentrar e
pensar.
Será mesmo por essas razões – “obrigar a se concentrar e pensar”? Ou será
pela qualidade da escola pública brasileira?
Citei revista e jornal, porque neles há dados bem atualizados. Os livros, que
tratam desse tema – qualidade x quantidade – no ensino, em seus vários níveis
– fundamental, médio, superior, também existem, mas quando publicados já
não estão tão atualizados.
Voltemos, contudo, à questão dos “bárbaros” de hoje na sociedade
brasileira. Esses “novos bárbaros” são aqueles que, em geral, vindos de classes
sociais de baixo poder aquisitivo, ou seja, os pobres, freqüentam escolas
públicas e não as caríssimas escolas particulares, que se multiplicam, nas quais
se crê ou se supõe seja melhor a qualidade do ensino.
Os jovens pobres trazem para a sala de aula a fala de sua casa, o vernáculo
que adquiriram e, ao chegarem à escola encontram, a partir da precária
alfabetização, um ensino de português que ainda privilegia o ensino normativo,
baseado na gramática tradicional, de tradição lusitanizante. Deparam-se, assim,
com o dialeto novo, que faz parecer que estão adquirindo uma língua
estrangeira e não a sua língua nativa. Terminam, dessa forma, por acharem que
não sabem o português. Neste semestre, na turma de pós-graduação que
ministro, uma professora de Inglês, no primeiro dia de aula, externou para
mim e seus colegas que não sabia Português. Para meu espanto, o
inculcamento de um ensino distorcido leva adultos universitários a dizerem o
que disse a referida professora.
Sendo assim, os “novos bárbaros” são aqueles muitos que, vindos, na sua
maioria, das classes pobres, trazem como estigma social a convicção de que
não sabem a sua própria língua de berço. Por isso, são censurados pelos
supostos educadores por seus “erros”, que não são mais que características
próprias ao seu vernáculo familiar.
Assim, o “ensino falido” se reflete diretamente em nossa juventude e, sem
dúvida, faz essa juventude sofrer para adquirir um novo dialeto ou variante do
português. No que se refere aos que resistem às escolas falidas, um tema
também recorrente é o abandono da escola, cujo termo técnico é “evasão
escolar”, que muito preocupa o Ministério da Educação e as Secretarias
Estaduais de Educação.
Voltando, contudo, às normas cultas e vernáculas conviventes no
português: a meu ver, a melhor compreensão do problema é a do
sociolingüista Dante Lucchesi:
Apesar de conceber o português do Brasil como um sistema heterogêneo e variável, defendendo
que ele não pode ser analisado como um sistema unitário, mas um sistema plural, mais precisamente
um diassistema, constituído por, pelo menos dois, também variáveis, que defini aqui como normas
cultas e vernáculas. (1994, p. 26)
Mais recentemente, muitos lingüistas e sociolingüistas brasileiros vêm
escrevendo livros sobre o ensino da língua portuguesa nas séries escolares.
Não os nomearei para evitar lacunas. Livros que são mais para professores que
para os estudantes.
Em 2003, o sociolingüista Marco Bagno, que possui muitos livros
relacionados ao ensino de português e ao preconceito lingüístico, publicou o
livro A Norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. Pelo título já se entrevê
que se trata de um livro de política lingüística para o Brasil. Como define
“norma oculta”:
A Norma oculta do título deste livro se refere ao jogo ideológico que está por trás da defesa de um
conjunto padronizado de regras lingüísticas. Essa defesa se faz apoiada no mito de que o
conhecimento da “norma oculta” é garantia suficiente para a inserção do indivíduo na categoria dos
que sabem falar... Mas a restrição imposta ao acesso dos falantes das variedades estigmatizadas ao
sistema educacional... já garante que essa “ascensão social” não ocorrerá e preserva o
conhecimento-uso da “norma culta” a uma parcela ínfima da sociedade. (2003, p. 191-192)
E mais adiante afirma: “Essa discriminação não dita ou implícita é que
configura a Norma oculta, o disfarce lingüístico de uma discriminação que é,
de fato, social” (BAGNO, 2003, p. 193).
Por que razões o português brasileiro é assim polarizado? Na minha
compreensão, só fatores de natureza histórica podem conduzir a uma
interpretação da questão em foco. Em breves linhas sumarizarei nove ensaios
sobre o tema, reunidos no meu livro: Ensaios para uma sócio-história do português
brasileiro, publicado em 2004. Em síntese, os fatores que considerei
significativos são: a) o multilingüismo característico do Brasil colonial e pós-
colonial; b) a demografia histórica; c) a escolarização ou sua ausência; e d) a
mobilidade dos escravos africanos ou afrodescendentes e suas conseqüências
na conformação do português brasileiro.
(a e b) Quanto ao multilingüismo, que foi freado pelas conhecidas leis
pombalinas nos meados do século XVIII, ele implica no contacto do
português europeu, com sua dialetação própria, com as centenas de línguas
indígenas autóctones, existentes no território do que veio a ser o Brasil. Em
1549, aportam com o primeiro governador geral – Tomé de Souza – os
escravos, oficialmente trazidos da África. A população escravizada perfez entre
1538 e 1850 cerca de 70% da população brasileira, enquanto a etnia branca –
portugueses e luso-descendentes – apenas 30% da população. Na segunda
metade do século XIX, chegam os imigrantes europeus e asiáticos. Na década
de 1890 aportam um milhão e duzentos mil imigrantes, entre eles, portugueses.
Tanto para os indígenas como para os africanos e os imigrantes, o modelo da
língua alvo era defectivo, modelo precário para, aquisição da língua dominante
politicamente, a portuguesa.
(c) Quanto à escolarização, diz Antônio Houaiss (1985, p. 137) que, até o
final do século XVIII, não ultrapassariam 0.5% dos letrados. Esse percentual
dá um grande salto, entre o século XVIII e 1920, quando os escolarizados
atingem o patamar de 20 a 30%, que, de resto, se mantém em algumas regiões,
as menos desenvolvidas, do Brasil, como é o caso do Nordeste Brasileiro.
Conjugando os dados demográficos históricos – que são sempre
aproximativos – com os dados da quase ausência de escolarização, nesses
séculos, pode-se interpretar, com certa margem de acerto, a polarização
socioletal que caracteriza o português brasileiro hoje.
(d) Quanto à mobilidade dos escravos africanos ou afro-descendentes, com
base na historiadora Kátia Mattoso, no seu livro de 1979, Ser escravo no Brasil e
no brasilianista Robert Conrad, no livro Os últimos anos da escravidão no Brasil, de
1972, os escravos, multidão sem voz, acompanhavam seus senhores para onde
a mão-de-obra escrava fosse necessária: do Recôncavo baiano do açúcar e
fumo (século XVII); para as lavouras canavieiras da Bahia, Pernambuco e Rio
de Janeiro (séculos XVI e XVII); para mineração de ouro e de diamantes nas
Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás (séculos XVII e XVIII).
Diminuída a corrida do ouro e de diamantes, a mão-de-obra escrava é
atraída para o litoral, com novo surto açucareiro, no Rio de Janeiro, atingindo
São Paulo e, no século XIX, concentram-se na área cafeeira do Vale do Rio
Paraíba do Sul. No Maranhão, os escravos foram para o cultivo do fumo e
algodão e para as áreas amazônicas, para a colheita de especiarias. Estiveram
também presentes nas regiões pastoris dos interiores nordestinos, desde o
século XVI e, no XIX, nas charqueadas do Sul do Brasil.
Diante desses dados e fatos, a língua portuguesa, na sua variante brasileira,
deve suas características inovadoras e, em geral simplificadas, à forma como
foi adquirida pela massa populacional: como segunda língua, com modelos
defectivos da língua alvo, sem o controle normativo da escolarização. Desse
modo, a demografia histórica, a ausência, ou quase, de escolarização e a
mobilidade territorial dos africanos e afrodescendentes permitem a
interpretação de que o português popular, ou seja, o vernáculo falado no
Brasil, devemos nós aos africanos e afrodescendentes que adquiriram, como
antes visto, a língua alvo, a língua oficial – a partir do século XVIII – da
colonização, a língua portuguesa.
UMA QUESTÃO EM DEBATE HOJE: A QUESTÃO DAS QUOTAS
ÉTNICAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS
Desde 2000, com as comemorações do 5º centenário do descobrimento ou
“achamento” – no dizer de Pero Vaz de Caminha na sua Carta ao rei D.
Manuel – reacenderam-se, acirradamente, reivindicações, às vezes violentas,
dos remanescentes indígenas, dos pobres, sobretudo “Sem Terra”, que são
muito organizados, e dos afrodescendentes.
Muitos movimentos de afrodescendentes existem hoje no Brasil. Dentre
eles, destaca-se o M N U (Movimento Negro Unificado).
Em 2002, iniciaram-se os debates nas Universidades Públicas sobre o
percentual que se permitiria entrar na Universidade sem passar pela grelha do
Vestibular, afrodescendentes e indígenas. Debate veiculado pelos jornais,
televisões e pela internet. Dividiram-se os grupos, os que defendiam as quotas
com base na “raça” e os que, não estando contra as quotas defendiam também
as quotas para os estudantes pobres que aspiravam à Universidade, mas
vinham das escolas públicas com seu ensino de má qualidade.
Em 2004, discutem-se ainda as quotas, não só para a Universidade, mas
também para brancos e empresas. Em reportagem da Revista Isto é, de 12 de
julho de 2006, intitulada Qual é a sua cor?, de autoria do jornalista Antônio
Carlos Prado, o referido jornalista diz para começar:
Está se desenhando no Brasil uma situação que dá claros sinais de retrocesso no campo do
preconceito racial. A idéia, surgida há dois anos e que agora está prestes a virar lei, estabelece nas
universidades uma reserva para negros, destinando a eles 40% das vagas [...] materializa-se no
projeto sectário e pomposamente intitulado Estatuto da Igualdade Racial, do senador petista Paulo
Paim [...] brancos e empresas públicas teriam de empregar forçosamente 20% de negros. (2006, p.
39)
Às páginas 40 e 41 da referida revista está o que segue: “Para o IBGE
[Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] as pessoas declaram a cor que
quiserem. Estima-se que o Brasil tenha 53.7% de branco, 38.4% de pardos,
6.2% de preto, 0.4% de amarelo e 0.4% de indígena” (RIBEIRO, 2006, p. 40-
41).
No debate entraram antropólogos, historiadores, jornalistas etc. A
antropóloga brasileira Yvonne Maggie, do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
diz nessa reportagem: “O Estado não pode legislar instituindo oficialmente as
raças. Um país como o nosso, que nunca legislou a questão nem contra nem a
favor, se aceitar o estatuto estará criando as raças oficialmente” (2006, p. 40).
Segundo afirma Sebastião Tojal, presidente da Comissão de Ensino
Jurídico da Ordem dos advogados de São Paulo, na mesma reportagem:
A exclusão atinge o negro e o branco, a pobreza não escolhe raças, ou seja, a democracia social do
Brasil exige uma ampla cirurgia, o Estatuto da Igualdade Racial e suas quotas são apenas um band
aind para tapar a ferida da desigualdade que continuará a sangrar (2006, p. 41).
O historiador Celso Castro, na Revista Nossa História, de maio de 2006,
escreveu um artigo intitulado “Raça” e sociedade brasileira. A partir da evidência
que ganhou a questão das quotas, diz Celso Castro:
Não creio que seja, no entanto, o melhor caminho. Baseio-me na constatação de que não existe raça
do ponto de vista biológico. Essa nação filha do século XIX, adentrou o século XX ainda gozando
de força no meio científico e no senso comum [...] Talvez a afirmada criatividade brasileira deva ser
utilizada não para recuperar o conceito biológico de raça – que já deveria ter ido para o museu da
história –, e sim para inventar outras formas, mais eficientes de combater a desigualdade e a
discriminação. (2006, p. 98)
A lingüista Miriam Lemle, em e-mail de 27 de julho de 2006, que transmite
o que enviou para o jornal O Globo intitulado Teses e truques, diz, em síntese:
Em vez de discutir cota, é melhor investir na educação. Não se deve adotar um sistema que separa
por raça, pois isso criará racismo. Não se pode ferir o princípio constitucional de que todos são
iguais perante a lei. Nunca pode ser revogado o princípio do mérito acadêmico... O princípio da
igualdade perante a lei é a pedra que sustenta as sociedades democráticas modernas. As ações
afirmativas não vão revogá-lo... As políticas de ação afirmativa não vão criar o racismo. Não se cria
o que já existe. O Brasil tem um fosso enorme, resistente, entre brancos e negros e é esse fosso que
se pretende vencer. Sem o incentivo à mobilidade, o Brasil carregará para sempre as marcas da
escravidão. (2006, p. 1-2)
O debate continuará porque o Estatuto referido ainda não foi votado.
Concordo com os autores citados que o cerne do problema está na má
qualidade da escola pública, onde, em geral, estudam os afrodescendentes, não
por serem negros, pardos ou mulatos, mas porque, em geral, são pobres.
Erradicar a pobreza, ou pelo menos, diminuí-la, seria a principal meta para
qualquer um que se candidatasse – presidente, senador, deputado, vereador.
PARA FINALIZAR
Que diria o Professor Agostinho sobre o Brasil do século XXI? Ele que
fundou o Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO) para que os brasileiros
conhecessem a África. Muitas vezes em conversas informais no apartamento
da rua do Abarracamento de Perriche, n. 7, ouvi a permanente preocupação
com o destino do Brasil, sua segunda pátria; ele que nos deixou e foi para o
futuro no Domingo de Páscoa de 1994.
Para o Professor Agostinho o necessário para viver seriam três S´s – saber,
sustento e saúde, o que foi dito em entrevista na televisão portuguesa e
recuperada no filme Agostinho da Silva: um pensamento vivo, de João Mattos. Com
essas três condições cumpridas, os nossos “jovens bárbaros” talvez suprissem
o fosso que separa o vernáculo familiar do pretendido português culto.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO DA SILVA, George. As aproximações. Lisboa: Guimarães, 1960.
p. 89-94.
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São
Paulo: Parábola, 2003.
BEARZOTTI FILHO, Paulo. Analfabetos funcionais. Discutindo a língua
portuguesa, [S.l.], n. 9, 2006.
CASTRO, Celso. Raça e sociedade. Revista Nossa História, Rio de Janeiro, n, 98,
2006.
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1880. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 [1972].
HOUAISS, Antônio. O português do Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE, 1986.
LEMLE, Miriam. Teses e truques. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2006.
LUCCHESI, Dante. Variação e norma: elementos para uma caracterização
sociolingüística do português do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa,
Pelotas, n, 12, p. 17-28, 1994.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português
brasileiro. São Paulo: Parábola, 2004.
MATTOSO, Kátia Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990
[1979].
PRADO, Antônio Carlos. Qual é a sua cor? Revista Isto é, Rio de Janeiro, n.
1916, 2006.
RIBEIRO, Yvonne Maggie de Leers Costa. Uma nova pedagogia racial? Revista
USP, São Paulo, v. 68, n. 22, p. 112-128, 2006.
NOTA
1 Comunicação apresentada em mesa redonda no Congresso Internacional “Agostinho da Silva: pensador
do mundo a haver”, Lisboa, 17 a 19 novembro.

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