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O tratamento da variação linguística na escola para o combate à discriminação


e ao preconceito

Chapter · January 2023

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1 author:

Raquel Meister Ko. Freitag


Universidade Federal de Sergipe
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NOADIA ÍRIS DA SILVA
RAFAEL DIAS MINUSSI
(organizadores)

LINGUÍSTICA
NA EDUCAÇÃO
BÁSICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

capa e gerência editorial: Vanderlei Rotta Gomide


preparação dos originais: Editora Mercado de Letras
revisão final dos autores
bibliotecária: Aline Graziele Benitez – CRB-1/3129

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:


© MERCADO DE LETRAS®
VR GOMIDE ME
Rua João da Cruz e Souza, 53
Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116
Campinas SP Brasil
www.mercado-de-letras.com.br
livros@mercado-de-letras.com.br

1a edição
2022
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL

Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.


É proibida sua reprodução parcial ou total
sem a autorização prévia do Editor. O infrator
estará sujeito às penalidades previstas na Lei.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Rafael Dias Minussi, Noadia Íris da Silva

APRESENTAÇÃO
Miguel Oliveira, Jr.

SEÇÃO I – ARTIGOS

1. BNCC, PROFESSOR E CURRÍCULO: ENTRE OS EFEITOS


DE EVIDÊNCIA, OS SILENCIAMENTOS E OS
DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS
Aline Maria dos Santos Pereira, Noadia Íris da Silva,
Vilma Cristina Barbosa de Souza Lopes

2. A BNCC E O ENSINO DE LE: O PERIGO DA LÍNGUA ÚNICA


Sávio Siqueira

3. ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO DE ESPANHOL E ENSINO


REMOTO EMERGENCIAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Cleidimar Aparecida Mendonça e Silva

4. A VIVÊNCIA DA LINGUAGEM PELO USO DA GRAMÁTICA: OS


GÊNEROS DISCURSIVOS À LUZ DA BNCC
Jônatas Nascimento de Brito

5. APRENDIZAGEM LINGUÍSTICA ATIVA NA SALA DE AULA DA


EDUCAÇÃO BÁSICA: DA TEORIA À PRÁTICA
Eloisa Pilati, Moacir Natercio Ferreira Junior,
Mircéa Cândida Ferreira
6. A GRAMÁTICA NAS AULAS DE PORTUGUÊS: UMA PROPOSTA DE
TRABALHO COM A COLOCAÇÃO PRONOMINAL NO ENSINO MÉDIO
Mônica Tavares Orsini, Déborah Cristina Pereira de Souza

7. MULTILETRAMENTOS NA ESCOLA: PROPOSTA


PARA ANÁLISE DE RESENHAS
Thalita Cristina Souza-Cruz, Leonor Werneck dos Santos

8. O TRATAMENTO DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA PARA O


COMBATE À DISCRIMINAÇÃO E AO PRECONCEITO
Raquel Meister Ko. Freitag

SEÇÃO II – ENTREVISTAS SOBRE A BASE NACIONAL COMUM


CURRICULAR

“ESTA FORÇA CENTRÍPETA DA BNCC, PARA O BEM OU PARA


O MAL, BUSCA OFERTAR IGUALDADE DE OPORTUNIDADES A
TOD@S OS BRASILEIR@S”
Roxane Rojo

“É PRECISO FAVORECER A APROPRIAÇÃO CRÍTICA DESSE TEXTO


DE MODO QUE SEUS SIMULACROS SEJAM DENUNCIADOS”
Emerson Pietri

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES


8 O TRATAMENTO DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
NA ESCOLA PARA O COMBATE À DISCRIMINAÇÃO
E AO PRECONCEITO

Raquel Meister Ko. Freitag

Introdução

A temática da variação linguística está presente


explicitamente nos documentos norteadores da educação
básica, desde os Parâmetros Curriculares Nacionais, e
intensificada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), assim
como o tratamento da variação está presente nas diretrizes de
avaliação de coleções do Programa Nacional do Livro Didático
e em itens das avaliações oficiais em larga escala, como Prova
Brasil e Enem. Apesar disso, na prática, o tratamento dado
à variação linguística é modular, com uma unidade didática
destinada ao tema, como se a variação fosse um objeto à parte
da língua, e circunscritas a aspectos lexicais ou relacionados à
percepção de sotaques.
Neste capítulo, são apresentadas implicações na
sociedade decorrentes deste tratamento limitado de variação
linguística na sala de aula, com destaque para a saliência dos

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 209


fenômenos variáveis, especialmente nos níveis gramaticais
mais altos, e como o tratamento consciente destes fenômenos
pode propiciar a integração da variação linguística à análise
linguística e semiótica preconizada pela BNCC. Como ponto de
partida, discutimos por que intuitivamente é tão difícil perceber
que existe variação além da fonologia, evidenciando que, existe
muito mais variação na gramática do que podemos nos dar conta,
em função de diferentes níveis de saliência e de avaliação social
das formas. Podemos identificar quatro tipos de fenômenos
variáveis no nível da gramática: i) fenômenos variáveis a que
as pessoas não reagem; ii) fenômenos variáveis dialetalmente
salientes; iii) fenômenos variáveis socialmente salientes; e iv)
fenômenos variáveis salientes por força do prescritivismo. O
reconhecimento de fenômenos nestes níveis é essencial para os
programas de ensino de língua materna.
Com esta abordagem, esperamos contribuir para ampliar
a compreensão da variação linguística na sociedade, mitigando
ações de discriminação e preconceito.

Consciência sociolinguística

Vivemos tempos de intolerância. Ações extremistas,


discriminação, discursos de ódio, cultura do cancelamento são
efeitos de superfície da falta de empatia com a diversidade. A
formação cidadã preconizada pela Lei de Diretrizes e Bases
da Educação (Brasil 1996) tem sua implementação na área
de linguagem por meio de direitos de aprendizagem na Base
Nacional Curricular Comum (Brasil 2018) voltados para a
sensibilidade à diversidade linguística.
Assim, introduzir a temática da diversidade por meio
da variação linguística é um bom ponto de partida para refletir
sobre as intolerâncias dos dias atuais.
O problema é que a variação linguística, quando entra
no currículo da escola, muitas vezes é resumida ao português,

210 EDITORA MERCADO DE LETRAS


ignorando que no Brasil se falam outras línguas que não o
português, o que reforça a ideologia do monolinguismo, e
restrita ao nível lexical, apresentada como uma curiosidade,
tal como aipim, mandioca e macaxeira. Eventualmente, a
variação linguística é introduzida nos termos do que se entende
na sociedade como sotaque, a percepção das diferenças da
língua no nível fonológico ou suprassegmental, e associada a
características de um grupo. Para contextualizar a variação
linguística, tirinhas ou quadrinhos apresentam as informações
extralinguísticas que caractertizam o grupo, tal como ocorre
com Chico Bento (Coan e Freitag 2010).
Perceber a variação no nível fonológico é mais fácil do
que perceber nos níveis gramaticais mais altos (Freitag 2009),
e isso não é apenas uma limitação para a prática pedagógica, e
sim para a educação linguística de toda a sociedade.
Por isso, precisamos superar as limitações na
abordagem pedagógica da variação linguística, primeiramente,
reconhecendo que existe variação além da fonologia, que existe
variação na gramática, e que está, inclusive, na gramática
normativa. E possibilitar a reflexão sobre a variação e para
estimular a sensibilidade aos contextos e aos registros é papel
da aula de língua portuguesa.
Para isso, é preciso introduzir o conceito de consciência
sociolinguística. Todos os falantes de uma língua desenvolvem
uma consciência de língua, um conjunto de conhecimentos
específicos sobre a língua, tanto no nível da estrutura e gramática,
como também em relação aos aspectos sociais de uma língua,
incluindo variação linguística, o que envolve a sintonia e o ajuste
entre falante e audiência e a manipulação de recursos linguísticos
para obter sentidos. Isso significa que as pessoas comuns, não
linguistas, constroem conhecimento e ideologias sobre a língua.
Esta é uma força cognitiva implícita. Por outro lado, uma força
cognitiva explícita também regula nosso comportamento
linguístico, o prescritivismo: conjunto de práticas metalinguísticas
normativas, com foco no valor de correção, no uso “correto”, de
acordo a norma codificada na gramática.

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 211


Variação nos níveis mais altos da gramática

Por que intuitivamente é tão difícil perceber que existe


variação além da fonologia? A resposta a esta pergunta perpassa
pela noção de saliência (Freitag 2018) e o quanto prestamos
atenção no processamento da língua enquanto estamos em
situação de interação. Em função de diferentes níveis de
saliência e de avaliação social das formas, podemos identificar
quatro tipos de fenômenos variáveis no nível da gramática:

• fenômenos variáveis a que as pessoas não reagem


• fenômenos variáveis dialetalmente salientes
• fenômenos variáveis socialmente salientes
• fenômenos variáveis salientes por força do
prescritivismo

POR EXEmplo, nas frases no quadro 1, retiradas do estudo


de Mendonça e Nascimento (2015), você consegue identificar
que domínio variável está presente?

Quadro 1 – Fenômenos variáveis no nível gramatical

R Espero que você entenda nosso ponto de vista, esperamos


muito que possamos curtir essa viagem juntos.
R Por isso eu estou pedindo que realize o nosso sonho.
R Em breve você saberá quem é a pessoa.
R Observe o preenchimento do sujeito pronominal:
R ( ) Espero que você entenda nosso ponto de vista,
( ) esperamos muito que
( ) possamos curtir essa viagem juntos.
R Por isso eu estou pedindo que ( ) realize o nosso sonho.
R Em breve você saberá quem é a pessoa.
Fonte: Mendonça e Nascimento 2015, pp. 208-211.

Observando atentamente, há situações em que a posição


de sujeito está preenchida, e outras situações em que a posição

212 EDITORA MERCADO DE LETRAS


não está preenchida, e não temos explicitamente uma regra
para isso. O preenchimento do sujeito é variável, essa variação
vem acontecendo há muito tempo (Duarte 2003) e este é um
fenômeno variável a que as pessoas não reagem. Havia um
tempo que as desinências número-pessoais do português eram
suficientes para uma indicação unívoca do sujeito gramatical.
Mas com a entrada de novos pronomes, como a gente e você,
a relação unívoca é desfeita e não mais basta observar a
desinência para saber quem é o sujeito gramatical (o famoso,
mas falho, “pergunte ao verbo”). Quando eu digo canta, o falante
precisa de mais informações para saber se o sujeito é ele, você,
tu, a gente, nós, vocês ou eles, porque ainda temos outra variação
encaixada, a expressão das marcas de concordância. Para
desfazer a ambiguidade, só preenchendo o sujeito gramatical.
É possível saber origem social ou dialetal do falante por
causa do preenchimento ou não do sujeito pronominal? Pouco
provável. Este é um caso de variação, mas que não é socialmente
ou dialetalmente indexada. Pode ter relação com registro (fala ou
escrita), como mostram alguns estudos, com especial destaque
ao conjunto de trabalhos de Eugenia Duarte, que descreve essa
mudança, em especial, “A evolução na representação do sujeito
pronominal em dois tempos” (Duarte 2003), uma leitura muito
esclarecedora da questão.
Traços linguísticos no nível gramatical também evocam
imediatamente uma presunção de origem, como é o caso da
variação na expressão da segunda pessoa do singular. Em certas
regiões, se usa tu, em outras você, algumas mais tu do que você,
outras mais você do que tu. Marta Scherre tem organizado
quadros comparativos da distribuição dessa variação no
português brasileiro, como o apresentado no livro Mapeamento
sociolinguístico do português brasileiro (Abraçado e Martins
2015). Este é um exemplo de fenômeno variável dialetalmente
saliente. Apesar disso, os materiais didáticos para o ensino de
língua portuguesa não contemplam essa variação, continuam
apresentando um quadro pronominal em que tu é a única
forma de referência à segunda pessoa, ainda que existam
sistematizações aplicadas ao ensino (Lopes 2011).

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 213


Nas regiões onde as duas formas coexistem, existem
valores de formalidade, contexto e de geração/faixa etária
associados, que determinam a escolha de um ou de outro
pronome, configurando um fenômeno variável socialmente
saliente. Levar para a sala de aula a reflexão sobre os valores
sociais das escolhas pronominais é possível, como mostra
a proposta de Paes (2019), que desenvolveu um produto
pedagógico, a balança das relações sociais, para estimular
essa reflexão, já que o livro didático adotado na escola onde
ela atuava – e certamente nas demais escolas brasileiras – não
contemplava essa abordagem da variação.
E há também os fenômenos linguísticos que eu chamo
de “pelo em ovo”. Tem pelo em ovo? Aparentemente não. Mas
quem procura, acaba achando… É o caso do exemplo na frase
“quando o professor pede para mim explicar algo no quadro”.
O que tem de errado? Tem variação? Automaticamente,
alguém pode dizer que “para mim” é errado. Será que é? Será
que você nunca falou “para mim” mais um verbo? Mesmo? Este
é um pelo em ovo: as pessoas só percebem esta variação existe
porque são apresentadas a ela por prescrições, é um fenômeno
variável saliente por força do prescritivismo. E, por se amparar
nas prescrições, as pessoas se sentem no direito de corrigir os
outros, embora sequer percebam na sua fala ou na sua escrita.
Aqui é importante destacar que tipo de prescrições
são essas. Não são as prescrições encontradas em bons
instrumentos normativos, como gramáticas. Ao contrário,
são os representantes do que Faraco (2008) chama de norma
curta: prescritivismos, comandos paragramaticais, com foco
totalmente no erro e na correção, e regras deste tipo fazem com
que as pessoas saiam à caça de erros.
A variação para mim ~ para eu tem funcionamento
regular e estável no português brasileiro, e pode ser explicado
por diferentes abordagens, como a marcação excepcional de
caso (Mioto, Figueiredo e Lopes 2005), o contexto de dativo
com infinitivo (Torrent 2008) e em estudos de abordagem
sociolinguística (Gomes 2019).

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Apesar da ampla descrição e explicação linguística, as
pessoas não só se sentem no direito de corrigir, elas usam essa
correção como mecanismo de discriminação e de preconceito,
como “Feliz dia do índio pra você que fala pra mim fazer!”.
“Mim índio” só existe em tradução de desenhos do
Pica-Pau. Nenhuma evidência de língua indígena brasileira – e
temos 274, conforme o Censo de 2010 – dá suporte a esse tipo
de afirmação. Mas, apesar disso, este tipo de prescritivismo
foi inclusive utilizado em propaganda de McDonalds nos anos
1990, protagonizada por um gramático... Fazer piada pode ser
engraçado, mas é o primeiro passo na escala de preconceito e
discriminação (Allport 1979). Gordon Allport queria saber por
que as atrocidades dos campos de concentração aconteceram na
segunda guerra, com o extermínio de pessoas, seres humanos,
por outros seres humanos! Isso não aconteceu do dia para a
noite, foi como sapo no caldeirão fervente. As pessoas vão se
acostumando aos poucos, primeiro com a antilocução, com
piadas e construção de estereótipos negativos a partir de traços
de um grupo, depois com as estratégias de esquiva, em seguida
com a discriminação, que passa aos ataques físicos, até chegar
ao nível do extermínio. Por isso, uma ação de discriminação
linguística não pode ser menosprezada, pois o que começa
como uma antilocução, como a piada do mim fazer, pode
alcançar níveis mais extremos. A importância do tratamento da
variação linguística nas aulas de língua portuguesa se acentua
em tempos tão sensíveis.
O que é intrigante é que essa patrulha gramatiqueira
não se sustenta no uso, como mostram os resultados de Gomes
(2019), com o corpus do Iboruna, uma amostra representativa
da fala do interior de São Paulo:

Uma primeira observação a ser feita em relação aos dados


gerais é o grande desequilíbrio que se nota entre o total
de ocorrências das três formas pronominais em análise: a
forma zero, mais frequente entre todas elas, totaliza 308
ocorrências e é seguida do pronome mim, que aparece em

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 215


82 ocorrências. Com um total bem mais reduzido aparece
o pronome eu, que ocorre em apenas 28 dados ao longo de
todo o corpus investigado. (Gomes 2019, p. 73)

FIGURA 1 – Distribuição das ocorrências da variação


pronominal em orações infinitivas iniciadas por para

Fonte: Elaboração própria a partir de Gomes (2019).

Mas, apesar de, no uso, a realização “pra mim” prevalecer


sobre a realização “pra eu”, o prescritivismo tem efeito
consciente, como mostram os comentários metalinguísticos
induzidos pelo método de coleta do Atlas Linguístico do Brasil
(ALIB) apresentados nos estudos de Santos e Paim (2019)
e Philippsen (2019). A metodologia do ALIB é baseada em
questionários; uma das perguntas é “Alguém pede para você
fazer uma tarefa. Mas outra pessoa acha que a tarefa era para
ela. Então, você diz: Essa tarefa, na verdade, é para quem fazer?”
(Santos e Paim 2018, p. 143). Como respostas, as pesquisadoras
reportam que identificaram 32 ocorrências na amostra de
capitais brasileiras do sudeste, com predomínio da realização
mim (17 das 32 ocorrências): “mim… Isso é pra eu fazê”. Há
situações de automonitoramento e reparo, evidenciando o nível
de consciência adquirido por força do prescritivismo: “Mim va…
Pra eu varrê.” E também podemos identificar o “efeito-índio”
nas respostas, como ilustrado no quadro 2.

216 EDITORA MERCADO DE LETRAS


QUADRO 2 – Resposta à pergunta sobre variação
em orações infinitivas iniciadas por para

R (179/06) – (São Paulo – SP)/ Inf.: mulher, faixa etária 1, ensino


universitário.
R INQ. – Quando alguém quer pedir alguma coisa ou distribuir
uma tarefa... Tem três pessoas, tá? Essa é pra você fazer, essa é
pra você e essa é pra...?
R INF. – Pra mim.
R INQ. – Pra mim? Então, essa é para você fazer, essa é para
você fazer e essa é pra... fazer.
R INF. – Pra eu fazê.
R INQ. – Ou pra mim fazer?
R INF. – Pra eu.
R INQ. – Qual dos dois você fala?
R INF. – Pra mim (risos)
R INQ. – Então, pra mim fazer.
R INF.– Mas tá errado.
R INQ. – Não tá não. Pode parar com essa história de “tá errado”.
R INF. – Para mim... Eu não sou índio (risos).
Fonte: Santos e Paim 2019, p. 143.

Note-se que é uma pessoa com maior escolarização que


reverbera uma visão preconceituosa e antilocutória, associando
o uso de mim neste contexto a ser índio e amparando-se em
uma cultura de certo e errado do prescritivismo.
A força do prescritivismo pode nos sugerir que a fonte
do preconceito é a gramática normativa. Será mesmo? Qual
gramática? Sim, a gramática de Evanildo Bechara, prescreve
uma forma (mas não condena a outra). Mas a gramática Houaiss
(Azeredo 2008) reconhece ambas as construções. E seja qual
for a gramática – entendida aqui como um bom instrumento
normativo, e não um comando paragramatical ou difusora de
“norma curta”, nos termos de Faraco (2008) – nenhuma julga
ou condena a realização como errada ou que é “coisa de índio”.
Há ainda uma outra situação: nem sempre as pessoas
falam aquilo que dizem que falam. Outros fenômenos também

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 217


passam por este processo de dissonância. É o caso do uso do
a gente na variação na expressão da primeira pessoa do plural
(Freitag 2016). Quando observamos os dados do uso da forma
de expressão da primeira pessoa, constatamos que entre
estudantes do ensino médio da capital sergipana, o uso de a
gente é quase categórico. Mas, quando perguntamos para estes
mesmos falantes qual a forma de referência à primeira pessoa
do plural que eles usam, a resposta muda. Um estudante de
ensino médio, com 100% de uso de a gente durante a entrevista,
quando perguntado se usa mais uma forma ou outra, não tem
dúvidas em dizer que é a forma nós, e ainda justifica que a gente
é muito estranho. Esta é uma característica de um fenômeno
variável saliente por força do prescritivismo: as pessoas não têm
ideia do seu uso efetivo, não percebem a variação na sua fala,
mas replicam o que ouvem de prescrições.
Então, quando falamos de variação linguística,
precisamos considerar o papel da consciência e da sensibilidade
à variação. Nem todos os fenômenos variáveis são salientes e
socialmente avaliados; muita variação linguística está presente
inclusive em instrumentos linguísticos que conservam a norma,
como as gramáticas. A escola explora a consciência linguística
de modo particular no aprendizado inicial da leitura, com a
consciência fonológica e morfossintática, que contribuem para
a automaticidade na decodificação e compreensão leitora.
A consciência sociolinguística, no entanto, é ainda pouco
explorada, mesmo nos estudos sociolinguísticos (Freitag 2021).

Tratamento da variação para o enfrentamento dos preconceitos

Apesar de toda uma linha de trabalho da sociolinguística


educacional (Bortoni-Ricardo 2004; Freitag e Cyranka 2014)
e a transladação didática de atividades para levar à prática
pedagógica o tratamento da variação linguística (Görski e
Freitag 2013), ainda observamos os efeitos prescritivistas,

218 EDITORA MERCADO DE LETRAS


especialmente da “norma curta”, dinamizados por formadores
de opinião sem necessariamente ter formação científica ou
preparação para a divulgação científica, que impulsionam
ações extremistas que se valem de traços do sistema linguístico
como base para a discriminação, para a intolerância e para o
preconceito. Podemos contribuir para desfazer essa realidade
oferecendo uma formação sólida:

• não compartilhar, nem estimular, nem incentivar as


práticas de “norma curta”
• trabalhar com a observação e análise dos usos
linguísticos ter acesso e conhecimento de bons
instrumentos normativos (gramáticas, no plural)
• saber mobilizar o conhecimento científico produzido
para explicar os usos
• considerar dados empíricos, diversificados e sensíveis
à realidade sociocultural, com diversidade de gêneros,
registros, grupos, e ao mesmo tempo contribuindo
para a constituição de acervos da realidade linguística
em que as práticas emergem

Com essas ações, podemos desconstruir e desnaturalizar


o uso da língua para a discriminação (Freitag et al. 2020) e
barrar a alçada à escala do preconceito, cada vez mais crescente
e estimulado. Por fim, não podemos deixar o discurso de ódio,
preconceito, discriminação, cancelamento e outras agressões
começar na aula de língua portuguesa. A Sociolinguística pode
ajudar!

Referências

ABRAÇADO, Jussara e MARTINS, Marco Antonio (2015).


Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. São
Paulo: Contexto.

LINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 219


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educacional: tendências metodológicas”, in: GONÇALVES,
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FREITAG, Raquel Meister Ko. (2009). “Problemas teórico-
metodológicos para o estudo da variação linguística
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Profissional em Letras. São Cristóvão: Universidade
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na região Norte de Mato Grosso/Brasil: usos de eu e
mim.” MOARA – Revista Eletrônica do Programa de Pós-
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da Região Sudeste do Brasil a partir dos dados do Projeto
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com infinitivo: uma abordagem sociocognitivista e
diacrônica.” Veredas – Revista de Estudos Linguísticos, vol.
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