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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

W644f Wiedemer, Marcos Luiz; Oliveira, Mariangela Rios de (org.).


Fundamentos Teórico-Metodológicos para o ensino de Português na Educação Básica /
Organizadores: Marcos Luiz Wiedemer e Mariangela Rios de Oliveira; Prefácio de Nadja
Pattresi de Souza e Silva. – 1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.
¿JVTXDGURV

,QFOXLELEOLRJUD¿D
ISBN: 978-65-5637-437-6.

1. Educação. 2. Língua Portuguesa. 3. Prática Pedagógica.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação. 370
2. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
3. Língua Portuguesa. 469
FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS PARA A


INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS NO ENSINO BÁSICO

Beatriz dos Santos Feres


Universidade Federal Fluminense

Nossa forma de resistência

Infelizmente, mais uma vez, o Brasil amarga o baixo resultado quan-


to ao desempenho dos alunos do Ensino Básico no Programa Internacional
de Avaliação de Estudantes (PISA – 2018)1. Em relação à proficiência
em leitura, desde 2009, o rendimento desses estudantes está estagnado
em 50% do esperado em relação ao nível de escolarização: eles estão
dois anos e meio abaixo dos países que compõem a OCDE (Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O exame proposto
pelo PISA avalia habilidades que incluem encontrar, selecionar, inter-
pretar e avaliar informações a partir de textos variados. Ainda segundo
o PISA, as escolas particulares e federais estão acima da média mundial,
mas as estaduais e municipais, bem abaixo até da média nacional. É um
diagnóstico preocupante, sobretudo, porque a maior parte das escolas do
Ensino Básico no Brasil é municipal ou estadual.
Considerando-se que a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN, BRASIL, 1998), nos idos de 1998, apresentou uma
mudança metodológica importante e consistente no que tange ao trabalho
1 Fonte: Relatório Brasil no PISA 2018. Disponível em http://download.inep.gov.br/acoes_in-
ternacionais/pisa/documentos/2019/relatorio_PISA_2018_preliminar.pdf. p. 41. Acesso em:
03 mar 2020.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

com a língua portuguesa em sala de aula, seria esperado que, vinte anos
depois, ocorresse uma melhora considerável na proficiência leitora ao
final do ciclo básico. Na esteira dos Parâmetros, diz a atual Base Nacional
Comum Curricular (BNCC)2, de 2018 (p. 41):

Ao mesmo tempo que se fundamenta em concepções e


conceitos já disseminados em outros documentos e orien-
tações curriculares e em contextos variados de formação
de professores, já relativamente conhecidos no ambiente
escolar – tais como práticas de linguagem, discurso e
gêneros discursivos/gêneros textuais, esferas/campos
de circulação dos discursos –, considera as práticas
contemporâneas de linguagem, sem o que a participação
nas esferas da vida pública, do trabalho e pessoal pode
se dar de forma desigual. Na esteira do que foi proposto
nos Parâmetros Curriculares Nacionais, o texto ganha
centralidade na definição dos conteúdos, habilidades e
objetivos, considerado a partir de seu pertencimento a
um gênero discursivo que circula em diferentes esferas/
campos sociais de atividade/comunicação/uso da lin-
guagem. Os conhecimentos sobre os gêneros, sobre os
textos, sobre a língua, sobre a norma-padrão, sobre as
diferentes linguagens (semioses) devem ser mobilizados
em favor do desenvolvimento das capacidades de leitura,
produção e tratamento das linguagens, que, por sua vez,
devem estar a serviço da ampliação das possibilidades de
participação em práticas de diferentes esferas/ campos de
atividades humanas.
Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, propor-
cionar aos estudantes experiências que contribuam para
a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a
participação significativa e crítica nas diversas práticas
sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita
e por outras linguagens.

2 Fonte: Base Comum Nacional Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.


br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf Acesso em: 06 mar 2020.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Nesses vinte anos, houve avanços, isso é inegável, e foram sen-


do aprimoradas as diretrizes de ensino, mas o alcance das mudanças
expressas nos documentos ainda não surte o efeito desejado nem em
relação ao resultado geral dos alunos ao final do ciclo básico, nem em
relação à atuação do professor, cada vez mais impactado com imen-
sas dificuldades na realização de suas tarefas pedagógicas, seja pela
falta de condições de trabalho e de valorização profissional, seja pela
violência sempre crescente, principalmente, nas escolas de periferia,
justamente as municipais e estaduais, em sua maioria, mais afetadas
pela falta de oportunidade para o crescimento social e profissional.
Mesmo assim, com a certeza de que a Educação é o único meio de
vivermos todos melhor, continuamos insistindo no refinamento de
práticas pedagógicas bem fundamentadas e críticas e na ampliação
dos meios para sua divulgação.
Por isso, cursos de extensão universitária, assim como publicações
temáticas acessíveis aos professores e licenciandos, apresentam-se como
meios de resistência a esse estado de coisas, fomentando a propagação
de novas teorias e o incentivo à inovação metodológica por parte do
professor que atua nos níveis fundamental e médio. Assim, este capí-
tulo, baseado em uma das aulas do Curso de Extensão “Fundamentos
teórico-metodológicos para o ensino de português na Educação Básica”,
realizado pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tem como objetivo refletir acerca do
trabalho com a leitura na sala de aula e apresentar estratégias linguístico-
discursivas voltadas para o trabalho com o texto no Ensino Básico, mais
especificamente, no âmbito da interpretação e, consequentemente, da
compreensão de textos.
O capítulo será organizado em três seções: a primeira apresentará
uma síntese das principais fragilidades no trabalho com a leitura em sala
de aula, perpetuadas pela repetição e pouca reflexão acerca das concep-
ções de língua, leitura e ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa
(doravante, LP); a segunda definirá uma “pedagogia da leitura” para a
mediação feita pelo professor, abordando alguns conceitos e estratégias
de interpretação de texto específicas para alcançarmos essa mudança e,

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

por fim, a terceira demonstrará como aplicar essas estratégias em um


exercício de leitura, interpretação e compreensão.

Lição nº1: texto não é pretexto

No início da implantação dos PCN, era comum encontrarmos exer-


cícios como este3 em livros didáticos. As questões são sobre um texto de
Drummond, bastante propício para se abordarem aspectos sobre variação
linguística, constituição do léxico da língua, ou ainda a narração e a
descrição de fatos, dentre outras possibilidades:

Modos de xingar
Carlos Drummond de Andrade4

— Biltre!
— O quê?
— Biltre! Sacripanta!
— Traduz isso para português.
— Traduzo coisa nenhuma. Além do mais, charro! Onagro!
Parei para escutar. As palavras estranhas jorravam de um Ford de bi-
gode. Quem as proferia era um senhor idoso, terno escuro, fisionomia
respeitável, alterada pela indignação. Quem as recebia era um garotão
de camisa esporte, dentes clarinhos emergindo da floresta capilar, no
interior de um fusca. Desses casos de toda hora: o fusca bateu no Ford.
Discussão. Bate-boca. O velho usava o repertório de xingamentos de
seu tempo e de sua condição: professor, quem sabe? leitor de Camilo
Castelo Branco.
Os velhos xingamentos.

3 É possível encontrar outro exercício sobre esse texto disponível em https://armazemdetexto.


blogspot.com/2019/09/cronica-modos-de-xingar-carlos-drummond.html (acesso em 11 mar
2020), em que a questão sobre vocabulário se repete, embora apresente alguns avanços no que
diz respeito à vinculação entre língua e uso. A diferença maior entre os exercícios, entretanto,
é que as questões aqui mencionadas se destinavam ao 6º ou 7º ano do ensino Fundamental, já
as apresentadas no blogue acima se destinam ao Ensino Médio.
4 ANDRADE, Carlos Drummond de. Modos de xingar. In: Poesia e prosa. 5. ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguiar, 1979.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
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Faça a correspondência entre os significados e as palavras.

a Biltre ( ) personagem violento e de mau caráter


b Sacripanta ( ) espécie de burro selvagem da África e da Ásia
c Charro ( ) homem vil, objeto infame
d Onagro ( ) rústico, grosseiro

Retire do texto o que se pede:


duas frases nominais
duas frases verbais (sublinhe os verbos)
dois períodos simples (sublinhe os verbos)
dois períodos compostos (sublinhe os verbos)

É um modo antigo – e equivocado – de conceber um exercício sobre


texto, ou sobre a língua enunciada. “Modos de xingar”, de Drummond,
apresenta temática de potencial interesse dos pré-adolescentes que estão
no Fundamental II, construção narrativa compacta e original, que se vale
de recursos linguísticos cativantes, como períodos curtos, pontuação
expressiva, além de metáforas (“as palavras estranhas jorravam de um
Ford de bigode”, “dentes clarinhos emergindo da floresta capilar”).
Em exercícios como esse, é comum (e necessário) explorar o signi-
ficado das palavras, porém, muitas vezes isso ocorre sem se considerar
o contexto. Por exemplo, “onagro” aparece, nesse exercício, explicado
como “espécie de burro selvagem”, isto é, em seu sentido denotativo,
enquanto, no texto, ganha expressão conotativa. O sentido da palavra, no
texto, é indireto, passa pela denotação, mas para alcançar outra ideia, a de
qualificar o outro como alguém sem inteligência, um ignorante teimoso.
Em geral, como se atesta no exercício, é a metalinguagem relacionada
ao conteúdo programático que ganha destaque – no caso, tópicos sobre frase
e período –, em uma abordagem que em nada colabora para a compreensão
textual, ou para a reflexão sobre o uso da língua. O objetivo do exercício se
destina prioritariamente à aplicação e fixação de classificação gramatical
desvinculada do emprego das unidades linguísticas trabalhadas. A esse tipo
de exploração didática chamamos “texto como pretexto”.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
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A opção pedagógica em que subjazem exercícios como esse revela


concepções ligadas a uma prática pedagógica irrefletida. Concebe-se a
língua como constructo abstrato, apartado da realidade linguística dos
falantes. A concepção de texto não o toma como uma unidade linguística
maior, coesa e coerente, inserida em um contexto, mas como a “soma” de
palavras e frases. Além disso, a aula de LP apresenta caráter conteudista,
sem apelo à análise e à reflexão linguística, adepta a uma concepção –
conservadora – que não só fragmenta as aulas em momentos isolados de
gramática, redação e leitura, quase sempre preocupados com a prescrição
da norma de prestígio como a única abonada socialmente, mas também
não compreende a língua como expressão social, como dado da cultura,
como instrumento de interação (e, muitas vezes, de dominação).
Os PCN (1998) e a BNCC (2018), entretanto, sustentam-se em outras
ideias. A concepção de texto como unidade comunicativa que pertence
a um gênero discursivo circulante em uma esfera social torna-se central
na definição dos conteúdos, habilidades e objetivos das aulas de LP. Isso
obriga(ria) a Escola a trabalhar a análise textual e linguística vinculada
aos usos partilhados pelos falantes. Mesmo a classificação gramatical,
ou a estruturação textual, por exemplo, ainda que se mantenham como
tópicos escolarizados, devem ser observadas na situação de comunicação
nas quais se apresentam. Para isso, é preciso considerar as identidades
dos parceiros das trocas, a historicidade da inserção social do texto que
se analisa, as diferentes normas linguísticas de que se vale o falante, os
gêneros discursivos, dentre outros aspectos.
Vejamos outro exemplo bem recente, extraído de prova5 de uma
escola particular de Niterói, em 2019:
5 Autor e escola não serão identificados por razões éticas. O exemplo faz parte do corpus de uma
pesquisa atualmente em curso no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da
UFF. Há outros exercícios de compreensão textual sobre essa crônica, disponíveis, por exemplo,
em https://armazemdetexto.blogspot.com/2019/08/cronica-de-quem-sao-os-meninos-de-rua.
html e em http://eliterfagia.blogspot.com/2015/08/leia-o-texto-abaixo-texto-01-de-quem.
html (ambos com acesso em 11 mar 2020). No primeiro exercício mencionado, observa-se
um elenco de comandos voltados para a compreensão, assim como a inclusão da análise de
elementos linguísticos com finalidade interpretativa. No segundo, porém, a prática “tradicional”
se mostra com toda a força em questões de múltipla escolha, cujos comandos tratam pura e
simplesmente da identificação do gênero textual, da pessoa do discurso com a qual se narra e
dos valores dos conectivos interfrásicos.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
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De quem são os meninos de rua?


Marina Colasanti6

Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer
coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele
estava pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.
Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Me-
nino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele
bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e
a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino
De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com
força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.(...)
Na verdade, não existem meninos De rua. Existem meninos Na rua.
E toda vez que um menino está Na rua é porque alguém o botou lá.
Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no
mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam.
Resta ver quem os põe na rua. E por quê.(...)

Una as frases num só período, usando um pronome relativo.


No Brasil, há um grande número de crianças.
As crianças são carentes.

Complete com o pronome relativo adequado, precedido ou não de


preposição.
As crianças ___________ nos referimos são abandonadas pelos pais.
As crianças ___________ pais não encontram trabalho, acabam por
ser abandonadas.
Na época ___________ não havia tanto desemprego, o abandono de
crianças era maior.
Esta é a região ___________ o número de crianças abandonadas é maior.

Se aquele exemplo anterior com o texto de Drummond ainda guarda


as escusas de sua antiguidade, este, de 2019, não deveria mais existir.
O que se constata é que, mesmo tanto tempo depois dos PCN, ainda
6 In: COLASANTI, Marina. A casa das palavras. São Paulo: Ática, 2002.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
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são utilizados textos de ótima qualidade apenas para a averiguação de


conteúdos padronizados, sem reflexão alguma relacionada à construção
textual, ou ao uso da língua. Nesse caso, um trecho de narrativa de Ma-
rina Colasanti sobre um tema igualmente interessante para a faixa etária
a que se destina, isto é, alunos do Fundamental II – tanto aqueles que
vivem mais próximos da realidade dos Meninos de Rua, quanto aqueles
que se identificam com os Meninos De Família –, é tomado somente
para a cobrança acerca do uso dos pronomes relativos na norma padrão.
É claro que a Escola tem o dever de apresentar aos alunos as várias
normas linguísticas que circulam na sociedade e, sobretudo, dar condi-
ções de acesso social àqueles que não dominam a norma de prestígio,
tratando, sim, de temas como emprego de pronomes relativos. Isso se
aprende mesmo na escola. O problema, aqui, não é explorar os pronomes
relativos, mas não explorar os recursos linguísticos presentes no texto
vinculados à construção de sentidos, ou mesmo de efeitos de sentidos.
Por exemplo, o uso das maiúsculas em “Menino De Rua” e “Menino De
Família” alça as expressões à singularidade de categorias específicas – e
categorias altamente estereotipadas socialmente. O primeiro parágrafo,
também construído com frases curtas e discurso indireto, expressa a
rapidez do encontro – e do susto – relatado.
Além disso, substituir “Meninos De Rua” por “Meninos Na Rua”,
como propõe a narradora, mostra uma mudança de postura – e uma quebra
de preconceito – perante os meninos, marcada no emprego de preposições
e em seus valores semânticos: “de rua” (locução adjetiva) qualifica e
estigmatiza o grupo de meninos em situação de rua; os meninos são qua-
lificados como “pertencentes à rua”; “na rua” (locução adverbial) mostra
uma situação dada como momentânea, não revela uma marca social; os
meninos estão “na rua”, mas não “pertencem” a ela. É um caso de refle-
xão gramatical bastante rico. A observação sobre o modo de narrar/de
descrever deve se concentrar tanto em recursos oferecidos pela língua,
quanto na memória que o falante guarda dos discursos anteriores e que
o faz reconhecer atitudes, valores, rotinas sociais. É a língua inserida na
partilha social, refletindo um modo de pensar e de agir.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

No livro Análise e produção de textos, de Leonor Werneck, Rosa


Cuba Riche e Cláudia Teixeira (2012), há um capítulo sobre “prática
de análise linguística” que, obediente aos documentos oficiais para
o ensino/aprendizagem de LP, demonstra como levar os alunos do
ciclo básico a construir “um conjunto de conhecimentos sobre o sis-
tema linguístico relevantes para as práticas de escuta, de leitura e de
produção de textos”, além de se apropriar “de instrumentos procedi-
mentais e conceituais necessários para análise/reflexão linguística” e
reconhecer “as especificidades das variedades do português” (p. 75).
Em outras palavras, em um livro que trata da leitura e da produção
de textos, as autoras deram destaque, em um capítulo inteiro, para a
importância da vinculação entre gramática, leitura e produção – ainda
que a compreensão textual careça de outros tipos de conhecimento,
como o enciclopédico, o praxeológico e o axiológico, como veremos
mais adiante. Mostraram, sobretudo, como a análise e o conhecimento
linguístico (não a simples metalinguagem decorada) é fundamental
para a reflexão sobre a língua e seus usos – em textos. Nesse capítulo
do livro, no exercício proposto como exemplo, são exploradas ques-
tões sobre tipologia e gênero ligadas ao gênero discursivo conto, com
análise das formas linguísticas próprias; sobre a intenção do emprego
do imperativo no discurso direto; sobre os tempos verbais da narração
e sobre a variedade europeia do português.
Em síntese, nessa primeira seção, procuramos mostrar como a
prática pedagógica nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Básico
deve buscar a vinculação entre gramática, leitura e produção por meio
do trabalho de análise linguística e textual, que permite refletir sobre os
usos da língua em efetiva realização, além de promover a conscientização
das várias normas linguísticas circulantes. Na próxima seção, trataremos
especificamente da leitura como construção interativa do sentido textual,
com destaque para algumas estratégias interpretativas que conduzem à
compreensão global do texto.

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Lição nº 2: por uma pedagogia da leitura

Sírio Possenti, no livro Questões para analistas do discurso (2009,


p. 104) defende que:

Quando se fala de leitura, especialmente na escola – os


testes de avaliação o comprovam –, enfoca-se basicamente
o quê do texto, seu conteúdo, sua suposta mensagem (...)
Ora, ler deveria ser, antes de mais nada, desmontar um
texto para ver como ele se constrói, até para que se possa
dizer qual a relação entre seu modo de ser construído e
os efeitos de sentido que produz (...).

Assim, o que se propõe aqui é selecionar estratégias básicas de lei-


tura que levem o leitor a perceber como o texto se constrói, como quer
Possenti, a fim de entender a relação “entre seu modo de ser construído e
os efeitos de sentido que produz”. O intuito é promover uma metodologia
mínima de leitura que traga à consciência do leitor como o texto significa
e produz efeitos de sentido.
Para falarmos sobre as estratégias linguístico-discursivas utilizadas
na interpretação de textos, tema deste capítulo, precisamos entender o
que é “compreensão”, processo no qual essas estratégias serão utilizadas.
Há muitos pesquisadores e obras que tratam desse conceito, nem sempre
concordando a respeito da diferença entre compreender e interpretar.
Podemos adiantar que adotaremos a perspectiva dada pela Teoria Semio-
linguística de Análise do Discurso em um recente texto publicado pelo
linguista Patrick Charaudeau: “Compreensão e interpretação: interroga-
ções em torno de dois modos de apreensão do sentido nas ciências da
linguagem” (CHARAUDEAU, 2018). Antes disso, porém, precisamos
ressaltar como a atividade de leitura deve ser ambientada na escola e
desenvolvida de acordo com o pressuposto da interação e, depois, deli-
mitar com que conceito de texto trabalharemos.
O desenvolvimento da competência leitora, na escola, é feito por
meio da mediação realizada pelo professor. Desde a seleção de textos

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

(ainda que não seja tarefa exclusivamente sua), à sua apresentação aos
alunos e à provocação de sua compreensão, o professor atua como “co-
leitor” privilegiado, que conhece o texto previamente e já acumulou, ao
longo da vida, mais experiências e saberes que os alunos. Em função
disso, ele precisa ter o cuidado de não ler para os alunos, ou pelos alunos,
mas com eles, respeitando seu ponto de vista e salientando pistas decisivas
para o entendimento do texto, ora evocando outros textos relacionados
àquele com que trabalha, ora incentivando os alunos para as relações intra
e extratextuais necessárias para o estabelecimento do sentido textual.
A atividade de leitura pode/deve ser organizada a partir de uma
tarefa de pré-leitura, na qual pode ser abordado o tema do texto que será
lido, ou um aspecto estrutural, poético, ou linguístico importante para a
construção do sentido. Sobretudo se for um texto literário, também devem
ser explorados, nessa fase inicial, autor, obra e inserção histórica, pois
são dados relevantes não só para a finalização do sentido, mas também
para a formação do repertório dos alunos. Depois da leitura mediada,
também será possível o desdobramento da atividade em outras de caráter
crítico, e/ou subjetivo, e/ou criativo.
Como a perspectiva adotada é essencialmente interacional, desde o
início do processo de compreensão, é preciso estimular a ação do aluno
sobre o texto, assim como considerar que o texto está configurado de
determinada forma em virtude da intencionalidade que o alimenta, da
posição do produtor/enunciador em relação ao leitor presumível (ou
ouvinte, ou espectador), perante a realidade histórica que compartilham.
Inter-ação: o texto age sobre o leitor (ou o produtor, por meio do texto,
age sobre o leitor), mas o leitor também age sobre o texto, investindo
tudo o que conhece na construção do sentido, de acordo com vivências
e textos anteriores.
Também antes de tratarmos da compreensão propriamente dita,
é importante delimitar o que entendemos como texto. Na perspectiva
adotada, texto é uma unidade de sentido, formado por signos orga-
nizados com o objetivo de comunicar algo e agir sobre aquele que o
interpreta. A unidade textual é obtida por meio de recursos coesivos

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

e de coerência, ou seja, a partir de uma organização interna que favo-


rece a percepção de convergência entre os elementos constitutivos do
texto para um único fim (o sentido global finalizado), em função da
relação entre essa materialidade e o contexto no qual se insere – mais
imediato, ou mais histórico7.
A concepção de texto defendida pela Linguística Textual é bastan-
te semelhante, embora se sobressaia seu interesse pelos textos verbais
exclusivamente:

A Linguística Textual trata o texto como um ato de comuni-


cação unificado num complexo universo de ações humanas.
Por um lado, deve preservar a organização linear que é o
tratamento estritamente linguístico abordado no aspecto da
coesão e, por outro, deve considerar a organização reticulada
ou tentacular, não linear, portanto, dos níveis do sentido e
intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e
funções pragmáticas. (MARCUSCHI, 2012. p. 33)

Ao chamar a atenção para os dois tipos de organização que se


cruzam para a realização de um texto – a linear e a reticulada –,
Marcuschi alia a composição formal a aspectos próprios do plano
semântico e do plano pragmático, o que também significa dizer que
o sentido depende da relação entre texto e contexto, na direção à
externalidade do conhecimento prévio partilhado entre os intera-
gentes da troca comunicativa e das circunstâncias enunciativas, que
incluem as identidades dos parceiros, a intencionalidade própria de
um gênero discursivo, os scripts reconhecíveis no uso dos textos, a
interdiscursividade.
Tendo esclarecido esses pontos preliminares, agora podemos
tratar do conceito de compreensão textual especificamente. Para
Charaudeau, a compreensão deve ser vista como o resultado de um
7 Essa concepção de texto recobre não só os textos verbais, mas também os verbo-visuais, ou
mesmo totalmente visuais. Como tratamos, neste capítulo, dos processos de interpretação no
Ensino Básico, isto é, nas aulas de LP, vamos priorizar aspectos próprios dos textos verbais
ou verbo-visuais, pois assim teremos a oportunidade de tratar da análise linguística.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

processo interpretativo em dois níveis. O primeiro nível de com-


preensão corresponde à parte do processo em que o sujeito é con-
frontado por um texto; ele reconhece o sentido das palavras/signos
e sua forma de organização na superfície textual, ainda de modo
“aberto”. Nesse nível, o leitor interpreta apenas inferências centrí-
petas, para “dentro” do texto, ainda restritas ao que está explícito,
ao que pertence ao sistema da língua (no caso dos textos verbais) e
é interno ao texto. Já o segundo nível de compreensão é alcançado
ao final de uma atividade interpretativa que se dá através de relações
entre componentes do enunciado com outros elementos que lhe são
externos e com os quais se relaciona. Esses elementos pertencem ao
contexto histórico-cultural e à situação de produção do enunciado.
Nesse nível, o leitor precisa relacionar texto e contexto, produzindo
inferências centrífugas, para “fora” do texto8.
A compreensão, portanto, só ocorrerá quando o texto que lemos
dialogar com outros textos, com nossos saberes e com as circunstâncias
que envolvem a construção de seu sentido. Ela depende da interpretação,
isto é, de toda atividade de decifração e de extração de sentido anterior à
significação do texto. A interpretação é condição para a compreensão e
engloba todos os processos que levam a ela. Incluem-se nisso todos os
recursos linguísticos, a maneira de combinar as palavras, o reconhecimento
do uso das expressões de acordo com ambientes enunciativos, os modos
de descrever, de relatar, de argumentar, de interpelar o outro, de se ajustar
aos gêneros discursivos.

8 Pode-se, portanto, relacionar o primeiro nível de compreensão (CHARAUDEAU, 2018) à


camada linear (MARCUSCHI, 2012) e o segundo nível, à camada reticulada.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Fig. 1 – Interpretação como processo

Fonte: baseada em Charaudeau (2018)

Vamos aplicar esses conceitos na leitura da tirinha a seguir, pu-


blicada em 2019, no começo do mandato do Presidente Bolsonaro. No
centro do texto, lê-se a forma linguística: “arrependei-vos”. No primeiro
nível de compreensão, o falante de língua portuguesa reconhece essa
forma como pertencente ao verbo pronominal “arrepender-se”, que
significa “sentir remorso por algo que fez”, ou “mudar de opinião”.
Também é possível observar que a forma está no imperativo, ou seja,
interpela o interlocutor com o objetivo de fazê-lo agir de determinada
maneira. Ainda nesse nível de compreensão, observa-se a organização
superficial da tirinha, composta também por elementos visuais. Na
imagem, reconhece-se o muro onde está escrito “Arrependei-vos”, um
menino que passa interessado nesse dizer, arrastado por um adulto que
talvez ignore o fato. A apreensão desse conjunto depende de inferências
centrípetas, internas.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Fig. 2 – Tirinha do Armandinho – Aos eleitores

Disponível em: www.facebook.com/tirasarmandinho. (Publicado em 5 de maio de 2019 e


republicado em 13 de junho de 2019. Acesso em 11 mar 2020.)

Porém, uma frase em um muro já exige o acionamento de um co-


nhecimento relacionado aos gêneros discursivos e seus suportes: trata-se
de uma pichação. A tinta escorre das letras, revelando sua atualidade.
Mesmo a pichação da tirinha pertencendo à narrativa que a constitui, a
relação do elemento textual com algo previamente conhecido e exterior
movimenta a compreensão para seu segundo nível, no qual é preciso
interpretar as pistas textuais em relação ao contexto. Essa pista provoca
uma inferência centrífuga, pois o sentido só pode ser calculado em função
do dado externo. Ela se baseia na situação de comunicação. O reconheci-
mento do gênero tirinha em função de sua forma e de seu suporte (uma
rede social da internet) se baseia nesse tipo de saber. Tanto a pichação
quanto a tirinha são gêneros discursivos que se fundam em uma intencio-
nalidade ligada à argumentação, a uma proposta de convencimento, de
posicionamento do autor e persuasão do outro-leitor. O escrito no muro
traz a intenção de convencer alguém de que é preciso se arrepender de
algo e, indiretamente, a tirinha também quer convencer seu leitor disso,
além de revelar o ponto de vista do cartunista.
Igualmente, nesse segundo nível de compreensão, acontecem as
inferências centrífugas relacionadas aos saberes de conhecimento e de
crença partilhados por um grupo social, ou, em outras palavras, aqueles
ligados ao contexto histórico-cultural. Os saberes de conhecimento são
aqueles que se baseiam em fatos e comprovações. Por exemplo, reco-
nhecer a frase “Arrependei-vos” como própria da Bíblia e do discurso
religioso depende de um saber de conhecimento, assim como o fato de

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

o presidente se apresentar como cristão e ter sido escolhido por uma


maioria de eleitores cristãos. Ainda se soma a isso o saber sobre as ações
do presidente no governo, possivelmente consideradas incoerentes em
relação a algumas de suas promessas. Esse contexto orienta a compreen-
são da tirinha como uma sugestão de arrependimento da parte do eleitor
decepcionado com as atitudes do presidente.
Já os saberes de crença dizem respeito aos valores referendados
socialmente; à maneira de um grupo social pensar e avaliar a realidade.
Eles também são acionados nas inferências centrífugas. No caso da tirinha
em questão, eles fazem parte, por exemplo, do ponto de vista proposto
pelo cartunista, que avalia negativamente o atual governo. Sabendo-se
que o governo apresenta características de uma orientação à direita,
avaliada negativamente nesse caso, pode-se inferir que a tirinha expõe
uma posição contrária, à esquerda, ali avaliada positivamente.
Afirma Charaudeau (1994, p. 1):

Um texto fora de suas circunstâncias de produção é de


fato significativo, mas com sentido aberto, plural, ainda
não domesticado, testemunhando múltiplas vozes (…).
Por outro lado, um texto considerado nas circunstâncias
em que é produzido carrega significado, ainda plural, mas
desta vez filtrado, organizado, ordenado, em suma, do-
mesticado pelo projeto de fala daquele que é seu produtor.

Do reconhecimento do signo linguístico e do conjunto que forma


com a imagem à relação dessas “pistas” textuais com o contexto, o
processo de compreensão se conclui. Parte-se da superficialidade e da
organização superficial dos signos na direção do gênero, da situação co-
municativa, do contexto histórico-cultural. Considerados esses aspectos,
podemos, então, resumir as estratégias de interpretação utilizadas para
alcançarmos a compreensão neste quadro:

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O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Fig. 3 – Quadro sinóptico sobre as estratégias de interpretação

Vamos aplicar essas estratégias à análise de um trecho da letra da


canção de Arnaldo Antunes, “Saiba”, reproduzido a seguir. Sendo pos-
sível ouvir a canção, poderíamos também considerar um aspecto sonoro
bastante significativo: a melodia, que se assemelha à da canção de ninar.

Saiba: todo mundo foi neném


Eisntein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Sadam Hussein
Quem tem grana e quem não tem [...]

Saiba: todo mundo teve medo


Mesmo que seja em segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar [...]

Saiba: todo mundo teve mãe


Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
E também eu e você (ANTUNES, 2006. p. 270-271)

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O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Nesse texto, identificamos a repetição da forma verbal imperativa


“saiba”, direcionada para o interlocutor, antes das afirmações “todo
mundo foi neném”, “todo mundo teve medo” e “todo mundo teve mãe”,
em um processo de generalização que inclui o produtor, o leitor/ouvinte
(“e também eu e você”), além de todas as pessoas e grupos menciona-
dos: Einstein, Freud, Platão, índios, africanos, alemães etc. Foi usada,
portanto, a anáfora (na repetição) e o paralelismo sintático nos apostos
enumerativos que especificam cada “todo mundo” mencionado. A infe-
rência centrípeta, então, atua na simples identificação desses referentes,
estados e ações e na organização das estrofes de acordo com certa “ordem
semântica e sintática”. O conhecimento de mundo já está sendo acionado
na introdução de referentes no texto e possibilitará, no segundo nível de
compreensão, o das inferências centrífugas, associar ideias e calcular
sentidos não ditos, implícitos.
Usando as estratégias de interpretação no segundo nível, relacio-
namos esses dados explícitos a outros saberes para o cálculo de sentido.
Criamos expectativas de sentido que podem ou não se confirmar. Por
exemplo, atentar para o gênero discursivo letra de canção, abre a possi-
bilidade da “licença poética” e prepara o leitor para uma esperada plu-
rissignificação e para o sentido indireto, próprios do caráter literário do
texto. A coloquialidade amplia o alcance receptivo do texto, facilitando
a identificação do leitor com o conteúdo (“quem tem grana e quem não
tem”). Esses dados dizem respeito à situação de comunicação; eles são
inferidos a partir da relação entre a superfície textual e as circunstâncias
enunciativas; dependem de inferências situacionais.
Também na direção da significação indireta, mas a partir de infe-
rências discursivas, atua o agrupamento de nomes em função de uma
qualidade comum entre aqueles que são mencionados: Einstein, Freud
e Platão são referências intelectuais na cultura ocidental; Hitler, Bush
e Sadam Hussein, referências bélicas; Nietzsche, Simone de Beauvoir
e Fernandinho Beira-Mar, referências de coragem, seja pela ruptura no
plano ideológico, seja pelo caminho do crime, no caso de Beira-Mar;
Nero, Che Guevara e Pinochet, referências políticas. “Índios, africanos
e alemães” se aproximam em termos geográficos e/ou etnográficos,

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

ou mesmo por sua história marcada por genocídios. Em cima do reco-


nhecimento desses referentes, o leitor aplica uma avaliação positiva ou
negativa segundo a coletividade.
Assim como esses agrupamentos têm sua unidade reconhecida
por causa de caraterísticas comuns, também se nota o contraste entre os
grupos, ou mesmo no interior deles. “Fernandinho Beira-Mar”, trafican-
te brasileiro, aparece logo após dois filósofos, Nietzsche e Simone de
Beauvoir; Che Guevara, ativista de esquerda, aparece ao lado de Nero
e Pinochet, lembrados como déspotas violentos. Esse tipo de inferência
se baseia em um dado histórico-cultural e provoca no texto, como efeito,
a ideia de que mesmo pessoas tão conhecidas e relevantes, boas e más,
grupos inteiros, mas também eu e você, todos, em alguma medida, são
iguais, pois foram nenéns, tiveram medo e uma mãe. Como desdobra-
mento, conclui-se que, em essência, somos iguais.
O quadro das estratégias interpretativas para a compreensão desse
texto poderia ficar assim:
Fig. 4 – Quadro sinóptico das estratégias de interpretação aplicadas
à letra de canção Saiba

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Wander Emediato (2007), no capítulo intitulado “Contrato de


leitura, parâmetros e figuras do leitor”, delimita, na esteira da Semiolin-
guística, quatro “subcompetências” que compõem a competência leitora:
a competência linguística, a enciclopédica, a praxeológica e a axiológica.
A essas competências de que o leitor se vale para construir o sentido de
um texto, ligam-se as estratégias interpretativas que mencionamos, como
pode ser verificado no quadro a seguir:
Fig. 5 – Quadro das estratégias relacionadas às competências usadas para leitura

No caso da letra de Arnaldo Antunes, a competência linguística


permitiu, por exemplo, reconhecer as pessoas e os grupos por seus no-
mes, o traço semântico dos agrupamentos nas estrofes, a repetição pela
anáfora e o paralelismo como recursos coesivos, a coloquialidade do
texto. Com a competência praxeológica, acionou-se o reconhecimento
do gênero discursivo e sua intencionalidade. A competência enciclo-
pédica foi necessária para reconhecer o papel social de cada pessoa e
grupo citado e a axiológica, para avaliá-los positiva, ou negativamente.
Por essa necessidade informativa extratextual, na escola, a atividade de
compreensão de textos deve ser mediada pelo professor e levar o aluno
a inferir, a deduzir ideias a partir de seu repertório, ou a partir de conhe-
cimento ofertado na mediação.

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

A complexidade do processo de compreensão textual, portanto, exi-


ge o acionamento de conhecimentos e procedimentos que não se resumem
ao domínio do sistema linguístico, ou da metalinguagem relacionada à
gramática e a outros conteúdos curriculares, mas à reflexão sobre o fun-
cionamento da língua nos textos, sempre considerando dados externos,
inferíveis por meio da relação entre texto e contexto. A concepção de
aula de LP passa então a exigir a convergência do estudo de gramática,
leitura e redação, além dos conteúdos explorados em todas as disciplinas,
para a formação de usuários competentes da língua, capazes de produzir
e compreender os textos que circulam na sociedade.

Lição nº 3: pela não fragmentação das aulas de Língua Portuguesa

Para finalizar este capítulo, apresentaremos uma proposta de ati-


vidade de compreensão textual em que se exploram as inferências e as
competências estudadas, sempre levando em consideração a não frag-
mentação das aulas de LP.
Vejamos o meme extraído do Facebook. A frase entre aspas é parte
de um poema de Allan Dias Castro. No fundo, a imagem de uma favela
e de um helicóptero que a sobrevoa. Na parte inferior, a “assinatura” do
site “Dando as letras”, do próprio poeta.
A primeira atitude é entrar em confronto com o texto, percebendo
sua superfície. Ainda que se tenha feito uma atividade de pré-leitura,
no exercício em si, seja oral, seja escrito, o professor-mediador deve
levar o aluno ao reconhecimento dos signos que compõem o texto e sua
organização.

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O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Fig. 6 – Meme do Facebook

Disponível em http://cidinhadasilva.blogspot.com/2013/06/na-favela-morro-e-verbo.html
Acesso em 12 mar 2020.

Nesse caso, no centro do texto, há uma frase reportada, entre aspas,


dita por um outro: “Na favela, morro é verbo”. A locução adverbial que
inicia a frase delimita o sentido (por enquanto aberto) daquilo que vai
ser afirmado. Nesse enunciado, temos “favela” e “morro” no mesmo
campo semântico. A palavra “morro” precisa ser observada em uma du-
pla dimensão: substantivo e verbo. Esse dado é acionado internamente,
pela menção à metalinguagem (“verbo”). A imagem de fundo também
precisa ser reconhecida: favela e helicóptero. Todos esses elementos
devem ser relacionados a fim de que se alcance a inferência centrífuga
que possibilitará a compreensão do texto após a relação texto/contexto,
trazida pela interpretação: a denúncia da violência constante nas favelas;
em especial, aquela promovida também por parte das forças policiais
contra os moradores das comunidades mais carentes.
Os comandos para o mediador auxiliar o aluno nos processos in-
terpretativos que levarão à compreensão do texto poderiam ser estes:

1. Descreva os elementos (verbais e não verbais) que compõem o texto


em questão. Depois, concentre-se no termo “morro”: se “Na favela,
morro é verbo”, em outro lugar poderia não ser verbo? O que “morro”
seria, então, em outras circunstâncias?

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

2. Atentando para a realidade indicada pela imagem de uma favela sendo


sobrevoada por um helicóptero, explique por que se afirma: “morro é
verbo”. Que fato comprova sua resposta?

3. Considerando que esse texto é um meme e foi publicado em uma


rede social, com que intenção deve ter sido produzido?

4. O meme traz uma crítica apenas subentendida. Qual? Você concorda


com ela?

Nesse conjunto de possíveis questões de interpretação, percebemos


o acionamento, no primeiro comando, de inferências internas, baseadas
nos elementos superficiais do texto, ainda com sentido aberto. O conhe-
cimento linguístico exigido diz respeito àquele internalizado pelo leitor,
mas também, em relação à metalinguagem, um pouco do que aprendeu na
escola. A diferença entre substantivo e verbo vai levar a outra inferência,
mais externa: primeiro associamos morro e favela, substantivos, por esta
ter sido, por muito tempo, localizada nas encostas das cidades. Quando
tomamos a forma verbal homônima, entendemos a referência à primeira
pessoa do discurso, “eu morro”, indicando a subjetividade da afirmação,
mas também mostrando aquilo que sofre quem mora na favela. Muda-se
não só a categoria gramatical, mas o sentido e o ponto de vista.
No segundo comando, aponta-se para a externalidade do texto,
mas aquela que diz respeito ao conhecimento enciclopédico do leitor,
do acompanhamento das notícias constantes sobre mortes de inocentes
durante as incursões policiais nas favelas (são os policiais que usam he-
licópteros para se aproximar da favela). As pistas para essas inferências
estão nas imagens, mas dependem da relação entre aquilo que se vê no
texto e o conhecimento armazenado pelo leitor.
O terceiro comando também aponta para a externalidade do texto,
isto é, para a situação comunicativa em que ele se insere, por meio da
identificação do gênero discursivo meme e do suporte em que é veiculado:
uma rede social. Em outras palavras, aciona-se a competência praxeo-
lógica. São dados relevantes para buscar, no texto, sua intencionalidade

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FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA
O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

e perceber o tom de crítica assumido pelo enunciador em seu ponto de


vista – ao qual o leitor poderá ou não aderir. As inferências provocadas
por esse comando vão corroborar a expectativa criada pela relação entre
a frase e a imagem.
Por fim, o quarto comando leva o leitor a verbalizar a crítica im-
plícita no texto, além de entender a avaliação que o enunciador faz do
fato problematizado. Identificar a crítica por meio de uma inferência
centrífuga, nesse caso, esbarra nas competências discursiva e axiológica,
que habilitam o leitor para estabelecer a relação do texto com a realidade
partilhada no Rio de Janeiro e perceber que tipo de avaliação o enun-
ciador faz dela. Nesse momento, enfim, pode-se considerar finalizada a
compreensão, que acionou conhecimentos sobre língua, texto, contexto
e valores socialmente partilhados, e interpelar o leitor sobre seu próprio
posicionamento diante da crítica. A leitura, afinal, precisa ter sentido e
dar sentido ao leitor, provocando sua reflexão e, se possível, sua tomada
de posição.

A interpretação que “faz sentido”

Neste capítulo, procuramos apresentar estratégias de interpretação


básicas para o alcance da compreensão textual, desde aquelas mais presas
ao reconhecimento de elementos e significações da superfície textual, até
aquelas que só funcionam quando relacionadas ao contexto, isto é, a dados
extratextuais próprios das circunstâncias de enunciação e dos saberes
partilhados socialmente. Não se desenvolve a competência leitora sem o
trabalho efetivo com essas competências que convergem para a criação
de expectativas e sua comprovação (ou não) até a compreensão do texto.
Outro ponto de destaque aqui é a necessidade de desfragmentação
das aulas de LP, geralmente isoladas em momentos de trabalho com a
gramática (na verdade, com a classificação gramatical e com a norma
de prestígio), com a leitura (quase sempre desvinculada da observação
dos recursos linguísticos e textuais que acionam inferências) e com a
produção textual (bastante preocupada com modelos redacionais para

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O ENSINO DE PORTUGUÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

concursos, mas que, muitas vezes, despreza o conhecimento linguístico


que o estudante já domina na realização das tarefas de redação). Ainda
que, em alguns momentos, seja preciso focalizar a atenção dos alunos
quanto a um aspecto particular, a análise linguística que leva à reflexão
sobre os recursos para produzir e compreender textos deve ser a prioridade
nas aulas do Ensino Básico.
Acreditamos que um trabalho pautado conscientemente no exercí-
cio interpretativo por meio do acionamento dessas estratégias é o modo
eficaz de formação do leitor, preparando-o para o enfrentamento do
texto – e do próprio mundo, nem sempre palatável à nossa percepção
e interpretação. Ao acostumar o jovem leitor a observar, ouvir, fazer
relações intra e extratextuais, avaliar e se posicionar, mostramos não
o sentido que o texto “tem”, mas aquele que pode ser construído com
o investimento da bagagem do leitor, reunida desde sempre, em sua
interação proveitosa com o texto contextualizado. Também mostramos,
com essa pedagogia de leitura, que a análise dos signos, sobretudo os
linguísticos, pode ser um trabalho investigativo interessante, que “faz
sentido”, pois está direcionado para a provocação de sentidos e efeitos
ajustados à intencionalidade própria do gênero discursivo a que pertence
o texto. Então o leitor passa a perceber que nada no texto é gratuito; que
não há texto neutro; que ninguém fala nada sem a intenção de modificar
alguma coisa no mundo e que há não ditos que podem ser comprovados
pelo processo interpretativo.
A competência leitora, assim entendida, poderá mostrar ao leitor
seu espaço cidadão, de efetiva interação com o mundo. E é para isso que
resistimos na Educação.

REFERÊNCIAS

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