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PRÁTICAS DE ANÁLISE LINGUÍSTICA, Entretanto, implementar de forma consistente as inovações

MODALIZAÇÃO E REFERENCIAÇÃO: propostas nesse eixo de ensino resiste como tarefa que catalisa
AMPLIANDO E CONECTANDO OBJETOS DE ENSINO disputas na arena das políticas públicas de educação linguística –
formulação de diretrizes e documentos curriculares; produção,
Márcia Mendonça1 avaliação e distribuição de materiais didáticos impressos e digitais
e programas de formação de professores. Mas as tensões se
encontram também no campo acadêmico, traduzindo-se nas
interfaces entre concepções e propostas metodológicas, ora em
1. Introdução atrito, ora em contato, ora em fusão. Longe de dizer que se trata de
uma tarefa inconclusa e, na perspectiva de muitos,
O trabalho com o eixo dos conhecimentos linguísticos na persistentemente mal sucedida, acredito que estamos diante de
escola tem se confirmado como um gargalo de um processo processos esperados, ainda que lentos. E isso ocorre por diversos
vigoroso de renovação/atualização no ensino de português iniciado fatores, entre eles, o peso da tradição escolar no âmbito desse eixo
já há mais de 30 anos no Brasil, que propõe uma visada discursivo- de ensino –qual seja, o ensino tradicional de gramática, com sua
enunciativa para a linguagem, numa espécie de “virada textual” ou organização cumulativa (MENDONÇA, 2006). Também a falta de
“virada discursiva”, de modo a não mais privilegiar uma investimentos públicos na formação de professores e na
abordagem predominantemente formal ou normativa dos usos reorganização específica desse eixo de ensino contribuem para esse
linguísticos. Alguns avanços já foram alcançados: incorporação de estado de coisas. Assim, o trabalho com práticas de análise linguística
objetos de ensino externos ao escopo da gramática tradicional (tais (PAL) na escola tem trazido, para pesquisadores e para professores,
como coesão, variação linguística, conhecimentos sobre gêneros do desafios teórico-práticos de grande importância.
discurso, etc.), busca por integração entre os eixos de ensino Neste texto, me arrisco a propor alguns caminhos para a
(reflexão sobre a linguagem, leitura e produção), a oferta de um reorganização curricular deste eixo de ensino – ou dessa prática de
repertório de leituras mais diversificado quanto a esferas linguagem, como enuncia a BNCC (BRASIL, 20183) – no que tange à
discursivas, gêneros do discurso, temáticas, linguagens, épocas seleção de objetos de ensino sob eixos estruturantes mais gerais.
históricas e autoria2, entre outras conquistas. Pretendo ainda tecer considerações sobre as implicações desse
rearranjo para o desenvolvimento de habilidades na formação em
1Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: língua materna, dialogando com as especificidades das práticas e
mendmar@unicamp.br saberes escolares na área de Linguagens.
2 Programas governamentais têm sido um forte indutor de várias dessas

mudanças, especialmente pela via da distribuição de materiais didáticos e de


obras literárias nas escolas. Destacamos a exigência do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), já no início dos anos 2000, de que os livros didáticos
oferecessem uma coletânea de textos diversificados em temas, gêneros, autoria e variados em gêneros, temáticas, autoria e linguagens, respectivamente para
época de produção. Ressalto também a contribuição do Programa Nacional estudantes e professores das escolas públicas brasileiras.
Biblioteca da Escola (PNBE; 1998-2014) e do Programa Nacional Biblioteca da 3 A BNCC refere-se ao termo composto “análise linguística/semiótica”. Por

Escola do Professor (PNBE do Professor, 2009-2013), que fizeram a curadoria e a limitações de espaço, não explorarei a análise semiótica neste texto, tampouco sua
distribuição anual de acervos de qualidade literária e editorial inegáveis, bastante possível integração com as práticas de análise linguística na escola.

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2. Pontos de partida • uma educação emancipatória (FREIRE, 1987), na qual os
educadores e os alunos são sujeitos do processo de aprendizado e
O campo de estudos de que parto é o da Linguística Aplicada, educam-se mutuamente, partindo do princípio de que todos
reconhecido como um campo transdisciplinar que se apropria de podem aprender uns com os outros, tornando-se, a cada dia, mais
conceitos e metodologias de diferentes áreas e tradições, capazes de se situar no mundo criticamente;
interessadas no estudo da linguagem (SIGNORINI, 1998), com o • uma educação linguística crítica nos termos de Janks (2000;
intuito de “criar inteligibilidades sobre problemas sociais nos quais 2010): ensinar os aprendizes a entender e a manejar as relações
a linguagem tem papel central” (MOITA LOPES, 2006, p. 14). Nesse entre linguagem e poder, ampliando a inserção em práticas de
sentido, valho-me de contribuições da Linguística Aplicada, da linguagem e conectando-as, em uma perspectiva que valorize a
Educação e da Linguística. diversidade de práticas, o seu domínio, o acesso a elas e o
Alguns pressupostos de cunho teórico orientam as reflexões desenvolvimento de designs4 das, nas e sobre as práticas de
aqui desenvolvidas, como o próprio conceito de análise linguística linguagem;
(AL), apresentado por Geraldi no Brasil em 1984. Compreendo a • um projeto de letramento científico no âmbito escolar5 que,
AL como um conjunto de práticas que integram as práticas de no caso do ensino de língua, tome os objetos de ensino da área
letramento escolar,
4 Tomo a noção de design explorada por Cope, Kalantzis e Pinheiro (2020) no
consistindo numa reflexão explícita e sistemática sobre a constituição e âmbito dos estudos de multi e novos letramentos, na esteira do que foi
o funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou apresentado em 1996, pelo chamado “rupo de Nova Londres (NEW LONDON
gramatical), textual, discursiva e também normativa, com o objetivo de GROUP, 1996). Para os autores, o design é concebido de forma dual: tanto como
contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta, de estrutura de significado quanto como “agência socialmente influenciada e dirigida
produção de textos orais e escritos e de análise e sistematização dos (nossa intenção de comunicar, a mensagem que criamos e sua interpretação
fenômenos linguísticos. (MENDONÇA, 2006, p. 208). para/por outras(s) pessoa(s)” (p. 173). Nesse sentido, exemplificando com as
práticas de análise linguística na escola, como ação de linguagem, o processo de
design envolve conhecer e acessar os designs disponíveis (available designs, tais
Junto-me a outros autores, ao relacionar as PAL aos objetivos como os itens lexicais, os processos de formação de palavras, as figuras de
pedagógicos de formar leitores e produtores de textos capazes de linguagem, etc.); o designing – ação de manejar com os designs disponíveis para
reconhecer, mobilizar e avaliar recursos linguísticos; e de contribuir produzir sentidos; o (re)designed – a transformação dos designs disponíveis pela
para as capacidades de reflexão sobre a linguagem (SILVA, 2016; ação do designing, quando, por exemplo, no processo de aprendizagem, os
estudantes passam a usar as figuras de linguagem nos seus discursos, produzindo
LEAL et al., 2016; COSTA-HÜBES, 2017), na medida em que novos efeitos de sentido antes desconhecidos por eles. O design implica
permitem refletir sobre “elementos e fenômenos linguísticos e responsabilidade pelo que se produz, pelos sentidos gerados e, por essa razão, está
sobre estratégias discursivas, com foco nos usos da linguagem” ligado a uma perspectiva crítica e engajada de linguagem. Um trabalho específico
(MENDONÇA, 2006, p. 206). Acredito que tais práticas podem sobre a interface entre análise linguística e design na perspectiva dos
multiletramentos merece ser desenvolvido.
ampliar o conjunto de saberes escolares relevantes para a vida 5 O letramento científico poder ser concebido como um conjunto de práticas sociais
social dos estudantes na escola e fora dela, isso tomado nas situadas voltadas à “compreensão pública da ciência dentro do propósito da
perspectivas de: educação básica, de formação para a cidadania” (SANTOS; SCHNETZLER, 1997,
apud SANTOS, 2007, p. 479). Na escolarização, ele esteve associado, quase sempre,
às ciências da natureza e às ciências exatas. Defendo, junto a Perini (1995), que as

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como objetos passíveis de reflexão, investigação e sistematização, instaurar um clima de “vigilância epistemológica” que
sobre os quais pode-se lançar perguntas e proceder a análises com desconsidera as dinâmicas pedagógicas das salas de aula, a escola
base em categorias consistentes de um ponto de vista científico. como agência de letramento e os professores como autores de suas
práticas docentes.
Um segundo pressuposto é o de que nem os saberes escolares, A instituição escolar constituiu uma esfera específica de ação
tampouco os saberes docentes equivalem aos saberes dos campos humana, que configurou um conjunto de práticas de letramento
de referência (cf. SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; TARDIF et al., 1991; próprias, a fim de atender aos seus objetivos primordiais
SOARES, 2001; CHARTIER, 2007), entenda-se, das áreas de declarados, não obstante o papel opressor que a escola
formação profissional que preparam os respectivos docentes6. No eventualmente também pode desempenhar. A escola regular, como
caso dos professores de português, tal como a disciplina é regulada projeto republicano que visa à universalização do acesso à
na educação básica brasileira, esses campos de referência seriam os educação como direito, tem por objetivos centrais promover a
relativos aos estudos da linguagem, nos campos dos estudos formação ampla, integral e inclusiva dos estudantes, tomados
linguísticos e dos literários, contando também com a contribuição como sujeitos singulares com direito “ao pleno desenvolvimento
dos componentes curriculares da área da educação. da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
Nessa perspectiva, ensinar português na escola não significa qualificação para o trabalho.” (Artigo 205 da Constituição Federal;
ensinar em conformidade com as epistemologias dessas áreas, BRASIL, 1988); e a “formação ética e o desenvolvimento da
apresentadas nas disciplinas e ações formativas dos cursos de autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Lei de Diretrizes e
licenciatura. Na contramão dessa compreensão, alguns Bases da Educação Nacional – LDB; BRASIL, 1996).
pesquisadores buscam uma pureza teórica que respalde, Tal perspectiva implica assumir a necessidade de operar
exclusivamente, uma suposta coerência interna em práticas transformações nos saberes trabalhados e (re)produzidos na
pedagógicas, materiais didáticos e mesmo currículos. Tais formação inicial das professoras e dos professores e nisso reside
posições, talvez inadvertidamente, podem contribuir para uma grande responsabilidade das instituições de ensino superior.
De fato, não se trata de incluir mais “didática” nos currículos de
graduação, mas de melhor compreender:
práticas de letramento científico deveriam contemplar também a área de
linguagens, tendo em vista que a abordagem científica dos fatos da língua está na
a) a natureza dos saberes escolares, na interface com as
agenda da educação linguística há décadas, especialmente pelas vias do culturas contemporâneas;
tratamento dispensado à variação linguística na escola. Lembremos ainda as b) os modos como os estudantes aprendem, apreendem a
críticas à gramática tradicional como fonte única dos estudos linguísticos, presente realidade e a refratam, reconfigurando-a;
também há tempo na formação inicial e continuada de professores de língua.
6 Sampaio Doria, autor de manual didático da década de 1930, já compreendia essa
c) o fazer docente como um trabalho em curso, multifacetado
diferença entre saberes das áreas de conhecimento que informam o estudo e os e atravessado por forças poderosas e eventualmente contraditórias.
saberes escolares, de outra natureza. Vejamos o que diz, em prefácio, acerca sobre Por isso, o fazer docente é repleto de táticas, no sentido de Certeau
as gramáticas tradicionais, referência fundamental à época para o trabalho com (1998)7;
gramática: “A grammatica usual imposta ás crianças é falta de caridade.
Continuem ellas a ser, como é natural, objecto de consultas. Mas nunca roteiro de
estudos. (sic, grifo nosso)” (DORIA, S. Como se aprende a lingua: curso geral. 8ª ed. 7Para Certeau, a tática é a “arte do fraco” (p. 101, 1998): “O poder se acha amarrado
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936 [prefácio], p. 9.). à sua visibilidade. Ao contrário, a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes

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d) as tensões entre um currículo prescrito pelo Estado- práticas discriminatórias, a fim de combatê-las, não como um favor,
pedagogo e os fatos anteriores, por exemplo, currículo prescrito x mas como um dos pilares fundantes de um Estado democrático.
currículo em curso na escola; a forma escolar (VINCENT et al., 2001) Talvez tais questões pareçam distantes do que se faz quanto à
x práticas inovadoras; formação disciplinar do docente x as reflexão sobre a linguagem nas salas de aula brasileiras. Na
necessidades de aprendizagem transversais às áreas. verdade, elas são candentes e demandam ações mais vigorosas de
Uma compreensão alargada desses aspectos pode fazer nossa parte – educadores e(-) pesquisadores – no sentido de
convergir para culturas e práticas formativas na licenciatura mais aprimorar os currículos e as práticas de ensino-aprendizagem no
coerentes com um perfil de escola que se pretenda agência de eixo dos conhecimentos linguísticos e da análise sobre outras
(multi e novos) letramentos e com as múltiplas identidades, anseios linguagens, dado que pensar sobre linguagens implica refletir
e direitos dos alunos dessa mesma escola. Nessa direção, é sobre representações de si mesmo, dos outros, do mundo.
necessário pensar os saberes escolares como uma amálgama
heterogênea de conhecimentos de caráter conceitual, 3. Forma escolar, análise linguística e iniciação científica na
metodológico, ético etc., que devem convergir – ou se atritar – para escola
uma educação efetivamente emancipatória (FREIRE, 1987).
Um terceiro pressuposto é a concepção enunciativa de No século XVII, surge a novidade radical da forma escolar, ou
linguagem (BAKHTIN, [1953] 2003), que supõe que as práticas de seja, a apropriação de relações de poder e de formas escriturais e
linguagem (inclusive as não verbais) configuram os modos como saberes objetivados, explícitos, sistematizados, codificados como
as pessoas expressam ou buscam expressar seus posicionamentos, cerne do funcionamento pedagógico da escola (VINCENT et al.,
como intentam afetar seus interlocutores e a comunidade onde 2001). Isso representou uma ruptura com a anterior aprendizagem
vivem e por eles ser afetados. Nesse sentido, refletir sobre a pela mimese, que se transmitia de geração em geração, em formas
linguagem na escola implica reconhecer e desvelar a imbricação sociais orais. Passados mais de três séculos, a forma escolar,
entre a palavra e os posicionamentos axiológicos sobre a realidade; lentamente mutável, permanece como um importante organizador
entre a palavra e as relações de poder (solidárias, violentas, das práticas docentes e, na escola contemporânea, envolve
desiguais, empáticas) e também, há que se dizer, entre a palavra e primordialmente aprendizagem mediada pelos professores, com
auxílio de materiais didáticos, o que ocorre no evento de letramento
aula síncrona presencial na maioria dos casos. Tal situação, sabemos,
apenas ela, como ‘último recurso’: ‘Quanto mais fracas as forças submetidas à foi radical e abruptamente alterada por conta da pandemia do
direção estratégica, tanto mais esta estará sujeita à astúcia’. Traduzindo: tanto mais Covid-19 em 2020, quando o ensino emergencial remoto (EER) passou
se torna tática.” (p. 95). Esse conceito pode trazer à luz formas de contornar tensões
a ser adotado em muitos contextos, como alternativa viável para
que envolvem o fazer docente - prescrições curriculares implementadas de forma
autoritária ou sem formação adequada ou ainda apartadas do que acontece no cumprir com o distanciamento social e manter algum tipo de
cotidiano escolar, a forma escolar (VINCENT et al., 2001), condições de trabalho vínculo entre estudantes e escola. Tal situação impactou a forma
precárias, desacertos entre equipe pedagógica e professores, cobranças das escolar, pelo menos provisoriamente, com implicações para o
famílias, etc. As táticas encapsulam práticas pedagógicas e discurso didático ensino aprendizagem que ainda não podemos alcançar e, acredito,
singulares criados por professoras e professores na reorganização dos saberes
escolares (cf. BUNZEN, 2009), podendo vir a ser práticas de resistência
(FERREIRA, 2019), apesar de muitas vezes serem invisibilizadas.

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tanto negativas quanto positivas, o que não será o escopo de baseiam, com o predomínio da gramática tradicional9 e algumas
discussão deste capítulo8. contribuições menos frequentes dos estudos linguísticos.
No que tange ao trabalho com os conhecimentos linguísticos,
arrisco afirmar que a forma escolar da tradição brasileira tem 4. Processos linguísticos transversais aos conhecimentos
privilegiado, nos últimos 100 anos, a aula expositiva, os exercícios de linguísticos tratados na escola: referenciação e modalização
fixação ou aplicação, restando pouco espaço para o trabalho integrado
entre leitura, produção e análise linguística e menos espaço ainda para Tendo em vista a necessidade de articular as práticas de análise
a iniciação científica em linguagem. Essa iniciação científica em linguística ao desenvolvimento das habilidades de leitura/escuta, de
linguagem deveria, em primeiro lugar, tomar a língua como objeto a produção de textos e de reflexão sobre a linguagem, faz-se necessário
respeito do qual se pode lançar dúvidas, indagações e sobre o qual se repensar os objetos de ensino a serem explorados nas aulas de Língua
pode investigar. A tarefa de ampliar os letramentos científicos na área Portuguesa, não só quanto a sua pertinência – para mantê-los, incluir
da linguagem tem ficado restrita ao meio acadêmico. Em outras novos ou excluir outros – mas também quanto às desejáveis relações
disciplinas escolares, como Ciências, História e Geografia, por sua vez, orgânicas entre eles, dentro de uma visão mais abrangente da
práticas de letramento científico comuns são a leitura, análise e formação na área. Em outras palavras, é preciso rever o que ensinar,
produção de mapas, legendas, linhas do tempo, sínteses, resumos, por que ensinar e como articular os objetos de ensino entre si, de forma
anotações, seminários. coerente com os processos de escolarização e com o projeto de
Essa ausência parece ter profunda relação com as fontes nas educação linguística em curso.
quais os conhecimentos linguísticos abordados na escola se Defendo, portanto, que os objetos de ensino sejam
problematizados tanto à luz do que as culturas escolares
contemporâneas avalizaram, ao longo de anos, como sendo aqueles
8 A forma escolar mais convencional – aulas transmissivas com alunos recebedores
de informações, que emanam do professor – já fora posta em xeque com que contribuem para o projeto formativo em curso; quanto à luz do
experiências consistentes e bem-sucedidas de educação com base em projetos, de que as pesquisas em Linguística Aplicada apontam como possíveis
educação a distância (EaD), de ensino híbrido e de sala de aula invertida. Os três contribuições a essa mesma formação. Para exemplificar, citamos o
últimos modelos didático-pedagógicos propõem que as aprendizagens se dão
também por mediações para além da escola, da aula presencial, da aula síncrona
e da interação centrada no professor. Acredita-se que os alunos podem aprender 9 Embora reconheçamos a gramática tradicional (GT) como resultado da investigação
tendo os colegas e outros agentes como mediadores, utilizando-se de fontes como nos campos gramatical, filológico e filosófico, muito de sua teoria se apoia em critérios
a internet e conhecimentos extraescolares, em plataformas e ambientes digitais, heterogêneos em termos epistemológicos, sobrepostos e costurados em séculos de
com materiais que passam a ocupar uma função didática, embora não tenham sido estudos, de modo que o arcabouço resultante se mostra ora incoerente, ora incompleto
criados com este fim (por exemplo, vídeos, imagens, postagens, que passam a ser em muitos pontos. Como se não bastasse, a GT elege a norma padrão como corpus e
objetos de aprendizagem, os OAs). Novos questionamentos sobre a forma escolar fonte principal, além de não incorporar evidências científicas para a elaboração de
mais recorrente no Brasil, que é centralmente organizada em torno de sequências regras e categorias em vários dos tópicos abordados, como, por exemplo, nas
de aulas expositivas de 50 minutos, surgiram com o ensino emergencial remoto definições de sujeito gramatical. E, de forma global, a GT mobiliza concepções de
(EER), adotado forçosamente no contexto da pandemia do Covid-19, pelas linguagem que variam entre estrutura, sistema e representação do pensamento, as
condições em que as interações pedagógicas se deram (se dão). A respeito, realizei quais desconsideram o fenômeno da variação, enquadrando-o como “vício” de
uma investigação sobre percepções de professores e de alunos acerca do uso de linguagem, o que caracteriza uma abordagem não científica dos fenômenos da
tecnologias no ensino de línguas, cujos resultados estão sob análise linguagem nesse tópico. Conferir o estudo de Vieira (2018), que elabora o conceito de
(MENDONÇA, 2020, mimeo). Paradigma Tradicional de Gramatização (PTG).

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objeto de ensino “colocação pronominal” restrito às normas pensar sobre a linguagem e escolher e avaliar os recursos verbais e
prescritas pela gramática tradicional. Sua relevância na perspectiva de outras linguagens para nossos projetos enunciativos.
de uma educação linguística emancipatória já tem sido muito A referenciação, tomada como processo complexo e que
questionada10, uma vez que as regras de uso desses pronomes transborda os limites das cadeias referenciais, se espalhando pelo
vigoravam há muitas décadas e, talvez, em Portugal, não no Brasil. texto e reverberando discursivamente, é central na construção de
Ou seja, não vale a pena investir tempo pedagógico nisso. Por outro sentidos, pois além de concretizar a ação de referir, emoldura
lado, o objeto de ensino “conectivos como fator de coesão”, formas de predicar, de dizer sobre o mundo, sobre os outros e sobre
envolvendo conjunções, preposições e outras expressões que si e, assim dizendo, de construir objetos de discurso. Para Mondada
desempenham essa função textual, se consolidou, ao longo dos e Dubois (2003), a referenciação é “uma construção de objetos
últimos 20 anos, como um tópico relevante para desenvolver as cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das
habilidades de leitura e de produção de textos, estando presentes modificações, nas ratificações de concepções individuais e públicas
em prescrições curriculares (BRASIL, 1997; 2006; 2018), em do mundo.” (p. 18).
currículos de redes de ensino, em livros didáticos, em estudos Nessa concepção, os referentes ajudam a circunscrever objetos
acadêmicos e na formação dos licenciandos em Letras. Mas há de discurso, uma vez que estes últimos não se confundem com a
objetos de ensino e fenômenos textual-discursivos que não têm sido realidade extralinguística, mas (re)constroem-se no processo de
colocados à prova quanto a sua pertinência no ensino de português, interação:
como apresentarei a seguir.
Fenômenos amplos que atravessam as práticas de linguagem O referente é, nessa perspectiva, um objeto de discurso, uma criação
costumam ser ignorados no trabalho pedagógico ou, pelo menos, que vai se reconfigurando não somente pelas pistas que as estruturas
não ser tomados como eixos estruturantes das práticas de AL, como sintático-semânticas e os conteúdos lexicais fornecem, mas também
por outros dados do entorno sociodiscursivo e cultural que vão
a referenciação e a modalização. Proponho que a referenciação, a
sendo mobilizados pelos participantes da enunciação.
modalização e a variação formem um tripé de fenômenos macro na
(CAVALCANTE; PINHEIRO; LINS; LIMA, 2010, p. 235, destaque
educação linguística crítica, estruturando a reflexão sobre
dos autores).
linguagem(ns) na escola, inclusive englobando os multi e novos
letramentos11. Minha proposta se assenta nas potentes interfaces que Sendo dinâmicos, quando os referentes são introduzidos na
tais processos estabelecem com a produção e negociação de memória discursiva, podem ser sempre modificados, desativados,
sentidos e, portanto, com nossas capacidades de ler, compreender, reativados, (re)construindo o sentido do texto, ao longo da
progressão referencial. Ou seja, os referentes se transformam no
10 Perini (1995) já afirmava: “A falta de adequação à realidade da língua aparece decorrer do texto, e ter consciência desse fato ajuda os aprendizes
quando a gramática descreve (ou ‘recomenda’) verdadeiras ficções linguísticas: a compreender o texto e suas entrelinhas, a monitorar sua
construções que caíram de moda há séculos, ou mesmo que jamais existiram. Um compreensão e a selecionar os recursos que mais se aproximem do
exemplo é a afirmação de que só se coloca um pronome clítico (oblíquo átono)
que pretendem enunciar.
entre um auxiliar e o verbo principal ligando-o ao auxiliar por ênclise, isto é, estou-
me divorciando e não estou me divorciando. Ora, sabemos que, apesar da opinião dos Para Cavalcante (2009), na esteira dos estudos de Mondada e
gramáticos, a segunda forma é a mais comum na língua atual.” (p. 22). Dubois (2003), os objetos de discurso são
11 Por limitações de espaço, não discutirei neste texto essa questão.

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entidades que construímos mentalmente quando enunciamos um texto que estabelecemos com nossos interlocutores. “O produtor organiza
num cenário discursivo específico. São realidades abstratas, portanto, seu texto em função de um querer dizer (KOCH, 2003) valendo-se
que podem ou não se manifestar no cotexto sob a forma de expressões de estratégias diversas que possam favorecer seu projeto de dizer.”
referenciais. Vistos sob tal perspectiva, os referentes, e o modo como se
(CORBARI, 2016, p. 121). Para Nascimento e Silva (2014), a
fabricam e como evoluem no discurso, não podem ser caracterizados
modalização também indica “ora como nosso enunciado deve ser
levando em conta somente as expressões referenciais, mas todo um
lido, ora como queremos que nosso interlocutor (re)aja. Essa já é uma
conjunto de indícios que o texto fornece e articula para que a coerência
seja reelaborada por cada leitor, à sua maneira. (p. 2635). razão suficiente, senão necessária, para que seja conteúdo das aulas
tanto de língua materna como estrangeira.” (p. 5).
No decurso de uma narrativa de suspense, “o estranho” se torna Conforme Santos e Castanheira (2017),
“o homem de mãos grandes”, “aquele ser assustador” e por fim “o
o conceito de modalização do discurso está relacionado, como
criminoso”; no transcorrer de um podcast literário, “a obra de estreia”,
ressalta Kebrat-Orecchioni (1997 [1980]), às marcas dadas pelo
se torna “O sol na cabeça” e, então, “a prosa ágil de Geovani Martins”.
sujeito da enunciação ao seu enunciado, ou seja, ao componente que
Uma dança referencial que conduz os leitores pelas ruas e vielas do permite avaliar o grau de adesão do enunciador ao que está sendo
enunciado. Mas, como adverte Cavalcante (2015, p. 379), “usar proferido por ele. A ideia de modalização vincula-se, dessa forma, à
processos referenciais não é a mesma coisa de empregar expressões aplicação dos conceitos de modalidade à enunciação e ao seu uso em
referenciais com a mera função de elos coesivos. É muito mais do que contextos reais de interação. (p. 223).
isso.”. Na reconstrução dos sentidos de um texto, uma rede de objetos
de discurso é posta em cena, de forma muito dinâmica, de tal forma Nascimento (2012) relembra nosso desafio: tomar tais
que o suspense, o mistério e o medo na tal narrativa de suspense se processos não como fixos, mas como processos que colaboram para
instauram e se reconfiguram conforme dançam os objetos de discurso, a produção de sentidos, de maneira que “a modalização deve ser
introduzidos e (re)categorizados, transmutando-se a todo momento trabalhada, mas não como um conteúdo específico de estrutura
na produção de sentidos operada pela interação promovida entre linguística, ou seja, como mais um conteúdo ‘gramatical’” (p. 223);
texto, leitor e enunciador. o estudo dos modalizadores deve focar o uso da linguagem, os
Na aprendizagem da escrita, o domínio dos processos de efeitos de sentido que esses elementos provocam nos enunciados e
referenciação é gradual. É comum que as crianças, no início da nos textos.
aquisição da escrita, introduzam abruptamente referentes no texto, Seguindo Bronckart (1999), Lima (2016) afirma que as
por formas pronominais, sem as pistas necessárias ao leitor para expressões modalizadoras podem ser dos seguintes tipos:
identificar do que se trata afinal. Trechos como “Aí ela resolveu a) deônticas: expressões ou formas verbais que se apoiam nos
deixar sua cidade. Saiu pela estrada...”, sem que o leitor saiba, valores e normas do mundo social para exprimir um julgamento
afinal de contas quem é “ela”, embora essa seja uma informação acerca de alguns aspectos do conteúdo temático (“deve ser”; “é
óbvia para quem escreveu. inadmissível”, etc);
A modalização, por sua vez, tempera o que dizemos – o b) lógicas/epistêmicas: são aquelas expressões nominais que,
conteúdo dos enunciados – e modula nossas apreciações acerca do baseadas em critérios do mundo objetivo, expõem um grau de
nosso discurso, do modo como o construímos e demarcam a relação

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certeza ou verdade em relação ao conteúdo temático (“é provável”; leitura/recepção, produção de textos, análise linguística – e é a
“certamente”, “pode ser” etc.); partir delas que teço algumas relações.
c) apreciativas: são expressões que se apoiam no mundo Em relação a REF, o trabalho com as classes que compõem os
subjetivo como fonte para realizar avaliações, julgamentos acerca sintagmas nominais – nomes, adjetivos, artigos, pronomes
do conteúdo temático (“felizmente”; “positivamente”, etc.); pessoais, pronomes demonstrativos, pronomes possessivos,
d) pragmáticas: incidem diretamente sobre o conteúdo numerais, etc. – pode ser integrado, ampliado e redimensionado
temático, reforçando aspectos de responsabilização dos agentes quando se pensa não só na organização das cadeias referenciais,
envolvidos no enunciado, atribuindo a estes razões, ou ainda, mas na construção mesma dos objetos de discurso, essas entidades
capacidades de ação. que, mais do que referir, revelam. Assim, para além de reconhecer
As expressões modalizadoras podem se configurar como de os itens de uma cadeia referencial, bem como a estratégia da elipse
diferentes naturezas, pois é o contexto de produção que, de fato, e os processos de anáfora e catáfora, é importante refletir sobre os
determinará a natureza da modalização. Além disso, “as efeitos de sentido que certas escolhas léxico-gramaticais trazem.
modalidades podem ser expressas por meios lexicais ou por meios Vejamos o exemplo seguir12, em que o referente “casa” é
gramaticais. Todas as palavras lexicais podem manifestar introduzido e recategorizado inúmeras vezes. O artigo busca
modalidades.” (FIORIN, 2000, p. 180). Dessa forma, a modalização, defender que a pandemia diluiu as fronteiras do que consideramos
ao assumir configurações as mais variadas, se apresenta como um “casa”, o que leva a autora a discutir esse conceito:
fenômeno a ser desvendado e compreendido, nas e para as práticas
de leitura e de produção. Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos
O objetivo final é que tanto a modalização quanto a indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras
referenciação entrem no cotidiano das aulas de língua, como unidades familiares, sendo que também aí há diferentes
entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que
fenômenos guarda-chuva, modo que possa ser incorporado ao
cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e
catálogo de saberes sobre a linguagem e de habilidades que todos
experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza.
têm direito de elaborar para si e para sua comunidade linguística e
Ou, no caso da minoria branca e dominante - essa que chama sua
de mobilizar sempre que desejem. experiência de civilização e equivocadamente a considera universal
ou até mesmo superior -, romper com a natureza.
5. Objetos de ensino: tecendo novas conexões sistêmicas, textuais Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as
e discursivas pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é
necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades
Escolhi esses dois macro processos linguísticos, a gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família
referenciação (REF) e a modalização (MOD) para estabelecer e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do
próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios.
relações pedagógicas e, arrisco, curriculares, entre objetivos de
Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a
ensino da área de Linguagens, objetos de ensino – os emergentes e
lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.
os consolidados na tradição escolar - e práticas de linguagem. Tanto
REF quanto MOD estão imbricadas nas práticas de linguagem – Artigo de opinião de Eliane Brum, “Quando o vírus nos trancou em casa, as telas
12

nos deixaram sem casa”, publicado no El País em 23/12/2020.

233 234
Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas modalizadores e também os referentes, quando manifestos, se
construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de concretizam em itens lexicais pertencentes a certas classes
tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a gramaticais. Essas redes entre objetos de ensino é que podem
ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o
ajudar a desenvolver habilidades complexas, tal como elas têm sido
lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo.
delineadas em documentos curriculares.
É a ideia da casa como refúgio.
Na figura a seguir, busco apresentar algumas dessas interfaces
entre REF, MOD e objetos de ensino emergentes e consolidados, no
No trecho destacado, casa, mais que um lugar geograficamente
bojo das práticas de linguagem da leitura/recepção, da produção e
especificado, é um conceito, delineado de múltiplas maneiras:
da análise linguística.
individual, coletiva, inventada, que está implicada em “formas de
tecer relação com a natureza”, “limite simbólico entre a família e o
Figura 1 – Interfaces entre referenciação, modalização e eixos e objetos de
mundo”, “mansões” e “palácios”, implícito em “lugares aos quais ensino
jamais teríamos [acesso] em outras profissões”. No
desenvolvimento do texto, a autora se vale da desconstrução do
conceito de casa, para reconstruí-lo em outras bases, de modo a
concluir, mais adiante no seu artigo, que “Quando a casa deixa de
representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela
tenha, há um distúrbio.”. Esse “conjunto de significados” está
espalhado nas diversas menções a “casa”, na forma de sintagmas
nominais, adjetivados ou não (“casa”, mansões”, “palácios”,
refúgio”, “as [casas] invisíveis” etc.; e também em sintagmas
nominais acrescidos de orações adjetivas (“o lugar onde cada um
faz seu espaço próprio”, “o lugar que cada um reserva para si ou
para a família ou para o grupo”). Vale destacar que a série de
expressões além de ser anafórica, não constitui uma série
sinonímica (aliás, um tópico abordado, ora de forma
descontextualizada, com palavras isoladas; ora em atividades de Fonte: elaboração própria.
mera substituição de termos que seriam semanticamente
equivalentes); na verdade, contribui para a recategorização do O trecho a seguir apresenta alguns modalizadores que
referente inicial – casa – de modo a construir o percurso merecem ser desvelados, na busca pela formação de um leitor
argumentativo do artigo de opinião. crítico, que melhor compreenda os implícitos que marcam essa fala
Assim, objetos de ensino comumente relacionados com do presidente brasileiro em 2021, transcrita e reproduzida nos
dimensões sistêmicas, como as classes gramaticais, podem estar jornais. O contexto é o da pandemia do Covid-19, quando faltou
associados a objetos de ensino da dimensão textual-discursiva,
como os processos de MOD e os de REF. Isso porque boa parte dos

235 236
oxigênio hospitalar para os doentes, causando a morte de muitos tom dramático à fala e supostamente pomposo, que termina por
deles e a exaustão dos profissionais de saúde13. disfarçar o teor evasivo das declarações. A esse respeito, os
processos de REF também colaboram para essa fuga da
“Problemas. A gente está sempre fazendo o que tem que fazer. Problema em responsabilidade, com o uso de hiperônimos “recursos” e “meios”
Manaus. Terrível, o problema em Manaus. Agora, agora, nós fizemos a nossa sem qualquer dado específico que viesse a esclarecer o público, tal
parte. Recursos, meios.” como esperado de um pronunciamento oficial desse político num
contexto trágico como o mencionado. A estratégia da
O sintagma nominal isolado introduz o tópico – “Problemas”, desinformação predomina, de modo que os leitores permanecem
sem qualificação, de forma genérica e abrangente. Depois dele, a sem saber quais meios foram providenciados, com quais recursos,
afirmação sobre a eficiência e responsabilidade do governo federal quanto investimento foi feito, sob qual programação, etc.
em todos os tipos de problemas, já que a menção anterior era geral.
O próximo sintagma nominal isolado redireciona o tópico, 6. Considerações ao final: agenda coletiva
focalizando o caso da cidade de Manaus (AM), que é repetido na
frase seguinte. O adjetivo “terrível” aponta para um suposto Nos exemplos comentados, percebemos o quanto os processos
reconhecimento da gravidade da situação. No entanto, na de MOD e de REF impactam os efeitos de sentido que se pode
sequência, o marcador conversacional “agora”, repetido, tem valor produzir a partir dos enunciados. Ficam evidentes também, sob a
de oposição – “apesar do problema, nós fizemos a nossa parte”. De lente da REF e da MOD, as conexões entre objetos de ensino
alguma maneira, o marcador inicia o movimento de relacionados com diferentes práticas de linguagem –
desresponsabilização em relação às medidas tomadas ou à falta leitura/recepção, produção e análise linguística – podendo
delas, exatamente o contrário do que se espera do representante contribuir para a ampliação de habilidades relevantes. Para a
máximo do país, especialmente na gestão de uma crise sanitária e formação do leitor crítico em idade escolar, REF e MOD devem ser
humanitária dessa importância. Para essa leitura crítica, de uma tomados como princípios organizadores das práticas de
postura defensiva e pouco esclarecedora por parte do presidente, é linguagem, os quais interceptam diversos objetos de ensino,
preciso ainda estabelecer relação com informações sobre as ações e consolidados e emergentes. Mas para que isso passe a integrar as
as inações do governo federal para mitigar os efeitos da aulas, é necessário operar modificações nos currículos prescritos.
pandemia14. As frases nominais, por sua vez, imprimem um certo Qualquer proposta de reorganização curricular no eixo dos
conhecimentos linguísticos precisa ser adensada, debatida e
13'Terrível, o problema em Manaus. Agora, nós fizemos nossa parte', diz Bolsonaro problematizada, para que chegue a ser sistematizada e então
sobre crise na saúde. G1, 15/01/2021. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/
publicizada. Para além das gramáticas tradicionais, sejam elas as
01/15/terrivel-o-problema-em-manaus-agora-agora-nos-fizemos-nossa-parte-diz-bolsonaro-sobre-
caos-nos-hospitais-do-am.ghtml. Acesso em: 15 jan. 2021. de estudo ou aquelas usadas como material didático nas escolas, já
14 Sugerimos consultar fontes que noticiaram algumas dessas ações, tais como há várias publicações acadêmicas que versam sobre ensino de
minimizar a gravidade do problema, não adotar medidas simples de proteção, gramática e/ou de conhecimentos linguísticos. No entanto, tais
como o uso da máscara, estimular aglomerações e delas participar, demitir referências são construídas primordialmente do ponto de vista dos
Ministros da Saúde que buscaram fazer algum trabalho defensável, se omitir de
elaborar um plano nacional de enfrentamento à pandemia, entre outros episódios
estudos linguísticos. Resta ainda uma grande demanda: a
lamentáveis e, julgamos, criminosos. elaboração de manuais pedagógicos de referência para o trabalho com

237 238
práticas de análise linguística na escola, que façam uma interface Referências
robusta entre a descrição sistemática de aspectos do funcionamento
linguístico-discursivo das práticas de linguagem e as necessidades BAKHTIN, M. [1940]. Questões de estilística e ensino da língua.
de aprendizagem dos alunos para produzir, compreender e Tradução, posfácio e notas de Sheila Grilo e Ekaterina Vólkova
analisar textos. Obras com tal perfil podem auxiliar o trabalho de Américo. São Paulo: Editora 34, 2003.
planejamento pedagógico dos docentes, a implementação de BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: SEB/MEC,
propostas curriculares e a criação de materiais didáticos. E esta é 2018.
uma tarefa coletiva de linguistas aplicados, linguistas, elaboradores BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília, DF:
de materiais didáticos e também dos professores que se dispuserem SEB/MEC, 2006.
a isso e que tiverem as condições de trabalho propícias a tal tarefa. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: 5ª a 8ª série: língua
Dadas essas condições, a seleção de princípios organizadores, portuguesa. Brasília, DF: SEB/MEC, 1997.
de objetos de ensino e de encaminhamentos metodológicos mais BRASIL. Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
gerais refratariam o caleidoscópio de conhecimentos que compõe Senado Federal, 1988.
as situações de aprendizagem no ensino escolar de língua materna. BRASIL/MEC. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de
E isso ganharia um sentido mais amplo e potente caso fosse Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: 20 de dezembro
considerado o caráter heterogêneo dos conhecimentos escolares, de 1996.
que funde saberes das disciplinas/áreas de referência e saberes BRONCKART, J. P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por
pedagógicos, numa conta em que “um mais um é sempre mais que um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
dois”. Essa perspectiva das especificidades dos saberes escolares é BUNZEN, C. Dinâmicas discursivas na aula de português: os usos
algo que a Linguística Aplicada com foco no ensino-aprendizagem do livro didático e projetos didáticos autorais. 2009. 233f. Tese
de língua e estudos em educação têm tomado como fértil vertente (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
de pesquisa. Estudos da Linguagem, Campinas, SP, 2009.
Assim, proponho que a investigação das práticas escolares de CAVALCANTE, M. M. Referenciação: uma entrevista com Mônica
ensino de língua seja feita de um ponto de vista aplicado de modo Magalhães Cavalcante. ReVEL, vol. 13, n. 25, 2015, p. 367-380.
que as categorias de análise possam emergir de dados empíricos CAVALCANTE, M. M. Referenciação e uso. Texto apresentado no
ou, ao menos, ser por eles reconfigurada. Para isso, é preciso que se Congresso Internacional da ABRALIN, 2009.
realize nas práticas escolares e (sobre) com as docentes e os CAVALCANTE, M. M.; PINHEIRO, C. L.; LINS, M. da P. P.; LIMA,
docentes. Essas pesquisas de campo ajudariam, ao fim, a compor G. Dimensões textuais nas perspectivas sociocognitiva e
uma massa de dados para alimentar a produção desses manuais de interacional. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q. (Orgs.) Linguística de
referência e, supomos, impactar o que se ensina (objetos de ensino); texto e Análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São
por que se ensina (objetivos de aprendizagem); como se ensina Paulo: Cortez, 2010, p. 225-261.
(percursos metodológicos) e quando se ensina (progressão CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
curricular) em termos da reflexão sobre a linguagem, em termos de Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
práticas de análise linguística.

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