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João e Mariaescaparam por pouco de serem comidos por w
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uma bruxa canibal - mas muitos outros europeus não tiveram CJ)
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a mesma sorte. O canibalismo faz parte da história humana,
e assolou o continente em épocas de grandes fomes.

séculos - e milênios - passados


era extrema e não são raros os
registros de gente que partiu
para o canibalismo para so-
breviver. Arqueólogos desco-
briram que nossos ancestrais
pré-históricos, por exemplo,
bem que curtiam comer uns
aos outros. Foram encontrados
ossos humanos com marcas
de dentes, em padrões muito
parecidos com os achados em
Quem diz quegos- ossos de animais - sinal de que
taria de ter uma vida de conto algum ancestral nosso andava
de fada não sabe do que está roendo restos de carne humana.
falando. O mundo dos livros Também foi encontrado sangue
infantis é cheio de violência, humano em panelas pré-histó-
crueldade e - principalmente - ricas e nas fezes fossilizadas de o canibalismo acabou saindo
pobreza. Peguemos João e Maria, nossos ancestrais. O hábito de da lista de tabus. O historiador
por exemplo. A história narra a comer pessoas era tão comum Jay Rubinstein contaCDque, nos
vida de uma família que é tão, que há até marcas genéticas de séculos 1.1. e 1.2, havia feiras de
mas tão pobre que a madrasta mecanismos de defesa no nosso carne humana na Inglaterra e
(em versões mais antigas da DNA, desenvolvidos especifi- na França - e que há relatos
história, a própria mãe) resolve camente para proteger contra de pais comendo seus bebês
abandonar os filhos na floresta doenças que surgem quando em momentos de extrema po-
porque os pais não conseguem se come carne humana. breza. Outra grande época de
mais alimentá-los, As crianças Na época em que os contos carnificina foram as Cruzadas.
vagam pela floresta escura até de fadas foram escritos, o hábito Há uma história famosa, do rei
encontrar a casa de uma bruxa não estava extinto. A humani- inglês Ricardo Coração de Leão,
que decide comê-ias. Os irmãos dade nunca deixou de recorrer líder da Terceira Cruzada, que
Grimm, no prefácio do seu livro ao canibalismo em épocas de ficou doente ao chegar à Terra
de historinhas, contam que João fome severa - e fome era carne Sagrada, e ficou implorando
e Maria não era uma peça de de vaca nos séculos passados. por carne de porco. Na falta de
ficção - é uma história baseada .Na Prússia, a escassez foi tanta suínos, seus empregados aca-
na realidade, de tão comuns que entre 1.708 e 1.71.1. que 41.% da baram assando um infiel - que
eram os abandonos de crianças população (ou 250 mil pessoas) o monarca achou uma delícia.
na floresta no século 1.9. morreu. Duas grandes fomes "O quê? Carne de sarraceno é
Mesmo a bruxa comedora também atropelaram a França boa assim?", disse0. A história
de criancinhas não era uma entre 1.693 e 1.71.0, matando mais humana é mais indigesta do
licença poética. A fome nos de 2 milhões de pessoas. Assim, que parece.

(!) Cannibals and Crusaders, Jay Rubinstein


26 SUPER NOVEMBRO 2016 ® Der Mittelenglischer Versroman über Richard Lowenherz
Chapeuzinho com
sede de sangue
CONTOS ORIGINAIS .
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1 "".'

A versão original de ela está se deliciando


Chapeuzinho Vermelho com a própria avó.
é do século 17 e costu- Então o lobo convida
mava ser contada entre a menina a entrar na
camponeses franceses. cama com ele, só que
Envolve canibalismo, sem roupas. A menina
um striptease e uma obedece, e vai jogando
proposta de golden lentamente todas as
shower. O começo peças de roupa - o
é igual à historinha avental, o vestido, as
que você conhece: meias, os sapatos - na
Chapeuzinho Vermelho lareira acesa. Só então
é mandada para a casa ela percebe a roubada
da vovozinha doente em que se meteu.
no meio da floresta, Desesperada, tenta
mas o lobo chega antes sair da cama, mas o
dela. Nessa versão, o lobo mau não deixa.
lobo mau não só mata Então ela diz que
a vó, como cozinha precisa fazer xixi, mas
sua carne e separa seu o vilão não se abala:
sangue em um jarro "faça aqui na cama,
na despensa. Quando minha filha". É apenas
a neta chega, o mons- quando Chapeuzinho
tro - disfarçado de dá a entender que
velhinha - diz para a precisava fazer mais
menina se servir da re- do que xixi que o
feição. Chapeuzinho se lobo permite que ela
esbalda: come e bebe saia. A menina então
como se não houvesse sai da casa da avó e
amanhã, até um gato foge para sempre,
falante revelar que salvando sua ptle.

" Era uma vez uma criança tão teimosa que


nunca fazia o que a mãe pedia. Por isso,
Deus não cuidou dela direito e fez com
que adoecesse. Nenhum médico conseguiu
ajudá-Ia e em pouco tempo ela estava em
seu leito de morte. Depois de ser enterrado
e coberto de terra, um braço da criança de
repente rompeu do chão e se esticou ao alto.
E toda vez que enterravam o braço de volta
e o cobriam de terra, o membro teimoso se
esticava para o alto de novo. Então a pró-
pria mãe teve de ir à sepultura e bater com
o pauzinho no braço da criança. Assim que
ela fez isso, o braço se retraiu e a criança
encontrou descanso debaixo da terra. "

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UM MUNDO CHEIO ,
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DE MADRASTAS MAS
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cn A mortalidade materna na hora do parto era recorde nos séculos passados. Isso fez com
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que milhões de órfãos acabassem criados por mulheres que não eram suas mães. Eram as
madrastas, que saíram da vida real para se tornar as vilãs mais comuns das historinhas.

tão pequeno. Isso torna os nas-


cimentos humanos muito mais
arriscados do que os do resto do
reino animal. Antes da cesárea deixasse para trás os filhos mais
e dos procedimentos cirúrgi- velhos para o viúvo cuidar. Es-
cos, as taxas de mortalidade se viúvo, ao se casar de novo,
das mulheres na hora do parto trazia para dentro de casa uma
Cinderela teve eram altíssimas. Na Inglaterra madrasta, que se via obrigada a
uma, bem cruel. Branca de Neve no século 17, a cada mil par- criar os herdeiros do primeiro
também. Assim como João e Ma- tos, 23 mães morriam dando à casamento. Na França do sécu-
ria. Poucos personagens são tão luzo (hoje, a OMS recomenda lo 17, quase 80% dos homens
frequentes nos contos quanto as que esse número não passe de se casavam pela segunda veze.
madrastas más. Elas são as vilãs 0,2). Parir era tão perigoso que Essas segundas esposas muitas
favoritas dos contos infantis - a expectativa de vida de uma vezes favoreciam seus próprios
mas não são apenas personagens mulher francesa do século 19 filhos em vez dos enteados. Em
da ficção. Nos séculos passados, era de 25 anos. No Reino Unido, épocas em que os recursos eram
boa parte das crianças foi criada nos séculos 16 e 17, a taxa de escassos - e que havia apenas
por mulheres que não eram as mortalidade das esposas nos um bife para alimentar toda a
suas mães. E que não necessa- primeiros cinco anos do casa- família ou apenas um príncipe
riamente se preocupavam com mento era 70% maior do que para virar genro -, é natural que
seu bem-estar. A culpa, aqui, é a dos maridose, - um número os filhos biológicos levassem a
da nossa biologia. que só pode ser explicado por melhor. Claro que nem todas as
Tudo começa com as nossas mortes na hora do parto. madrastas da história são más. O
cabeças. O ser humano é um É a mortalidade materna que que os contos de fadas fizeram
animal especialmente cabeçudo. explica a ocorrência das madras- foi exagerar um comportamento
Nossos cérebros são responsáveis tas más nos contos de fadas. comum: a predileção que as mães
por 2,5% do nosso peso - uma Quando uma mulher morria sentiam por seus próprios filhos
proporção muito maior do que em dando à luz, era comum que em relação aos enteados.
outras espécies, como cachorros
(0,8% do peso), gatos (1%) ou ele-
fantes (0,2%), por exemplo. Pior: o
ser humano é um animal especial- CONTOS ORIGINAIS 2

mente cabeçudo que anda sobre


duas patas. Para que consigamos
nos equilibrar eretos, a evolução A Pequena Sereia e o suicídio A sereiazinha é uma das
teve que modificar nosso quadril, filhas do rei do mar, que se apaixona por um príncipe terrestre.
que se tomou muito mais estreito Para ir atrás de seu amor, a Pequena Sereia faz um acordo com
do que o dos quadrúpedes. Isso a bruxa dos oceanos: troca a sua bela voz por um par de pernas.
faz de nós animais cabeçudos de Assim, a recém-humana se aproxima do amado e passa meses
quadris estreitos - uma combi- tentando fazer com que ele se apaixone por ela - sem sucesso. O
nação explosiva para mulheres príncipe resolve casar com outra e a Pequena Sereia é convidada
que vão dar à luz. para o casamento, obrigada a assistir à felicidade alheia. Na
É difícil espremer uma cabeça noite de núpcias, desesperada, ela tenta matar o amado, mas
tão grande por um quadrilzinho desiste. Acaba se jogando no mar e virando espuma.

<D@ An Attempt to Estimate the True Rate of Maternal Mortality, $ixteenth to Eighteenth Centuries, Dobbie Willmott
® Fairies and hard facts: the reality offolktales, Eugen Weber
Era uma vez um casal que
queria muito ter filhos. Quan-
do eles finalmente consegui-
ram gerar um menino, a mãe
morreu. Logo o pai se casou
novamente e teve uma filha
com a nova mulher, que odia-
va o enteado. Um belo dia,
quando o menininho voltou
da escola, a madrasta pergun-
tou se ele não queria uma ma-
çã, e o mandou buscar a fruta
de dentro de um pesado baú.
O menino se ajoelhou, abriu
o baú e - pimba! - a madrasta
fechou a tampa sobre sua
cabeça, que saiu rolando pela
casa. Desesperada, a mulher
botou o corpinho do menino
sobre uma cadeira, equilibrou
a cabeça por cima e enrolou
um cachecol ao redor do
pescoço para disfarçar. Então
ela chamou a filha. "Marlene,
seu irmão não quer dividir
a maçã com você. Dê-lhe
um tapa na orelha", disse. A
menina obedeceu, e a cabeci-
nha do irmão rolou pelo chão.
"Marlene, o que foi que você
fez?", gritou a mulher. Então
a madrasta picou o corpo do
filho e fez um cozida com
ele. Quando o pai chegou, ela
serviu o ensopado. "Mulher,
a comida está deliciosa. Não
comam nada, é tudo meu",
disse o pai, enquanto chupava
os ossinhos do filho. Marlene
então coletou os ossos do ir-
mão e os enterrou no túmulo
da mãe, debaixo de um pé de
zimbro. De dentro da árvore
saiu um passarinho mági-
co, que começou a cantar:
"Minha mãe me matou, meu
pai me comeu, piu piu que
lindo passarinho eu sou". O
passarinho então vagou pela
terra até voltar para a casa do
pai carregando uma pesada
pedra de moinho, que ele
derrubou sobre a madrasta.
A vilã morreu esmagada, e os
sobreviventes viveram felizes
para sempre.

NOVEMBRO 2016 SUPER 29


Bela
Adormeci-
da, violada
no sono
CONTOS ORIGINAIS

Uma das versões mais


antigas (e assustadoras)
de A Bela Adormecida foi
anotada no Pentamerone, do
italiano Giambattista BasiLe,
no sécuLo 17. NeLa, a heroína,
chamada Tália, espeta o dedo
em uma farpa de linho e
fica aparentemente morta,
deitada num caixão. É quando
aparece um príncipe que se
encanta com sua beLeza. Sem
hesitar, eLeresoLve estuprá-La
ainda dormindo e voLtar
para casa em seguida. Tália
então permanece desacor-
dada - mas agora grávida de
gêmeos. Quando os bebês
nascem, procuram o seio da
mãe para se alimentar, mas
acabam sugando seu dedo
sem querer, o que tira a farpa
do Lugar e faz com que a BeLa
Adormecida finaLmente des-
perte. Tália acorda confusa,
procurando o pai de seus
fiLhos e vai até o reino vizinho
encontrá-Lo. Acontece que
o príncipe estuprador já era
casado e, quando sua esposa
descobre que eLeteve gêmeos
com outra, resoLve matar as
crianças e servi-Las para o
príncipe comer. Felizmente, o
cozinheiro encarregado do in-
fanticídio se ~ega a matar os
gêmeos e os esconde em casa.
Então a rainha traída resoLve
se vingar de Tália e manda
montar uma enorme fogueira
para queimá-La viva. Tália está
quase sendo jogada no fogo
quando o príncipe interrompe
a vingança. ELeentão coLoca
mais um crime em sua ficha.
ALém de estuprador, vira
homicida: joga a esposa no
fogo e finaLmente se casa com
a ex-BeLa Adormecida.

30 SUPER NOVEMBRO 2016


3 18, a transferência do dote

FERAS DA correspondia ao maior afluxo


de dinheiro que um homem
recebia em toda sua vidao.
Isso tornava as mulheres

VIDA REAL reféns dos interesses alheios.


Para piorar, uma vez que
se casavam com seus noivos
arranjados, elas se tornavam
posse dos maridos. A mis-
o destino de Bela, de A Bela e a Fera, era o destino de todas
as mulheres. Obrigadas a se casar com desconhecidos em
são das esposas era servir e
matrimônios arranjados, muitas acabavam comprometi- obedecer aos cônjuges. Em
das com "monstros". Eis aqui suas histórias. algumas regiões da Europa,
as mulheres perdiam inclu-
sive os direitos de possuir
terras ou de fazer dívidas ao
se casar. Aos homens eram
atribuídos os direitos de
manter a mulher sob controle
- mesmo que à força. "Um
Pouca gente cão, uma nogueira e uma
percebe, mas ser obrigado a mulher - quanto mais se bate,
passar o resto da vida com melhores eles ficam", dizia
uma fera monstruosa era um ditado inglês do século
um risco real na Europa dos 16®. Bater nas esposas não
séculos passados. Assim co- era crime, e até os séculos 8
mo Bela, de A Bela e a Fera, e 9 d.e. os maridos tinham
muitas mulheres se viam o direito de matar as suas
forçadas a se casar com se- Para os reis, era muito mais esposas em casos de desa-
res terríveis e assustadores: prático presentear o inimigo venças. Claro que nem todos
maridos arranjados. Durante com uma filha em vez de os maridos eram cruéis e
a maior parte da existên- entrar em guerra com ele. violentos - mas se dar bem
cia humana, os casamen- Mas as mulheres mais po- na roleta dos casamentos era
tos foram organizados por bres também não escapavam puramente uma questão de
conveniência. Juntavam-se . dos casamentos forçados. sorte. O medo de se casar
duas pessoas por interes- Nas camadas populares, elas com "feras" era presente na
ses econômicos, políticos e eram trocadas como merca- vida de todas as moças - das
sociais - e não por amor ou doria, já que costumavam camponesas às princesas. A
afinidade. Mulheres nobres vir acompanhadas do dote Bela e a Fera é um lembrete
eram cedidas a partir dos - um montante de dinheiro dessa realidade. Na história,
12 anos de idade em troca que a família da noiva era o monstro aprisiona e se
de alianças políticas entre obrigada a pagar à do noivo. apaixona pela mocinha, que
reinos vizinhos, por exemplo. Da Idade Média ao século se recusa a casar com ele,
porque o acha repugnante.
Ao final de tudo, quando a
Fera está à beira da morte,
CONTOS ORIGINAIS 4 e se demonstra bondosa, a
protagonista se pergunta:
"Por que me recusei a casar
Rapunzel e as noites calientes Na versão originaL com ele? Eu seria mais feliz
anotada peLos irmãos Grimm, no sécuLo 19, RapunzeL é com o monstro do que as
presa ainda criança no aLto de uma torre por uma bruxa minhas irmãs são com seus
terrível. Quando eLa se torna adoLescente, começa a rece- maridos. Nem inteligência,
ber a visita de um príncipe vizinho. Tantas foram as visitas nem beleza fazem uma mu-
que, misteriosamente, as roupas de RapunzeL começaram lher feliz, mas virtude, doçura
a ficar apertadas na cintura. Sim, nas primeiras versões da e complacência, e a Fera tem
história, a mocinha engravida do príncipe encantado e dá todas essas qualidades". Me-
à Luz gêmeos pouco tempo depois. nos mau, né, Bela?

Q) ® Marrioge, Q History: How Lave Conquered Marrioge, Stephanie Coontz NOVEMBRO 2016 SUPER 31
" Certa vez, os fi-
lhos viram o pai
matando um por-
co. Quando eles
foram brincar à
tarde, uma crian-
ça disse à outra:
'Agora você é o
porquinho e eu
sou o açouguei-
ro.' Assim, ela
pegou uma faca e
a enfiou na gar-
ganta do irmão-
zinho. A mãe, que
estava no andar
de cima e dava
banho ao caçula,
correu para baixo
ao ouvir o grito
do filho. Quando
viu o que tinha
acontecido,
puxou a faca da
garganta do filho
e, no meio de sua
raiva, a enfiou no
coração da outra
criança, a que era
antes o açouguei-
ro. Então correu
para cima para
ver o bebê na
banheira, mas ele
tinha se.afoga-
do. Ela entrou
em desespero,
se encheu de
medo de jamais
se consolar da
tristeza e acabou
se enforcando.
O pai, quando
chegou do campo
e viu tudo o que
havia acontecido,
morreu logo em
seguida."

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z 45 mil pessoase foram tortura-
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O PEQUENO PODER
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ID das e mortas durante o período
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conhecido como "caçaàs bruxas"
u na Europa, entre os séculos 15
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'o e 17. Mas há muitas diferenças

DAS BRUXAS
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:J: entre as feiticeiras dos contos
cn infantis e as de carne e osso.
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« Nos contos, as bruxas são
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mulheres superpoderosas que
> conseguem praticar os feitiços
cn Elas estavam em toda parte. As feiticeiras da vida real
-c mais elaborados para perse-
eram senhoras, idosas e sozinhas, que foram queimadas
vivas por crimes que jamais poderiam cometer. guir os mocinhos - é só se
lembrar como a madrasta da
Branca de Neve se transformou
em uma velhinha inofensiva
para oferecer uma maçã enve-
nenada à princesa. Mas, na vida
real, apenas os indivíduos mais
Era uma vez, fragilizados e esquecidos pela
em um reino distante, um rei sociedade eram condenados
que estava prometido para a por bruxaria. 75% das pessoas
princesa do reinado vizinho. Eles mandadas para a fogueira eram
se casariam em breve e a prin- mulheres, e a maior parte delas
cesa viria de barco encontrá-lo. tinha mais de 50 anos (uma
Mas, todas as vezes em que ela idade muito avançada para os
tentava embarcar, uma enorme séculos passadosje, Na Ingla-
tempestade se formava no mar e terra, 40% das bruxas eram
a noiva era impedida de se juntar rei era Jaime 6°, da Escócia, e viúvas. Elas costumavam ser
a seu amor. O rei começou a sua amada, Ana da Dinamarca. acusadas por feitiçaria graças
suspeitar de bruxaria - alguém Eles realmente se casaram em a boatos começados entre vi-
estava fazendo magia negra pa- 1589 na Noruega, depois de o zinhos. Qualquer coincidência
ra impedir seu casámento, só monarca ter mandado matar infeliz era suficiente para con-
podia. Logo, ele descobriu que dezenas de bruxas que supos- denar alguém por magia negra.
um grupo de bruxas andava se tamente estavam atrapalhando Se duas vizinhas discutissem
reunindo de noite para invocar seu casamento. Bruxas - ao na feira, por exemplo, e ofílho
o diabo e destruir o matrimônio contrário de feijões mágicos de uma delas amanhecesse
real. Furioso, mandou matar e casas de pão de ló - de fato doente no dia seguinte, pronto:
70 feiticeiras de uma só vez e existiram. Eram pessoas com a outra era acusada de bruxa-
conseguiu, finalmente, se casar. nome, família e endereço, e que ria. Para piorar, as acusadas
A história acima seria apenas bizarramente foram acusadas eram torturadas para confessar
mais um conto de fada - se não (em processos jurídicos reais) seus "crimes".Tinham os dedos
tivesse acontecido de verdade. de voar sobre vassouras e se esmagados, os membros es-
Ela ocorreu em 1591, o poderoso encontrar com o diabo. Mais de traçalhados, os olhos furados,
as orelhas arrancadas. Eram
impedidas de dormir e jogava-
se ácido sobre elas. Às vezes,
CONTOS ORIGINAIS <, eram afogadas ou penduradas
pelos braços amarrados atrás
das costas. Ao final de alguns
Branca de Neve, Bela Adormecida e o estupro dias de tortura, quase todas as
Você já parou para pensar que desagradável seria se você mulheres confessavam as coisas
estivesse dormindo e um estranho começasse a beijar sua boca? mais inacreditáveis: de fazer
Mais ainda: se você fosse obrigado a se casar com essa pessoa sexo com o diabo a impedir o
depois? Pois um beijo não consensual é o destino (e ironicamente casamento do rei. Nos livros de
o final feliz) para Branca de Neve e Bela Adormecida. Ambas são historinha, bruxas provocam
salvas por príncipes que não as conhecem e resolvem beijá-Ias. medo e raiva. Mas, na vida real,
Hoje, de acordo com a lei brasileira, um beijo desses poderia ser tudo que conseguem despertar
enquadrado como crime de violência sexual. é pena. e
<D ® The Witch-Hunt in farly Modem Europe, Brian Levack
Agradecimentos Breshow Fantasias e Melissa NOVEMBRO 2016 SUPER 33

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