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Marcelo Ribeiro dos Santos

TANDIR E MOGUL
Vol. 1: O Despertar dos Drachs

Nº 3: Gênesis.

Seriado Eletrônico Mensal de Realismo Fantástico


Esta é uma obra real. Qualquer semelhança com
seres ou acontecimentos imaginários é mera
coincidência.

ISSN 2595-9891

Expediente:

Criação: Marcelo Ribeiro dos Santos

Editor de Arte: Brian S. R. Santos

Revisão: Tânia V. Barela

Contato Comercial: Eric S. R. Santos

Editora: Naos Likaion (CNPJ: 32.216.134/0001-30)

Rua Arthur Nazareno Pereira Villagelin, 125 – Barão Geraldo (CEP:13085-638) Campinas/SP

fone: (19)997231562 mail: naoslikaion@gmail.com

Campinas

05/2020

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Capítulo 3: Gênesis

“Temos trabalho a fazer, Grahoul. Tempo de voar.” Concordo com um


aceno de minhas orelhas. Saio da banheira, um pouco a contragosto, mas
bastante revigorado. Enxugo-me com a toalha felpuda, observando o belo
corpo de Nadja. Vamos para o quarto principal da câmara e vestimos nossas
roupas em silêncio. Abro a porta da câmara e saio. Nadja sai atrás de mim e
tranca a porta, retirando a chave. Despeço-me com tristeza da câmara TD33.
Descemos a escada em caracol, até o salão principal. Vejo Dragsil sentada
em um dos sofás, recostada a um almofadão, com Mogul a seu lado, deitado
com a cabeça em seu colo. Mogul apenas se dá ao trabalho de abrir uma das
pálpebras e ouço ressoar em minha mente: “Conversa demorada.” Não
consigo controlar uma risada. Dou-lhe um aceno e vou até a câmara sanitária,
no fundo do salão, me aliviar. É uma câmara impecavelmente limpa. O fogo
dos Dragões tem lá suas propriedades antissépticas. Para que esta descrição
não lhes conste como supérflua, é preciso explicar que Grahouls podem
conter suas excreções, sem sofrimento ou danos à saúde, por longos
períodos, coisa muito útil em voos longos. Nosso voo seria longo. Uma
câmara sanitária limpa e agradável é sempre um conforto. Satisfaço minhas
necessidades fisiológicas e me lavo na água tépida do lavatório. Enxugo-me
e escovo cuidadosamente meus pelos em frente ao espelho de ardósia negra.
Meu reflexo noturno me observa do fundo das trevas de pedra. Saio da
câmara e vou até a mesa, onde Nadja devora uma refeição leve. Dragsil
enrola nos dedos os cachos negros e sedosos de Mogul. Peço um chá e um
bolo de kengy que devoro com certa pressa, pois Nadja já termina sua
refeição e estamos todos ansiosos para partir. Quase todos... Mogul pisca
preguiçoso e resmunga quando Dragsil se levanta, acompanhando Nadja,
que se dirige ao balcão. Ela pede seus pertences a Oicon, que os retira de um
compartimento. Nadja pega seu reservatório de skrill e verte o creme opalino

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em um frasco que Oicon lhe dá. Passo pelo cortinado e pego meu próprio
reservatório na prateleira. Volto ao balcão e também pago Oicon, vertendo
skrill em um frasco do mesmo tamanho que o de Nadja. Nossa estadia está
acertada, incluindo os mantimentos, bolos de kengy e Goflin defumado, que
o corpulento Daimon coloca sobre o balcão para levarmos em nossa jornada.
Vamos todos até o saguão e pego nossos pertences na prateleira. Afivelo meu
cinto com as armas e dou o alforje para Mogul carregar, enquanto eu levo os
reservatórios de skrill, mais pesados. Nadja já colocou a faixa transversal
com a sua espada, que fica disponível em suas costas, pronta para ser
desembainhada rapidamente. É uma espada longa de duplo gume. Imagino
o que pode fazer com ela... Também carrega seus reservatórios, menores que
os meus, enquanto Dragsil leva um confortável alforje a tiracolo. Saímos
pela porta de pedra e o ar frio da montanha de vidro vulcânico nos atinge
com rajadas súbitas. Ainda é madrugada e temos que descer a estreita
escadaria sob a luz diáfana da Lua dourada e púrpura, que já mergulha na
linha negra e entrecortada do horizonte. Quando chegamos na precária
plataforma de voo, o Sol azul já lança sua crista, em uma alvorada plácida,
que se reflete no espelho negro da montanha. Os Daimons transformam-se
em Dragões. Arrumamos os arreios com nossos pertences. Nadja tem um
lindo manto de montaria, todo colorido e trançado, que coloca na cavidade
entre as asas de Dragsil. Sobe ao dorso de sua Dragão, que ergue
majestosamente o longo pescoço. É uma visão magnífica. Mogul me cutuca
com a cabeça, despertando-me de minha contemplação. Acaricio seu imenso
focinho brilhante e subo em seu dorso, escalando pela perna dianteira, que
Mogul me oferece solícito. Dragsil e Nadja alçam voo antes de nós. Mogul
as segue, enquanto me deleito com a decolagem perfeita de meu amigo.
Emparelhamos o voo em altura média. Ainda não precisamos nos esconder,
mas precisaremos em breve. Nuvens pesadas começam a se juntar acima,
prenunciando a chuva fina que agora bate em nossas faces. Quando a

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intensidade aumenta, Mogul e Dragsil ascendem, atravessando o manto de
nuvens. O mundo é de um cinza enevoado por alguns minutos, então
ultrapassamos a camada espessa. Eis que se abre um céu sem fronteiras,
iluminado pelos três Sóis, cuja luz e calor secam meu pelo e reconfortam a
alma. Olho para Nadja e vejo um sorriso em seus lábios finos. Devemos estar
sobrevoando o grande rio Intol, que não podemos ver devido ao tapete
nebuloso abaixo de nós. Meus pelos estão secos novamente e a camada de
nuvens está chegando ao fim. Podemos ver ao sul o grande Oceano Verde,
com suas águas de esmeralda. Vamos costear o litoral em um grande desvio,
passando por trás da Cidade de Ferro e visando os limites a leste da muralha.
O ataque que eu e Mogul fizemos no oeste da Cidade de Ferro, certamente
deixou como sequela uma vigilância estrita. Os cascudos não esperariam
nossa chegada vindos do Oceano, ao sul. Sobre ele voamos agora, flutuando
sobre um interminável lençol ondulante de esmeralda cintilante. Os corpos
luzidios de skrill de nossos Dragões, fazem com que estes se confundam com
as águas verdes, refletindo em suas escamas brilhantes o movimento das
ondas. Por um momento, sinto que somos parte do Oceano. Fluxos,
correntezas que se formam na Divina Ação de Nanshe, a Mãe da Água: a
negra tempestade turbulenta que lança seus relâmpagos dourados no
horizonte. Contornamos a tempestade, voando em direção ao alto mar. Já nos
molhamos o bastante por hoje. Reverenciamos Nanshe, bailando no ar ao
redor de sua tempestade divina. Voltamos a nos aproximar do litoral, pois,
após voarmos durante o dia todo, já nos aproximamos da face sul da
Montanha do Dragão Pai. A descomunal silhueta cônica e negra que se
recorta no horizonte à nossa direita, assemelha-se a um portal gigantesco
para um mundo sombrio. Para lá rumam nossos Dragões. Uma angústia me
invade. Mataria mais? Se necessário, sim. Isso não me reconforta nem um
pouco. Como todo Grahoul, aprecio a vida. A minha e a alheia. Quando a
vida alheia ameaça a existência de meus amores, um vórtice se forma em

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meu peito conclamando à luta. Tento lutar sem ódio. Não consigo ainda. Sou
apenas um aprendiz da ação perfeita, humildemente confesso. Sinto o peso
familiar de meus facões em minha cintura. Nós nos entendemos bem.
Sabemos dançar juntos a dança da morte. Olho para a espada de Nadja,
repousando enviesada em suas costas. Rezo a Nanshe para que saibam bailar
juntas também. Entramos no espaço de pedra fria, com picos escarpados
assomando sobre nós. Só há o cheiro metálico da rocha. Não farejamos
vigias. A noite se aproxima e os três Sóis já se recolheram às suas tocas para
repousar. Na penumbra, localizamos um platô oculto por uma sebe de
grandes árvores. Farejamos água. Os Dragões circulam cautelosamente o
local antes de pousarem no chão rochoso. Eu e Nadja desmontamos,
escorregando sobre os grandes dorsos luzidios. Retiramos os reservatórios
de skrill e os alforjes, desafivelando suas correias. Mogul e Dragsil
rapidamente se transformam em Daimons, evitando que os grandes corpos
de Dragão sejam localizados de cima. Ainda que não haja odor de inimigos,
a tensão no ar é quase uma matéria sólida. Procuramos um abrigo nos
arredores e encontramos uma pequena caverna, cuja entrada é quase
invisível. Uma nascente de água límpida brota de seu interior. Levamos as
bagagens para o interior da caverna. Os Daimons vão nos aguardar aqui,
quando eu e Nadja formos explorar o que há além das muralhas de ferro. Os
Dragões verdes reconhecem muito facilmente o odor de um Daimon. Se
Mogul e Dragsil nos acompanharem, só aumentarão nossos riscos.
Repartimos uma refeição frugal de bolos de kengy e frutos desidratados de
Lotka, com alguns nacos de Goflin defumado. Bebemos a água pura e
deliciosa da nascente. Repousamos por algumas horas, esperando a noite se
instalar definitivamente. É tempo de Luas ocultas e o céu hoje deve estar
muito escuro, iluminado apenas pelo brilho de infinitas estrelas, distantes
demais para clarear a treva. Durmo abraçado a Nadja, em um canto
aconchegante da caverna. Dragsil e Mogul se deitam mais próximos à

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entrada, ansiando por ar livre como todo Dragão. Meus sonhos no Mundo
Duro me poupam. Vivo momentos de repouso, longe dos embates humanos
de meu rijo imaginário onírico. Acordo com Nadja sussurrando suavemente
em meus ouvidos. “A noite está escura. Vamos clarear.” Dou-lhe uma
pequena lambida trocista no focinho e me levanto, esfregando os olhos ainda
inchados de sono. Os Daimons acenderam uma pequena fogueira e afiam
meus facões e a espada de Nadja com pedras apropriadas. Passam skrill nas
lâminas e as guardam cuidadosamente nas bainhas. Lavo minha face na água
gélida da nascente e sinto meus sentidos despertarem. Escuto cada minúsculo
ruído ao nosso redor e meu faro discrimina os milhares de minerais e seres
vivos deste recanto tão distante de nosso lar. Afivelo meu cinturão de couro
com os facões e a faca de caça, enquanto Nadja coloca sua espada nas costas,
vestindo a faixa de couro transversal que segura a bainha. Está usando um
conjunto confortável de couro elástico de Girim, composto por uma calça
justa e uma blusa que lhe recobre apenas os belos seios. Eu coloco meu
jaquetão de couro grosso. Abraçamos ternamente os Daimons e saímos da
caverna para a noite escura. Grahouls enxergam muito bem na escuridão.
Nosso faro aguçado complementa as imagens imersas em treva, formando
quadros claros e definidos em nossas mentes. Imagens de odor, se podemos
chamar assim. Seguimos em direção aos paredões rochosos, caminhando
para o leste à procura do início da muralha de ferro. Tentamos ao máximo
nos manter juntos à rocha escura, deslizando na noite como sombras.
Contornamos a montanha por algumas centenas de passadas e
repentinamente vemos erguer-se a nossa frente o bloco escuro e
imensamente alto da muralha. Subimos pelas pedras, agarrados a cada
pequena saliência que nos permita um apoio. Nadja, mais leve, sobe
primeiro. Quando estamos a alguns metros do chão, estacamos ao mesmo
tempo, colados ao paredão. O cheiro nauseante de um Dragão verde invade
nossas narinas. Procuramos rapidamente alguma fenda que nos dê guarida.

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Felizmente, uma grande rachadura na rocha lisa, permite que nos ocultemos.
Reduzo meu ritmo respiratório para que o odor de meu hálito não se
propague. Encostado ao corpo de Nadja, sinto que sua respiração é quase
imperceptível também. Já divisamos voando bem acima de nós a silhueta
escura do Dragão contra o céu estrelado, certamente carregando em seu
dorso um cascudo armado e atento. Vemos a silhueta se aproximar e sinto
os músculos de Nadja se tensionando para a luta. Sinalizo com uma carícia
que ela deve relaxar. Um corpo tenso exala um odor mais forte. O Dragão
passa a apenas algumas batidas de asa de nosso esconderijo, mas o ar frio da
noite evita que uma corrente ascendente de ar nos denuncie. Vemos o grande
vulto se afastando e finalmente desaparecendo por detrás da muralha. Não
ousamos nos mover por um bom tempo, até que finalmente não sentimos
mais nenhum odor que indique perigo. Retomamos nossa escalada
cuidadosamente e sem pressa. Subimos durante um tempo que parece
interminável, até que alcançamos enfim o topo achatado e largo. Uma grande
construção ovalada, com imensas janelas de vidro que parecem grandes
olhos de brilho esverdeado, chama imediatamente a nossa atenção. O prédio
fica acima da altura da muralha, encaixado nas encostas rochosas como se
tivesse sido esculpido ali. Atravessamos o espaço que nos separa dele, nos
equilibrando precariamente nas saliências que encontramos pelo tato, pois o
paredão rochoso e a muralha cobrem a parca luz das estrelas que até agora
nos permitiam enxergar. Agora a escuridão é total e só a luz fantasmagórica
das janelas de vidro nos orienta em nosso trajeto. Quando finalmente
chegamos nas paredes abauladas e lisas, nos damos conta de que não há
nenhum sinal de uma entrada possível. A cúpula do prédio é imensa e não
podemos esquadrinhar cada centímetro apenas apalpando com as mãos.
Decidimos aguardar o nascer dos Sóis, ainda que isso seja muito arriscado.
Não temos opção. Subimos sobre a cúpula e vamos apalpando as rochas ao
longo da junção com a montanha. Sentimos ao longe o odor de mais

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inimigos, mas finalmente encontramos uma cova natural onde nós dois
podemos nos acomodar. Deitamos com nossos corpos ainda quentes devido
ao exercício, mas após algum tempo o frio começa a vencer nosso
metabolismo que se desacelera. Abraço Nadja, que relaxa seu corpo ao meu
toque. O frio cede e conseguimos adormecer por algum tempo em um sono
agitado e sem sonhos. Quando os primeiros raios do Sol azul iluminam
suavemente o céu, nos esgueiramos para fora de nossa cova e nos
concentramos em procurar uma entrada. Nadja, com sua visão aguçada,
divisa ao longe o que lhe parece um entalhe circular na rocha. Seguimos até
lá e constatamos que se trata de um provável duto de ventilação, coberto por
uma forte grade de aço. Não é possível passar por ela. Então, repentinamente
nos assustamos com um movimento brusco a apenas algumas passadas de
onde estamos. Trata-se de um grande lagarto montanhês, de pele luzidia e
cor semelhante à da pedra. Ele sai de um orifício que não havíamos
percebido, assustando-se com nossa inesperada presença e correndo para o
topo da montanha a uma velocidade incrível. Imediatamente, vamos até o
local de onde vimos o lagarto sair e, para nossa satisfação, encontramos uma
falha na rocha que deixa exposta a parede abaulada do duto de ventilação. O
tom vermelho da ferrugem cerca um grande orifício, provavelmente usado
como toca pelo lagarto montanhês. Alargamos o buraco, arrancando pedaços
enferrujados de metal da borda. Penetramos no duto e vamos seguindo,
andando de quatro, pela larga tubulação. Não gosto de espaços fechados e
apertados, pois estou acostumado às amplitudes celestes do voo. Nadja
também não parece nada feliz, enquanto nos arrastamos por aquele tubo
estreito e baixo, grande o suficiente apenas para que possamos engatinhar
por ele como Kyons. O duto cessa subitamente, bloqueado por outra grade.
Examino-a e noto que a ferrugem corrói os parafusos que a prendem no
lugar. Enfio cuidadosamente minha faca de caça no encaixe e faço uma
alavanca, usando toda a força de meu corpo, confiante de que o aço rijo da

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lâmina aguentará a tração. Com um pequeno estalido, os parafusos se
quebram e a grade se solta de sua moldura. Silenciosamente, nós a passamos
para trás de nós, colocando-a sobre o piso do duto. Coloco a cabeça para fora
e vejo que estamos próximos do teto de um saguão com um grande sofá e
um estranho símbolo esculpido na parede oposta: uma grande letra G ladeada
por asas de Dragão. Sob elas, uma inscrição em um alfabeto semelhante ao
nosso. Reconheço a palavra inscrita: Gênesis. Viro o corpo com dificuldade
no duto estreito enquanto Nadja recua, descendo minhas pernas primeiro e
me segurando com a força de minhas garras à borda da saída. Olho para
baixo e estimo que terei que saltar uma distância equivalente a duas vezes a
minha altura. Solto as mãos e deixo meu corpo despencar, amortecendo a
queda ao cair agachado sobre o chão espelhado e impecavelmente limpo.
Nadja se pendura também e se deixa cair, enquanto eu a seguro, ajudando a
amenizar o impacto com o chão. Não há ninguém no salão. Ainda é muito
cedo e a manhã apenas começa, mas não podemos perder tempo pois
certamente haverá movimento em breve. Caminhamos até uma pesada porta
de madeira na extremidade do saguão e encostamos a ela nossos ouvidos,
escutando atentamente. Posso ouvir os ruídos de apenas um indivíduo, que
parece manipular objetos que soam como vidro tilintando. Testo a maçaneta
com muita cautela. A porta está aberta. Eu e Nadja nos entreolhamos e nos
entendemos sem a necessidade de palavras. Nadja abre a porta subitamente
enquanto eu salto no ar, cobrindo instantaneamente a distância que me separa
do cascudo sentado sobre um banco, de costas para nós. Antes que ele possa
se virar, meus braços já estão encaixados em volta de seu pescoço em um
estrangulamento preciso, que lhe tira a consciência em instantes. Deixo cair
ao chão o cascudo desacordado e exploramos o estranho ambiente. Parece
algum tipo de laboratório, com vidrarias cheias de líquidos de diversas cores,
além de estufas e outras máquinas que não reconhecemos. Vemos pequenos
frascos abertos no balcão onde o cascudo realizava suas misteriosas

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manipulações. Temos que despertar nosso inimigo, placidamente
desmaiado, para colhermos algumas informações sobre o que se passa aqui.
Descubro uma torneira e encho um vasilhame com uma água de cheiro inerte
e artificial, talvez filtrada para fins que desconhecemos. Derramo a água
sobre a face do cascudo e ele acorda entre engasgos e espirros, olhando-nos
com grandes olhos arregalados quando recobra totalmente a consciência.
“Qual o seu nome?” – pergunto. Ele olha, desorientado, para um lado e para
o outro, até vagarosamente fixar os olhos apavorados nos meus. Percebo em
um instante ínfimo que ele vai gritar, mas minha faca de caça já está
antecipadamente preparada e, antes que emita qualquer som, a ponta aguda
e metálica já pressiona a artéria pulsante em sua garganta. Ele se imobiliza,
rígido como um cadáver, sua respiração ofegante denunciando seu pavor.
Pressiono um pouco mais a ponta da adaga mostrando-lhe que sua vida pode
se esvair rapidamente. Pergunto novamente: “Qual o seu nome?” – pausando
as palavras e apontando para seu rosto com a garra de meu indicador. “Hamo
so Gizeh.” Ele responde em grunhidos roucos. Fico confuso, mas Nadja, que
estivera vigiando a porta, sussurra para mim: “Ele está dizendo que se chama
Gizeh.” Assinto com a cabeça. Com a adaga ainda pressionada contra seu
grosso pescoço, pergunto pausadamente: “Gizeh, o que fazem aqui?” – ao
mesmo tempo em que lhe indico todo o arredor. Ele compreende. Olha para
mim fixamente e silencia. O vértice agudo de minha faca penetra
ligeiramente em sua pele verde, causando um fino fio de sangue. Gizeh dá
um grunhido. “O que fazem aqui?” – repito. Ele emite um gemido rouco de
angústia e fala em palavras rascantes, como que me insultando: “Hagamos
ficotesh.” Já havia me acostumado com a semelhança de seu dialeto com a
língua Grahoul, após a primeira interpretação de Nadja. Prefiro, no entanto,
acreditar que não entendi e olho para minha parceira. “Sim, Tandir, eles
fazem filhotes aqui.” Encaro novamente o cascudo, cujo avental branco já se
manchara de sangue na lapela. Digo-lhe em um rosnado grave: “Mostre.”

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Gizeh responde em um sussurro que é mais um gemido: “Heis von mateh
me.” Vejo um medo terrível em seus olhos verde escuros. “Quem são eles?”
Gizeh fica apenas ganindo baixinho. “Eu vou matar você se não nos mostrar”
– digo-lhe, calmamente. Começo a afundar minimamente a adaga. O cascudo
irrompe em uma algaravia. “Toh, toh, toh, mosterah chi, mosterah chi, piedos
me!” Eu o levanto do chão, puxando pela gola ensanguentada do avental.
Gizeh se firma nas pernas. Um odor de fezes e urina emana dele. Indico-lhe
a porta, mas Gizeh aponta para uma escotilha de ferro blindado nos fundos
do laboratório. Faço um gesto afirmativo com a cabeça e meu olhar lhe
assegura de que estará morto imediatamente na eventualidade de qualquer
armadilha. Nadja fecha a porta que dá para o saguão e nos dirigimos para a
porta blindada, com Gizeh à frente, seguido pela ponta de minha adaga em
suas costas. Ele tira do bolso do avental uma chave, o que quase lhe custa
uma perfuração no pulmão. Felizmente há uma boa coordenação entre meus
olhos e meus reflexos. Gizeh, um pouco mais fedorento ainda, insere a chave
na fechadura e gira uma grande manivela, que faz deslizar um fecho de aço,
com um estalo. A porta se abre e penetramos em um corredor arredondado e
estreito, pouco mais alto que nós. Ao longo do corredor há pequenas
escotilhas redondas, com vidro grosso, que nos permitem uma visão do outro
lado. O que vemos, escotilha após escotilha, são fileiras de pequenas
redomas transparentes, no interior das quais movem-se pequeninos braços e
pernas de um verde claro e tenro. Bebês cascudos. Milhares deles. Eram
cuidados por afoitos cascudos adultos, vestidos de avental branco, que
corriam de lá para cá, regulando incubadoras, dando mamadeiras, trocando
os panos higiênicos e dando banho nos filhotes, aparentemente, recém-
nascidos. Percorremos algumas dezenas de escotilhas e todas nos desvendam
o mesmo quadro: um salão imenso, todo preenchido de incubadoras com
bebês cascudos. Ordeno que Gizeh pare. Pergunto: “Para que este corredor
em que estamos?” – apontando o caminho que percorremos. Gizeh hesita

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indeciso, olha primeiro para minha adaga e então aponta pequenos painéis
de controle abaixo de cada escotilha. “Regulamu fluides e temperater dus
incubaterius.” Não posso negar que, por um instante, passa-me pelo
pensamento o infanticídio em massa de cascudos, que aqui se coloca sob
minhas garras. Este pensamento apenas ensombrece mais minha tristeza e
culpa. Matar a vida nascente não é algo que um Grahoul consegue fazer.
Temos comandos de Nanshe moldando nosso espírito. Gizeh me olha com
olhos arregalados e ansiosos, talvez a espera de uma reação que não seria
estranha aos cascudos, como demonstra o misterioso envenenamento de
nossas fêmeas Grahouls. Uma questão me assombra: “Quem são as mães?”
– pergunto ao trêmulo inimigo. Ele começa a tremer ainda mais, fazendo
gestos de negação com a cabeça. Minha adaga voa para sua garganta e se
detém apenas para perfurar levemente a pele, fazendo brotar uma gota de
sangue. Nadja apenas assiste impassível, segurando sua espada afilada e
brilhante, pronta para me apoiar no caso de alguma reação impensada do
cascudo. Este percebe que está à nossa mercê e parece decidir cooperar:
“Mosterah, mosterah! Tu ved!” Recuo a adaga e Gizeh se aprofunda ainda
mais no corredor. Chegamos em um ponto onde as escotilhas tem cor e
controles diferentes das que vimos até agora. Nadja vigia Gizeh, enquanto
olho através de uma delas. Vejo um imenso salão, semelhante aos que
contém as incubadoras. Mas aqui há camas. Sobre as centenas de camas,
Grahouls fêmeas com barrigas protuberantes, dormem, aparentemente
dopadas. Assim como os bebês, também são cuidadas por cascudos que vão
para lá e para cá, fazendo medidas com aparelhos e eventualmente levando
uma delas, contorcendo-se em contrações de parto, em padiolas, saindo por
grandes portas na extremidade oposta do salão. Meu estômago se embrulha
e recuo atordoado. Nadja me olha preocupada e eu gesticulo para que ela
veja por si mesma. Penso em eliminar Gizeh ali mesmo, mas me controlo.
Nadja olha e apenas baixa a cabeça tristemente. Mas há mais para saber:

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“Quem são os pais, Gizeh?” Ele me olha com ar aparvalhado, mas já se
conformou. “Non patres. Un patre.” Fico intrigado e demonstro isso com um
movimento incontido da faca. O cascudo fala rápido: “Draco! Draco pater!”.
O Dragão Pai? – penso, ainda mais aturdido. Nadja apenas pisca
repetidamente, como que para se certificar de que está desperta. Comando:
“Mostre.” Gizeh dá de ombros e caminha cabisbaixo pelo caminho de volta,
no corredor. Reflexões caóticas preenchem minha mente enquanto vou
andando, ainda assim atento a qualquer reação inesperada do cascudo.
Passamos pela linha interminável de escotilhas e desembocamos novamente
na porta blindada do laboratório. Eu e Nadja farejamos atentamente, a
procura de indícios de mais cascudos, pois a manhã já se adiantava e o grande
complexo de reprodução certamente fervilharia de movimento. Mas aqui o
caminho está livre. Nadja encontra, em um canto, uma prateleira com
aventais e grandes máscaras, que já havíamos visto sendo usadas pelos
atendentes dos bebês cascudos. Certamente um implemento para evitar
contaminações pela respiração. Um bom disfarce para nós. Ela tira um par
de cada, trazendo-me um avental e uma máscara. Visto o avental e assento a
máscara em meu focinho, um pouco grosso para o aparato. Nadja faz o
mesmo. Avalio o efeito: exceto por uma traição de Gizeh, não seremos
reconhecidos se cruzarmos com alguém. Mostro ao cascudo a adaga, que
prendo com uma faixa ao meu punho, logo abaixo da manga do avental,
pronta para ser usada em caso de necessidade. Nadja prende sua espada rente
ao ventre e ao peito, também disfarçada pela vestimenta larga. Estamos
prontos. Dou um comando a Gizeh para que nos guie e saímos pela porta de
madeira, para o amplo saguão lá fora. Seguimos juntos, com o cascudo entre
eu e Nadja. Abrimos outra porta na extremidade oposta do saguão. Entramos
em um grande corredor, com alguns atendentes que passam por nós atentos
aos seus afazeres e registros, sem notarem nossa presença. Ao longo do
trajeto, grandes salas, que pareciam ser escritórios cheios de notários. Penso

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que são os que cuidam de registrar os tenebrosos acontecimentos que se
desenrolam neste complexo. Passamos também por depósitos de ervas e
líquidos, com extensas bancadas onde cascudos compenetrados manipulam
fórmulas, cujos conteúdos e propósitos me arrepiam só de imaginar e farejar.
Sinto adiante a fragrância quase imperceptível do skrill, quando passamos
por imensos tonéis de madeira, empilhados em uma espécie de depósito, ou
adega. Aqui, não há ninguém próximo. Gizeh nos conduz até um aposento
escondido entre os tonéis. É um barracão com apenas uma porta e fechado
de todos os lados. Desconfio de uma armadilha e emito um rosnado grave e
baixo. O cascudo estremece e faz gestos de apaziguamento, indicando-me
um alçapão, sobre o qual estamos pisando. Afastamo-nos para os lados,
enquanto Gizeh puxa uma alça oculta, a qual produz um estalido, enquanto
a tampa de aço começa a deslizar para o lado, expondo o início de uma
escadaria de pedra. Travo o mecanismo de fechamento da tampa com uma
pedra, estrategicamente colocada em uma engrenagem pouco visível. Gizeh
vai na frente, descendo a escadaria, iluminada por simples tochas de resina,
fixas nas paredes a intervalos regulares. Somos ladeados por relevos e
pinturas deslumbrantes, que me lembram os que vimos no corredor de
entrada da caverna da Dragão Mãe. Vejo que, ao lado de cada tocha, há o
nicho para um altar de luz, que talvez os cascudos não saibam mais produzir.
Sob a luz tremeluzente das tochas, as figuras nas paredes parecem bailar e
lutar, criando um efeito fantasmagórico e irreal. Descemos por um longo
tempo em meio àqueles batalhões dançantes, até chegarmos a um grande
portal em arco, o qual transpassamos. Entramos em uma caverna
incomensurável e escura, apenas iluminada pelo corpanzil colossal de um
Dragão ainda maior que a Dragão Mãe. Sua silhueta só é distinguível do solo
rochoso da caverna, devido ao brilho mortiço e acinzentado que emana de
seu corpo e do inconfundível cheiro bom, tênue e amortecido, de um
verdadeiro Dragão, zelosamente cuidado com fricções de skrill. Não há

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ninguém aqui. Nosso faro apurado só detecta o odor do Dragão Pai. Só
escutamos o seu ressonar plácido. Por um momento, contemplo a imensidão
da caverna, entristecendo-me com o silêncio e a imobilidade. Sinto a mente
de Mogul, sempre conectada à minha, entristecendo-se também. Empurro
Gizeh adiante e nos aproximamos do gigantesco corpo inerte. Peço a Nadja
que vigie o cascudo enquanto eu examino a pele áspera que emite um brilho
pálido. Está em boas condições, besuntada de skrill de qualidade, mas noto
que há áreas extensas mais escuras, onde faltam escamas ou onde elas estão
atrofiadas, ainda em regeneração. Examino o chão em volta e noto uma
minúscula escama caída, a qual recolho e examino atentamente. Sou um
exímio conhecedor de tudo o que se refere a Dragões e vejo que esta escama
foi arrancada por meios mecânicos, tendo um quase imperceptível fragmento
de pele viva em sua base. Estariam os cascudos arrancando escamas do
Dragão Pai? Mas com que intuito? Viro-me para Gizeh e pergunto-lhe irado:
“Que fazem com isto?” Gizeh olha para o chão, evitando meu olhar.
“Fecundati Grahoulas.” – ele diz, num sussurro. Nadja e eu nos
entreolhamos, tentando nos convencermos de que havíamos entendido.
“Vocês fecundam as Grahouls com as escamas do Dragão Pai?” – pergunta
Nadja sibilando. Gizeh não responde e continua olhando para o chão.
Começa a se balançar levemente, em nervosismo incontido. Após um breve
silêncio, em que procurávamos assimilar a informação, o cascudo murmura:
“Povi nostri e gestatu asi. Nostri existire e dependu de Draco Pater. Projetoi
Genesis” – diz, mostrando tudo em volta, quase que orgulhoso. Enfureço-
me, mas mantenho minha mente fria como gelo. “É para isso vocês raptam
nossas Grahouls e mantém o Dragão Pai como um morto vivo? Melhor que
não existissem!” Gizeh eleva a cabeça me olhando altivamente nos olhos.
“Existimu.” – ele diz em tom monótono. Não consigo ter ódio desse ser
trágico. Talvez isto seja um erro. “O que vocês fazem para manter o Dragão
Pai vivo, porém adormecido?” – pergunto. O cascudo, ainda me encarando,

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responde: “Herbi proprie. Draco Pater e multo beni tratato. Alimentate com
miliore comiti. Passate skrille totu corpu de Draco Pater. Nostre pater. Multo
beni tratato!” Reflito sobre todas as contradições que cercam a própria
existência deste cascudo, que tenta me convencer da justiça do que fazem.
Por algum processo maléfico, utilizam o tecido vivo das escamas arrancadas
do Dragão Pai para gerar filhotes em nossas fêmeas raptadas. Decido que há
muito em que pensar e agora devemos sair deste lugar infernal. Já sabemos
o suficiente. Nadja está absorta em seus pensamentos, com um olhar triste.
Aceno para ela e voltamos para a escadaria, caminhando lentamente. Gizeh
está mais confiante, como que reanimado pelo contato com a fonte de sua
vida. Um parasita feliz com a visão do corpo exangue e disponível de sua
vítima. Subimos, atravessando o turbilhão de imagens das paredes, que agora
parecem nos ameaçar com seu bailado sombrio. A imensidão de nossa
descoberta me aterra. Após um tempo que me parece infinito, chegamos à
tampa do alçapão, felizmente ainda aberta. Farejamos cuidadosamente e nos
certificamos de que não há nenhum cascudo ao redor. Subimos para o
depósito de skrill e voltamos pelo grande corredor, agora bem vazio. Sinto o
odor de uma comida estranha para mim. Indago Gizeh com os olhos e ele me
explica: “Tempu de Comiti.” – fazendo o gesto de comer com as mãos. Hora
de refeição dos cascudos. Boa hora para escaparmos. Caminhamos
rapidamente de volta ao saguão por onde adentramos o complexo. Entramos
pela porta. Não há ninguém ao alcance de nosso faro. Enquanto Nadja vigia
Gizeh, com a espada desembainhada, eu coloco uma mesa alta sob a entrada
de ventilação. Com uma cadeira sobre a mesa, já consigo alcançar a borda
do duto. Vou até Gizeh, com a faca em punho. Quando ele se volta,
apavorado, para me olhar, Nadja enlaça seu pescoço com seus braços esguios
e musculosos, travando um estrangulamento perfeito, que em breves
instantes faz o cascudo desmaiar. Não o matamos. Outro erro que não
podemos evitar. Nadja sobe primeiro para o duto de ventilação e eu a sigo.

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Andamos de gatinhas até a rachadura enferrujada onde o lagarto fizera seu
ninho. Saímos com grande alívio para a montanha de pedras escuras. O dia
vai alto e não podemos nos arriscar a voltar para nossa base com tal claridade,
pelo mesmo caminho em que viemos. Logo Gizeh vai acordar e teremos
soldados em nosso encalço. É um caminho por demais exposto. Também não
podemos ficar aqui. Decidimos nos enfronhar na montanha e descer por sua
face oeste. Procuramos um caminho cheio de obstáculos por entre as rochas
escarpadas, nos afastando bastante da entrada do duto. Quando descemos o
suficiente, atingimos um pequeno platô onde corre um filete de água, o qual
seguimos. Encontramos uma caverna de onde flui uma nascente subterrânea.
Matamos nossa sede e seguimos andando cautelosamente pelo fio de água
que desce a montanha, serpeando entre as pedras, disfarçando assim o odor
de nossos passos. Caminhamos por longo tempo nesta trilha líquida e,
quando a tarde já está avançada, decidimos esperar a noite em uma cova
profunda que encontramos ao investigar uma rachadura na parede irregular
de pedra. Entramos profundamente no seio da montanha. Deitamos,
aliviados e gratos pelo repouso. O ar fresco e imóvel e o silêncio que nos
propicia a cova, logo embalam nosso sono. Meio adormecido, meu faro me
diz que o cio de Nadja está próximo. Isto pode ser um problema, nas atuais
circunstâncias. O cansaço vence o breve impulso fisiológico que sinto.
Mergulho nos sonhos imutáveis do Mundo Duro. Adormeço abraçado a
Nadja, que já ressona. Acordo depois do que me parece um breve instante.
Mas não. Já é noite e a escuridão na caverna é total. Nadja não está ao meu
lado. Farejando, percebo que está próxima à entrada. Vou até ela, tateando
na pedra invisível na treva. Nadja me avisa, com um toque, para não me
mover. Estamos bem na abertura da cova. Agora posso sentir o odor
longínquo de Dragões verdes e cascudos. Certamente uma patrulha a nossa
procura. Entramos um pouco mais para dentro da abertura na rocha e nos
sentamos, aguardando pacientes, eventualmente checando os odores que o

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vento nos traz. Agora não há nenhum traço de patrulhas. Saímos da cova e
continuamos nossa descida pelo riacho, que é menos inclinado e mais
abundante de água aqui. Em breve vemos sinais de vegetação. Estamos na
base da montanha. Agora todo cuidado é pouco. Procuramos nos manter sob
a vegetação mais densa. Os sinais mentais de Dragsil e Mogul nos orientam
quanto à direção a tomar. Chegamos a terreno conhecido e nossa velocidade
aumenta. Em breve sentimos as saudações felizes dos Daimons. Estamos em
nosso acampamento. Entramos na caverna, abraçando nossos parceiros
daimônicos. Uma fogueira reconfortante arde no chão, iluminando o
ambiente. Esfomeado, vou até o alforje e pego dois bolos de kengy,
oferecendo um deles para Nadja. Comemos em silêncio, compartilhando
nossas informações mentalmente com os Daimons, que baixam suas cabeças
e começam a entoar um cântico de prece pelo Dragão Pai. Nadja e eu estamos
muito tristes também. Despimos nossas roupas e nos banhamos na nascente,
que forma uma pequena piscina no fundo da caverna. Conversamos sobre as
ações possíveis, frente ao quadro desolador que descortinamos. Parece-me
fundamental descobrir a maneira de despertar o Dragão Pai, libertando-o de
seus parasitas, os cascudos. Também precisamos libertar as Grahouls
raptadas e forçadas a gerar cascudos por esse povo maldito. Não penso em
represálias ou em morticínios. Quero salvar os nossos, que estão submetidos
a sofrimentos indizíveis. Nadja concorda comigo. Assim agem os Grahouls.
Mas como começar? Nossas mentes estão exaustas e não mais conseguimos
pensar direito. Nadja exala levemente o perfume inebriante e irresistível de
uma Grahoul no cio. Mogul e Dragsil percebem nossos desejos e nos deixam
a sós na caverna, saindo abraçados para a noite escura. Deito-me sobre a
cama improvisada de palha que os Daimons fizeram. Nadja vem até mim e
fazemos amor longamente, por horas a fio, na penumbra da caverna,
iluminados apenas pelas brasas da fogueira. Nadja adormece antes de mim.
A última coisa que me vem à mente é a saudação distante de Mogul, que

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deve estar também se divertindo com Dragsil no interior da mata. Nossos
amores influenciam os Dragões, assim como os deles influenciam os nossos.
Adormeço. Acordo com uma malha rija e fria pressionando todo o meu
corpo. Penso primeiro que estou sonhando. Não estou. Uma rede de aço me
comprime ao corpo nú de Nadja, enquanto as carantonhas grotescas de
soldados cascudos dão risadinhas maliciosas. Fomos capturados. Somos
arrastados para fora da caverna por uma dúzia de soldados e vejo quatro
Dragões verdes, com seus condutores mal-encarados sobre os dorsos. Nossos
Daimons não estão à vista, mas correm grande risco! Emito uma advertência
mental para que Mogul não se aproxime e digo a Nadja, que se debate
furiosa, para fazer o mesmo com Dragsil. Digo a Mogul que aguardem
próximos à cidade, bem escondidos. Um Dragão sempre sente a morte de
seu Grahoul, mesmo à grande distância. Se sentirem que eu e Nadja
morremos, ele e Dragsil devem voltar para a aldeia da Falésia e contar tudo
aos outros Grahouls. Sinto a concordância aflita de meu Dragão, enquanto
sou carregado junto com Nadja, por quatro soldados corpulentos que nos
jogam nas costas do maior dos Dragões verdes, amarrando-nos aos arreios
firmemente. Estamos indefesos como peças de caça abatidas. O condutor do
imenso Dragão verde vira para nós sua cara grotesca, esboçando um sorriso
malévolo, olhando o corpo desnudo de Nadja, que ainda exala seu odor de
fêmea no cio. Consigo acertar uma cuspida certeira bem no olho esquerdo
do cascudo, que pragueja horrivelmente. Vejo uma clava em sua mão. A
pancada me atordoa. Sinto um líquido amargo sendo derramado em minha
garganta. Então, a escuridão.

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