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Marcelo Ribeiro dos Santos

TANDIR E MOGUL
Vol. 1: O Despertar dos Drachs

Nº 4: Gênesis.

Seriado Eletrônico Mensal de Realismo Fantástico


Esta é uma obra real. Qualquer semelhança com seres ou
acontecimentos imaginários é mera coincidência.

ISSN 2595-9891
Expediente:

Criação: Marcelo Ribeiro dos Santos

Editor de Arte: Brian S. R. Santos

Revisão: Tânia V. Barela

Contato Comercial: Eric S. R. Santos

Editora: Naos Likaion (CNPJ: 32.216.134/0001-30)

Rua Arthur Nazareno Pereira Villagelin, 125 – Barão Geraldo (CEP:13085-638) Campinas/SP

fone: (19)997231562 mail: naoslikaion@gmail.com

Campinas

02/2019
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Capítulo 3: Gênesis

“Temos trabalho a fazer, Grahoul. Tempo de voar.” Concordo com um aceno de minhas
orelhas. Saio da banheira, um pouco a contragosto, mas bastante revigorado. Enxugo- me com a toalha
felpuda, observando o belo corpo de Nadja. Vamos para o quarto principal da câmara e vestimos nossas
roupas em silêncio. Abro a porta da câmara e saio. Nadja sai atrás de mim e tranca a porta, retirando a
chave. Despeço-me com tristeza da câmara TD33. Descemos a escada em caracol, até o salão principa l.
Vejo Dragsil sentada em um dos sofás, recostada a um almofadão, com Mogul a seu lado, deitado com
a cabeça em seu colo. Mogul apenas se dá ao trabalho de abrir uma das pálpebras e ouço ressoar em
minha mente: “Conversa demorada.” Não consigo controlar uma risada. Dou-lhe um aceno e vou até
a câmara sanitária, no fundo do salão, me aliviar. É uma câmara impecavelmente limpa. O fogo dos
Dragões tem lá suas propriedades antissépticas. Para que esta descrição não lhes conste como
supérflua, é preciso explicar que Grahouls podem conter suas excreções, sem sofrimento ou danos à
saúde, por longos períodos, coisa muito útil em voos longos. Nosso voo seria longo. Uma câmara
sanitária limpa e agradável é sempre um conforto. Saio da câmara e vou até a mesa, onde Nadja devora
uma refeição leve. Dragsil enrola nos dedos os cachos negros e sedosos de Mogul. Peço um chá e um
bolo de kengy, que como com certa pressa, pois Nadja já termina sua refeição e estamos todos ansiosos
para partir. Quase todos. Mogul pisca preguiçoso e resmunga quando Dragsil se levanta,
acompanhando Nadja, que se dirige ao balcão. Ela pede seus pertences a Oicon, que os retira de um
compartimento. Nadja pega seu reservatório de skrill e verte o creme opalino em um frasco que Oicon
lhe dá. Passo pelo cortinado e pego meu próprio reservatório na prateleira. Volto ao balcão e também
pago Oicon, vertendo skrill em um frasco do mesmo tamanho que o de Nadja. Nossa estadia está
acertada, incluindo os mantimentos, bolos de kengy e Goflin defumado, que o corpulento Daimon
coloca sobre o balcão para levarmos em nossa jornada. Vamos todos até o saguão e pego nossos
pertences na prateleira. Afivelo meu cinto com as armas e dou o alforje para Mogul carregar, enquanto
eu levo os reservatórios de skrill, mais pesados. Nadja já colocou a faixa transversal com a sua espada,
que fica disponível em suas costas, pronta para ser desembainhada rapidamente. É uma espada longa
de duplo gume. Imagino o que pode fazer com ela. Também carrega seus reservatórios, menores que
os meus, enquanto Dragsil leva um confortável alforje a tiracolo. Saímos pela porta de pedra e o ar
frio da montanha de vidro vulcânico nos atinge com rajadas súbitas. Ainda é madrugada e temos que
descer a estreita escadaria sob a luz diáfana da Lua dourada e púrpura, que já mergulha na linha negra
e entrecortada do horizonte. Quando chegamos na precária plataforma de voo, o Sol azul já lança sua
crista, em uma alvorada plácida, que se reflete no espelho negro da montanha. Os Daimons
transformam-se em Dragões. Arrumamos os arreios com nossos pertences. Nadja tem um lindo manto

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de montaria, todo colorido e trançado, que coloca na cavidade entre as asas de Dragsil. Sobe ao dorso
de sua Dragão, que ergue majestosamente o longo pescoço. É uma visão magnífica. Mogul me cutuca
com a cabeça, despertando-me de minha contemplação. Acaricio seu imenso focinho brilhante e subo
em seu dorso, escalando pela perna dianteira, que Mogul me oferece solícito. Dragsil e Nadja alçam
voo antes de nós. Mogul as segue, enquanto me deleito com a decolagem perfeita de meu amigo.
Emparelhamos o voo em altura média. Ainda não precisamos nos esconder, mas precisaremos em
breve. Nuvens pesadas começam a se juntar acima, prenunciando a chuva fina que agora bate em
nossas faces. Quando a intensidade aumenta, Mogul e Dragsil ascendem, atravessando o manto de
nuvens. O mundo é de um cinza enevoado por alguns minutos, então ultrapassamos a camada espessa.
Eis que se abre um céu sem fronteiras, iluminado pelos três Sóis, cuja luz e calor secam meu pelo e
reconfortam a alma. Olho para Nadja e vejo um sorriso em seus lábios finos. Devemos estar
sobrevoando o grande rio Intol, que não podemos ver devido ao tapete nebuloso abaixo de nós. Meus
pelos estão secos novamente e a camada de nuvens está chegando ao fim. Podemos ver ao sul o grande
Oceano Verde, com suas águas de esmeralda. Vamos costear o litoral em um grande desvio, passando
por trás da Cidade de Ferro e visando os limites a leste da muralha. O ataque que eu e Mogul fize mos
no oeste da Cidade de Ferro, certamente deixou como sequela uma vigilância estrita. O território
Grahoul fica ao norte de onde estamos. Os cascudos não esperariam nossa chegada vindos do Oceano,
ao sul. Sobre ele voamos agora, flutuando sobre um interminável lençol ondulante de esmeralda
cintilante. Os corpos luzidios de skrill de nossos Dragões, fazem com que estes se confundam com as
águas verdes, refletindo em suas escamas brilhantes o movimento das ondas. Por um momento, sinto
que somos parte do Oceano. Fluxos, correntezas que se formam na Divina Ação de Nanshe, a Mãe da
Água: a negra tempestade turbulenta que lança seus relâmpagos dourados no horizonte. Contornamos
a tempestade, voando em direção ao alto mar. Já nos molhamos o bastante por hoje. Reverencia mos
Nanshe, bailando no ar ao redor de sua tempestade divina. Voltamos a nos aproximar do litoral, pois,
após voarmos durante o dia todo, já nos aproximamos da face sul da Montanha do Dragão Pai. A
descomunal silhueta cônica e negra que se recorta no horizonte à nossa direita, assemelha-se a um
portal gigantesco para um mundo sombrio. Para lá rumam nossos Dragões. Uma angústia me invade.
Mataria mais? Se necessário, sim. Isso não me reconforta nem um pouco. Como todo Grahoul, aprecio
a vida. A minha e a alheia. Quando a vida alheia ameaça a existência de meus amores, um vórtice se
forma em meu peito conclamando à luta. Tento lutar sem ódio. Não consigo ainda. Sou apenas um
aprendiz da ação perfeita, humildemente confesso. Sinto o peso familiar de meus facões em minha
cintura. Nós nos entendemos bem. Sabemos dançar juntos a dança da morte. Olho para a espada de
Nadja, repousando enviesada em suas costas. Rezo a Nanshe para que saibam bailar juntas também.
Entramos no espaço de pedra fria, com picos escarpados assomando sobre nós. Só há o cheiro metálico
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da rocha. Não farejamos vigias. A noite se aproxima e os três Sóis já se recolheram às suas tocas para
repousar. Na penumbra, localizamos um platô oculto por uma sebe de grandes árvores. Farejamos
água. Os Dragões circulam cautelosamente o local antes de pousarem no chão rochoso. Eu e Nadja
desmontamos, escorregando sobre os grandes dorsos luzidios. Retiramos os reservatórios de skrill e
os alforjes, desafivelando suas correias. Mogul e Dragsil rapidamente se transformam em Daimons,
evitando que os grandes corpos de Dragão sejam localizados de cima. Ainda que não haja odor de
inimigos, a tensão no ar é quase uma matéria sólida. Procuramos um abrigo nos arredores e
encontramos uma pequena caverna, cuja entrada é quase invisível. Uma nascente de água límpida brota
de seu interior. Levamos as bagagens para o interior da caverna. Os Daimons vão nos aguardar aqui,
quando eu e Nadja formos explorar o que há além das muralhas de ferro. Repartimos uma refeição
frugal de bolos de kengy e frutos desidratados de Lotka, com alguns nacos de Goflin defumado.
Bebemos a água pura e deliciosa da nascente. Repousamos por algumas horas, esperando a noite se
instalar definitivamente. É tempo de Luas ocultas e o céu hoje deve estar muito escuro, iluminado
apenas pelo brilho de infinitas estrelas, distantes demais para clarear a treva. Durmo abraçado a Nadja,
em um canto aconchegante da caverna. Dragsil e Mogul se deitam mais próximos à entrada, ansiando
por ar livre como todo Dragão. Meus sonhos no Mundo Duro me poupam. Vivo momentos de repouso,
longe dos embates humanos de meu rijo imaginário onírico. Acordo com Nadja sussurrando
suavemente em meus ouvidos. “A noite está escura. Vamos clarear.” Dou-lhe uma pequena lambida
trocista no focinho e me levanto, esfregando os olhos ainda inchados de sono. Os Daimons acenderam
uma pequena fogueira e afiam meus facões e a espada de Nadja com pedras apropriadas. Passam skrill
nas lâminas e as guardam cuidadosamente nas bainhas. Lavo minha face na água gélida da nascente e
sinto meus sentidos despertarem. Escuto cada minúsculo ruído ao nosso redor e meu faro discrimina
os milhares de minerais e seres vivos deste recanto tão distante de nosso lar. Afivelo meu cinturão de
couro com os facões e a faca de caça, enquanto Nadja coloca sua espada nas costas, vestindo a faixa
de couro transversal que segura a bainha. Está usando um conjunto confortável de couro elástico de
Girim, composto por uma calça justa e uma blusa que lhe recobre apenas os belos seios. Eu coloco
meu jaquetão de couro grosso. Abraçamos ternamente os Daimons e saímos da caverna para a noite
escura. Grahouls enxergam muito bem na escuridão. Nosso faro aguçado complementa as imagens
imersas em treva, formando quadros claros e definidos em nossas mentes. Imagens de odor, se
podemos chamar assim. Seguimos em direção aos paredões rochosos, caminhando para o leste à
procura do início da muralha de ferro. Tentamos ao máximo nos manter juntos à rocha escura,
deslizando na noite como sombras. Contornamos a montanha por algumas centenas de passadas e
repentinamente vemos erguer-se a nossa frente o bloco escuro e imensamente alto da muralha.
Subimos pelas pedras, agarrados a cada pequena saliência que nos permita um apoio. Nadja, mais leve,
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sobe primeiro. Quando estamos a alguns metros do chão, estacamos ao mesmo tempo, colados ao
paredão. O cheiro nauseante de um Dragão verde invade nossas narinas. Procuramos rapidamente
alguma fenda que nos dê guarida. Felizmente, uma grande rachadura na rocha lisa, permite que nos
ocultemos. Reduzo meu ritmo respiratório para que o odor de meu hálito não se propague. Encostado
ao corpo de Nadja, sinto que sua respiração é quase imperceptível também. Já divisamos voando bem
acima de nós a silhueta escura do Dragão contra o céu estrelado, certamente carregando em seu dorso
um cascudo armado e atento. Vemos a silhueta se aproximar e sinto os músculos de Nadja se
tensionando para a luta. Sinalizo com uma carícia que ela deve relaxar. Um corpo tenso exala um odor
mais forte. O Dragão passa a apenas algumas batidas de asa de nosso esconderijo, mas o ar frio da
noite evita que uma corrente ascendente de ar nos denuncie. Vemos o grande vulto se afastando e
finalmente desaparecendo por detrás da muralha. Não ousamos nos mover por um bom tempo, até que
finalmente não sentimos mais nenhum odor que indique perigo. Retomamos nossa escalada
cuidadosamente e sem pressa. Subimos durante um tempo que parecia interminável, até que
alcançamos enfim o topo achatado e largo. Uma grande construção ovalada, com imensas janelas de
vidro que parecem grandes olhos de brilho esverdeado, chama imediatamente a nossa atenção. O
prédio fica acima da altura da muralha, encaixado nas encostas rochosas como se tivesse sido esculpido
ali. Atravessamos o espaço que nos separa dele, nos equilibrando precariamente nas saliências que
encontramos pelo tato, pois o paredão rochoso e a muralha cobrem a parca luz das estrelas que até
agora nos permitiam enxergar. Agora a escuridão é total e só a luz fantasmagórica das janelas de vidro
nos orienta em nosso trajeto. Quando finalmente chegamos nas paredes abauladas e lisas, nos damos
conta de que não há nenhum sinal de uma entrada possível. A cúpula do prédio é imensa e não podemos
esquadrinhar cada centímetro apenas apalpando com as mãos. Decidimos aguardar o nascer dos Sóis,
ainda que isso seja muito arriscado. Não temos opção. Subimos sobre a cúpula e vamos apalpando as
rochas ao longo da junção com a montanha. Sentimos ao longe o odor de mais inimigos, mas
finalmente encontramos uma cova natural onde nós dois podemos nos acomodar. Deitamos com
nossos corpos ainda quentes devido ao exercício, mas após algum tempo o frio começa a vencer nosso
metabolismo que se desacelera. Abraço Nadja, que relaxa seu corpo ao meu toque. O frio cede e
conseguimos adormecer por algum tempo em um sono agitado e sem sonhos. Quando os primeiros
raios do Sol azul iluminam suavemente o céu, nos esgueiramos para fora de nossa cova e nos
concentramos em procurar uma entrada. Nadja, com sua visão aguçada, divisa ao longe o que lhe
parece um entalhe circular na rocha. Seguimos até lá e constatamos que se trata de um provável duto
de ventilação, coberto por uma forte grade de aço. Não é possível passar por ela. Então, repentiname nte
nos assustamos com um movimento brusco a apenas algumas passadas de onde estamos. Trata-se de
um grande lagarto montanhês, de pele luzidia e cor semelhante à da pedra. Ele sai de um orifício que
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não havíamos percebido, assustando-se com nossa inesperada presença e correndo para o topo da
montanha a uma velocidade incrível. Imediatamente, vamos até o local de onde vimos o lagarto sair e,
para nossa satisfação, encontramos uma falha na rocha que deixa exposta a parede abaulada do duto
de ventilação. O tom vermelho da ferrugem cerca um grande orifício, provavelmente usado como toca
pelo lagarto montanhês. Alargamos o buraco, arrancando pedaços enferrujados de metal da borda.
Penetramos no duto e vamos seguindo, andando de quatro, pela larga tubulação. Não gosto de espaços
fechados e apertados, pois estou acostumado às amplitudes celestes do voo. Nadja também não parece
nada feliz, enquanto nos arrastamos por aquele tubo estreito e baixo, grande o suficiente apenas para
que possamos engatinhar por ele como Kyons. O duto cessa subitamente, bloqueado por outra grade.
Examino-a e noto que a ferrugem corrói os parafusos que a prendem no lugar. Enfio cuidadosamente
minha faca de caça no encaixe e faço uma alavanca, usando toda a força de meu corpo, confiante de
que o aço rijo da lâmina aguentará a tração. Com um pequeno estalido, os parafusos se quebram e a
grade se solta de sua moldura. Silenciosamente, nós a passamos para trás de nós, colocando-a sobre o
piso do duto. Coloco a cabeça para fora e vejo que estamos próximos do teto de um saguão com um
grande sofá e um estranho símbolo esculpido na parede oposta: uma grande letra G ladeada por asas
de Dragão. Sob elas, uma inscrição em um alfabeto semelhante ao nosso. Reconheço a palavra inscrita :
Gênesis. Viro o corpo com dificuldade no duto estreito enquanto Nadja recua, descendo minhas pernas
primeiro e me segurando com a força de minhas garras à borda da saída. Olho para baixo e estimo que
terei que saltar uma distância equivalente a duas vezes a minha altura. Solto as mãos e deixo meu corpo
despencar, amortecendo a queda ao cair agachado sobre o chão espelhado e impecavelmente limpo.
Nadja se pendura também e se deixa cair, enquanto eu a seguro, ajudando a amenizar o impacto com
o chão. Não há ninguém no salão. Ainda é muito cedo e a manhã apenas começa, mas não podemos
perder tempo pois certamente haverá movimento em breve. Caminhamos até uma pesada porta de
madeira na extremidade do saguão e encostamos a ela nossos ouvidos, escutando atentamente. Posso
ouvir os ruídos de apenas um indivíduo, que parece manipular objetos que soam como vidro tilinta ndo.
Testo a maçaneta com muita cautela. A porta está aberta. Eu e Nadja nos entreolhamos e nos
entendemos sem a necessidade de palavras. Nadja abre a porta subitamente enquanto eu salto no ar,
cobrindo instantaneamente a distância que me separa do cascudo sentado sobre um banco, de costas
para nós. Antes que ele possa se virar, meus braços já estão encaixados em volta de seu pescoço em
um estrangulamento preciso, que lhe tira a consciência em instantes. Deixo cair ao chão o cascudo
desacordado e exploramos o estranho ambiente. Parece algum tipo de laboratório, com vidrarias cheias
de líquidos de diversas cores, além de estufas e outras máquinas que não reconhecemos. Vemos
pequenos frascos abertos no balcão onde o cascudo realizava suas misteriosas manipulações. Temos
que despertar nosso inimigo, placidamente desmaiado, para colhermos algumas informações sobre o
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que se passa aqui. Descubro uma torneira e encho um vasilhame com uma água de cheiro inerte e
artificial, talvez filtrada para fins que desconhecemos. Derramo a água sobre a face do cascudo e ele
acorda entre engasgos e espirros, olhando-nos com grandes olhos arregalados quando recobra
totalmente a consciência. “Qual o seu nome?” – pergunto. Ele olha, desorientado, para um lado e para
o outro, até vagarosamente fixar os olhos apavorados nos meus. Percebo em um instante ínfimo que
ele vai gritar, mas minha faca de caça já está antecipadamente preparada e, antes que emita qualquer
som, a ponta aguda e metálica já pressiona a artéria pulsante em sua garganta. Ele se imobiliza, rígido
como um cadáver, sua respiração ofegante denunciando seu pavor. Pressiono um pouco mais a ponta
da adaga mostrando-lhe que sua vida pode se esvair rapidamente. Pergunto novamente: “Qual o seu
nome?” – pausando as palavras e apontando para seu rosto com a garra de meu indicador. “Hamo so
Gizeh.” Ele responde em grunhidos roucos. Fico confuso, mas Nadja, que estivera vigiando a porta,
sussurra para mim: “Ele está dizendo que se chama Gizeh.” Assinto com a cabeça. Com a adaga ainda
pressionada contra seu grosso pescoço, pergunto pausadamente: “Gizeh, o que fazem aqui?” – ao
mesmo tempo em que lhe indico todo o arredor. Ele compreende. Olha para mim fixamente e silenc ia.
O vértice agudo de minha faca penetra ligeiramente em sua pele verde, causando um fino fio de sangue.
Gizeh dá um grunhido. “O que fazem aqui?” – repito. Ele emite um gemido rouco de angústia e fala
em palavras rascantes, como que me insultando: “Hagamos ficotesh.” Já havia me acostumado com a
semelhança de seu dialeto com a língua Grahoul, após a primeira interpretação de Nadja. Prefiro, no
entanto, acreditar que não entendi e olho para minha parceira. “Sim, Tandir, eles fazem filhotes aqui.”
Encaro novamente o cascudo, cujo avental branco já se manchara de sangue na lapela. Digo-lhe em
um rosnado grave: “Mostre.” Gizeh responde em um sussurro que é mais um gemido: “Heis von mateh
me.” Vejo um medo terrível em seus olhos verde escuros. “Quem são eles?” Gizeh fica apenas ganindo
baixinho. “Eu vou matar você se não nos mostrar” – digo-lhe, calmamente. Começo a afundar
minimamente a adaga. O cascudo irrompe em uma algaravia. “Toh, toh, toh, mosterah chi, mosterah
chi, piedos me!” Eu o levanto do chão, puxando pela gola ensanguentada do avental. Gizeh se firma
nas pernas. Um odor de fezes e urina emana dele. Indico-lhe a porta, mas Gizeh aponta para uma
escotilha de ferro blindado nos fundos do laboratório. Faço um gesto afirmativo com a cabeça e meu
olhar lhe assegura de que estará morto imediatamente na eventualidade de qualquer armadilha. Nadja
fecha a porta que dá para o saguão e nos dirigimos para a porta blindada, com Gizeh à frente, seguido
pela ponta de minha adaga em suas costas. Ele tira do bolso do avental uma chave, o que quase lhe
custa uma perfuração no pulmão. Felizmente há uma boa coordenação entre meus olhos e meus
reflexos. Gizeh, um pouco mais fedorento ainda, insere a chave na fechadura e gira uma grande
manivela, que faz deslizar um fecho de aço, com um estalo. A porta se abre e penetramos em um
corredor arredondado e estreito, pouco mais alto que nós. Ao longo do corredor há pequenas escotilhas
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redondas, com vidro grosso, que nos permitem uma visão do outro lado. O que vemos, escotilha após
escotilha, são fileiras de pequenas redomas transparentes, no interior das quais movem-se pequeninos
braços e pernas de um verde claro e tenro. Bebês cascudos. Milhares deles. Eram cuidados por afoitos
cascudos adultos, vestidos de avental branco, que corriam de lá para cá, regulando incubadoras, dando
mamadeiras, trocando os panos higiênicos e dando banho nos filhotes, aparentemente, recém-nascidos.
Percorremos algumas dezenas de escotilhas e todas nos desvendam o mesmo quadro: um salão imenso,
todo preenchido de incubadoras com bebês cascudos. Ordeno que Gizeh pare. Pergunto: “Para que
este corredor em que estamos?” – apontando o caminho que percorremos. Gizeh hesita indeciso, olha
primeiro para minha adaga e então aponta pequenos painéis de controle abaixo de cada escotilha.
“Regulamu fluides e temperater dus incubaterius.” Não posso negar que, por um instante, passa-me
pelo pensamento o infanticídio em massa de cascudos, que aqui se coloca sob minhas garras. Este
pensamento apenas ensombrece mais minha tristeza e culpa. Matar a vida nascente não é algo que um
Grahoul consegue fazer. Temos comandos de Nanshe moldando nosso espírito. Gizeh me olha com
olhos arregalados e ansiosos, talvez a espera de uma reação que não seria estranha aos cascudos, como
demonstra o misterioso envenenamento de nossas fêmeas Grahouls. Uma questão me assombra:
“Quem são as mães?” – pergunto ao trêmulo inimigo. Ele começa a tremer ainda mais, fazendo gestos
de negação com a cabeça. Minha adaga voa para sua garganta e se detém apenas para perfurar
levemente a pele, fazendo brotar uma gota de sangue. Nadja apenas assiste impassível, segurando sua
espada afilada e brilhante, pronta para me apoiar no caso de alguma reação impensada do cascudo.
Este percebe que está à nossa mercê e parece decidir cooperar: “Mosterah, mosterah! Tu ved!” Recuo
a adaga e Gizeh se aprofunda ainda mais no corredor. Chegamos em um ponto onde as escotilhas tem
cor e controles diferentes das que vimos até agora. Nadja vigia Gizeh, enquanto olho através de uma
delas. Vejo um imenso salão, semelhante aos que contém as incubadoras. Mas aqui há camas. Sobre
as centenas de camas, Grahouls fêmeas com barrigas protuberantes, dormem, aparentemente dopadas.
Também são cuidadas por cascudos que vão para lá e para cá, fazendo medidas com aparelhos e
eventualmente levando uma delas, contorcendo-se em contrações de parto, em padiolas, saindo por
grandes portas na extremidade oposta do salão. Meu estômago se embrulha e recuo atordoado. Nadja
me olha preocupada e eu gesticulo para que ela veja por si mesma. Penso em eliminar Gizeh ali mesmo,
mas me controlo. Nadja olha e apenas baixa a cabeça tristemente. Mas há mais para saber: “Quem são
os pais, Gizeh?” Ele me olha com ar aparvalhado, mas já se conformou. “Non patres. Un patre.” Fico
intrigado e demonstro isso com um movimento incontido da faca. O cascudo fala rápido: “Draco!
Draco pater!”. O Dragão Pai? – penso, ainda mais aturdido. Nadja apenas pisca repetidamente, como
que para se certificar de que está desperta. Comando: “Mostre.” Gizeh dá de ombros e caminha
cabisbaixo pelo caminho de volta, no corredor. Reflexões caóticas preenchem minha mente enquanto
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vou andando, ainda assim atento a qualquer reação inesperada do cascudo. Passamos pela linha
interminável de escotilhas e desembocamos novamente na porta blindada do laboratório. Eu e Nadja
farejamos atentamente, a procura de indícios de mais cascudos, pois a manhã já se adiantava e o grande
complexo de reprodução certamente fervilharia de movimento. Mas aqui o caminho está livre. Nadja
encontra, em um canto, uma prateleira com aventais e grandes máscaras, que já havíamos visto sendo
usadas pelos atendentes dos bebês cascudos. Certamente um implemento para evitar contaminações
pela respiração. Um bom disfarce para nós. Ela tira um par de cada, trazendo-me um avental e uma
máscara. Visto o avental e assento a máscara em meu focinho, um pouco grosso para o aparato. Nadja
faz o mesmo. Avalio o efeito: exceto por uma traição de Gizeh, não seremos reconhecidos se cruzarmos
com alguém. Mostro a adaga ao cascudo, que prendo com uma faixa ao meu punho, logo abaixo da
manga do avental, pronta para ser usada em caso de necessidade. Nadja prende sua espada rente ao
ventre e ao peito, também disfarçada pela vestimenta larga. Estamos prontos. Dou um comando a
Gizeh para que nos guie e saímos pela porta de madeira, para o amplo saguão lá fora. Seguimos juntos,
com o cascudo entre mim e Nadja, abrindo outra porta na extremidade oposta do saguão. Entramos em
um grande corredor, com alguns atendentes que passam por nós atentos aos seus afazeres e registros,
sem notarem nossa presença. Ao longo do trajeto, grandes salas, que pareciam ser escritórios cheios
de notários. Penso que são os que cuidam de registrar os tenebrosos acontecimentos que se desenrolam
neste complexo. Passamos também por depósitos de ervas e líquidos, com extensas bancadas onde
cascudos compenetrados manipulam fórmulas, cujos conteúdos e propósitos me arrepiam só de
imaginar e farejar. Sinto adiante a fragrância quase imperceptível do skrill, quando passamos por
imensos tonéis de madeira, empilhados em uma espécie de depósito, ou adega. Aqui, não há ningué m
próximo. Gizeh nos conduz até um aposento escondido entre os tonéis. É um barracão com apenas
uma porta e fechado de todos os lados. Desconfio de uma armadilha e emito um rosnado grave e baixo.
O cascudo estremece e faz gestos de apaziguamento, indicando-me um alçapão, sobre o qual estamos
pisando. Afastamo-nos para os lados, enquanto Gizeh puxa uma alça oculta, a qual produz um estalido,
enquanto a tampa de aço começa a deslizar para o lado, expondo o início de uma escadaria de pedra.
Travo o mecanismo de fechamento da tampa com uma pedra, estrategicamente colocada em uma
engrenagem pouco visível. Gizeh vai na frente, descendo a escadaria, iluminada por simples tochas
de resina, fixas nas paredes a intervalos regulares. Somos ladeados por relevos e pinturas
deslumbrantes, que me lembram os que vimos no corredor de entrada da caverna da Dragão Mãe. Vejo
que, ao lado de cada tocha, há o nicho para um altar de luz, que talvez os cascudos não saibam mais
produzir. Sob a luz tremeluzente das tochas, as figuras nas paredes parecem bailar e lutar, criando um
efeito fantasmagórico e irreal. Descemos por um longo tempo em meio àqueles batalhões dançantes,
até chegarmos a um grande portal em arco, o qual transpassamos. Entramos em uma caverna
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incomensurável e escura, apenas iluminada pelo corpanzil colossal de um Dragão ainda maior que a
Dragão Mãe. Sua silhueta só é distinguível do solo rochoso da caverna, devido ao brilho mortiço e
acinzentado que emana de seu corpo e do inconfundível cheiro bom, tênue e amortecido, de um
verdadeiro Dragão, zelosamente cuidado com fricções de skrill. Não há ninguém aqui. Nosso faro
apurado só detecta o odor do Dragão Pai. Só escutamos o seu ressonar plácido. Por um momento,
contemplo a imensidão da caverna, entristecendo- me com o silêncio e a imobilidade. Sinto a mente de
Mogul, sempre conectada à minha, entristecendo-se também. Empurro Gizeh adiante e nos
aproximamos do gigantesco corpo inerte. Peço a Nadja que vigie o cascudo enquanto eu examino a
pele áspera que emite um brilho pálido. Está em boas condições, besuntada de skrill de qualidade, mas
noto que há áreas extensas mais escuras, onde faltam escamas ou onde elas estão atrofiadas, ainda em
regeneração. Examino o chão em volta e noto uma minúscula escama caída, a qual recolho e examino
atentamente. Sou um exímio conhecedor de tudo o que se refere a Dragões e vejo que esta escama foi
arrancada por meios mecânicos, tendo um quase imperceptível fragmento de pele viva em sua base.
Estariam os cascudos arrancando escamas do Dragão Pai? Mas com que intuito? Viro-me para Gizeh
e pergunto-lhe irado: “Que fazem com isto?” Gizeh olha para o chão, evitando meu olhar. “Fecundati
Grahoulas.” – ele diz, num sussurro. Nadja e eu nos entreolhamos, tentando nos convencermos de que
havíamos entendido. “Vocês fecundam as Grahouls com as escamas do Dragão Pai?” – pergunta Nadja
sibilando. Gizeh não responde e continua olhando para o chão. Começa a se balançar levemente, em
nervosismo incontido. Após um breve silêncio, em que procurávamos assimilar a informação, o
cascudo murmura: “Povi nostri e gestatu asi. Nostri existire e dependu de Draco Pater. Projetoi
Genesis” – diz, mostrando tudo em volta, quase que orgulhoso. Enfureço-me, mas mantenho minha
mente fria como gelo. “ É para isso vocês raptam nossas Grahouls e mantém o Dragão Pai como um
morto vivo? Melhor que não existissem!” Gizeh eleva a cabeça me olhando altivamente nos olhos.
“Existimu.” – ele diz em tom monótono. Não consigo ter ódio desse ser trágico. Talvez isto seja um
erro. “O que vocês fazem para manter o Dragão Pai vivo, porém adormecido?” – pergunto. O cascudo,
ainda me encarando, responde: “Herbi proprie. Draco Pater e multo beni tratato. Alimentate co m
miliore comiti. Passate skrille totu corpu de Draco Patre. Nostre patre. Multo beni tratato!” Reflito em
todas contradições que cercam a própria existência deste ser trágico, que tenta me convencer da justiça
do que fazem. Por algum processo maléfico, utilizam o tecido vivo das escamas arrancadas do Dragão
Pai para gerar filhotes em nossas fêmeas raptadas. Decido que há muito em que pensar e agora devemos
sair deste lugar infernal. Já sabemos o suficiente. Nadja está absorta em seus pensamentos, com um
olhar triste. Aceno para ela e voltamos para a escadaria, caminhando lentamente. Gizeh está mais
confiante, como que reanimado pelo contato com a fonte de sua vida. Um parasita feliz com a visão
do corpo exangue e disponível de sua vítima. Subimos, atravessando o turbilhão de imagens das
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paredes, que agora parecem nos ameaçar com seu bailado sombrio. A imensidão de nossa descoberta
me aterra. Após um tempo que me parece infinito, chegamos à tampa do alçapão, felizmente ainda
aberta. Farejamos cuidadosamente e nos certificamos de que não há nenhum cascudo ao redor.
Subimos para o depósito de skrill e voltamos pelo grande corredor, agora bem vazio. Sinto o odor de
uma comida estranha para mim. Indago Gizeh com os olhos e ele me explica: “Tempu de Comiti.” –
fazendo o gesto de comer com as mãos. Hora de refeição dos cascudos. Boa hora para escaparmos.
Caminhamos rapidamente de volta ao saguão por onde adentramos o complexo. Entramos pela porta.
Não há ninguém ao alcance de nosso faro. Enquanto Nadja vigia Gizeh, com a espada desembainhada,
eu coloco uma mesa alta sob a entrada de ventilação. Com uma cadeira sobre a mesa, já consigo
alcançar a borda do duto. Vou até Gizeh, com a faca em punho. Quando ele se volta, apavorado, para
me olhar, Nadja enlaça seu pescoço com seus braços esguios e musculosos, travando um
estrangulamento perfeito, que em breves instantes faz o cascudo desmaiar. Não o matamos. Outro erro
que não podemos evitar. Nadja sobe primeiro para o duto de ventilação e eu a sigo. Andamos de
gatinhas até a rachadura enferrujada onde o lagarto fizera seu ninho. Saímos com grande alívio para a
montanha de pedras escuras. O dia vai alto e não podemos nos arriscar a voltar para nossa base, com
tal claridade, pelo mesmo caminho em que viemos. Logo Gizeh vai acordar e teremos soldados em
nosso encalço. É um caminho por demais exposto. Também não podemos ficar aqui. Decidimos nos
enfronhar na montanha e descer por sua face oeste. Procuramos um caminho cheio de obstáculos por
entre as rochas escarpadas, nos afastando bastante da entrada do duto. Quando descemos o suficie nte,
atingimos um pequeno platô onde corre um filete de água, o qual seguimos. Encontramos uma caverna
de onde flui uma nascente subterrânea. Matamos nossa sede e seguimos andando cautelosamente pelo
fio de água que desce a montanha, serpeando entre as pedras, disfarçando assim o odor de nossos
passos. Caminhamos por longo tempo nesta trilha líquida e, quando a tarde já está avançada, decidimos
esperar a noite em uma cova profunda que encontramos ao investigar uma rachadura na parede
irregular de pedra. Entramos profundamente no seio da montanha. Deitamos, aliviados e gratos pelo
repouso. O ar fresco e imóvel e o silêncio que nos propicia a cova, logo embalam nosso sono. Meio
adormecido, meu faro me diz que o cio de Nadja está próximo. Isto pode ser um problema, nas atuais
circunstâncias. O cansaço vence o breve impulso fisiológico que sinto. Mergulho nos sonhos imutáve is
do Mundo Duro. Adormeço abraçado a Nadja, que já ressona. Acordo depois do que me parece um
breve instante. Mas não. Já é noite e a escuridão na caverna é total. Farejando, percebo que Nadja está
próxima à entrada. Vou até ela, tateando na pedra invisível na treva. Nadja me avisa, com um toque,
para não me mover. Estamos bem na abertura da cova. Agora posso sentir o odor longínquo de Dragões
verdes e cascudos. Certamente uma patrulha a nossa procura. Entramos um pouco mais para dentro da
abertura na rocha e nos sentamos, aguardando pacientes, eventualmente checando os odores que o
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vento nos traz. Agora não há nenhum traço de patrulhas. Saímos da cova e continuamos nossa descida
pelo riacho, que é menos inclinado e mais abundante de água aqui. Em breve vemos sinais de
vegetação. Estamos na base da montanha. Agora todo cuidado é pouco. Procuramos nos manter sob a
vegetação mais densa. Os sinais mentais de Dragsil e Mogul nos orientam quanto à direção a tomar.
Chegamos a terreno conhecido e nossa velocidade aumenta. Em breve sentimos as saudações felizes
dos Daimons. Estamos em nosso acampamento. Entramos na caverna, abraçando nossos parceiros
daimônicos. Uma fogueira reconfortante arde no chão, iluminando o ambiente. Esfomeado, vou até o
alforje e pego dois bolos de kengy, oferecendo um deles para Nadja. Comemos em silênc io,
compartilhando nossas informações mentalmente com os Daimons, que baixam suas cabeças e
começam a entoar um cântico de prece, quando lhes informamos da situação do Dragão Pai. Nadja e
eu estamos muito tristes também. Despimos nossas roupas e nos banhamos na nascente, que forma
uma pequena piscina no fundo da caverna. Conversamos sobre as ações possíveis, frente ao quadro
desolador que descortinamos. Parece-me fundamental descobrir a maneira de despertar o Dragão Pai,
libertando-o de seus parasitas, os cascudos. Também precisamos libertar as Grahouls raptadas e
forçadas a gerar por esse povo maldito. Não penso em represálias ou em morticínios. Quero salvar os
nossos, que estão submetidos a sofrimentos indizíveis para garantir a existência dos cascudos. Nadja
concorda comigo. Assim agem os Grahouls. Mas como começar? Nossas mentes estão exaustas e não
mais conseguimos pensar direito. Nadja exala levemente o perfume inebriante e irresistível de uma
Grahoul no cio. Mogul e Dragsil percebem nossos desejos e nos deixam a sós na caverna, saindo
abraçados para a noite escura. Deito-me sobre a cama improvisada de palha que os Daimons fizera m.
Nadja vem até mim e fazemos amor longamente, por horas a fio, na penumbra da caverna, iluminados
apenas pelas brasas da fogueira. Nadja adormece antes de mim. A última coisa que me vem à mente é
a saudação distante de Mogul, que deve estar também se divertindo com Dragsil no interior da mata.
Nossos amores influenciam os Dragões, assim como os deles influenciam os nossos. Adormeço.
Acordo com uma malha rija e fria pressionando todo o meu corpo. Penso primeiro que estou sonhando.
Não estou. Uma rede de aço me comprime ao corpo nú de Nadja, enquanto as carantonhas grotescas
de soldados cascudos dão risadinhas maliciosas. Fomos capturados. Somos arrastados para fora da
caverna por uma dúzia de soldados e vejo quatro Dragões verdes, com seus condutores mal-encarados
sobre os dorsos. Nossos Daimons não estão à vista, mas correm grande risco! Emito uma advertência
mental para que Mogul não se aproxime e digo a Nadja, que se debate, furiosa, para fazer o mesmo
com Dragsil. Digo a Mogul que aguardem próximos à cidade, bem escondidos. Um Dragão sempre
sente a morte de seu Grahoul, mesmo à grande distância. Se sentirem que eu e Nadja morremos, ele e
Dragsil devem voltar para a aldeia da Falésia e contar tudo aos outros Grahouls. Sinto a concordância
aflita de meu Dragão, enquanto sou carregado junto com Nadja, por quatro soldados corpulentos que
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nos jogam nas costas do maior dos Dragões verdes, amarrando-nos aos arreios firmemente. Estamos
indefesos como peças de caça abatidas. O condutor do imenso Dragão verde vira para nós sua cara
grotesca, esboçando um sorriso malévolo, olhando o corpo desnudo de Nadja, que ainda exala seu odor
de fêmea no cio. Consigo acertar uma cuspida certeira bem no olho esquerdo do cascudo, que pragueja
horrivelmente. Vejo uma clava em sua mão. A pancada me atordoa. Sinto um líquido amargo sendo
derramado em minha garganta. Então, a escuridão.

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