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Marcelo Ribeiro dos Santos

TANDIR E MOGUL
Vol. 1: O Despertar dos Drachs

Nº 2: TD 33

Seriado Eletrônico Mensal de Realismo Fantástico


Esta é uma obra real. Qualquer semelhança com
seres ou acontecimentos imaginários é mera
coincidência.

ISSN 2595-9891

Expediente:

Criação: Marcelo Ribeiro dos Santos

Editor de Arte: Brian S. R. Santos

Revisão: Tânia V. Barela

Contato Comercial: Eric S. R. Santos

Editora: Naos Likaion (CNPJ: 32.216.134/0001-30)

Rua Arthur Nazareno Pereira Villagelin, 125 – Barão Geraldo (CEP:13085-638) Campinas/SP

fone: (19)997231562 mail: naoslikaion@gmail.com

Campinas

04/2020

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Capítulo 2: TD33

Voamos por apenas uma quinta parte do dia, sobrevoando a extensa


Floresta Magna, que assim se chama devido à imensidão de suas árvores
antigas. Nada podemos enxergar sob a abóbada entrelaçada de copas com
folhas multicoloridas e de todos os tamanhos. É só nosso faro aguçado que
nos permite pressentir sob as folhas, potenciais caças saborosas. Mas este
não é nosso intento. Queremos recolher frutos de Lotka e fazer skrill para
levarmos conosco no que pode se tornar uma longa jornada. Deixaremos
também uma boa reserva para o consumo de Irien enquanto estivermos fora.
Logo as árvores mudam de semblante e podemos divisar do alto os galhos
brancos e as folhas miúdas e brilhantes das árvores Lotka. Mogul desce em
círculos, até uma clareira grande o suficiente para o pouso de um Dragão.
Pulo para o chão de areia fina e clara. As Lotkas gostam de solo arenoso e
superficialmente seco. Mogul se transforma em Daimon, naquele bailado de
movimentos breves que nunca me canso de admirar. Caminhamos até uma
das tocas escondidas sob a mata. Ao lado da sólida construção de madeira
corre um arroio de águas límpidas, no qual bebemos até nos fartar. É este
mesmo arroio que irriga as raízes profundas das árvores Lotka que abundam
aqui. Vemos os cachos de frutos redondos e vermelhos, pendentes como
colares de pedras preciosas das copas verde-claro. Muitos Goflins, com seus
bicos finos e pele brilhante, pululam entre os galhos, devorando frutos. Os
Goflins são parte de um sistema orgânico que nos envolve, sendo uma de
nossas caças prediletas. Sua carne é tenra e saborosa. Nós os selecionamos,
caçando apenas aqueles que não são os melhores para reprodução. Sua
qualidade e abundância são cuidadosamente cultivadas por nós, assim como
as árvores Lotka, alimento dos Goflins e o nosso também. Na verdade, as
Lotka são muito mais que alimento. De sua casca, por incisões cuidadosas

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que fazemos, brota a resina de que é feito o skrill, quando a colocamos para
fermentar por processos tradicionais que dominamos há muitas eras. O skrill
é o líquido espesso e cristalino com que besuntamos os Dragões e,
eventualmente, nossa própria pele, por razões cosméticas e curativas. Seu
efeito é umectante e cicatrizante, trazendo um frescor apreciado por nossos
Dragões. O skrill também possui dois outros efeitos ainda mais importantes:
fortalece a emissão de fogo, pois isola eletricamente a pele do Dragão,
transformando-o em um condutor perfeito. Além disso, confere um brilho e
uma reflexão que tornam o Dragão virtualmente invisível quando voa no céu,
disfarçando também seu odor. Os frutos vermelhos da Lotka são deliciosos
de se comer, normalizando as funções digestivas e eliminando parasitas,
dentro e fora do corpo. Não é de se admirar que Grahouls e Dragões
defendam com a própria vida as florestas de árvores Lotka, como esta em
que agora estamos. Começamos a fazer cestos de fibras trançadas para
recolher e transportar os frutos que levaremos. Com um de meus facões, abro
cortes finos e precisos na casca de uma grande e velha Lotka, já com diversas
cicatrizes de coletas anteriores. Os cortes são feitos de tal forma que, quando
cicatrizam, fortalecem e beneficiam a estrutura da árvore. Mogul defeca na
base das raízes. As fezes de Dragão são o fertilizante mais importante para
as Lotka. Os Dragões instintivamente defecam a quantidade certa em cada
árvore, fortalecendo suas raízes e dinamizando a circulação de seiva. Dos
frutos bem maduros, tiramos as sementes que colocamos em pequenas covas,
em lugares favoráveis e arenosos, aumentando constantemente a floresta.
Como podem perceber, não somos parasitas das Lotka. Somos seus amigos
e simbiontes. Todos os seres envolvidos no ciclo de vida das grandes árvores
sagradas se beneficiam. Inclusive elas mesmas. Faço grandes potes de argila
com a ajuda de Mogul. Colocamos dentro dos potes toda a resina doce
recolhida das incisões que fizemos. Juntamos água do arroio e algumas ervas
que conhecemos bem. Agora temos que esperar pela fermentação. Passamos

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alguns dias caçando Goflins e os devorando assados com frutos de Lotka.
Passamos longo tempo deitados, mascando raízes de Bak e cantando
melodias antigas. Gosto de apreciar a rica diversidade de seres que pululam
por entre os galhos das Lotkas. Faço uma cabine de defumação com galhos
e grandes folhas de Fratca arbustiva. As folhas desta planta, também
abundantes aqui, são resistentes ao fogo, que Mogul ateia na lenha verde
dentro da cabine. Colocamos diversas carcaças de Goflins, que caçamos em
armadilhas, para defumar. Irien terá um suprimento adequado de boa comida
quando partirmos. Passam-se cinco dias e o fermentado já está no ponto para
a fervura. Mogul aplica seu fogo dosado, de pote em pote, transformando o
líquido espesso e ainda escuro em skrill cristalino. Fechamos os potes com
tampas de argila cozida. É hora de juntarmos nossa carga e fazermos a
complexa amarração no dorso de Mogul, já transformado em Dragão. O
empacotamento de bens e alimentos e a amarração de transporte, são
especialidades dos Grahouls. A pilha de potes e cestos é simétrica e bem
equilibrada, não havendo risco de que se rompa a rede de cordas de fibras.
Assento-me no espaço que reservei para mim, na cavidade entre as asas, e
Mogul decola com esforço. Seu voo é baixo, devido ao peso da carga, mas
isso torna a curta viagem ainda mais bela, pois apreciamos com detalhes a
vida que fervilha abaixo de nós. Mesmo em voo lento, demoramos apenas
uma fração do dia para avistarmos o paredão colorido da Falésia. Mogul
procura uma corrente térmica e ascende em círculos amplos, mesmo com o
peso extra, abrindo as asas em toda a sua extensão. Logo pairamos acima da
Falésia, olhando as harmoniosas aglomerações de tocas e cavernas, que
embelezam o próprio ambiente natural. Mogul desce suavemente, em voo
planado, e aterrissa sem solavanco no campo de pouso da aldeia. Grahouls
amigos vem nos ajudar a desamarrar e transportar a carga. Logo chegamos à
nossa toca, onde Irien nos aguarda um pouco mais bem-disposta. Abraço-a
com delicadeza, aspirando seu odor magnífico. Ficamos abraçados durante

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algum tempo. Dou-lhe um beijo na fronte e vou ajudar Mogul que,
transformado em Daimon, já está acondicionando os suprimentos na
despensa. Tomamos o banho de praxe na piscina do jardim e nos recolhemos
para nosso sono de sonhos duros. Na manhã seguinte, comemos uma farta
refeição, compartilhada com Ragnulf e Frida. Irien consegue comer alguns
frutos frescos de Lotka, o que lhe traz um alívio imediato das dores na
barriga. Em um clima emocional mais leve e ameno, conversamos com
franqueza sobre o que deveria ser feito no caso de acontecer o pior e eu e
Mogul não voltarmos. Ragnulf e Frida são como nossa família e assumem a
responsabilidade total pelo bem-estar de Irien. Confio neles e lhes demonstro
minha gratidão com abraços ternos. Enquanto Irien volta ao quarto para
descansar, eu e Mogul nos preparamos para a jornada. Acondicionamos uma
grande quantidade de skrill em reservatórios especiais de couro
impermeável, que serão presos com correias logo atrás da cavidade em que
me acomodo, ajudando no equilíbrio do voo. Teremos skrill por um bom
tempo, assegurando a eficiência e saúde de Mogul. Isto é o mais importante.
De minha parte, coloco em um alforje mais uma calça de montaria e uma
jaqueta grossa de couro duro, que pode me proteger de cortes de lâminas,
mas não das armas de fogo dos cascudos. Prendo o cinto com meus dois
facões na cintura, sentindo o peso equilibrado de minhas armas prediletas.
Com uma presilha, fixo também a bainha de uma útil faca de caça no grosso
cinto de couro. Estamos prontos para a partida. Já nos despedimos de Irien,
que não quer nos ver sair e se recolhe no quarto. Com as últimas
recomendações de Ragnulf e Frida, nos preparamos para decolar no amplo
terreno atrás da toca. Mogul transforma-se em Dragão e eu prendo em seu
dorso os reservatórios de skrill e meu alforje. Assento-me na cavidade atrás
das grossas placas córneas e seguro casualmente na fenda própria para
encaixar as mãos. Entro em sintonia com a mente de Mogul. Uma
interrogação se desenha em meus pensamentos: “Para onde vamos?” –

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pergunta-me Mogul. Observo por alguns instantes a borda da Falésia e o céu
radiante com os três Sóis. Algumas nuvens policromadas pairam no
horizonte. Digo a Mogul: “Você conduz!”. Ele compreende e alça voo,
dirigindo-se para o sudeste. Eu nada faço, a não ser obedecer à risca à ordem
da Deusa: “Siga o Dragão”. Se alguma impressão de solenidade ou mistério
fica em relação à nossa partida, assevero que ela é totalmente equivocada.
Se não pedirmos a um Dragão para ir a algum lugar específico, há apenas um
local para onde ele imediatamente se dirige. Como recebi aquela
impressionante mensagem de Nanshe, encarnada em Rothrak, imaginei que
algum encanto mágico demoveria Mogul de sua reação mais esperada. Mas
não. Percebo que estamos tomando a exata direção da Taberna dos Dragões,
na Montanha da Dragão Mãe. Já havia ido lá por duas vezes, a convite de
Mogul. Ambas as experiências terminaram conosco voltando em voo
oscilante e trôpego, em que eu não mais distinguia céu ou terra e tinha visões
assaz pitorescas. O famoso Gulgur, o licor dos Dragões, era algo bastante
divertido, porém prejudicial à motricidade. Fico pensando se nossa grande
aventura vai morrer em frustrados cálices de Gulgur e uma conversa de
fracassados. Uma certa irritação toma conta de mim e Mogul me ignora
peremptoriamente. Ouço seu resmungo em minha mente: “Eu conduzo. Você
disse. Ranzinza!” Resigno-me aos arroubos de diversão de meu Dragão em
momento tão grave e fico pensando no tempo precioso que perderemos
enquanto Mogul se diverte com seu congêneres. Mogul responde a meu
suspiro com um flato fedorento que ribomba como um trovão no céu. Quase
consegue me fazer sorrir. Voamos o dia todo, passando sobre o suave vale do
Intol, o grande rio que corre para longe do mar, enfronhando-se no continente
desde suas nascentes, na Montanha do Dragão Pai, próximas da Cidade de
Ferro. Olho para baixo e vejo a Colina de Rubi, brilhando ainda mais rubra
sob a luz do Sol vermelho, o último a se esconder no horizonte. Somos duas
células, Mogul e eu, voando na colossal corrente sanguínea do Mundo Suave.

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Então, a treva estrelada sobrevém. Logo despontam na noite as duas Luas: a
prateada primeiro e logo depois a dourada e púrpura. Meu mau humor se
ameniza e decido simplesmente seguir os acontecimentos, sem me preocupar
com o porvir. Mogul emite um cordial fio de fogo, feliz com minha mudança.
Já madrugada, sob a luz evanescente da Lua dourada e púrpura, pois a Lua
prateada já desaparecera na escuridão do horizonte, divisamos os picos de
treva brilhante da obsidiana negra que forma a Montanha da Dragão Mãe.
Passamos sobre a planura de vidro da Arena do Gramgrad, o Campo de Voo,
e Mogul se dirige infalivelmente para o lado mais escuro entre as pedras,
penetrando fundo entre os picos escarpados e pousando em uma plataforma
precária, em um local que não me parece diferente de todos os outros na
Montanha. O odor limpo e frio da pedra vitrificada inunda minhas narinas.
Lembro-me de que tive a mesma impressão nas duas primeiras vezes em que
aqui estive. Seria incapaz de achar o local por conta própria, mesmo com
meu aguçado senso de orientação. Desço do dorso do Dragão, que
rapidamente se transforma em Daimon. Mogul carrega o alforje enquanto eu
carrego as pesadas bolsas de skrill. Sigo-o por uma trilha irregular, que
desemboca em uma estreita escada talhada no vidro vulcânico. Subimos
lentamente por uma infinidade de degraus escorregadios, cada vez mais alto
na imensidão negra, onde as paredes da montanha não se distinguiam da
treva purpúrea ao redor. Mogul sobe seguro e tranquilo e eu simplesmente o
sigo, sem pensar em nosso destino. Com os primeiros clarões dos três Sóis,
chegamos a uma porta camuflada na pedra. É quase um buraco informe, só
distinguível das demais reentrâncias por inscrições esculpidas a fogo nas
bordas da entrada. Adentramos a montanha e nos vemos em um saguão
amplo, iluminado pela luz de tochas toscas. Uma cortina de couro rústico no
canto esquerdo, atrás da qual ouvimos música e conversas animadas, revela
a entrada da Taberna dos Dragões. Ao lado da cortina, vemos prateleiras
amplas, com as armas e bagagem dos clientes. Guardamos o alforje, as bolsas

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e meu cinto com os facões, em um canto desocupado. Não há roubos entre
os Grahouls e Dragões, por isso, não há necessidade de guardas. Entramos,
afastando as grossas cortinas, e nuvens de cheiros os mais variados,
incluindo o de substâncias bastante interessantes, me causam alguma
vertigem, logo sobrepujada pelo aspecto pitoresco do grande salão em que
nos achamos. A ampla redoma de obsidiana negra sobe por três andares,
como uma grande colmeia fervilhando de Daimons e Grahouls. No térreo
fica o bar, com seu longo balcão ladeado de bancos, a pista de dança e as
mesas. Não sei para onde ir e me volto para meu amigo. Inutilmente. Mogul,
que não demonstra nenhuma compaixão por meu desamparo momentâneo,
logo se perde em meio a um grupo de Daimons. Só ouço o alarido dos felizes
cumprimentos draconianos em meio à batida um tanto nostálgica da banda
que toca sobre uma plataforma de obsidiana incrustrada de pedras preciosas
de todas as cores. A vocalista é uma linda Daimon, vestida com uma estranha
roupa de brocados e rendas, que canta com voz rouca e agradável uma balada
de sons multifacetados, bastante diferente das melodias Grahouls mais
flauteadas com as quais estou acostumado. A penumbra do aposento é
iluminada pelas muitas velas, defronte a altares incrustrados com as mais
raras e brilhantes pedras. São altares de luz. Mesas, que são estalagmites
recortadas de forma artística e esculpidas com relevos fantásticos, são
circundadas por confortáveis sofás esculpidos em obsidiana e fornidos de
grandes e confortáveis almofadões e acolchoados. Nos sofás, senta-se um
público bastante heterogêneo: Daimons, machos e fêmeas, vestindo as
últimas criações da moda draconiana, em grupos que se misturam a
Grahouls, desde imensos guerreiros com cara de poucos amigos, até beldades
de olhos verdes e amendoados, como a que vislumbro solitária em uma mesa
de canto. Decido tentar uma aproximação. Sinto necessidade de conversar
com alguém e uma bela e jovem Grahoul não é uma opção ruim. Caminho
até ela, ainda um pouco inseguro quanto à etiqueta do local. A jovem parece

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pensativa, segurando com as duas mãos, como em uma prece, o pequeno
cálice de Gulgur dourado à sua frente. Paro a alguns passos de sua mesa
fingindo apreciar as evoluções engraçadas dos dançarinos na pista de dança
que há no meio do salão. Subitamente, vejo que um dos Daimons mais
empolgados é Mogul, executando algumas acrobacias trôpegas para ganhar
a atenção de uma esbelta Daimon, que ri de suas piruetas! Começo a
gargalhar, vendo meu pragmático amigo se rendendo à euforia do Gulgur.
Creio eu que minha gargalhada atraiu a atenção da Grahoul solitária, pois
subitamente escuto uma melodiosa voz ao meu lado: “Bom ouvir uma risada
alegre pra variar!”. Viro-me e vejo a face delicada com um padrão de pelos
avermelhados como chamas circundando os olhos. Ela exala feminilidade,
temperada por um cerne feroz. Respondo-lhe, um tanto mais circunspecto do
que pretendia: “Sem algumas gotas de alegria, minha alma definha. Apenas
sigo o meu Dragão.” Ela assente, inclinando levemente a cabeça. Observo
suas narinas pulsando, saturando-se com meu cheiro. Faço o mesmo,
instintivamente, como o fazem todos os Grahouls que se encontram pela
primeira vez. Seu odor almiscarado me invade, falando de alguém que vive
entre as plantas e seres da floresta, banhando-se em fontes límpidas e se
perfumando com ervas raras. Alguém que caça com habilidade e constância.
O ínfimo cheiro de sangue paira como uma gotícula rubra flutuando no
oceano de odores inebriantes que exalam de seu corpo esbelto. Após breves
instantes de reconhecimento mútuo, ouço novamente sua voz melodiosa:
“Sente-se aqui ao meu lado, Grahoul. Meu nome é Nadja.” Vou até o sofá
que circunda sua mesa, sentando-me a uma certa distância dela, sobre um
almofadão de um roxo bastante espalhafatoso. Só então percebo o cansaço
do longo voo noturno tomando meu corpo. “Chamo-me Tandir. Grato pelo
convite.” Nadja levanta o cálice de Gulgur em saudação, servindo-se de um
pequeno gole. Minha garganta seca anseia pelo gosto forte e cítrico da bebida
dos Dragões. Aceno para uma das jovens Daimons que servem as mesas. Ela

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se aproxima, equilibrando precariamente uma bandeja de pratos vazios.
Peço-lhe uma dose de Gulgur de fabricação local e um cozido de Goflin,
igual ao que farejo na mesa ao lado. A Daimon se afasta em direção ao amplo
balcão, onde a vejo depositar a bandeja com habilidade impecável. Volto-me
para conversar com Nadja e percebo seus lindos olhos me observando. Dou-
lhe meu melhor sorriso, mas vejo que não consigo disfarçar meu cansaço.
Inicio uma conversa casual, contando um pouco sobre mim. Ela escuta com
atenção gentil e me conta, por sua vez, que mora desde filhote na montanha
da Dragão Mãe, atuando hoje como protetora das caravanas de mercadores
Grahouls que a contratam. Já matou muitos cascudos, como eu. Nossa
afinidade cresce com a conversa. Apesar da exaustão, não quero parecer
indelicado e me retirar. Nadja parece perceber meu dilema e comenta
casualmente: “Há câmaras de repouso lá em cima. Você pode descansar após
comer.” Fico pensando se ali se insinua alguma sugestão mais excitante, mas
vejo apenas gentileza e preocupação em sua expressão. Digo-lhe: “O cansaço
pode esperar. Quero usufruir ao máximo de tão gentil companhia.” Nadja
ergue novamente seu cálice de Gulgur, agora já quase vazio. “O que lhe traz
à taberna, Tandir? Simples diversão?” Respondo: “Disse-lhe a verdade agora
há pouco: apenas sigo o meu Dragão.” Nadja sorri, aparentemente divertida.
“Seu Dragão sabe o que faz! Moro nesta montanha desde filhote e não me
canso da Taberna!” Faço-lhe uma observação um pouco indelicada: “Noto
que está sozinha. Como tal beldade não está cercada de guerreiros ansiosos
por sua atenção?” Nadja dá uma gargalhada sonora, que faz com que alguns
Grahouls circundantes olhem para ela curiosos. “Bem, digamos que tenho
um temperamento forte. Os rapazes que costumam frequentar este lugar já
estão cientes disso.” Olha para os Grahouls a nossa volta com um ar maroto
e os vejo abaixarem os olhos, sem ousarem encarar Nadja. “Vejo que devo
me precaver, então?” Comento, um tanto jocoso. Nadja me encara com um
olhar enigmático. “Talvez, Tandir, talvez...Respeite-me e tudo correrá bem.

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Gosto de Grahouls que sabem gargalhar em tempos tão sinistros. E depois,
fui eu que lhe convidei a se sentar a meu lado, não foi? Você foi sábio em
esperar isso acontecer. Por um momento pensei que teria que dispensar mais
um jovem petulante.” Algo em minha expressão faz com que Nadja sorria
condescendente. A Daimon garçonete se aproxima de nossa mesa,
equilibrando múltiplos pratos e cálices na bandeja que segura com apenas
uma das mãos. Tira da pilha, com movimentos de prestidigitação, um prato
de cozido fumegante, que coloca em minha frente. Também pega um
pequeno cálice de cristal cheio de um líquido cristalino e dourado, o Gulgur,
colocando-o ao lado do prato. Agradeço-lhe, observando com admiração ela
se afastar, serpenteando entre os fregueses com aquela torre de comidas e
bebidas. Ofereço meu cozido a Nadja, que recusa, me instando a comer.
Antes da primeira colherada, tomo um pequeno gole do cálice, sentindo o
frescor do líquido inebriante descendo pela garganta. Pego então a grande
colher funda e a encho com o caldo grosso do cozido, cheio de pequenos
nacos de Goflin defumado. Devoro o prato de cozido em alguns segundos e
Nadja, compreensiva, não me interrompe para conversarmos. Satisfeito,
tomo mais alguns goles do delicioso Gulgur, que já começava a me fazer
sentir uma leveza característica. Digo a mim mesmo que não convém
exagerar, pois Nadja não parece o tipo de jovem que gosta de um pastoso
Grahoul bêbado. Decido tomar apenas aquele cálice. Nadja parece não ter a
mesma preocupação e pede mais um cálice para si. Tento encontrar sinais de
embriaguez em seus olhos lúcidos e percebo apenas um humor leve e
divertido, flutuando como um oásis sobre mares de lava vulcânica. Seus
olhos tem o brilho vítreo da obsidiana. Obsidiana verde. Translúcida.
Cortante. Embaraçado, percebo que estivera encarando Nadja por algum
tempo. Ela parece não se incomodar e pergunta: “O que vê, Grahoul?”
Respondo-lhe, com sinceridade: “Vejo uma faca de vidro vulcânico verde.
Vejo uma lâmina que não sabe quem é seu inimigo.” Nadja baixa os olhos,

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parecendo um pouco embaraçada. “Você vê em mim o mesmo que observo
em você, guerreiro. Ambos temos uma pergunta que não será facilmente
respondida. Quem sabe nossas perguntas não se complementam?”
Entristeço-me, lembrando das graves preocupações que me afligem,
enquanto gasto meu tempo bebendo Gulgur com uma jovem e linda Grahoul.
Lembro-me das expressões de dor de Irien e a leveza do Gulgur parece se
esvair na escuridão. Nadja percebe minha mudança de atitude. “Vamos,
Tandir, você me conta primeiro o que lhe aflige.” Dou um suspiro profundo,
na tentativa de não sufocar com minhas lembranças. Conto a Nadja minha
incursão com Mogul na Cidade de Ferro, falando de minha certeza de que os
cascudos eram os causadores da doença em nossas fêmeas. Conto-lhe sobre
Irien e sobre meu primeiro filhote, mantendo-se a duras penas em sua
barriga. Falo de meu remorso com o massacre de cascudos que eu e Mogul
perpetramos. Remorso convivendo com o prazer da justiça feita. Nadja
escuta tudo com atenção. Imagino ver um brilho de lágrima em seus olhos.
“Nossas perguntas de fato se complementam, Tandir. Vou lhe conceder um
privilégio que poucos Grahouls tiveram. Vou levar você para conhecer a
Dragão Mãe. Ela lhe dirá qual a questão que nos aflige.” Por um momento
achei que Nadja estivesse brincando, mas logo percebi que não se tratava de
pilhéria. Sua face séria e grave me contemplava com um misto de
curiosidade e compaixão. Mas como poderia Nadja me proporcionar tal
coisa? A Dragão Mãe havia sido vista por pouquíssimos Grahouls, todos eles
aparentados à misteriosa Grahoul Mãe, a condutora da Mãe de todos os
Dragões. “Você é parente da Grahoul Mãe, Nadja?” Perguntei, perplexo.
“Não sou sua parente, mas digamos que temos uma relação muito especial.
Uma relação de aprendizado. De minha parte, claro.” Nadja não quer
esclarecer mais nada sobre o assunto. Insiste para que eu vá descansar em
uma das câmaras de hóspedes da Taberna. Levanta-se, puxando-me pela
mão, e caminhamos até o balcão, onde pede uma chave ao grande e

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corpulento Daimon que prepara os drinks. Chama-o familiarmente pelo
nome, Oicon. O Daimon lhe entrega uma pequena chave dourada, com a
efígie TD33 gravada em uma das faces. Nadja então me conduz até uma
grande escada em espiral em um dos cantos do aposento. Subimos três
andares e entramos em um corredor com portas de madeira, nas quais se
veem números pintados com caligrafia sofisticada. Paramos em frente à
porta de número 33. Nadja coloca a pequena chave na fechadura e abre o
aposento. É uma câmara abaulada, com uma pequena mesa baixa e grossos
e aconchegantes acolchoados de dormir. Uma luz suave e difusa paira em
todo o ambiente e percebo que ela provém de um pequeno altar de luz, todo
ornado de gemas preciosas, que reflete em miríades de matizes a luz opalina
de uma pequena vela perfumada. O ambiente todo rescende um odor de
limpeza e zelo. Sinto-me imediatamente atraído pelos grandes acolchoados
e deito sobre um deles, agradecendo a Nadja a excelente sugestão. Por um
momento, penso em lhe convidar para partilhar a câmara comigo, mas logo
me lembro de seu alerta sobre seu temperamento forte e sobre Grahouls
petulantes. Desejo-lhe boa noite, sonolento e resignado, esperando que ela
se retire para que eu possa descansar. Nadja não se retira. “Não vai me
convidar para ficar, Grahoul?” Fico imobilizado de surpresa.
“Mas...eu...eu...eu...pensei que...desculpe...claro que sim, Nadja...isto é...se
você quiser...claro!” A jovem fêmea ri desbragadamente de meu embaraço,
enquanto caminha até a porta, trancando-a por dentro. “Você fez bem em não
me convidar, guerreiro. Gosto de me sentir livre.” Apenas balancei a cabeça
fascinado por seus movimentos graciosos. Nadja abre uma pequena porta
lateral no interior da câmara, revelando uma banheira cheia de água tépida e
perfumada. Convida-me com um gesto e não penso duas vezes em aceitar,
tropeçando desajeitado na calça de montaria, que vou tirando no trajeto.
Nadja despe seu lindo vestido justo, exibindo um corpo exuberante e
torneado. Entra na banheira e me chama com um rosnado sutil. Entro

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cuidadoso na água maravilhosamente quente, com um odor suave e
agradável de ervas. Nadja pega um sabão em formato de meia lua, que
começa a esfregar em minhas costas. Meu corpo, lânguido, relaxa
imediatamente ao toque de suas mãos habilidosas. Apenas uma pequena
parte se tensiona, com a rigidez mais prazerosa de todas. Fazemos amor ali
mesmo na banheira. Amor cansado, com um toque de tristeza, mas intenso e
profundo. Relaxamos abraçados por um longo tempo, sentindo a água tépida
desfazer, ao menos por alguns momentos, todas as nossas preocupações.
Saímos da água em silêncio, envolvendo-nos nas felpudas toalhas
penduradas ao lado da banheira. Secamos um ao outro esfregando-nos
mutuamente e entramos debaixo de um dos macios acolchoados de dormir.
Ficamos abraçados e Nadja começa a ressonar antes que eu possa pegar no
sono. Observo sua linda boca se contraindo em um sorriso de sonho.
Também em nossos sonhos duros há momentos de prazer. Fecho os olhos e
vou aos poucos caindo em um sono pesado. Ao menos neste momento, a
Deusa me concede o abençoado repouso, poupando-me de sonhar. Quando
acordo, só me lembro da escuridão, da paz e do cheiro bom de Nadja, que
impregna o acolchoado e meu próprio corpo. Ela já não está aqui ao meu
lado. Fico pensando se foi embora. Tenho a sensação de que a promessa de
ver a Dragão Mãe pode ter sido apenas bravata de uma jovem carente. Não
me importo. Há muito tempo não me sentia tão bem. Demoro-me sob o
acolchoado, espreguiçando e esticando meus músculos descansados.
Levanto-me e visto minha calça de montaria. A porta da câmara está
destrancada e saio pelo corredor. Desço a grande escada em caracol e entro
no salão. Meus olhos se acostumam com a penumbra e não tardo a
reconhecer Nadja sentada em um banco em frente ao balcão, conversando
animadamente com o Daimon atendente do bar, o corpulento Oicon. Fico
feliz de que não tenha ido embora. Aproximo-me e a Grahoul me recebe com
um sorriso cativante. “Então, guerreiro, pronto para sua maior aventura?”

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Com um esgar malicioso, respondo: “Maior ainda?” Nadja me presenteia
com sua risada musical e eu me sento ao lado dela. Vejo Mogul descendo a
escada em caracol em companhia de uma linda Daimon, ambos abraçados,
cochichando e dando risadinhas. Imagino que eles tenham ocupado uma das
confortáveis câmaras da Taberna, como eu e Nadja. Ao menos, pelo olhar
fulgurante e apaixonado de Mogul, seu repouso parece ter sido tão bom
quanto o meu. Nadja me apresenta à Daimon: “Dragsil, este é Tandir,
parceiro de seu animado amigo.” Faço uma mesura para Dragsil, que
responde com um sorriso tímido. Mogul imita minha mesura, porém se
curvando quase até o chão. Sua rainha não merece menos. Todos parecem
muito relaxados e tranquilos. Subitamente, fico impaciente. Começo a achar
que tudo aquilo é um complô para me afastar de minha empreitada principal.
Devo salvar os Grahouls da Falésia, minha amada Irien e nosso filhote por
nascer. Sinto-me como o Enkidu das lendas do Mundo Duro: traindo meu
povo, seduzido por uma beldade. Proponho a Nadja irmos ver a Dragão Mãe
imediatamente, conforme me prometera. Nadja concorda sem vacilar,
enquanto Mogul e Dragsil sentam-se nos bancos, pedindo comida a Oicon,
que prestimosamente some pela porta da cozinha. Pergunto a Mogul se ele
não vem, mas ele apenas balança sua cauda fina de Daimon em sinal
negativo, sem nem mesmo se dar ao trabalho de olhar para trás, cochichando
fofuras no ouvido de Dragsil, que dá risadinhas incontroláveis. Deixo o
alegre casal e me dirijo para a porta com o cortinado de couro, para buscar
minhas armas e pegar o skrill que vai pagar nossa estadia. Afivelo o cinto
com minhas lâminas e pego um dos reservatórios impermeáveis de couro,
para deixar a quantidade justa com Oicon. Adentro novamente o salão e a
cena simplesmente não mudou. Mogul e Dragsil continuam a cochichar um
para o outro, em meio a mordidas ávidas em um gordo bolo de kengy. Nadja
está sentada no mesmo banco, com um ar entediado. “Onde você vai?”
Pergunta-me. Eu a olho com ar embasbacado, segurando o reservatório de

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couro em minha frente como se fosse um escudo. “Como assim aonde vou?
Aonde vamos! Vamos ver a Dragão Mãe imediatamente como você
prometeu!” Nadja sorri e eu me sinto como um filhote perdido. “Tandir,
guarde suas coisas e volte aqui. Você precisa se reconectar, meu querido. Não
é com ansiedade tola que se resolvem grandes problemas.” Começo a
suspeitar que Nadja mascou grandes quantidades de raiz de bak e que se
encontra naquele estado lânguido e letárgico que alguns Grahouls cultivam
em demasia. Mesmo assim, obedeço, virando como um soldado e marchando
novamente por entre as cortinas de couro. Contenho minha raiva e me forço
a seguir os acontecimentos. Desafivelo o cinturão e guardo novamente no
canto da prateleira as armas e o reservatório de skrill. Passo através do
cortinado com passos lentos e desanimados e sento-me ao lado de Nadja.
Mogul e Dragsil já terminaram o bolo e agora dividem um copo de suco de
fruto de Lotka. Lambem os beiços e se dão beijinhos apaixonados. Irritado,
baixo a cabeça, olhando meu reflexo soturno na face espelhada do balcão de
obsidiana negra. Vejo então ao meu lado a linda face de Nadja, piscando para
mim de maneira provocativa. Levanto a cabeça e nos encaramos, olhos nos
olhos. Não vejo irritação e nem pilhéria em seu olhar. Ela se levanta do banco
e me chama com um gesto maroto. Vai em direção à escada em caracol e
começa a subir meneando os quadris. É uma bela visão, mas a sensação de
um complô para me seduzir aumenta. Subo atrás dela para esclarecer a
questão e para dizer que iria partir sozinho, ainda que Mogul não viesse
comigo; fato impensável. Nadja sobe até o terceiro andar e se dirige para a
câmara 33, onde passamos por momentos tão maravilhosos. Não era este
meu espírito agora. Ela entra pela porta, que eu deixara destrancada. Entro
em seguida e ela me pede para trancar por dentro. Faço isso um pouco
constrangido, achando que ela irá se lançar em meus braços em seguida. Será
embaraçoso um gesto de rejeição meu, mas inevitável. Quando me viro para
estancar seu ímpeto amoroso, vejo que ela não está mais ali. Ouço barulhos

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no aposento da banheira e a chamo: “Nadja. Quero esclarecer algumas
coisas.” Ela responde, em meio ao ruído de água escorrendo: “Sei disso,
Grahoul. Venha até aqui e deixaremos as coisas muito claras para você.”
Ouço sua risada musical, mas ela só me deixa mais mal-humorado. Vou até
a entrada do pequeno aposento para me despedir, esperando ver seu corpo
nu, imerso confortavelmente na banheira. Não será fácil repelir tal tentação,
mas estou pronto. Será tudo isso um teste de Nanshe? Se assim for, Nadja
terá que esperar. Quando adentro o recinto, Nadja está de fato mergulhada
até a cintura na banheira. Na parede à sua frente, uma portinhola camuflada
está aberta, revelando uma passagem iluminada por altares de luz. “Você
quer ir na frente, Grahoul?” Pergunta Nadja, ironicamente. Por um momento
fico desorientado. Compreendo então a situação. “As damas primeiro, minha
Rainha e Senhora. Peço-lhe perdão do fundo de minha alma por minha
estupidez de macho vaidoso.” Nadja retribui com um sorriso maroto.
“Pequenas lições, Tandir...pequenas lições.” Entra de joelhos pela portinhola
e eu a sigo. Adentramos um corredor amplo, iluminado por altares de luz a
intervalos de algumas dezenas de passadas. Nadja se agacha e fecha a
portinhola, correndo um fecho interno e lacrando a entrada. Caminhamos
lado a lado em silêncio, mas minhas dúvidas me forçam a perguntar: “Porque
Mogul não quis vir? É uma chance única de ver a Dragão Mãe, agora que
está adulto. Ele abandonou o ninho quando éramos ainda crianças.” Nadja
responde, compreensiva: “Entenda Tandir. A chance é única para você. Você
já viu alguma mãe que não aprecie ver seus filhos? Mogul é filho da Dragão
Mãe e pode vê-la quando quiser! Aliás, já o fez a algum tempo atrás,
enquanto você dormia a sono solto.” Continuo caminhando pensativo. Que
mais podia fazer? Decididamente tenho que reavaliar minha capacidade de
julgar meus amigos e as situações que os envolvem. Siga o Dragão! Nadja
percebe meu constrangimento e não força a situação. Olho em volta e fico
extasiado com a beleza dos relevos que adornam as paredes de obsidiana do

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corredor. Passamos regularmente por templos de luz que lançam raios
multicoloridos, fusionados em uma luz alegre e pacífica, que muito contribui
para me aliviar um pouco do peso de minha insensatez. O piso é todo
confeccionado em mosaicos de pedra áspera e colorida, cujo efeito é realçado
pela luminosidade dos altares. Caminhamos durante um longo tempo,
suficiente para que minha mente se veja livre das nuvens negras e pesadas,
permitindo-me vislumbrar uma luz. Estou em minha empreitada. Não me
desviei dela por um só momento, com a ajuda de meus amigos. Isso me alivia
e me infunde nova confiança. A luz em minha mente coincide com uma luz
mais forte e gloriosa brilhando no fim do corredor. Diminuo instintivamente
o ritmo de meus passos enquanto nos aproximamos da imensa entrada do
ninho da Dragão Mãe. O pórtico colossal está todo iluminado. Mas não são
velas e nem altares de luz. Quando passamos por sob as arcadas, vejo o maior
Dragão que já havia visto em toda a minha curta vida. É uma montanha
colossal de minúsculas pedras preciosas que emitem luz própria, em uma
refulgência de estrela. A Dragão Mãe é bela como a própria vida. Quase tão
imensa quanto ela também. Ao seu redor, algumas dezenas de ovos
cintilantes absorvem seu calor, gestando pequenos Dragões dentro de seus
envoltórios perolados. Olho extasiado, com a boca entreaberta, a visão
magnífica voltar-se com lentidão majestosa em minha direção. Ouço em
minha mente um gracejo gentil: “Feche a boca Tandir. Minhas gargalhadas
seriam altas demais para seus sensíveis ouvidos de Grahoul.” Embaraçado,
cerro as mandíbulas com força e faço uma mesura quase até o chão,
comparável à que Mogul havia feito para Dragsil na Taberna. A Dragão Mãe
retribui com um gorgolejo que lembra uma fonte de água pura retinindo nas
pedras. Levanto-me para a admirar mais um pouco. Ela aproxima de mim
sua cabeça, grande como a Colina de Rubi, com uma imensa pedra brilhante
e multifacetada incrustrada em sua fronte. Seus olhos são duas vezes o
tamanho de meu corpo e suas pupilas rubras me parecem duas cavernas em

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chamas. Ouço novamente sua voz suave em minha mente: “Guerreiro, estava
a sua espera. Não tenho esclarecimentos a lhe dar. Ao contrário. Quero lhe
comunicar outra catástrofe iminente, tão grave quanto a doença que aflige
seu povo.” Nadja me indica uma protuberância arredondada, onde me sento
a seu lado. Digo, um tanto abalado: “Sou seu servo, Dragão Mãe.” A enorme
cabeça balança em assentimento e um relato eivado de imagens começa a se
delinear em minha imaginação: vejo como ela sai voando pela grande
abertura sobre o ninho, quando chega a conjunção correta de astros que
prenuncia seu acasalamento com o Dragão Pai. Vejo-a se encontrando sobre
o Mar com seu consorte, tão majestoso e imenso quanto ela. Abraçam-se e
ele deposita em sua cavidade genital, uma grande bolsa translúcida de sêmen.
A Dragão Mãe me explica como armazena este sêmen em seu espermatóforo
por muitos e muitos ciclos trissolares, gerando com ele novos ovos de
Dragão. Projeta-se, então, a cena da Montanha do Dragão Pai tomada pela
Cidade de Ferro. A época do acasalamento chega, mas ele não voa para fora
de sua montanha, ao encontro da Dragão Mãe. A Dragão Mãe sonda
mentalmente, mas é como se o Dragão Pai não mais existisse. Séculos de
solidão, sem seu companheiro amado. Ela não possui mais sementes de seu
último acasalamento estocadas no espermatóforo, pois centenas de ciclos já
se passaram desde a última fecundação. A fertilidade não foi renovada. São
apenas mais algumas dezenas de ovos de Dragão sendo incubados
zelosamente, então não haverá mais Dragões. Ouço sua voz ecoando:
“Somente eu e o Dragão Pai podemos nos reproduzir. Os nossos filhos são
inférteis até que o par escolhido para nos suceder engula as pedras Gatsinar,
as jóias que portamos em nossas testas, após a nossa morte. Se o Dragão Pai
não for encontrado, mesmo morto, para que possamos dar a Gatsinar dele a
um sucessor, será o fim de nossa raça. Não podemos mais esperar. Você é
digno, Tandir! Ajude-nos!” A consequência de seu relato e de seu pedido me
atingem como uma pancada de clava de ferro, atordoando-me por alguns

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instantes. O fim dos Grahouls da Falésia e dos nossos Dragões? Seremos
extirpados até mesmo do Reino Suave da Memória? Não posso aceitar isso.
A Dragão Mãe me pede auxílio. A mim, que esperava o auxílio dela. Sinto a
responsabilidade como uma montanha de aço duro pesando sobre minha
nuca. A Dragão Mãe me alivia com suas palavras: “Nadja será sua parceira
na investigação. Meu filho e minha filha, Mogul e Dragsil, irão levar vocês
aonde devem ir. Sigam seus Dragões. Confiem uns nos outros e em mais
ninguém. Você irá, Tandir?” Não pestanejo. “Como poderia recusar um
pedido seu, Dragão Mãe? É um pedido que me envolve diretamente e no qual
já havia empenhado minha vida. Lutava pelos Grahouls da Falésia. Agora
luto pelos Dragões também. Mais importante que tudo: tenho Mogul, Nadja
e Dragsil. Tenho sua benção. Tenho tudo o que preciso. Vamos lutar!” Um
brilho satisfeito perpassa a Gatsinar na fronte da Dragão Mãe, como um
relâmpago explodindo no grande aposento. Ela se despede de nós com seu
gorgolejo de corredeiras. Eu e Nadja fazemos mesuras respeitosas e
voltamos para o corredor. Não emitimos uma única palavra durante todo o
trajeto. Contemplo o teto em abóbada. Pinturas que parecem se mover sob a
luz mutante dos templos de luz, bailam ininterruptamente do começo ao fim.
Reconheço cenas domésticas, cultivos, caça, árvores Lotka, Grahouls felizes
com seus filhotes, montados em Dragões voando como o vento. Imagens
felizes. Imagens que conheço muito bem e que vivo todos os dias. Mas ali
não há a sombra soturna dos cascudos. Odiar envenena. Será que posso fazer
dessas imagens o fogo de minha ação? Não sei. Meu ódio é minha pressa em
direção à felicidade. Mogul e Nadja me ensinam a não ter pressa. Fazer a
ação perfeita, quando e onde ela deve ser feita. Mas sem meu ódio vem a
tristeza: a aflição de ver o que amamos se desvanecer sem a força para salvar
os entes amados. Minha força ainda provém do ódio. Assim seja. Tropeço
em uma Saliência no caminho. “Olhe por onde anda, guerreiro, se quer estar
vivo para a batalha.” – diz Nadja, divertida com meu alheamento. Chegamos

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na portinhola da câmera TD33. Nadja abre o fecho e agacha-se para entrar
no aposento da banheira. Seu belo traseiro balança bem em frente ao meu
focinho, quando também me abaixo para entrar. O perfume suave do
corredor é substituído pela suave emanação de seu corpo. Dou uma cabeçada
no batente da portinhola, antes de conseguir passar para a banheira, com sua
água tépida. Nadja ri. “Você está um pouco distraído hoje, não é Grahoul?”
fecho a portinhola atrás de mim, ajoelho-me na banheira e começo
lentamente a venerar seu corpo. Nadja não me repele e logo a água se
transforma em tempestade branda. Concedemo-nos um tempo de repouso e
prazer. Instantes breves.

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