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Assunto do capítulo
Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa, incitada
pelos apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque o estavam a
matar nos Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da cidade e se dirigiu em
grande alvoroço para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar as portas. Os seus intentos só
foram travados quando, aconselhado pelos seus partidários, o Mestre apareceu a uma janela à
multidão, que, reconhecendo, se acalmou, aclamando-o e insultando o conde Andeiro e a
rainha.
🔺 Título
O título do capítulo (“Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o mestre,
e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele”) apresenta as linhas gerais do texto.
🔺 Estrutura interna
O Pajem do
Mestre deixa o
Pelas
Paço da Rainha e
ruas da
cavalga
Pajem cidade
Convocação / velozmente
Linhas 1 a 5 até à
Apelo Álvaro Pais pelas ruas, em
casa de
direção à casa
Álvaro
de Álvaro Pais,
Pais.
gritando que
Introdução mata, o Mestre.
Convencido
pelos que o
rodeiam, o
Mestre dirige-se
à janela e À
Linhas 44 a Povo mostra-se ao janela
Aclamação
59 Mestre povo, do
tranquilizando-o Paço
(pois está vivo e
o conde morto)
e sendo por ele
aclamado.
O Mestre sai do
Paço e convence
o povo a
Paço
dispersar.
Linhas 59 a Mestre
Dispersão Pelas
80 O Mestre
Povo ruas da
atravessa a
cidade
cidade e dirige-
se ao Paço do
Conclusão Almirante.
Alexandre Dias Pinto e Patrícia Nunes (in Entre nós e as Palavras 10, Santillana, p. 75)
propõem outra divisão do capítulo.
. 1.ª parte (de “O Page do Meestre que estava aa porta…” a “… que matam sem por quê.”) – Os
partidários do Mestre percorrem Lisboa para mobilizar a população (a favor do Mestre), que os
segue.
. 4.ª parte (de “E estando eles por se assentar…” a “… desta guisa que se segue.”) – D. João é
informado de que o Bispo de Lisboa está em perigo, mas é aconselhado a não intervir
Por seu turno, Célia Cameira, Fernanda Palma e Rui Palma (in Mensagens 10)
apresentam outra proposta.
. 1.ª parte – O Pajem do Mestre sai dos Paços da Rainha, em direção à casa de Álvaro Pais, e
lança o boato de que o estão a matar, conforme combinado.
. 2.ª parte – O povo sai à rua juntamente com Álvaro Pais para acorrer ao Mestre.
. 3.ª parte – A fúria do povo, agora em multidão, cresce e ele quer saber notícias do Mestre.
. 4.ª parte – O Mestre acede aos apelos dos seus partidários e surge a uma janela do Paço,
acalmando o povo.
Desenvolvimento do capítulo
0.ª parte (ll. 1-5) – Apelo / Convocação
. O Pajem do Mestre grita repetidamente pela cidade que querem matar D. João, informando e
incitando o povo (com o boato que lança), dando, assim, início a um plano político
previamente definido, cujo objetivo é a criação de uma atmosfera favorável à aclamação
daquele como rei de Portugal.
. O plano / a estratégia foi delineado pelo Mestre e por Álvaro Pais, com a colaboração do
Pajem, no sentido de intensificar a oposição popular à Rainha e ao conde Andeiro e convertê-
la em revolta a favor dos intuitos de D. João e dos seus aliados.
. Por outro lado, não restam dúvidas de que o plano foi previamente combinado, como se
comprova pela expressão “segundo já era percebido”. De facto, o Pajem estava à porta
aguardando que o instruíssem a iniciar o plano e, quando recebe a ordem, parte a cavalo,
percorrendo as ruas a galope, gritando que acudam ao Mestre, pois querem assassina-lo.
. O referido plano estava sujeito a um secretismo total. Dele têm conhecimento somente o
Pajem, Álvaro Pais, o Mestre e os seus partidários. O objetivo é claro: anunciar o perigo que D.
João corre, para levar a população de Lisboa a apoiá-lo.
. Ao escutarem os brados do Pajem, as “gentes” saem à rua, dialogam umas com as outras,
enfurecem-se com o boato lançado, sobre o qual não refletem minimamente, e começam a
pegar em armas.
. Álvaro Pais, prestes e armado, desempenha o seu papel: junta-se aos seus aliados e ao Pajem
e cavalga pelas ruas, gritando ao povo que acuda ao Mestre, que “filho he delRei dom Pedro”.
Atente-se neste pormenor e na forma subtil como Álvaro Pais alude a D. Pedro, explorando o
simbolismo da sua figura e da sua história de amor com Inês de Castro no imaginário popular.
. Soam vozes pela cidade que matam o Mestre e o povo dirige-se, armado e apressadamente,
para o local onde ele se encontra, para o defenderem e salvarem.
. A multidão concentra-se em número muito grande: não cabe pelas ruas principais e atravessa
lugares recônditos, desejando cada um ser o primeiro a chegar ao Paço.
. Enquanto se desloca para lá, questiona-se quem desejará matar o Mestre e várias vozes
anónimas apontam o nome do conde João Fernandes, a mando da Rainha D. Leonor Teles. O
clima de agitação e excitação do povo foi preparado cuidadosamente e está a resultar em
pleno.
. O povo, unido em defesa do Mestre e com o sentimento de vingança, inquieta-se e enfurece-
se diante das portas cerradas do Paço.
. Perante afirmações de que o Mestre tinha sido morto, são sugeridas diversas ações
tendentes a forçar a entrada no Paço: arrombar as portas cerradas, lançar fogo ao edifício para
queimar o conde e a Rainha, escalar os muros com escadas.
. Gera-se uma grande confusão e o povo não se entende acerca da atitude a adotar, enquanto
várias mulheres transportam feixes de lenha e carqueja para queimar os muros dos Paços e a
Rainha, a quem dirigem muitos insultos.
. Dos Paços, vários bradam que o Mestre está vivo e o conde Andeiro morto, mas a “arraia
miúda” não acredita e quer provas concretas, isto é, vê-lo, de que é assim. Receando que o
povo, devido à sua fúria e ao desejo de vingança, invada o palácio, se torne incontrolável e o
destrua, aconselham D. João a mostrar-se-lhe.
. O Mestre mostra-se a uma grande janela e fala ao povo, que fica extremamente
emocionado / perturbado ao constatar que está efetivamente vivo e o conde morto, quando
muitos criam já no contrário. Essa fala tem como finalidade tranquilizar o povo e dar-lhe
esperança, mostrando-se seu aliado (a apóstrofe “Amigos…”).
. Nesta fase do texto, é apresentado uma imagem muito negativa de D. Leonor Teles, vista
popularmente como adúltera e traidora, chegando a ser acusada pela morte de D. Fernando
(ll. 53-54). O narrador não deixa grandes dúvidas: se a população tivesse entrado no Paço, teria
assassinado a Rainha.
. O Mestre, consciente da sua segurança e, no fundo, de que o plano arquitetado tinha
resultado na perfeição, desce e cavalga com os seus, acompanhado pelos populares, que lhe
perguntam o que quer que façam. D. João responde que não precisa mais deles e dirige-se
para o Rossio ao encontro do conde D. João Afonso, irmão da Rainha, enquanto é saudado
pelas “donas ca çidade”.
. Quando se prepara para comer com o conde, vêm dizer-lhe que tencionam matar o Bispo de
Lisboa, por isso faria bem em lhe acudir. No entanto, aconselhado pelo Conde, acaba por não o
fazer.
🔺 Personagens
As primeiras figuras do texto são individuais – o Pajem e Álvaro Pais –, aquelas que
põem a ação em movimento, porém a seguinte é coletiva, sem nome que a identifique, por
duas razões: por um lado, trata-se de um coletivo e, por outro, é a gente simples do povo de
Lisboa (do mesmo modo e também por isso, o Pajem não possui nome). É o povo, enquanto
ator, coletivo que domina a ação.
No que diz respeito às personagens individuais, umas estão presentes e outras
ausentes:
. Presentes:
- O conde D. João Afonso, que se encontra com o Mestre na parte final do capítulo;
- Outros fidalgos: Afonso Eanes Nogueira, Martim Afonso Valente, Estevão Vasques Filipe e
Álvaro do Rego.
. Ausentes:
* a curiosidade (“As gentes que esto ouviam saíam aa rua para ver que cousa era.”);
* a desconfiança;
* o poder (“não lhes poderiam depois tolher de fazer o que quisessem”; “E sem dúvida, se eles
entraram dentro, nom se escusara a rainha de morte, e fora maravilha quantos eram da sua
parte e do conde poderem escapar”).
O povo é um dos protagonistas do capítulo, uma personagem coletiva que garante a
defesa do Mestre, influencia o curso da História de Portugal. Determinadas ações são
individuais e anónimas, como gritar, ir buscar lenha ou pegar em armas.
É uma personagem coletiva dado que partilha um conjunto de características comuns
(lisboetas e patriotas) e um objetivo comum (apoiar o Mestre), agindo como um todo,
coletivamente.
🔺 Personagens individuais
. Pajem: informa o incita o povo, gritando e lançando o boato que alguém quer matar o
Mestre, como previamente combinado.
. Álvaro Pais
Álvaro Pais é o estratego que conduz o povo para um fim preconcebido: preparar
psicologicamente o povo a aceitar e mesmo aplaudir o assassínio do conde de Andeiro. O
pajem, com quem colaborou na divulgação do boato da morte do Mestre, dirigiu-se a sua casa,
porque tudo estava previamente combinado ("segundo já era percebido"). Fernão Lopes não
deixa dúvidas: Álvaro Pais foi o cérebro que tudo planeou, nada deixando ao acaso.
Ele mesmo insiste na divulgação do boato junto do povo, de modo a “convocá-lo” e a
criar um clima favorável à aceitação do Mestre, da morte do conde Andeiro e à sua
confirmação como legítimo herdeiro do trono português.
Álvaro Pais é uma figura com visão política e inteligência; é matreiro, astuto,
manipulador, mentiroso até (por exemplo, grita que matam o Mestre, quando, na verdade, é
este quem assassina o conde Andeiro; grita, igualmente, excitando e iludindo as pessoas), para
atingir os seus fins.
. Mestre de Avis
* Adapta-se às circunstâncias, aceitando as instruções dos que lhe são próximos e retribui
afetuosamente o carinho do povo;
* São-lhe associadas as ideias de predestinação e proteção divinas, como se pode comprovar
por expressões textuais que mostram a crença do povo de que tinha tido a proteção divina,
dado ter sobrevivido ao suposto atentado: “E per vontade de Deos”; “Beento seja Deos que
vos guardou de tamanha traiçom”; “
* É uma figura carismática e populista (mostra-se à população para obter o seu apoio);
* É, de certa forma, uma personagem dual: é amigo do povo e seu herói, mas revela alguma
fraqueza e incapacidade para tomar decisões autonomamente, dependendo da opinião dos
seus conselheiros.
🔺 Narrador
. Contrariando aquilo que proclamara no “Prólogo” a esta crónica, Fernão Lopes manifesta
empatia com o povo e apresenta um retrato bem negativo de D. Leonor, “negando” assim a
sua proclamada imparcialidade.
- a subjetividade do discurso;
. Por outro lado, trata-se de um narrador omnisciente, dado que conhece os acontecimentos
que relata, bem como as emoções de alguns intervenientes e as suas intenções secretas.
🔺 Espaços
. Abertos, públicos, frequentados pelo povo e pelos intervenientes que com ele interagem:
ruas da cidade de Lisboa.
. Janela do palácio, em que o Mestre surge e se mostra ao povo, apaziguando a sua fúria, e é
por ele aclamado.
Cada momento corresponde a um espaço específico: ruas entre o Paço e a casa de Álvaro
Pais; ruas de Lisboa; em frente do Paço, mas centrado na janela onde assoma o Mestre.
O espaço evolui da dispersão para a concentração: o povo salta das ruas da cidade para a
rua principal, que conduz ao Paço da rainha e ali se concentra em torno do Mestre.
Esta alternância entre as duas modalidades do discurso confere, de facto, dinamismo,
veracidade, veracidade e dramatismo ao discurso e ao que é narrado, pois, através do discurso
direto, temos acesso às falas “reais” dos intervenientes. Desta forma, para além de obtermos
maior dinamismo na narração, Fernão Lopes cumpre a sua missão de relatar a verdade dos
acontecimentos.
. estrutura frásica:
. expressões que marcam a mudança de espaço (à porta, pela rua, ali, i, pera u, pera alá,
acima, dentro, pera os paços) e o decurso do tempo (ante que, entom, logo à pressa);
. visualismo impressionista:
-» arcaísmos pleonásticos: olhai e vede; era maravilha de ver; entrar dentro; sobir acima;
desceo afundo: reforçam, na sua maioria, o efeito visual da ação; constituem um apelo aos
sentidos;
Mesmo na actuação do povo há várias formas e graus: por vezes o povo age em
conjunto ["A gente começou de se juntar todos feitos dum coração" ¹ "tais i havia (...) deles
bradavam, outros se aficavam, uns vinham com feixes de lenha, outros traziam carqueja" – são
grupos organizados no meio da multidão].
. sensações:
- visuais: "se moverom todos com mão armada, correndo a pressa"; "era tanta que era
estranha cousa de veer"; "as portas do Paaço que eram já çarradas".
A linguagem sensorialista torna os relatos mais realistas, transportando o leitor para
o local dos acontecimentos, como se os estivesse a presenciar, “vendo” e “ouvindo” o que se
passou.
. Comparação: "assi como viuva que rei nom tinha, e como se lhe este ficara em logo de
marido, se moverom todos com mão armada, correndo... escusar morte": sugere a ligação, o
carinho e o empenhamento do povo na defesa do Mestre, que não queria perder,
aproximando-o de uma figura familiar. Por outro lado, esta comparação sugere o desgoverno e
desproteção a que a cidade (representada pela mulher) ficaria sujeita sem rei, tal como
acontece com as viúvas.
. Metáforas:
- "Cada vez se acendia mais": contribui para recriar a tensão que vai aumentando em volta do
Paço; o alvoroço popular vai aumentando de intensidade, provocando ruído, agitação e
movimento entre a população, tal como sucede com uma fogueira que se acende e vai
aumentando de intensidade; acresce que esta fogueira já estava acesa há algum tempo,
estando prestes a atingir o seu clímax.
. Hipérbole:
-» realça o grande alvoroço e o tumulto da multidão: "e em todo isto era o arroído atam
grande que se nom entendiam uns com os outros";
-» caracteriza o comportamento das multidões: "E tanta era a torvaçam deles (...) que taes avia
i que aperfiavom que nom era aquele".
a) o apelo de Álvaro Pais, com recurso ao presente do conjuntivo com sentido de imperativo e
à frase exclamativa;
b) a força da interpelação dos populares, com recurso ao presente do indicativo ("matom",
"é") e ao pretérito perfeito ("çarrou") e de curtas e incisivas frases interrogativas;
c) o desafio do povo aos "do Mestre", através do presente do indicativo ("se vivo é"), do
imperativo ("mostrae-no-lo") e do futuro do indicativo ("vee-lo--emos");
d) a intervenção apaziguadora do Mestre, iniciada por um vocativo ("Amigos"), continuada por
um imperativo ("apacificae-vos") e concluída com a primeira pessoa do presente do indicativo
do verso ser ("som"), a que dois adjectivos ("vivo e são") servem de predicativo;
. Apóstrofes:
. Exclamações.
. Pormenor:
- do vestuário de Álvaro Pais: "está prestes e armado com uma coifa na cabeça, um cavalo que
anos havia que non cavalgava";
- da "janela que vinha sobre a rua" para recriar o espaço e nos fazer comungar de todo aquele
ambiente.
. a minúcia e o realismo com que relata os acontecimentos, como se os tivesse presenciado;
. as anotações de cenário, que sugerem o ambiente em que se movem as figuras históricas.
Desta forma, o cronista aproxima o leitor dos acontecimentos, levando-o a
compreendê-los melhor e a identificar-se com os intervenientes.
As descrições pormenorizadas dos lugares onde têm lugar as ações, em planos
narrativos gerais e particulares, configuram aquilo que se pode designar por visão
objetiva ou cinematográfica. De facto, a narração segue uma técnica semelhante à do cinema,
constituída por uma sucessão de planos, espaços e atores:
Plano 1
. Ator: pajem.
Plano 2
Plano 3
Plano 4
Plano 5
Plano 6
Em conclusão, podemos afirmar que Fernão Lopes marca o primeiro grande momento
da prosa portuguesa. São, sobretudo, admiráveis os seus quadros descritivos dos grandes
movimentos populares. Nas suas crónicas, há verdadeiros painéis, onde a arraia miúda se
manifesta em toda a sua pujança emocional. A grande força desta prosa está sobretudo na
organização das ideias, segundo planos espácio-temporais, que nos dão a visão do conjunto
sem esquecer o rigor dos pormenores, e tudo isto numa linguagem que, sendo por vezes
arcaizante, é dotada de uma vivacidade e visualismo admiráveis.
1. Pelo conteúdo:
- a movimentação do povo de Lisboa para apoiar o Mestre, liderado por Álvaro Pais;
Filho bastardo do rei D. Pedro I e de uma dama galega de nome Teresa Lourenço, D.
João nasce em Lisboa, em 11 de abril de 1357. Aos seis anos é armado cavaleiro por D. Pedro e
levado para Avis, onde passa a adolescência. D. Pedro faz-lhe doação de casas em Avis, ao lado
de outros bens. O jovem mestre de Avis continua em terras alentejanas e a sua influência vai
crescendo, acompanhando de perto os atos da governação de D. Fernando.
Preso no castelo de Évora na Primavera de 1382, devido a intrigas contra D. Leonor
Teles/conde de Andeiro, é solto por D. Fernando, seu irmão, garças à eficaz intervenção do
conde de Cambridge, chefe do contingente inglês em Portugal. Virá a ser amigo do duque de
Lencastre e casará com a sua filha D. Filipa. Morto D. Fernando em 22 de outubro de 1383, o
partido do conde de Andeiro, amante de D. Leonor Teles, toma o poder. D. João é envolvido
nos acontecimentos que levam ao assassinato, praticado por si, do conde de Andeiro em 6 de
dezembro de 1383. É aclamado pelo povo de Lisboa Regedor e Defensor do Reino. Nas Cortes
de Coimbra, de 6 de abril de 1385, é aclamado rei de Portugal, não por méritos seus, mas
sobretudo por influência de homens de coragem como Nun'Álvares Pereira ou João das
Regras.
Faleceu em Lisboa, a 14 de agosto de 1433. Foi autor do Livro da Montaria, obra
literária notável do século XV. Casou todos os seus filhos e filhas, à excepção de D. Henrique e
de D. Fernando, e deu a todos, como também aos netos, casa opulenta.
O sentimento geral que anima a Crónica de D. João I é o amor da terra, a base do
novo direito, incompatível com o direito senhorial. Fernão Lopes sente o amor da terra como
os homens das vilas, e assim como em nome dele estes atacavam e incendiavam os castelos,
assim Fernão Lopes castiga duramente os seus alcaides e processa a nobreza portuguesa em
geral, acusando-a de "desnaturada". Esta terra que merece todo o amor dos seus naturais
aparece-lhe especialmente personificada na cidade de Lisboa, que ele qualifica de “mãe e ama
dos feitos” que levaram à vitória do mestre de Avis. É decerto caso único entre todos os
cronistas medievais este atribuir a uma cidade colectivamente o papel principal nos
acontecimentos que levam à derrota do invasor.
É graças a esta mentalidade, a este ponto de vista de quem mora não no castelo, mas
ao rés da praça, que nós possuímos este monumento literário, certamente singular, que é a
história de uma revolução popular medieval feita com consciência de revolucionário. Fernão
Lopes é já único quando conta metodicamente e fazendo-nos acompanhar os múltiplos e
complexos fios da intriga, como foi preparado e como se desencadeou, nos conselhos secretos
e na praça pública, o golpe revolucionário que Álvaro Pais gizou em sua casa e que o povo
consumou apinhado junto aos paços da rainha. Esta parte da Crónica de D. João I é uma
estupenda lição sobre a arte de desencadear uma revolução popular, nos seus diversos
aspectos, desde o pretexto à criação do clima emocional, e passando pelos slogans eficazes
como esse de "acudi ao Mestre que é filho de el-rei D. Pedro", que associa a personalidade do
chefe proposto à popularidade do rei que precedera os tempos calamitosos de D. Fernando.
Mas mais significativo é que o nosso Autor se integra na consciência da massa insurreccionada
e é capaz de traduzir comoventemente o seu estado de espírito. [...]
É esta integração nos movimentos massivos que dá à sua pena um entusiasmo épico
quando se ocupa de tais assuntos. É então que ele atinge os momentos supremos da sua
prosa, ou melhor, que transpõe os limites da prosa para entrar nos da poesia épica.
Em troca, mostra-se frio e objectivo, embora sempre eloquente, quando fala de
pessoas e casos individuais. Então o entusiasmo cede o lugar a uma análise sem ilusões,
impressionantemente despreconceituosa e desmascaradora. Herói para ele, só o povo e Nuno
Álvares. Do Mestre depois rei para baixo há só criaturas humanas que obedecem
fundamentalmente a dois estímulos: o medo e a ambição, às vezes também a concupiscência.
Há diferenças assinaláveis entre as duas partes da crónica de D. João I. Dois anos de
Histórica ocupam em 193 capítulos, na 1.ª parte, perto de 400 páginas, igual extensão dada a
26 anos de História, na 2.ª parte. Este facto tem implicações visíveis no discurso e na técnica
narrativa.
Na 1.ª parte, o cronista sente dificuldades pois há muitas ações simultâneas: o
desencadear da agitação do povo, a forte movimentação das forças portuguesas e castelhanas
no Centro e Sul do país, as peripécias políticas de D. Leonor Teles. É o período do país sem rei.
Na 2.ª parte, a matéria é mais simples e quase se resume à invasão de Portugal pelo rei de
Castela, à batalha de Aljubarrota e ao regresso do rei castelhano à sua terra. Assim, a 1.ª parte
apresenta uma certa dispersão e a ação está organizada à volta de certos núcleos: escolha do
Mestre para Regedor e Defensor; generalização da revolta nas províncias, a partir de Lisboa;
conspiração contra D. Leonor Teles e contra o rei de Castela; cerco de Lisboa; combates do
Mestre na província e eleição do rei.
Impelido pelos acontecimentos, o ritmo narrativo é muito vivo. Fernão Lopes tira
partido genial desta técnica, o que confere à leitura um enorme prazer. Faz frequentes
intervenções pessoais.
O povo é o herói, na 1.ª parte; na 2.ª, é o rei D. João I que governa, calmo, depois da
estrondosa vitória de Aljubarrota, onde o herói é Nuno Álvares Pereira.