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Análise do capítulo XI: Crónica de D.

João I, Fernão Lopes

Assunto do capítulo

                Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa, incitada
pelos apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque o estavam a
matar nos Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da cidade e se dirigiu em
grande alvoroço para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar as portas. Os seus intentos só
foram travados quando, aconselhado pelos seus partidários, o Mestre apareceu a uma janela à
multidão, que, reconhecendo, se acalmou, aclamando-o e insultando o conde Andeiro e a
rainha.

🔺 Título

                O título do capítulo (“Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o mestre,
e como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele”) apresenta as linhas gerais do texto.

🔺 Estrutura interna

Momentos Delimitação Personagens Ação Espaço

O Pajem do
Mestre deixa o
Pelas
Paço da Rainha e
ruas da
cavalga
Pajem cidade
Convocação / velozmente
Linhas 1 a 5 até à
Apelo Álvaro Pais pelas ruas, em
casa de
direção à casa
Álvaro
de Álvaro Pais,
Pais.
gritando que
Introdução mata, o Mestre.

Desenvolviment Álvaro Pais sai


o com os seus
homens e grita
Movimentação Pajem pela cidade que Pela
é necessário cidade,
Álvaro Pais acudir ao a partir
Linhas 6 a Mestre, por ser
+ Aliados de da casa
21 filho de D.
Álvaro Pais de
Pedro. Álvaro
Concentração Povo Pais
O povo junta-se
a Álvaro Pais e
avança em
direção ao Paço.

Manifestação Linhas 22 a Povo O povo chega ao Às


Paço e mostra-
se gradualmente
furioso e
impaciente por
saber o que
portas
sucedeu ao
43 do
Mestre e planeia
Paço.
invadi-lo. É o
momento em
que a ação
atinge o seu
clímax.

Convencido
pelos que o
rodeiam, o
Mestre dirige-se
à janela e À
Linhas 44 a Povo mostra-se ao janela
Aclamação
59 Mestre povo, do
tranquilizando-o Paço
(pois está vivo e
o conde morto)
e sendo por ele
aclamado.

O Mestre sai do
Paço e convence
o povo a
Paço
dispersar.
Linhas 59 a Mestre
Dispersão Pelas
80 O Mestre
Povo ruas da
atravessa a
cidade
cidade e dirige-
se ao Paço do
Conclusão Almirante.
                Alexandre Dias Pinto e Patrícia Nunes (in Entre nós e as Palavras 10, Santillana, p. 75)
propõem outra divisão do capítulo.

. 1.ª parte (de “O Page do Meestre que estava aa porta…” a “… que matam sem por quê.”) – Os
partidários do Mestre percorrem Lisboa para mobilizar a população (a favor do Mestre), que os
segue.

. 2.ª parte (de “A gente começou de se juntar…” a “– Pois se vivo é, mostrae-no-lo e vee-lo-


emos.”) – A multidão junta-se no Paço e ameaça invadi-lo se não tiver notícias de D. João.

. 3.ª parte (de “Entom os do Meestre veendo…” a “E assi forom pera os Paaços u pousava o


Conde.”) – O Mestre mostra-se à janela, abandona o Paço e pede à multidão que disperse.

. 4.ª parte (de “E estando eles por se assentar…” a “… desta guisa que se segue.”) – D. João é
informado de que o Bispo de Lisboa está em perigo, mas é aconselhado a não intervir

                Por seu turno, Célia Cameira, Fernanda Palma e Rui Palma (in Mensagens 10)
apresentam outra proposta.

. 1.ª parte – O Pajem do Mestre sai dos Paços da Rainha, em direção à casa de Álvaro Pais, e
lança o boato de que o estão a matar, conforme combinado.

. 2.ª parte – O povo sai à rua juntamente com Álvaro Pais para acorrer ao Mestre.

. 3.ª parte – A fúria do povo, agora em multidão, cresce e ele quer saber notícias do Mestre.

. 4.ª parte – O Mestre acede aos apelos dos seus partidários e surge a uma janela do Paço,
acalmando o povo.

. 5.ª parte – O Mestre desce, junta-se ao povo e despede-se da multidão.

Desenvolvimento do capítulo
0.ª parte (ll. 1-5) – Apelo / Convocação

. O Pajem do Mestre grita repetidamente pela cidade que querem matar D. João, informando e
incitando o povo (com o boato que lança), dando, assim, início a um plano político
previamente definido, cujo objetivo é a criação de uma atmosfera favorável à aclamação
daquele como rei de Portugal.

. O plano / a estratégia foi delineado pelo Mestre e por Álvaro Pais, com a colaboração do
Pajem, no sentido de intensificar a oposição popular à Rainha e ao conde Andeiro e convertê-
la em revolta a favor dos intuitos de D. João e dos seus aliados.

. Por outro lado, não restam dúvidas de que o plano foi previamente combinado, como se
comprova pela expressão “segundo já era percebido”. De facto, o Pajem estava à porta
aguardando que o instruíssem a iniciar o plano e, quando recebe a ordem, parte a cavalo,
percorrendo as ruas a galope, gritando que acudam ao Mestre, pois querem assassina-lo.

. O referido plano estava sujeito a um secretismo total. Dele têm conhecimento somente o
Pajem, Álvaro Pais, o Mestre e os seus partidários. O objetivo é claro: anunciar o perigo que D.
João corre, para levar a população de Lisboa a apoiá-lo.

. 2.ª parte (ll. 6-21) – Movimentação e concentração

. Ao escutarem os brados do Pajem, as “gentes” saem à rua, dialogam umas com as outras,
enfurecem-se com o boato lançado, sobre o qual não refletem minimamente, e começam a
pegar em armas.

. Álvaro Pais, prestes e armado, desempenha o seu papel: junta-se aos seus aliados e ao Pajem
e cavalga pelas ruas, gritando ao povo que acuda ao Mestre, que “filho he delRei dom Pedro”.
Atente-se neste pormenor e na forma subtil como Álvaro Pais alude a D. Pedro, explorando o
simbolismo da sua figura e da sua história de amor com Inês de Castro no imaginário popular.

. Soam vozes pela cidade que matam o Mestre e o povo dirige-se, armado e apressadamente,
para o local onde ele se encontra, para o defenderem e salvarem.
. A multidão concentra-se em número muito grande: não cabe pelas ruas principais e atravessa
lugares recônditos, desejando cada um ser o primeiro a chegar ao Paço.

. Enquanto se desloca para lá, questiona-se quem desejará matar o Mestre e várias vozes
anónimas apontam o nome do conde João Fernandes, a mando da Rainha D. Leonor Teles. O
clima de agitação e excitação do povo foi preparado cuidadosamente e está a resultar em
pleno.

. 3.ª parte (ll. 22 a 43) – Manifestação

. O povo, unido em defesa do Mestre e com o sentimento de vingança, inquieta-se e enfurece-
se diante das portas cerradas do Paço.

. Perante afirmações de que o Mestre tinha sido morto, são sugeridas diversas ações
tendentes a forçar a entrada no Paço: arrombar as portas cerradas, lançar fogo ao edifício para
queimar o conde e a Rainha, escalar os muros com escadas.

. Gera-se uma grande confusão e o povo não se entende acerca da atitude a adotar, enquanto
várias mulheres transportam feixes de lenha e carqueja para queimar os muros dos Paços e a
Rainha, a quem dirigem muitos insultos.

. Dos Paços, vários bradam que o Mestre está vivo e o conde Andeiro morto, mas a “arraia
miúda” não acredita e quer provas concretas, isto é, vê-lo, de que é assim. Receando que o
povo, devido à sua fúria e ao desejo de vingança, invada o palácio, se torne incontrolável e o
destrua, aconselham D. João a mostrar-se-lhe.

. 4.ª parte (ll. 44 a 59) – Aclamação

. O Mestre mostra-se a uma grande janela e fala ao povo, que fica extremamente
emocionado / perturbado ao constatar que está efetivamente vivo e o conde morto, quando
muitos criam já no contrário. Essa fala tem como finalidade tranquilizar o povo e dar-lhe
esperança, mostrando-se seu aliado (a apóstrofe “Amigos…”).
. Nesta fase do texto, é apresentado uma imagem muito negativa de D. Leonor Teles, vista
popularmente como adúltera e traidora, chegando a ser acusada pela morte de D. Fernando
(ll. 53-54). O narrador não deixa grandes dúvidas: se a população tivesse entrado no Paço, teria
assassinado a Rainha.

. 5.ª parte (ll. 59 a 80) – Dispersão

. O Mestre, consciente da sua segurança e, no fundo, de que o plano arquitetado tinha
resultado na perfeição, desce e cavalga com os seus, acompanhado pelos populares, que lhe
perguntam o que quer que façam. D. João responde que não precisa mais deles e dirige-se
para o Rossio ao encontro do conde D. João Afonso, irmão da Rainha, enquanto é saudado
pelas “donas ca çidade”.

. Quando se prepara para comer com o conde, vêm dizer-lhe que tencionam matar o Bispo de
Lisboa, por isso faria bem em lhe acudir. No entanto, aconselhado pelo Conde, acaba por não o
fazer.

🔺 Personagens

                Na Crónica de D. João I, encontramos atores individuais e atores coletivos.

                As primeiras figuras do texto são individuais – o Pajem e Álvaro Pais –, aquelas que
põem a ação em movimento, porém a seguinte é coletiva, sem nome que a identifique, por
duas razões: por um lado, trata-se de um coletivo e, por outro, é a gente simples do povo de
Lisboa (do mesmo modo e também por isso, o Pajem não possui nome). É o povo, enquanto
ator, coletivo que domina a ação.

                No que diz respeito às personagens individuais, umas estão presentes e outras
ausentes:

. Presentes:

- O Pajem e Álvaro Pais, no início do capítulo;

- O Mestre de Avis, mencionado deste o início na boca de outras personagens, surge


fisicamente apenas na parte final do capítulo;

- O conde D. João Afonso, que se encontra com o Mestre na parte final do capítulo;
- Outros fidalgos: Afonso Eanes Nogueira, Martim Afonso Valente, Estevão Vasques Filipe e
Álvaro do Rego.

. Ausentes:

- O conde Andeiro, que se sabe ter sido morto;

- A rainha, retratada muito negativamente;

- O bispo de Lisboa, acusado de traição e que será morto.

                A caracterização das personagens é feita de forma indireta: são as suas palavras e,


sobretudo, as suas ações que permitem caracterizá-las.

🔺 Caracterização do povo, a "arraia miúda"

                O povo, a “arraia miúda”, personagem coletiva, preparado psicologicamente,


constitui o escudo defensor do Mestre para o assassínio do conde Andeiro, para sustentar o
ato e suportar as suas consequências, problema que a lealdade ao Mestre e a bravura do povo
resolveram.

                Os traços que o caracterizam são os seguintes:

* a curiosidade (“As gentes que esto ouviam saíam aa rua para ver que cousa era.”);

* a indignação, a revolta, o desejo de vingança e a agressividade;

* a determinação e a disponibilidade ("correndo a pressa"; "desejando cada um de seer o


primeiro"; "poerem fogo aos paaços e queimar o treedor e a aleivosa");

* o empenhamento na defesa do Mestre, o carinho e a solidariedade ("se moverom todos...


morte");
* a mobilização e a unidade na ação – age como um todo e acorre aos Paços para acudir ao
Mestre ("todos feitos dum coraçom, com talente de o vingar"): traziam lenha, queriam
carqueja para lançar o fogo ao Paço ou uma escada para verem o que se passava dentro;

* a impaciência solidária ["as portas (...) çarradas (...) britassem"];

* a agitação, o crescendo da fúria popular, a fim de garantir a integridade física do Mestre;

* a desorientação própria de quem age sem pensar e a turvação resultante da ansiedade


(realismo psicológico);

* a precipitação, a ausência de reflexão / moderação e o descontrolo emocional


(comportamento que se acentua após a chegada aos Paços e antes da aparição do Mestre);

* a desconfiança;

* o alívio, a comoção, a alegria e a satisfação da missão cumprida;

* o poder (“não lhes poderiam depois tolher de fazer o que quisessem”; “E sem dúvida, se eles
entraram dentro, nom se escusara a rainha de morte, e fora maravilha quantos eram da sua
parte e do conde poderem escapar”).

                O povo é um dos protagonistas do capítulo, uma personagem coletiva que garante a
defesa do Mestre, influencia o curso da História de Portugal. Determinadas ações são
individuais e anónimas, como gritar, ir buscar lenha ou pegar em armas.

                É uma personagem coletiva dado que partilha um conjunto de características comuns
(lisboetas e patriotas) e um objetivo comum (apoiar o Mestre), agindo como um todo,
coletivamente.
🔺 Personagens individuais

. Pajem: informa o incita o povo, gritando e lançando o boato que alguém quer matar o
Mestre, como previamente combinado.

. Álvaro Pais

                Álvaro Pais é o estratego que conduz o povo para um fim preconcebido: preparar
psicologicamente o povo a aceitar e mesmo aplaudir o assassínio do conde de Andeiro. O
pajem, com quem colaborou na divulgação do boato da morte do Mestre, dirigiu-se a sua casa,
porque tudo estava previamente combinado ("segundo já era percebido"). Fernão Lopes não
deixa dúvidas: Álvaro Pais foi o cérebro que tudo planeou, nada deixando ao acaso.

                Ele mesmo insiste na divulgação do boato junto do povo, de modo a “convocá-lo” e a
criar um clima favorável à aceitação do Mestre, da morte do conde Andeiro e à sua
confirmação como legítimo herdeiro do trono português.

                Álvaro Pais é uma figura com visão política e inteligência; é matreiro, astuto,
manipulador, mentiroso até (por exemplo, grita que matam o Mestre, quando, na verdade, é
este quem assassina o conde Andeiro; grita, igualmente, excitando e iludindo as pessoas), para
atingir os seus fins.

. Mestre de Avis

* É querido pelo povo, que o apoia politicamente e vê como garantia da independência


nacional;

* É humano, ponderado, refletivo e dialogante, não obstante a impulsividade revelada com o


ímpeto de ir salvar o bispo de Lisboa quando lhe anunciam que a se preparam para o matar;

* Adapta-se às circunstâncias, aceitando as instruções dos que lhe são próximos e retribui
afetuosamente o carinho do povo;
* São-lhe associadas as ideias de predestinação e proteção divinas, como se pode comprovar
por expressões textuais que mostram a crença do povo de que tinha tido a proteção divina,
dado ter sobrevivido ao suposto atentado: “E per vontade de Deos”; “Beento seja Deos que
vos guardou de tamanha traiçom”; “

* É o autor da morte do conde Andeiro nos Paços da Rainha;

* É uma figura carismática e populista (mostra-se à população para obter o seu apoio);

* É, de certa forma, uma personagem dual: é amigo do povo e seu herói, mas revela alguma
fraqueza e incapacidade para tomar decisões autonomamente, dependendo da opinião dos
seus conselheiros.

. Rainha D. Leonor Teles: o narrador coloca, estrategicamente, na boca do povo a acusação de


que é uma traidora e adúltera, chegando a ser acusada da morte de D. Fernando.

🔺 Narrador

. O narrador deste capítulo alterna entre a objetividade e a subjetividade:

- regista acontecimentos históricos e factuais (objetividade);

- analisa criticamente e interpreta os factos narrados (subjetividade;

- compreende a importância dos fatores psicológicos nos fenómenos históricos (subjetividade)


(por exemplo, o sentimento de crise nacional gerado pela perda iminente da independência
nacional).

. Contrariando aquilo que proclamara no “Prólogo” a esta crónica, Fernão Lopes manifesta
empatia com o povo e apresenta um retrato bem negativo de D. Leonor, “negando” assim a
sua proclamada imparcialidade.

. Outros momentos em que a sua imparcialidade é posta em causa são os seguintes:

- a subjetividade do discurso;

- a sua ideologia e emotividade;


- os seus comentários ocasionais;

- a solidariedade com o povo e a cidade de Lisboa;

- a expressividade da linguagem e os recursos expressivos.

. Por outro lado, trata-se de um narrador omnisciente, dado que conhece os acontecimentos
que relata, bem como as emoções de alguns intervenientes e as suas intenções secretas.

🔺 Espaços

. Abertos, públicos, frequentados pelo povo e pelos intervenientes que com ele interagem:
ruas da cidade de Lisboa.

. Fechado, privado, de acesso condicionado: o palácio, frequentado pelos nobres e pelos


detentores do poder.

. Janela do palácio, em que o Mestre surge e se mostra ao povo, apaziguando a sua fúria, e é
por ele aclamado.

🔺 Relação ação / espaço – concentração do espaço

 Cada momento corresponde a um espaço específico: ruas entre o Paço e a casa de Álvaro
Pais; ruas de Lisboa; em frente do Paço, mas centrado na janela onde assoma o Mestre.

 O espaço evolui da dispersão para a concentração: o povo salta das ruas da cidade para a
rua principal, que conduz ao Paço da rainha e ali se concentra em torno do Mestre.

🔺 Tom dramático e dinâmico:

 alternância discurso indirecto (narrador) / discurso directo (fala das


personagens ¹ só discurso indirecto (texto pesado e sem vida);

 funções da linguagem (fala das personagens): emotiva, apelativa e fática;


 gradação crescente na expressão da emotividade do povo, que culmina com o
aparecimento do Mestre (clímax).

                Esta alternância entre as duas modalidades do discurso confere, de facto, dinamismo,
veracidade, veracidade e dramatismo ao discurso e ao que é narrado, pois, através do discurso
direto, temos acesso às falas “reais” dos intervenientes. Desta forma, para além de obtermos
maior dinamismo na narração, Fernão Lopes cumpre a sua missão de relatar a verdade dos
acontecimentos.

🔺 Linguagem e recursos estilísticos

- Narração – contar um facto histórico:

. uso de verbos de movimento (“saíram”, “atravessavom”, etc.): conferem dinamismo à ação;

. uso do pretérito perfeito e imperfeito, tempos próprios da narração;

. estrutura frásica:

- coordenação: exprime a sequência de ações;

- subordinação: exprime as causas (orações causais) e as motivações dessas ações;

. expressões que marcam a mudança de espaço (à porta, pela rua, ali, i, pera u, pera alá,
acima, dentro, pera os paços) e o decurso do tempo (ante que, entom, logo à pressa);

. orações temporais-causais de tipo latinizante ("Como lhe disseram" significa "depois de lhe


terem dito e por lhe terem dito"; "como foram às portas do paço" significa "quando chegaram
às portas do paço e por terem chegado às portas do paço") com o intuito de unir o espaço e o
tempo por um vínculo de causalidade;

. uso de nomes que transmitem agitação (“arroído”, “alvoroço”, “torvaçam”).

- Descrição – descrição do movimento popular, físico e psicológico (exímio pintor da psicologia


da "arraia miúda"):

. realismo descritivo e visualismo (pormenores realistas; descrição perfeita e objectiva,


sugestão de simultaneidade; sugestão de movimento ...);

. visualismo impressionista:

-» perifrástica (começou de ir; não quedava de ir; começou de se juntar): sugere a rápida


determinação e disponibilidade do povo;
-» gerúndio: dizendo, bradando;

-» pretérito imperfeito: estavam, saíam, matavam;

-» advérbios e expressões adverbiais (rijamente a galope; asinha; agindo; correndo à pressa;


de desvairadas maneiras; conhecendo-o todos claramente; olhavam contra ele): sugerem ação,
movimento e tensão;

-» arcaísmos pleonásticos: olhai e vede; era maravilha de ver; entrar dentro; sobir acima;
desceo afundo: reforçam, na sua maioria, o efeito visual da ação; constituem um apelo aos
sentidos;

. expressões que realçam a curiosidade, a ansiedade e a impaciência do povo: as gentes saiam


à rua ver que cousa era; alvoraçaram-se; certificavam; britassem as portas; aficavam; acendia;
o arroído;

. adjectivação expressiva: lugares escuros, espantosas palavras, portas çarradas, desvairadas


maneiras, aleivosa, todos feitos dum coração (povo unido numa só vontade);

. subordinação: orações subordinadas causais, temporais e consecutivas – ligam os factos no


tempo, mediante relações de causalidade;

. ironia popular: "Oh, que mal fez! que matou o traedor";

. gradação ascendente da emoção do povo:  ouve o apelo e acorre ® desorientação,


curiosidade pela sorte do Mestre e ódio ao conde e à rainha ® perturbação do
povo ® reconhecimento do Mestre e sua aclamação;

. expressões que sugerem uma certa predestinação divina em favor do empreendimento do


Mestre: "per vontade de Deus"; "ca eu vivo e são som a Deos graças."; "bendito seja Deus que
vos guardou desse traedor"; "Bento seja Deus que vos guardou de tamanha traição";

. mudança contínua de planos, do geral para o particular e do particular para o geral:

- alternância de falas particulares e falas do povo;

- alternância da actuação de personagens individuais e da personagem coletiva (o povo).

                Mesmo na actuação do povo há várias formas e graus: por vezes o povo age em
conjunto ["A gente começou de se juntar todos feitos dum coração" ¹ "tais i havia (...) deles
bradavam, outros se aficavam, uns vinham com feixes de lenha, outros traziam carqueja" – são
grupos organizados no meio da multidão].

. sensações:

- auditivas: "Soarom as vozes do arroído"; "braadando"; "com espantosas palavras"; "ali eram


ouvidos braados de desvairadas maneiras"; "braadavom"; "era o arroído tam grande que se
nom entendiam uns com os outros", etc.;

- visuais: "se moverom todos com mão armada, correndo a pressa"; "era tanta que era
estranha cousa de veer"; "as portas do Paaço que eram já çarradas".
                A linguagem sensorialista torna os relatos mais realistas, transportando o leitor para
o local dos acontecimentos, como se os estivesse a presenciar, “vendo” e “ouvindo” o que se
passou.

. Comparação: "assi como viuva que rei nom tinha, e como se lhe este ficara em logo de
marido, se moverom todos com mão armada, correndo... escusar morte": sugere a ligação, o
carinho e o empenhamento do povo na defesa do Mestre, que não queria perder,
aproximando-o de uma figura familiar. Por outro lado, esta comparação sugere o desgoverno e
desproteção a que a cidade (representada pela mulher) ficaria sujeita sem rei, tal como
acontece com as viúvas.

. Metáforas:

- "Cada vez se acendia mais": contribui para recriar a tensão que vai aumentando em volta do
Paço; o alvoroço popular vai aumentando de intensidade, provocando ruído, agitação e
movimento entre a população, tal como sucede com uma fogueira que se acende e vai
aumentando de intensidade; acresce que esta fogueira já estava acesa há algum tempo,
estando prestes a atingir o seu clímax.

- “Todos feitos de um coraçom”: sublinha a união do povo e a comunhão de sentimentos.

. Hipérbole:

-» realça o grande alvoroço e o tumulto da multidão: "e em todo isto era o arroído atam
grande que se nom entendiam uns com os outros";

-» caracteriza o comportamento das multidões: "E tanta era a torvaçam deles (...) que taes avia
i que aperfiavom que nom era aquele".

. A capacidade mobilizadora do discurso directo (diálogo), onde se misturam


as funções apelativa, fática e emotiva, alternando com a informativa:

a) o apelo de Álvaro Pais, com recurso ao presente do conjuntivo com sentido de imperativo e
à frase exclamativa;

b) a força da interpelação dos populares, com recurso ao presente do indicativo ("matom",
"é") e ao pretérito perfeito ("çarrou") e de curtas e incisivas frases interrogativas;

c) o desafio do povo aos "do Mestre", através do presente do indicativo ("se vivo é"),  do
imperativo ("mostrae-no-lo")  e do  futuro do  indicativo  ("vee-lo--emos");
d) a intervenção apaziguadora do Mestre, iniciada por um vocativo ("Amigos"), continuada por
um imperativo ("apacificae-vos") e concluída com a primeira pessoa do presente do indicativo
do verso ser ("som"), a que dois adjectivos ("vivo e são") servem de predicativo;

e) finalmente, esfriados os ânimos, o comentário em jeito de antecipação, no pretérito


perfeito ("fez", "matou") e no presente ("creedes", "há-de vir") do indicativo.

. Interrogações e repetição: "U matom o Meestre? que é do Meestre?"; "Quem çarrou estas


portas?".

. Apóstrofes:

- “Ó Senhor, como vos quiserom matar…”: acentua o respeito, a veneração e a amizade do


povo para com o Mestre e o alívio pela proteção de Deus o ter livrado da traição do conde
Andeiro.

- “Amigos…”: a amizade entre o Mestre e o povo.

. Antítese: “… o Mestre era vivo, e o Conde Joam Fernandez morto…”.

. Exclamações.

. Campo lexical de «revolta»: braados, britassem, queimar, treedor, doestos, motim, etc.

. Pormenor:

- do vestuário de Álvaro Pais: "está prestes e armado com uma coifa na cabeça, um cavalo que
anos havia que non cavalgava";

- da "janela que vinha sobre a rua" para recriar o espaço e nos fazer comungar de todo aquele
ambiente.

                Fernão Lopes socorre-se, na crónica, da chamada técnica da reportagem, cujos


principais traços são os seguintes:

. a minúcia e o realismo com que relata os acontecimentos, como se os tivesse presenciado;

. o posicionamento no próprio momento em que ocorrem os factos testemunhados por si e


indiretamente pelo narratário;

. o objetivismo: o cronista relatava apenas o que vê e ouve – os gestos, as atitudes e as


palavras dos intervenientes;

. as anotações de cenário, que sugerem o ambiente em que se movem as figuras históricas.
                Desta forma, o cronista aproxima o leitor dos acontecimentos, levando-o a
compreendê-los melhor e a identificar-se com os intervenientes.

                As descrições pormenorizadas dos lugares onde têm lugar as ações, em planos
narrativos gerais e particulares, configuram aquilo que se pode designar por visão
objetiva ou cinematográfica. De facto, a narração segue uma técnica semelhante à do cinema,
constituída por uma sucessão de planos, espaços e atores:

Plano 1

. Espaço: porta do Paço da Rainha e ruas de Lisboa.

. Ator: pajem.

. Local onde se dirige: casa de Álvaro Pais.

Plano 2

. Espaço: ruas de Lisboa.

. Atores: pajem, Álvaro Pais e povo.

. Estado de espírito: revolta e preocupação.

Plano 3

. Espaço: portas do Paço da Rainha.

. Atores: povo e Mestre.

. Estado de espírito: vingança.

Plano 4

. Espaço: janela do Paço.

. Atores: Mestre e povo.

. Estado de espírito: emoção, alívio e contentamento.

Plano 5

. Espaço: ruas do Paço.


. Atores: Mestre, donas e povo.

. Atitude do povo: disponibilidade para apoiar a causa do Mestre.

Plano 6

. Espaço: Paço do Almirante.

. Atores: Mestre, partidários e fidalgos.

. Ação: refeição do Mestre e decisão de os fidalgos matarem o bispo de Lisboa.

                Em conclusão, podemos afirmar que Fernão Lopes marca o primeiro grande momento
da prosa portuguesa. São, sobretudo, admiráveis os seus quadros descritivos dos grandes
movimentos populares. Nas suas crónicas, há verdadeiros painéis, onde a arraia miúda se
manifesta em toda a sua pujança emocional. A grande força desta prosa está sobretudo na
organização das ideias, segundo planos espácio-temporais, que nos dão a visão do conjunto
sem esquecer o rigor dos pormenores, e tudo isto numa linguagem que, sendo por vezes
arcaizante, é dotada de uma vivacidade e visualismo admiráveis.

🔺 O texto como documento da época em que se integra

                1. Pelo conteúdo:

* o contexto histórico (a crise de 1383-85):

- o assassinato do conde Andeiro;

- a movimentação do povo de  Lisboa para apoiar o Mestre,  liderado por Álvaro Pais;

* a componente política do episódio:

- a criação de uma atmosfera favorável à aclamação do Mestre como rei de Portugal;

- a legitimação de uma dinastia nacional, embora por via bastarda.

                2. Pela forma:

                               * o texto como exemplo da fase arcaica da língua:

- o hiato: "braadar", "Meestre", "tiinha", "veer", "principaes", "seer", "aas", "paaço";


- a terminação -om na terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo ("atravessavom",
"certificavom", "estavom", etc.), do pretérito perfeito ("moverom", "forom", "começarom") e
do presente do indicativo ("matom");

- as terminações  -om e -am em vez de -ão : "nom", "atam", "entom", "tam", "torvaçam";

- a nasalação de determinantes e pronomes indefinidos: uu, uus, neua, neuua;

- o uso de arcaísmos: per, u, i, ca;

- o uso do ç em início de palavra: "çarradas", "çarrou";

- o pleonasmo: "sobir acima", "entrar dentro".

🔺 D. João I, Mestre de Avis e rei de Portugal

                Filho bastardo do rei D. Pedro I e de uma dama galega de nome Teresa Lourenço, D.
João nasce em Lisboa, em 11 de abril de 1357. Aos seis anos é armado cavaleiro por D. Pedro e
levado para Avis, onde passa a adolescência. D. Pedro faz-lhe doação de casas em Avis, ao lado
de outros bens. O jovem mestre de Avis continua em terras alentejanas e a sua influência vai
crescendo, acompanhando de perto os atos da governação de D. Fernando.

                Preso no castelo de Évora na Primavera de 1382, devido a intrigas contra D. Leonor
Teles/conde de Andeiro, é solto por D. Fernando, seu irmão, garças à eficaz intervenção do
conde de Cambridge, chefe do contingente inglês em Portugal. Virá a ser amigo do duque de
Lencastre e casará com a sua filha D. Filipa. Morto D. Fernando em 22 de outubro de 1383, o
partido do conde de Andeiro, amante de D. Leonor Teles, toma o poder. D. João é envolvido
nos acontecimentos que levam ao assassinato, praticado por si, do conde de Andeiro em 6 de
dezembro de 1383. É aclamado pelo povo de Lisboa Regedor e Defensor do Reino. Nas Cortes
de Coimbra, de 6 de abril de 1385, é aclamado rei de Portugal, não por méritos seus, mas
sobretudo por influência de homens de coragem como Nun'Álvares Pereira ou João das
Regras.

                Em fevereiro de 1387, casa-se com D. Filipa de Lencastre, dando origem à


chamada Ínclita Geração. Viveu um longo período de paz interna e externa, preparando as
expedições marítimas. Conquistou Ceuta em 1415.

                Faleceu em Lisboa, a 14 de agosto de 1433. Foi autor do Livro da Montaria, obra
literária notável do século XV. Casou todos os seus filhos e filhas, à excepção de D. Henrique e
de D. Fernando, e deu a todos, como também aos netos, casa opulenta.

🔺 Lisboa, "mãe e ama dos feitos"

                O sentimento geral que anima a Crónica de D. João I é o amor da terra, a base do
novo direito, incompatível com o direito senhorial. Fernão Lopes sente o amor da terra como
os homens das vilas, e assim como em nome dele estes atacavam e incendiavam os castelos,
assim Fernão Lopes castiga duramente os seus alcaides e processa a nobreza portuguesa em
geral, acusando-a de "desnaturada". Esta terra que merece todo o amor dos seus naturais
aparece-lhe especialmente personificada na cidade de Lisboa, que ele qualifica de “mãe e ama
dos feitos” que levaram à vitória do mestre de Avis. É decerto caso único entre todos os
cronistas medievais este atribuir a uma cidade colectivamente o papel principal nos
acontecimentos que levam à derrota do invasor.

                É graças a esta mentalidade, a este ponto de vista de quem mora não no castelo, mas
ao rés da praça, que nós possuímos este monumento literário, certamente singular, que é a
história de uma revolução popular medieval feita com consciência de revolucionário. Fernão
Lopes é já único quando conta metodicamente e fazendo-nos acompanhar os múltiplos e
complexos fios da intriga, como foi preparado e como se desencadeou, nos conselhos secretos
e na praça pública, o golpe revolucionário que Álvaro Pais gizou em sua casa e que o povo
consumou apinhado junto aos paços da rainha. Esta parte da Crónica de D. João I é uma
estupenda lição sobre a arte de desencadear uma revolução popular, nos seus diversos
aspectos, desde o pretexto à criação do clima emocional, e passando pelos slogans eficazes
como esse de "acudi ao Mestre que é filho de el-rei D. Pedro", que associa a personalidade do
chefe proposto à popularidade do rei que precedera os tempos calamitosos de D. Fernando.
Mas mais significativo é que o nosso Autor se integra na consciência da massa insurreccionada
e é capaz de traduzir comoventemente o seu estado de espírito. [...]

                É esta integração nos movimentos massivos que dá à sua pena um entusiasmo épico
quando se ocupa de tais assuntos. É então que ele atinge os momentos supremos da sua
prosa, ou melhor, que transpõe os limites da prosa para entrar nos da poesia épica.

                Em troca, mostra-se frio e objectivo, embora sempre eloquente, quando fala de
pessoas e casos individuais. Então o entusiasmo cede o lugar a uma análise sem ilusões,
impressionantemente despreconceituosa e desmascaradora. Herói para ele, só o povo e Nuno
Álvares. Do Mestre depois rei para baixo há só criaturas humanas que obedecem
fundamentalmente a dois estímulos: o medo e a ambição, às vezes também a concupiscência.

                                                               António José Saraiva, As Crónicas de Fernão Lopes

🔺 As duas partes da Crónica

                Há diferenças assinaláveis entre as duas partes da crónica de D. João I. Dois anos de
Histórica ocupam em 193 capítulos, na 1.ª parte, perto de 400 páginas, igual extensão dada a
26 anos de História, na 2.ª parte. Este facto tem implicações visíveis no discurso e na técnica
narrativa.

                Na 1.ª parte, o cronista sente dificuldades pois há muitas ações simultâneas: o
desencadear da agitação do povo, a forte movimentação das forças portuguesas e castelhanas
no Centro e Sul do país, as peripécias políticas de D. Leonor Teles. É o período do país sem rei.
Na 2.ª parte, a matéria é mais simples e quase se resume à invasão de Portugal pelo rei de
Castela, à batalha de Aljubarrota e ao regresso do rei castelhano à sua terra. Assim, a 1.ª parte
apresenta uma certa dispersão e a ação está organizada à volta de certos núcleos: escolha do
Mestre para Regedor e Defensor; generalização da revolta nas províncias, a partir de Lisboa;
conspiração contra D. Leonor Teles e contra o rei de Castela; cerco de Lisboa; combates do
Mestre na província e eleição do rei.

                Impelido pelos acontecimentos, o ritmo narrativo é muito vivo. Fernão Lopes tira
partido genial desta técnica, o que confere à leitura um enorme prazer. Faz frequentes
intervenções pessoais.

                O povo é o herói, na 1.ª parte; na 2.ª, é o rei D. João I que governa, calmo, depois da
estrondosa vitória de Aljubarrota, onde o herói é Nuno Álvares Pereira.

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