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SUA HISTÓRIA ALÉM

DO EGO
Um guia prático e filosófico para domar sua obra e
torná-la irresistível

Steven Pressfield

Hanoi Editora
Copyright © 2021 Steven Pressfield

Título original: Nobody Wants to Read Your Sh*t: Why That Is And What You Can Do About It (2016)

Copyright da edição brasileira © 2021 Hanoi Editora

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte das publicações poderão ser reproduzidas ou utilizada de
qualquer maneira, armazenada em sistema de recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por
qualquer meio eletrônico, mecânico, fotocopiador, gravador ou de qualquer outra forma, sem o
consentimento por escrito do autor ou da editora

Coordenação editorial: Auriel de Almeida

Tradução: Gabriela Coiradas

Projeto gráfico e capa: Bruno Leandro Bezerra


sobre projeto original de Derick Tsai, Magnus Rex

Revisão: Regina Oliveira de Almeida

Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela HANOI EDITORA, que
se reserva a propriedade literária desta tradução.
www.hanoieditora.com.br
E-mail: contato@hanoieditora.com.br
Para Shawn Coyne,
que fez a minha carreira de muitas maneiras
CONTENTS

Title Page
Copyright
Dedication
Prefácio à Edição Brasileira
1. A LIÇÃO MAIS IMPORTANTE QUE EU JÁ APRENDI
2. MINHA FAMÍLIA
3. UM EMPREGO DE ESCRITOR
4. NINGUÉM QUER LER SUAS M*RDAS
5. ÀS VEZES, VOCÊ TEM QUE SER O ESCRAVO DE ALGUÉM
6. “ESTAREI AÍ ÀS NOVE E MEIA”
7. STEVE, SEU EGO ESTÁ FICANDO FORA DE CONTROLE
8. DUAS VERDADES FUNDAMENTAIS
LIVRO UM – Publicidade
9. É DIFÍCIL ESCREVER UM ANÚNCIO
10. NÃO PENSE EM ANÚNCIOS, PENSE EM CAMPANHAS
11. PENSANDO EM CONCEITOS
12. APRESENTE UM CONCEITO
13. FLASHFORWARD: CONCEITO EM FILMES
14. FLASHFORWARD: CONCEITO EM LITERATURA
15. TUDO BEM SER CRIATIVO
16. A DOENÇA DO CLIENTE
17. ROUBE SEM VERGONHA
18. TUDO QUE VOCÊ FAZ O DIA TODO É PENSAR
19. COMO TER UMA IDEIA RUIM
20. PROBLEMAS E SOLUÇÕES
21. DEFININDO O PROBLEMA
22. FLASHFORWARD: DEFININDO O PROBLEMA NA FICÇÃO
23. CALL TO ACTION
24. ARTE É ARTIFÍCIO
25. TUDO BEM NÃO SER 100% PURO
LIVRO DOIS – Ficção, Parte Um
26. SEM RAÍZES
27. IGNORANTE
28. MEUS DEMÔNIOS
29. LEITURA
30. VOZ
31. CARTAS
32. TERMINAR
33. “DESCANSE EM PAZ, FILHO DA PUTA”
34. SUPERAR OBSTÁCULOS
35. MEUS AMIGOS
36. AINDA...
LIVRO TRÊS – Hollywood
37. ESTRUTURA EM TRÊS ATOS
38. O CHEFE[30] DEMONSTRA A ESTRUTURA EM TRÊS ATOS
39. FLASHFORWARD PARA FICÇÃO DE FORMATO LONGO: A REGRA
DAVID LEAN
40. FILMES SÃO SOBRE GÊNERO
41. TODA OBRA ENQUADRA-SE EM UM GÊNERO, E TODO GÊNERO
TEM CONVENÇÕES
42. A JORNADA DO HERÓI
43. A JORNADA DO HERÓI EM TRÊS ATOS
44. A JORNADA DO HERÓI, VERSÃO APROFUNDADA
45. POR QUE HISTÓRIAS FUNCIONAM OU NÃO
46. TODO GÊNERO É UMA VERSÃO DA JORNADA DO HERÓI
47. TODA HISTÓRIA TEM QUE SER SOBRE ALGO
48. TODO PRIMEIRO ATO PRECISA TER UM INCIDENTE INCITANTE
49. COMO UMA HISTÓRIA COMEÇA?
50. O CLÍMAX ESTÁ EMBUTIDO NO INCIDENTE INCITANTE
51. O SEGUNDO ATO PERTENCE AO VILÃO
52. TODO PERSONAGEM PRECISA REPRESENTAR ALGO MAIOR QUE
SI MESMO
53. FILMES SÃO IMAGENS
54. COMECE PELO FIM
55. FLASHFORWARD PARA NARRATIVA DE NÃO FICÇÃO: COMECE
PELO FIM
56. FLASHFORWARD PARA NARRATIVA DE NÃO FICÇÃO: AS
REGRAS DE HOLLYWOOD AINDA SE APLICAM?
57. APOSTAS
58. RISCO
59. TEXTO E SUBTEXTO
60. DIGRESSÃO: NARRATIVA DE HOLLYWOOD
61. NARRATIVA DE HOLLYWOOD, PARTE DOIS
62. ESCREVA PARA UMA ESTRELA
63. ESCREVA PARA UMA ESTRELA, PARTE DOIS
64. GRANDE TEMA = GRANDE ESTRELA
65. UM COROLÁRIO PARA “ESCREVA PARA UMA ESTRELA”
66. ESCREVA PARA UMA ESTRELA, PARTE TRÊS
67. ESCREVA PARA UMA ESTRELA, PARTE QUATRO
68. FLASHFORWARD: ESCREVA PARA UMA ESTRELA EM FICÇÃO
69. O MOMENTO TUDO ESTÁ PERDIDO
70. O MOMENTO EPIFÂNICO
71. DÊ UM DISCURSO BRILHANTE AO SEU VILÃO
72. MANTENHA A HUMANIDADE DO VILÃO
73. COMO NÓS APRENDEMOS
74. SAYONARA[57] , TINSELTOWN
LIVRO QUATRO – Ficção: A Segunda Vez
75. COMO A CARREIRA TOMA FORMA
76. MEU SUCESSO REPENTINO
77. FICÇÃO É REALIDADE
78. FLASHFORWARD: NÃO FICÇÃO É FICÇÃO
79. DISPOSITIVO NARRATIVO
80. ROMANCES SÃO SOBRE LONGO PRAZO
81. ROMANCES SÃO SOBRE IMERSÃO
82. ROMANCES SÃO PERIGOSOS
83. DUELO COM O MONSTRO
84. PENSE EM BLOCOS DE TEMPO
85. PENSE EM VÁRIOS RASCUNHOS
86. ENTREGUE-SE AO MATERIAL
87. DOMINE O MATERIAL
88. O QUE O ROTEIRISTA ENSINOU À ROMANCISTA
89. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM UM CONCEITO
90. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM QUE SER SOBRE ALGO
91. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM QUE TER UM HERÓI
92. ESCREVA PARA UMA ESTRELA EM FICÇÃO
LIVRO CINCO – Não Ficção
93. NÃO FICÇÃO É FICÇÃO, PARTE DOIS
94. UMA NÃO HISTÓRIA É UMA HISTÓRIA
95. UMA NÃO HISTÓRIA É UMA HISTÓRIA, PARTE DOIS
96. COMO ESCREVER UMA BIOGRAFIA CHATA
97. APLICANDO OS PRINCÍPIOS DA NARRATIVA A NÃO FICÇÃO
98. FAÇA NOSSO HERÓI ENCARNAR O TEMA
99. CORTE TUDO QUE NÃO ESTÁ DENTRO DO TEMA
100. IDENTIFIQUE O CLÍMAX
101. SOLUCIONE O CLIMAX ESTRUTURALMENTE
LIVRO SEIS – Autoajuda
102. O JEITO ERRADO DE ESCREVER UM LIVRO DE AUTOAJUDA
103. A VOZ DA AUTORIDADE
104. A BAGUNÇA QUE SE TORNOU A GUERRA DA ARTE
105. COMO SHAWN ESTRUTUROU A GUERRA DA ARTE
106. FLASHBACK: CONCEITO EM A GUERRA DA ARTE
107. FLASHBACK: DISPOSITIVO NARRATIVO EM A GUERRA DA
ARTE
108. FLASHBACK: HERÓI E VILÃO EM A GUERRA DA ARTE
109. AUTOAJUDA É HISTÓRIA
LIVRO SETE - O Chamado do Artista
110. COMO A CARREIRA TOMA FORMA, PARTE DOIS
111. EXISTE UM DEMÔNIO
112. EXISTE UMA MUSA
113. JEAN-PAUL SARTRE ME DEIXOU MORTO DE MEDO
114. O MUNDO DO ARTISTA É MENTAL
115. A HABILIDADE DO ARTISTA
116. VOCÊ É UM ESCRITOR?
117. A BALEIA BRANCA
118. NINGUÉM QUER LER SUAS M*RDAS
LIVRO OITO - Pornografia
119. CENAS DE SEXO
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

P reciso começar por uma confissão. Serei breve, pois quero que você invista
o mínimo de tempo neste prefácio e chegue o mais rápido possível no
conteúdo valioso de Sua História Além do Ego, de Steven Pressfield.
Confesso que senti o peso da responsabilidade de escrever um prefácio para
aquele que é reconhecido por muitos como o autor dos autores e grande
referência para o meu trabalho. Mesmo eu já sendo um escritor Best Seller no
Brasil, ainda assim, o peso de encarar esta folha em branco foi tão grande ou
maior do que o de escrever meus próprios livros.
Eu estava, é claro, diante da Resistência.
Mas antes de falarmos um pouco deste conceito, presente nas obras de
desenvolvimento pessoal de Steven Pressfield, vamos direto a algo igualmente
valioso, ponto central deste livro: como comunicar sua obra ao público de
forma eficaz.

A NOVA FORMA DE COMUNICAÇÃO


Há pouco tempo, a nossa comunicação era praticamente de um para um. Ao
fazer uma ligação por telefone fixo ou usando os primeiros modelos de celular,
ao mandar uma carta, um telegrama, um e-mail, falávamos com uma pessoa de
cada vez.
A comunicação em pequena escala era reservada para professores e, numa
escala maior, para autores de livros, palestrantes, apresentadores de programas
de televisão, especialmente aqueles que se tornaram bem-sucedidos.
Os tempos mudaram, com as quase infinitas possibilidades que a tecnologia
nos trouxe, e a comunicação começou a se tornar prioritariamente escalável. As
conversas individuais deram espaço para grupos de WhatsApp da família e de
amigos, grupos do trabalho, comunidades fechadas nas redes sociais, fóruns de
discussões, reuniões em plataformas digitais, como Zoom, Teams e outras, que
às vezes reúnem dezenas ou centenas de pessoas em tempo real.
Hoje, contar a história dos momentos importantes da nossa vida tornou-se
algo escalável. Postamos parte das nossas vidas em redes sociais, que ficam
acessíveis a quantas pessoas quiserem ou puderem ler, investigar, bisbilhotar ou
buscar informações sobre nós.
Quando postamos numa rede social, estamos nos comunicando e, mais do que
isso, nos comunicando em escala e com poder de alcance quase infinito. São
incontáveis os casos de pessoas ditas comuns que postaram algo de forma
despretensiosa e experimentaram uma viralização de algum dos seus posts.
Talvez você esteja se perguntando: mas o que isso tem a ver comigo e com
esse livro? Eu digo: tudo!
Seus próximos clientes, o próximo especialista de RH que vai entrevistá-lo
para uma oportunidade incrível de emprego, líderes, pretendentes a iniciar um
relacionamento amoroso contigo, todos eles e muitos outros, em algum
momento, tendem a checar suas redes sociais e, adivinhe, sua comunicação
pode ser a diferença entre receber um sim ou um não para aquilo que você
deseja conseguir.
Então, seja você um influenciador digital, coach, médico, advogado,
palestrante, professor, escritor de livro, blogueiro ou simplesmente uma pessoa
que está em busca de crescimento profissional, na era da comunicação em
escala em que vivemos hoje, a habilidade de comunicar a sua obra tornou-se
indispensável para aqueles que vão chegar lá, independentemente de onde ou o
que seja o seu "lá”.
Quando Steven Pressfield alerta o leitor, de forma 100% direta, de que
“ninguém quer ler suas merdas”, ele dá uma lição valiosíssima não só a
escritores, mas a qualquer tipo de profissional: as pessoas estão ocupadas
demais para doar seu bem mais escasso, o tempo, a qualquer coisa que você
escreva. É preciso simplificar a mensagem, expressá-la de forma atraente (a
ponto de uma pessoa ter de “estar louca para NÃO ler”) e aplicar isso a todas as
formas de comunicação.
Para ajudar o leitor nessa missão, Steven usa toda a sua experiência de vida
como publicitário, roteirista de Hollywood e escritor de ficção e não ficção para
ensinar os fundamentos de um bom storytelling, o que funciona ou não ao
comunicar uma história, ou mesmo a obra da sua vida.
Mas todas essas lições vêm junto com um bônus. Algo extremamente valioso
que o autor compartilha conosco.

STEVEN E SUA IDEIA FIXA


Lembrei-me do final de semana em que a Paty, minha esposa, me disse que
tínhamos recebido um convite para escrever o prefácio da edição brasileira de
dois livros do Steven Pressfield. Antes mesmo de receber os originais em
inglês, meu coração já tinha dito sim. A admiração que tenho pelo Steven e por
seus conceitos, que começou lá atrás quando li o seu livro de maior alcance
mundial, A Guerra da Arte[1], foi determinante. Precisava apenas do sim da
minha agenda, e é claro que ajustamos os prazos e tudo deu certo.
Recebi os dois textos e comecei por este livro, Sua História Além do Ego. Um
livro de desenvolvimento pessoal que tem como cenário a jornada do autor
rumo à consagração artística, jornada essa que eu poderia até chamar de épica.
Eu não conseguia parar de ler o livro. À medida que lia, me perguntava: "para
onde o Steven quer me levar ao longo desse trajeto?".
E então, tão logo terminei a leitura, comecei a escrever este prefácio. Um
prefácio sobre uma obra incrível, de um autor que admiro, que aborda conceitos
com os quais eu trabalho, voltada para um público que desejo honrar. Por que,
então, escrever foi tão difícil? Era o que Steven chama de Resistência.
Esse conceito está presente em toda a obra de desenvolvimento pessoal de
Steven Pressfield, junto com outras mensagens universais. Essa é a mensagem
bônus com que o autor nos presenteia: a busca do ser humano para exercer seu
propósito de vida, e a luta constante contra a Resistência, uma força destrutiva
e invisível que tenta nos bloquear a todo custo quando buscamos progredir em
qualquer aspecto.
Steven foi extremamente generoso ao longo do livro, compartilhando sua
vulnerabilidade, mostrando todos os “não consegui” que teve na vida até
finalmente conseguir o que realmente desejava. E por isso preciso destacar,
nesse prefácio, a importância de dois elementos na vida: a clareza de saber o
que se quer e a obstinação de não desistir diante da Resistência, que sempre se
coloca entre a saída de onde estamos na vida atual até a chegada na vida
desejada, aquela que vale a pena ser vivida.
A combinação de clareza com obstinação forma uma ideia fixa. A ideia fixa
aumenta o foco e diminui as distrações da jornada. Sempre que olho para a
história da humanidade, percebo que todas as pessoas que fizeram a diferença e
deixaram um verdadeiro legado ao final de suas existências tinham ideias fixas.
Poderia aqui escrever páginas e páginas de exemplos de pessoas assim, mas
só para não deixar de mencionar ao menos uma: existiu um homem que dividiu
a história da humanidade em antes e depois dele. E não importa se você é ou
não cristão, pois aqui estou apenas trazendo um fato histórico, e não religioso.
Jesus tinha clareza plena do que deveria realizar, da mensagem que ele deveria
deixar e, inquestionavelmente, possuía uma obstinação invejável, ou seja, ele
tinha uma ideia fixa do que deveria fazer, e fez.
Assim foram tantos outros que vieram, como Martin Luther King, Nelson
Mandela, Thomas Edison... Não se trata, aqui, de fazer comparação entre esses
nomes, mas apenas de trazer referências e inspirações para todos nós.
Ao conhecer a trajetória de Steven Pressfield ao longo deste livro, fica fácil
de perceber que ele também teve enorme clareza sobre o que desejava realizar
na vida e extrema obstinação na sua jornada, especialmente diante das
incontáveis ações e circunstâncias que a Resistência impôs para que ele
desistisse no caminho.
Eu não sei exatamente o que você ainda deseja realizar na sua vida, mas
claramente este livro vai inspirá-lo a perceber que em todas as áreas existirão
pessoas que desistem nos primeiros “não consegui”, mas também existem
aqueles que seguem e vão continuar seguindo de forma obstinada até
conseguirem.
Ler Steven Pressfield é incrível, conhecer a jornada obstinada dele é
revelador, perceber a sua generosidade ao descrever tantos “não consegui”
antes de finalmente conseguir o que desejava foi inspirador e, além disso tudo,
aprender a evoluir na forma de escrever sua obra na era da comunicação em
escala tornam este livro um candidato a ser um dos melhores do gênero que
você lerá.
Aproveite a jornada e não pare antes de conseguir.

Geronimo Theml
Coach, empresário e escritor
1. A LIÇÃO MAIS IMPORTANTE QUE EU
JÁ APRENDI

E mdiferentes
uma longa carreira como escritor, você se percebe trabalhando em
disciplinas. Cada uma ensina suas próprias lições. Não
surpreende que várias delas transitem de uma área para outra. O que você
aprende escrevendo roteiros de filmes ajuda quando você passa a escrever
romances, e o que você adquire escrevendo ficção prova-se inestimável quando
você muda para não ficção.
Meu primeiro trabalho com escrita foi na área que eu mais odiava e menos
respeitava – publicidade. Contudo, o ramo de anúncios me ensinou muito, e
foram coisas que me serviram de maneira poderosa em cada encarnação
subsequente.
Depois, eu tentei romances, mas aprendi praticamente nada porque eu estava
sozinho e continuava cometendo os mesmos erros repetidamente. Só quando
fui para Hollywood e comecei a escrever para o cinema é que eu realmente
comecei a entender o que era uma história. Então, quando voltei aos romances
depois disso, eu tinha uma base sólida em estrutura narrativa – o que faz uma
história funcionar e o que não faz.
A mudança para não ficção ensinou outras lições, mas não as que eu esperava.
E escrever autoajuda me levou a uma outra área que, sem nenhuma surpresa,
era tanto sobre narrativa como sobre conteúdo.
Mas de tudo que eu aprendi, a mais importante lição veio no início, no meu
primeiro dia no meu primeiro emprego. A lição era: “ninguém quer ler suas
merdas.” (Veja o capítulo 4).
2. MINHA FAMÍLIA

N ãoMeuhavia artistas na minha família. Todos estavam no mundo dos negócios.


pai vestia um terno e ia trabalhar no escritório. Todos os meus tios e
os amigos dos meus pais também. Agora que penso sobre isso, não havia
artistas em toda a minha cidade natal/escola/universo.
O pai do meu amigo Brad Holliday era ilustrador de revistas. Se você fosse à
casa de Brad às duas da tarde, seu velho estaria descendo as escadas do
escritório no sótão tropeçando, descalço, com a barba por fazer, de pijama.
Ao crescer, essa era a minha ideia do que era um artista. Foi terrível pra
cacete.
3. UM EMPREGO DE ESCRITOR

C onsegui um emprego na Benton & Bowles na cidade de Nova Iorque. B&B


era uma grande agência de publicidade com escritórios no edifício
Tishman, número 666, na Quinta Avenida. O ano era 1967. Eu era um redator
júnior de vinte-e-três-anos ganhando 150 dólares por semana. Os clientes com
quem trabalhei foram Squibb[2], rações para cães Grave Train e o Chemical
New York, um banco. A Benton & Bowles tinha 10 ou 12 andares no edifício.
Eu me lembro da primeira manhã pegando o elevador para o escritório. O
painel iluminado acima das portas dizia:
DEPTO. DE GERENCIAMENTO DE CONTAS - 18º andar
DEPTO. DE GERENCIAMENTO DE CONTAS - 17º andar
DEPTO. DE CRIAÇÃO - 16º andar
DEPTO. DE CRIAÇÃO - 15º andar
DEPTO. DE MÍDIA - 14º andar
DEPTO. DE PESQUISA12º andar
O que fez meu coração bater mais forte foram aquelas palavras mágicas:
Departamento de Criação.
Aquilo era eu.
Eu era “criativo”.
Essa era a primeira vez na minha vida que aquela ideia me ocorria.
4. NINGUÉM QUER LER SUAS M*RDAS

A primeira coisa que você aprende em publicidade é que ninguém quer ler
suas merdas.
Seus anúncios, quero dizer.
As pessoas odeiam anúncios. Eu mesmo os odeio. Odeio comerciais de TV.
Por que eu deveria gastar meu valioso tempo assistindo àquele lixo mentiroso,
tentando me vender porcarias de que não preciso ou não quero?
Às vezes, jovens escritores adquirem, de seus anos na escola, a ideia de que o
mundo está esperando para ler o que eles escreveram. Eles têm essa ideia
porque seus professores tinham que ler seus ensaios, trabalhos de conclusão de
curso ou dissertações.
No mundo real, ninguém está esperando para ler o que você escreveu.
Sem terem visto, eles odeiam o que você escreveu. Por quê? Porque eles
podem ter que ler de verdade.
Ninguém quer ler coisa alguma.
Deixe-me repetir isso. Ninguém – nem mesmo seu cão ou sua mãe – tem o
menor interesse no seu comercial de Sucrilhos, pilhas Duracell ou pomada para
hemorroidas. Ninguém se importa com sua peça de teatro em ato único, sua
página no Facebook ou seu novo lugar favorito para comer frango com
gergelim.
Não é que as pessoas sejam más ou cruéis. Elas só estão ocupadas.
Ninguém quer ler suas merdas[3].
Qual é a resposta?
1) Simplifique a sua mensagem. Foque e a restrinja à sua forma mais simples,
clara e fácil de entender.
2) Faça a sua expressão divertida. Ou sexy, ou interessante, ou assustadora, ou
informativa. Torne-a tão atraente que uma pessoa teria de estar louca para NÃO
ler.
3) Aplique isso a todas as formas de escrita, arte ou comércio.
Quando você entende que ninguém quer ler suas merdas, sua mente torna-se
poderosamente concentrada. Você começa a entender que escrever/ler é, acima
de tudo, uma transação. O leitor doa seu tempo e atenção, que são mercadorias
valiosíssimas. Em troca, você – o autor – precisa dar a ele algo digno do
presente recebido.
Quando você entende que ninguém quer ler suas merdas, você desenvolve
empatia.
Você adquire a habilidade que é indispensável para todos os artistas e
empreendedores: a habilidade de transitar, em sua imaginação, entre o seu
ponto de vista como escritor/pintor/vendedor e o ponto de vista do seu
leitor/frequentador de galerias de arte/cliente. Você aprende a se perguntar, com
cada sentença e cada frase: isso é interessante? Isso é divertido, desafiador ou
inovador? Estou dando o suficiente para o leitor? Ele está entediado? Está indo
para onde eu quero levá-lo?
5. ÀS VEZES, VOCÊ TEM QUE SER O
ESCRAVO DE ALGUÉM

F uiexcelente
para Hollywood no início dos anos 1980, no auge do spec[4]. Era uma
época para ser roteirista, embora não necessariamente para mim.
Eu gastei meus primeiros cinco anos fazendo specs – nove deles, seis meses de
trabalho cada um.
Nenhum deles vendido.
Na época, eu tinha um agente chamado Mike Werner. Mike acreditou em
mim, mas estava ficando cansado de levar meus specs para a cidade e assistir à
morte deles.
Um dia ele disse: “Steve, você gostaria de trabalhar junto com outro escritor?
Um escritor já estabelecido”.
Mike tinha outro cliente, a quem chamarei de Stanley, que tinha sido a força
por trás de dois grandes sucessos.
“Eu sei que você quer fazer suas próprias coisas”, disse Mike. “Mas
trabalhando com o Stan, pelo menos você estará no jogo. Você ganhará
dinheiro e terá seu trabalho produzido”.
Eu disse sim.
Stan e eu trabalhamos juntos por cinco anos.
Sendo novato em uma equipe de trabalho, você precisa engolir vários sapos.
Mas, como Mike disse, agora você está no jogo.
Você tem um lugar à mesa.
6. “ESTAREI AÍ ÀS NOVE E MEIA”

Q uando Stan e eu começamos a trabalhar juntos, ele disse: “Vamos trabalhar


na sua casa. Eu vou até aí às nove e meia e começamos”.
No primeiro dia, Stan apareceu 12:30.
No dia seguinte: 13:30.
E assim foi durante um mês. Eu continuava dizendo “Stanley, estou sentado
aqui fazendo nada! Qual é o problema? Por que você não chega no horário?”
Em seis semanas de nossa parceria, Stan ainda chegava no meio da tarde. Nós
trabalharíamos por uma hora avulsa, então ficaríamos tão cansados e
desanimados que teríamos de parar.
Finalmente, em uma manhã, eu disse a mim mesmo: “Steve, apenas comece.
Não espere pelo Stan.”
Naquele dia, quando Stan chegou à uma e meia, eu tinha sete páginas para
mostrar a ele. Nós repassamos o trabalho. Stan tinha um punhado de coisas
inteligentes a dizer. Nós ajustamos as páginas, fizemos planos para o próximo
dia de trabalho, e então Stan foi para casa.
No dia seguinte, eu tinha mais seis páginas. Nós fizemos um ótimo trabalho
novamente.
Comecei a perceber que era isso que Stan queria o tempo todo. Ele não era
realmente um escritor-escritor, era um produtor-escritor. Ele precisava de um
parceiro que fosse um escritor-escritor.
Stan nos trouxe trabalho. Em reuniões, ele que sempre falava. Stan era um
pouco doido, mas estúdios e produtoras estavam loucos para trabalhar com ele.
Ele havia entregado dois grandes sucessos. Ele era a marca.
Escrevendo com Stan, pela primeira vez na vida, eu estava ganhando dinheiro
suficiente para realmente sobreviver.
7. STEVE, SEU EGO ESTÁ FICANDO FORA
DE CONTROLE

C om quatro anos de nossa parceria, comecei a perturbar por mais crédito.


Stan não me daria.
Nós tínhamos um amigo em comum chamado Gregory, que agenciava
escritores e diretores. Um dia, Gregory me disse: “Steve, deixe-me levá-lo para
tomar um café.”
Dirigimos até uma delicatessen chamada Brent’s, no vale.
“Steve”, começou Gregory, “você é um cara legal e eu gosto de você, mas seu
ego está saindo de controle. Quero conversar com você antes que você acabe
fazendo algo de que se arrependerá.”
A garçonete trouxe o reuben[5] do Gregory e o meu pastrami no pão de
centeio. Ao redor da delicatessen, mesas eram ocupadas por outras conversas
particulares de Hollywood, como a nossa. Gregory esperou até que a garçonete
servisse nossos pratos e saísse.
Gregory disse que sabia que eu estava frustrado. Ele podia ver que eu sentia
que estava fazendo todo o trabalho e não recebia crédito. Ele entendeu isso e
não me culpou por me sentir assim.
Gregory citou três ou quatro equipes de roteiristas com que eu era
familiarizado, dois times de duplas que estavam conseguindo trabalhos e tendo
filmes produzidos. Um deles eu chamarei de Mike & Jim. Na verdade, Mike
estava sentado em outra mesa ali na Brent’s agora mesmo, sozinho,
examinando algumas anotações.
“Steve, todo mundo na cidade sabe que Mike faz todo o trabalho naquela
equipe. Jim sequer mora aqui. Ele está em Madison, Wiscosin, para vir à cidade
duas vezes por ano!”
Mas, disse Gregory, Jim tem o nome e teve sucessos por conta própria. Jim é
a estrela. Mike escreve, mas Jim traz os trabalhos.
Gregory estava me dizendo que se eu continuasse a pedir mais crédito ao
Stanley, eu poderia matar a galinha dos ovos de ouro. Ele me aconselhou a abrir
os olhos e ter uma visão realista da minha posição.
“Steve, você poderia ter o roteiro de E o Vento Levou embaixo do braço,
escrito unicamente por você. Poderia levá-lo a cada um dos estúdios da cidade.
Você sabe o que aconteceria?”
Eu sabia.
“Mas se você levar o mesmo roteiro para os mesmos estúdios, escrito por
você e Stan, estaria descontando um cheque de sete dígitos”.
“Stan é a marca”, Gregory continuou. “Ele tem sucessos. O nome dele
consegue as reuniões, e a reputação lhe consegue o trabalho”.
“Stan teve dois parceiros antes de você, Steve, e teve sucessos com ambos.
Você sabe o que isso significa nesta cidade? Significa que Stan é visto como o
elemento-chave. Ele é a variável que produz sucessos de modo consistente.
Gregory percebia que estava me atingindo. Meu sanduíche de pastrami
restava intocado.
“Steve, eu entendo sua frustração, e você está certo de se sentir assim. Você
está ralando e está fazendo um trabalho excelente. Mas Stan teve sucessos com
parceiros antes de você e terá com os depois de você. A conclusão é esta:
“Se você quer mesmo crédito, você tem que escrever um roteiro por conta
própria e ter sucesso.”
8. DUAS VERDADES FUNDAMENTAIS

V ocê reconheceu os dois princípios nessas primeiras páginas?


1) Ninguém quer ler suas merdas.
2) Se você quer escrever e ser reconhecido, tem que fazer isso por conta
própria.
A partir deles, originam-se todos os outros.
LIVRO UM – PUBLICIDADE
9. É DIFÍCIL ESCREVER UM ANÚNCIO

E ubom.
nunca fui digno de escrever anúncios. É difícil. Você tem de ser muito

Mas o aprendizado é sensacional.


Assim como ser um advogado, ou jornalista, ou prostituta, ser publicitário te
ensina uma maneira muito específica de pensar. Essa maneira tem sido
indispensável para mim nas áreas em que entrei posteriormente – escrita de
roteiros de cinema, ficção, não ficção, ou mesmo autoajuda.
Os próximos dezesseis capítulos trazem lições que cada Mad Man[6] (e Mad
Woman) aprende.
10. NÃO PENSE EM ANÚNCIOS, PENSE
EM CAMPANHAS

H áTV.uma expressão em publicidade: pool-outs[7]. É como os spin-offs[8] na


Isso significa que de um único conceito de campanha – se ele for forte o
suficiente – podem surgir dezenas de anúncios individuais e comerciais
(também conhecidos como “execuções”). Cada um funciona como parte do
conceito maior e reforça o tema em geral.
O quão grande é o seu conceito?
Resposta: quantos pool-outs ele vai gerar?
A Nike começou com Michael Jordan e o tênis Air Jordan. O conceito era
“Compre Nike e você será como Mike”. Isso foi em 1984. O conceito ainda
impulsiona cada anúncio e comercial de TV que a Nike veicula (embora agora
sejam estrelados por Serena, LeBron e Rory Mcllroy[9]).
Mesmo conceito, execuções diferentes.
11. PENSANDO EM CONCEITOS

C omo todos odeiam ler anúncios ou assistir a comerciais na TV (“Ninguém


quer ler suas merdas"), o redator publicitário precisa encontrar uma maneira
engenhosa de tornar seu material irresistível.
Não basta prender a atenção do leitor. Você pode fazer isso com gatinhos
fofos ou uma camiseta molhada.
Você também tem que vender o produto. Deve haver uma mensagem, e a
mensagem deve grudar. Deve ter significado em termos de produto. Deve fazer
o leitor/espectador pensar “Hmm, isso faz sentido”, ou “Hmm, eu gosto disso”.
Se você acha que isso é fácil, tente algum dia.
12. APRESENTE UM CONCEITO

O que é um conceito?
Um conceito, em termos de publicidade, não é só um slogan estúpido
como “Traga Best Foods e traga o melhor”. Nem é uma afirmação genérica e
sem base como “deixa dentaduras mais brancas”.
Um conceito faz uma releitura do convencional e dá a ela uma interpretação.
Um conceito estabelece um marco de referência maior que o produto em si.
Um conceito coloca o produto em um contexto que faz o observador
contemplar o produto com um novo olhar – e percebê-lo com uma luz positiva
e irresistível.
Um conceito configura (ou, mais frequentemente, reconfigura) toda a questão.
Um dos conceitos referência na história da publicidade é o da locadora de
carros Avis: “Nós somos a #2, então nos esforçamos mais”.
“Nós somos a #2, então nos esforçamos mais” transforma o negativo (somos a
segunda melhor, portanto, inferior) em positivo (você terá um serviço melhor
da gente porque vamos dar duro para alcançar a #1 Hertz) ao nos fazer olhar
para a questão (Qual é a melhor empresa para se alugar um carro?) de uma
nova perspectiva.
A campanha heróis do esporte da Nike é um conceito.
“Um diamante é eterno”, da De Beers, é um conceito.
“Se você não está clareando, você está amarelando” é um conceito. Um bom
conceito faz o público ver o seu produto de um ponto de vista bem específico e
agradável e, por essa lógica (ou falsa lógica), torna os outros pontos de vista e
produtos concorrentes questionáveis e impotentes.
Diamantes já foram vistos como mercadorias. Por que eu deveria comprar um
anel de noivado de diamantes? O que há de errado com rubis e safiras? Mas
quando os redatores, atendendo seu cliente De Beers – a empresa de mineração
sul-africana que controlava 90% do estoque de diamantes do mundo –, vieram
com o conceito associando a indestrutibilidade do diamante (o material mais
duro do universo) a um símbolo de amor eterno – Uau!
Depois de “Um diamante é eterno”, se você comprasse para sua noiva
qualquer outro tipo de anel de noivado, você estaria dizendo que não a ama.
Conceitos funcionam em política também
“Death panels[10]” é um conceito
“Job creators[11]” é um conceito.
“Pró-vida” é um conceito. “Pró-escolha” também.
Um conceito pode ser uma completa tolice. Pode ser mau
“A raça superior”.
“Destino manifesto”[12]
“Operação Liberdade do Iraque”[13].
Quando você, como escritor, leva e aplica esse modo de pensar a outras áreas,
como escrever romances, roteiros ou não ficção, a primeira pergunta que você
se faz no início de qualquer projeto é “Qual é o conceito?”.
Todo trabalho artístico, da Capela Sistina à ponte de Golden Gate e à Bíblia
do Rei Jaime[14], é baseado em um conceito.
Uma dieta deveria ter um conceito.
Uma invasão a um país estrangeiro deveria ter um conceito. Uma salada
deveria ter um conceito.
13. FLASHFORWARD: CONCEITO EM
FILMES

A década de 1980 em Tinseltown[15] foi a era dos filmes de alto conceito. O


exemplo referência foi Duro de Matar, estrelando Bruce Willis, adaptado
de um romance de Roderick Thorp, roteiro por Jeb Stuart e Steven de Souza.
Como em um anúncio publicitário, Duro de Matar gerou não só uma onda de
sequências e prequelas, mas uma série de pool-outs.
Passageiro 57 era Duro de Matar em um avião.
Tempestade era Duro de Matar em um furacão.
Duro de Matar na prisão? Duro de Matar na Lua? Sem problemas.
O conceito é como uma chave. Insira, gire, funciona.
O que é exatamente um filme de alto conceito?
Um filme de alto conceito é um filme 1) cuja ideia da narrativa pode ser
transmitida em dez segundos ou menos (em outras palavras, a frase feita
perfeita para um anúncio ou uma recomendação boca-a-boca), e 2) assim que
você ouve a ideia, você pode imaginar todas as cenas legais que certamente
estarão no filme (e que você quer ver).
Uma gangue de ladrões toma o controle de um arranha-céu comercial à noite,
planejando roubar a fortuna em ações no porão. O que eles não sabem é que um
detetive da polícia durão está no prédio.
Assim que você ouve essa ideia, você vê o filme todo. Bruce Willis luta com
os bandidos em um poço de elevador. Briga no terraço. Troca piadinhas
sarcásticas com eles. No final, ele mata/captura todos.
Eu estava em Hollywood durante essa época. Assim que ouvi a ideia do filme
de alto conceito, eu soube exatamente o que era. Era as campanhas da
Avis/Volkswagen/American Express feitas como filmes para o cinema.
14. FLASHFORWARD: CONCEITO EM
LITERATURA

P arece que eu estou tirando sarro da ideia de conceito. Não estou. Game of
Thrones é um conceito. Orange is The New Black é um conceito. The
Walking Dead é um conceito.
A Nona Sinfonia de Beethoven é um conceito.
Guernica é um conceito.
Hamlet é um conceito.
Eu acredito piamente em conceitos.
No começo de qualquer projeto, eu me pergunto: “Qual é o conceito?”.
Eu não vou resolver nada até que eu conheça o conceito.
Conceito funciona para a mais alta literatura que existe.
Considere a Ilíada, de Homero. O assunto da Ilíada é a Guerra de Troia, que
durou dez anos. Homero poderia ter escrito a história da porra toda se ele
quisesse.
Mas mesmo em 900 a.C., grandes narradores entenderam o conceito.
Então, em vez de narrar uma década de coisas repetitivas e tediosas, o poeta
reduziu o tempo de palco de sua história para poucos dias, durante a guerra.
Ele apresentou um conceito:
A ira de Aquiles.
Esse é o tema da Ilíada. Esse é o gancho. É a ideia central.
O notável campeão da Grécia, Aquiles – um guerreiro invencível contra quem
nenhum herói inimigo pode resistir (e de quem a vitória dos gregos dependia) –
ofende-se com um insulto do rei da Grécia, Agamenon.
Em fúria e com o orgulho ferido, Aquiles para a luta. Ele abaixa sua lança e
seu escudo e senta-se num canto.
“Deixe meus compatriotas descobrirem, com o sofrimento de lutarem sem
mim como seu campeão, que eu sou o melhor deles.”
Isso é alto conceito. Não ria.
Desta apresentação em dez segundos, nós podemos projetar toda a epopeia.
Nós vemos as lutas secundárias, protagonizadas por Heitor, Odisseu, Ájax,
Páris, Diômedes. Nós vemos os gregos começarem a perder. Vemos o campeão
de Troia, Heitor, crescendo em tamanho e confiança. Vemos a batalha virando
tanto a favor dos troianos que eles haviam encurralado os gregos de costas para
o mar e atacavam os navios ancorados com tochas e lenha ardente.
E nós vemos Aquiles, no momento de extremo perigo, investindo para salvá-
los, derrotando os campeões troianos e salvando o dia.
E porque nós somos leitores inteligentes e experientes, nós também sabemos
que, desde que a ira de Aquiles representa o pecado do orgulho, ele (e seus
companheiros gregos) terão pagado em oceanos de sangue antes desta hora da
vitória final – e que a vitória em si, para os gregos e para Aquiles, será no
mínimo metade tragédia.
Parece ótimo, não?
15. TUDO BEM SER CRIATIVO

N osAtéanos 1950 e início dos 1960, não havia coisas como “pessoa criativa”.
em publicidade não havia “criativos”. Redatores vestiam terno e
gravata, como Jon Hamm em Mad Men.
Tudo isso mudou em meados dos anos 1960, com a chegada de Bill
Bernbach, George Lois, Helmut Krone[16] e a nova geração de redatores e
diretores de arte.
Os redatores eram predominantemente judeus, e os diretores de arte, italianos.
Antes do seu advento, o ramo da publicidade tinha sido terreno exclusivo de
caras com sobrenomes como Ogilvy e Bates.[17]
Do dia para a noite, ser criativo era descolado.
Para mim, isso foi revolucionário. Foi uma mudança de vida. Lembro-me de
entrar em reuniões e olhar para todos aqueles outros esquisitos, geeks,
aberrações e bárbaros.
Eu disse a mim mesmo “Tudo bem ser o tipo de pessoa que eu sou.”.
Tudo bem ser ansioso.
Tudo bem não conseguir dormir.
Tudo bem ter problemas de autoestima.
Tudo bem ser um introvertido, procurar os cantos quietos em uma festa,
importar-se com qualidade, ter seu humor afetado pelos arredores.
Os papéis que escolhi na vida e na carreira, eu me dei conta, não
eram limitados a homem de negócios, atleta e patriota imbecil.
De repente, eu entendi porque eu estava tão mal-humorado, neurótico, ao
mesmo tempo paranoico e megalomaníaco, desconfiado, inquieto, movido pela
ambição, mas paralisado pela culpa da minha ambição, excitado, obsessivo,
compulsivo, obsessivo-compulsivo, para não dizer tímido, retraído e com
caspa.
Eu era criativo.
Todas as pessoas criativas eram assim!
16. A DOENÇA DO CLIENTE

S ecliente.
você já teve um negócio, você atendeu clientes. Talvez tenha sido um

Todos os clientes têm uma coisa em comum:


Eles são apaixonados pelos seus produtos/empresas/serviços. No ramo da
publicidade, isso é chamado de Doença do Cliente.
Tenho visto milhares de clientes serem presenteados com campanhas
brilhantes para seus produtos ou serviços e arruiná-las com suas merdas bregas.
Vendo isso, jurei que se um dia eu estivesse na posição de cliente – mesmo
que fosse algo mundano, como contratar uma designer para remodelar minha
cozinha –, eu iria calar a boca e deixar a profissional fazer o trabalho dela.
Cumpri a promessa e isso nunca falhou.
O que um publicitário entende e o cliente não é que ninguém está nem aí com
o cliente ou seu produto.
Você, o cliente, pode estar apaixonado por suas lingeries de sustentação. E
suas lingeries de sustentação podem ser, de fato, as melhores do mundo.
Ninguém liga.
É a realidade do campo de batalha em que você está travando uma guerra.
O que fazer se você for um cliente?
Caia fora. Cale a boca.
Chame os profissionais de Dover[18] e deixe-os fazer sua magia.
Os profissionais entendem que ninguém quer ler as merdas deles. Eles
partirão dessa premissa e empregarão toda sua arte e habilidades para
apresentar um raio brilhante que atravessará essa indiferença, essa desordem,
essa merda toda.
Eu estive em centenas de reuniões em que publicitários bajularam,
lisonjearam e deixaram o cliente de bom humor, como eles devem, é claro.
“Nós amamos seu novo detergente/SUV/creme dental!”
Então, assim que o cliente dirigiu-se aos elevadores e as portas
fecharam atrás dele, redatores e diretores de arte voltaram-se para o trabalho.
“Ok, como nós vendemos esta merda?”
17. ROUBE SEM VERGONHA

N oderamo da publicidade, você trabalha em dupla – um redator e um diretor


arte. Um é responsável pelo texto, o outro, pelas imagens.
O primeiro diretor de arte com quem trabalhei era um cavalheiro da idade do
meu pai, um veterano da Segunda Guerra chamado Zoltan Medvecky. Med foi
uma estrela, profissional premiado. Eu e ele tínhamos recebido uma demanda
para fazer um anúncio para a divisão internacional do Chemical Bank.
Eu estava empolgado porque era a primeira vez que eu trabalhava
com alguém que realmente sabia o que estava fazendo (ao contrário dos outros
diretores de arte júnior com quem eu tinha trabalhado até então). Eu estava
preparado para observar e aprender.
Med disse que deveríamos trabalhar em seu escritório por ele ser cinco vezes
maior que o meu cubículo e ter uma porta. Nós elaboramos um título
rapidamente (na verdade, Med elaborou) e um conceito para o visual.
Então, Med abriu uma enorme gaveta de arquivos e começou a
examinar revistas e livros de fotografia. Perguntei o que ele estava fazendo.
“Roubando”
Eu estava chocado. “Roubando? Você não pode fazer isso!”
Med folheou dezenas de livros e revistas até chegar a um exemplar da LIFE
do ano passado. “Ah”, ele disse. Ele havia parado em um editorial de página
inteira, com um terço de espaço branco na parte de baixo, uma foto preto e
branco granulada no topo, e uma legenda de uma linha abaixo da foto.
Ele roubou aquele layout.
“Mas, Med, isso não é trapacear?”
“Este layout na LIFE”, Med disse, “é fotojornalismo puro. Vê?
Uma foto de guerra, com as figuras iluminadas e a fonte de luz – o sol de fim
de tarde – vinda de um lado, colocando o outro lado em uma sombra dramática.
Percebe como isso parece corajoso? Um tiro de verdade.”
Med me mostrou como ele tinha ajustado o layout e o feito funcionar como
um anúncio. Tenho que admitir, parecia ótimo.
“Nós estamos pegando o olhar do fotógrafo da LIFE e o reconcebemos,
emprestando os aspectos que possuem gravidade – e que ninguém tinha usado
em um anúncio – para reforçar a impressão que queremos transmitir, o que
implica a coragem do mundo real e a competência em um cenário exterior.”
Med esticou seu braço e o colocou no meu ombro. “Garoto, não é roubo se
você dá um significado.”
18. TUDO QUE VOCÊ FAZ O DIA TODO É
PENSAR

P ublicidade é um grande treino para a indústria do cinema, para escrever


romances e não ficção porque tudo que você faz o dia todo é pensar.
É o seu trabalho.
Sente lá e apresente ideias.
Às vezes, pessoas que trabalharam em outras profissões tentarão fazer a
transição para a escrita. Elas têm dificuldade no início porque nunca passaram
o dia todo vivendo somente dentro de suas cabeças.
19. COMO TER UMA IDEIA RUIM

O difícil na publicidade é que o trabalho não é só produzir boas ideias, mas


produzi-las sob demanda.
Mad Men estava certa.
O final de semana trabalhando. As noites viradas. Mesmo no fluxo normal
cotidiano das tarefas, você está trabalhando sob demanda.
É fácil ter uma ideia péssima sob demanda. Não é tão difícil ter uma ideia
medíocre. Mas uma boa ideia?
Trabalhei com publicidade, temporariamente, entre sete e dez anos.
Eu não sei se alguma vez tive uma ideia realmente boa.
Aprendi muito sobre ter ideias ruins, entretanto. Quando você se esforça
muito, você tem ideias ruins.
Quando trabalha mecanicamente, você tem ideias ruins.
Quando segue fórmulas, você tem ideias ruins.
Quando está desesperado ou em pânico, você tem ideias ruins.
Aprendi que bons redatores e bons diretores de arte frequentemente têm boas
ideias. E redatores e diretores de arte ruins têm ideias ruins frequentemente.
Eu sabia que tinha que descobrir como me tornar um dos bons redatores.
20. PROBLEMAS E SOLUÇÕES

Q uando uma pessoa da publicidade aparece com uma ideia extraordinária,


ela é parabenizada com esta frase: “Ótima solução.”
Em publicidade, você pensa as tarefas como “problemas”.
Seu trabalho é apresentar uma solução.
Um problema típico:
O smartphone da Samsung, nosso cliente, é tecnicamente superior ao Iphone
12 da Apple, mas o moderninho/nerd/ótimo design/caso de amor dos clientes
do Steve Jobs está nos ferrando. Como podemos virar a mesa e fazer da
Samsung o hype?
Ou:
Nosso cliente, a American Poultry Association[19], vende seis zilhões de perus
na Ação de Graças e nenhum o resto do ano. Como nós transformamos peru na
carne “favorita” do ano inteiro?
Problemas buscando soluções. Essa é uma maneira poderosa de pensar o
processo criativo.
Implícita neste ponto de vista está a ideia de que a resposta já existe junto
com a pergunta, de que a solução está embutida no problema.
Se o seu trabalho é encontrar a solução, o primeiro passo é definir o
problema.
21. DEFININDO O PROBLEMA

N onegócios.
ramo da publicidade, 20% do nosso tempo é gasto buscando novos
Isso significa a agência saindo e buscando novas contas.
Algumas contas parecem estar em jogo o tempo todo. Burger King. 7Up.
Chrysler.
Perguntar por que esses negócios sempre estão em apuros (e sempre
procurando por novos anúncios e campanhas para salvá-los) é perguntar “qual é
o problema?”
Resposta: essas companhias são vistas como perdedoras.
Elas são a segunda melhor, damas de honra eternas e perdedoras.
Burger King está atrás do McDonald’s, 7Up segue a Coca, Chrysler fica para
trás da Ford e da GM.
Quando, em 1967, pessoas muito inteligentes na conta da 7Up na J. Walter
Thompson vieram com a campanha chamada “A Não Coca-Cola”, eles
resolveram o problema.
O problema não era o sabor. O problema não era o preço.
O problema não era conter açúcar.
O problema era a percepção do público da 7Up como uma perdedora.
Chamar a 7Up de “A Não Coca-Cola” posicionou a bebida não como segunda
melhor que a Coca ou Pepsi, mas como uma alternativa equivalente. Tão boa
quanto, apenas diferente.
Defina o problema e você está na metade do caminho para a solução.
22. FLASHFORWARD: DEFININDO O
PROBLEMA NA FICÇÃO

Q uando seu romance ou roteiro está desintegrando diante de seus olhos, não
é uma má ideia voltar a pensar como um cara da propaganda.
Não pergunte “Qual é a solução?”, pergunte “Qual é o problema?”
O problema na ficção, do conturbado ponto de vista do escritor, é quase
sempre “Sobre o que é essa maldita coisa?”
Em outras palavras, qual é o tema?
Qual é o tema do nosso livro, da nossa peça ou do nosso roteiro de filme?
Qual é o tema do nosso novo restaurante, nossa startup, nosso videogame?
Quando não sabemos o tema, não sabemos o problema.
Você se lembra do piloto de Breaking Bad?
Naquela primeira hora de exibição em 20 de janeiro de 2008, Walter White é
atingido por muitas coisas. É diagnosticado com um câncer inoperável. Para
garantir o sustento de sua família após a sua morte, ele decide começar a
cozinhar metanfetamina. Ele junta-se a um ex-aluno, vende seu primeiro lote e,
ao longo do caminho, mata dois criminosos seus concorrentes. Uau! Como
Vince Gilligan, criador da série, fez todas essas coisas terem coerência? E como
ele manteve tudo amarrado por seis temporadas soberbas?
A resposta está em uma cena do piloto, que acontece em uma aula de química
de Walter White no ensino médio.
Ele pergunta às crianças “O que é Química?”. Vários alunos dão respostas
chatas. Então, nosso herói, interpretado brilhantemente por Bryan Cranston,
responde à questão.
WALTER WHITE:
“Mudança. Química é o estudo da mudança. Elementos combinam-se e
tornam-se compostos. Isso é tudo na vida, certo? Solução, dissolução.
Crescimento. Desintegração. Transformação. É realmente fascinante.”
Esse discurso não está lá por acidente. É a declaração do tema de Vince
Gillian.
Problema: Sobre o que é esta série?
Solução: Transformação.
A partir desse ponto da série, do piloto até a temporada final, cada episódio e
cada cena será sobre transformação. Quando os roteiristas se perderem e
sentirem que estão perdendo o controle do seu material, eles retornarão a essa
base.
“Faça este momento ser sobre transformação.”
E ninguém, é claro, se transformará mais do que nosso gentil protagonista
Walter White.
23. CALL TO ACTION

T odo anúncio ou comercial (ou mala direta, ou panfleto político, ou postagem


gratuita nos classificados) termina com uma call to action.[20]
Compre!
Inscreva-se!
Faça seu pedido agora!
Eu odeio isso, você não? Mas esse único e extremamente óbvio princípio
(provavelmente posto em prática na Babilônia e milhares de anos antes disso)
pode ser o mais importante de todos.
Se você não pede a venda, como vai consegui-la?
O call to action também é, em termos de narrativa[21], o desfecho.[22]
É o Terceiro Ato.
É o clímax.
Falaremos mais sobre isso quando chegarmos aos filmes, ficção e não ficção.
24. ARTE É ARTIFÍCIO

E u me lembro da primeira vez que vi um script para um comercial de TV.


Havia os personagens, o diálogo e a descrição do que aconteceria.
Eu fiquei pasmo.
Quer dizer que os atores não inventam suas falas na hora? Como pode ser? É
tudo planejado? Onde eles ficam? O que eles fazem? O que eles dizem?
Fiquei tremendamente desapontado e, ao mesmo tempo, me senti
terrivelmente enganado. Como eu não soube disso? É claro que existe um
script. É claro que é tudo planejado detalhadamente.
Nada é espontâneo. Tudo é produto de análise de concepção, de pensamento.
Steve, você é um idiota por ter se surpreendido com isso.
Essa foi uma grande lição que depois se aplicou a outras áreas criativas.
Arte é artifício.
25. TUDO BEM NÃO SER 100% PURO

E uguardando
trabalhei com publicidade em três momentos diferentes, sempre
dinheiro para escrever um romance. Sem essa grana e liberdade,
eu nunca seria capaz de ir atrás do trabalho que eu amava.
E mesmo que trabalhar nas trincheiras da Mad Ave[23] possa ter sido estar me
vendendo, trabalhando para o chefe, prostituindo talento de alguém etc., se eu
tivesse tentado ser genuíno e trabalhar apenas com escrita de verdade, meu
cadáver teria sido encontrado em um abrigo de papelão embaixo de um
viaduto.
Ridley Scott trabalhou com publicidade, assim como Satyajit Ray, Scott
Fitzgerald e Salman Rushdie, e centenas de outros que produziram coisas
imortais no mundo artístico real.
Tudo bem trabalhar para o Senhor Charley[24] de vez em quando.
Nem todos podem ser Bob Dylan ou Neil Young.
LIVRO DOIS – FICÇÃO, PARTE UM
26. SEM RAÍZES

Q uando tinha 24 anos, eu saí da publicidade pela primeira vez e parti para
escrever um romance. Eu não estava mais preparado para embarcar nisso
do que estaria um típico jovem de 24 anos para ir para a guerra ou pular do
topo do Empire State.
Quatro anos depois, eu estava quebrado, divorciado etc., tendo, nesse ínterim,
cruzado os Estados Unidos treze vezes na minha van Chevy 65, me sustentando
de várias maneiras – como motorista de táxi, bartender, professor substituto,
atendente em um hospital de saúde mental, motorista de caminhão empregado
de exploração de petróleo, imigrante coletor de frutas[25]. A gota d’água veio em
uma rodovia devastada pelo vendaval, em novembro de 1972, em Amarillo,
Texas, quando um amigo que eu acabara de fazer – um fazendeiro que viajava
com sua nova esposa e todos os seus bens materiais em dois sacos de papel –
me convidou para trabalhar com gado no sítio de seu irmão, no leste de
Lubbok. Por alguns segundos, eu pensei nisso.
Um caubói.
Isso completaria minha odisseia americana?
Deixei pra lá e vim para casa em Nova Iorque, onde encontrei novamente
trabalho como redator publicitário.
27. IGNORANTE

E utambém
tinha vinte e nove anos quando saí da publicidade pela segunda vez e,
pela segunda vez, parti para escrever um romance. Aqui estão
coisas que eu não conhecia e de que nunca tinha ouvido falar:
Gênero.
Dispositivo narrativo.
Tema.
Incidente incitante.
Estrutura de três atos (ou atos múltiplos).
Conflito, clímax, resolução.
E todo o resto.
Eu tinha 2.700 dólares em economias. Pus minhas coisas na minha van Chevy
e me mudei de Nova Iorque para Carmel Valley, Califórnia. Aluguei uma
pequena casa atrás de uma casa ligeiramente maior por 105 dólares o mês. Eu
tinha meu gato, Mo, uma mesa e minha máquina de escrever Smith Corona.
Eu mergulhei.
28. MEUS DEMÔNIOS

E udentro
não tinha ideia de Resistência naqueles dias. Eu não sabia que existia
da minha cabeça uma força invisível, insidiosa, intratável, infatigável
cujo único objetivo era me impedir de fazer meu trabalho, ou seja, terminar o
livro que eu vinha tentando escrever ao longo de sete anos – e finalmente me
destruir, física, psicológica e espiritualmente.
Tudo que eu sabia é que eu não conseguia terminar nada.
Meu padrão era desistir.
Falhar.
Cancelar.
Eu pegaria a bola por todo o caminho até a linha final. Então, eu pararia.
Esse era o meu padrão.
Isso era que eu sempre fiz.
Esse era o demônio com quem eu lutava naquela edícula atrás da casa maior.
Ou eu mataria aquele dragão, ou ele me mataria.
29. LEITURA

H áalguns
uma biblioteca local[26] em Carmel Valley. Eu comecei a emprestar
livros. Peguei cada livro que eu deveria ter lido na escola, mas não o
fiz porque estava muito ocupado jogando sinuca e poker.
Eu li Guerra e Paz. Li Crime e Castigo. Li Pais e Filhos. Li O Vermelho e O
Negro, de Stendhal; Fome, de Knut Hamsun. Eu li Proust, Balzac e Andre
Malraux. Li Madame Bovary; li Um Dia na Vida, de Ivan Denisovich; e Nada
de Novo no Front. Li Joyce, Yeats, Dylan Thomas, Hemingway, Fitzgerald,
Steinbeck, Henry Miller, Jack Kerouac, William Burroughs. A cada dia, eu
terminava de escrever, pegava outro clássico e mergulhava nele.
O que eu aprendi?
Porra nenhuma.
Eu sequer sabia que havia algo a aprender.
Ainda...
Ainda.
30. VOZ

E u estava tentando encontrar uma voz. A minha voz.


Eu era realmente um “escritor”? Não.
O que eu estava fazendo era “escrita”? Não.
Eu estava tentando salvar minha alma.
Eu estava no saco de papel da minha própria insanidade e estava tentando
escrever a minha saída.
Por que eu estava tentando encontrar uma voz? Não tenho ideia. Se você
tivesse me perguntado, eu não teria sequer articulado a ideia de que existe algo
como uma “voz”.
Eu estava extremamente ciente, no entanto, não apenas de que minha escrita
não era autêntica, mas de que eu mesmo não era autêntico.
Cada palavra que escrevi gritou esforço e fraude. Eu estava constrangido.
Estava mentindo. Eu não sabia sobre o que estava falando.
Mesmo quando estava escrevendo a mais absoluta “verdade”, eventos reais da
minha vida real, os parágrafos saíam vazios e falsos.
Eu li Turgenev, Hemingway e Henry Miller. Cada frase soou como ouro. Até
mesmo as vírgulas (ou a falta delas) era perfeita. Eram eles falando. Por que eu
não podia fazer aquilo?
Eu li Shakespeare, Marlowe, John Donne. Mesmo quando esses escritores não
estavam falando como eles mesmos, quando escreviam no personagem, as
vozes vinham de uma personalidade que era tão profundamente inserida e
realizada que soava até mais verdadeira que a própria fala dos autores. A
experiência de leitura foi hipnótica. Foi uma cura. Até quando eu não entendia
o que aqueles caras estavam dizendo, eu sentia meus ossos regenerando apenas
com a cadência e o ritmo do trabalho.
Por que eu não podia fazer aquilo?
Por que minhas coisas eram tão fajutas, tão falsas?
Eu costumava sentar à máquina de escrever com Trópico de Capricórnio ou
O Sol Também se Levanta abertos ao meu lado. Eu literalmente copiava os
livros, palavra por palavra, parágrafo por parágrafo.
Estava tentando experimentar uma voz real, mesmo que não fosse a minha.
31. CARTAS

O que ajudou, curiosamente, foram minhas próprias cartas. Isso foi em uma
época em que pessoas escreviam cartas. Escrevi algumas extensas aos meus
amigos. Quando as revisava, corrigindo erros de digitação, às vezes eu parava e
dizia “Uau, isso soa como eu”.
Como nós nos formamos?
Por quais meios descobrimos quem somos?
A resposta para nós é a mesma que para os personagens na ficção.
Descobrimos quem somos pelo que dizemos e fazemos. Revelamos nossa
natureza por meio das ações.
Comecei a ler minhas cartas novamente, devagar e com cuidado.
Em qual estado de espírito entrei quando escrevi a um amigo? Eu estava
“pensando”? Estava “tentando”? Estava “escrevendo”?
Talvez haja uma pista aqui.
Talvez seja assim que você escreve.
32. TERMINAR

A lém da “voz”, eu estava focado em uma coisa: terminar


Devido a ter cagado 99.9% do caminho na minha primeira tentativa de
escrever um romance (e por causa do preço da vergonha pessoal e da dor que
meu fracasso causou às pessoas que eu amava), eu estava obcecado com a
conclusão do Livro #2 custe o que custar, a qualquer preço, ou faço isso ou me
enforco.
Tive que vencer meus demônios. Tive que enfrentar meus dragões.
Um amador, eu sabia, desistia na linha de chegada.
Um profissional... Quem eu estava enganando? Eu não tinha ideia do que um
profissional fazia.
33. “DESCANSE EM PAZ, FILHO DA
PUTA”

E u escrevi sobre este momento em A Guerra da Arte.


Trabalhei por vinte e seis meses direto, tirando apenas dois de folga para
um período de trabalho temporário no estado de Washington, e, finalmente, um
dia cheguei à última página e digitei:
FIM
Nunca encontrei um comprador para o livro. Nem para o próximo. Passaram-
se dez anos antes que eu fosse pago por algo que tivesse escrito e mais dez
antes que um romance, The Legend of Bagger Vance, fosse realmente
publicado. Mas aquele momento em que eu apertei as teclas para digitar FIM
foi marcante. Lembro-me de pegar a última página e adicioná-la à pilha que era
o manuscrito terminado.
Ninguém sabia o que eu tinha feito. Ninguém se importou. Mas eu sabia.
Senti como se um dragão contra quem lutara por toda a minha vida tivesse
caído morto aos meus pés e dado seu último suspiro sulfúrico.
Descanse em paz, filho da puta.
Na manhã seguinte, fui à casa do meu amigo escritor Paul para um café e
disse a ele que tinha concluído.
“Bom para você”, ele disse sem levantar os olhos. “Comece o próximo hoje”.
34. SUPERAR OBSTÁCULOS

S e terminar foi a Obsessão #1, superar obstáculos foi a #2.


O que eu quero dizer com isso? Posso não ter começado a articular isso na
hora, mas senti em cada célula, ao acordar e adormecer.
Eu sabia que não estava realmente escrevendo. Não como escritores reais
escreviam. Eu estava me sentando na frente da máquina de escrever e batendo
páginas, até mesmo livros completos, mas o que eu estava fazendo não tinha
nada a ver com escrever de verdade.
O que eu estava fazendo?
Eu estava usando o ato de escrever (eu deveria dizer a farsa ou simulação da
escrita) como pretexto para fincar meu próprio ego no planeta, assim poderia
acreditar que existi realmente. Você já tirou uma selfie? Era isso. Isso é o que
eu estava fazendo. Era como o que as pessoas fazem hoje no Facebook e no
Instagram.
Eu era o herói dos livros que escrevia. Era o protagonista. Era o ponto de
vista. Tudo acontecia comigo.
Eu sabia que isso era uma merda. Sabia que isso era doentio, triste, patético.
Sabia que precisava superar isso. Eu tinha que superar esse obstáculo ou me
matar.
Qual era o obstáculo?
Uma maneira de defini-lo seria dizer que era o divisor de águas entre o
amador e o profissional. Mas isso não seria profundo o bastante.
Um verdadeiro escritor (ou artista, ou empreendedor) tem algo a oferecer.
Viveu, sofreu e pensou profundamente o suficiente sobre sua experiência para
ser capaz de transformá-la em algo de valor para os outros, mesmo que apenas
como entretenimento.
Um escritor falso (ou artista, ou empreendedor) está apenas tentando chamar
a atenção. A palavra “falso” pode ser muito cruel. Vamos dizer “imaturo” ou
“evoluindo”.
Esse era o obstáculo.
Para superá-lo, o aspirante precisa crescer. A mudança precisa acontecer no
nível celular.
Eu escrevi um romance, e outro, e outro. Sete anos em tempo integral, com
algumas pausas para conseguir dinheiro. E ainda não consegui superar esse
obstáculo.
Há alguns anos, eu reli dois desses três primeiros manuscritos. Ainda os
tenho. Não são terríveis, mas são insuportáveis. Analisando um parágrafo, eu
queria me jogar contra uma parede e me estapear, e poderia se não tivesse
compaixão por todos nós que somos compelidos pela natureza da vida e pela
estrutura do universo interno a passar por essa provação e iniciação.
Parece não haver maneira de tornar a passagem mais fácil, nem método para
eliminar a dor. As lições não podem ser ensinadas. Não há vacina para a
agonia. O processo é sobre dor. As lições vêm do jeito mais difícil.
35. MEUS AMIGOS

E uemtiveumaamigos durante essas etapas. Tive namoradas. Eu não estava sozinho


bolha.
Mas estava claro para todo mundo que eu conhecia que eu sabia estar
viajando no metrô para lugar nenhum, e estava claro para mim que isso estava
claro para todo mundo que eu conhecia. Quando obriguei meus amigos a ler
minhas coisas, a natureza tensa e gelada dos seus sorrisos e os contorcionismos
nas frases que eles eram forçados a usar para evitar me dizer a verdade eram
angustiantes.
Pobre Steve.
O que será dele? Como isso vai terminar? Será que vamos acabar pescando o
corpo dele do Hudson?[27] Qual de nós irá reconhecer seu corpo em Bellevue?[28]
Ele vai se tornar um daqueles maníacos babando na Canal Street?[29] Nossas
esposas o reconhecerão por trás do rodo enquanto ele lava nosso para-brisa,
quando estivermos na cidade para ir a um show?
Isso estava 100% claro para mim.
Mesmo assim, eu não conseguia parar de escrever.
Cada vez que eu saía de um emprego na publicidade ou em qualquer outra
área, meu chefe (que sempre era um amigo também) me chamava em seu
escritório, fechava a porta e, com as melhores intenções do mundo, fazia O
Discurso.
Ele me ofereceria um aumento, uma promoção. Steve, fique aqui no planeta
Terra. Ouça a razão. Não jogue sua vida na privada.
Eu sabia que meu chefe estava certo. Meu amigo estava me jogando um
colete salva-vidas. O que havia de errado comigo? Por que eu não podia pegá-
lo?
Por que eu não podia?
36. AINDA...

V ocê ainda está aprendendo. Você não sabe o quê. Não pode dizer como.
Mas os meses e anos, os milhões de rasuras e teclas batidas vão para o
banco de alguma maneira. As células se lembram. Algo muda.
Eu tinha trinta e seis anos, em Nova York, quando terminei o terceiro desses
livros de vários anos. Houve um vislumbre? Faça-me o favor.
No mercado de roteiros, existe um conceito chamado momento “Tudo está
Perdido”. Esse momento costuma acontecer lá pelos três quartos do filme. É o
ponto da história em que o protagonista está o mais longe do seu objetivo.
No mundo celuloide, o momento “Tudo está Perdido” é sempre seguido de
um avanço, um ritmo de reviravolta, quando o desespero torna-se esperança (ou
é mesmo o equivalente a esperança) e impulsiona o protagonista para a ação no
Ato Três.
Aqui estava o meu: Hollywood.
Pensei: “Venho escrevendo comerciais de TV por anos. Eu sei o que é filme.
Consigo pensar visualmente e amo filmes”.
Um roteiro.
Vou escrever um roteiro e me mudar para Tinseltown.
LIVRO TRÊS – HOLLYWOOD
37. ESTRUTURA EM TRÊS ATOS

E mroteiros
Los Angeles, eu passei fome por cerca de cinco anos. Escrevi nove
spec. Levei mais ou menos seis meses em cada um. Não vendi
nenhum deles.
Mas aprendi o que é um roteiro.
Aprendi os princípios da estrutura do roteiro.
Um script para um filme é composto de três atos. Ato Um: página um até 25.
Ato Dois: página 25 a 75-85. Ato Três: até o final, página 105 a 120.
Quando alguém me disse isso pela primeira vez (sem dúvida outro escritor
inexperiente), eu imediatamente pensei “Que merda previsível! Não serei
escravo disso!”
Errado.
Se existe um princípio que é indispensável para estruturar qualquer tipo de
narrativa, é este: divida a peça em três partes – começo, meio e fim.
Por que a estrutura em três atos é essencial em um filme? Porque um filme
(ou uma peça) é experienciado pelos espectadores em um único bloco contínuo
de tempo. Não é como um romance ou um ensaio, que podem ser abandonados
e retomados pelo leitor inúmeras vezes antes do final. Com um filme ou uma
peça, o público entra na sala de cinema e se acomoda por 90 ou 120 minutos
ininterruptos. Você, o roteirista, tem que mantê-los colados em suas cadeiras
por esse período de tempo.
Como você faz isso?
Prendendo-os (Ato Um), construindo a tensão e as complicações (Ato Dois), e
fazendo o desfecho de tudo isso (Ato Três).
É assim que se conta uma piada. Situação inicial, desenvolvimento e quebra
de expectativa.
É como se conta qualquer história.
Você já tentou seduzir alguém? O gancho, o desenvolvimento e o desfecho.
Já tentou vender algo a alguém?
Já se meteu em confusão e tentou escapar dela?
O gancho, o desenvolvimento e o desfecho.
Eurípedes trabalhou em três atos. Shakespeare também.
Você sabe alguma coisa que eles não sabem?
38. O CHEFE DEMONSTRA A[30]

ESTRUTURA EM TRÊS ATOS

A TO UM
Eu a conheci em um bar em Kingstown.
Nós nos apaixonamos. Eu sabia que isso tinha que acabar.
ATO DOIS
Pegamos o que tínhamos e destruímos.
ATO TRÊS
Agora cá estou eu, em Kingstown novamente.
39. FLASHFORWARD PARA FICÇÃO DE
FORMATO LONGO: A REGRA DAVID
LEAN

D avid Lean foi o magistral diretor de Lawrence da Arábia, Doutor Jivago, A


Ponte do Rio Kwai e muitos outros. Ele tinha um princípio que se aplica
perfeitamente não só aos filmes, mas também aos romances e outros formatos
longos de ficção e não ficção.
Lean disse “toda obra pode ser dividida entre oito e doze sequências
principais.”
Essa é uma alternativa à ideia de Estrutura em Três Atos.
A Estrutura em Três Atos funciona bem em filmes e peças, ou seja, obras que
são experienciadas pela plateia em um único gole de 90 a 120 minutos.
Mas romances não são assim. TV em formato longo não é assim. Esses
formatos são pegos pelo leitor ou espectador em intervalos, por períodos de
dias, semanas, meses. O ritmo de consumo é mais lento, com uma menor
necessidade de ritmo ou dinâmica.
Além disso, o leitor ou espectador que está sintonizando o episódio 12 precisa
de um tempo para lembrar tudo o que aconteceu nos episódios 1 a 11.
Assista Lawrence da Arábia cuidadosamente. Você verá que David Lean
seguiu sua própria regra. O filme é constituído de sequências focadas, de
construção lenta e sem pressa, podendo conter, cada uma delas, dez, quinze,
vinte cenas.
Cada sequência é como um filme dentro do filme, e cada sequência prepara o
palco para as seguintes.
Por causa disso, a história se desenrola com uma grandeza épica. Parece
imponente, majestosa, monumental.
40. FILMES SÃO SOBRE GÊNERO

Q uando eu e meu parceiro de roteiro Stanley estávamos procurando por uma


ideia nova, a primeira pergunta que nos fizemos foi “que tipo de filme nós
queremos ver?”
Queremos ver um filme suspense?
Uma história de amor?
Uma saga apocalíptica de super-herói?
Em outras palavras, nós estávamos debatendo gênero.
Qual gênero seria divertido escrever? Qual gênero está bombando as
bilheterias? De quais gêneros não devíamos nem chegar perto?
Eu amo faroestes e filmes noir. Infelizmente, ambos estão mortos como
gêneros há anos.
Gênero talvez seja o mais importante fator individual, do ponto de vista do
escritor, tanto na elaboração do trabalho como na tentativa de encontrar um
mercado para ele (para a discussão definitiva sobre esse assunto, leia The Story
Grid[31], de Shawn Coyne).
Por que o gênero é tão importante para o escritor?
Porque todo filme (e romance e peça) enquadra-se em um gênero, e todo
gênero tem suas próprias regras rígidas e inquebráveis.
41. TODA OBRA ENQUADRA-SE EM UM
GÊNERO, E TODO GÊNERO TEM
CONVENÇÕES

B ater no herói sempre funciona. Rebeldia Indomável. As Vinhas da Ira. Todo


filme do James Bond.
A cena do Herói à mercê do Vilão funciona porque é uma convenção de
gênero.
Se nosso Faroeste tem dois pistoleiros, eles têm que atirar na cena final. Se
nossa História de Detetive tem um policial e um criminoso, os rivais têm que se
encontrar no clímax. Se nossa História de Amor traz um casal de amantes, os
dois devem se separar no meio da história antes de ficarem juntos no final.
Isso não é fórmula.
São convenções de gênero.
O roteirista deve saber com que gênero está trabalhando e suas convenções
exatamente como um construtor de pontes deve entender a ciência da
integridade fundacional e os meios de mitigar o estresse do aço esticado.
Por quê?
Porque uma história (seja um filme, seja uma peça, um romance ou um texto
de não ficção) é experienciada pelo leitor com a alma. E a alma tem uma
estrutura universal de receptores narrativos.
Jung[32] estava certo. Existe um inconsciente coletivo. Joseph Campbell estava
certo. Mitos e lendas constituem o tecido do self.
A alma julga a verdade da história pela sua proximidade com os modelos
narrativos que são parte de nossa psique desde o nosso nascimento. A Jornada
do Herói. Odisseu. Gilgamesh. Buffalo Wallow Woman.[33]
Tudo bem misturar gêneros (na verdade, é ótimo se você puder alcançar isso),
mas antes que o façamos, nós, os escritores, temos que saber as regras do
gênero, assim como um neurocirurgião entende a topografia do cerebelo e a
arquitetura sináptica do neocórtex.
42. A JORNADA DO HERÓI

O primeiro Star Wars estreou quase dez anos depois que comecei a trabalhar
na indústria do cinema. Naquela época, o conceito de “jornada do herói”
(na qual George Lucas havia baseado a odisseia de Luke Skywalker) permeava
Hollywood da cabeça aos pés.
O megassucesso de Star Wars fez todo executivo de estúdio perguntar, sobre
todo potencial projeto de filme, “onde está a jornada do herói? Qual cena
representa ‘o Chamado’? Qual personagem é ‘o Mentor’? Quais ‘aliados e
inimigos’ o herói encontra ao longo do caminho?”
Afinal, o que é a Jornada do Herói?
A jornada do herói é a história original de cada indivíduo, de Adão e Eva a
Ziggy Stardust. É o mito primário da raça humana, o padrão cósmico que cada
uma das nossas vidas (e mil incrementos disso) segue, quer saibamos ou não,
quer gostemos ou não.
Aqui está a versão resumida:
1) Herói começa em um Mundo Normal.
2) Herói recebe o Chamado para Aventura.
3) Herói Recusa o Chamado.
4) Herói encontra o Mentor. O Mentor dá a ele coragem para aceitar o
Chamado.
(Se você está acompanhando, este é o Luke na fazenda de umidificação. Luke
encontra R2D2, abre o holograma angustiado da Princesa Leia e leva R2D2
para Obi-Wan Kenobi.)
5) Herói cruza o Portal, entra no Mundo Especial.
6) Herói encontra inimigos e aliados, sofre provações que servirão como sua
Iniciação.
7) Herói confronta o Vilão e ganha Recompensa.
8) O Caminho de Volta. Herói foge do Mundo Especial, tentando “voltar para
casa”.
9) Vilão persegue Herói. Herói precisa lutar/fugir novamente.
10) Herói volta para casa com a Recompensa, volta para o Mundo Normal,
mas agora como alguém que mudou, graças às provações e experiências em sua
jornada.
Pegue qualquer filme, de Casablanca a Perdido em Marte, incluindo filmes
com estruturas aparentemente transgressoras, como Pulp Fiction, ou
Adaptação, de Charlie Kaufman.
No cerne de cada um, de uma forma ou de outra, você encontrará a jornada do
herói.
43. A JORNADA DO HERÓI EM TRÊS
ATOS

V ocê está começando a perceber os contornos do que faz uma história ser
uma história? Consegue ver a arquitetura universal que está por trás de
cada conto, das sagas nórdicas ao South Park e Keeping Up with the
Kardashians?
Estrutura em Três Atos + Jornada do Herói = História.
44. A JORNADA DO HERÓI, VERSÃO
APROFUNDADA

A lém da sua utilidade como “cola” para escrever filmes de sucesso, o que é
exatamente a jornada do herói?
Quem a inventou?
De onde veio? Qual é o seu propósito?
De acordo com Carl Jung, a jornada do herói é um elemento do inconsciente
coletivo. Joseph Campbell a identificou em mitos e lendas de praticamente cada
cultura no planeta. Jung descobriu que ela surgia espontaneamente nos sonhos e
neuroses de seus pacientes psiquiátricos.
A jornada do herói surgiu, os dois homens especularam, da experiência
acumulada da raça humana por milhões de anos. A jornada do herói é como um
sistema operacional (ou um software em um sistema operacional) que cada um
de nós recebe ao nascer, enraizado em nossas psiques, para nos ajudar a
navegar nesta passagem pela vida.
A jornada do herói atua como um modelo ou um manual de usuário. Ela nos
diz “Assim é como as coisas funcionam, como a vida funciona. Este é o mapa
para o caminho que a sua vida trilhará.”
(Leituras necessárias/sugeridas: O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell;
Ensaios Sobre Psicologia Analítica, v. 2 – C. G. Jung; Símbolos da
Transformação – C. G. Jung; e para os verdadeiros detalhes de Hollywood, A
Jornada do Escritor – Christopher Vogler).
45. POR QUE HISTÓRIAS FUNCIONAM
OU NÃO

Q uatro capítulos atrás, escrevi que a história “é experienciada pelo leitor com
a alma. E a alma tem uma estrutura universal de receptores narrativos.”
O que eu quis dizer é que o modelo da jornada do herói está infiltrando-se em
nossas psiques 24 horas por dia, sete dias por semana (estejamos cientes disso
ou não), e que, inconscientemente, colocamos todas as outras histórias – cada
livro que lemos, filme a que assistimos – ao lado dela e nos perguntamos,
também inconscientemente: “esta história soa verdadeira?”
A jornada do herói é nosso marco.
Quando o livro que lemos ou filme a que assistimos corresponde a essa
história original, dizemos “funciona”.
Nós sabemos que isso funciona não com a nossa mente, mas com nossas
entranhas.
A história nos comove. Ela nos satisfaz emocionalmente. Chegamos ao seu
final nos sentindo como se tivéssemos acabado de comer um prato de carne
com batatas.
Quando a história não se ajusta ao modelo da jornada do herói (mesmo que,
novamente, estejamos completamente inconscientes disso ou nunca tenhamos
ouvido falar da jornada do herói), nós deixamos o livro de lado ou saímos do
cinema insatisfeitos e vagamente irritados.
“Sei lá”, nós dizemos. “Parece que algo ficou faltando na história.
Não me pegou. Eu estava entediado. Desandou tudo no final”.
46. TODO GÊNERO É UMA VERSÃO DA
JORNADA DO HERÓI

P or que gêneros têm convenções?


Por que pistoleiros têm que duelar no final de um Faroeste? Por que o
casal tem que se separar antes de ficarem juntos em um Romance? Por que nós,
como contadores de histórias, não somos criativos e simplesmente quebramos
essas convenções?
Porque cada uma delas (e todas as outras convenções em todos os outros
gêneros) é uma parada na versão da jornada do herói daquele gênero. E a
psique humana capta e avalia cada narrativa que vê ou ouve de acordo com o
quão intimamente ela se ajusta ao ritmo e estrutura da jornada do herói.
Seja inovador; experimental, se você quiser. Mas lembre-se: a psique humana
é profundamente conservadora e rígida como uma rocha.
Agora – quais são exatamente os princípios da narrativa?
47. TODA HISTÓRIA TEM QUE SER
SOBRE ALGO

O s princípios da narrativa às vezes são tão óbvios que nós não os vemos.
Claro, você diz, uma história tem que ser sobre algo. Mas eu o desafio.
Leia milhares de roteiros escritos por aspirantes a escritores. Noventa e nove
por cento deles será sobre nada (e eu não digo isso de modo positivo, como
Seinfeld[34], o qual, a propósito, nunca foi sobre nada).
O que significa “ser sobre algo”?
Hamlet é sobre algo.
O Poderoso Chefão é sobre algo.
The Walking Dead é sobre algo.
Por baixo das perseguições, cenas de sexo e efeitos especiais, um livro ou
filme que funciona é sustentado por um tema.
Uma única ideia mantém o trabalho coeso e o torna coerente.
Nada naquele livro ou filme está fora do tema.
48. TODO PRIMEIRO ATO PRECISA TER
UM INCIDENTE INCITANTE

F izcurso
um curso de Robert McKee. Chamava-se Estrutura de Roteiro, à época. O
durava três dias – metade da sexta e todo o sábado e domingo.
Custou-me 199 dólares, eu acho.
A turma estava cheia de outros aspirantes a roteiristas, bem como de atores e
atrizes, executivos de estúdio, caras e garotas de desenvolvimento.
Todos estávamos desesperados para descobrir o que fazia um filme funcionar.
McKee cumpriu.
Na aula de sexta à noite, na primeira hora, ele apresentou o conceito de
Incidente Incitante.
O que foi revolucionário para mim não foi tanto aquela ideia específica
(embora de fato tenha mudado tudo sobre meu modo de trabalho), mas sim o
pensamento de que tais coisas poderiam ser ensinadas.
Você pode estudar.
Você pode aprender.
Você pode melhorar.
O Incidente Incitante é o evento que faz a história começar.
Ele pode ocorrer em qualquer lugar entre o Minuto Um e o Minuto Vinte e
Cinco. Mas precisa acontecer em algum lugar do Primeiro Ato.
Nunca tinha me ocorrido que uma história precisa começar. Eu pensava que
ela começava por si mesma.
E certamente eu nunca tinha me dado conta de que o escritor tinha que
construir conscientemente aquele momento específico em que a história
começa.
49. COMO UMA HISTÓRIA COMEÇA?

P atemSolitano (Bradley Cooper) está recebendo alta de um hospital psiquiátrico


Baltimore. Nós percebemos, desde os primeiros minutos do filme, que
ele tem sérios problemas psiquiátricos.
Esses problemas reúnem-se em torno da obsessão de Bradley em reatar o
relacionamento com a sua esposa Nikki, que tem uma ordem de restrição contra
ele e morre de medo de sua loucura.
Mas Bradley tem um plano. Ele provará a Nikki que entrou no eixo. Ele está
são agora, é um novo homem. Começou a fazer exercícios, perdeu peso. Ele
tem um lema de autoaperfeiçoamento: “Excelsior.[35]” Dedicou-se a manter
uma “atitude positiva”. Com isso, ele está certo de que pode encontrar o “lado
bom” e reconstruir seu casamento.
Esses são os primeiros nove minutos de O Lado Bom da Vida, de David O.
Russell.
Tudo isso é ótimo. Cada pedaço de informação é necessário para a história.
Mas até agora é apenas a Preparação.
A história não começou ainda.
Ela começa lá pelos dez minutos do filme, quando o amigo de Brad Ronnie
(John Ortiz) e sua esposa Veronica (Julia Stiles) convidam Bradley para um
jantar em casa e lá apresentam a ele a irmã de Veronica, Tiffany (Jennifer
Lawrence), que, a propósito, também tem problemas psicológicos
significativos.
Bradley conhece Jennifer de vista, da vizinhança. Mas ela era casada com um
policial chamado Tommy. Tommy faleceu. Jennifer agora é viúva, ou seja,
disponível.
Minuto Dez:
Jennifer entra na sala e encontra Bradley.
Bradley olha para Jennifer.
Jennifer percebe o jeito que Bradley está olhando para ela e olha de volta da
mesma maneira.
Como espectadores, nós sabemos nesse instante que o plano de Bradley de
voltar com sua esposa Nikki acaba de ir pro espaço.
Esse é o Incidente Incitante.
Agora a história começou.
Assistindo, nós não temos ideia de como Bradley e Jennifer ficarão juntos (e
na verdade, os obstáculos entre eles parecem esmagadores), mas nós sabemos
pela faiscante química romântica entre eles que isso vai acontecer.
A história está fluindo.
50. O CLÍMAX ESTÁ EMBUTIDO NO
INCIDENTE INCITANTE

C omo podemos saber que temos um bom incidente incitante? Quando o


clímax do filme está embutido nele.
Apollo Creed escolhe Rocky Balboa no livro dos lutadores e diz “Vou dar a
esse idiota uma chance do título”. Esse é o incidente incitante de Rocky I.
Assim que o ouvimos, sabemos que o clímax do filme será Apollo e Rocky
lutando pelo cinturão mundial de pesos pesados.
Em Busca Implacável, traficantes sexuais sequestram a filha de Liam Neeson.
No momento em que Liam consegue falar ao telefone com os sequestradores,
diz a eles para soltarem-na ou então... Ele é, percebemos, um assassino
treinado. “Eu tenho um conjunto de habilidades muito específicas e vou usá-las
para caçá-lo e matá-lo”. Os vilões desejam “Boa sorte” e desligam.
Embutido nesse Incidente Incitante está o clímax de Busca Implacável: Liam
pega os bandidos e, bem, você sabe o que acontece.
A antecipação da experiência do clímax é o que nos puxa – o público –
através do filme. Nós mal podemos esperar para ver Linda Hamilton estar
frente a frente com o Exterminador, ou Clint Eastwood duelar com Gene
Hackman, ou Neo e Morpheus abrirem caminho para fora da Matrix.
Se o seu Clímax não está embutido no seu Incidente Incitante, você não tem
um Incidente Incitante.
51. O SEGUNDO ATO PERTENCE AO
VILÃO

E uValente),
aprendi isso com meu amigo Randall Wallace (que escreveu Coração
que aprendeu com Steve Canell[36], o mestre dos milhões de
enredos de The Rockford Files a Baretta a 21 Jump Street.
Novamente, isso não é uma fórmula. É um princípio da narrativa.
Uma vez que o Alien estiver a bordo de Nostromo, uma vez que o Grande
Tubarão Branco começou a cruzar as águas de Amity, uma vez que os Tripods
de Guerra dos Mundos tiverem aparecido em Nova Jersey, mantenha-os à
frente e ao centro. Quanto mais assustador o monstro, quanto mais profundo o
risco, mais emoção será produzida nos corações dos espectadores.
Isso funciona para vilões abstratos também, como a iminente crise do
mercado em Margin Call – O Dia Antes do Fim. Uma vez que esse monstro foi
introduzido, os cineastas voltam nele de novo e de novo, e cada vez que o
fazem, a história fica mais tensa e a audiência é envolvida profundamente.
(Ou se você acredita que o verdadeiro vilão de Margin Call – Um Dia Antes
do Fim é a catástrofe moral implícita na iminente decisão do grupo de
executivos de afundar a economia mundial para salvar a si mesmos e suas
empresas [sim, eu acredito nisso], então os cineastas responderam a isso
também. Cada cena do segundo ato fede a essa decisão iminente e a calamidade
da alma que ela implica.)
O vilão em O Lado Bom da Vida é interno. É a obsessão de Bradley Cooper
por voltar com sua esposa Nikki.
No final do Primeiro Ato, Bradley conheceu Jennifer Lawrence. Claramente
ela o ama. Claramente os dois foram feitos um para o outro.
Bradley estragará essa potencial coisa boa com Jennifer porque é obcecado
em voltar com sua distante esposa?
TIFFANY
Fale sobre essa coisa de Nikki. Esse “Amor pela Nikki”. Eu quero entender
isso.
O filme volta para esse Monstro várias vezes durante o Segundo Ato.
Nenhum herói de ação teve mais pavor de um vilão do que Jennifer Lawrence
tem desse antagonista que só existe na cabeça do jovem problemático por quem
ela está apaixonada. Sua dor e risco ao longo do Segundo Ato nos mantêm
presos e torcendo por ela.
Mantenha o vilão na frente durante o segundo ato.
52. TODO PERSONAGEM PRECISA
REPRESENTAR ALGO MAIOR QUE SI
MESMO

E usidoestive em Los Angeles mais ou menos por seis meses. Meu olhos tinham
abertos para os princípios da narrativa. Quando assisto a um filme
agora, eu o estudo. Quando leio um livro, eu o coloco no microscópio.
Debrucei-me sobre os clássicos. Como Billy Wilder produziu tanto drama em
Pacto de Sangue? Por que Shakespeare fez o incidente incitante de Hamlet ser
a aparição do fantasma do pai do protagonista?
Tornei-me um estudioso.
Eu poderia sentar em cafeterias com outros acólitos de Tinseltown,
dissecando diálogos de Robert Towne [37] ou analisando a construção de
personagens de David Webb Peoples[38], e Julius e Philip Epstein[39].
53. FILMES SÃO IMAGENS

B lake Snyder (que morreu tragicamente em 2009, aos 51 anos) é um dos


meus roteiristas de cinema favoritos. Se você ainda não leu Save the Cat! e
Save the Cat! Goes to the Movies[43], pegue-os imediatamente.
Um dos princípios de Blake é Mantenha Simples. Um grande filme, ele
acredita, precisa ser tão básico, tão alicerçado na alma, que poderia ser
compreendido por um homem das cavernas.
Em outras palavras, sem linguagem verbal. Sem diálogo.
Você já viu um filme com o som desligado? Os grandes sustentam-se
completamente. Matar ou Morrer. Os Sete Samurais. Os Imperdoáveis.
Dizer “Mantenha Simples” é dizer “Conte a história em imagens”.
Pensar em imagens o força a manter as apostas da sua história primordial.
Nós vemos os Barões Malvados humilharem os Camponeses Honestos em
Coração Valente. Nossos olhos nos mostram Meryl Streep deixando seu marido
Dustin Hoffman com seu filho pequeno Justin Henry em Kramer vs. Kramer.
Vemos Matt Damon abandonado no Planeta Vermelho em Perdido em Marte.
Cada um desses arranjos evoca uma emoção primária. Eles nos envolvem.
Eles nos fazem torcer por um desfecho específico. E embora os diálogos sejam
dignos de Oscar em todos esses filmes, as cenas, incluindo o clímax, funcionam
quase tão bem quando MOS[44] (sem som).
Filmes são imagens.
54. COMECE PELO FIM

C ada negócio tem seus truques. Aqui está um que você aprende como
roteirista em Hollywood: Comece pelo fim.
Comece com o clímax, então trabalhe de trás para frente, até o início.
Carrie, a Estranha.
O Grande Gatsby. Thelma e Louise.
O final dita o começo.
Sou um grande fã deste método “de trás para a frente”. Funciona para
qualquer coisa – novelas, peças, apresentações de novos negócios, álbuns de
música, coreografias.
Primeiro, descubra onde você quer terminar.
Então, trabalhe no sentido contrário para construir tudo o que você precisa
para chegar lá.
55. FLASHFORWARD PARA NARRATIVA
DE NÃO FICÇÃO: COMECE PELO FIM

E mlinhas
2014, a Sentinel/Penguin publicou meu livro A Porta dos Leões: nas
de frente da Guerra dos Seis Dias, sobre a Guerra Árabe-Israelense
de 1967. O livro era não ficção. Cada pessoa era real, cada evento realmente
aconteceu. A natureza do material não poderia ser mais diferente daquela da
ficção ou de um filme de fantasia.
Mesmo assim, eu usei exatamente o mesmo princípio: comece pelo final.
Não só comecei pelo final ao escrever o livro, comecei pelo final escrevendo
a Proposta do Livro, ou seja, o documento de cinquenta páginas que seria
enviado às editoras com a intenção de obter um contrato, para que eu tivesse
dinheiro para escrever o livro.
Funcionou.
Se eu e você sabemos o clímax de Perdido em Marte (Mark Watney [Matt
Damon] volta a salvo para a Terra com uma ajudinha dos seus amigos), nossa
tarefa ao escrever o livro/roteiro torna-se exponencialmente mais fácil. Nós só
temos que ir escalando os obstáculos que Mark/Matt (e seus aliados na Terra e
no espaço) precisam vencer.
56. FLASHFORWARD PARA NARRATIVA
DE NÃO FICÇÃO: AS REGRAS DE
HOLLYWOOD AINDA SE APLICAM?

T rabalhando na estrutura para o não ficção A Porta dos Leões, eu me fiz as


mesmas perguntas que teria feito se estivesse fazendo um pitch do material
para a 20th Century Studios.
Qual é o gênero?
Qual é o tema?
Qual é o clímax?
Quem é o herói?
Quem é o vilão?
Quais são as apostas?
Qual é o risco?
Exatamente como na escrita de roteiro, eu comecei pelo final e trabalhei no
sentido contrário.
Você é um CEO preparando um discurso para seus acionistas? Escreva-o
como um romance ou um filme. Use os princípios da narrativa.
Escreva sua tese de doutorado da mesma maneira. E a sua proposta de
concessão. E o seu pedido ao senhorio para que não aumente o seu aluguel.
Histórias funcionam.
Conte isso para mim como uma história.
57. APOSTAS

M eudiretor
primeiro trabalho pago em Hollywood foi escrever um script para o
Ernie Pintoff. Trabalhamos lado a lado na grande mesa de carvalho
da cozinha do Ernie.
Cada vez que travávamos, Ernie dizia a mesma coisa: “Faça um corpo cair no
chão”.
Ele estava falando de apostas.
Por que tantos personagens são mortos (ou ameaçados de morte) nos livros e
nos filmes? Porque isso aumenta as apostas da história para vida e morte.
O quão altas devem ser as apostas na sua história? O mais altas possível.
Apostas altas = grande envolvimento emocional da audiência.
É por isso que tantos filmes são sobre o fim do mundo. Invasores alienígenas,
pestes, colisão com asteroide, apocalipse zumbi.
Todos eles funcionam para aumentar as apostas. Truque barato, você diria.
Sim. Mas funciona.
Faça as apostas de vida ou morte para o seu herói ou para alguém que ele/ela
ama. Ou vá além da morte e da vida, para a danação. Extinção da alma. Um
destino pior que a morte. O Homem do Prego. A Outra Volta do Parafuso. No
Vale das Sombras.
Isso soa como fórmula, eu sei. Mas é a medula e o tendão da narrativa, e se
você não acredita em mim, por favor, confirme com o Sr. W. Shakespeare.
58. RISCO

E sta é outra metáfora de Tinseltown que, apesar de soar estúpida, funciona.


Ponha seus personagens em perigo o mais rápido possível e mantenha-se
aumentando esse risco ao longo da história.
Quanto maior o risco aos seus personagens, mais os espectadores vão se
importar e mais envolvidos ficarão.
Risco não tem que significar balas e bombas. Em As Patricinhas de Beverly
Hills, o perigo é ser considerado fora de moda. Em Curtindo a Vida Adoidado,
é ficar em apuros com mamãe e papai. Mas esses perigos são de vida ou morte
nos mundos de Alicia Silverstone e Matthew Broderick.
Riscos e apostas são os dois lados da mesma moeda.
Nossos personagens precisam, com desespero de vida ou morte, querer ou
necessitar de algo ou de um resultado (apostas). Então, essa vontade ou
esperança de obter esse algo ou resultado precisa ser lançado em um grave-e-
ficando-mais-grave perigo (risco).
Alan Alda, em uma aula inaugural de atuação na HBO, pediu a um de seus
alunos que realizasse um exercício. Ele encheu de água um copo até a borda e o
colocou nas mãos da estudante. “Se uma gota derramar,” disse a ela, “cada
pessoa na sua cidade morrerá. Agora, ande nove metros pelo palco e coloque o
copo a salvo em cima daquele piano.”
Confie em mim, nem uma alma sequer naquela plateia deu um suspiro até que
a estudante tivesse feito todo o percurso. Ela mesma parecia que estava à beira
de ter um ataque cardíaco.
Apostas.
Riscos.
Eles funcionam.
59. TEXTO E SUBTEXTO

H ápodem
um exercício que atores fazem em aulas: um homem e uma mulher (ou
ser duas pessoas do mesmo sexo) sentam-se um ao lado do outro no
palco. O professor dá a eles um roteiro fraco, inócuo, algo sobre uma
confeitaria, digamos, ou assistir a um gato brincando com uma bola de lã.
Mas o professor orienta os alunos a fazerem a cena como se eles estivessem
seduzindo um ao outro.
JANE
... sim, o fio continuou rolando pelo tapete...
JIM
Não brinca. De que cor era?
O roteiro é o texto.
A sedução é o subtexto.
O desafio dos atores é comunicar de modo não verbal o desdobramento de
uma narrativa que está o mais longe do texto possível.
Você já viu o filme Confissões Verdadeiras? Robert De Niro e Robert Duvall
interpretam irmãos, na Los Angeles de 1940. Duvall é um detetive de
homicídios muito-comprometido, De Niro é um poderoso monsenhor, uma
estrela em ascensão na arquidiocese de Los Angeles.
A relação dos irmãos é tensa durante a película, com De Niro aparentemente
reprovando o mundo corrupto de Duvall – até o momento próximo do final do
filme, quando, sentados no balcão de uma lanchonete, De Niro, o monsenhor,
confessa que seu mundo interior aparentemente perfeito está, na verdade,
fatalmente perturbado.
Duvall ouve essa revelação, para por um longo momento, então
aponta com uma das mãos a prateleira de sobremesas no balcão.
ROBERT DUVALL
Quer alguma coisa? Torta?
Tenho certeza de que não fui o único espectador que engoliu o choro naquele
momento.
Isso é escrita.
Isso é escrever filmes.
(E uma excelente atuação de Robert Duvall).
O poder da performance vem do contraste entre dois níveis de expressão: o
que está sendo dito (texto) e o que está sendo comunicado por meios não
verbais (subtexto).
Quanto maior o contraste, mais poderosa é a emoção produzida no público.
O prazer que nós, cinéfilos, obtemos desta justaposição de texto e subtexto
vem do fato de podermos participar do momento. Nós assistimos e pensamos
“Tá vendo, Robert Duvall realmente ama seu irmão. Apesar de todas as coisas
ruins entre eles, no fim, Duvall se importa.”
A segunda parte do exercício de atuação do início deste capítulo ocorre
quando o professor interrompe a cena de sedução e orienta os dois estudantes a
usar o mesmo script fraco, mas, desta vez, fazerem a cena como se um deles
estivesse prestes a assassinar o outro, e o outro sabia disso.
JANE
... sim, o fio continuou rolando pelo tapete.
JIM
Não brinca. De que cor era?
Quando fui para Hollywood pela primeira vez, escrevi cenas que eram
“diretas”. Esse é o crime mais hediondo que um roteirista pode cometer.
Diálogos que são “diretos” expressam exatamente o que será retratado de forma
não verbal pelos atores.
ROBERT DUVALL
(coloca o braço em torno de Robert De Niro) Irmão, apesar de todos os nossos
problemas, eu realmente me importo com você. Há alguma coisa que eu possa
fazer para ajudar?
60. DIGRESSÃO: NARRATIVA DE
HOLLYWOOD

O squalidade
princípios de história que você aprende em Hollywood têm uma
primordial em comum: eles são muito americanos.
Por que existem filmes franceses, ou feitos no Japão, Irã ou Israel, tão
diferentes das películas nativas dos EUA? Porque histórias estrangeiras surgem
de águas alienígenas. Os cineastas não compartilham as mesmas premissas que
nós, ianques.
1) Filmes americanos acreditam no Sonho Americano.
Histórias americanas começam com base na igualdade e liberdade. Para nós,
esses elementos são universais. Nós os consideramos garantidos.
Histórias americanas compram (e vendem) o Sonho Americano – você poder
ser o que quiser se estiver disposto a trabalhar por isso. E eles lidam com o
Pesadelo Americano – e se tentarmos e falharmos?
Essas não são verdades universais, nem mesmo aspirações universais.
O Talibã não acredita neles.
O ISIS rejeita-os completamente.
Espectadores americanos amam filmes sobre azarões de sucesso – Rocky, ou
Rudy, ou Free Willy. Filmes dos EUA glorificam os excêntricos e os esquisitos.
Nós amamos nerds, geeks e serial killers (se eles forem simpáticos), vampiros,
lobisomens e zumbis. Amamos rebeldes, com causa ou sem. Amamos
mutantes. O mutante é o indivíduo supremo, extremamente incompreendido. X-
Men, Quarteto Fantástico, até Nebraska e Big Bang Theory. Seja você mesmo,
dizem os filmes americanos. Confie na Força.
Filmes russos atingem maiores profundidades. América é adolescente; Rússia
é anciã. Os russos sofreram com a fome e doenças; suportaram a derrota na
guerra, uma revolução violenta e uma contrarrevolução ainda mais violenta, e
todas as calamidades pessoais e coletivas que vêm com levantes políticos e
sociais em grande escala. Os Muppets não evoluíram na URSS. Não existe um
Mickey Mouse russo.
Filmes iranianos buscam por individualidade e peculiaridade em nível
universal. Filmes israelenses são complexos e moralmente excruciantes.
Películas japonesas ascendem a arquétipos lendários e atemporais.
2) Filmes americanos acreditam em causa e efeito.
De Tocqueville [45] chamou a nós, ianques, de “raça de mecânicos”.
Inventamos a máquina a vapor, o descaroçador de algodão, o avião.
Entendemos engrenagens e polias. Nós sabemos como usar uma chave de roda.
O Sonho Americano é mecânico também. Ele acredita em justiça. Se eu e
você trabalharmos duro e jogarmos conforme as regras, teremos sucesso. Isso é
um artigo de fé nos EUA (e cada onda de imigrantes que migra para a costa dos
EUA acredita nele com fervor).
Filmes americanos refletem essa crença otimista. Assim como eu e você
podemos consertar nosso Ford V-8 se aplicarmos fielmente as leis da mecânica,
também podemos encontrar o amor de nossa vida, entregar o vilão à justiça,
salvar o mundo do apocalipse. Nós apenas temos que resolver o problema.
Como Tim Gunn[46] diz, “faça funcionar”.
A vida realmente segue as leis de causa e efeito? Se você está fazendo essa
pergunta, sem dúvida você está fazendo filmes em Budapeste ou Rangum.
3) Filmes americanos são (com notáveis exceções) sem ironia.
Hollywood busca o Gran Finale. O nó na garganta, o órfão salvo da
tempestade, o gol aos 45 minutos do segundo tempo.
Isso porque nossas películas nativas acreditam (e trafegam) no Sonho
Americano. Então Harry encontra Sally, Luke explode a Estrela da Morte,
Ripley derrota o Alien. Em Walla [47]ou West Village[48], o público teria ficado
furioso se esses filmes tivessem terminado de outro jeito.
Quando você vê um filme americano com um final irônico ou trágico, quase
sempre ele foi escrito ou dirigido por um estrangeiro. Chinatown, de Roman
Polanski, Pacto de Sangue, de Billy Wilder. Até Sindicato dos Ladrões foi feito
por Elia Kazan, que era greco-americano, mas bem mais grego que americano.
E Os Brutos Também Amam é a exceção que confirma a regra.
Portanto, eu não estou fazendo lobby para os axiomas nestes capítulos como
princípios atemporais da narrativa que se aplicam em todas as galáxias e
estações do ano. Esses são os princípios de Stars and Stripes.[49] Eles surgiram –
e refletem – em um lugar e clima bem específicos.
Devemos ter isso em mente quando nos voltamos ao “modo romance” e
procuramos ir além dos três atos e além de causa e efeito.
61. NARRATIVA DE HOLLYWOOD, PARTE
DOIS

R obert McKee[50] profere este mandamento: “Não tomarás o clímax das


mãos do protagonista.”
O que ele quer dizer (e eu concordo completamente) é: não deixe o seu herói
passivo no ápice da crise do filme. Não faça outro personagem resgatá-lo(a).
Vin Diesel tem que salvar o dia em qualquer filme que tenha Furioso no título.
James Bond precisa derrotar Spectre e mais ninguém.
Mas este axioma também é completamente americano.
Ele adere e celebra o Sonho Americano.
Filmes franceses violam o mandamento de McKee com frequência, assim
como filmes da Escandinávia, África, Rússia. Irã, Paquistão, ou qualquer país
do Oriente Médio.
Filme indianos não (pelo menos os famosos), mas aí o Sonho Indiano é mais
americano até do que o Sonho Americano.
62. ESCREVA PARA UMA ESTRELA

À sdimensões
vezes, quando queremos deixar nossa história “real”, nós reduzimos as
dos nossos personagens. Faz sentido, certo? Pessoas reais são
normais. Vamos escrever um herói normal.
Errado.
Meu primeiro agente costumava me surrar por causa disso. “Por que você está
escrevendo um personagem principal que nem este? Que ator vai querer
interpretar esse babaca? Posso dar isso ao Kevin Costner? Você está me
matando!” O público quer ver uma estrela. Brad Pitt. Angelina Jolie. George
Clooney.
Até Bruce Dern em Nebraska ou Jack Nicholson em As Confissões de
Schmidt. Esses personagens não poderiam ter sido mais perdedores. Mas eram
estrelas.
O que faz um papel para uma estrela?
1) Os problemas dele ou dela conduzem a história. Os deles e de ninguém
mais. Cada personagem na história gira em torno dele ou dela.
2) Seu desejo/problema/objetivo é (para ele, no contexto do seu mundo)
imenso. As apostas para ele são vida ou morte.
3) Sua paixão por seu desejo/problema/objetivo é insaciável. Ele perseguirá
isso até, como Joe Biden poderia dizer, os portões do inferno.
4) No ponto crítico da história, suas ações ou necessidades (e de mais
ninguém) ditam o rumo que a história toma.
5) Ela termina quando os problemas dele são resolvidos, e não antes.
Aqui estão três papéis interpretados por Matthew McConaughey nos últimos
anos: Ron Woodroof em Clube de Compras Dallas, Mud em Amor Bandido,
Rust Cohle em True Detective.
Cada problema do personagem conduz a história. Cada paixão dele é
insaciável. Cada personagem é uma estrela.
Coloque esse tipo de papel no centro de sua história e todo o resto se
encaixará.
63. ESCREVA PARA UMA ESTRELA,
PARTE DOIS

O motivo que você tem para escrever para uma estrela em Hollywood é que
um roteiro não é nada até que seja rodado como um filme.
A mídia são os filmes, não os roteiros.
E para fazer um filme (tê-lo financiado, produzido, distribuído), você precisa
de uma estrela.
O que isso significa para você e para mim, os escritores?
No capítulo anterior, nós elencamos um número de qualidades que um papel
digno de uma estrela requer. Aqui está outra:
A personagem precisa passar por uma mudança radical desde o começo até o
final do filme. Ela deve ter um arco. Ela deve evoluir.
Pense nos papéis que Meryl Streep tem interpretado – Karen Blixen em Entre
Dois Amores, Karen Silkwood em Silkwood – O Retrato de uma Coragem,
Francesca em As Pontes de Madison. Não é por acaso que cada um desses
personagens passa por uma transformação quase total ao longo do filme. A
Senhora Streep não teria dito sim para o papel se não fosse assim.
Mas isso começa com o escritor. Ele escreve para a estrela e criou um papel
digno de uma estrela.
64. GRANDE TEMA = GRANDE ESTRELA

C omo escrevemos para uma estrela?


Não necessariamente inventando perseguições de carro másculas ou
deixando as cenas de sexo mais picantes na tela.
Nós estabelecemos um tema digno de uma estrela.
Lembre-se, o protagonista incorpora o tema.
Quanto mais poderoso o tema, mais poderoso o papel principal que o
carregará.
Considere a personagem Baronesa Karen Blixen (Meryl Streep) no filme
Entre Dois Amores.
O tema de Entre Dois Amores é posse.
É possível, o filme questiona, que um ser humano realmente possua algo – um
namorado, uma fazenda, um sonho?
Karen acredita que é possível. Na verdade, toda a sua vida é baseada nesta
convicção. Seu namorado Denys Finch-Hatton (Robert Redford) a provoca
sobre isso em uma cena, repreendendo-a pelo seu hábito de se referir a “minha
escola, meu Kikuyu[51], minhas Limoges[52].”
Karen também deseja que Denys seja “dela”. Ela o proíbe de ir a um safari
com outra mulher e quando ele não tolera isso, ela termina o relacionamento.
No fim do percurso, Karen perde tudo – sua fazenda, seu sonho da África,
bem como Denys, que morre tragicamente em uma queda de avião.
KAREN BLIXEN
Agora, pegue de volta a alma de Denys Finch-Hatton. Ele nos trouxe alegria e
o amamos. Ele não era nosso. Ele não era meu.
No final, a vida ensina a Karen que ela não pode “possuir” nada. Ninguém
pode. Derrotada, ela vende sua fazenda e navega para a Dinamarca, para nunca
mais voltar à sua amada África.
Mas a genialidade da concepção do filme/tema/ protagonista não acaba aqui,
pois nós na audiência sabemos o que a Karen da vida real fez nos anos
seguintes – reinventou-se como “Isak Dinesen” e passou a escrever uma sólida
série de obras de ficção e não ficção, sendo a principal entre elas o livro no qual
o filme é baseado, Out of Africa.
O tema do filme não só é profundo e maduro, mas também foi concebido e
analisado pela pessoa que sofreu suas agonias na vida real.
A mulher Karen Blixen pode ter sido vencida pelos imprevistos da vida, pelo
menos em seu sonho de possuir alguma coisa que provasse ser permanente.
Mas a artista Isak Dinesen triunfou, tanto quanto essa palavra pode ser aplicada
nesta história, produzindo um trabalho profundo e belo sobre aquela tragédia.
De fato, Meryl Streep, a atriz, trouxe seu próprio poder de estrela para o papel
de Karen Blixen.
Mas o papel, como apresentado pelo roteirista Kurt Luedtke e pelo diretor
Sydney Pollack, já tinha o brilho de superstar devido à sua posição no
epicentro da arquitetura temática do filme.
É por isso que Meryl Streep quis interpretá-lo.
65. UM COROLÁRIO PARA “ESCREVA
PARA UMA ESTRELA”

N ão tenha medo de fazer seu herói sofrer.


Sofrimento é drama.
Atores amam sofrer, e o público ama assistir ao seu tormento.
Quanto maior a provação a que submetemos nosso protagonista (Rebeldia
Indomável, Filadélfia, O Regresso), mais o ator ou atriz vai querer interpretar
essa parte.
66. ESCREVA PARA UMA ESTRELA,
PARTE TRÊS

D ê à estrela uma jornada interior e uma exterior.


Perseguições e casos de amor tórridos são excelente diversão na tela, mas
por si mesmo eles não atrairão uma estrela.
Uma estrela quer um arco interior também.
Por que filmes do James Bond, amados e lucrativos como são, são tão
entediantes? Porque o Sr. B. nunca muda. Ele não tem uma jornada interior.
Você pode culpar Sean Connery (e agora, Daniel Craig) por procurarem outros
papéis mais suculentos? Se 007 fosse todos esses performers conhecidos por
interpretá-lo, eles nunca seriam levados a sério como atores.
Jack Nicholson, Meryl Streep, Tom Hanks, Julianne Moore, Jeff Bridges (e
poderíamos nomear muitos outros) não tocarão num papel, mesmo um cômico,
que não tenha pelo menos uma (e preferencialmente mais de uma) dimensão
interior.
67. ESCREVA PARA UMA ESTRELA,
PARTE QUATRO

A última e provavelmente mais importante qualidade que o escritor deve


incluir ao escrever para uma estrela é:
Uma estrela quer ser inesquecível.
Atores, lembre-se, estão pensando em suas carreiras. Eles querem acumular
papéis que, com o tempo, criem uma personagem cinematográfica que perdure.
Tom Hanks em Splash, Quero Ser Grande, Filadélfia, O Resgate do Soldado
Ryan, Forrest Gump, Apollo 13, O Náufrago, Capitão Phillips, Sintonia de
Amor, Ponte dos Espiões. Nem todos os personagens que Hanks interpreta
nesses filmes são “heróis”. Nem todos “vencem”. Nem todos são “bons”.
Mas todos eles têm dimensão. Têm profundidade. Seus diálogos são incríveis.
Eles são únicos.
São inesquecíveis.
Diane Keaton em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, O Poderoso Chefão I e II,
Manhattan, Interiores, Crimes do Coração, Alguém tem que Ceder.
Jack Nicholson em Cada um Vive como Quer, Chinatown, Reds, Um Estranho
no Ninho, A Honra do Poderoso Prizzi, Laços de Ternura, A Última Missão,
sem falar de O Iluminado, Melhor é Impossível e Sem Destino.
É um exercício de capacitação para nós, escritores, avaliar nossos
protagonistas de acordo com os critérios que uma estrela aplicaria ao considerar
o papel.
Jack Nicholson interpretaria esta parte? Bradley Cooper? Denzel Washington?
Nós atrairíamos Julia Roberts? Reese Witherspoon? Jennifer Lawrence?
Nossa protagonista tem um arco de estrela? Demos a ela cenas de estrela? Ela
sofre como uma estrela? Evolui como uma estrela?
Ela é única?
É inesquecível?
68. FLASHFORWARD: ESCREVA PARA
UMA ESTRELA EM FICÇÃO

T udo que é verdadeiro para os heróis nos filmes é verdadeiro para os


protagonistas em romances.
Na verdade, nosso livro é independente – não temos que escalar um ator. Mas
o herói ou heroína de nossa obra de ficção precisa ter a mesma dimensão e
profundidade, a mesma qualidade, centralidade, arco e sofrimento de uma
estrela, como se ele ou ela fossem protagonistas em Hollywood.
Huck Finn. Emma Bovary. Capitão Ahab. Anna Karenina. Hamlet. Atticus
Finch. Holden Caulfield.
Esses são estrelas. E suas passagens, provações e triunfos são matéria de
papéis principais.
Sim, podemos tirar sarro de Hollywood e sua previsibilidade e convenções
baseadas em fórmulas. Mas os antigos magnatas (e até sua variedade
contemporânea, mitigadora de riscos, guiada pelo Twitter, dependente do grupo
focal) sabiam de algo que nós, tipos literários, esquecemos às vezes.
A história tem que ser contada.
Tem que fazer as bundas ficarem nos assentos.
E nada melhor do que ter, no centro da história, uma grande estrela fazendo
sua grande coisa de estrela.
69. O MOMENTO TUDO ESTÁ PERDIDO

C ontinuando o assunto dos heróis, vamos olhar um segundo para o momento


mais sombrio do nosso protagonista.
O Momento Tudo Está Perdido acontece próximo do final do Ato Dois de
qualquer filme. Procure por ele. Minuto 72 a minuto 78. Ele estará lá.
E não pense que Jennifer Lawrence, Scarlett Johansson, Chris Pratt e Chris
Hemsworth não vão direto nessas páginas quando eles lerem o seu roteiro.
Por que o Momento Tudo está Perdido é tão importante?
Porque quanto mais sombrio o momento do herói ou da heroína, mais
poderoso será o seu triunfo/salvação/resolução – e mais emocional será a
identificação e o envolvimento do público com ele ou ela.
No Momento Tudo Está Perdido, a Mocinha sabe, com certeza, que ela nunca
ficará com o Mocinho; o Bêbado está certo de que nunca vencerá sua
dependência do álcool; o Cara Compassivo das Nações Unidas sabe que ele não
tem a menor chance de parar o apocalipse zumbi.
A vida é assim, não é?
É por isso que nós, na plateia, nos identificamos.
Quantos Momentos Tudo Está Perdido nós mesmos tivemos?
Seu trabalho como escritor é dar ao seu herói o mais profundo, sombrio e
infernal Momento Tudo Está Perdido possível – e então encontrar uma saída
para ele.
70. O MOMENTO EPIFÂNICO

O Momento Tudo Está Perdido é seguido quase que imediatamente pela


ruptura de um insight ou epifania, um despertar para o herói, um momento
“Aha!”
A partir daí, há um impulso para o Ato Três e o clímax da história começa.
Esse momento de epifania dá combustível e define esse impulso.
Aqui está o momento de epifania no primeiro Rocky:
ROCKY
É verdade, Adrian. Eu não era ninguém. Mas isso não importa, saca? Porque
eu estava pensando, realmente não importa se eu perder essa luta. Pouco
importa se esse cara abrir a minha cabeça. Por que tudo que eu quero é terminar
a competição. Ninguém foi até o fim com Creed, e se eu puder terminar, veja, e
aquele gongo tocar e eu ainda estiver em pé, eu saberei, pela primeira vez na
minha vida, saca, que eu não era mais um vagabundo da vizinhança.
Esse é um dos momentos epifânicos mais satisfatórios e perspicazes da
história do cinema. Porque:
1) É totalmente orgânico: vem apenas do Rocky, sem nenhuma contribuição
externa.
2) Não oferece nenhuma solução mágica para o dilema de Rocky. Em vez
disso, indica que ele, nosso herói, reconhece que nenhuma resolução positiva
convencional é possível com seu dilema.
O problema do Momento Tudo Está Perdido (“Quem eu estou enganando? Eu
nunca vou vencer o campeão. Ele vai limpar o chão comigo”) não é resolvido
pela sua epifania. A luta permanece. Rocky ainda tem que entrar no ringue e
lutar com o campeão.
3) Isso traz a verdade que o herói negava até agora. Ele encara a verdade
diretamente e para de negá-la.
4) Essa verdade é dolorosa e, em um primeiro momento, parece que faz o
herói recuar. Mas também é tremendamente empoderadora, porque o herói está
com os pés no chão. Quando ele a aceita e segue adiante, está agindo com base
na realidade.
O Momento Tudo Está Perdido em Corações de Ferro aparece quando o
Sargento Don “Wardaddy” Collier (Brad Pitt) e sua tripulação do tanque,
incluindo Boyd “Bible” Swan (Shia LaBeouf) têm seu tanque inutilizado por
uma mina exatamente quando o batalhão da SS alemã é visto marchando pela
estrada em direção a eles. Os ianques decidem ficar e lutar, mesmo sabendo que
isso significará a sua morte. Dentro do tanque, a alguns momentos do confronto
fatal, a equipe divide uma garrafa de uísque.
BRAD PITT
(brinda ao tanque e à tripulação)
Melhor emprego que já tive.
A tripulação ri com um tom sombrio. Esse bordão é algo que nós na plateia
ouvimos a equipe dizer uns aos outros, com humor negro, em péssimos
momentos anteriores do filme. Pitt então passa a garrafa a LaBeouf.
SHIA LABEOUF
Melhor emprego que já tive.
Esse momento epifânico preenche os quatro pontos citados anteriormente.
Na epifania de Rocky, a plateia está fazendo uma só pergunta: “Rocky será
capaz de terminar com o campeão peso-pesado, Apollo Creed?”
Da epifania em Corações de Ferro, nós na plateia estamos imaginando só
uma coisa: “Como esses caras vão morrer e quanto estrago eles farão antes
disso?”
Um bom momento epifânico não só define as apostas e o risco para o
protagonista e o público, mas também reafirma o tema e responde à questão
“Sobre o que é esta história?”
71. DÊ UM DISCURSO BRILHANTE AO
SEU VILÃO

O ponto é, senhoras e senhores, que ganância, na ausência de uma palavra


melhor, é bom. Ganância é certo, ganância funciona. Esclarece, atravessa e
captura a essência do espírito evolutivo. Ganância em todas as suas formas –
pela vida, por dinheiro, por amor, conhecimento – marcou a ascensão da
humanidade. E ganância, guarde minhas palavras, não só salvará Teldar
Paper[53] como também outra corporação defeituosa chamada EUA.
O discurso “Ganância é bom”, de Michael Douglas/Gordon Gekko em Wall
Street, talvez seja o melhor discurso de vilão dos filmes. Tiro o chapéu para
Stanley Weiser e Oliver Stone, que o escreveram.
Um discurso clássico de vilão deve cumprir pelo menos dois objetivos:
1) Deve permitir que o/a antagonista exponha seu ponto de vista da maneira
mais clara e poderosa possível.
2) Deve ser exposto de um modo tão racional e convincente em sua lógica
que nós, o público (ou pelo menos parte dele), nos pegamos pensando: “Hmm,
este vilão é mau feito o diabo – mas temos que admitir, ele/ela tem um ponto.”
Por que um discurso brilhante do vilão é tão importante? Porque quanto maior
e mais interessante o vilão, maior e mais interessante o herói – e mais
satisfatório seu triunfo sobre o inimigo.
Quando Satã tentou Jesus no deserto, qual foi o argumento que ele usou?
Qual o exato texto do seu discurso?
Eu não sei, mas eu teria amado ouvi-lo. Você não?
72. MANTENHA A HUMANIDADE DO
VILÃO

L embre-se, o antagonista conduz o contratema. Quanto mais claro e poderoso


nós, escritores, pudermos articular isso em um discurso (ou por outros
meios puramente visuais ou não verbais), mais profundamente a audiência será
puxada para dentro da história e mais fortemente envolvidas estarão suas
emoções.
JAKE GITTES
Quanto você vale? Dez milhões?
NOAH CROSS
Uau, sim!
JAKE GITTES
Por que você está fazendo isso? O que você poderia comprar que já não pode
pagar?
NOAH CROSS
O futuro, Mr. Gittes! O futuro! Agora, onde está a garota? Quero a única filha
que me resta. Como você descobriu, Evelyn está perdida para mim há muito
tempo.
JAKE GITTES
Quem você culpa por isso? Ela?
NOAH CROSS
Eu não me culpo. Veja, Mr. Gittes, a maioria das pessoas nunca tem que
encarar o fato de que na hora certa, no lugar certo, elas não são capazes de
NADA.
Se o valor da aposta em uma história de detetive é justiça, e o detetive/herói
(Jack Nicholson na cena clássica de Robert Towne, de Chinatown, acima)
representa a busca por esse bem, então o vilão deve representar o oposto.
Mas fazer do vilão um puro monstro é trapaça. Ele deve ser reconhecida e
relacionavelmente humano. Se a nossa história quiser alcançar o poder
máximo, nós, escritores, devemos entregar para o público a arrepiante
percepção de que parte deles também acredita que ganância é bom, e que eles
também, sob certas circunstâncias, seriam capazes de performar o indizível.
73. COMO NÓS APRENDEMOS

V ocê não aprende de verdade uma arte ou habilidade na escola. No mundo


real, o processo é mais como um aprendizado, múltiplos aprendizados com
vários mestres. Isso acontece na rua e no estúdio. Acontece na cama. Acontece
sóbrio e chapado. Acontece acordando cedo e acontece virando noites.
Você muda para Los Angeles, Nova Iorque, Londres.
Faz novos amigos.
Você constrói laços em seu próprio nível, a classe dos novatos. E faz amigos
no nível dos mentores, acima de você. Você puxa saco. Trabalha de graça. Faz
coisas que ninguém mais faria.
Você trabalha sozinho ou com outros. Economiza seus trocados. Decide que
fará uma websérie, ou produzirá seu próprio filme, ou escreverá um roteiro ou
um spec. Dia Um, seu colega diz, “Qual é o nosso ventre da baleia? [54]”
“Ventre de baleia? Que merda é essa?”
É como você aprende.
Você faz aulas. Inscreve-se para um webinar. Talvez literalmente volte a
estudar e faça uma graduação. Você lê milhões de roteiros e livros sobre
roteiros. Você envia material e pessoas o criticam.
Em outras palavras, você está nas trincheiras, sendo metralhado, batendo
cabeça, sendo dispensado e ignorado. Você é invisível. É tratado com desprezo.
É explorado.
Pessoas no topo da cadeia alimentar tomam seu tempo, sua energia, seu
corpo. E você permite. Você quer que eles tomem tudo isso. É o preço que você
paga para aprender.
Eu amo programas como Project Runway ou Top Chef.[55] Você nem precisa
do som ligado. “Faça funcionar”, diz Tim Gunn.
É assim que você aprende.
Você começa com amigos que são tão falidos e perdidos quanto você. Então
alguém consegue um emprego. É a mesma coisa no ramo da música, da moda,
dança, fotografia ou do design de jogos. Aquele amigo impulsiona os outros.
Ele liga para você para uma reescrita não paga. “Você consegue para amanhã?”.
Claro que você consegue.
É assim que você aprende.
Por estar falido, você pega trabalhos que nunca pegaria se tivesse algum
orgulho, respeito próprio ou dinheiro. Eu fiz uma reescrita do filme pornô mais
desprezível de todos os tempos. Perdi uma namorada por isso.
Mas aprendi mais em quatro dias do que em um semestre na Escola de Teatro
de Yale.
Portanto, é assim que você realmente aprende:
Sozinho no seu teclado.
Sozinho no estúdio de dança.
Sozinho na câmara escura.
Tentando responder à Eterna Questão: “Por que essa porra não está
funcionando?”
Trabalho criativo pode ser um inferno, mas pode ser o paraíso também. O que
pode ser melhor que ferver seu cérebro com um problema que é exatamente o
problema que você precisa resolver para melhorar?
Nós aprendemos por incrementos. Uma palavra, uma imagem, uma parte do
código de cada vez. Uma roteirista pode ter cinquenta roteiros no armário. Ela
pode levar você a uma fala no #3 ou #17, ou a uma cena no #31, ou a todo o
Ato Dois no #47, e dizer-lhe como ela levou todo o dia, toda a semana ou todo
o mês para resolver aquele problema específico.
É assim que você aprende.
Uma questão eterna: Devo me mudar para Los Angeles se eu quero escrever
para o cinema ou TV? Devo fazer as malas para Nova Iorque se desejo
trabalhar com moda? Meu sonho é estar em filmes adultos; devo me mudar
para San Fernando Valley?[56]
Você deve.
É assim que você aprende.
74. SAYONARA , TINSELTOWN [57]

E uEstava
trabalhei sozinho por mais cinco anos como roteirista. Eu melhorei.
escrevendo coisas muito mais inteligentes do que escrevi com
Stanley e me senti melhor por ser tudo meu. Eu podia fazer isso. Eu me sentia
como um profissional. Eu era um profissional.
Então eu tive a ideia para o The Legend of Bagger Vance.[58]
A história me veio pronta. Eu podia vê-la do começo ao fim.
Só havia um problema. A ideia veio como livro, não como filme.
A versão resumida é que contei ao meu agente e ele me demitiu. Ele me disse
que não podia se dar ao luxo de me esperar enquanto eu saía para satisfazer
minhas fantasias literárias.
Tomei outra decisão.
Foda-se meu agente.
Eu vou escrever o livro.
LIVRO QUATRO – FICÇÃO: A SEGUNDA
VEZ
75. COMO A CARREIRA TOMA FORMA

M euvidaamigo David Leddick costuma dizer que você nunca pode planejar sua
porque inúmeros imprevistos surgem. “Você conhece alguém e
termina morando em outro país, falando outro idioma.”
Ainda assim...
Ainda assim, o arco de uma carreira não é totalmente aleatório ou moldado
por fatores além da sua compreensão ou controle. Eu senti a vida toda que
estava em um processo e sendo guiado, mesmo que não soubesse exatamente
pelo quê.
Comecei Bagger Vance com um receio enorme. Será que eu falharia de novo,
como todas as outras vezes que tentei escrever algo com mais de 120 páginas?
O que era diferente desta vez? Eu tinha aprendido alguma coisa?
Para o meu espanto, a história jorrou de mim. Claro que eu estava certo de
que ninguém estaria interessado nela. Uma história de golfe? Com dimensões
místicas? Faça-me o favor.
Mas eu não me importei. Estava possuído.
Quando prosperei, quatro anos depois, eu tinha terminado e publicado no
mais alto nível profissional três sucessos consecutivos – The Legend of the
Bagger Vance, Portões de Fogo e Tempos de Guerra, este com 120.000
palavras, narrando todos os sete anos da Guerra do Peloponeso.
Que porra é essa?
O que aconteceu?
76. MEU SUCESSO REPENTINO

T enho cinquenta e um anos e meu primeiro romance está sendo publicado.


Foi fácil. Por quê?
Porque escrevendo aquela obra, eu estava trazendo para o campo da ficção
todos os princípios que havia aprendido em vinte e sete anos trabalhando como
escritor em outras áreas, ou seja, escrevendo anúncios, filmes, ficção
impublicável...
1) Todo trabalho deve ser sobre algo. Deve ter um tema.
2) Todo trabalho deve ter um conceito, ou seja, uma visão, um viés ou
dispositivo de enquadramento únicos.
3) Todo trabalho deve começar com um Incidente Incitante.
4) Todo trabalho deve ser dividido em três atos (ou sete, oito ou nove
sequências de David Lean[59]).
5) Toda personagem deve representar algo maior que ela mesma.
6) O protagonista encarna o tema.
7) O antagonista personifica o contratema.
8) O protagonista e o antagonista entram em conflito no clímax, em torno da
questão do tema.
9) O clímax resolve o conflito entre tema e contratema.
Eu tinha adquirido essas habilidades de narrativa.
Mas outras capacidades que eu também tinha adquirido nos vinte e sete anos
anteriores foram ainda mais importantes.
Essas foram as habilidades necessárias para me conduzir como profissional –
as capacidades internas de gerir suas emoções, expectativas (suas e do mundo)
e o seu tempo.
1) Como começar um projeto.
2) Como continuar adiante em um meio horrível.
3) Como terminar.
4) Como lidar com a rejeição.
5) Como lidar com o sucesso.
6) Como receber notas editoriais.
7) Como falhar e continuar tentando.
8) Como falhar de novo e continuar tentando.
9) Como se automotivar, autovalidar, autofortalecer.
10) Como acreditar em você mesmo quando ninguém mais no planeta
acredita.
Então, o que nós aprendemos sobre escrever ficção desta vez?
77. FICÇÃO É REALIDADE

E uTampouco
nunca escrevi nada bom até parar de tentar escrever a realidade.
tive alguma diversão de verdade.
A realidade não é a realidade.
Ficção é a realidade.
O senso comum é “Escreva o que você conhece”. Mas algo misterioso e
maravilhoso acontece quando escrevemos o que não conhecemos. A Musa
entra na arena. Coisas saem de nós de lugares muito profundos.
De onde isso vem? Do “inconsciente”? Da “área de aprendizado”?
Eu não sei.
Mas eu tive a mesma experiência várias e várias vezes. Quando eu escrevo
algo que realmente aconteceu, as pessoas leem e dizem “isso parece mentira”.
Quando eu puxo algo completamente do nada, eu ouço “Uau, isso foi tão
real!”
78. FLASHFORWARD: NÃO FICÇÃO É
FICÇÃO

Q uando você trabalha com fatos, trate-os como ficção.


Escreva seu livro de não ficção como se fosse um romance. Não quero
dizer invente coisas. Isso é proibido. Quero dizer dê a ele um Ato Um, Dois e
Três. Faça-o coerente com um tema.
Dê-lhe um herói e faça-o encarnar o tema.
Dê-lhe um vilão e faça-o representar o contratema.
Faça a narrativa escalar até um clímax e faça esse clímax resolver o conflito
da narrativa em termos de tema.
Assim como estou escrevendo este livro que você está lendo agora, que não
tem história nem personagens, estou construindo-o como se fosse ficção, de
acordo com as convenções de um romance.
79. DISPOSITIVO NARRATIVO

E stamos em Monroeville, Alabama, você e eu, assistindo a Harper Lee


sozinha em sua máquina de escrever assim que ela senta para começar O
Sol é para Todos. “Como eu conto esta história?”, pergunta-se a Senhora Lee.
“Escrevo em terceira pessoa, como narrador onisciente? Ou eu deveria ter
Atticus narrando em primeira pessoa? Funcionaria se Tom Robinson contasse a
história? Bob Ewell? Boo Radley? Oh, meu Deus. Scout!”
A ruptura de Philip Roth em O Complexo de Portnoy foi Portnoy contar a
história – e fazer isso em um livro do tamanho de um monólogo, como se
estivéssemos em uma sessão com seu psiquiatra.
Johnny Depp encontrou a voz para o Capitão Jack Sparrow quando decidiu
interpretar o papel como se ele fosse o Keith Richards[60].
O dispositivo narrativo faz quatro perguntas:
1) Quem conta a história? Pelos olhos de quem (ou de que ponto de vista) nós
vemos os personagens e a ação?
2) Como ele/ela narra? Em tempo real? Em memórias? Em uma série de
cartas? Como uma voz do além?
3) Qual o tom empregado pelo narrador? Confuso como Mark Watney em
Perdido em Marte? Irônico e sábio como Binx Bolling em The Moviegoer[61]?
Melancólico como Karen Blixen/Isak Dinesen em Entre Dois Amores?
4) Para quem a história é contada? Diretamente para nós, leitores? Para outro
personagem? Nosso serial killer deve se dirigir ao detetive que acabou de
prendê-lo? À sua santa mãe, que acredita que ele é inocente? Ao júri que está
prestes a sentenciá-lo à cadeira elétrica?
Essas questões são “ou vai ou racha”. Se tivermos nosso dispositivo narrativo
correto, a história se contará por si só.
Este é um princípio que me ajudou: o dispositivo narrativo deve trabalhar no
tema.
O Sol é para Todos é uma história de decência e ação honrosa tomada frente à
assustadora, e até mesmo terrível, adversidade. Seu herói, Atticus Finch,
encarna o ideal de masculinidade americano, como Daniel Boone, Abe Lincoln
ou qualquer personagem interpretado no cinema por Gary Cooper ou Jimmy
Stewart, em que ele não tem pedigree; entra em cena sem escolta, sem
comitiva; passa pela sua provação de honra em uma arena longe da multidão e
prova seu valor diante de um número modesto de pessoas, e destas, é apreciado,
ou mesmo entendido por muito, muito poucas.
Scout é perfeita como dispositivo narrativo porque nós, leitores, estamos
destinados a ver Atticus pelos olhos de sua filha, que o adora. E essa filha não é
a Scout no momento, não é a Scout de 6 a 9 anos que ela é nos eventos do livro,
mas é a Scout como mulher adulta, amadurecida pela sua própria tristeza,
relembrando e refletindo sobre a história a uma distância de quilômetros e anos.
O dispositivo narrativo encarna o tema.
Praticamente por si só, produz sucesso para O Sol é para Todos, assim como
para Crime e Castigo, O Sol Também se Levanta ou A Ilíada.
80. ROMANCES SÃO SOBRE LONGO
PRAZO

U m romance pode levar dois anos para ser escrito. Ou três, quatro, cinco.
Você pode fazer isso?
Você pode se sustentar financeiramente? Emocionalmente?
Seu cônjuge e filhos podem lidar com isso?
Você consegue manter sua motivação por esse período de tempo? Sua
autoconfiança? Sua sanidade?
Se necessário, você consegue abandonar seus primeiros dezoito meses de
trabalho e começar do zero?
81. ROMANCES SÃO SOBRE IMERSÃO

E screver um romance é uma aventura. Realmente é.


Tiro meu chapéu para qualquer um que embarca nessa jornada e a vê até o
final, porque é um divisor de águas. Você não pode escrever 290 páginas, ou
380, ou 976, e não deixar que isso o altere.
Um romance é muito longo para ser organizado de modo eficiente como um
roteiro. Não existem fichas pautadas 3x5 suficientes no mundo.
Muita merda acontece.
Novos personagens aparecem. Novas ideias surgem. A história inteira pode
ser desviada pela aparição do Mr. Micawber[62], do fantasma de Hamlet ou do
Ursinho Pooh.
Um romance é tipo uma viagem de ácido. Nos primeiros quarenta e nove
minutos você está pensando “Hmm, isso não é tão intenso, eu posso lidar”.
Então você olha para suas mãos e há chamas saindo delas.
82. ROMANCES SÃO PERIGOSOS

E screver um romance não é para os de coração fraco.


Considere no que você está se metendo: um cerco de dois-a-três-anos, sem
validação externa ou reforço, sem pagamento e sem rotina além daquela que
você mesmo se impuser.
Apoio de amigos e da família? Discutível. Recompensas futuras? Incertas, na
melhor das hipóteses. E nem estamos falando sobre o trabalho.
Sua pessoa amada entenderá? O melhor conselho para o cônjuge de um
romancista é sentar, servir-se de um conhaque forte e certificar-se, com seu
coração, de que essa é a nave na qual você está realmente pronto para embarcar.
Confie em mim, ninguém consegue escrever um romance sem ficar
completamente imerso nele. Você tem que fazer isso ou não poderá continuar.
Pense como isso é doido.
Você, o escritor, está tendo conversas todo dia (e toda noite) com personas
que não existem. Aqueles com quem você passa cada hora de trabalho e com
quem você se preocupa mais apaixonadamente não possuem realidade
corpórea. Você é como Walter Pidgeon[63] duelando com os Monstros do Id em
Planeta Proibido (se você ainda não viu, procure nos serviços de streaming).
Você entrou em um reino cujas dimensões e profundidades são conhecidas só
por você. Você pode tentar envolver seu cônjuge, claro, mas aquele olhar
vítreo, quase em pânico, nos olhos dele/dela é real. Ele/ela acaba de perceber
que estão ligados para sempre com uma pessoa que não conhecem.
Uma das coisas mais esquisitas do mundo é olhar no espelho (e eu quero dizer
realmente olhar) quando você está na agonia de escrever um romance.
Você sequer se reconhece.
Você está lidando com a Musa agora. Você está no território dela. Ela te
domina.
Você cedeu a sua autonomia psíquica a forças baseadas em uma dimensão
diferente da realidade. Isso é a Legião Estrangeira[64], baby, e não estou falando
da França.
É uma correria. É adrenalina. Mas também pode espantar a merda toda de
você.
Não estou brincando quando digo que seu mais próximo e provavelmente
único confidente seja seu gato, cachorro ou peixe dourado. Eles tampouco
entendem você, mas pelo menos não são a mãe ou pai dos seus filhos.
Por que tantos romancistas se tornam bêbados ou viciados?
Por que tantos tiram a própria vida?
Você está brincando com dinamite quando digita:
CAPÍTULO UM.
83. DUELO COM O MONSTRO

C omo nós lidamos com a quantidade de tempo e o grau de dedicação


necessários para completar qualquer projeto de longo prazo?
Os próximos capítulos detalham princípios que funcionaram para mim.
84. PENSE EM BLOCOS DE TEMPO

E screver um romance é tipo cruzar o continente em uma carroça coberta.


Você, o pioneiro, deve dominar a arte da gratificação tardia. Você tem que
quebrar a jornada na sua mente em minijornadas cujas distância e demandas
sua sanidade precisa aguentar.
Você consegue fazer um primeiro rascunho em três meses?
Muito assustador? Que tal um esboço em três semanas?
Ainda muito assustador? Talvez um esboço do esboço em sete dias?
Lembre-se, o inimigo em um empreendimento de resistência não é o tempo.
O inimigo é a Resistência.
A Resistência sempre usará o tempo contra você. Ela o intimidará com a
magnitude da tarefa e a massa de dias, semanas e meses necessários para
completá-la.
Mas quando pensamos em blocos de tempo, adquirimos paciência. Nós
quebramos essa jornada transcontinental esmagadora em trânsitos diários ou
semanais viáveis. Dirigir nossa carroça Conestoga[65] três mil quilômetros de
Independence, Missouri, até Oregon City, Oregon? Nem fodendo!
Mas podemos chegar a Topeka em dez dias, e de lá a Fort Riley em mais
doze.
85. PENSE EM VÁRIOS RASCUNHOS

E udosfareiescritores
entre dez e quinze rascunhos de cada livro que escrever. A maioria
farão.
Isso é positivo, não negativo.
Se eu estragar o Rascunho #1, ataco de novo no Rascunho #2. Invocarei a
regra de Jack “Top Gun” Epps[66]:
Você não pode arrumar tudo em um rascunho.
Pensar em vários rascunhos tira a pressão. Não estamos tentando erguer Roma
em um dia.
Pensar em vários rascunhos é o resultado de pensar em blocos de tempo. Se
sabemos que vamos fazer quinze rascunhos antes de terminar, não entramos em
pânico quando o Rascunho #6 ainda é uma bagunça.
“Relaxe, ainda temos mais nove tentativas para fazer isso funcionar”. A coisa
boa sobre escrever (ao contrário de escalar o monte Evereste, ou criar filhos, ou
ir para a guerra) é que o trabalho fica como o deixamos.
O que fizemos ontem fica intacto na página, e podemos repensá-lo, revisá-lo,
trabalhar nele novamente amanhã.
86. ENTREGUE-SE AO MATERIAL

U mestrutura.
roteiro, como já dissemos, pode ser controlado. Podemos eliminar a
Podemos rabiscar sessenta cenas em fichas pautadas 3X5 e
pendurá-las na parede. Podemos ter a coisa toda na cabeça. Podemos vê-lo
inteiro.
Mas um romance é muito grande para isso. Séries de TV com várias
temporadas, como Homeland ou The Walking Dead, são muito grandes para
isso.
Grandes ficções têm vários personagens, muitas reviravoltas, muitas
descobertas fortuitas pelo caminho.
Você precisa render-se ao material.
Você precisa se pôr a serviço da ideia.
Se existe uma alegria em escrever (e existe), para mim, é isso.
Quando eu tinha 29 anos, como disse antes, mudei-me de Nova Iorque para
Carmell Valley, Califórnia, com dinheiro suficiente (economizado durante o
trabalho com publicidade) para alugar uma pequena casa e dedicar um ano a
terminar o romance. Sem TV, sem música, sem sexo. Não fiz nada a não ser
escrever o dia todo e ler a noite toda.
Havia dois seres vivos naquela casa – eu e o material.
Foi uma luta na jaula até a morte.
Mas, ao mesmo tempo, foi um caso de amor.
Você pode lutar com o material, pode amaldiçoá-lo, chutá-lo com seus joelhos
ou roê-lo com seus dentes, mas, cedo ou tarde, você não tem escolha a não ser
render-se a ele.
Como artistas, você e eu estamos lutando todos os dias para dominar o
material, para moldá-lo em um todo coesivo com começo, meio e fim. Mas, ao
mesmo tempo, a entidade “inacabado” nos desafia. É uma coisa viva, com seu
próprio poder e destino. Ela “quer” ser algo.
Nosso trabalho é descobrir o que é esse algo – e ajudá-la a se tornar isso.
87. DOMINE O MATERIAL

Q uando você se rende à saga da Rainha Boudica do início da Grã-Bretanha,


você se debruça sobre o material histórico com o objetivo de encontrar
aquela história, aquela versão encoberta da verdade que ressoa com sua própria
alma pessoal, peculiar, idiossincrática. É uma história de amor? Uma história
de redenção? Um hino vigoroso, grande, patriota?
Mas uma vez que você encontrou a história, você precisa vencê-la.
Como?
Recorrendo aos princípios da narrativa e convenções do gênero. Você tem que
domar sua história, domesticá-la. Tem que torná-la apta para o consumo
humano.
Autoindulgência “escritiva” termina aqui. Agora, nós devemos servir o leitor.
88. O QUE O ROTEIRISTA ENSINOU À
ROMANCISTA

A romancista tem muitas ferramentas e truques que o roteirista não tem.


A romancista pode escrever um livro inteiro composto de nada além de
cartas de amor. Pode escrever um livro que é todo de receitas.
Ela pode divagar. Pode sair pela tangente. O imperativo rígido, guiado pelo
ímpeto dos noventa minutos do filme, não se aplica a ela. Ela tem tempo.
Explicação? Passado? Ela pode simplesmente contá-los a nós, com sua própria
voz ou uma das de seus personagens. Pode levar-nos para dentro da cabeça
deles (tudo isso são coisas que o roteirista não pode fazer). Pode nos dizer o
que os personagens estão pensando, ou deixar que eles mesmos nos contem ou
mostrem.
E ela pode usar seu domínio da linguagem. Pode enfeitiçar-nos com a
genialidade da sua prosa. Pode nos seduzir com o charme da sua voz ou com a
de seu narrador. Ela não é acorrentada como o roteirista de um filme, que só é
capaz de mostrar um personagem, e mesmo a narrativa, pelo lado de fora.
Essas são as vantagens que a romancista possui.
Mas seu colega de Tinseltown, roteirista de filmes ou TV, aprendeu um truque
que a romancista pode não conhecer.
Ele aprendeu a usar a estrutura.
William Goldman, em Adventures in the Screen Trade[67], declarou
abertamente que roteiros são estruturas.
Ele estava certo.
O que faz a cena final de Perdido em Marte funcionar (ou o episódio final de
Downton Abbey, ou a cena em que o gatinho encontra Orson Welles na entrada
em O Terceiro Homem) é a estrutura.
O que vem antes constrói o que vem em seguida. O momento rende devido ao
que o escritor definiu na Cena 4, Cena 19 e Cena 41.
Isso o roteirista pode controlar.
A romancista pode controlar isso também.
Às vezes, escritores que começam suas carreiras trabalhando com ficção
literária ou narrativa de não ficção passam a depender tanto do seu domínio da
linguagem e outras habilidades do comércio das palavras-no-papel que acabam
falhando em explorar completamente o poder da estrutura.
Roteiristas pensam em estrutura porque é uma das poucas ferramentas que
eles têm.
Roteiristas começam pelo final. Eles solucionam o clímax da história
primeiro. Então, trabalham de trás para a frente. Eles colocam em camadas todo
o material básico de que o clímax precisa para dar seu golpe temático e
emocional.
Essa é uma poderosa habilidade quando você passa a começar a suas coisas
com
CAPÍTULO UM
em vez de
FADE IN.[68]
89. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM UM
CONCEITO

V amos voltar por um momento aos nossos dias no ramo da publicidade.


Uma campanha publicitária, nós aprendemos então, deve ter um conceito.
Como isso se aplica à ficção? O que isso significa?
Significa que não podemos contar a história da vida da nossa tataravó só
porque ela atravessou Oklahoma em um carroção e quase foi escalpelada pelos
Comanches.[69]
Não podemos simplesmente narrar um relato de nossas duas viagens ao
Afeganistão.
Por que não?
Por que ninguém quer ler suas m*rdas.
Não podemos dar minério para nossos leitores. Devemos dar ouro a eles.
Herman Melville foi para o mar caçar baleias. Ernest Hemingway dirigiu uma
ambulância na Primeira Guerra. Mas o conceito de Moby Dick não é “Xô te
contar o que aconteceu quando fui caçar baleias”. E o conceito de O Sol
Também se Levanta não é “Tivemos um momento difícil na guerra”.
Lembre-se, um conceito é uma volta ou uma reviravolta, um enquadramento
único e original do material.
O conceito de O Grande Lebowski é “Vamos pegar o gênero de Private Eye
Story[70], mas fazer de nosso herói não um detetive amargurado, mas um doce,
amável cara chapado.
O conceito de As Aventuras de Huckleberry Finn é “Vamos satirizar o
racismo feroz, brutal e mesquinho do Sul pré-Guerra Civil contando uma
história de amizade verdadeira entre um garoto branco e um escravo fugitivo
através do irônico vernáculo (mesmo que ele não saiba disso) cracker[71] do
garoto.
Um grande conceito dá a cada palavra e cena um giro interessante,
esclarecedor. Transforma um material comum e muito usado em algo novo.
O conceito de O Sol Também se Levanta é “Vamos descrever a devastação
causada em toda uma geração pela Primeira Guerra Mundial, não contando
uma história de guerra, mas sim uma história de pós-guerra”.
Seu romance tem um conceito?
Mad Men tem um conceito. House of Cards tem um conceito. Breaking Bad
tem um conceito.
Assim como Dom Quixote, As Correções e Graça Infinita.
Seu romance tem um conceito?
90. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM
QUE SER SOBRE ALGO

N ósemestamos aplicando princípios agora que aprendemos em publicidade e


Hollywood.
Estamos falando de tema.
Tema é sobre o que é a história.
Tema não é o mesmo que conceito.
Um conceito é externo. Ele concebe o material e nos faz olhar para cada
elemento dele de um ponto de vista específico.
Um tema é interno. Quando removemos todos os elementos do enredo, os
personagens e diálogos, o que sobra é o tema.
O conceito de Os Sopranos é “Vamos pegar um mafioso e mandá-lo a um
psiquiatra. Quando ele agride alguém, se sente culpado. Mostraremos um chefe
da máfia sofrendo internamente”.
É um conceito excelente. Além de Máfia no Divã, que tratou essa ideia de
outra maneira, isso nunca tinha sido feito antes.
Esse é o conceito de Os Sopranos.
O tema é “Todos nós somos loucos de alguma maneira. O tormento interno de
um mafioso é o mesmo que o de cada suburbano rico com uma família e um
emprego. A única diferença é que nosso protagonista mata pessoas
regularmente”.
É possível para mim e para você escrever um romance de mil páginas e não
ter ideia do tema. Fiz isso mais de uma vez.
Mas se não podemos articulá-lo, temos que ter um instinto inconsciente
robusto de qual é.
Desde o primeiro dia em que começo a pensar sobre uma ideia para um
romance, eu me pergunto “Sobre o que é essa porra?”
Quando eu posso responder a isso, tenho a chave para cada cena e cada
capítulo.
91. FLASHBACK: UM ROMANCE TEM
QUE TER UM HERÓI

E mprazer),
algum lugar dos anos 1990, eu estava lendo História, de Heródoto (por
quando encontrei esta passagem:
“Se bem que todos os lacedemônios e téspios se tivessem conduzido com
grande bravura, dizem que Dieneces, de Esparta, a todos suplantou pelo seu
valor e desprendimento na luta, citando-se dele uma frase memorável. Antes da
batalha, tendo ouvido um traquínio dizer que o sol seria obscurecido pelas
flechas dos bárbaros, tão grande era o número deles, respondeu-lhe sem
perturbar-se: “Nosso hóspede da Traquínia nos anuncia toda sorte de vantagens.
Se os medos cobrirem o sol, combateremos à sombra, sem ficarmos expostos
ao seu ardor ”.[72]
Isso foi a gênese de Portões de Fogo. Eu soube instantaneamente que havia
achado meu herói e que dele e desta breve passagem fluiriam conceito, tema,
ponto de vista, dispositivo narrativo, vilão, estrutura em três atos e
conflito/clímax/resolução.
Eu só tinha que fazer o que havia aprendido trabalhando no cinema.
Escreva para uma estrela.
92. ESCREVA PARA UMA ESTRELA EM
FICÇÃO

S eescalar
nós estivéssemos fazendo um filme, poderíamos trapacear e simplesmente
uma estrela.
Não podemos fazer isso em um romance. Nós temos que criar a estrela.
Mas como?
Considere Huck Finn.
Huck é um papel de estrela por definição. Mas o que o faz ser?
Resposta: o tema e o conceito da obra em geral.
Para fazer do protagonista uma estrela, faça do tema e do conceito estrelas
O conceito de Mark Twain para As Aventuras de Huck Finn foi atacar a
questão do racismo contando a história da amizade entre um garoto caipira do
Missouri e um escravo fugitivo pelos olhos do menino – um analfabeto, mas
decente e com um grande coração, cuja cultura regional o havia condicionado a
ser reflexivo e inflexivelmente racista.
Se isso não é um conceito brilhante, eu não sei o que é.
Conforme Huck e Jim se aproximam por meio de várias aventuras juntos e
Huck começa a entender em seu coração o amigo leal que Jim é, além de
corajoso, honrado e nobre, mais culpado Huck se sente.
Sua educação sulista de 1840, que ele vê como “apropriada” e “boa”, o
instruiu, sob pena de danação eterna, que ele não deve ser amigo de Jim, não
protegê-lo e certamente não ajudá-lo a fugir.
No clímax moral da história, Huck pega o bilhete que ele havia acabado de
escrever a Miss Watson, que tornaria Jim um fugitivo:
Era um lugar próximo. Eu peguei [a carta] e a segurei em minhas mãos. Eu
estava tremendo, pois tinha que decidir, para sempre, entre duas coisas, e eu
sabia disso. Ponderei por um minuto, meio que segurando a respiração, e então
disse a mim mesmo: Certo, então, irei para o inferno” – e a rasguei.
Em outras palavras, o poder de estrela do papel de Huck Finn vem da
dimensão e do peso moral do conceito e tema do livro.
Huck é o protagonista. Ele encarna o tema. É a personificação do tema.
Devido ao tema ser profundo e poderoso, e o conceito brilhante e efetivo,
Huck, como seu veículo humano, é repleto de emoção, poder e autoridade
moral.
Ele é uma estrela.
Ou seja, o poder do protagonista deriva diretamente do poder do tema e do
conceito.
Quem se importa se nós, romancistas, não temos o luxo de escalar George
Clooney ou Cate Blanchett?
Nós podemos criar um papel principal escrevendo-o. Escreva Moby Dick e
teremos Ahab.
Escreva Crime e Castigo e teremos Ralkolnikov.
Escreva O Apanhador no Campo de Centeio e teremos Holden Caulfield.
LIVRO CINCO – NÃO FICÇÃO
93. NÃO FICÇÃO É FICÇÃO, PARTE DOIS

O primeiro trabalho de não ficção que escrevi foi A Guerra da Arte. A


primeira narrativa de não ficção foi A Porta dos Leões: nas linhas de frente
da Guerra dos Seis Dias.
Nenhum deles tinha personagens que podiam ser manipulados como os da
ficção. Nenhum possuía uma narrativa óbvia, nem um herói ou vilão, um
Incidente Incitante, um Momento Tudo está Perdido, uma estrutura em três
atos, nem conflito/clímax/resolução imediatamente aparentes.
Ainda assim, escrevi ambos como se eles tivessem, e funcionou.
É isso que quero dizer com não ficção é ficção.
Se você quer que sua história baseada em fatos reais, autobiografia, proposta
de financiamento, dissertação ou TED talk[73] sejam poderosos e envolventes e
prendam a atenção do público, você precisa organizar o seu material (mesmo
que tecnicamente não seja uma história e não ficção) como se fosse uma
história e ficção.
94. UMA NÃO HISTÓRIA É UMA
HISTÓRIA

O que é exatamente uma história?


Como – uma pergunta razoável possível – eu posso pegar minha
dissertação de mestrado em metafísica do heterogêneo na obra de Joseph
Conrad, ou meu discurso da aula de jardinagem sobre preparação do solo de
inverno para gerânios, e transformá-los em uma narrativa?
Confie em mim, você pode.
Vamos começar revisando os princípios universais da narrativa (isso é
realmente a essência de tudo o que aprendemos até aqui por meio da
publicidade, ficção e cinema).
1) Toda história deve ter um conceito. Ele deve inserir uma volta, reviravolta
ou dispositivo de enquadramento únicos no material.
2) Toda história deve ser sobre algo. Ela precisa ter um tema.
3) Toda história deve ter começo, meio e fim. Ato Um, Ato Dois, Ato Três.
4) Toda história deve ter um herói.
5) Toda história deve ter um vilão.
6) Toda história deve começar com um Incidente Incitante, embutido no
clímax da história.
7) Toda história deve escalar pelo Ato Dois em termos de energia, apostas,
complicação e sentido conforme ele progride.
8) Toda história deve construir um clímax ao redor do conflito entre o herói e
o vilão que faça o desfecho de tudo o que veio antes e do tema.
Não há nada nesses princípios que não possa ser aplicado a não ficção,
incluindo sua apresentação sobre gerânios na aula de jardinagem.
95. UMA NÃO HISTÓRIA É UMA
HISTÓRIA, PARTE DOIS

V amos dividir esses princípios a seguir em algo um pouco mais palatável.


Quais são os elementos universais da estrutura de todas as histórias?
Gancho
Desenvolvimento
Desfecho
Esse é o formato que qualquer história deve ter.
Um começo que prenda o ouvinte.
Um meio que progrida em termos de tensão, suspense, apostas e excitação.
E um final que traga tudo isso para casa com uma explosão.
Isso é um romance, é uma peça, é um filme. Isso é uma piada, um flerte, uma
campanha militar.
Também é seu TED talk, seu argumento de venda, sua dissertação de
mestrado, e a verdadeira saga da vida da sua tataravó, em 890 páginas.
96. COMO ESCREVER UMA BIOGRAFIA
CHATA

S uafotostataravó atravessou a pradaria em uma carroça Conestoga. Você tem


dela, que parecia bastante com a Julia Roberts. Vovó Julia lutou contra
guerrilheiros e saqueadores Comanches.[74] Ela deu à luz na estrada. A
gêmeos. Ao todo, ela criou onze filhos, enterrou três maridos, viveu até os 106
anos e foi eleita prefeita de Pocatello, Idaho, duas vezes.
Ok. Vamos pegar essa ótima história e arruiná-la majestosamente.
1) Começaremos com o nascimento de Vovó Julia.
2) Continue pela sua infância e educação.
3) Inclua o período da carroça Conestoga.
4) Descreva seus vários casamentos, suas experiências com a criação dos
filhos, sua carreira política.
5) Termine com Vovó Julia falecendo em uma casa de repouso em Mar Vista,
Califórnia, cercada pela sua amorosa família.
ZzZzZzZzZz.
O que fizemos de errado? Nós contamos a história, certo? Colocamos cada
detalhe nela. Por que até mesmo os mais admiráveis descendentes de Vovó
Julia pegam no sono quando leem nossas páginas?
O que fizemos de errado foi violar as regras da narrativa.
97. APLICANDO OS PRINCÍPIOS DA
NARRATIVA A NÃO FICÇÃO

C omece com o tema.


Antes que façamos qualquer outra coisa, vamos decidir sobre o que é a
história.
O que significa a vida de Vovó Julia?
Sua história é sobre empoderamento feminino? É sobre o arquicrime do
homem branco de aniquilar indígenas e a cultura nativa americana? É sobre
algo específico da família dela? Uma briga entre homem-mulher, talvez com o
pai ou um marido? Um grande amor? É algo religioso? Pessoal? Político?
Temos que trabalhar duro aqui.
Esta é a mais difícil e importante parte do projeto.
Por que queremos escrever sobre esse assunto? O que nos pega na história de
Vovó Julia? Queremos apenas nos gabar sobre nossa família? Ou há alguma
questão enterrada aqui que cremos ser poderosa, convincente, significativa?
Encontre essa questão.
Decomponha-a em uma única frase.
Vou ajudar você. Vamos escolher um tema arbitrariamente, para fins de
ilustração.
Digamos que a história da Vovó Julia é sobre o Destino Manifesto. O sonho
de uma geração de fazer uma vida melhor indo para o Oeste.
Isso é bom.
Isso é grande. Isso progride. É muito americano, mas também soa como
qualquer outro grande épico de escala continental/histórica. Poderia ser Terra
dos Deuses. Poderia ser Reds. Poderia ser Doutor Jivago.
Vovó Julia sofreu. Perdeu maridos, filhos. Ela perdeu sua juventude, sua
beleza. Começou doce e inocente; terminou grisalha e durona. Ela prevaleceu.
Viveu para ver seus netos estabelecidos, prósperos. Mas pagou um preço
terrível.
Estamos chegando perto.
A história é sobre... o quê?
O preço humano de um grande, visionário, sonho nacional.
Agora sim.
Agora temos algo.
Não só “temos algo” em termos de um tema convincente para a história, mas,
se estivermos certos, apontamos o dedo para o verdadeiro sentido e
significância não só da vida de Vovó Julia, mas também das vidas de milhões
como ela, nos EUA e no mundo, e não só em sua época, mas em todas as
épocas e lugares.
98. FAÇA NOSSO HERÓI ENCARNAR O
TEMA

N ós já fizemos isso sem que você nem se desse conta.


Deixamos que o tema surgisse da história de Vovó Julia sozinho.
99. CORTE TUDO QUE NÃO ESTÁ
DENTRO DO TEMA

O que sobrar, apresente como dentro do tema.


Quando escrevemos sobre a juventude da Vovó Julia passando fome em
Boston, depois daquela travessia infernal do mar da Irlanda, quando relatamos
seu sofrimento, a perda do primeiro marido morto em uma epidemia de tifo, do
seu próprio embrutecimento nas mãos daqueles que tiravam vantagem dos
imigrantes. Quando escrevemos sobre isso, colocamos tudo no contexto do
Sonho do Oeste.
As angústias de Julia no Leste servem como estrutura e motivação para a
decisão perigosa e desesperada de aventurar-se no Oeste rumo ao
desconhecido.
Corte tudo que não está dentro do tema.
E o que você mantiver, faça funcionar dentro do tema.
100. IDENTIFIQUE O CLÍMAX

A gora, estamos seguindo o axioma dos roteiristas de “começar pelo fim”.


Qual, nos perguntamos, é o clímax da história de Vovó Julia? Para que
cena ou sequência a saga toda se constrói? (Lembre-se, ela não precisa ser a
última cronologicamente). Novamente, com fins de ilustração, vamos escolher
algo arbitrariamente.
Um rio cruzando o Oeste em algum lugar.
No inverno.
Com um ataque dos Comanches.
Em algum lugar, cruzando o continente, o comboio de carroças encontra seu
teste final. Um rio congelado, inimigos atacando, cavalos e carroças afundando.
Vovô Seth (amado segundo marido de Julia) é atingido e escalpelado diante dos
olhos dela. Metade do comboio é massacrado. Julia tem que sacrificar Anne,
sua filha de seis anos, deixando a correnteza do rio levá-la, para salvar os
outros dois meninos e duas meninas.
Em outras palavras, a cena em que Vovó Julia paga o preço final que uma mãe
pode pagar em nome do Sonho do Oeste de uma vida melhor para sua família.
Esse é o nosso clímax.
Esse é o cerne da história de Júlia.
É excelente não só pela visceral, comovente, heroica e trágica qualidade do
momento, mas também porque está REALMENTE dentro do tema.
Consegue perceber como nós, como escritores, tendo decidido nada mais que
o tema e o clímax, já podemos dizer que temos uma história sensacional?
E, melhor ainda, uma história que não apenas é específica para a narrativa
pessoal de Vovó Julia, mas também é universal para toda uma geração, e para
uma nação, geração após geração?
101. SOLUCIONE O CLIMAX
ESTRUTURALMENTE

C omo nós estruturamos a história de Vovó Julia de modo a guardar a cena da


travessia do rio para o final?
Provavelmente, não podemos.
Esse momento é muito importante para pulá-lo ou guardá-lo. Temos que
posicioná-lo no fluxo cronológico, provavelmente três quartos do caminho da
biografia.
Mas podemos usar outras técnicas estruturais para trazê-lo de volta no final.
Podemos “passar” a cena como um teaser ou um flashback recorrente na
memória de Julia. Isso pode assombrá-la, atormentá-la. Os últimos quarenta
anos de sua vida podem ser moldados pela busca de autoperdão, de
autoentendimento.
Melhor ainda, podemos trazer Vovó Julia de volta naquele rio atualmente e
fazer disso o clímax da nossa história.
E se ela retornasse, quatro décadas depois daquele massacre, acompanhada
das crianças que ela salvou?
Uma moderna ponte jaz sobre a travessia agora. Julia viaja em um carro
último modelo. O sol está brilhando. Pequenas cidades apinham-se em ambas
as margens (ou seja, o Sonho do Oeste realizou-se). A travessia do rio parece
irreconhecível devido à forma como apareceu no dia da matança.
Mas na memória de Vovó Julia – e na nossa, os leitores – permanece o horror
daquele momento terrível. A culpa de Julia. Sua angústia. Sua luta de quarenta
anos para ficar em paz com o que fez.
Ela vê uma placa marcando o vau do rio. O local é chamado “Travessia
Comanche”. Ou talvez tenha sido nomeado depois da conquista das carroças.
Ou mesmo depois do marido Seth, que pereceu lá junto à filha de seis anos
Annie.
Estruturar a narrativa desta forma nos dá algo ainda melhor que o clímax do
massacre em tempo real. Isso nos dá aquele momento da consumação do tema
na memória de Julia.
Observe, por favor, que não violamos fatos históricos nesta versão. Na
verdade, temos sido mais fiéis aos acontecimentos reais, ao seu espírito, do que
se tivéssemos simplesmente contado a história em ordem cronológica direta.
Agora, continue aplicando os princípios da narrativa ao restante da história de
Vovó Julia.
Identifique o vilão (lembre-se, ele pode estar dentro da cabeça de Julia).
Divida a narrativa em três atos etc.
Usando os princípios da narrativa, não apenas permanecemos fiéis ao material
histórico real, mas também identificamos a sua essência – nosso tema – e
demos um sentido universal para a história e vida de Vovó Julia.
LIVRO SEIS – AUTOAJUDA
102. O JEITO ERRADO DE ESCREVER UM
LIVRO DE AUTOAJUDA

N ão tenho certeza se eu classificaria A Guerra da Arte como autoajuda.


Mas já que aparentemente esse é o pensamento sobre o livro, vamos
adiante com isso.
Como você estrutura um livro de autoajuda? Aqui está o jeito errado:
1) Apresente a tese (primeiros três capítulos).
2) Cite exemplos que embasem a tese (próximos cem capítulos).
3) Recapitule e resuma o que você apresentou até agora (próximos cinco
capítulos).
Em outras palavras, “diga o que você dirá, diga, então diga o que você acabou
de dizer”.
Há uma história sobre uma embaixada que foi enviada uma vez aos antigos
espartanos. Os enviados estrangeiros falaram por horas diante dos cidadãos
reunidos, pedindo sua ajuda.
Quando terminaram, os espartanos declararam: “Não conseguimos lembrar o
que vocês disseram no início, ficamos confusos com o que disseram no meio, e
no final estávamos todos dormindo.”
103. A VOZ DA AUTORIDADE

S emulheres,
você é uma mulher escrevendo um livro sobre emagrecimento para
é melhor você ter manequim P, com abdômen de tanquinho e ter
fotos suas exibidas proeminentemente ao longo do livro. Do contrário, nós,
leitoras, teremos dificuldade de aceitá-la como uma autoridade.
A autoridade é crítica em autoajuda não só porque é a voz dirigida
diretamente a nós, leitores, pelo autor (ao contrário do personagem na ficção ou
o narrador em terceira pessoa contando uma história), mas também porque
aquela voz está nos prescrevendo algo – uma nova mentalidade, um modo de
agir – e nos estimulando a mudar nossa vida conforme essa prescrição.
Como uma voz estabelece autoridade?
1) Ela pode vir pelo peso da reputação na área, como Stephen King em Sobre
a Escrita ou Twyla Tharp em The Creative Habit.[75]
2) Pode ser embasada por extensa pesquisa acadêmica, como Susan Cain fez
em O Poder dos Quietos.
3) Pode citar suas próprias credenciais profissionais ou acadêmicas, como Dr.
Phil, Dr. Oz ou Dr. Gupta[76].
4) Ou pode ser recorde de vendas e sucesso, como Tony Robbins ou Eckhart
Tolle.
5) A voz em autoajuda pode transmitir credibilidade em seus programas na
TV ou na web, em seu podcast, blog, canal no Youtube, seu número de
seguidores no Facebook, Twitter e Instagram, ou pela presença dominante nas
redes sociais.
Olhe quanta credibilidade uma garota de nome K teve devido a um único
vídeo pornô. Eu falo sério. Nesta área especificamente, um flash de pornografia
amadora estabeleceu autoridade. Definiu um padrão.
6) A mais difícil – e talvez a melhor – maneira de estabelecer autoridade é por
meio da qualidade e integridade da própria voz.
A natureza não pode ser trapaceada ou feita de boba. Ela lhe dará o objeto das
suas lutas somente depois que você tiver pagado seu preço.
Cá estamos novamente nas lições de publicidade, cinema, ficção e não ficção.
Conceito.
Tema.
Dispositivo narrativo.
Se você realmente quer ouvir sobre isso, a primeira coisa que vai querer saber
é onde eu nasci, como foi minha infância miserável, como meus pais eram
ocupados e tudo antes de eles terem a mim, e todo aquele tipo de porcaria de
David Copperfield.[77]
Feito corretamente, uma voz pode transmitir uma autoridade incontestável,
apoiada por nada além da sua própria credibilidade.
De todas as pessoas que conhecerá na vida, você é a única delas que nunca
abandonará ou perderá. Para a questão da sua vida, você é a única resposta.
Napoleon Hill em Pense e Enriqueça, Rich e Jo Coudert em Advice from a
Failure[78], estão usando os mesmos princípios que J. D. Salinger usou em O
Apanhador no Campo de Centeio.
104. A BAGUNÇA QUE SE TORNOU A
GUERRA DA ARTE

P osso me gabar deste porque eu não tive nada a ver com isso. Todo o talento
foi fornecido por Shawn Coyne, que editou e publicou (e intitulou) o livro.
Eu entreguei a Shawn uma pilha de páginas. A pilha era sobre a batalha eu-
contra-eu-mesmo que acontece dentro do crânio de qualquer romancista. Eu a
chamei de A Vida do Escritor.
Shawn disse “Deixa eu pensar sobre isso”.
Então ele fez o que qualquer magnífico editor faria: transformou aquela pilha
de páginas em uma história.
105. COMO SHAWN ESTRUTUROU A
GUERRA DA ARTE

O que especificamente Shawn fez?


Primeiro, ele espalhou os capítulos no chão.
Então, ele organizou-os em três seções.
Gancho. Desenvolvimento. Desfecho.
Ato Um, Ato Dois, Ato Três.
Shawn decidiu que o gancho seria os capítulos descrevendo o que eu chamei
de “Resistência”, ou seja, a força negativa invisível da autossabotagem que
todos os escritores (e pessoas criativas em todas as áreas) enfrentam.
Por que esse foi o gancho?
Porque quando o leitor percorresse esses capítulos – Shawn tinha certeza –,
ele poderia estar pensando “Oh, meu Deus, eu senti a mesma força negativa
quando sentei para escrever! Pressfield está descrevendo meu mundo pessoal,
minha luta interior. Eu nunca tinha pensado naquela força como ‘Resistência’,
mas o termo soa absolutamente verdadeiro. É o inimigo diabólico que vem me
fodendo há anos!”
O leitor está fisgado, neste caso, não pela história, por exemplo, de um
mistério de assassinato ou um suspense de espionagem, mas por sua
experiência compartilhada (comigo, o autor do livro) de um monstro interno
que tem causado estragos na sua vida artística, mas que até agora ele nunca
identificara.
Terminando esta seção (o gancho), o leitor naturalmente quer saber mais. “De
onde vem essa força negativa de Resistência? Qual é a sua natureza? Como
posso lutar com ela e superá-la?”
Shawn juntou uma segunda pilha de capítulos.
Ele pensou nela como o desenvolvimento.
Ele intitulou essa pilha, devido ao seu conteúdo, “Tornando-se Pro”. Esses
capítulos eram a minha resposta para a pergunta “Como nós superamos a
Resistência?”
Você vê os princípios da narrativa em ação? Vê o livro tomando forma?
Ato Dois, ou seja, a elaboração, atinge um ponto alto em que o problema foi
definido e a resposta foi dada.
O que leva inevitavelmente à próxima série de questões na mente do leitor.
“O que tudo isso significa? Por que essa força negativa de Resistência existe?
Qual é a sua relevância no esquema maior das coisas?”
Ato Três.
O desfecho.
Shawn intitulou esses capítulos “O Reino Superior”.
Esta seção final, como Shawn a criou organizando capítulos existentes, mas
esparsos, foi onde eu entrei em águas mais profundas no assunto de
autossabotagem. Esses foram os capítulos “positivos”, os inspiradores, porque:
1) Eles colocam o fenômeno da Resistência em um contexto mais amplo,
cósmico (que, para mim, é uma grande batalha miltoniana[79] entre céu e
inferno, Deus e Satã), que incluía as forças positivas de inspiração, descobertas,
autodisciplina, entusiasmo, paixão, e o conceito de vocação artística, todos eles
serviram para enfrentar a força negativa de Resistência.
2) Eles fecham o gancho e o desenvolvimento reforçando a crescente
autoestima do leitor de que não só identificou o inimigo e agora sabe como
enfrentá-lo, mas também conectou-se com forças invisíveis, espontâneas, mas
poderosamente fortalecedoras que viriam inevitavelmente em seu auxílio assim
que ele se comprometesse com sua vocação e aceitasse o desafio.
Se o gancho em A Guerra da Arte é “Aqui está o problema”...
Se o desenvolvimento é “Aqui está a solução”...
Então, o desfecho é “Sr. Escritor, seu papel nessa atemporal, épica batalha é
nobre, valoroso e necessário. Ouça o chamado do seu coração. Levante-se e
siga adiante”.
106. FLASHBACK: CONCEITO EM A
GUERRA DA ARTE

V oltando ao que aprendemos em publicidade:


Todo anúncio deve ter um conceito.
E ao que aprendemos em Hollywood:
Todo filme deve ter um conceito.
Em ficção:
Todo romance deve ter um conceito.
E não ficção:
Toda obra de não ficção deve ter um conceito.
O conceito em A Guerra da Arte é “Esqueça Gerenciamento de Tempo e
Conversas Estimulantes Motivacionais e dicas sobre Como Sonhar Alto,
Perseverar e ter Sucesso. Ao invés disso, vamos cavar sob tudo isso e afirmar,
direto e reto, algo que todos nós sabemos, mas nunca ousamos dizer:
Existe uma Força do Mal que está constantemente derrotando-nos como
artistas e reduzindo nossos sonhos a nada. Vamos nomear essa força, aceitá-la
como nossa inimiga e descobrir como superá-la.”
107. FLASHBACK: DISPOSITIVO
NARRATIVO EM A GUERRA DA ARTE

L embra do nosso exemplo de dispositivo narrativo em O Complexo de


Portnoy e O Sol é para Todos (sem falar em Piratas do Caribe e Perdido
em Marte)?
Um livro de autoajuda também precisa de um dispositivo narrativo.
Em A Guerra da Arte, minha intenção era criar um personagem que servisse
como dispositivo narrativo. Esse personagem não seria exatamente “eu”. Seria
uma versão de mim, focada totalmente em compartilhar minha própria
experiência “nas trincheiras”, objetivando ajudar e motivar o leitor.
Muitas coisas foram pensadas para definir esse personagem.
Finalmente, eu decidi:
1) O personagem tem que ser direto.
2) Ele tem que ser duro com o leitor como eu sou comigo mesmo.
3) Tem que estabelecer autoridade por meio de sua própria experiência como
escritor. Tal experiência tem que incluir sucesso suficiente para ter
credibilidade e fracasso o suficiente para gerar identificação/empatia.
4) O personagem tem que falar de perto com o leitor. Eu queria falar como se
estivesse me dirigindo a mim mesmo tanto pelo desejo de respeitar o leitor
quanto por acreditar que esse tom era o que o leitor respeitaria.
5) Para isso, o personagem não daria “dicas” ou “exercícios”. A questão, eu
acreditava, era muito importante para ser abordada de modo trivial.
6) O personagem tem que ser totalmente franco, essencialmente sobre suas
próprias fraquezas e defeitos. Não só para ser agradável, mas também para
motivar o leitor – igualmente sujeito à falha – e fazê-lo sentir que não está
sozinho em sua luta.
7) O personagem tem que acreditar verdadeira e apaixonadamente no valor da
vocação artística – a de todos os artistas e criativos – e acreditar com a mesma
convicção no valor supremo da arte em si.
Felizmente, isso é basicamente o que eu sou e o que acredito. Assim que
peguei o ritmo e o tom, tudo fluiu perfeitamente.
Minha conclusão:
Dispositivo narrativo é extremamente importante em autoajuda. Você, o
escritor, é o leitor. O leitor o ouvirá somente se souber que você sabe sobre o
que está falando e que está ali apenas para ajudar.
108. FLASHBACK: HERÓI E VILÃO EM A
GUERRA DA ARTE

A Guerra da Arte é não ficção. Como sua TED talk ou sua apresentação sobre
gerânios, não há personagens. Não há história. Sem herói. Sem vilão. Sem
mentores arquetípicos ou espíritos animais. Sem Momento Tudo Está Perdido.
Ou não?
O herói de A Guerra da Arte é o leitor.
O vilão é a Resistência.
O Momento Tudo Está Perdido aconteceu no coração do leitor muito antes de
ele pegar o livro.
Eu? Eu sou o Obi-Wan Kenobi.[80]
Minhas últimas palavras para você são “Confie na Força, Luke.”
109. AUTOAJUDA É HISTÓRIA

A Guerra da Arte aplicou todos os princípios da narrativa da ficção e do


cinema, bem como algumas ideias vindas da publicidade.
Ele teve um conceito e um tema. Empregou a estrutura em três atos. Teve um
herói e um vilão, um dispositivo narrativo, uma voz. Teve um Incidente
Incitante, um Momento Tudo Está Perdido e teve um desfecho dentro do tema.
Em outras palavras, como outros tipos de não ficção, autoajuda pode ser
tratada como história e ser concebida e estruturada conforme os princípios da
narrativa.
LIVRO SETE - O CHAMADO DO ARTISTA
110. COMO A CARREIRA TOMA FORMA,
PARTE DOIS

A conteceu comigo de dentro para fora.


Fui tomado por uma ideia. Eu a segui. Ela falhou.
Fui tomado por outra ideia. Eu a segui, e ela falhou.
Fiz isso uma centena de vezes. Quinhentas vezes.
Finalmente, uma ou duas ideias tiveram sucesso.
Enquanto eu estava me batendo de uma ideia a outra, não consegui identificar
nenhum padrão. Tudo parecia aleatório. Cada trecho era único.
Mas quando olhei para trás, pude ver não só um padrão.
Eu pude ver uma carreira.
Estava ali o tempo todo, desenvolvendo-se infalivelmente.
111. EXISTE UM DEMÔNIO

A Resistência é real. Autossabotagem é um fato.


Irradiando da página branca, da tela vazia, da lata de filme não exposto
está uma força do mal implacável, cruel e multifacetada que faria o Imperador
Ming parecer sua doce tia Edna.
Isso é Realidade #1.
Qualquer um que lhe disser algo diferente é um mentiroso.
112. EXISTE UMA MUSA

T ãoResistência,
poderosa quanto é a força negativa e destrutiva a que chamamos
também é a positiva e criativa força que chamamos de Musa.
Sente-se. Abra a torneira. As coisas que aparecerão, pelo menos às vezes,
excederão suas melhores visões.
Você vai encarar o material e exclamar “De onde diabos veio isso?”
113. JEAN-PAUL SARTRE ME DEIXOU
MORTO DE MEDO

L embro-me de estudar os Existencialistas no Ensino Médio. Sr. Wittern (ou


talvez tenha sido Mr. Lund) escreveu no quadro:
DEUS ESTÁ MORTO
TUDO É ALEATÓRIO
A VIDA NÃO TEM SENTIDO
Mesmo assim, eu sabia que isso era uma besteira.
114. O MUNDO DO ARTISTA É MENTAL

A esfera do artista é a mente.


Sua moeda é a imaginação.
Ele pergunta (e como poderia não fazê-lo?): “De onde vêm as ideias?”
115. A HABILIDADE DO ARTISTA

N óscirurgião.
sabemos o que um carpinteiro faz. Entendemos o trabalho de um
Mas o que um artista faz? No que consiste sua habilidade?
É esta:
O artista entra no Vazio com nada e volta com alguma coisa.
Sua habilidade é desligar a autocensura. É pular do precipício.
Sua habilidade é acreditar.
Como artistas, em que nós acreditamos? Acreditamos em uma concepção do
universo (ou pelo menos de uma consciência com este universo) que não é
aleatória, nem sem sentido, nem desprovida de significado.
Acreditamos em uma realidade mental que é ativa, criativa, auto-organizada,
que se autoperpetua, infinitamente diversa e, ainda assim, coesiva, governada
por leis que não estão além do alcance e da compreensão humana.
Acreditamos que o universo tem um dom guardado especificamente para nós
e que, se aprendermos a nos colocar à sua disposição, ele o entregará em nossas
mãos.
Acredite em mim, isso é verdade.
116. VOCÊ É UM ESCRITOR?

E utermo
sempre quis ser escritor. Por anos, talvez décadas, eu não aplicava esse
a mim mesmo. Não me considerava digno.
Eu estava tentando ser um escritor.
Estava aspirando a ser um escritor.
Mas eu não era um escritor.
Nem mesmo tenho certeza do que quero dizer com esse termo. É alguma
posição elevada, como “piloto de caça” ou “monge Zen”? Ainda não sei dizer.
Mas eu sou um escritor agora.
Paguei minhas dívidas. Ganhei minhas asas. Talvez eu não seja um grande
escritor, nem mesmo bom, mas sou um escritor.
Eu quis isso e, para melhor ou para pior, fiz com que se realizasse.
117. A BALEIA BRANCA

Q uestão #1 que escritores fazem a si mesmos: “Eu tenho um milhão de


ideias. Como saberei qual delas funcionará?”
Resposta: escreva sua Baleia Branca.
Qual ideia, de todas as que estão nadando no seu cérebro, você está impelido
a perseguir da mesma maneira que Ahab foi para caçar Moby Dick?
É assim que você sabe – você morre de medo dela.
É bom ter medo. Você deveria ter medo. Ideias medíocres nunca elevam a
frequência cardíaca. As grandes o fazem suar em bicas.
A cena final de Moby Dick é uma das mais poderosas e envolventes já feitas,
não só como clímax da história, uma aventura, uma tragédia, mas como uma
metáfora para o chamado do artista e sua interminável e repetitiva luta. Você se
lembra dessa cena? (Na verdade, essa é do filme, escrito por Ray Bradbury, que
eu acredito que fez o Melville melhor).
Ahab tinha perseguido Moby Dick ao redor do Chifre e por todos os oceanos
do mundo. Finalmente ele aproximou-se do leviatã, afundando seu arpão na
grande besta.
Mas no choque da baleia com o barco baleeiro, Ahab foi emaranhado nas
cordas do arpão e jogado por cima da beirada do navio.
Ele está amarrado agora, fisicamente, à Baleia Branca – tão enredado nas
cordas que não pode se libertar. Ahab pode ver o olho de Moby Dick, e a baleia
pode vê-lo. Claramente o monstro reconhece seu algoz; em momentos ele vai
soar, arrastando Ahab centenas de metros nas profundezas do oceano.
Ahab sabe disso. Ele sabe que sua perseguição obsessiva levou
inexoravelmente à sua própria extinção. Mas essa consciência não diminui em
nada a sua fúria. Agarrando o arpão com as duas mãos, ele mergulha a ponta da
lança de aço mais uma vez, e outra, na carne dessa criatura que ele odeia, mas
que nunca pode matar.
AHAB
Avanço em tua direção, baleia destruidora e inconquistável; luto contigo pela
última vez; apunhalo-te do coração do inferno; pelo ódio que te devoto, sobre ti
lanço meu último suspiro.[82]
Essa é a síntese da vida do escritor.
Mas eu inverteria o conceito de Melville. Eu não acho que você odeia a
baleia.
Eu acho que você a ama.
A baleia é seu livro não escrito, sua canção não cantada, seu chamado como
artista. Você morre lutando com isso, açoitado por isso, batalhando mesmo
enquanto isso o derruba.
Mas sua morte não é a mortal. Você morre a morte do artista, que leva a uma
ressurreição em uma forma mais nobre, superior, e que o recruta para a próxima
caçada, a próxima perseguição, a busca da próxima Coisa que Você Ama.
Existe uma Baleia Branca para você lá fora? Existe, ou você não estaria lendo
este livro.
Você conhecerá a baleia por estas qualidades:
Sua realização parecerá além dos seus recursos.
Sua busca o levará para águas que ninguém navegou antes. Caçar essa besta
exigirá tudo o que você tem.
Você pode ter começado, como eu, como um Mad Man júnior, escrevendo
jingles de ração para cães. Não tem nada de errado nisso. Você pode ter
prostituído seu talento, vendido ao dono da agência. Eu fiz, mil vezes.
Isso não importa. Eu perdoo você e a mim mesmo. Cada encarnação é um
aprendizado, se você vive desta maneira.
Você está trabalhando como escravo, em algum emprego explorador? Está
vivendo uma carreira falsa em vez da sua verdadeira vocação?
Tudo bem. É parte da jornada.
O que você aprende na Carreira Errada #1 servirá na Carreira Destoada #2 e
na Carreira Fora do Eixo #3, e a sabedoria que você obterá na #1, #2 e #3
formará a base da Verdadeira Vocação #4 (ou #5, #6 ou quanto tempo levar.)
118. NINGUÉM QUER LER SUAS M*RDAS

O que Ninguém Quer Ler Suas M*rdas quer dizer é nenhum de nós quer
ouvir suas egoístas, egocêntricas e não refinadas demandas por atenção.
Por que deveríamos? É chato. Não há nada nelas para nós.
Você pode cantar um blues? Pode fazer um sapato? Torne isso belo. Torne
divertido, sexy e interessante, e eu comprarei. Eu vestirei. Falarei sobre isso aos
meus amigos. Seu livro, seu poema, seu filme podem até ser desesperadores,
contanto que sejam profundamente concebidos e levem minha compreensão da
vida um pouco mais a fundo.
O que Ninguém Quer Ler Suas M*rdas quer dizer é que você/nós/todos nós,
como escritores, precisamos aprender a deixar espaço para o leitor, a trabalhar
em nossas ofertas como um mineiro refina o minério, até que o que surja na
página seja ouro sólido e reluzente.
Se é da nossa alma que estamos falando (em vez de apenas O Que
Escrevemos), então nossa passagem pelas diversas disciplinas desta vida, se
estivermos realmente prestando atenção, é uma educação para eliminar o ego,
nos afastar do medo, da preocupação consigo mesmo, de aspirações por
reconhecimento, recompensas materiais e terrenas, até que nos movamos ao
reino do dom, onde o que oferecemos é para o bem do leitor, não para o nosso.
Quer que eu leia suas merdas? Faça isso e lerei.
APÊNDICE
E nosso campo literário final...
LIVRO OITO - PORNOGRAFIA
119. CENAS DE SEXO

U ma vez eu fiz a reescrita de um filme pornô. Antes de me deixar começar, o


produtor quis me encontrar para um café da manhã, a fim de dar as
instruções sobre o trabalho e certificar-se de que eu não atrasaria o projeto
cometendo algum erro de principiante (Quem sabia como ajustar um filme
pornô?).
Nós nos encontramos em uma cafeteria em Santa Mônica. Nessa reunião, eu
tive duas das melhores lições de escrita que já recebi.
A primeira coisa que o produtor disse foi que ele odiou praticamente todo
filme pornô que já tinha visto. Eram todos, ele disse, muito chatos e previsíveis.
“Todos são iguais: papo, papo, foda, foda. É por isso que são tão péssimos.
Não há uma boa narrativa. Eis o que quero de você – quando chegar na cena de
sexo, não deixe a história parar do nada enquanto vemos duas pessoas
transando.”
Uau, eu pensei, isso é inteligente.
“Faça a cena da transa avançar a história”, disse o produtor. “Onde quer que a
história pare quando os atores começam a pular um em cima do outro, quero
que isso vá para outro nível quando eles terminarem.”
Ele me deu um exemplo. “Digamos que os personagens são um detetive
particular e sua linda cliente. Eles pulam na cama. No momento em que eles
saem dela, eu quero que a história tenha avançado para um novo estágio. Ela
conta alguma coisa sobre o crime, ele revela algum segredo de seu passado, não
importa. Faça a história ‘virar’ e caminhar para um nível mais alto.”
Confesso que tinha ido a essa reunião esperando o pior – e até sendo
condescendente mentalmente com o produtor e o projeto. De repente, minha
cabeça explodiu. Meu empregador tinha se tornado um mentor! Imediatamente
percebi que o princípio do não-interrompa-a-história poderia ser aplicado a
outros gêneros mais populares.
Filmes de ação. Quantas perseguições de carro, pensei, eu tinha visto em que
a história parava do nada enquanto assistíamos a Mustangs baterem e
caminhões-tanque explodirem? (Na verdade, eu estava trabalhando em um
filme de ação naquele exato momento e estava cometendo esse exato erro).
Nota mental: reescrever aquela primeira luta e fazer a história andar.
Musicais. Toda música deve avançar a história.
Flashbacks. Cada digressão precisa trazer algo que impulsiona a narrativa
adiante.
“Ok, garoto, esse é o Ponto #1. Entendeu? Agora, a segunda questão. Nunca
escreva para mim uma cena de sexo em que nada acontece além do sexo.
Sempre tenha algo acontecendo ao mesmo tempo.”
“Digamos que a esposa está transando no quarto com um carpinteiro tesudo.
Agora o marido chega em casa sem avisar. Ele entra pela porta da frente. O
marido não sabe que a esposa e o carpinteiro estão no quarto. Eles não sabem
que o marido chegou na porta da frente. Agora nós temos algo! Quando
editarmos o filme, podemos fazer alguns cortes para frente e para trás, de modo
a alimentar o suspense. Não são só duas pessoas trepando, percebe?
Adicionamos uma segunda dimensão. E quando o marido descobrir o que sua
mulher está fazendo, nós avançamos a história!”
Puta merda, na mosca outra vez! Esse segundo princípio, eu pude ver,
também poderia ser aplicado a todos os tipos de situação em longas-metragens.
Uau!
E eu estava sendo pago para isso!
Fui para casa e reescrevi o roteiro, seguindo rigorosamente os princípios do
produtor. Funcionou. Eu estava impressionado com o quanto aquele roteiro
melhorou.
No fim das contas, infelizmente, o filme nunca foi feito. O financiamento não
deu certo. E eu (surpresa nenhuma) nunca fui pago. Não me importei. Eu tinha
aprendido alguma coisa. Tinha avançado no domínio da minha arte.
Alguns anos depois, eu estava jantando em um restaurante diferente quando
vi o produtor chegando com sua esposa e duas crianças. A história ficaria mais
colorida se eu pudesse descrevê-lo como um filisteu de Tinseltown com um
charuto na boca, mas a verdade é que ele era um cara doce, um homem de
família normal. Eu quis agradecê-lo pelo que ele me ensinou. Usei esse
conhecimento várias vezes, em outros projetos não proibidos para menores.
Mas eu pensei, observando-o com seus filhos a tiracolo, que talvez a discrição
fosse mais ética. Saí sem tentar chamar a sua atenção.
Mas obrigado, Andy. Eu aprendi mais sobre narrativa com você em meia hora
do que poderia ter aprendido em quatro anos na Escola de Teatro de Yale.

[1]
Lançado originalmente pela Ediouro em 2001 e reeditado com o título Como Superar Seus Limites
Internos pela Cultrix em 2021.
[2]
Bristol-Myers Squibb, também conhecida como BMS, é uma biofarmacêutica global sediada em Nova
Iorque, atuante em vários ramos de pesquisa farmacológica, com filiais em diversos países, inclusive o
Brasil.
[3]
N.T.: Nobody Wants To Read Your Sh*t, o título original do livro em inglês, pode ser traduzido como
Ninguém Quer Ler Suas M*rdas. Como um “mantra”, a frase é repetida ao longo da obra.
[4]
N.T.: Spec script é um roteiro que objetiva buscar a inserção do roteirista no mercado. É elaborado a
fim de tentar que o trabalho seja produzido na indústria cinematográfica/televisiva. É chamado apenas de
spec no Brasil.
[5]
Reuben é um sanduíche popular nos EUA que combina pastrami, queijo suíço e chucrute.
[6]
N.T.: Referência à série de televisão Mad Men, exibida pelo canal AMC, que tem como foco uma
agência de publicidade e o mundo dos profissionais da propaganda nos anos 1960, período em que
publicitários (Mad Men) e publicitárias (Mad Women) se intitulavam desta forma. Também é referência à
Madison Avenue.
[7]
N. T.: Material publicitário produzido em torno do tema da campanha de uma empresa ou produto, de
um conceito básico. Podem usar a mesma abordagem, cores etc. da ideia principal. Também são chamados
de execuções.
[8]
N. T.: Spin-off é uma obra derivada de outra já existente, com foco distinto da original. Por exemplo, os
diversos CSI (Miami, Las Vegas, NY) são spin-offs de CSI: Crime Scene Investigation.
[9]
Serena Williams, considerada uma das maiores tenistas da história; LeBron James, um dos maiores
jogadores de basquete da história da NBA; Rory McIlroy, jogador de golfe irlandês mais jovem a figurar
no top 50 mundial.
[10]
N.T.: Expressão cunhada pela ex-governadora do Alaska Sarah Paulin, em 2009, ao referir-se ao
programa de assistência de saúde proposto por Barak Obama. Segundo Sarah, o projeto “escolheria” quem
tem direito à assistência de saúde segundo critérios subjetivos.
[11]
N.T.: Organização de pequenos empreendedores e startups.
[12]
Crença muito difundida nos EUA no século XIX de que os colonizadores americanos deveriam
espalhar-se pelo continente, pois eram eleitos de Deus para civilizá-lo.
[13]
Nome oficial para a Guerra do Iraque, que teve início em 2003 e término em 2011, encabeçada por
EUA e Inglaterra. O conflito resultou na captura e morte de Saddan Hussein.
[14]
Livro mais publicado em língua inglesa, é a tradução da bíblia para a Igreja Anglicana, por ordem do
rei Jaime I, no século XVII.
[15]
N. T.: Nome informal para Hollywood, normalmente para referir-se de modo pejorativo ou fazer
chacota.
[16]
Bill Bernbach é fundador da agência DDB, mundialmente famosa por campanhas publicitárias como a
do Fusca, em 1960; George Lois é um diretor de arte famoso por ilustrar as capas da revista Esquire por
10 anos; Diretor de Arte na DDB por trinta anos, foi responsável pelo conceito da campanha do Fusca de
1960.
[17]
Os nomes são referência a duas companhias de publicidade famosas nomeadas a partir de seus donos,
a Bates (fundada por Ted Bates, em 1940) e a Ogilvy (fundada por David Ogilvy, em 1948).
[18]
N. T.: Gíria americana para consultoria externa em empresas. O termo vem do livro M*A*S*H, de
Richard Hooker. No livro, o personagem Hawkeye finge ser um profissional vindo de Dover, Inglaterra,
para conseguir acesso gratuito a campos de golfe.
[19]
Organização avícola mais antiga da América do Norte.
[20]
N. T.: No Brasil, principalmente em marketing de conteúdo, o termo é expresso com a sigla CTA.
[21]
N. T.: O termo storytelling é, atualmente, muito utilizado pela área do marketing e marketing de
conteúdo, no sentido de produzir histórias que gerem identificação com o cliente e fazer mais conversão
em vendas, conceito distinto da área de escrita literária.
[22]
N. T.: O termo original é payoff, utilizado pelos roteiristas para especificar o processo em que o
escritor “planta” as tensões no espectador e depois “colhe”. Também pode ser interpretado como “pagar”
ao espectador tudo o que prometeu.
[23]
N. T.: No episódio piloto de Mad Men, é dito que “Mad” foi o modo cunhado pelos publicitários de
1950 para chamarem a si mesmos, que seria uma redução de Madison Avenue.
[24]
N. T.: Termo cunhado pela sociedade afro-americana para referir-se a donos de escravos ou homens
brancos poderosos vistos como exploradores de mão de obra barata.
[25]
Profissão muito procurada por imigrantes em fazendas, nos períodos de colheita de frutas e vegetais.
[26]
Um tipo de biblioteca menor, comunitária, mas que faz parte do sistema central de bibliotecas
americanas.
[27]
Rio Hudson, Columbia, NY.
[28]
Hospital público mais antigo da cidade de Nova Iorque, onde foi instalado o primeiro necrotério em
1866.
[29]
Rua que liga Nova Jersey e o Brooklyn, muito conhecida por ser reduto de vendedores ambulantes e
local comum de comércio de produtos falsificados.
[30]
“O chefe" em questão trata-se de Bruce Springsteen. Steven Pressfield escolheu o trecho da letra da
música Hungry Heart do artista para ilustrar a estrutura e compor o capítulo.
[31]
N. T.: Livro ainda não publicado no Brasil.
[32]
Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta fundador da psicologia analítica. Em grande parte de seu
trabalho, utilizava o conceito de arquétipo em suas teorias sobre a psique humana.
[33]
Personagem indígena Cheyenne do filme Pequeno Grande Homem (1970), do diretor Arthur Penn.
Também consta uma personagem de mesmo nome na literatura da escritora indígena Pawnee/Otoe Anna
Lee Walters.
[34]
N. T.: Sitcom americano protagonizado por Jerry Seinfeld que tinha como base situações cotidianas,
sem foco em um tema específico, o que o levou a ser conhecido como “um programa sobre nada”.
[35]
N. T.: Palavra em latim que significa grandioso, superior. No filme, o personagem de Bradley a utiliza
como mote para manter a positividade e lidar com problemas psiquiátricos. O termo também foi bastante
utilizado por Stan Lee, criador de vários heróis da Marvel.
[36]
Famoso roteirista, produtor, escritor e ator americano, conhecido por sua enorme produção de
conteúdo para TV entre 1970 e 1990.
[37]
Roteirista americano responsável por trabalhos como Chinatown, O Poderoso Chefão e Missão
Impossível.
[38]
Roteirista americano responsável por trabalhos como Blade Runner e Os Doze Macacos.
[39]
Coautor do roteiro de Casablanca.
[40]
Personagem do filme Chinatown.
[41]
Personagem do filme Os Imperdoáveis.
[42]
Personagem do filme Casablanca.
[43]
N. T.: Livros ainda não publicados no Brasil.
[44]
N. T.: Termo utilizado por cineastas para nomear sequências de filmagens sem áudio síncrono. Não há
um consenso na área sobre a exata origem ou palavras que formam a sigla.
[45]
Alexis de Tocqueville, historiador francês célebre por análises da Revolução Francesa. Uma das
maiores referências da filosofia política liberal.
[46]
Consultor de moda americano apresentador do programa Tim Gunn: Guru de Estilo, do canal
Discovery Home & Health.
[47]
Cidade do estado de Washington.
[48]
Bairro de Nova Iorque conhecido por ser reduto artístico e de moda.
[49]
Marcha Nacional dos EUA.
[50]
Autor, palestrante e consultor de roteiro. Autor do livro Story: substância, estrutura, estilo e os
princípios da escrita de roteiro. Arte & Letra, 2017.
[51]
Grupo étnico mais populoso do Quênia.
[52]
Porcelana fina produzida na cidade de Limoges, França. É conhecida mundialmente por sua
qualidade, à semelhança da encontrada em porcelanas chinesas.
[53]
Empresa ficcional do filme Wall Street.
[54]
N. T.: No original, há a citação do termo Break Into Two, de Blake Snyder, que sinaliza a entrada no
Ato Dois. Optamos por utilizar o termo da jornada do herói, mais popular no Brasil.
[55]
Reality shows americanos sobre moda e culinária, respectivamente.
[56]
Vale urbanizado pioneiro na indústria de filmes adultos, sendo o maior polo de produção de
pornografia do mundo.
[57]
N. T.: Do japonês, “adeus”.
[58]
N. T.: O livro de Steven Pressfield tem como título The Legend of Bagger Vance. Mais tarde, a
adaptação para o cinema foi intitulada Lendas da Vida.
[59]
Cineasta, diretor e roteirista britânico famoso por produções clássicas como Doutor Jivago, A Ponte
do Rio Kwai e Lawrence da Arábia.
[60]
Guitarrista da banda The Rolling Stones, conhecido pelo abuso de drogas ilícitas nos anos 1960 e
1970. Participou de dois filmes da franquia Piratas do Caribe como pai de Jack Sparrow.
[61]
N. T.: Obra ainda não publicada no Brasil
[62]
Personagem da obra David Copperfield, de Charles Dickens, tido como otimista incurável e, por
vezes, alívio cômico.
[63]
Ator canadense-americano com vasta filmografia que interpretou o arrogante Dr. Morbius em Planeta
Proibido.
[64]
Tipo de destacamento militar que permite o alistamento de estrangeiros para o exército nacional. A
mais conhecida é a francesa, que ainda existe nos dias de hoje, sendo uma das poucas restantes e ativas.
[65]
Tipo específico de carroça coberta com um tecido, grande e pesada, muito utilizada no leste dos EUA
na época da colonização.
[66]
Escritor e roteirista responsável pelo roteiro de Top Gun e outros sucessos como Kojak e Havaí 5.0.
[67]
N. T.: Obra ainda não publicada no Brasil.
[68]
N. T.: Fade in é o termo utilizado para fazer a abertura de roteiros de cinema e televisão.
[69]
Grupo étnico indígena americano.
[70]
Gênero que consiste em investigação criminal e histórias detetivescas.
[71]
N. T.: Termo utilizado de modo pejorativo para se referir a pessoas brancas e pobres em zonas rurais
do sul dos EUA. Seria o equivalente ao nosso “caipira”, de certo modo.
[72]
N. T.: Optamos por transcrever a tradução para o português de J. Brito Broca. HERÓDOTO. História.
Traduzido do grego por Pierre Henri Larcher. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1950. Clássicos Jackson.
Vols. XXIII e XXIV. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/historiaherodoto.html.
[73]
TED (Tecnologia, Entretenimento e Design) é formato de conferências e/ou palestras organizadas pela
empresa Sapling, que acontecem no mundo todo e são disponibilizadas on-line.
[74]
Grupo étnico indígena dos EUA.
[75]
Twyla Tharp é bailarina e coreógrafa norte-americana referência em dança contemporânea. O livro
citado ainda não tem publicação no Brasil.
[76]
Médicos que atuam em telejornais e programas de TV nos EUA.
[77]
Obra de Charles Dickens, publicada em 1850.
[78]
N. T.: Livro não publicado no Brasil.
[79]
N. T.: Relativo ao poeta John Milton, autor do célebre Paraíso Perdido.
[80]
Personagem de Star Wars mestre Jedi, mentor de Anakin e Luke Skywalker.
[81]
Compositor de jazz norte-americano que teve músicas nos espetáculos da Broadway e gravadas por
artistas como Ella Fitzgerald e Frank Sinatra.
[82]
N. T.: Trecho da edição bilíngue de Moby Dick, de Herman Melville, publicada pela editora
Landmark em 2012.

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