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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO

PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUAGENS E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS/INGLÊS

LETICIA MARIA FORTE

SHOW THEM WE CAN CHANGE THE WORLD: FORMAÇÃO DE


PROFESSORAS DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE
LETRAMENTO CRÍTICO

CARAÚBAS/RN

2022
LETICIA MARIA FORTE

SHOW THEM WE CAN CHANGE THE WORLD: FORMAÇÃO DE


PROFESSORAS DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE
LETRAMENTO CRÍTICO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal Rural
do Semiárido como requisito para obtenção
do título de licenciada em língua inglesa.

Orientador: Prof. Dr. Jeová Araújo Rosa


Filho

CARAÚBAS/RN

2022
© Todos os direitos estão reservados a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. O conteúdo desta obra é de inteira
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sejam devidamente citados e mencionados os seus créditos bibliográficos.

F737s Forte, Leticia Maria.


Show them we can change the world: formação de
professoras de língua inglesa através de práticas
de letramento crítico / Leticia Maria Forte. -
2022.
132 f. : il.

Orientador: Jeová Araújo Rosa Filho.


Monografia (graduação) - Universidade Federal
Rural do Semi-árido, Curso de Letras/Inglês,
2022.

1. Letramento crítico. 2. Formação de


professoras. 3. Propagandas. 4. Discurso. I. Rosa
Filho, Jeová Araújo, orient. II. Título.

Ficha catalográfica elaborada por sistema gerador automáto em conformidade


com AACR2 e os dados fornecidos pelo) autor(a).
Biblioteca Campus Caraúbas
Bibliotecária: Dalvanira Brito Rodrigues
CRB: 15/700

O serviço de Geração Automática de Ficha Catalográfica para Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC´s) foi desenvolvido pelo Instituto
de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP) e gentilmente cedido para o Sistema de Bibliotecas
da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (SISBI-UFERSA), sendo customizado pela Superintendência de Tecnologia da Informação
e Comunicação (SUTIC) sob orientação dos bibliotecários da instituição para ser adaptado às necessidades dos alunos dos Cursos de
Graduação e Programas de Pós-Graduação da Universidade.
LETICIA MARIA FORTE

SHOW THEM WE CAN CHANGE THE WORLD: FORMAÇÃO DE


PROFESSORAS DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE
LETRAMENTO CRÍTICO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal
Rural do Semiárido como requisito para
obtenção do título de licenciada em
língua inglesa.

Defendido em: 06 / 10 / 2022

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. Jeová Araújo Rosa Filho
Presidente

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Priscila Fabiane Farias
Membro Examinador

______________________________________________
Prof.ª Dra. Renata Gomes Luis
Membro Examinador

_______________________________________________
Prof.ª Dra. Silvia Cristina Barros de Souza Hall
Membro Examinador
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à Divindade Criadora regente deste vasto Universo


por me permitir viver esta experiência humana alinhada com a missão de
transformar um pouco o mundo através da educação, colocando as oportunidades e
as pessoas certas em meu caminho. Se tem algo que aprendi nesta vida é que nada
é por acaso. Agradeço também ao meu querido mentor e aos meus guias espirituais
por me ampararem nos momentos em que mais precisei, dando-me coragem e força
para seguir nesta jornada. E foi justamente por meio desta força que tive a
capacidade de acreditar em mim mesma, com a certeza de que nunca estou
sozinha.

Aos meus avós, as razões pelas quais existo. "Odinho", que foi morar no
plano espiritual quando eu ainda era uma criança, mas sempre esteve muito vivo e
presente em minha vida. Ele me mostrou o verdadeiro significado de amor paterno e
graças a ele me tornei uma mulher Forte em sobrenome e resiliência. E “Odinha”,
que ainda conseguiu acompanhar o início da minha vida acadêmica, mas não vai
estar presente fisicamente para comemorar comigo essa conquista. Dizem que por
trás de toda mulher forte existe outra mulher forte a ajudando nos momentos mais
difíceis, e ela sem dúvidas é o maior exemplo de força que eu tive. Minha mais
profunda gratidão aos meus dois anjos que de onde estão sempre me deram a
motivação necessária para continuar resistindo.

Por falar em mulher Forte, eu agradeço àquela que, além da desafiadora


missão de ser mãe, teve que assumir também o papel de pai. Mesmo em meio a
tantas dificuldades, ela sempre batalhou para que eu tivesse uma educação de
qualidade. Muito obrigada “mainha”, sonho com o dia que vou poder retribuir pelo
menos uma parte do que fizestes por mim. E para completar o clube das mulheres
Fortes da minha família, agradeço também à “titia” e à minha bisavó/melhor amiga
que sempre me apoiaram, amo muito vocês.

Agradeço também a algumas amizades que sempre carregarei em meu


peito. Ao meu grande amigo André Fernandes. Eu gosto de dizer que a nossa
amizade é de outras vidas devido a conexão extraordinária que há entre a gente,
todas as vezes que eu precisei ele esteve comigo, seja nos momentos difíceis ou
nos momentos de alegria, muito obrigada por sempre ouvir os meus desabafos, por
acreditar em mim e por mostrar que posso contar contigo para o que der e vier. À
Geovanna, que em pouco tempo de amizade já conquistou um espaço no meu
coração. E ao amigo que a Espiritualidade me presenteou, seu José Costa, muito
obrigada pelas sessões de reiki presenciais e à distância que tanto me ajudaram a
aliviar o estresse e restabelecer o processo criativo durante a escrita desta pesquisa.

À Universidade Federal Rural do Semiárido e todo o corpo docente do curso


de Licenciatura em Letras/Inglês que tanto contribuíram para a minha formação,
sempre levarei comigo um pouco de cada professor, cada ensinamento, cada
aprendizado. Existe uma Leticia antes do curso de Letras e existe agora uma Leticia
completamente transformada, a licenciatura me ensinou e tem me ensinado que
para mudar o mundo precisamos mudar primeiro a nós mesmas.

Para fechar com chave de ouro, deixo um agradecimento especial ao meu


orientador Jeová Araújo, minha grande inspiração como professora e pesquisadora.
Foi em uma aula sua que me interessei pela pesquisa sobre criticidade e ensino de
línguas, e foi através da pesquisa que encontrei o meu propósito. Obrigada por ter
aceitado me orientar neste trabalho, por abrir as portas da sua sala de aula para que
esta pesquisa se concretizasse, por cada encontro de orientação e até mesmo as
conversas inesperadas nos corredores do bloco de professores, obrigada por ter me
incentivado a continuar pesquisando sobre esse tema quando no início eu pensei
em desistir, por me inspirar a ser uma professora/pesquisadora crítica e acima de
tudo empática e me mostrar que é possível fazer educação como prática da
liberdade.
Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto
com esperança, espero.

Paulo Freire
RESUMO

Este estudo consiste em uma narrativa de pesquisa de natureza qualitativa, tendo


como base a implementação do projeto pedagógico intitulado Show them we can
change the world: deconstructing sexists discourses in advertisements em contexto
de formação de professoras de Língua Inglesa. Em vista disso, buscamos apontar
que repercussões teóricas e práticas a respeito da criticidade podemos desenvolver
a partir da experiência de formação crítica de professoras de Inglês. Para alcançar
tal objetivo, tivemos como ponto de partida três âmbitos principais – teórico,
metodológico e interativo. No âmbito teórico nos ancoramos na concepção pós-
moderna de língua como discurso (FAIRCLOUGH, 2001), além de considerações
sobre pedagogia e letramento crítico (FREIRE, 2020; ROJO, 2019). No âmbito
metodológico, elaboramos um projeto pedagógico focado na análise de
propagandas, tendo como base o ciclo de redesign proposto por Janks (2016) em
seu modelo de letramento crítico. No âmbito interativo investigamos os episódios de
sala de aula e as produções das discentes do componente curricular de Prática
Pedagógica Programada VI resultantes da implementação do projeto. Por fim,
percebemos a criticidade do ponto de vista discursivo através dos aspectos
intertextuais e transgressivos entre os textos e as produções discentes que levaram
à transformação dos discursos hegemônicos para discursos libertadores
contribuindo assim para a construção da justiça social.

Palavras-Chave: Letramento crítico. Formação de professoras. Propagandas.


Discurso.
ABSTRACT

This study consists of a qualitative nature research narrative, based on the


implementation of the pedagogical project entitled “Show them we can change the
world: deconstructing sexists discourses in advertisements” in the context of an
English Language teacher's training. Given this, we seek to point out that theoretical
and practical repercussions regarding criticality can be developed from the
experience of English teachers' critical formation. To reach the objective, we had as a
starting point three main scopes - theoretician, methodological and interactive. In the
theoretical scope, we anchored in the postmodern conception of language as
discourse (FAIRCLOUGH, 2001), in addition to considerations on pedagogy and
critical literacy (FREIRE, 2020; ROJO, 2019). In the methodological scope, we
elaborated a pedagogical project focused on the analysis of advertisements, based
on the redesign cycle proposed by Janks (2016) in her critical literacy model. In the
interactive scope, we investigated the classroom episodes and the students'
productions resulting from the project implementation on the Prática Pegadógica
Programada VI curricular component. Finally, we perceive a discursive point of view
about the criticality through intertextual and transgressive aspects between the texts
and students' productions that had led to the hegemonic discourse for liberating
discourse transformation thus contributing to social justice construction.

Key words: Critical Literacy. Teacher training. Advertisements. Discourse.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Ciclo de Redesign .................................................................................... 26


Figura 3 - Capa do projeto pedagógico .................................................................... 34
Figura 2 - Propaganda dos anos 1950 ..................................................................... 34
Figura 4- Análise de propagandas da Coca-Cola ..................................................... 39
Figura 5 - Task 01: Seleção de propagandas dos anos 50 ...................................... 44
Figura 6 - Seleção de propagandas Task 01 e 02 .................................................... 46
Figura 7 - Seja representada como uma garota ....................................................... 49
Figura 9 - Fairy Protective ........................................................................................ 52
Figura 8 - Fairy Soap ................................................................................................ 52
Figura 10 - Produção B ............................................................................................ 55
Figura 11 - Macarrão Curitiba ................................................................................... 56
Figura 12 - Pasta on the bicha.................................................................................. 57
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Desenho metodológico da pesquisa ........................................................ 31


Tabela 3 - Organização do projeto “Show them we can change the world” ............. 35
Tabela 2 - Convenções de transcrição ..................................................................... 37
Tabela 4 - Análise das produções discentes (Produção A). ..................................... 54
Tabela 5 - Análise das produções discentes (Produção B). ..................................... 55
Tabela 6 - Análise das produções discentes (Produção C). ..................................... 58
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .......................................................................... 15

2.1 Compreendendo língua como discurso ............................................................... 15

2.2 A Pedagogia Crítica e o ensino de Línguas ........................................................ 19

2.3 (Re) construindo o letramento crítico .................................................................. 22

3. METODOLOGIA ................................................................................................. 28

3.1. Natureza da Pesquisa: pesquisa qualitativa e pesquisa-ação no contexto de


ensino-aprendizagem de LI ....................................................................................... 28

3.2. Contexto e participantes ..................................................................................... 30

3.3. Estratégias para a geração de dados e instrumentos de pesquisa .................... 31

3.3.1. O projeto de intervenção - “Show them we can change the world:


deconstructing sexists discourses in advertisements" ............................................... 32

3.4. Estratégias para a análise de dados .................................................................. 37

4. ANÁLISE E RESULTADOS ................................................................................ 38

4.1. Prática 1: Brainstorming - Advertisement: what do I know about it? ................... 38

4.2. Prática 2: Thinking Critically - What is it like to be represented as a girl? .......... 43

4.3. Prática 3: Creating - Deconstruct to transgress! ................................................. 51

4.4. Prática 4: Reflecting - Thinking Like a Critical Teacher ...................................... 59

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 63

6. REFERÊNCIAS .................................................................................................. 65
12

1. INTRODUÇÃO

A minha motivação pela pesquisa em Letramento Crítico e Formação de


Professoras teve início com a disciplina de Prática Pedagógica II, quando
discutimos sobre Interculturalidade e Ensino de Língua Inglesa através da
desmistificação de estereótipos e desconstrução de preconceitos. Tendo como
inspiração os trabalhos realizados em sala de aula durante a disciplina, fui
motivada a escrever esta pesquisa sobre um tema que é muito importante para
a minha formação como ser social, bem como para a minha própria identidade.
Levando isso em consideração, trago nessa narrativa de pesquisa o
desafio de pensar em como experiências de letramento crítico podem ser
desenvolvidas como estratégias de formação crítica para professoras de língua
inglesa em formação inicial.
Todo o itinerário formativo apresentado aqui foi construído durante o
percurso da disciplina de Prática Pedagógica Programada VI, em conjunto com
o professor desse componente curricular. O enfoque desta pesquisa está
centrado nas repercussões advindas da implementação de um projeto
pedagógico, o qual se desenvolveu durante a terceira unidade do referido
componente curricular, e teve como ponto de partida a análise discursiva de
propagandas que reproduzem o machismo enraizado no contexto social em
que vivemos.
Este projeto levou em consideração os encontros formativos do
componente PPP VI vivenciados nas demais unidades, através dos quais as
professoras em formação foram motivadas a reconstruir conceitos de base,
como língua, escola e aprendizagem, a partir de perspectivas críticas e
seguiram um desenho metodológico o qual nos referimos como Ciclo de
Redesign (JANKS, 2016) que se trata do processo de reconstrução de textos
por meio da sua problematização gerando assim a transformação discursiva.
O projeto de intervenção foi desenhado a partir de um tema gerador com
base na concepção freireana de metodologia conscientizadora visando inserir
as pessoas em uma maneira de pensar criticamente sobre o mundo. Por este
motivo, pensamos em um ensino de línguas que fosse ligado a desconstrução
de discursos machistas presentes em propagandas. Para Tilio (2019, p. 197), o
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ensino de línguas “pode ser considerado um espaço privilegiado para discutir


temas socialmente relevantes e conscientizar os aprendizes de como certos
temas (transversais) são abordados no discurso dessa língua”. Nesse sentido,
ressaltamos a importância de se desenvolver práticas pedagógicas a partir de
temas transversais.
O machismo é estrutural na sociedade e seus discursos estão presentes
em todos os lugares, inclusive nas propagandas. De acordo com Bastos
(2015), o discurso pode ser compreendido como uma prática que representa “a
materialização de ideologias” (p. 40). Ao analisarmos o discurso publicitário, é
possível compreendê-lo como uma materialidade que reflete um contexto
ideológico e social onde ocorre a interação entre os sujeitos, resultando, assim,
no que conhecemos como texto.
Janks (2016, p. 23) afirma que “textos são representações parciais do
mundo” e a partir disso devemos nos atentar para as relações de poder que
estão por trás dessas representações. É justamente por esta visão crítica de
texto como parcialidade que esta pesquisa se apresentará em primeira pessoa,
compreendendo que o discurso científico não deve disfarçar o meu
envolvimento pessoal com o texto. Além disso, eu escolhi também apresentar
os pronomes no feminino para se referir ao plural, como “professoras em
formação” ao invés de professores no título desta pesquisa, buscando assim a
subversão à normatividade masculina que temos no português.
Ao pensarmos na relação entre língua, texto e discurso como uma
prática social, podemos problematizar as propagandas que ainda reproduzem
os discursos machistas como reflexos da sociedade em que vivemos e
observar o quanto as representações machistas se modificaram através do
tempo. Portanto, se é através da linguagem que o nosso mundo é construído
(JANKS, 2016), também é através dela que esse mundo pode ser
desconstruído para ser transformado através da criticidade dos sujeitos.
Tendo essas reflexões como ponto de partida, a presente pesquisa tem
como objetivo geral investigar como a criticidade pode ser colaborativamente
construída numa experiência de formação inicial de professoras de língua
inglesa. Ante o referido objetivo geral, os seguintes específicos foram
sistematizados: (1) levantar reflexões sobre como a criticidade pode ser
compreendida como um construto teórico pós-moderno; (2) compreender como
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podemos elaborar um desenho pedagógico crítico e; (3) como as interações de


sala de aula podem colaborar para a compreensão da criticidade como uma
competência discursivamente construída. Para alcançar esse objetivo, partimos
da seguinte pergunta de pesquisa: que repercussões teóricas e práticas a
respeito da criticidade podemos desenvolver a partir de uma experiência de
formação crítica de professoras de inglês?
A fim de alcançar o objetivo geral deste estudo, a presente pesquisa se
organizou em torno de três âmbitos principais - teórico, metodológico e
interativo - os quais são, ao nosso ver, constituintes de uma práxis pedagógica
crítica. No âmbito teórico, elaboramos uma compreensão do conceito de
criticidade ou competência crítica a partir de uma consideração pós-moderna
sobre língua como discurso e ensino de línguas como uma prática engajada.
No âmbito metodológico, o conceito de criticidade incide sobre uma proposta
pedagógica implementada na disciplina de Prática Pedagógica Programada VI,
tendo por base o desenho do Ciclo de Redesign proposto por Janks (2016). A
partir disso, investigamos como a competência crítica das professoras em
formação pode ser observada a partir das interações de aula e como esses
episódios de sala de aula podem ser compreendidos como performances de
criticidade.
Nas seções seguintes, a presente pesquisa se desenvolveu em quatro
âmbitos principais. Primeiramente, apresentamos uma fundamentação teórica
com os principais conceitos para a construção deste trabalho, como a
compreensão de língua como discurso (subseção 2.1), os conceitos da
pedagogia crítica (subseção 2.2) e as principais ideias sobre letramento crítico
(subseção 2.3). Em seguida, traçamos a metodologia da pesquisa. Apontamos
sua natureza (subseção 3.1), apresentamos o contexto e as participantes da
pesquisa (subseção 3.2), bem como as estratégias para a geração e análise de
dados (subseção 3.3) e o projeto de intervenção (subseção 3.4). Por fim,
trazemos a análise dos resultados e algumas considerações finais.
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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nesta seção faremos um levantamento bibliográfico que servirá como


base para o entendimento de como práticas de letramento crítico podem ser
construídas na sala de aula em contexto de formação de professoras de Língua
Inglesa. Inicialmente, partimos de uma compreensão pós-estruturalista sobre
língua como discurso e as repercussões desse posicionamento para o ensino
de línguas (subseção 2.1). Em seguida, discutiremos os conceitos
fundamentais da pedagogia crítica (subseção 2.2). Por fim, discutiremos as
principais ideias sobre letramento crítico, apontando o Ciclo de Redesign
(JANKS, 2016) como uma possibilidade de organização metodológica para
uma prática pedagógica crítica (subseção 2.3).

2.1 Compreendendo língua como discurso

Para que compreendamos a concepção de língua que permeia as


práticas de letramento crítico em sala de aula de formação de professoras, é
primordial entendermos a relação entre língua e cultura. Segundo Kramsch
(1998) a língua expressa, materializa e simboliza cultura. Isso significa que a
língua é utilizada tanto para expressar crenças, ideias, pontos de vista, como
para materializar formas de comunicação através de elementos verbais e não
verbais, assim como para simbolizar identidades sociais.
Entretanto, falar a mesma língua não é um princípio para a sua
compreensão. Em outras palavras, podemos dizer que pessoas falantes de
uma mesma língua compartilham o mesmo código linguístico, mas não
necessariamente irão pertencer ao que Kramsch (1998) chama de comunidade
discursiva. Aqueles que fazem parte de um determinado grupo social enxergam
o mundo de certa maneira através da interação com outras pessoas
pertencentes ao mesmo grupo, pode-se afirmar então que essas pessoas
compartilham a mesma comunidade discursiva.
Para entendermos melhor a ideia de comunidade discursiva imaginemos
uma pessoa praticante de determinada religião cristã conservadora
conversando com uma pessoa transgênero - por mais que elas falem a mesma
língua, os posicionamentos discursivos delas provavelmente serão divergentes,
pois a primeira segue preceitos e ideologias religiosas que afirmam que Deus
criou o homem e a mulher e a outra simplesmente não se identifica com o seu
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gênero de nascimento, o que a leva a sofrer bastante preconceito. Portanto, é


possível dizer que a língua está dialeticamente relacionada à cultura mediando
a forma de pensar de seus usuários, servindo assim como uma maneira de as
pessoas construírem suas subjetividades e compreenderem as realidades. A
compreensão de língua e cultura como discurso perpassa questões como
gênero, sexualidade e raça.
Nessa perspectiva, para a elaboração do projeto pedagógico que visa a
desconstrução de propagandas machistas, partimos da compreensão de
gênero como uma construção discursiva tendo como base o pensamento de
Simone de Beauvoir (1970) de que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
Isso significa que o processo de identificação com o gênero é construído
através do discurso, da prática social, acontecendo a partir de uma ordem
cultural. Em contrapartida, a teórica pós-feminista Judith Butler (2015) trouxe a
concepção performativa sobre gênero. Enquanto Beauvoir segue a tradição
feminista ao tratar o gênero em oposição ao sexo de uma maneira biológica e
binarista, a concepção performativa de Butler engloba a diversidade de gênero,
porque para a autora tanto a o sexo como gênero são discursivamente
construídos, conceito que promove a inclusão de pessoas gays, bissexuais,
lésbicas, transgênero, assexuais e intersexuais neste discurso.
Dessa forma, associamos a relação entre língua e cultura proposta por
Kramsch (1998) e a compreensão de gênero como construção discursiva com
a concepção de Discursos que Gee (1999) utiliza, no plural e com D maiúsculo,
para expressar a junção entre língua e outros fatores como ação, interação,
valores, crenças, símbolos, objetos, ferramentas e lugares, de forma a nos
identificarmos como um tipo particular de “quem” (identidade) envolvidos em
um tipo particular de “o quê” (atividade) (GEE, 1999, p. 18). Quando falamos
em cultura, Discursos e comunidades discursivas estamos falando também em
identificação, ou trabalhos de identificação.
É graças ao fato de que nós humanos nos engajamos dentro e fora
das interações, em trabalho de identificação, que discursos existem
no mundo. (GEE, 1999, p. 20)

Os trabalhos de identificação estão reflexivamente interligados aos


Discursos, de modo que um cria o outro e podem representar rótulos que se
modificam com o passar do tempo ou de acordo com o contexto em que a
pessoa está inserida (GEE, 1999). Por exemplo, quando eu estou na sala de
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aula da Universidade eu me identifico como discente me comportando de tal


maneira que as outras pessoas irão me reconhecer através desse discurso
acadêmico, diferentemente de quando estou entre amigos, ou em família.
Existe uma maneira de ser e de se comportar em cada um desses contextos, e
um não anula o outro.
Para Moita Lopes (2002), o discurso é considerado uma construção
social, pois é através das interações que os significados são construídos. As
interpretações pessoais de cada contexto social em que estamos inseridos nos
leva a uma ação sob o mundo à nossa volta. O discurso está relacionado à
identidade porque é através da construção social que as pessoas formam suas
identidades a partir do momento em que tomam consciência de quem são, e
tudo isso acontece por meio da língua e em trabalhos de identificação (GEE,
1999). De acordo com Fairclough (2001) o discurso contribui para a construção
de identidades sociais, sendo tanto um modo de ação como também de
representação.
O discurso é socialmente constitutivo. (...) O discurso contribui para a
constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou
indiretamente, o moldam e o restringem; suas próprias normas e
convenções, como também relações, identidades e instituições que
lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de
representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo
e construindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, p. 91)
Sendo assim, o discurso serve tanto para construir as identidades e
relações sociais como também para a construção de sistemas de
conhecimento e crença. A prática discursiva, ao mesmo tempo que contribui
para a reprodução da sociedade através de relações sociais e sistemas de
crença, também contribui para a sua transformação (FAIRCLOUGH, 2001).
Kramsch (1998) complementa ainda que a cultura pode ser vista com um
“processo que inclui e exclui, implicando sempre no exercício de poder e
controle” (p. 8, tradução nossa).
A partir do momento em que passamos a nos reconhecer como seres
discursivos passamos também a questionar as posições de poder que nos são
impostas e os discursos hegemônicos que excluem pessoas através de
preconceitos começam a ser questionados. O ser crítico se desenvolve quando
reconhecemos os discursos como narrativas que mudam de acordo com quem
está contando a história, ou melhor, quem detém o poder. Quem disse que a
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cor azul é de menino e a cor rosa é de menina? Por que certo nível de nudez é
permitido para o homem e é mau visto na mulher? Por que a expressão “like a
girl” (como uma garota, em português) já foi sinônimo de ofensa para meninos
que fazem algo mal feito como praticar algum esporte, por exemplo? E por que
nós continuamos a reproduzir muitos desses discursos? Essas são algumas
das questões através das quais podemos exemplificar como os discursos são
ideologicamente marcados.
Cada um desses discursos é construído com alguma intenção e são
reproduzidos por meio da língua através dos textos. Ao falar em textos estamos
falando em materialidades multissemióticas e multimodais (ROJO, 2019) que
carregam consigo traços de parcialidade (JANKS, 2016). Entendendo a
semiótica como a produção e interpretação de signos (PIMENTA, 2001), um
texto pode ser formado por um ou por vários modos semióticos que podem ser
palavras e imagens, por exemplo, e isso nos leva ao que conhecemos como
multimodalidade (KRESS, 1989). Os textos também são produzidos de formas
particulares e em contextos específicos, sempre com a intenção de comunicar
algo a alguém. Com isso, podemos afirmar que “textos não são neutros”
(JANKS, 2016, p. 21), pois estão sempre representando um ponto de vista e
buscando posicionar o leitor através da interpretação pessoal de quem produz.
De acordo com Kress et. al. (1995), a compreensão da multimodalidade
é essencial para a leitura crítica de um texto, ou seja, a leitura crítica não deve
considerar apenas a linguagem escrita em detrimento de outros elementos do
texto. A interpretação de um texto deve se dar primeiramente pela
interpretação do contexto considerando outros modos semióticos além da
escrita. As propagandas analisadas durante a implementação do projeto
pedagógico apresentado posteriormente nesta pesquisa são exemplos de
textos multimodais e multissemióticos, pois se materializam através de
discursos que foram construídos socialmente e levam em conta diversos
aspectos além do texto escrito e da imagem, como a cultura, o contexto
histórico, a subjetividade da mensagem transmitida ao interlocutor, a
parcialidade, além do efeito que tal mensagem causa nos sentimentos do
público leitor.
Com base nessa perspectiva, percebemos que até mesmo a
organização da sala de aula é discursivamente construída e reflete relações de
19

poder, quando consideramos o arranjo das carteiras como um texto produzido


pela instituição escolar (PIMENTA, 2001). Há uma diferença entre o arranjo de
carteiras em formas de fileiras e em forma de círculo, por exemplo. No primeiro
temos uma organização com uma professora em pé e a turma voltadas em
direção a ela, o que nos leva a interpretar como uma certa relação de
autoridade e hierarquia. Já quando as carteiras são rearranjadas em forma de
círculo onde todos estão sentados, inclusive a professora, há uma facilidade na
interação podendo ser estabelecida uma relação de mais igualdade e
cumplicidade entre as alunas e a professora, possivelmente facilitando assim o
diálogo.
Diante dessa discussão sobre termos como língua, cultura, discurso e
texto, esperamos ter apresentado os conceitos de base que fundamentam a
constituição do que compreendemos como uma prática pedagógica crítica para
o ensino de línguas.

2.2 A Pedagogia Crítica e o ensino de Línguas

Se através do discurso podemos tanto manter relações de poder quanto


transformá-las (FAIRCLOUGH, 2001), como transformamos aquelas tão
fixadas na sociedade e ao mesmo fazer com que tal transformação possa
repercutir na nossa prática como professoras de línguas? Para que a
transformação ocorra é importante que o desenvolvimento da criticidade e o
reconhecimento da realidade através de uma práxis libertadora sejam
construídos.
Paulo Freire trouxe contribuições fundamentais para a compreensão da
educação crítica através de uma concepção marxista que associa a prática
docente com a práxis, ou relação dialética entre teoria e prática tendo como
objetivo provocar a mudança no mundo. Sua obra “Pedagogia do Oprimido”, foi
escrita entre 1964 e 1968 enquanto o autor se encontrava exilado no Chile,
sendo lançada apenas na década de 70, e coincidiu com o momento em que
surgiram ondas de crítica feminista e diversos outros movimentos de
conscientização e ativismo contra sistemas opressores, inclusive sistemas
educacionais tradicionais (ROSA FILHO e OLIVEIRA, 2021).
bell hooks em seu livro “Ensinando Pensamento Crítico: sabedoria
prática" afirma que antes da revolução feminista ganhar força “a educação era
20

usada como ferramenta para reforçar o sistema político do patriarcado”


(HOOKS, 2020, p. 145), isto é, refletido em uma concepção de educação
antidialógica através da qual a sociedade treina os meninos para valorizar o
silêncio acima da fala e esses aprendizes se tornam pessoas que não sabem
dialogar, passando a impor sua fala contribuindo para manterem uma relação
de dominação.
A educação crítica proposta por Freire (2020) propõe inicialmente que as
educandas tenham consciência do mundo em que vivem e das relações de
poder em que se encontram, consciência essa que se torna possível através do
pensamento crítico. Para bell hooks (2020), o sentido do pensamento crítico é
o anseio pelo saber, e manter-se em reflexão e transformação é sua
fundamental exigência. À medida que se busca o conhecimento vão surgindo
também certos estranhamentos associados à realidade e o pensamento crítico
vai se desenvolvendo a partir do momento em que a realidade causa
desconforto e impulso por mudança.
Dessa maneira, podemos dizer que o "crítico se refere à possibilidade de
se envolver em práticas discursivas que desafiem aquelas de ordem
dominantes e convencionalizadas” (ROSA FILHO e OLIVEIRA, 2021, p. 92).
De acordo com Luke (2005), é através do reposicionamento que podemos
desafiar essas práticas discursivas, ou seja, é quando nos colocamos no lugar
do outro, saindo do nosso próprio centro e passando a entender o mundo a
partir do lugar do outro, construindo assim o que chamamos de competência
crítica.
Em contextos pedagógicos, a construção da criticidade impulsionada por
Freire (2020) se inicia quando ele discute o conceito de “Educação Bancária”,
um modelo de ensino tradicional com base na mera transmissão de conteúdos,
na qual os aprendizes atuam como receptores passivos que absorvem
depósitos de informações servindo unicamente para atingir os objetivos dos
opressores. Em contraste com a Educação Bancária, Freire defende a
educação problematizadora, ou educação dialógica. Para o autor, o processo
de ensino e aprendizagem não deve ser autoritário como na concepção
bancária, porque não faz sentido manter a desigualdade que se critica. Para
isso, a relação entre alunas e professoras deve acontecer de maneira
21

dialógica, onde o papel da educadora é de mediadora e facilitadora do diálogo


nos espaços de sala de aula.
É importante que a relação educadora-aluna tenha caráter democrático,
permitindo que todas tenham voz no processo de construção da criticidade
através do engajamento e do que Freire (2020) chama de liderança
revolucionária.
“Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje
normalizado. Para o crítico, a transformação permanente da realidade
(...) somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz
também de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há
a verdadeira educação.” (FREIRE, 2020, p. 115)
A dialogicidade discutida pelo autor se configura como a base para a
Pedagogia Crítica. Ele considera o diálogo como a junção entre amor,
humildade, fé na humanidade, esperança e o pensar crítico. Não há como
provocarmos a mudança se não acreditamos nela, se não temos esperança
que podemos mudar a nós mesmos, se não temos humildade para reconhecer
que, como professoras e professores, nós não temos mais poder do que as
nossas alunas, mas sim caminhamos juntas neste constante processo de
busca pelo saber, apesar de estarmos posicionadas como mediadoras do
saber.
Na educação como ato de depositar não há espaço para mentes
abertas, muito menos para a criatividade e para o conhecimento capaz de
transformar. O objetivo é manter os discursos dominadores da sociedade
opressora, o que implica em uma dominação intelectual, busca-se mudar a
mentalidade das oprimidas impedindo-as de pensar criticamente. A verdadeira
educação acontece através do diálogo e de uma metodologia conscientizadora.
(FREIRE, 2020). Não devemos impor a nossa visão de mundo para nossas
alunas e alunos, mas sim instigar o desenvolvimento e compartilhamento de
suas próprias visões de mundo.
Apesar da obra de Paulo Freire não ter o foco no contexto de ensino de
línguas adicionais, ela é ponto de partida para elaborarmos um paradigma
educacional crítico voltado para tal, pois ensinar e aprender línguas significa
muito mais do que aprender a se comunicar e a se expressar. Uma aula de
línguas com foco na pedagogia crítica e com base na visão de língua como
discurso tem o papel de trabalhar temas que muitas vezes a escola tenta evitar
por medo de causar divergências, temas que fazem parte do contexto de vida
22

das nossas alunas e alunos e que podem ser considerados polêmicos por
muitos adeptos da pedagogia tradicional, como a abordagem do racismo,
machismo, identidades de gênero, lgbtfobia, entre outros. Esses são os temas
geradores que englobam os temas transversais (BRASIL,1998) podendo ser
abordados de diversas formas, seja através de leituras, rodas de conversa,
análises de textos, sempre mediados através do diálogo e do exercício da
empatia.
Para Tilio (2019), a aprendizagem de línguas adicionais permite aos
sujeitos o exercício do autoconhecimento através da consciência em relação
aos outros, o que contribui também para a autopercepção, para a tolerância às
diferenças e a desconstrução de estereótipos e preconceitos. Nesse sentido, a
língua é utilizada para formar sujeitos críticos através da percepção de si e dos
outros. Contudo, além da concepção de língua como prática social, para um
ensino de línguas com foco na pedagogia crítica, levamos em consideração
também a compreensão de inglês como língua adicional em contraposição ao
inglês como língua estrangeira, termo comumente adotado no senso comum
para se referir ao ensino e aprendizagem de línguas onde o falante nativo é
visto como um modelo para ser atingido.
Quando trazemos para a sala de aula temas que fazem sentido para
nossas alunas, como a desconstrução de preconceitos, questões de gênero,
raça e classe para a sala de aula, passamos a dar voz àquelas que têm o seu
lugar de fala e com isso estamos abrindo as portas para a transformação, pois
“nenhuma ‘ordem’ opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a
dizer ‘por que’?” (FREIRE, 2020, p. 107). Como professoras e professores,
temos o papel de permitir que a voz de nossas alunas seja ouvida e de
transformar o espaço de sala de aula em um espaço de diálogo, de doação e
compartilhamento de ideias possibilitando assim uma prática pedagógica
engajada.

2.3 (Re) construindo o letramento crítico

A palavra “letramento” começou a ser utilizada no Brasil em meados da


década de 80 a partir da tradução do termo em inglês “literacy” presente no
livro “No mundo da escrita” de Mary Kato. Paulo Freire utilizava o termo
“alfabetização” para se referir ao que hoje entendemos por letramento como
23

sendo o processo de “leitura do mundo que precede a da palavra, visão crítica


e que traz transformação” (ARAÚJO et. al., 2013, p. 3). Kleiman (1995, p. 19)
afirma que letramento não é um método, mas sim “um conjunto de práticas
sociais que usa a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia,
em contextos específicos, para fins específicos”. Para Rojo (2019):
O termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de
linguagem que envolve a escrita de uma maneira ou de outra, sejam
eles socialmente valorizados ou não, locais (próprios de uma
comunidade específica) ou globais, recobrindo contextos sociais
diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.), em grupos
sociais e comunidades culturalmente diversificadas. Difere, portanto,
acentuadamente, tanto do conceito de alfabetização quanto do de
alfabetismo(s). Letramento(s) é um conceito com uma virada
socioantropológica; alfabetismo(s) é um conceito de base
psicocognitiva; alfabetização designa uma prática cujo conceito é da
natureza linguístico-pedagógica. (ROJO, 2019, p. 16)
Enquanto algumas compreensões sobre alfabetização se restringem
apenas ao domínio da leitura e da escrita, o conceito de letramento vai além
dos signos escritos partindo de uma flexibilidade que leva em conta as
transformações constantes que as práticas de leitura e escrita passam no
decorrer do tempo. Rojo (2019) apresenta o termo Letramento(s), no plural,
além de Multiletramentos, ou ainda Letramentos Hipermidiáticos, considerando
que vivemos em um mundo tecnológico onde os textos se materializam nas
mais diversas modalidades além da escrita. Dessa maneira, textos são
considerados pela autora como materialidades multissemióticas.
De acordo com as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, a
concepção de letramento é vista como uma prática sociocultural que tem por
objetivo a inclusão digital e social, assim como o desenvolvimento da cidadania
das aprendizes, diferentemente do conceito limitador de alfabetização que
considera a linguagem fora de sua prática social e seus usuários como meros
consumidores da mesma. (BRASIL, 2005). Levando em consideração a
concepção anteriormente discutida sobre língua como discurso, nós
professoras de língua inglesa em formação devemos ter em mente que ao
ensinar outra língua não estamos ensinando apenas sua gramática, mas sim
toda a prática social que a engloba. (GEE, 1986). Além disso, quando falamos
em letramento devemos nos atentar para as diversas materializações textuais
que se apresentam na contemporaneidade além do texto escrito. A partir disso
24

surgem outros termos como letramento digital, letramento visual e


multiletramentos.
Todos os termos citados anteriormente - letramentos, multiletramentos,
letramentos hipermidiáticos - são utilizados para se referir a uma compreensão
pós-moderna sobre língua e textos através da prática discursiva se desfazendo
da visão tradicional normativa. Em vista disso, Tilio (2019) propõe a abordagem
sociointeracional de letramento crítico tendo como base o conceito de
multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP, 1996 apud TILIO, 2019)
considerando que o aprendizado de línguas deve levar em conta o
desenvolvimento de ações no meio social.
A partir de uma perspectiva sociointeracional, portanto, aprender uma
língua estrangeira implica em orientar e sensibilizar os/as estudantes
em relação ao mundo multilíngue e multicultural em que vivem,
conscientizando-os/as acerca de diferenças culturais e levando-os/as
a respeitar mais o outro e conhecer melhor a si mesmos/as (MOITA
LOPES, 2003), uma vez que é por meio do olhar do outro que se
aprende a se conhecer melhor. Além disso, o conhecimento dos
discursos em língua estrangeira pode permitir acesso aos mais
diferentes tipos de conhecimento no mundo globalizado
contemporâneo. O acesso à língua estrangeira, portanto, pode
permitir maior inclusão social no mundo globalizado. (TILIO, 2019, p.
195-196)
Sendo assim, a abordagem sociointeracional enfatiza a importância do
acesso aos discursos da língua com base no engajamento das estudantes de
maneira crítica e focada em temas que fazem parte de seu contexto de vida,
como os temas transversais, desenvolvendo a consciência crítica e a
capacidade de agir no mundo a partir dela. Janks (2016) argumenta que “o
trabalho com letramento crítico tem de levar em conta questões de poder,
diversidade e acesso” (p. 28), isso quer dizer que as relações de poder estão
interligadas à língua a partir do momento em que nos damos conta de que
textos são utilizados para convencer alguém de algo levando em consideração
a sua parcialidade.
Sabemos que a língua está em todas as partes da nossa vida e seu uso
implica em constante produção de textos, sejam orais ou escritos. Esses textos
não são neutros, ou seja, refletem os posicionamentos dos seus produtores, ou
como Janks (2016) descreve: “são representações parciais do mundo” (p. 23).
Portanto, o uso da língua implica na produção de textos com o objetivo de
gerar um posicionamento no público leitor. Quem produz os textos está a todo
tempo fazendo escolhas que podem ser inconscientes ou não, mas essas
25

escolhas nunca são imparciais. Um grande exemplo disso são as propagandas.


Quando uma determinada marca lança uma campanha publicitária para vender
seu produto, independentemente de ser um anúncio nas redes sociais ou um
comercial de televisão, o objetivo é persuadir as pessoas a comprarem tal
produto ou as convencerem de tal ideia, considerando que as propagandas não
vendem apenas produtos em si. Um exemplo ainda mais específico é o slogan
“abra a felicidade” da marca de refrigerantes Coca-Cola associando seu
produto à ideia de felicidade.
Com isso, entendemos que a língua é utilizada para propagar tais ideias
da mesma maneira que é utilizada também para criar convenções sociais
através de instituições como a religião, a política, e até mesmo a escola. Por
meio do letramento que leva em consideração questões de poder nos tornamos
mais conscientes e passamos a analisar os textos que são propagados a todo
momento através de um olhar crítico ao invés de aceitar e deduzir que as
coisas são como são sem nenhum questionamento.
Todavia, para analisar os textos precisamos considerar a construção de
sentidos como um processo que vai além dos aspectos linguísticos passando
também pelos aspectos multimodais e sociointeracionais. A partir disso, Tilio
(2019) apresenta o conceito de gêneros discursivos complementando a
designação que Janks (2016) faz de textos como discursos.
Gêneros discursivos são, portanto, manifestações sociais da
linguagem, materializadas em elementos verbais e/ou não verbais, e
intencionalmente selecionados e organizados com um objetivo
sociointeracional, dentro de uma esfera social, de modo a permitir
aos/às interlocutores/interlocutoras a construção de significados e sua
ação nessa esfera, em decorrência da ativação de conhecimentos
prévios de práticas socioculturais de uso. (Tilio, 2019, p. 203)

(...) o senso comum de pensar sobre o mundo próprio de nossas


comunidades se reflete na produção dos textos que criamos. Esses
textos são socialmente construídos em nossa sociedade. Podemos
designá-los como discursos, que são, nada mais nada menos,
vinculações que fazemos com valores, crenças e práticas sociais.
(JANKS, 2016, p. 25)

Podemos dizer que todo texto é carregado de discurso e, com isso,


carregado também de convenções e regras sociais que moldam a nossa
compreensão sobre o mundo. Se tais textos são construídos por meio da
língua também é através dela que podemos questionar esses gêneros
26

discursivos a fim de reconstruir novas maneiras de agir sobre o mundo. Vimos


na subseção anterior que a concepção pedagógica chamada de Educação
Bancária tem o intuito de educar para manter as relações de poder entre
opressores e oprimido, por outro lado, o ensino de língua inglesa com base no
letramento crítico objetiva o questionamento de tais relações de poder através
do uso da língua visando sua transformação.
Levando em consideração esses apontamentos, Janks (2016)
apresentou o ciclo de Design e Redesign de textos como um esquema
metodológico que leva à construção do que entendemos por Letramento
Crítico, como podemos observar ilustradamente na figura abaixo:
Figura 1 - Ciclo de Redesign

Fonte: JANKS, 2016

O design se refere ao processo de criar e moldar os textos passando


pelos aspectos multimodais de escolhas de sentido. Já o redesign é o processo
de reconstrução dos textos que já existem, em outras palavras, é o que
fazemos a partir do design. Na Figura 1 observamos que o ciclo de redesign é
composto por três atos que estão interligados: (1) nomeia-se e constrói o texto
(design); (2) encontra-se o problema através da desconstrução do discurso que
se encontra no texto; e (3) ocorre a reformulação ou a reconstrução, ou seja,
uma nova maneira de expressar o que havia sido expressado antes (redesign).
“Redesign é um ato de transformação. (...) A partir de uma
perspectiva de Letramento Crítico cada Redesign deve contribuir para
criar um mundo em que o poder não seja usado para desempoderar
27

os outros, em que a diferença seja vista como um recurso e em que


todos tenham acesso aos bens sociais e às oportunidades.” (JANKS,
2016, p. 36-37)

Sendo assim, o ciclo de Redesign pode ser entendido como uma


possibilidade de mudar relações de poder já estabelecidas no discurso através
da constante (des)construção do letramento crítico tanto por parte de
professoras em formação como professoras já atuantes.
28

3. METODOLOGIA

Nesta seção apresentaremos o âmbito metodológico da pesquisa.


Inicialmente fazemos uma explanação acerca da pesquisa-ação de natureza
qualitativa e sua contribuição para os estudos em ensino-aprendizagem de
línguas (subseção 3.1). Após isso faremos a contextualização e
apresentaremos os participantes da pesquisa (subseção 3.2). Em seguida
apresentaremos as estratégias para a geração de dados, bem como as etapas
pedagógica e investigativa (subseção 3.3) juntamente com o desenho
metodológico do projeto (subseção 3.3.1). Por fim, serão apresentadas as
estratégias para a análise de dados (subseção 3.4).

3.1. Natureza da Pesquisa: pesquisa qualitativa e pesquisa-ação no


contexto de ensino-aprendizagem de LI

A presente pesquisa é de natureza qualitativa e tem como base a


investigação e transcrição de uma realidade por meio de uma perspectiva
crítica e discursiva. As pesquisas qualitativas têm se mostrado de grande
importância para investigar e intervir no processo de ensino-aprendizagem de
línguas se diferenciando das pesquisas tradicionais que visam apenas
desenvolver teorias e aplicá-las de maneira generalizada.
De acordo com Bazarim (2008), na pesquisa qualitativa a pesquisadora
se apropria de concepções teóricas e metodológicas desde o momento de
escolha do objeto de pesquisa até a delimitação dos objetivos, ocorrendo
mudanças constantes durante esse processo. Além disso, esse processo
carrega parcialidades da pesquisadora sobre sua própria visão acerca do
contexto educacional.
A maneira de construir o objeto de pesquisa, portanto, não é neutra,
pois a forma como o pesquisador olha a realidade é influenciada por
esses discursos (e também por suas crenças e valores) (BAZARIM,
2008).
Essa ideia de parcialidade pode ser associada com a concepção de
Janks (2016) de que não há textos neutros. Sendo assim, a nossa forma de
interpretar a realidade discursiva também não é neutra, e é com base nessa
perspectiva que o presente estudo carrega narrativas em primeira pessoa
representando a minha interpretação da experiência pedagógica vivenciada. E
para chegar nos resultados foram desenvolvidos planos de intervenção com a
29

minha participação ativa no ambiente de sala de aula. Por este motivo, o


estudo de natureza qualitativa apresentado se configura, mais especificamente,
com uma pesquisa-ação.
A pesquisa-ação é um tipo de abordagem da pesquisa qualitativa que
implica na participação da pesquisadora de forma ativa, tanto como
observadora quanto como responsável por sua própria prática. Enquanto na
pesquisa tradicional tende a haver uma separação entre teoria e ação e entre
pesquisa e prática, na pesquisa-ação essas concepções são indissociáveis
visto que fazem parte da práxis docente.
A pesquisa-ação pode ser definida como uma investigação conduzida
por educadores em seus próprios cenários, a fim de melhorar sua
prática e o aprendizado de seus alunos (…) Um número crescente
desses profissionais abraçaram a pesquisa-ação e a veem como um
modelo viável para modificar e melhorar o processo de ensino-
aprendizagem. (EFRON, 2013, p. 2, tradução nossa)
Ao falar em educadores e profissionais da educação, a autora engloba
todos os colaboradores que compõem a educação, desde professores até
mesmo administradores da instituição escolar. Existe um engajamento entre os
agentes da instituição escolar, seja na Educação Básica, ou na Universidade, o
objetivo é sempre melhorar a prática levando em consideração os diferentes
contextos e as particularidades de cada ambiente e de cada participante.
Destacamos as etapas da pesquisa-ação de acordo com Efron (2013)
que aponta a abordagem como sendo cíclica, situacional, prática e sistemática
e que ocorre de uma maneira dinâmica e fluida.
Etapa 1: Identificar uma questão ou problema que deseja explorar
Etapa 2: Reunir informações básicas por meio de uma revisão de
literatura e pesquisas existentes sobre o tema
Etapa 3: Projetar o estudo e planejar os métodos de coleta de dados
Etapa 4: Coleta de dados
Etapa 5: Analisar e interpretar dados
Etapa 6: Escrever, compartilhar e implementar as descobertas
(EFRON, 2013, p. 8, tradução nossa)

O ciclo da pesquisa apresentado através dessas seis etapas não deve


ser interpretado como algo fechado, pois é um processo contínuo que muitas
vezes não chega a um resultado final acabado, e por ser cíclico está em
constante mudança e transformação.
30

3.2. Contexto e participantes

A presente pesquisa-ação de natureza qualitativa foi implementada na


disciplina de Prática Pedagógica Programada VI (PPP VI), componente
curricular obrigatório do curso de Licenciatura em Letras Inglês da
Universidade Federal Rural do Semiárido no município de Caraúbas - RN.
Estavam matriculados na turma 12 discentes do sétimo período de Letras
Inglês, porém apenas 10 responderam o questionário e participaram
ativamente das aulas do projeto. Dentre as 10 discentes participantes, 7 se
identificaram com o gênero feminino e 3 com o gênero masculino. E a faixa
etária entre elas variava entre 21 e 36 anos.
A ementa da disciplina teve como objetivo central desenvolver práticas
de estudo e investigação sobre o ensino de língua inglesa a partir de uma
perspectiva crítica. O plano de curso de PPP VI foi dividido em três etapas de
acordo com as unidades letivas do semestre de 2021.2. Embora o projeto
pedagógico tenha sido implementado somente na terceira etapa, é importante
frisar que o plano de curso foi elaborado visando o desenvolvimento da
criticidade das discentes para que as professoras e professores em formação
pudessem despertar seu olhar crítico em relação ao ensino de Língua Inglesa.
Na primeira etapa, foi apresentado o plano de curso e abordado o
sentido do crítico. O objetivo foi reconfigurar a compreensão sobre língua
inglesa e ensino de LI a partir de uma reflexão crítica acerca das concepções
sobre línguas na contemporaneidade. Foi abordada a ideia de Inglês como
Língua Franca em oposição ao Inglês como Língua Estrangeira, bem como a
problematização do mito do falante nativo, apresentando as bases para o
desenvolvimento de um ensino intercultural. Também nessa etapa, foi
estudado sobre a concepção de Língua como discurso aprofundando-se no
estudo da teoria social do discurso. A dinâmica da unidade esteve pautada em
leitura e discussão de textos, a qual o professor chamou de "exposição
dialogada" (JORDAO, 2014; GIMENEZ, 2008; FAIRCLOUGH, 2001; MOITA
LOPES, 2002; KRAMSCH, 1998).
Já a segunda etapa consistiu em um movimento teórico-prático, algo
essencial para a construção de uma práxis crítica. Nessa etapa, as leituras
levaram em consideração a construção conceitual que foi feita na etapa
31

anterior com o intuito de pensar em repercussões para o ensino de línguas. Em


termos metodológicos e avaliativos, houve uma dinâmica de apresentação de
seminários tendo como pergunta central "Como podemos ensinar línguas a
partir de uma perspectiva crítica de língua como discurso?". Para responder a
esse questionamento, foram lidos artigos, capítulos e documentos oficiais que
nos orientaram para uma elaboração metodológica centrada na ideia de
"letramento crítico".
Por fim, na terceira e última etapa, foi implementado o projeto
pedagógico intitulado “Show them we can change the world: deconstructing
sexists discourses in advertisements”, o qual foi desenvolvido por mim e será
apresentado com mais detalhes nas seções subsequentes.

3.3. Estratégias para a geração de dados e instrumentos de pesquisa

De acordo com Bazarim (2008) existe uma diferença entre gerar e


coletar dados ou registros de uma pesquisa e isso depende do nível de
participação da pesquisadora. Na pesquisa-ação a professora/pesquisadora é
agente principal do objeto de estudo, pois é através de sua prática e das
interações que ele se concretizará.
Para se chegar ao objetivo central desta pesquisa-ação de investigar
como a criticidade pode ser colaborativamente construída numa experiência de
formação inicial de professores de língua inglesa, a metodologia foi desenhada
através de um âmbito pedagógico e o outro investigativo. Na fase pedagógica
foi feita a definição do tema e elaboração do projeto, bem como a sua
implementação na sala de aula em contexto de formação docente. Já na fase
investigativa, houve a análise dos dados gerados a partir da experiência
pedagógica. A tabela abaixo sistematiza as duas fases da pesquisa:

Tabela 1 - Desenho metodológico da pesquisa

Fase Pedagógica Fase Investigativa

Definição do tema do projeto Transcrição dos episódios de sala de aula

Elaboração do projeto pedagógico Implementação de questionário


32

Implementação do projeto em sala de aula Análise das interações com base nos
objetivos e problematização da pesquisa

Fonte: elaborado pela autora.

Os instrumentos para a geração de dados decorrentes deste projeto de


pesquisa levaram em consideração procedimentos metodológicos, tais como:
gravações de voz, diário da pesquisadora, e um questionário realizado através
do Google Forms e implementado ao final da disciplina que correspondeu à
prática final do projeto. Este questionário visou tanto a coleta de dados das
discentes como a reflexão sobre suas experiências durante as aulas através de
suas perspectivas como professoras e professores em formação.
No decorrer da prática foram realizadas gravações de áudio e essas
gravações contribuíram para a construção do que eu chamei de diário da
pesquisadora, ou diário de campo. O diário serviu para transcrever as
interações mais pertinentes bem como expressar minhas impressões sobre
cada prática, já fazendo uma breve análise sobre o desenvolvimento da
criticidade das discentes.
Além dos instrumentos citados, também foi utilizada a análise das
produções das discentes durante e após a implementação do projeto. A seguir,
será mostrado com mais detalhes como se deu a elaboração do projeto
pedagógico de intervenção.

3.3.1. O projeto de intervenção - “Show them we can change the world:


deconstructing sexists discourses in advertisements"

O projeto implementado no âmbito prático-pedagógico desta pesquisa


ocorreu por meio de quatro encontros presenciais e um encontro remoto
através da plataforma Google Meet. Foi elaborado um material com o desenho
sistematizado das práticas do projeto, para facilitar o planejamento das aulas
(ver anexos). Além disso, foram promovidas atividades escritas, debates e
discussões em grupo a respeito do objeto principal de estudo, as propagandas.
Considerando o que foi estudado e debatido nas duas primeiras
unidades da disciplina de PPP VI sobre a concepção de língua como prática
social, pedagogia crítica e o conceito de letramento/alfabetismo crítico, a
implementação do projeto pedagógico intitulado “Show them we can change
33

the world: deconstructing sexists discourses in advertisements" teve o intuito de


fazer com que as professoras e professores em formação pudessem
experienciar na prática tudo aquilo que havia sido estudado previamente nos
textos teóricos. Para isso, elas tiveram que assumir a posição de alunas de
língua inglesa durante as práticas e ao final do projeto, através da perspectiva
de professoras em formação, analisaram como as práticas vivenciadas
contribuíram para sua formação docente crítica.
Paulo Freire (2020) defende uma metodologia conscientizadora capaz
de inserir as pessoas em uma forma de pensar o mundo criticamente, isso leva
ao que ele chama de temas geradores. Os temas geradores estabelecem
relação com o conteúdo programático, e devem ser selecionados de acordo
com o que faz sentido àquela realidade discursiva, pois “é na realidade
mediatizadora, na consciência que dela tenhamos, educadores e povo, que
iremos buscar o conteúdo programático da educação” (FREIRE, 2020, p. 121).
Tendo isso em mente, o tema gerador/conteúdo programático que
motivou a elaboração deste projeto foram as propagandas que reproduzem
discursos machistas. O título do projeto é resultante de um jogo de palavras
feito com a frase de uma propaganda misógina dos anos 50 que diz “Show her
it’s a man’s world”. Ao pensar em uma maneira de transformar esse discurso,
eu resolvi reformular a frase de modo que ela gerasse um discurso
transgressor, sendo assim, sua reformulação ficou “Show them we can change
the world”. Inicialmente eu pensei em manter o pronome her, porém o pronome
them carrega um tom mais inclusivo e abrangente. As figuras abaixo mostram a
propaganda dos anos 50 e a capa do projeto com seu título que foi construído
através da reformulação da frase presente no texto publicitário.
34
Figura 3 - Propaganda dos anos 1950 Figura 2 - Capa do projeto pedagógico

Fonte: Google Fonte: elaborado pela autora


Além de pensar em uma temática que pudesse despertar o pensamento
crítico se encaixando nos temas geradores de Paulo Freire (2020), a escolha
por analisar propagandas também se baseou na concepção de língua como
discurso (FAIRCLOUGH, 2001) e de textos como materialidades
multissemióticas (ROJO, 2019), visando sua transformação através do ciclo de
redesign (JANKS, 2016).
Como foi discutido no capítulo teórico, a prática discursiva contribui tanto
para a reprodução como para a transformação da sociedade. As propagandas
são exemplos de materialidades multissemióticas que reproduzem discursos
hegemônicos refletindo as parcialidades daqueles que detém o poder. Este
processo tende a permitir a naturalização de discursos preconceituosos e ao
mesmo tempo pode gerar também desconforto nas pessoas que não se
sentem representadas por tais discursos, o que leva à sua transformação.
A transformação de textos propagandísticos presentes neste trabalho foi
pensada com base no ciclo de redesign da autora Hilary Janks (2016) que
consistiu no processo de selecionar as propagandas nas suas mais diversas
materialidades, referindo-se ao ato de design; analisar essas materialidades
através de um olhar crítico identificando seus problemas e já pensando em
uma maneira de refazê-las; e por fim, a ação de desconstruir tais
materialidades resultando em uma nova propaganda, resultando no ato de
redesign.
35

Como o objetivo deste trabalho esteve pautado em uma experiência de


letramento crítico e no ciclo de redesign, o projeto foi desenvolvido de acordo
com a organização abaixo:
Tabela 2 - Organização do projeto “Show them we can change the world”

CICLO DE
REDESIGN PRÁTICAS DESENHO DESENVOLVIMENTO
(JANKS, 2010) METODOLÓGICO CRÍTICO

Prática 01 O potencial para


Brainstorming reconhecer diferentes
Estudo do gênero tipos de propaganda e
Advertisement - textual propaganda. identificar seu propósito
social.
what do I know
about it?

DESIGN

O potencial de analisar
Prática 02 Problematização sobre criticamente propagandas
Thinking Critically as representações que reproduzem discursos
femininas em machistas ao longo dos
What is it like to propagandas. anos e refletir sobre como
essas propagandas
be represented as
refletem nossa sociedade
a girl? atual.

Construção de O potencial criativo para


Prática 03 discursos reconstruir os discursos
Creating transgressores por presentes nas
meio da propagandas para
desconstrução de transformá-los em
Deconstruct to
propagandas que discursos transgressores
transgress! incomodam os mantendo a
REDESIGN alunos. intertextualidade entre as
propagandas.

Prática 04 Reflexão sobre o O potencial para refletir


Reflecting que as alunas sobre as práticas de sala
aprenderam como de aula relacionando-as
Thinking Like a professoras críticas. com a criticidade
desenvolvida ao longo do
Critical Teacher
curso.

Fonte: adaptado de ROSA FILHO e OLIVEIRA (2021).


A fase correspondente ao Design consistiu nas práticas de
Brainstorming e Thinking Critically. Já as práticas de Creating e Reflecting
foram correspondentes ao ato de redesign.
36

A prática de Brainstorming teve como objetivo principal o conhecimento


do gênero textual propagandístico e a compreensão de suas principais
características e propósito comunicativo. A ideia foi trazer propagandas dos
mais diversos tipos e nas mais diversas materialidades, tais como imagens,
vídeos, propagandas em outdoors, anúncios do youtube, propagandas online,
entre outras, para que pudéssemos analisar o que a propaganda estava
tentando transmitir e identificar suas características.
A segunda prática, o Thinking Critically, visou despertar o pensamento
crítico das discentes ao analisar e problematizar as representações femininas
nas propagandas. Foram realizadas três tarefas de análises propagandísticas,
a primeira mostrava propagandas machistas dos anos 50, a segunda trazia
propagandas mais contemporâneas que objetificam o corpo da mulher, e a
terceira se tratava de um comercial que empoderar as mulheres e ressignificar
o termo machista “like a girl”. O intuito desta prática foi trazer propagandas
problemáticas que gerassem um desconforto na turma seguido de uma
transição para um discurso mais transgressor de modo que elas pudessem
perceber o poder que a propaganda tem de representar ideologias.
A partir daí adentramos para a fase de Redesign. A prática que
denominamos Creating foi o momento em que pudemos perceber o
desenvolvimento da criticidade das discentes através de uma tarefa de
recriação de propagandas. A tarefa consistiu em uma análise de uma
propaganda que causasse algum tipo de desconforto seguida da transformação
dessa mesma propaganda de modo que ela não reproduzisse tal discurso e
gerasse justiça social. A intenção foi fazer com que as discentes se sentissem
livres para expressarem sua criatividade através de elementos
multissemióticos, bem como para escolher a propaganda que mais lhes
chamasse atenção e pensar na melhor maneira de reconstruí-la.
Por fim, temos a prática denominada Thinking Critically, a qual foi
enviado um questionário do Google Forms com o objetivo de investigar como a
experiência vivenciada durante o projeto contribuiu para a formação crítica das
professoras em formação.
37

3.4. Estratégias para a análise de dados

Os dados gerados através da implementação do projeto pedagógico


foram analisados com base no seguinte questionamento: que repercussões
teóricas e práticas a respeito da criticidade puderam ser desenvolvidas a partir
de uma experiência de formação crítica de professoras de inglês? Pensando
nisso, as interações as quais foram chamadas de episódios de sala de aula
foram selecionadas com base nos apontamentos teóricos explanados na seção
bibliográfica deste trabalho. Para preservar a identidade das discentes, foram
criados pseudônimos, e durante a organização dos dados desta pesquisa
foram utilizadas as convenções de transcrição como mostradas na tabela
abaixo:
Tabela 3 - Convenções de transcrição

Símbolo Convenção

P1 Professora – Pesquisadora

P2 Professor da disciplina de PPP VI

D Discente

Ds Mais de uma discente

… Pausa curta

(...) Pausa longa

Fonte: adaptado de McKay (2006)

Além das interações de sala de aula, também foram analisadas as


produções discente. Eu selecionei e analisei apenas três das produções devido
às dimensões desta pesquisa. Contudo, as demais produções se encontram
disponíveis no Anexo VII ao final do trabalho.
Por fim, foi feita a análise das respostas do questionário com base nas
concepções de uma práxis reflexiva. As respostas também foram selecionadas
levando em considerações os apontamentos teóricos e a problematização da
pesquisa, e as demais respostas se encontram disponíveis no Anexo VIII.
38

4. ANÁLISE E RESULTADOS

Tendo como objetivo geral investigar como a criticidade pode ser


colaborativamente construída numa experiência de formação inicial de
professores de língua inglesa, neste capítulo apresentaremos uma análise
reflexiva sobre a etapa de implementação do projeto, investigando se e como
as interações de sala de aula puderam colaborar para a compreensão da
criticidade como uma competência discursivamente construída. A partir desse
enquadramento investigativo, a seguinte pergunta de pesquisa foi formulada:
que repercussões teóricas e práticas a respeito da criticidade podemos
desenvolver a partir de uma experiência de formação crítica de professoras de
inglês?
A sistematização de análise seguirá o fluxo de implementação das
atividades do projeto Show them we can change the world: deconstructing
sexists discourses in advertisements, conforme apresentado na Tabela 2
(subseção 3.4). Como estratégia de análise de dados, elaboramos uma análise
discursiva nos ancorando nas mais diversas materialidades que emergiram no
decorrer da pesquisa, a saber: interações de sala de aula e produções
discentes.

4.1. Prática 1: Brainstorming - Advertisement: what do I know about it?

A primeira prática do projeto, intitulada Brainstorming, refere-se à fase


de design proposta por Janks (2016) em seu modelo de letramento crítico que
se trata do processo de seleção e reconhecimento de textos. O objetivo da
prática foi conhecer o gênero textual "propaganda" e identificar suas principais
características e propósitos. Para dar início à tempestade de ideias, eu
perguntei para as discentes o que vinha em suas mentes quando elas viam a
palavra “advertisement”. Ao passo que elas falavam, fui escrevendo na lousa
suas respostas - “to announce a product”, “to share ideas”, “to create an
opinion”, “to convince” “to attract”, foram algumas das respostas citadas.
A partir disso, passamos a discutir uma ideia geral sobre o que se trata a
propaganda. Vale ressaltar que o diálogo foi mediado em língua inglesa, mas
nem todas se sentiram confortáveis e optaram por se expressar em português,
contudo isso não interferiu no propósito interativo da prática. É importante
ressaltar que de acordo com uma perspectiva crítica de ensino de inglês, à qual
39

nos inscrevemos, a sala de aula é um espaço para dar voz às alunas e às


diferentes realidades sociais às quais pertencem e, muitas vezes, essas
práticas acontecem justamente quando existe a possibilidade e a legitimidade
de sermos translíngues (GARCÍA; LEIVA, 2014 apud ROSA FILHO, 2019).
Figura 4- Análise de propagandas da Coca-Cola

Fonte: Google.

Posteriormente, passamos a analisar duas propagandas da Coca-Cola,


como mostra a figura abaixo. Pedi para que as discentes observassem o
máximo de detalhes possível, além do que estava escrito para então elas
responderem o que a propaganda estava tentando vender.

No episódio destacado logo abaixo, temos o momento de diálogo


resultante da análise dessas duas propagandas:
Episódio 01 - Propaganda: produto ou ideia?
01. P1: Let's analyze the sentences, the effects. O que vocês
02. acham que as propagandas estão tentando vender?
03. D.Júlio: Coca-cola?
04. P1: What else?
05. P2: In terms of product we can say it’s coke, right? Coca-cola.
06. This is the product..
07. D. Júlio: Também ela pode estar vendendo ali, felicidade em
08. família.
09. P1: “open happiness”
10. D. Júlio: No caso está tentando vender a felicidade
11. D.Yasmin: Felicidade engarrafada
12. P1: Can we sell happiness in a bottle?
13. Ds: In a bottle? No
14. P2: It caught my attention when you said that advertisements
15. can sell ideology. Based on this perspective, which ideology do
16. you think is being sold?
17. D. Vinícius : É porque eu não pensei exatamente nesse caso
18. né, mas tipo ...não sei se isso conta com ideologia mas assim
19. no sentido de de que é pra ser feliz né talvez você precise
20. tomar o produto como se… você só fosse feliz se você tomar
21. este produto
22. P1: Very good, what do we have here? a family, right? a happy
23. family… “Family time is the best time.. taste the feeling”.
24. What does it make us think? Are they trying to sell a
40

25. happiness that exists? Or not? Vocês acham que essa


26. felicidade que a propaganda está tentando vender existe?
27. D. Júlio: Primeiro depende, eu acho que a felicidade em si ela
28. não existe, pode existir momentos felizes na nossa vida, a
29. felicidade em si eu acho que não, mas pode ser que eu esteja
30. errado, possa ser que a felicidade realmente exista, mas na
31. minha opinião existe momentos felizes
32. D.Vinícius: Ninguém é feliz vinte e quatro horas
33. P1: What is the purpose of the brand coca cola by associating
34. its product with the idea of happiness?
35. D. Vinícius: Convencer as pessoas a comprarem né, vender…
36. P1: The next question was “Can we say these ads are trying to
37. sell a product or an idea?
38. D. Júlio: Both

Nas linhas 07-11, o discente e sua colega observaram que a marca


Coca-Cola está tentando vender, respectivamente, felicidade em família e
felicidade engarrafada. A partir de tal observação das estudantes podemos
afirmar que elas conseguiram analisar o texto além do que estava escrito. O
diálogo foi sendo mediado sempre por meio de perguntas provocadoras
justamente com o objetivo de motivá-las a enxergar além do sentido literal do
texto, buscando atentar-se também para os elementos multissemióticos.
Nas linhas 22-26 eu pergunto se as discentes acreditam que a
felicidade propagada pela marca realmente existe, para chegar à resposta elas
precisaram refletir através de seus conhecimentos de mundo. Quando
perguntei qual o propósito da marca ao associar seu produto com o ideal de
felicidade (L. 33-35) o aluno respondeu que o propósito é vender, ou ainda,
convencer as pessoas a comprarem o produto. Ao observarmos a interação
presente no Episódio 01, já podemos perceber traços de criticidade quando as
discentes apontam que o propósito da propaganda é posicionar o público, ou
seja, persuadir, convencer as pessoas a consumirem seu produto. Com isso,
observamos no episódio em destaque, o reconhecimento das discentes da
parcialidade presente nos textos, o que Janks (2016) afirma ser o ponto de
partida para uma leitura crítica.
A partir da análise da interação presente no Episódio 01,
compreendemos também que a aula de língua inglesa foi utilizada como um
espaço propício para expressar ideias, crenças e pontos de vista por meio do
diálogo entre professoras e estudantes (KRAMSCH, 1998). Podemos afirmar
que diversos conhecimentos são acionados quando estamos analisando as
propagandas, conhecimentos que vão além do que está explícito no texto
41

publicitário, como a concepção de felicidade, por exemplo, uma ideia subjetiva


a qual cada uma terá o seu próprio ponto de vista com base em suas
experiências individuais, e dificilmente nos levará a uma resposta fechada.
Através da interação, percebemos também uma prática pedagógica
engajada capaz de formar professoras e estudantes autônomas no processo
de ensino-aprendizagem. Ao assumirmos o papel de conduzir as nossas
aprendizes por meio da conversa a pensar de maneira crítica e participativa, o
conhecimento passa a ser visto como algo coletivo e as estudantes se tornam
protagonistas de sua própria aprendizagem (HOOKS, 2020). Sendo assim, eu
me desfiz de perguntas que poderiam ter uma resposta correta e fui sendo
guiada pelo diálogo através do qual cada fala contribuiu de alguma maneira
para a construção da interação até chegarmos ao consenso de que a
propaganda serve para vender tanto produtos como ideologias.
Após este momento, fizemos mais tarefas de identificação e análise de
propagandas, nos atentando para os diferentes gêneros, bem como tipos e
modos, como propagandas impressas, de televisão, online, entre outras. O
intuito era que as discentes se familiarizassem com os mais variados meios em
que a propaganda é apresentada, chamando atenção para os aspectos verbais
e não-verbais. Em seguida, entreguei a atividade de Brainstorming 02 (ver
Anexo I) que ficou como tarefa de casa.
Iniciamos a aula seguinte ainda com a prática de Brainstorming
compartilhando as impressões sobre a atividade. Foram exibidas as perguntas
nos slides, (ver anexo II) e, mais uma vez, as alunas se sentiram mais à
vontade interagindo em português. Para esse momento de discussão, a sala de
aula foi organizada em um círculo mais fechado de modo que eu estivesse
mais próxima das alunas rompendo com o arranjo tradicional de carteiras em
fileiras com a professora em pé e à frente da classe. Durante a aula pude
percebê-las mais engajadas e encorajadas a interagir, mesmo que a maior
parte da interação tenha sido feita em português. A intenção continuou sendo a
de incentivar o diálogo, e eu pude sentir uma espontaneidade em relação à
mediação, sem cobranças de conteúdos fixados ou tarefas voltadas para
estruturas gramaticais. No episódio abaixo destaco mais um diálogo relevante
para a nossa análise:
Episódio 02 - O que é representatividade?
42

39. P1: Do you think everybody feels represented in


40. advertisements? Why?
41. D.Fernando: eu acho que a representatividade ela é um, uma
42. coisa assim invisível de fato, mas que ninguém consegue ter
43. na sua completude, tipo assim, dificilmente você vai encontrar
44. em outra pessoa a representatividade, porque às vezes por
45. exemplo às vezes aquela pessoa tem o mesmo gênero que
46. você, tem as mesmas ideologias políticas que você tem os
47. mesmo gostos de filme de música de tudo mas aquela pessoa
48. teve uma criação totalmente diferente da sua e o que vai ser
49. representativo para ele é o que estiver mais similar à bolha
50. que ele nasceu aos discursos que ele ouviu, as coisas que
51. foram construindo essa identidade …a representatividade eu
52. sempre gosto de questionar porque eu acho uma palavra que
53. não … que ela nunca se encaixa, eu não acho que a
54. representatividade consegue se encaixar … porque você
55. coloca às vezes as suas experiências, as suas subjetividades e
56. projeta que aquela pessoa vai devolver aquilo na mesma
57. medida.

Podemos analisar o ponto de vista do aluno sobre representatividade (L.


41-57) através da concepção de Moita Lopes (2006) à respeito da influência do
outro na construção da percepção de si mesmo, ou seja, é através das nossas
práticas discursivas que são construídas nossas identidades sociais. Embora
nos identifiquemos através do outro, devemos ter em mente que somos seres
subjetivos e cada processo de interação gera uma interpretação particular a
respeito do contexto experienciado. Em outras palavras, estamos em constante
processo de construção de nossas identidades a depender sempre da
experiência vivenciada por cada indivíduo, e por mais que nos identifiquemos
com o outro, ainda assim teremos nossas particularidades.
A aula de línguas com foco na construção do pensamento crítico através
da análise de propagandas nos leva a inúmeras possibilidades de temas
permitindo que todas tenham algo particular para falar, seja por meio de
exemplos ou até expressando suas próprias opiniões sobre o tema. Com isso,
chamo atenção para a importância de dar voz às nossas alunas trazendo à luz
o que Paulo Freire (2020) propõe como liderança revolucionária a fim de
garantir uma educação democrática. Como professoras mediadoras, o nosso
papel é garantir, por meio da liderança revolucionária, que o momento de
ensino e aprendizagem se torne um momento de compartilhamento, onde todas
possam se expressar.
Durante a prática de Brainstorming, pudemos observar a criticidade
como uma construção discursiva a partir de alguns aspectos particulares.
43

Primeiramente, no episódio 1 (L. 01-38), observamos a criticidade como um


olhar desconfiado em relação à literalidade de um discurso, ao que Luke (2018)
se refere como uma "estranheza", isso se deu a partir do momento em que as
discentes passaram a analisar o texto propagandístico levando em
consideração os aspectos multimodais e foram capazes de reconhecer sua
não-neutralidade (KRESS et. al., 1995; JANKS, 2016). No episódio 2 (L. 39-57),
a criticidade pôde ser compreendida como um movimento dialógico de
expressão de si, de um posicionamento particular em relação aos textos que
nos circulam (KRAMSCH, 1998). Os episódios destacados foram apenas
alguns exemplos de como a interação contribuiu para uma prática pedagógica
dialogada. A seguir veremos mais exemplos de tarefas críticas analisando
propagandas.

4.2. Prática 2: Thinking Critically - What is it like to be represented as a


girl?

A segunda prática do projeto, a qual dei o título de 'Thinking Critically:


what is it like to be represented as a girl?' (ver Tabela 3), também correspondeu
ao ato de compreensão dos sentidos incluídos em um texto, ao qual Janks
(2016) se refere como design. O objetivo dessa prática do projeto foi promover
a problematização acerca das representações femininas presentes nas
propagandas ao longo do tempo e com isso despertar o pensamento crítico das
discentes. Esta etapa teve início após a discussão sobre a atividade de
Brainstorming 02, e foi dividida em três tarefas, as quais chamei de Task 01,
Task 02 e Task 031.
A Task 01 consistiu na análise de 05 propagandas da década de 1950 e
as discentes buscaram responder às perguntas: (01) What is being advertised
in each example? (02) What do these images have in common? (03) How do
you personally feel by seeing these advertisements? Why? (04) How are
women represented in these ads? (05) Through these ads how can you imagine
the society at that time? (06) Do you think that advertisements like these are still
reproduced today? Foi dado um tempo para que a tarefa fosse discutida em
duplas e respondida de forma escrita. Após esse momento, as propagandas

1
Apesar de utilizar o termo Task, não foram levadas em consideração as fundamentações
teóricas relacionadas ao Task Based Approach - Ensino de línguas baseado em tarefas
44

foram projetadas uma por vez nos slides para que fizéssemos a discussão
dialogada analisando cada uma delas e compartilhando os pontos de vista das
discentes sobre as imagens.
Ao final da discussão sobre a tarefa, as propagandas foram projetadas
em um só slide, como mostra a figura abaixo, para que pudéssemos analisar
de maneira geral o que elas tinham em comum.
Figura 5 - Task 01: Seleção de propagandas dos anos 50

Fonte: Google.
Logo abaixo, destaco o episódio referente à interação sobre esta
análise:
Episódio 03 - Representações femininas em propagandas dos
anos 50
58. P1: What do all those ads have in common?
59. D. Júlio: submissão, a mulher inferiorizada
60. D. Fernando: local de subordinação, ela está ali posta a servir
61. de bom grado e achando bom, rindo
62. P2: todas tem relação com o contexto doméstico
63. D. Marcela: sempre servindo a casa, a família, feliz por estar
64. servindo a casa é triste quando não consegue agradar em
65. todos os aspectos né, não pode errar em nada ,ela tem que
66. ser perfeitas, uma máquina
67. D. Fernando: as duas únicas imagens que não trouxe muito
68. para o âmbito doméstico… foi essa do sapato e a do ketchup…
69. a primeira mostrando a mulher explícita, vulgar, pra época né,
70. uma mulher que está com o ombro de fora, mostrando o
71. volume dos seios, ta com esse olhar promíscuo pra época, não
72. ta como uma dona de casa … e a outra, a do ketchup… sem
73. palavras…

Ao analisar as propagandas em conjunto, as discentes perceberam (L.


59-66) que nesta época as mulheres eram representadas de maneira
inferiorizada. Além disso, elas também observaram (L. 63-66) que as mulheres
expostas nestas propagandas estão representando aquela mulher que cuida do
lar, que está sempre servindo ao homem e não pode cometer erros, quando
45

essa mulher não é remetida ao contexto doméstico é representada de maneira


promíscua ou, em outras palavras, objetificada. A habilidade das estudantes
de reconhecer e atribuir sentido aos elementos multissemióticos presentes no
texto publicitário é outro traço de criticidade que podemos observar a partir
dessa interação. Sendo assim, tanto a imagem quanto o texto escrito
colaboraram para que elas compreendessem criticamente as representações
das mulheres nas propagandas.
De acordo com Kress et. al. (1995), ao analisarmos um texto por meio
da leitura crítica devemos nos atentar para os aspectos multimodais, ou seja, a
análise deve ser feita além da linguagem escrita, levando em consideração
também os planos de imagem, o contexto histórico e social, e os elementos
extralinguísticos, como o sublinhado enfatizando a palavra woman na quinta
propaganda com o intuito de reforçar a fragilidade da mulher através da frase
sarcástica, por exemplo.
Através dessa perspectiva, a última pergunta da tarefa pedia para que
as estudantes expressassem suas opiniões se elas acham que propagandas
como essas que apresentam discursos machistas ainda são produzidas
atualmente. Destaquei abaixo duas respostas escritas das discentes. A
primeira é de uma discente do gênero feminino e a segunda de um discente do
gênero masculino.
D. Ana: Infelizmente ainda se reproduz alguns discursos de
inferiorização como antigamente. Muita coisa mudou, porém, a
mulher ainda sofre com esses estigmas sociais.
D. Marcos: Hoje em dia não. O que não quer dizer que o
pensamento tenha sido mudado por completo, mas não é radical e
explícito como naquela época.

Observem que para a discente do gênero feminino a resposta foi


diretamente de que em sua opinião discursos como esses que inferiorizam as
mulheres ainda são reproduzidos, mesmo tendo havido mudanças na
sociedade. Já o discente do gênero masculino iniciou a sua resposta negando
que esses discursos ainda sejam reproduzidos nas propagandas, entretanto
sua resposta se torna contraditória ao afirmar posteriormente que o
pensamento não é mais o mesmo e que esses discursos de inferiorização não
aparecem de forma tão explícita como antes, mas nos leva a entender que em
sua opinião, ainda ocorrem, porém agora de forma implícita. Esses dois pontos
de vista são interessantes para que possamos analisar as duas perspectivas
46

de sujeitos diferentes sobre o mesmo assunto. Temos aí um exemplo de dois


sujeitos que utilizaram o mesmo código linguístico para se expressarem
através da escrita, porém não fazem parte da mesma comunidade discursiva
(KRAMSCH, 1998). Por mais que as opiniões sejam semelhantes em certo
ponto, a estudante mulher sente o incômodo ao se deparar com os discursos
machistas presentes nas propagandas de uma maneira diferente do estudante
do gênero masculino devido suas próprias vivências, identidades, construções
sociais.
A partir desse questionamento, passamos para a Task 02 que seguiu
uma dinâmica parecida com a da Task 01, porém foram selecionadas
propagandas mais contemporâneas com o intuito de refletirmos se o discurso
machista no gênero publicitário sofreu alguma transformação ao longo do
tempo. As primeiras perguntas foram as mesmas da tarefa anterior, entretanto,
no final da tarefa, foi acrescentado o questionamento sobre quais as
semelhanças e diferenças entre estas propagandas e as propagandas dos
anos 50 presentes na Task 01. Além disso, para a análise dialogada foram
formadas duplas com o intuito de fazer com que todas pudessem se falar. Na
figura abaixo, destaquei o slide contendo todas as propagandas analisadas nas
duas tarefas:
Figura 6 - Seleção de propagandas Task 01 e 02

Fonte: Google.

No episódio a seguir, uma dupla de discentes do gênero feminino


analisou a propaganda do Burger King com a frase “It’ll blow your mind away” e
eu achei pertinente compartilhar tal interação para que possamos refletir.
Episódio 04 - Representações femininas em propagandas
contemporâneas
74. D. Ana: todas as imagens até agora eu acho que elas vêm
75. sensualizando muito o corpo da mulher, eu acho que a
47

76. mensagem principal é essa, sensualizar de forma sexuada


77. porque vai relacionar algo que é gostoso com a imagem,
78. utilizando a imagem da mulher que está muito chamativa você
79. veja aí nessa imagem que mesmo a mulher não estando
80. despida é uma loira bonita de batom vermelho
81. D. Yasmin: faz alusão assim a um gesto assim obsceno né
82. D. Ana: certeza, a gente poderia interpretar dessa forma, tanto
83. que a gente se sente até desconfortável vendo isso né, vendo
84. a mulher nessa posição, a gente vê que se a gente for levar
85. para o contexto da década de 50, 60, naquela época a mulher
86. já era muito digamos estigmatizada nesse sentido de
87. antigamente nessa década aí a mulher era muito ligada assim
88. pela sociedade como se a mulher fosse pra família, vivesse em
89. função da família, e … atualmente, infelizmente a gente ainda
90. vê muito isso só que de forma sexualizada, tem a exposição
91. do corpo da mulher né a gente vê tá aí propaganda de cerveja,
92. de comida que nem esse hambúrguer aí o burguer king e a
93. frase também.

Vimos anteriormente que os textos são materialidades multissemióticas


carregadas de discurso (ROJO, 2019). Isso implica na relação que fazemos
dos textos com nossos valores, crenças, pontos de vista, identidades. No
episódio acima, as discentes, que fazem parte da mesma comunidade
discursiva (KRAMSCH, 1998), analisaram a propaganda através do seu olhar
crítico quando conseguem perceber a intenção da marca ao representar a
mulher de maneira sexualizada em uma propaganda de comida (L. 74-80). Elas
também observaram os elementos multissemióticos utilizados pela marca para
chamar atenção do público, como o batom vermelho da mulher e o gesto
obsceno de comer um sanduíche em uma conotação sexual (L. 79-81).
A partir do momento em que tomamos consciência de que somos seres
discursivos os questionamentos em relação às posições de poder e discursos
hegemônicos começam a se materializar. Nas linhas 82-93. a estudante
expressa o seu desconforto acerca da representação feminina, que nas
décadas anteriores eram remetidas ao trabalho doméstico e agora são
representadas através da sexualização até em propagandas de comida. Por
meio disso, com base na concepção de Freire (2020), o primeiro passo para a
libertação é a consciência da realidade, ser consciente das relações de poder,
pois quanto mais buscamos conhecimento mais estranhamento e desconforto
sobre a realidade vão surgindo o que nos leva a ter impulso por mudança.
Com o intuito de despertar a sensação de desconforto nas discentes, eu
expus quatro frases retiradas de uma campanha misógina da marca Bic para o
Dia Internacional da Mulher. Inicialmente, foi exibido no slide apenas o texto
48

escrito, uma frase por vez. As frases eram: “Look like a girl”, “Act like a lady”,
“Think like a man” e “Work like a boss”. Ao projetar cada frase eu perguntava
para as discentes o que significava para elas, por exemplo: “What does it mean
to think like a man?”. Destaco abaixo o diálogo onde as discentes expressaram
suas opiniões a respeito desta frase:
Episódio 05 - O que significa pensar como um homem?
94. D. Júlio: Existe aquela pressão de que o homem não
95. pode ter seus sentimentos, o homem não pode chorar,
96. não pode demonstrar afeto porque se você demonstrar
97. afeto você tá agindo contra a natureza do homem né,
98. que é algo mais agressivo, forte…
99. P.2: like a girl (risos)
100. P.1: So, by this context we can say that to think like a man
101. means to think in a strong way, and to think like a girl
102. means to think in a more emotional way… do you agree
103. with this?
104. (...)
105. P.2: why were you so reluctant when Leticia asked “do
106. you agree with this?” and everybody was just quiet. does it
107. bother you? Why is it so difficult for you to say that I
108. agree or I do not agree with this?
109. P1: How do you feel about this “think like a man”? Do you
110. feel that it is ok if we associate the man thinking …
111. D.Marcos: eu acho que não, eu acho que passa o
112. significado de que só o homem tem razão…
113. D. Beatriz: como se o homem ele pensasse com
114. firmeza, pensasse certo… não pensa com sentimento,
115. só pensa com a razão.

Nas linhas 94-98, ao responder à pergunta sobre o que significa pensar


como um homem, o discente fala sobre o discurso que foi convencionado do
pensar masculino ser associado à repressão dos próprios sentimentos, sendo
também sinônimo de força. Após isso, eu pergunto se elas concordam com o
discurso de que pensar como homem é pensar de uma maneira forte e pensar
como uma mulher é pensar de maneira mais emocional (L. 100-103). Nesse
momento, as discentes ficaram mais pensativas não respondendo à pergunta
de imediato. Com isso, o professor questiona qual a dificuldade que elas
encontraram para falar se concordavam ou não com a convenção discursiva
naturalizada pela sociedade de que pensar como homem é pensar de maneira
forte e racional e pensar como mulher é consequentemente pensar de uma
maneira frágil e sentimental (L. 104-108).
Após o questionamento do professor eu reformulei a pergunta, ao invés
de perguntar se as estudantes concordavam ou discordavam eu perguntei
como elas se sentiam em relação à frase “think like a man”, e se elas achavam
49

que o discurso por trás da frase era correto. Com isso, percebemos que elas se
sentiram mais encorajadas para se expressarem em relação ao tema (L.109 -
115). Ao analisar o episódio 05 (L. 94 - 115), identificamos uma prática com
base na educação problematizadora e dialógica a qual não há autoritarismo e o
papel da professora é de facilitadora do diálogo (FREIRE, 2020).
Observamos o oposto de uma educação como ato de depositar quando
as discentes ficaram relutantes em responder à pergunta, pois expressar suas
opiniões pode ser algo complexo de se fazer. Em uma educação bancária a
pergunta feita pela professora exigiria uma resposta correta. A falta de resposta
ou a uma resposta errada seria inadmissível e resultaria em uma punição para
as discentes. Mas em uma educação problematizadora que tem como foco o
pensamento crítico isso não ocorre porque não há imposição, mas sim o
incentivo para que as discentes possam expressar suas próprias opiniões
através do diálogo (FREIRE, 2020).
Após as discentes falarem sobre suas impressões em relação às
frases “Look like a girl”, “Act like a lady”, “Think like a man” e “Work like a boss”,
foi projetado o anúncio da campanha da “Bic” contendo todas as frases e outros
elementos visuais. Em seguida, a imagem de uma campanha da Always foi
projetada ao lado da anterior, como mostra a figura abaixo:

Figura 7 - Seja representada como uma garota

Fonte: Google.
Ao trazer essas duas materialidades multissemióticas uma ao lado da
outra, o intuito foi fazer com que as estudantes pudessem perceber o contraste
entre elas e identificar também os elementos intertextuais. Além disso, temos
na primeira imagem o exemplo de um texto sendo utilizado para propagar um
discurso que inferioriza as mulheres e que por muito tempo foi naturalizado pela
50

sociedade, enquanto na segunda imagem percebemos um discurso que


empodera as mulheres e que foi materializado através do mesmo gênero
textual. Nessa perspectiva, observamos a prática discursiva contribuindo para
a reprodução de discursos hegemônicos e por outro lado gerando a sua
transformação por meio do texto (FAIRCLOUGH, 2001).
Sendo assim, para que as discentes se familiarizassem mais com o
discurso transgressor passamos para a Task 03 a qual eu dei o título de
Reframing the like a girl meaning. A tarefa consistiu em assistir ao vídeo da
campanha da Always, do ano de 2015, que teve como propósito reformular o
significado da frase “like a girl” muito utilizada tanto por homens como por
mulheres em um tom pejorativo associado à fraqueza. Após assistir ao vídeo,
as discentes deveriam responder às perguntas: (1) How did you feel when you
watched this video? (2) What message did the campaign try to convey? (3) In
your opinion, what was the “Always” purpose by promoting this campaign? (4)
Do you feel represented by that campaign? (5) In your opinion, what is the
matter of advertisements like these in the current society?
As perguntas foram respondidas de forma escrita e após isso houve a
socialização da tarefa. No episódio abaixo destaquei a opinião de um discente
do gênero masculino em relação à quarta pergunta da Task 04:
Episódio 06 - Do you feel represented by that campaign?
116. D. Júlio: assim, eu coloquei que não, pois eu não sou a
117. mulher, e sim porque eu tenho o mesmo pensamento..
118. P1: você não se sentiu representado? e sim se sentiu?
119. D. Júlio: não e sim, não porque eu não sou a mulher e
120. sim porque eu concordo
121. P1: So did you agree with the purpose?
122. D. Júlio: isso, eu concordo com a mensagem, só que
123. eu não entendo essa mensagem porque eu não sou
124. mulher, então eu nunca vou entender o que vocês
125. passam, o que vocês precisam enfrentar eu não vou
126. entender.

Ao perguntar se as discentes se sentiram representadas pela


campanha da marca Always, o estudante respondeu que não se sentia por não
se identificar com o gênero feminino, mas ao mesmo tempo se sentia
representado por concordar com a mensagem transmitida pela campanha (L.
116 - 120). A resposta negativa é interessante, pois nos mostra mais uma vez
um exemplo de divergência entre comunidades discursivas (KRAMSCH, 1998).
Isso quer dizer que, embora ele concorde com o propósito de ressignificação do
termo like a girl para um algo empoderador, ele não conseguirá sentir da
51

mesma maneira que uma mulher sente, por não compartilhar a mesma
experiência de vida.
Por meio das tarefas propostas durante a prática de Thinking Critically
podemos observar o desenvolvimento da criticidade em sala de aula de
formação de professoras de língua inglesa considerando vários aspectos. No
episódio 3 (L. 58 - 73), a criticidade pôde ser observada através das práticas de
análise de propagandas que levaram em consideração os elementos
multissemióticos do texto (KRESS et. al., 1995) contribuindo para que as
discentes realizassem uma leitura crítica. No episódio 4 (L. 74 - 93), as
discentes expressam suas opiniões a respeito do discurso machista presente
nas propagandas, isso se deu por meio da consciência crítica que gera
desconforto em relação à realidade e consequentemente leva à sua libertação
(FREIRE, 2020). No episódio 5 (L. 94 -115), percebemos como funciona na
prática a educação libertadora proposta por Freire (2020) através da facilitação
do diálogo.

4.3. Prática 3: Creating - Deconstruct to transgress!

A culminância do projeto “Show them we can change the world:


deconstructing sexists discourses in advertisements” ocorreu com a terceira
prática a qual dei o título de “Creating - Deconstruct to transgress!”. O objetivo
foi fazer com que as discentes colocassem em prática a criticidade
desenvolvida durante as tarefas das práticas anteriores. Para isso, foi
elaborada a Task 04, dando sequência às Tasks realizadas na prática 2.
Todavia, o propósito da Task 04, que ficou como dever de casa, era que as
estudantes pesquisassem propagandas que reproduziam algum tipo de
discurso que as incomodam e a partir disso elas deveriam recriar tais
propagandas de modo que os discursos fossem transformados. Sendo assim,
prática 3 correspondeu ao Redesign proposto por Janks (2016) em seu modelo
de letramento crítico, considerado pela autora como “um ato de transformação”
(p. 36).
Apesar das práticas do projeto terem como ponto de partida a
problematização e desconstrução de discursos machistas presentes em
propagandas, em sua culminância eu procurei deixar as discentes livres para
buscarem outros tipos de discursos tendo em vista as subjetividades de cada
52

uma, já que o propósito era que elas apresentassem uma propaganda que as
incomodam. Consoante a isso e em respeito às diferentes comunidades
discursivas (KRAMSCH, 1998), essa tarefa não poderia ficar restrita a apenas
um tipo de discurso.
Para o momento de culminância, foi orientado que as estudantes
apresentassem primeiramente a propaganda original apontando os motivos
pelos quais o discurso presente no texto gerou desconforto. Após isso, elas
deveriam apresentar as suas reformulações destacando os pontos de
convergência e divergência entre as duas materialidades. As apresentações
aconteceram de forma remota através da plataforma Google Meet devido
alguns casos de covid-19 na universidade. A seguir, analisaremos a primeira
produção discente destacada, a qual chamei de produção A:
Figura 9 - Fairy Soap Figura 8 - Fairy Protective

Fonte: Google. Fonte: elaborada pela discente Ana.

Episódio 7 - Justificativa de escolha da propaganda para a


produção A
127. D. Ana: Essa propaganda, ela me incomoda bastante por se
128. tratar também de utilizar imagens de crianças especificamente,
129. eu acho que ninguém nasce preconceituoso, mas é o que é
130. apresentado pra gente na sociedade e às vezes faz com que
131. muita gente tenha sentimentos ou então comportamentos
132. diferentes na sociedade não é… eu acredito que esse anúncio
133. ele vendeu ódio, e ao invés de tentar vender a marca aí do
134. sabão né ela vendeu realmente um discurso de ódio porque se
135. utiliza a imagem de criança num tipo de propaganda desse … é
136. aquela busca incessante do mercado para tentar vender, mas
137. infelizmente de uma maneira errada e utilizando das piores
138. formas que é na minha opinião utilizando a imagem de crianças
139. né… a criança ela é um ser ingênuo.
53

A figura 8 se trata de uma propaganda da década de 1940, escolhida


pela discente por conter um discurso que a incomodou significativamente, como
mostramos no episódio 6. Nas linhas 127-132, ela justifica o seu desconforto
em relação à propaganda por se apropriar da imagem de duas crianças para
reproduzir um discurso racista. É interessante quando ela diz que "ninguém
nasce preconceituoso” (L. 128), pois percebemos em sua fala que o
preconceito é algo discursivamente construído na sociedade através das
materialidades multissemióticas, em outras palavras, podemos dizer que
“crescemos, inconscientemente absorvendo os discursos das pessoas ao
nosso redor” (JANKS, 2016, p. 31). Em vista disso, a estudante também aponta
que, em sua opinião, a propaganda vendeu um discurso de ódio (L.132-139). O
discurso de ódio a que ela se refere é o racismo explícito no texto publicitário ao
associar a pele da criança preta à sujeira. Essa associação é observada tanto
pela frase “Why doesn’t your mamma wash you with Fairy Soap?” quanto pelos
elementos não-verbais, como por exemplo, a criança preta sendo apresentada
com os pés descalços e vestindo uma roupa suja e rasgada, enquanto a outra
está muito bem vestida. Essa representação nos leva a perceber ainda a
diferença entre as classes sociais das crianças, refletindo as relações de poder
e controle que ao mesmo tempo inclui também exclui (KRAMSCH, 1998).
Na figura 9, temos a reconstrução da propaganda feita pela discente.
Ela utilizou estratégias como a transformação do cenário onde as crianças se
encontram, adicionando cores mais vivas na imagem. Além disso, a estudante
modificou o nome do produto para Fairy Protective com a intenção de remeter à
ideia de proteção. A frase que antes remetia a um discurso racista foi
modificada para “Why don't we ask our mothers to buy Fairy Protective
Saturday to wash our clothes?” trazendo assim o foco para a função real do
produto que é lavar roupas.
Na tabela 4 abaixo, a análise da produção discente foi sistematizada
destacando aspectos como: produto original e contexto; elementos intertextuais
entre as propagandas, ou pontos de convergência; elementos transgressivos
relacionados à desconstrução e crítica à propaganda original; e por fim, se a
produção conseguiu atingir a justiça social, termo utilizado por Freire (2020)
para se referir à transformação com foco no alcance da equidade e igualdade,
sendo o ponto central para a concepção de letramento crítico (JANKS, 2016).
54

Tabela 4 - Análise das produções discentes (Produção A).

Produção A

Propaganda Original Fairy Soap


(Produto e Contexto) Uma criança branca falando a frase “Why doesn’t your
mamma wash you with Fairy Soap?” para uma criança
negra enquanto segura o sabão Fairy.

Elementos As mesmas crianças da propaganda original.


Intertextuais O mesmo produto.
(convergência)

Elementos  Mudou o nome do produto para “Fairy Protective”


transgressivos  Atribuiu cores às roupas das crianças e ao
(desconstrução e cenário da propaganda
crítica)  Trouxe mais foco ao produto
 Adicionou sorrisos nos rostos das crianças
 Nova frase: “Why don’t we ask our mothers to
buy Fairy Protective Saturday to wash our
clothes?”

Justiça social Os elementos multissemióticos combinados conseguiram


desconstruir o discurso racista presente na propaganda
que remetia a pele negra à sujeira.

Fonte: adaptado de ROSA FILHO (2019).

Ao analisarmos a produção da discente pela perspectiva do ciclo de


Redesign (JANKS, 2016), observamos que ela conseguiu desconstruir o
discurso racista presente na propaganda original através da leitura crítica e isso
levou à transformação desse discurso. Identificamos a transformação quando
percebemos que a discente reconstruiu o significado atribuído ao produto. Em
outras palavras, o foco que antes era voltado para a cor da pele da criança
preta foi reposicionado para o produto e sua função. Os aspectos visuais e
verbais da propaganda geraram uma simetria de poder entre as crianças,
trazendo de volta a inocência infantil, pois o que incomodava bastante a
discente na propaganda original era justamente a apropriação da imagem de
crianças para disseminar preconceito.
Levando em consideração a não-neutralidade dos textos, podemos
afirmar que assim como o texto original carrega a parcialidade de uma
sociedade racista, o texto reformulado traz em si a parcialidade da discente
refletindo seu pensamento crítico (JANKS, 2016). Ela conseguiu transformar o
discurso utilizando elementos multimodais, como o laço no cabelo, o vestido
florido e o sapato da criança preta (KRESS, et. al., 1995). Isso mostra que a
55

língua como discurso pode sim ser usada para promover justiça social e
desafiar discursos de ódio.
Na figura abaixo foi destacada mais uma produção discente:
Figura 10 - Produção B

Fonte: elaborada pela discente Beatriz.

O texto publicitário escolhido pela discente se trata de uma propaganda


de canetas da marca Bic que carrega um discurso sexista através de elementos
como as palavras “For her” e as cores do produto que remetem à delicadeza,
como mostra do lado esquerdo da figura 10. Ao lado da propaganda, a
estudante apresentou o que ela faria para desconstruir o discurso presente no
texto original. Como podemos ver, ela mudaria o slogan “for her” para “for all”, e
atribuiria outras cores ao produto ao invés de utilizar somente as cores
delicadas. Porém, o objetivo da Task 04 era que uma nova propaganda fosse
produzida a partir da desconstrução da propaganda original. Embora a discente
não tenha feito uma nova propaganda, ainda sim ela conseguiu problematizar o
discurso machista presente na propaganda original.

Tabela 5 - Análise das produções discentes (Produção B).

Produção B

Propaganda Original Canetas Bic direcionadas ao público consumidor do


(Produto e Contexto) gênero feminino.

Elementos Não identificado.


Intertextuais
(convergência)

Elementos  Outras cores além das cores delicadas.


transgressivos  “for all”, ao invés de “for her”.
(desconstrução e
crítica)
56

Justiça social Embora o objetivo final da tarefa não tenha se cumprido,


através dos elementos de transgressão é possível
perceber a justiça social quando a discente apresenta
sugestões para transformar o discurso machista da
propaganda original.

Fonte: adaptado de ROSA FILHO (2019).

Ao analisarmos a produção B pela perspectiva do modelo de letramento


crítico proposto por Janks (2016), podemos afirmar que ela parou no meio do
ciclo de redesign. Isso quer dizer que houve a problematização do texto original
já construído anteriormente através do design, porém a discente não deu
continuidade ao ciclo até a construção de uma nova propaganda com um
discurso transgressor que seria referente ao ato de redesign. Mas isso não quer
dizer que a criticidade não esteja presente, pois ela ainda conseguiu expor o
que faria para desconstruir o discurso sexista da propaganda analisada. Com
esta análise, percebemos que, embora ela não tenha conseguido chegar até o
redesign propriamente dito, isso não significa que a criticidade não esteja
presente.
A seguir, temos a análise da produção C.
Figura 11 - Macarrão Curitiba

Fonte: Google.
57

Figura 12 - Pasta on the bicha

Fonte: elaborado pelo discente Júlio.

Podemos observar na figura 11 que a propaganda escolhida pelo


discente apresenta um discurso homofóbico ao trazer o termo “viadagem” em
seu texto verbal. Para reformular a propaganda original, que estava em Língua
Portuguesa, o estudante utilizou frases e termos em Língua Inglesa. Ao
analisarmos a figura 12, percebemos que ele fez um jogo com palavras ao
trazendo termo “bicha” em português para fazer referência ao termo “viadagem”
da propaganda original, mas sem o seu significado pejorativo. Ou seja, o
discente transformou o significado da palavra. Além disso, ele acrescentou
outros recursos multissemióticos particulares à sua propaganda, como as cores
da bandeira LGBTQIA+, os ingredientes do macarrão que não eram
ingredientes de um prato culinário, mas sim palavras motivadoras como
respect, success, flavor, freedom e close. Vale destacar que a palavra “close”
não foi empregada no seu sentido literal, mas sim em referência a uma
expressão bastante utilizada no dialeto das pessoas gays brasileiras e que só
faz sentido se for mantida dessa maneira.
O jogo com as palavras na produção C leva em consideração a
multilinguagem e a multiculturalidade que fazem parte do mundo em que
vivemos (TILIO, 2019). Além disso, percebemos a intenção de transformar o
discurso por meio de materializações verbais e não verbais ao utilizar os
58

aspectos multimodais e sociointeracionais. Enquanto a propaganda original


empregava o termo ofensivo para a comunidade gay com o intuito de vender o
seu produto, a propaganda transgressora mantém o produto para propagar a
ideia de respeito e orgulho ao mesmo tempo em que encoraja as pessoas a
“saírem do armário”. Na tabela abaixo emos com mais detalhes os elementos
intertextuais e transgressivos entre o texto original e a produção discente:

Tabela 6 - Análise das produções discentes (Produção C).

Produção C

Propaganda Original Macarrão Curitiba


(Produto e Contexto) “Vai ficar de viadagem ou vai fazer um pedido?”

Elementos Mesmo produto


Intertextuais
(convergência)

Elementos  Reformulação da frase original para “Are you


transgressivos going to order or are you going to stay in the
(desconstrução e closet?”
crítica)  Jogo de palavras com o termo “bicha” fazendo
referência ao termo “viadagem” da propaganda
original
 Nome do produto e frase de efeito “Pasta on the
bicha. The true taste of pride”.
 Trouxe cores à propaganda e elementos da
bandeira LGBTQIA+
 Trouxe os ingredientes do produto como “Close;
flavor; respect; freedom; success”.

Justiça social Houve a transformação do discurso pejorativo da


propaganda original para um discurso transgressor na
nova propaganda, através do jogo de palavras e os
efeitos que elas produzem no texto, simbolizando
respeito e encorajamento.

Fonte: adaptado de ROSA FILHO (2019).

Podemos observar que o único elemento intertextual destacado foi o


produto macarrão que na propaganda original era um alimento e se tornou um
símbolo utilizado para transmitir uma mensagem de força. A frase principal “vai
ficar de viadagem ou vai fazer um pedido?” ficou da seguinte forma: “are you
going to order or are you staying in the closet?”. Além disso, o nome do produto
da nova propaganda “pasta on the bicha” faz referência a um drink chamado
“sex on the beach”, mostrando que o discente trouxe elementos intertextuais de
59

outras materialidades discursivas acionando também o seu conhecimento de


mundo. Levando em consideração todos os aspectos analisados na produção
C, podemos perceber que a justiça social se faz presente na produção discente
através da modificação do discurso homofóbico da propaganda original (figura
11) para um discurso encorajador, contribuindo assim para o redesing, ou a
transformação do texto (JANKS, 2016).
As produções destacadas na prática de Creating foram apenas
algumas das mais relevantes para esta pesquisa, através dessa análise já
percebemos que a aula de língua inglesa com foco no letramento crítico nos
possibilita trabalhar a desconstrução de diversos discursos preconceituosos,
como racismo (produção A), sexismo (produção B) e homofobia (produção C).
Tais discursos estão alinhados com os temas geradores propostos por Freire
(2020) e os temas transversais (BRASIL, 1998) que dizem respeito ao contexto
sociointeracional (TILIO, 2019) ou situações existenciais que fazem parte da
vida das discentes.
Na produção A, o discurso racista foi desconstruído através de um novo
texto com elementos intertextuais bem similares entre as duas materialidades,
já na produção C, observamos uma materialidade multissemiótica
completamente nova utilizando apenas o produto como um símbolo de
empoderamento. Além disso, a transformação de tais discursos hegemônicos
foi possível através da consciência crítica, que contribuiu para o
desenvolvimento da criatividade das estudantes, tal criatividade se torna
possível através do que Paulo Freire (2021) chama de curiosidade crítica, que
consiste basicamente na inquietação que implica no impulso por mudança.

4.4. Prática 4: Reflecting - Thinking Like a Critical Teacher

A última prática do projeto, intitulada Reflecting - Thinking Like a Critical


Teacher, teve como objetivo fazer com que as discentes refletissem sobre a
experiência pedagógica vivenciada ao longo do projeto de modo a associá-la
com a sua formação docente crítica. Esse momento de reflexão estava
planejado para acontecer por meio de uma roda de conversa presencial após a
culminância do projeto, porém devido à última aula ter acontecido de forma
remota, esta prática foi realizada através de um formulário do google.
60

Durante as práticas anteriores (Brainstorming, Thinking Critically,


Creating) eu assumi o papel de professora de língua inglesa e me referi às
discentes da disciplina de Prática Pedagógica Programada VI como estudantes.
Todavia, compreendemos este projeto através de uma dinâmica de
posicionamento onde aprendemos e ensinamos juntas sob a perspectiva de
que “não há docência sem discência, (...) quem ensina aprende ao ensinar e
quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2021, p. 25). Portanto, vale
destacar que os papéis dentro da sala de aula respeitaram essa dinâmica de
ensino e aprendizagem mútuos.
Com base nisso, a reflexão referente à prática 4 teve como ponto de
partida duas perguntas que veremos a seguir. Foram destacadas apenas
algumas das respostas às quais eu identifiquei como R1, R2 e R3, pois as
respostas do questionário foram inteiramente anônimas. As demais respostas
se encontram no Anexo VIII.
Você acredita que as tarefas realizadas durante o projeto
contribuíram para a sua formação crítica pessoal e profissional?
Justifique
R1: Sim, pois tive acesso a informações que me fizeram perceber e
ver o mundo de outras formas, além de ter me mostrado novas
maneiras de como ensinar língua inglesa.
R2: Sim, o projeto foi de extrema importância para minha formação
crítica pessoal e profissional, pois além de aprender na teoria sobre a
criticidade, nos aproximamos da realidade quando começamos a
instigar nosso pensamento crítico e colocamos em prática como
podemos mudar de verdade o mundo quando nos distanciamos de
discursos hegemônicos.
R3: Sim, pois a análise de propagandas problemáticas nos ajudou a
despertar ou ainda melhorar nossa criticidade em relação a conteúdos
midiáticos que nos cercam a todo momento. E não somente em
relação a esses conteúdos, mas a quaisquer tipos de discursos que
rondam a sociedade no nosso dia a dia.

A primeira pergunta reflexiva foi em relação às contribuições do projeto


para a formação crítica das professoras em formação. Na primeira resposta
percebemos que o projeto contribuiu para que a discente tivesse novas
percepções em relação ao mundo e que isso implica em novas formas de
ensinar. Com isso, destacamos que a formação crítica de professoras de língua
inglesa começa com o desenvolvimento da criticidade de maneira individual, ou
seja, de acordo com a percepção crítica de cada discente sobre o mundo à sua
volta. Essa percepção sobre o mundo pôde ser exercitada através das práticas
pedagógicas, como mostra na resposta dois, onde a discente afirma que o seu
61

pensamento crítico foi instigado por meio da aproximação com a realidade e a


prática.
A reflexão das docentes em formação a respeito da prática pedagógica
experienciada durante o projeto e sua relação com a realidade pode ser
compreendida como uma práxis indispensável para a transformação do mundo
(FREIRE, 2020). Na resposta 3, a discente destaca que analisar textos com
discursos controversos, como os discursos machistas presentes nas
propagandas, contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento da sua
criticidade, possibilitando a consciência sobre outros discursos além dos que
foram analisados durante as práticas. Dessa maneira, percebemos a
importância de trabalhar com temas que fazem parte do cotidiano das discentes
contribuindo assim para o desenvolvimento e exercício da criticidade (FREIRE,
2020; TILIO, 2019).
A segunda pergunta de reflexão pedia para que as discentes
relacionassem as experiências vivenciadas durante as práticas do projeto com
os textos estudados ao longo do componente curricular Prática Pedagógica
Programada VI, antes do projeto ser implementado. Destaquei abaixo três
respostas relevantes:
Como você relacionaria as experiências vivenciadas durante o
Projeto com os textos teóricos lidos ao longo da disciplina de
PPP VI?
R1: Estão relacionados por si só. Quando paramos para analisar
qualquer forma de expressão, como uma propaganda, podemos
enxergar além, partir das nossas próprias concepções e questionar o
que está sendo transmitido, dessa forma sem aceitar como uma
verdade absoluta.
R2: As atividades desenvolvidas se relacionam com os textos lidos na
medida em que pudemos desenvolver o olhar crítico, ficando mais
atento às coisas ao nosso redor. Com isso, também enquanto docente
podemos desenvolver nossa metodologia com mais criticidade.
R3: As experiências vivenciadas durante o Projeto se relacionam com
os textos teóricos na medida em que, aprendemos através desses
textos sobre criticidade, discursos e como eles se formam, culturas e
identidades. Pensando nisso, as propagandas são veículos
discursivos, carregando ideias, ideologias e objetivos, além de
estarem presentes em ambientes culturais, de modo que, essas
culturas influenciam na forma com que as propagandas são
construídas.

Os textos teóricos vistos no decorrer da disciplina de PPP VI se referem


às concepções de língua como discurso (FAIRCLOUGH, 2001; KRAMSCH,
1998; MOITA LOPES; 2002), pedagogia crítica (FREIRE, 2020; ROSA FILHO e
OLIVEIRA, 2021) e letramento crítico (JANKS, 2016; TILIO, 2019) que foram
62

apresentados no capítulo teórico desta pesquisa. Na resposta 1, a discente


destacou a importância de analisar as materialidades multissemióticas além do
que é apresentado, ou seja, considerando a multimodalidade dos textos
(KRESS et. al., 1995), fazendo isso através do constante questionamento que
vimos ser a base do pensamento crítico (HOOKS, 2020). Na segunda resposta,
sua colega apontou que a relação entre as práticas e os textos teóricos
contribuíram para o desenvolvimento de seu olhar crítico e a sua formação
docente. Já a resposta 3, leva em consideração a carga discursiva que os
textos carregam, além disso, considera também as relações de poder por trás
da construção (design) desses textos (JANKS, 2016).
Podemos dizer que essa consciência percebida nas respostas das
professoras em formação se tornou possível através da criticidade desenvolvida
com as práticas e as discussões teóricas. Segundo Freire (2021), “a prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico,
dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (p. 39), e foi justamente esse
“pensar sobre o fazer” o objetivo da prática 4.
63

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa teve como objetivo central investigar como a


criticidade pôde ser colaborativamente construída em uma experiência de
formação inicial de professoras de língua inglesa. Para isso, o estudo buscou
identificar que repercussões teóricas e práticas a respeito da criticidade
puderam ser desenvolvidas a partir de uma experiência de formação crítica de
professoras de inglês, de acordo com os âmbitos teórico, metodológico e
interativo propostos para esta investigação.
No âmbito teórico, pudemos refletir sobre o conceito de criticidade a
partir da concepção pós-moderna de língua como discurso e ensino de línguas
através de uma pedagogia engajada (FREIRE, 2020). No âmbito metodológico,
foi elaborado o projeto pedagógico intitulado Show them we can change the
world: deconstructing sexists discourses in advertisements, tendo como base o
ciclo de redesign proposto por Janks (2016) voltado para a experiência de
ensino e aprendizagem de língua inglesa por meio da interação com textos. Por
fim, no âmbito interativo, investigamos se e como a competência crítica das
professoras em formação pôde ser observada a partir das interações de sala de
aula e produções resultantes da implementação do projeto, analisando como os
episódios de sala de aula puderam ser compreendidos como performances de
criticidade, colaborando assim para a sua compreensão como uma
competência discursivamente construída.
Por meio da concepção pós-moderna de língua como prática social,
percebemos que somos seres discursivos. Em vista disso, os textos à nossa
volta carregam em si os discursos e as parcialidades de quem os construiu.
Portanto, para que haja a leitura crítica desses textos, vimos que é preciso
considerar os aspectos multimodais partindo da visão de textos como
materialidades multissemióticas. Além disso, observamos que para o
desenvolvimento da criticidade é primordial reconhecermos a realidade através
de uma práxis transformadora. A partir do projeto pedagógico elaborado no
âmbito metodológico, percebemos a importância de uma metodologia engajada
voltada para o letramento crítico como forma de instigar a criticidade das
discentes.
64

As interações de sala de aula resultantes da implementação do projeto


nos permitiram compreender a criticidade como: (1) uma competência
discursivamente construída ao passo que as discentes puderam se locomover
entre os significados literais, metafóricos e ideológicos presentes nos textos
analisados durante as tarefas; (2) uma habilidade discursiva de
reposicionamento, por meio da problematização movida pelo desconforto; (3) a
mobilização de aspectos intertextuais e transgressivos na recriação de textos e;
(4) o poder simbólico de construção da justiça social.
Ante o exposto, consideramos que o desenvolvimento de práticas
pedagógicas que se responsabilizem pelo letramento crítico podem ser
compreendidas sob uma ótica esperançosa, pois sabemos que podemos sim
mudar o mundo e essa mudança começa com o despertar da criticidade e sua
constante prática.
65

6. REFERÊNCIAS

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Paulo Freire, Editora Realize, 2013. Disponível em: <
http://www.editorarealize.com.br/revistas/fiped/trabalhos/Trabalho_Comunicaca
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de abr. de 2022
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FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.
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66

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Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/.
Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso em: 01 de ago. de 2022
67

ANEXOS
ANEXO I - Layout do projeto
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ANEXO II - Slides prática 1


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90
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ANEXO III - Brainstorming activities


92
93

ANEXO IV - Slides prática 2


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108
109
110
111

ANEXO V - Tasks 01 e 02
112
113

ANEXO VI - Tasks 03 e 04
114
115

ANEXO VII - Produções discentes


Produção A (elaborada pela discente Ana)

Produção B (Elaborada pela discente Beatriz)


116

Produção C (Elaborada pelo discente Júlio)

Produção D (Elaborada pela discente Carla)


117

Produção E (Elaborada pela discente Cecília)

Produção F (Elaborada pela discente Marcela)


118

Produção G (Elaborada pela discente Gabriela)

Produção H (Elaborada pelo discente Vinícius)


119

Produção I (Elaborada pelo discente Marcos)

Produção J (Elaborada pela discente Yasmin)


120

ANEXO VIII - Formulário Google


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131

Anexo IX – Termo de Consentimento


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