Você está na página 1de 83

Cine Qua Non {9}

*
cine
qua
non
Bilingual Arts Magazine
Editores | Editors Changing Art(icles)
Ana Luísa Valdeira
Madalena Manzoni Palmeirim

Aconselhamento Editorial | Editorial Consultancy


Isabel Fernandes

Edição de Texto e Revisão | Copy Editing and Proofreading


Margarida Vale de Gato
A Cine Qua Non é uma revista de artes do Centro
de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Colaboradores | Collaborators
(CEAUL) construída por movimentos escritos que
Amanda Vox, Ana Daniela Coelho, Ana Rita Martins, Filipe Melo,
cruzam reflexões, críticas ou ensaios, movimentos
Ivo Canelas, José Duarte, Jorge Vaz Nande, Julia Robinson,
que relacionam a música às artes plásticas, a dança
Margarida Vale de Gato, Maria de Almeida Alves, Rui Zink
ao teatro, o cinema à literatura. Sem aspirações
temáticas, esta publicação tem como objectivo
Projecto Gráfico | Graphic Project
oferecer aos seus leitores uma abordagem
as ilhas (Catarina Vasconcelos & Margarida Rego)
editorial única que junta artistas, investigadores e
www.ilhastudio.com
docentes que se manifestam em textos de natureza
diferenciada sobre as mais diversas formas e
Tradução | Translation
expressões artísticas. A Cine Qua Non é, desde
Ana Luísa Valdeira, Ana Rita Palmeirim, Joana Silva,
o seu primeiro número impresso, uma revista
Maria Jacinta Magalhães, Marta Soares, Martin Earl, Nicholas Csargo
totalmente bilingue (português/inglês) e apresenta-se
em dois formatos: uma versão online e uma versão
Revisão de Texto | Proofreading
impressa.
Ana Raquel Fernandes, Edgardo Silva,
Marta Soares, Rui Azevedo
Cine Qua Non is an arts magazine of the University of
Lisbon Centre for English Studies (ULICES) built up
Agradecimentos / Acknowledgments by movements in written form that freely crisscross
MIT Press reflections, reviews or essays; movements that relate
music to visual arts, dance to theatre, cinema to literature.
This publication intends to submit its readers to a unique
www.cinequanon.pt / info@cinequanon.pt editorial approach that gathers artists, researchers and
teaching staff proposing texts of different nature about
8 € / £ 10 / $ 10 diverse artistic expressions. Cine Qua Non is, since
its first printed issue, an entirely bilingual publication
(Portuguese/English) that is presented in both versions:
ISSN 1647-4198
an online edition and a printed one.

Edição / Edition
Centro de Estudos Anglísticos
da Universidade de Lisboa (CEAUL)
University of Lisbon Centre for English Studies (ULICES)
Alameda da Universidade, Faculdade de Letras
1600 – 214 Lisboa, Portugal
centro.ang@fl.ul.pt www.ulices.org
*
índice / index

editorial

7 106
Ana Luísa Valdeira Rui Zink
Three Editorial Events Precisão e Bom Senso /
Precision and Sound Judgement
por fora / from abroad
118
10 Ivo Canelas
Julia Robinson RockyComaCobraRambo ou
From Abstraction to Model: George como a cultura popular americana
Brecht’s Events and the Conceptual Turn influencia o meu trabalho de actor /
in Art of the 1960s* [Part II] / RockyCommaCobraRambo, or
Da Abstracção ao Modelo: Os Events de how American pop culture influences my
George Brecht e a Viragem Conceptual na work as an actor
Arte dos Anos 60 [Parte II]
128
54 Ana Rita Martins
Ana Luísa Valdeira Sobre Banda Desenhada /
Fluxus Events, A small anthology / On Comic Books
Uma pequena antologia
138
ensaios / essays Filipe Melo
Filipe Melo e a Pop Americana /
66 Filipe Melo and American Pop
Maria de Almeida Alves
Espectadores sem Palco / 148
Stageless spectators Ana Daniela Coelho e José Duarte
O Zombie – de A a Z /
84 The Zombie – from A to Z
Amanda Vox
Apontamentos sobre a Arte Ambiental / 156
Notes on Environmental Art Margarida Vale de Gato
Monterey, California
por dentro / inside of
spoiler
104
Margarida Vale de Gato 158
Introdução: Perspetivas Portuguesas Jorge Vaz Nande
sobre a Pop Americana / O bom governo /
Intro: Portuguese Outlooks on American The good government
Pop Culture
*
editorial
ana luísa valdeira

Três Peças Editoriais

Ler
Folhear
Sublinhar*

*a) Sublinha palavras que designam


objectos e/ou alimentos e faz uma
performance com isso; ou b) sublinha
artistas, autores ou heróis americanos
de quem gostes e joga dardos com um
dos seus posters a fazer de alvo; ou c)
sublinha todas as palavras começadas
por z − começa a usá-las com mais
frequência; ou d) sublinha os lugares
que encontras nos vários textos. Para
onde queres ir? Envia-me um postal.
Three Editorial Events
Dez. 2015

Read
Browse
Underline*

*a) Underline words that refer to


objects and/or food and use it in a
performance; or b) underline artists,
authors or American heroes that you
like, and play darts using one of their
posters as a target; or c) underline
every word that starts with z – begin
using them more often; or d) underline
places that you can find in these texts.
Where do you want to go? Send me a
postcard.

Dec. 2015
por fora from abroad

from abroad por fora


From Abstraction julia robinson

}{

to Model:
George Brecht’s Due to copyright restrictions the
original article in English is included
in the print edition only.
Events and the
Conceptual Turn in
Art of the 1960s*
[Part II]
George Brecht, Water Yam,

Assemblage e disposição, fóricas em objectos gerados a partir


first edition, 1963.

readymade e self-made de abordagens completamente opos-


tas. 30 Brecht concebera a estrutura do
Segundo Barbara Haskell, “[a]pe- Event precisamente com o intuito de
sar das diferenças entre (…) artistas accionar a obra, eliminando, se pos-
mais conceptuais e artistas mais foca- sível, a tendência de tudo reduzir a
dos em Happenings e junk assembla- metáfora através da possibilidade da
ges, entre 1958 e 1964, a vanguarda utilização. Por volta desta altura, ten-
do mundo artístico era tão reduzida tou explicar isso mesmo numa carta
que, inicialmente, não se fazia grande endereçada a Rauschenberg: “Se teve
distinção entre eles. Brecht, em parti- ocasião de ver a minha obra, toward
cular, movia-se facilmente entre estes events, na Reuben Gallery no passa-
dois mundos”.29 Esta inexistência de do mês de Outubro (que incluía, por
fronteiras poderá ter sido libertado- exemplo, uma mala e um armário
ra, mas acabaria por acarretar alguns com que qualquer pessoa podia inte-
Da Abstracção ao Modelo: problemas. Para grande tristeza de ragir), imagina então o quão sensibi-
Os Events de George Brecht e a artistas como Brecht, entre 1960 e lizado fiquei com as suas observações
1961, o público não notava qualquer no painel do fórum da NYU [“Art
Viragem Conceptual na Arte dos Anos 60
diferença nestas novas obras, conti- 1960”], no dia 22 de Abril, sobre o in-
[Parte II] nuando a projectar associações meta- desejável teor estático da ‘pintura’”.

10 11
Brecht acrescentou ainda que incluí- tas e, por conseguinte, tudo se vol-
ra a partitura de um Event como uma tou a complicar”. 32 New Forms-New
“espécie de comentário” a esse tema. 31 Media, duas exposições patentes na
A linguagem convencional da arte Martha Jackson Gallery durante
moderna – mesmo em relação a ter- o Verão e o Outono de 1960, cada
mos tão básicos como “pintura“, “es- uma contando com mais de setenta
cultura” e “composição” – tornar-se- artistas, são bem ilustrativas desta
-ia obsoleta perante a diversidade de “complicação”. 33 O dinamismo das
novas abordagens no início da década exposições entre 1960 e 1961 atingi-
de 60. Os artistas passam a decidir so- ria o seu auge com Bewogen beweging
bre a disposição das suas exposições, [“Art in motion”], exposições itine-
envidando esforços para asseverar o rantes em massa organizadas pelo
novo carácter (ainda por descodificar) Stedelijk Museum, de Amesterdão, e
das suas obras, enquanto as galerias com The Art of Assemblage, no Mu-
tentam divulgar novas ideias en masse seum of Modern Art, em Nova Ior-
através de exposições colectivas bas- que. 34 Com as grandes instituições,
tante ambiciosas. Como Donald Judd surgiram as grandes generalizações. George Brecht.
nota, “[e]m 1960, realizaram-se várias Uma vez que o trabalho de Brecht era Water Yam card, 1963
exposições que não estavam previs- o único que se oferecia ao público de

12 13
forma a ser “redisposto” – intenção dança) do que no objecto propria- dispensado de me devolver a obra pintura ao introduzir elementos não-
esta que orientava a disposição inicial mente dito. Por conseguinte, é essen- na sua forma original. De seguida, -subjectivos. Contudo, muitos destes
dos objectos na obra – torna-se claro cial que o espectador, participante, pode fazer o que lhe parecer mais artistas mais jovens não tardariam em
que o autor não estava preocupado possa abrir e fechar a porta e pegar apropriado. Quando (e se) as peças abandonar por completo a pintura.36
em seguir o modelo de assemblage do nos objectos com toda a liberdade. desaparecerem, pode substituí-las Aquilo que começou como um desen-
MoMA. Sentindo uma necessidade Deste modo, ambas as fases princi- por outras equivalentes (capazes de tendimento com a pintura expressiva
premente de assinalar esta nova dife- pais da obra, tanto a fase tranquila, substituir as originais). Não haven- acabaria por trazer outras questões,
renciação conceptual, Brecht anexou de reflexão, referente ao armário do peças equivalentes disponíveis, nomeadamente o registo do papel do
algumas notas à sua obra: fechado, como a fase de múltiplas pode substituí-las por outra coisa espectador/observador, por um lado,
variáveis do seu interior, estão à sua qualquer ou, se preferir, por nada. / e o estatuto complexo dos objectos
Um dos aspectos mais interes- disposição. É dentro do espírito da Cada um fará aquilo que achar mais quotidianos, por outro. Para os artis-
santes desta obra (na minha opi- obra que (tal como na vida em geral) apropriado. Não é possível qualquer tas mais analíticos, próximos de Cage
nião) não é a faceta tipo-objecto as peças se podem perder, quebrar, catástrofe. 35 e Duchamp, foi também uma ma-
representada pelo armário e res- entornar, roubar, substituir, parti- neira de não repetir os seus passos,
pectivo conteúdo, mas sim o que lhar, conspurcar, limpar, construir, Pela mão da primeira geração em ou de simplesmente ilustrar o ready-
acontece quando alguém interage destruir (….) De que maneira pode busca de um caminho para além do made, usando estruturas temporais
com os objectos. Ou seja, para mim, um expositor lidar com isto? Para co- Expressionismo Abstracto, a utiliza- como forma de ampliar a sua lógica
a obra reside mais na natureza da meçar, pode ficar descansado, pois, ção de objectos quotidianos começou radical.
manifestação artística (música ou da minha parte, está completamente por ser uma estratégia de renovação da

14 15
Readymade e fotografia, ponto de partida para o alargamento o seu nome. Nas imediações dessa como física) afecta a legibilidade da
objecto e partitura do campo de observação, atingindo cadeira, estava uma pilha de partitu- obra (de esta ser, sequer, considerada
o seu auge com Three Chair Events, ras impressas de Three Chair Events. arte). Além de formular uma hipó-
No início de 1961, Brecht traba- obra determinante neste contexto. Quem lesse a partitura, notaria assim tese implícita, apontando para algo
lhava arduamente no formato das A partitura de Three Chair Events que, apesar de a peça referir três ca- que podemos, hoje em dia, entender
suas partituras do Event. Procuran- referia uma cadeira branca, uma deiras, mostrava apenas uma. Brecht como uma crítica institucional – no
do uma estrutura verbal mais conci- preta e outra amarela e encaminha- tinha colocado a cadeira preta na modo como ilustra o impacto do espa-
sa e flexível, erradicou o excesso de va, em termos muito gerais, o olhar casa de banho e a cadeira amarela no ço destinado ao artista sobre a inter-
palavreado, encurtando estas novas do espectador para as “ocorrências” passeio, frente à entrada principal da pretação dos objectos –, Three Chair
frases e tornando-as mais breves face entre elas. Brecht pode apresentar a galeria. Events uniu o readymade e a partitura,
às partituras anteriores. Em Abril de sua própria realização de Three Chair No fim de contas, a cadeira branca abrindo uma nova perspectiva sobre a
1961, Brecht faz uma descoberta no- Events na exposição colectiva Envi- foi a única que recebeu uma “atenção forma como estes elementos podiam
tável com a peça Black Chair (Event). ronments, Situations, Spaces, patente artística”, nas palavras de Brecht, des- trabalhar em conjunto. 38
A notação dizia simplesmente: “sen- na Martha Jackson Gallery em Abril fecho que o deixou satisfeito. Através Analisando o testemunho de al-
tados numa cadeira preta/o que de 1961. 37 Nesta ocasião específica, desta instalação original, o artista re- guns artistas contemporâneos de
acontece”. Este rasgo de claridade colocou a cadeira branca no espaço velou alguns aspectos do seu conceito Brecht, percebemos que o seu concei-
desencadeou uma avalanche de no- da galeria que lhe estava destinado, de Event, demonstrando ainda o modo to de Event foi bem apreendido. Num
vas partituras no início de 1961, em espaço este iluminado por um foco como a disposição (tanto conceptual, livro da sua autoria, Kaprow faz uma
que os objectos eram utilizados como de luz, ao lado de uma parede com

16 17
George Brecht. George Brecht,
Chair Event, 1962-67 Table and Chairs / Sink.
Photograph by Joaquín Cortés/Román Lores.
Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

18 19
descrição perspicaz dos events reali- muito admirada por este dois jovens gem propriamente dita”.42 necida por Brecht, poderia tratar-se
zados nesta época transformadora. 39 artistas: Duchamp.41 Tanto Brecht, À luz do modo como Brecht estru- de uma cadeira preta qualquer. Por
Já Morris envia uma nota poética a como Morris, estavam particularmen- turava a proposição linguística – uma conseguinte, a partitura negoceia, de
Brecht, no mês da exposição, expri- te interessados no modo como Du- partitura referente a uma simples ca- forma complexa, uma função seme-
mindo a sua percepção dos events: champ utilizava a linguagem. Numa deira preta, por exemplo – o objecto lhante à do “shifter” [“deítico”]. Nas
“Será que o copo de água que bebi altura em que estava embrenhado na não era identificado com um elemen- palavras de Rosalind Krauss em “No-
na exposição de Brecht era o Copo sua pesquisa sobre os readymades, to específico, permanecendo sim in- tes on the Index”, “shifter é o termo
de Água de Brecht? O momento de Brecht transcrevera, ainda assim, o finitamente substituível. Através da usado por Jakobson para designar os
silêncio que ali houve: seria o Silên- Anemic Cinema de Duchamp para os partitura, Brecht afirma a natureza signos linguísticos que estão ‘repletos
cio de Brecht? A cadeira que rangeu seus apontamentos, assinalando com conceptual da função denotativa da de significado’ só porque estão ‘va-
com o meu movimento: seria o Som diferentes cores as diversas partes do linguagem – precisamente a rela- zios’”. Diz-nos a autora que “as pala-
de Brecht?”40 Morris chama ainda a jogo de palavras complexo desta obra. ção entre significante e significado vras ‘este/esse’ são signos deste tipo,
atenção para a forma como Brecht Morris afirmaria mais tarde: “O meu – servindo-se dela como matriz para à espera do momento em que são in-
escapa às contendas mediáticas que fascínio e respeito por Duchamp de- envolver o sujeito. O objecto (ou re- vocados para que o seu referente seja
envolviam o trabalho artístico de vem-se à sua obsessão pela linguísti- ferente) físico da partitura nunca providenciado. ‘Esta cadeira’, ‘essa
grande parte dos seus pares, esta- ca, à ideia de que todas as suas acções chega a ser concluído, nem retratado, mesa’, ou ‘este…’ e apontamos para
belecendo ainda uma ligação entre são fundamentalmente baseadas num pelo artista; esse trabalho cabe ao algo em cima da secretária”.43 Quan-
o projecto de Brecht e uma figura entendimento sofisticado da lingua- leitor, sempre que a partitura é lida. do Krauss descreve o shifter como
Partindo apenas da informação for- uma espécie de índice, somos reme-

20 21
tidos para Pollock e a sua discussão pertencentes a um outro tipo de sig- branca na galeria – uma referindo-se como referente, torna-se arbitrária, e
sobre a marca indexal irrepetível, e no: o índice”.44 Tal como a própria à outra, uma apoiando-se na outra – a diferença entre uma cadeira e três
para o modo como Cage, na partitura linguagem, a produção da partitura reencena quer a centralidade da lin- cadeiras passa a ser expressiva. Para-
do “silêncio”, ou Rauschenberg, nas de um Event necessita de um sujeito, guagem em Duchamp, quer a questão lelamente, a linguagem converte-se
pinturas do “vazio”, a revertem fun- muito mais do que a pintura neces- da relação entre o readymade e a foto- num espaço de sutura: permanece-
cionalmente, permitindo que o som sita de um observador. As partituras grafia. Obviamente, Brecht sabia que mos junto da partitura; impede-nos
ambiente, ou a luz do espaço em tor- de Brecht servem-se das funções do tanto o readymade, como a fotogra- de agir; lemos. A linguagem modifi-
no da obra, dêem origem ao inciden- shifter pois permanecem em aberto fia, têm uma estrutura semelhante à ca a nossa experiência do objecto à
te. É aqui que se situa o ponto de par- e necessitam de um sujeito que lhes do Event, que ambos são fragmentos medida que a expectativa de vermos
tida da partitura de Brecht, embora confira significado.45 temporais e contingentes. A partitu- duas cadeiras adicionais afirma a pre-
com uma ênfase inovadora no sujei- Three Chair Events aborda muitas ra de Three Chair Events “parava” o sença assertiva do readymade, único e
to/observador. Deíticos como “eu” e das questões iniciais de Brecht sobre o sujeito na linguagem, pedindo ao visi- inalterado. Desta feita, o readymade
“tu” fazem “parte de um código sim- readymade. Na verdade, permitiu uma tante que a lesse primeiro e só depois parece incompleto.
bólico da linguagem, na medida em nova verbalização do teor indexal do reflectisse sobre a cadeira branca Ao descrever as notas de Green
que são arbitrários”, diz-nos Krauss. readymade – da sua contingência em isolada, que reparasse talvez que ali Box, da autoria de Duchamp, como
“Mas uma vez que o seu significado cada contexto diferente, da sua desig- estava apenas uma cadeira, quando a sendo uma “legenda alargada” de
depende da presença de um orador, nação (crítica) de um campo discursivo partitura referia “Events com três ca- Large Glass, Krauss formula uma
os pronomes (à semelhança de ou- – e fê-lo através da lógica da partitura. deiras”.46 A relação entre o texto e o afirmação teórica que faz lembrar a
tros deíticos) apresentam-se como A situação da partitura e da cadeira objecto, que supostamente deve agir partitura do Event. É certo que nem

22 23
Large Glass, nem os Events de Brecht, de, portanto, que Duchamp se tenha mar a relação reificada entre sujeito e retardamento na linguagem, gerado
são fotografias, mas a verdade é que referido ao readymade nestes termos”, objecto. Se tanto o readymade, como pela estrutura temporal da partitu-
ambos põem em prática determina- escreve Krauss. “Era suposto ser um a fotografia, dão conta do impacto da ra do Event. A explicação de Krauss
das funções da fotografia. Afirma ‘instantâneo’, acompanhado por uma produção em massa na obra de arte – sobre a relação entre readymade e
Krauss que a legenda, nomeadamen- arbitrariedade tremenda em termos na forma como rejeitam o que é táctil fotografia é aqui particularmente re-
te quando se refere a uma fotografia, de significado, uma extinção do teor e artisticamente criado, na sua seriali- levante:
é muito diferente do título de uma relacional do signo linguístico”.48 dade – Brecht percebeu a necessidade
pintura, podendo dizer-se o mesmo Por volta dos anos 60, esta con- de tornar explícito aquilo que Du- O paralelo entre readymade e
sobre a partitura de um Event. “A dição de arbitrariedade que Krauss champ incorporara discretamente. fotografia é estabelecido pelo seu
fotografia anuncia uma desestabili- situa na relação entre fotografia e le- Isto é, Brecht precisava de assinalar a processo de produção. Trata-se do
zação da autonomia do signo”, escre- genda, imagem e linguagem, passaria descontextualização e a temporalida- transporte físico de um objecto de
ve a autora, “ficando envolto numa a incluir os objectos do quotidiano de – a estrutura do Event – intrínsecas arte, desde o continuum da realida-
ausência de significado que apenas que eram transferidos de um deter- quer ao readymade, quer à fotografia. de até à condição fixa de uma ima-
pode ser preenchida pela inclusão de minado contexto (economia baseada Aliás, Duchamp definira o readyma- gem artística, através de um mo-
texto”.47 A fotografia anuncia assim em bens de consumo) para outro (a de em termos de um “retardamento”. mento de isolamento ou selecção.
uma ruptura irrecuperável na repre- obra de arte). As partituras de Bre- Como resposta à nova condição do Ao longo deste processo, a função
sentação, ruptura esta que o processo cht defrontam este novo e complica- objecto nos anos 60, Brecht não levou do shifter é também ela recuperada,
artístico acaba sempre por enfrentar, do mundo de significado distorcido a cabo “um retardamento em vidro”, pois trata-se de um signo intrinse-
inevitavelmente. “Não nos surpreen- e invertem-no, usando-o para reani- tampouco num objecto, mas sim um camente “vazio” cuja significação

24 25
26
27

George Brecht, Word Event (1961), performed during Fluxus/Musik og Anti-Musik/det Instrumentale Teater,
Nikolai Kirke, Copenhagen, November 23, 1962.
está a cargo deste momento singe- não era a fotografia que pedia uma I-Box, o sujeito ocupa uma posição Por volta da mesma altura, Brecht
lo, assegurado pela presença desse legenda, mas sim o próprio objecto. instável: o substituto fotográfico do faria uso da fotografia nos seus Events.
único objecto. Trata-se de um signi- Partindo da ideia de Krauss, pode- artista surge representado como mu- Em 1962, numa exposição virada para
ficado insignificante que se institui mos dizer que a partitura do Event é tável, pois depende do modo como o o futuro com o título Art 1963: A New
através dos termos do índice.49 uma legenda que aborda a “insignifi- espectador lida com o objecto (aber- Vocabulary, realizada em Filadélfia,
cância” do objecto quotidiano. to ou fechado). Embora Morris não apresentou uma partitura chamada
A forma como Brecht produz Do mesmo modo que as partituras utilize a linguagem verbal como meio Table and Chairs. 51 No entanto, a fo-
a partitura “three chair Events” na de Brecht excluíam a presença sub- de se excluir enquanto sujeito, à se- tografia que Brecht enviou para o ca-
Martha Jackson Gallery prolonga a jectiva do autor na sua obra por meio melhança de Brecht e da sua partitu- tálogo da exposição referia-se a Word
função do readymade, remetendo-nos de palavras, Morris não tardaria em ra neutra e aberta, o artista aborda a Event, uma outra obra sua, completa-
de imediato para o posicionamento utilizar técnicas duchampianas para mesma questão através de estratégias mente diferente. A intenção do artista
das cadeiras em diferentes contex- investigar a subjectividade na obra análogas. “O ‘Eu’ surge verbalizado era servir-se da contingência temporal
tos. Como é que uma determinada de arte. I-Box (1962), da autoria de em I-Box”, diz-nos Berger, “sem uma da fotografia de modo a afinar o seu
situação (galeria, casa de banho, ou Morris, consiste numa caixa cuja es- função centrada, mas arbitrária, pois conceito de Event. Segundo Brecht, a
rua) atribui um significado diferente trutura é semelhante a um armário, depende de uma acção externa”. 50 As- fotografia de Word Event, retratando
a cadeiras distintas? Num momento com uma porta em forma da letra sim, ao fechar a porta, o espectador/ a porta das traseiras da sua casa em
importante da arte contemporânea, “I” [“Eu”] que o espectador/partici- participante pode ele próprio negar o Metuchen, Nova Jersey, encimada por
paralelo a uma cultura de consumo pante pode abrir e assim encontrar sujeito da obra, negando também o re- um letreiro com a indicação “Exit”
em crescimento, Brecht percebeu que uma fotografia do artista (nu). Em ferente de “I” [“Eu”]. [“Saída/Saia”], evitava que ele tives-

28 29
se de atribuir uma forma definida no rias peças de 1961 que Brecht rees- (1961) – mais tarde intitulado Three contros interpessoais através de reen-
catálogo a Table and Chairs, o event creveu de modo a alargar a perspec- Gap Events –, por exemplo, Brecht contrando-se).
apresentado na exposição. 52 Ou seja, tiva da partitura, representando três propõe três tipos de “gaps” [“lacu- Brecht aprofunda ainda mais o pa-
a constelação de elementos na foto- visões em vez de apenas uma. Three nas”] muito diferentes. Uma das úl- pel da linguagem na reorientação da
grafia é uma forma de evocar os events Table and Chair Events faz parte da timas partituras refere o seguinte: perspectiva do sujeito sobre os objec-
na generalidade: pormenores circuns- colecção de partituras da autoria “signo com uma letra em falta, entre tos quotidianos, tentando inverter o
tanciais e contingentes que passam de Brecht, referentes a 1963, a par dois sons, reencontrando-se”. Neste seu modus operandi ao escrever uma
a fazer parte de cada apresentação. de muitas outras peças cujos títulos caso, apesar de ainda apresentar um partitura “sobre” um objecto pré-
Brecht preferiu não facultar uma ima- começam por “três”. 53 Talvez fosse espectro de possibilidades capaz de -existente, pronto a ser contemplado.
gem da disposição de objectos que, a uma aplicação do espaço-teste ideal, conferir significado, Brecht afasta-se Tal é exemplificado por sink [lavatório]
qualquer momento, seriam dispostos criado por Duchamp com base no da hipótese de uma definição de “la- (1963), um Event em que Brecht con-
de forma diferente na exposição. Ao número três e em múltiplos de três cuna” razoavelmente concreta (rea- sidera, mais uma vez, “três” possibili-
não ter qualquer correspondência (por exemplo, Three Standard Sto- dymade: um signo, com uma letra em dades (embora não através do título).
com a obra exposta, a fotografia de ppages, ou os “nove tiros” em Large falta, criando assim uma lacuna en- O lavatório propriamente dito é seme-
Word Event põe em dúvida a aparente Glass). De qualquer modo, o facto de tre as restantes letras), seguindo em lhante ao urinol de Duchamp, Foun-
finalidade de qualquer uma das três três resultados diferentes garantirem direcção a um nível mais abstracto tain (1917), exceptuando o facto de
apresentações de Table and Chairs (e uma demonstração mais detalhada (percepção sonora: entre dois sons), Brecht não ter assinado o seu objecto
de qualquer outro event). da ideia ou objecto em causa agrada- até atingir o nível mais abstracto de de porcelana. Em última análise, o
Table and Chairs foi uma das vá- va bastante a Brecht. Em Gap Event todos (evocando o espaço entre en- artista consegue inverter o conceito

30 31
de readymade ao devolver o lavatório VENDE-SE:
ao mundo dos objectos banais. Num lavatório branco, em porcelana,
anúncio para o Village Voice, Brecht com pé e torneiras cromadas.
deixa em suspenso três perspectivas Excelente estado. Entrega incluí-
possíveis sobre a obra: da. Melhor oferta.

VENDE-SE: Esta utilização específica da lin-


LAVATÓRIO BRANCO e certifi- guagem, redefinindo um objecto pré-
cado com direito de ingresso em -existente, sublinha a diferença entre
todos os events de que ele faça Brecht e a maioria dos artistas do seu
parte. tempo, transformando o acto de de-
$300. Melhor oferta. G. Brecht nominar num acto performativo, tal
como o fora para Duchamp (embora
VENDE-SE: com um final mais aberto). 54 Excepção
Escultura, “lavatório branco” da feita a Document, de Morris, que sur-
autoria de G. Brecht. giu em 1963, no mesmo ano que sink,
$750 … dimensões… diapositivo, e que funcionava de maneira idêntica.
25 ¢ À semelhança do anúncio de Brecht
George Brecht,
Score for Sink, 1962 no Village Voice, Morris utiliza uma

32 33
linguagem de estilo contratual de inovador da simplificação, mais tarde lajes e portais, pintados de cinzento gados a prestar atenção às coisas
modo a alterar o significado do ob- designado por Minimalismo. Como re- neutro e dispostos de modo a per- vulgares e a questionar tudo o que
jecto, criando uma obra em torno da ferido por James Meyer, esta exposição mitir vários encontros com o sujeito era considerado relevante na arte.
assinatura de um documento notarial é por vezes apontada como “a primeira – poderiam ter algo em comum com Table and Chair Event, de George
que retirava o valor estético de uma exposição minimalista”; o autor men- os objectos banais que Brecht dispu- Brecht, é o exemplo mais extremo
peça anterior, Litanies. 55 ciona ainda a dimensão predominan- nha nos Events, uma vez que ambos desta exposição. 59
temente “conceptual” deste evento.56 convertiam a experiência perceptiva
Modelos de percepção e objectos Acima de tudo, diz-nos Meyer, a expo- do espectador em sujeito da obra. 58 Judd prossegue a sua análise com
banais: Brecht e Morris sição “identificava uma tendência anti- As observações de Judd sobre Morris uma descrição objectiva de Table and
-subjectiva que se ia infiltrando num levam-no, em diversos momentos, a Chairs Event – “ uma cadeira branca
Table and Chair Events foi no- largo espectro de trabalho artístico”. 57 tecer comentários semelhantes sobre em cada ponta de uma mesa de cozi-
vamente apresentado na exposição Embora a exposição incluísse um gran- Brecht, situando-o num campo de nha branca (…)” – e conclui, referin-
Black, White, and Gray, organizada de número de artistas – de Rauschen- trabalho contemporâneo mais alar- do a existência de uma “atitude” nes-
por Samuel Wagstaff em 1964, no berg a Robert Indiana, de Anne Truitt gado, com o qual foi raramente asso- ta disposição dos objectos. Embora
Wadsworth Athenaeum. Os objectos a Andy Warhol – Judd foi perspicaz ciado desde então: não especifique o teor dessa atitude,
do quotidiano, que na exposição de e fez uma análise comparativa entre estabelece uma ligação entre o tra-
Filadélfia surgiam relacionados com Morris e Brecht. Pela primeira vez, ob- A importância da arte estende- balho de Brecht (e Morris) e Canvas
uma sensibilidade Pop, aparecem ago- servou-se que os elementos utilizados -se a tudo, inclusive ao que é fútil, e Alphabet, da autoria de Johns, que
ra alinhados com o espírito recente e por Morris – as suas grandes colunas, vulgar, menosprezado. Somos obri- Judd considera serem os percurso-

34 35
res.60 Feita esta ligação, somos reme- Judd estabelece entre Johns, Morris uma lâmpada ou beber um copo de A sensibilidade orientada para a
tidos para o ponto em comum entre e Brecht foi completamente posto de água – não se baseiam em obras de tarefa, de teor duchampiano, paten-
os três artistas – Johns, Morris e Bre- lado, com excepção da monografia carácter geral do Fluxus, como re- te nestes events atraía Morris. É sig-
cht – situado na obra de Duchamp, de Maurice Berger sobre Morris.62 ferido pelo autor, mas sim em peças nificativo que figuras como Young
apesar de sabermos que tanto Bre- Berger começa por descrever o papel específicas de Brecht (Three Lamp e Brecht tenham desafiado profun-
cht, como Morris, tentaram traduzir fundamental que o movimento Flu- Events e Three Aqueous Events, 1961). damente o próprio conceito de au-
as lições sobre o objecto readymade xus desempenhou em Nova Iorque De qualquer modo, Berger afirma toria artística ao reformularem as
com uma ênfase maior no sujeito. É no princípio dos anos 60, revigoran- que este trabalho foi significativo estratégias estéticas de Duchamp.
de notar que este esvaziamento da do uma sensibilidade performativa para Morris, e que Morris tomou co- À semelhança de Cage, seu profes-
expressão pessoal não se trata apenas radical. “As suas performances”, nhecimento dele graças à sua amiza- sor, Brecht acreditava que a música
de uma “visão não-hierárquica”, que afirma Berger, “cujo nome Events as de com Young e através da sua parti- não era simplesmente uma constru-
Judd também observa em Dan Flavin distingue dos Hapennings, eram ino- cipação em algumas performances.64 ção de sons refinados, interpretada
ou Frank Stella, acrescentando que a vadoras e conceptuais”.63 Tendo em Embora Morris tenha acabado por se por instrumentos especiais, mas sim
perspectiva destes artistas “não está conta que o “Event” era um conceito distanciar do Fluxus, ficou amigo de uma extensão de sons e aconteci-
relacionada com a perspectiva de cunhado por Brecht, Berger explica Brecht, respeitando-o desde o início. mentos banais.65
Morris ou de Brecht”.61 a forma como o mesmo estava “pro- Pelos vistos, agradava-lhe a base con-
Enquanto o legado de Duchamp fundamente enraizado no respeito ceptual da obra de Brecht e estava Porém, foi Brecht, e não Young,
é frequentemente referido em estu- de Cage pelos sons do dia-a-dia”. Os interessado em tentar apreendê-la, quem reformulou as estratégias es-
dos sobre Johns e Morris, o elo que exemplos que Berger enumera – ligar como Berger nos explica: téticas de Duchamp e quem preten-

36 37
dia abandonar o conceito de autoria. bilidade das condições perceptuais Contrastando com o teor físico e manifestamente duchampiana, con-
Berger prossegue, argumentando que referentes ao encontro entre sujeito concreto das obras de Morris, as par- siste num balde com água a girar no
as “obras em processo” de Morris e objecto. Three Rulers (Yardsticks) tituras mais duchampianas de Bre- seu interior, pendurado num suporte
foram inspiradas por este meio nova- é constituído por três réguas de me- cht – como, por exemplo, Three Gap de madeira preso à parede e coloca-
-iorquino, por volta de 1961, bem tal – instrumentos fabricados pelo Events, convocando três “lacunas” do ao nível do olhar. Todavia, não
como pelo trabalho de Duchamp. próprio Morris, em vez de réguas muito diferentes entre si, e Three Ye- devemos ficar pela mera comparação
Uma vez que tanto Morris, como Bre- estandardizadas – suspensas de gan- llow Events (to Rrose), propondo três entre a peça de Morris e o readymade
cht, se interessavam por Duchamp, chos individuais, colocados ao mes- definições distintas da cor amarela – homónimo de Duchamp. Será mais
pela linguagem e pela ideia de que mo nível na parede. Ainda que a sua deslocam a proposição de Duchamp rigoroso, e produtivo, comparar o
a obra não é um meio de expressão, descida termine num comprimento para uma percepção completamente balde de água sonoro de Morris com
mas um indício para a percepção e, desalinhado, o número que apare- baseada na linguagem.67 A presença Drip Music (Drip Event), de Brecht
dado que a sua arte assumiu formas ce na extremidade de cada régua é de registos perceptuais alternativos (1959-62). Neste contexto, o encontro
tão diferentes, a comparação entre igual (trinta e seis polegadas) [cerca em Three Gap Events reaparece na com o sujeito, mais tarde traduzido
peças contemporâneas que reflictam de 91 cm]. Esta obra é claramente partitura de Three Yellow Events; am- por Morris nas suas formas neutras
esta diversidade de modelos é assaz inspirada pelo modo como Duchamp bas demonstram o modo como Bre- assentes no chão, parece advir do
elucidativa. joga com a percepção em Three Stan- cht desenvolve a estratégia de Du- espírito performativo quer de Mor-
As obras de Morris mais declara- dard Stoppages – onde apresenta três champ sem a repetir, obtendo uma ris, quer de Brecht.68 À semelhança
damente duchampianas dão conti- medidas diferentes para um metro forma completamente diferente. de muitas outras ligações, o elo en-
nuidade ao seu interesse pela insta- – aqui aprofundado por Morris.66 Fountain (1963), obra de Morris tre Brecht e Morris não consta na

38 39
história da arte pós-guerra.69 Sendo da obra de Brecht e de Morris é su-
Morris frequentemente apontado ficiente para percebermos o modo
como um dos principais mediadores como o modelo do Event complexifi-
do legado de Duchamp (sendo inclu- ca o nosso entendimento da arte dos
sive analisado, nos últimos tempos, anos 60, especialmente no que toca à
nos mesmos termos que Cage), e en- sua inclusão no contexto do Fluxus.
quanto figura cujo trabalho avança Ainda que os Events de Brecht se te-
logicamente do Minimalismo até à nham tornado conhecidos enquanto
Arte Conceptual, a atitude comum parte do repertório do Fluxus, os
entre Brecht e Morris que Judd de- mesmos não foram definidos inicial-
tecta – semelhança ignorada até pelas mente como partituras exclusivamen-
melhores leituras revisionistas do câ- te performativas. Numa fase inicial,
none artístico dos anos 60 – merece a os Events eram uma espécie de pro-
nossa melhor atenção.70 posição conceptual móvel, trazida
para o seio da arte com o intuito de
Da arte minimalista e conceptual à abordar a relação entre sujeito e ob-
Arte Minimalista e Conceptual jecto. As partituras dos Events eram
deixas para o espectador, sugerindo-
George Brecht,
Score for Three Yellow Events, 1961 Uma mera apreciação preliminar -lhe formas de interagir com (quiçá,

40 41
completar) a ideia lançada por Bre- tent” (1968), onde se lê: “ O artista à questão da criação e contingência Conceptual, Lucy Lippard não deixa
cht. As partituras eram proposições pode construir a obra. A obra pode da obra deve ser analisada à luz das Brecht para o fim, referindo-o logo
imprecisas, sendo realizáveis do mes- ser criada. A obra pode não ser cons- proposições das partituras de Brecht: no início. O volume enciclopédico e
mo modo, quer fossem um objecto, truída”. Na linha seguinte, Weiner é praticamente impossível isolar a cronológico de Lippard começa com
uma performance, ou até um pensa- decide recuperar o sujeito autoral, proposição de Weiner como um pa- o ensaio “Chance-Imagery”, escrito
mento. O simples acto de ler a par- reafirmando a dimensão da intenção radigma criado de raiz, uma expres- por Brecht, incluindo também exem-
titura e reflectir sobre ela, sem fazer que Brecht renegara conscientemen- são única no seio da arte Conceptual, plos de partituras suas. Referindo-se
absolutamente nada, constituía uma te: “sendo cada uma igual entre si e sem pensar na sua relação com o a essa altura, escreve Lippard: “des-
realização suficiente. Com o apare- consistente com a intenção do artista, Event de Brecht. de 1960 que Brecht anda a produzir
cimento da arte Conceptual nos fi- a decisão quanto à condição cabe ao Alguns textos da altura sobre esta ‘events’ quer de forma independente,
nais dos anos 60, Lawrence Weiner receptor, no momento da recepção”.72 obra chegaram mesmo a estabelecer quer em associação com o grupo Flu-
desenvolve uma série de statements Podemos entender esta afirmação de este tipo de ligações. Judd, por exem- xus, que antevêem uma ‘arte concep-
[afirmações] cujo funcionamento as Weiner como uma resposta rebusca- plo, termina o seu ensaio fundamen- tual’ mais estrita”.74
coloca directamente na senda dos da a “The Creative Act”, escrito por tal, “Specific Objects”, fazendo refe- Em finais dos anos 80, Benjamin
Events de Brecht (não obstante al- Duchamp; no entanto, a ênfase que rência a Brecht e ligando-o a Morris.73 Buchloh foi o único historiador de
gumas diferenças assinaláveis).71 este texto coloca sobre o espectador Em Six Years: The Dematerialization arte que se lembrou de indagar, junto
Uma dessas diferenças está patente contesta abertamente a húbris da in- of the Art Object, 1966-1972, um dos dos artistas Conceptuais, sobre o seu
na “afirmação” mais conhecida de tenção artística. De qualquer modo, a livros mais antigos e mais conheci- conhecimento do Fluxus.75 Infeliz-
Weiner, “Statement of Artistic In- afirmação explícita de Weiner quanto dos sobre o aparecimento da arte mente, como estes artistas negaram

42 43
qualquer exposição ao movimento, na representação das suas activida- representações mais nítidas do cam- produziu várias obras com mesas e
as considerações de Buchloh sobre des, os artistas Conceptuais desem- po, ainda pouco explorado, da produ- cadeiras, de teor mais prosaico, que
as suas estratégias recaíram exclu- penharam um papel mais importante ção musical, poética e artística.78 Para apontam para algo semelhante ao
sivamente sobre a arte Conceptual. na construção da sua própria história Kotz, o Minimalismo é o principal Minimalismo”.79
Tratando-se de uma altura em que as do que a geração anterior. Contudo, intermediário entre as práticas lin- Ao definir o binómio “performan-
partituras dos Events de Brecht eram apesar de tudo o que estes artistas guísticas do início dos anos 60 (que, ce versus fotografia” como o ponto
praticamente desconhecidas, toda a afirmaram perante os críticos, a pro- para ela, permanecem na categoria de referência desta obra, Kotz relega
atenção se fixava na geração mais jo- va material da sua obra, bem como a da performance) e as estratégias mais os Events de Brecht para o domínio
vem: “Confrontando a totalidade das existência de novos estudos sobre os recentes da arte Conceptual (cujo da performance.80 Por outro lado,
implicações do legado de Duchamp anos 60, pedem uma revisão desta funcionamento, no entender da auto- a autora desvaloriza o interesse de
pela primeira vez”, diz-nos Buchloh, história. ra, está relacionado com a “fotogra- Brecht pela dimensão fotográfica
“as práticas artísticas Conceptuais O trabalho recente de Liz Kotz e fia”). Segundo Kotz, o Minimalismo do readymade na definição dos seus
(…) reflectiam sobre a construção Branden Joseph veio reabrir a histó- é de tal modo diferente dos “events Events, ideia claramente veiculada
e o papel (ou a morte) do autor, ao ria deste período.77 Em “Language pós-Cage” que se consegue suster, pela seguinte afirmação contunden-
mesmo tempo que redefiniam as con- Between Performance and Photo- por si só, como o ponto de referência te: “em termos programáticos, Bre-
dições de recepção e o papel do es- graphy”, Kotz apresenta uma análise da arte Conceptual. Porém, a autora cht é incapaz de reconhecer até que
pectador”.76 Por força da sua ligação profunda e necessária da diversida- principia o seu raciocínio com uma ponto é que o teor indexal dos events
profunda com a linguagem e apro- de de utilizações da linguagem nos observação aberta a outras interpre- os alinha estruturalmente com a fo-
priação cuidada dos meios dialógicos anos 60, sendo, até à data, uma das tações, dizendo que “Brecht também tografia”.81 Tem razão Kotz ao alegar

44 45
que a ênfase explícita na fotografia só nição, útil e complexa, do seu próprio quando fala sobre “uma geração si- nem Morris, conseguiram adoptar
viria a aparecer com a arte Concep- conceito de teatralidade.83 Delinean- tuada na esteira de Cage”, que deixa- devidamente o modelo de Cage – que
tual, em obras como One and Three do sistematicamente os pontos-chave ra de aceitar distinções disciplinares, Joseph considera fundamental para
Chairs (1965), de Joseph Kosuth, que da estética de Cage, introduzida como mas que entendia a “simples ideia de a reorientação da arte pós-guerra –
a autora analisa detalhadamente. To- um desafio explícito ao modernismo, uma obra ‘avançada’” como uma su- então a sua análise levanta a questão
davia, se olharmos atentamente para Joseph apresenta o campo que Cage gestão de que “o estatuto da obra (en- de como, e se, houve algum tipo de
a constelação de ideias – resultado de inaugura através da sua reestrutura- quanto objecto, processo, ou ambos) mediação neste modelo com vista a
um conhecimento cada vez maior do ção da percepção como uma matriz estava, desde já, em questão, e que a práticas artísticas futuras.
trabalho de Duchamp e dos modelos conceptual paradigmática da arte obra tinha de pegar nessa questão e A ausência de Brecht é uma som-
influentes das partituras de Cage, pós-guerra. Curiosamente, Joseph si- mantê-la em aberto”.85 Segundo Jo- bra que paira, desde há muito, sobre
incertas e em desenvolvimento con- tua Morris no lado regressivo do lega- seph, Young e Morris eram particu- os estudos acerca da viragem concep-
tínuo – percebemos que, em termos do de Cage, no sentido em que as suas larmente próximos um do outro nes- tual do início dos anos 60, assente
conceptuais, a fotografia já se encon- formas esculturais (gestalts) tinham ta altura, sendo o trabalho de Young num novo entendimento do objecto
trava presente em obras anteriores.82 algumas semelhanças com os sons de uma pedra-de-toque para o Fluxus, como processo, do trabalho de Cage
Ainda que a argumentação de Jo- Young, ambos os artistas recusando com obras como Composition 1960 # e Duchamp, da performance, foto-
seph não se concentre sobre a arte o modelo aberto e interpenetrável 10 to Bob Morris: “Desenha uma li- grafia e linguagem. A partitura do
Conceptual, procura construir uma da experiência perceptual, defendido nha recta e segue-a”.86 Obviamente, Event é talvez o primeiro caso na arte
nova genealogia do Minimalismo, por Cage.84 Inexplicavelmente, Joseph se a argumentação de Joseph sugere, pós-guerra em que uma proposição
encabeçada por Cage e pela sua defi- omite qualquer referência a Brecht em última análise, que nem Young, linguística se apresenta, na sua tota-

46 47
lidade, perante o domínio artístico Sem as partituras de Brecht, de- do Event, perde-se uma perspectiva
como forma de mediar o espaço en- finidas durante o ponto de viragem sobre a arte dos anos 60, a que pos-
tre artista e espectador. A partitura entre a prevalência da pintura e as tula uma serialização sem repetição.
constitui, para além disso, um mo- novas orientações conceptuais que A omissão de Brecht oblitera a prá-
delo alternativo de apresentação em se seguiram, fica a faltar uma peça tica artística do início do pós-guerra
série que não é Minimalista, nem essencial desta história. Fica assim que consistia em trabalhar, de forma
Pop, quer pela sua estrutura triparti- excluída uma alternativa possível ao sistemática, a proposição linguística
da, quer pelo modo como possibilita argumento de Hal Foster em “The como substituta do objecto artístico
sucessivas realizações de uma única Crux of Minimalism”, de que Joseph – um trabalho que tinha em mira res-
partitura. Se Morris for entendido se serve – que constitui o Minimalis- gatar a experiência subjectiva reifica-
como a única figura intermediária, mo como o ponto de ruptura entre da e definir o acto criativo como uma
não conseguimos dar conta do de- o moderno e o pós-moderno – e à percepção que não se assenta fisica-
senvolvimento dos modelos de Cage formulação do próprio Joseph quan- mente, como um objecto, mas que se
como linguagem (mais do que como to à faceta Young-Morris do legado ancora temporariamente, como um
escultura), nem nos é possível reco- de Cage. Fica em falta uma terceira Event.
nhecer um dos pontos de origem da via, diferente da serialização mer-
variedade dos modelos puramente cantilizada da Pop, por um lado, e da
linguísticos que surgiram em finais serialização industrializada do Mini-
Tradução de Marta Soares
dos anos 60. malismo, por outro. Sem a partitura e Maria Jacinta Magalhães

48 49
notas
29
E Barbara Haskell, Blam! The Explosion of Pop, of Modern Art. Brecht Artist File, Museum of and Happenings (New York, Harry N. Abrams, foi publicada pelo grupo Fluxus, em 1963.
Minimalism and Performance 1958–1964 (New Modern Art, Nova Iorque. 1966), p. 195. 54
Barbara Haskell refere que “a ausência de
York: Whitney Museum of American Art/W. 36
Nas palavras de Morris, “a pintura deixou de 40
Nota dactilografada por Morris, Primavera de uma atitude pictórica nos objectos de Brecht
W. Norton, 1984), p. 51. A Reuben Gallery era me interessar. Certas questões eram, para mim, 1961; entrefolha em Brecht, Notebook VII. contrastava profundamente com os ‘found
considerada uma Galeria de Happenings. muito complicadas. Não consegui resolver estes 41
Ibid. objects’ [‘objectos encontrados’] e o trabalho
30
Rauschenberg sentiu-se incomodado, durante problemas. Havia um grande conflito entre o 42
Morris, citado em Berger, Labyrinths, p. 22. figurativo dos seus colegas (...) Sink (...) por
algum tempo, com este tipo de associações, facto de fazer algo e a sua aparência no final”. 43
Rosalind Krauss, “Notes on the Index: Part I”, exemplo, era apenas um lavatório branco
desconforto visível, por exemplo, no modo Veja-se Berger, Labyrinths, p. 25. Dois anos in The Originality of the Avant-Garde and Other comum, de porcelana, sobre o qual se
como descreve a reacção às suas pinturas depois, Brecht explicou o problema à crítica Modernist Myths (Cambridge, Mass.: MIT encontravam escovas de dentes, sabonete e
negras texturizadas de 1953: “Fizeram logo Jill Johnston do Village Voice, dizendo que “a Press, 1993), p. 197. (ênfase da autora) um copo”. Haskell, Blam!, p.53.
uma associação com ‘carbonizado’, ‘violento’, natureza tipo-objecto da pintura num mundo em 44
Ibid., p. 198. 55
Para uma descrição mais completa desta obra,
‘niilismo’ e ‘destruição’. Isto tornou-se processo (...) a distância imposta por atitudes 45
Convém lembrar que, durante o período em veja-se Berger, Labyrinths, 19-22.
incomodativo para mim”. Citado em Joseph, convencionais, relativamente à pintura, no âmbito análise – o momento pré-Fluxus, de 1961 – as 56
Citando o curador, Meyer afirma que se tinha
Random Order, p. 86. Quando Brecht começou da relação entre observador e pintura (sendo a partituras de Brecht não eram ainda produzidas tornado a “‘ideia ( ) em oposição a [uma] arte
a ser comparado com Joseph Cornell que, distância entre a pintura de uma lata de sopa e o no âmbito do Fluxus e das suas performances, retiniana ou visceral’ – uma prática neo-dada ou
ao longo dos anos 60, continuava a expor as observador muito maior do que a distância entre estando a ser testadas como um outro tipo de conceptual que Wagstaff atribui à influência de
suas séries de caixas, o ardil da metáfora e da o pintor e a lata propriamente dita)”. Arquivo Jill proposta: do pensamento ao objecto. John Cage”. Veja-se James Meyer, Minimalism:
narrativa tornar-se-ia igualmente problemático Johnston, Nova Iorque. 46
O termo “stopped” [“parava”] que aqui emprego Art and Polemics in the Sixties (New Haven:
para si. Brecht queixara-se do seu horror à 37
A exposição foi inaugurada em Abril de 1961 e é propositadamente atípico: permite-me Yale University Press, 2001), p. 77. Mais tarde,
“nostalgia” Cornelliana. Recordado por Hermann contou com a participação de Allan Kaprow, Jim convocar, em simultâneo, a noção fotográfica de Meyer faz notar que a dimensão “conceptual”,
Braun, em entrevista com o autor, Fevereiro, Dine, Oldenburg, entre outros. stopping [redução do diâmetro do diafragma], descoberta nesta fase inicial do Minimalismo,
2003. 38
O papel desempenhado pelo readymade e a noção Duchampiana de stoppage e os meios não é a mesma da arte Conceptual, mas serviu-
31
O painel “Art 1960” foi moderado por Robert pela partitura na realização de Three Chair (linguísticos) que Brecht utiliza com o intuito de lhe, sem dúvida, de apoio. Menos importante
Goldwater; Johns, Alfred Leslie, Louise Events, de Brecht, na Martha Jackson Gallery, suspender a trajectória habitual do sujeito em do que os títulos abrangentes é o facto de,
Nevelson, Richard Stankewicz e Frank Stella constitui o seu modelo de partitura como uma movimento no espaço da exposição. neste contexto, podermos entender que
foram alguns dos intervenientes. O evento teve intervenção no contexto artístico. Uma vez que 47
Krauss, “Notes on the Index: Part I”, p. 205. Brecht e Morris trabalhavam conceptualmente,
lugar no Loeb Student Center, em Washington La Monte Young e Brecht são frequentemente 48
Ibid. retirando a subjectividade da obra e
Square South, numa quinta-feira, dia 21 de apontados como os dois pioneiros da partitura 49
Ibid., p. 206. concentrando-se no espectador – se bem que
Abril de 1960. Brecht enganou-se ao referir a textual breve, é conveniente distinguirmos 50
Berger, Labyrinths, p. 37. através de meios distintos.
data como sendo 22 de Abril. A carta de Abril Three Chair Events, da autoria de Brecht, de 51
A exposição, com curadoria de Audrey Sabol, foi 57
Meyer, Minimalism, p. 78.
de 1960, redigida por Brecht, aparece como Poem for Tables, Chairs, Benches, etc. (1960), organizada sob a égide do Arts Council, no YM/ 58
Ainda que convoquem reacções subjectivas
um rascunho inserido em Notebook V: Março- de Young, uma vez que ambos se ocupam de YWHA em Filadélfia (contando com a presença diferentes – Morris e as suas formas
Novembro 1960 vol. V de Notebooks I–VII, objectos semelhantes. De notar que a partitura de Johns, Rauschenberg, Jean Tinguely e Robert semelhantes a corpos, atarracadas, ancorando
ed. Dieter Daniels e Hermann Braun (Cologne: de Young era uma peça sonora (com duração Watts, entre outros). a percepção espacial e inspiradas pelo
Walther König, 1991–2005), p. 68–69. indeterminada). Segundo Henry Flynt, “[e]m 52
Numa carta endereçada à curadora Audrey Sabol, pensamento de Maurice Merleau-Ponty, em
32
Donald Judd: Complete Writings 1959–1975 Poem, Young permitia que a composição se escrita em 10 de Outubro de 1962, Brecht estipula oposição a Brecht e sua criação de uma espécie
(Halifax: The Press of the Nova Scotia College of estendesse ao longo de dez dias”. Veja-se Flynt, que Table and Chairs – que incluía uma toalha de sintaxe da percepção, baseada em objectos
Art and Design, 1975/2005), p. 149. “La Monte Young in New York, 1960–62,” in de mesa, dois copos de vinho, faca, garfo, colher, familiares e na esteira de Ernst Cassirer – estes
33
Esta exposição foi realizada em duas edições, Sound and Light, pp. 49–50. prato, um baralho de cartas, um tabuleiro de damas artistas têm bastante em comum, pelo que a
tendo o título sido invertido na segunda. Ambas 39
Referindo-se ao período em que Brecht com as respectivas peças e um jornal – deveria ligação subtil que Judd refere no seu texto faz
as versões reuniram artistas muito diversificados, levou a cabo as produções mais importantes ser exposto em três apresentações diferentes no todo o sentido. Veja-se Judd, “Black, White
uns mais focados em assemblages de teor das suas partituras, enviadas por correio de decurso da exposição. Na primeira vez, colocavam- and Gray”, Nationwide Arts Report: Hartford,
antropomórfico e outros mais virados para uma modo a serem encenadas pelos respectivos -se as cartas em ambas as pontas da mesa e Arts Magazine (Março de 1964), in Complete
abordagem mais radical do “found object” destinatários, Kaprow conclui o seguinte: “Tal mudava-se o jornal diariamente, de modo a reflectir Writings, p. 117. O interesse de Brecht por
[“objecto encontrado”] (a partir do ponto de como dissemos anteriormente a propósito de o dia em questão. Na segunda apresentação, as Cassirer é analisado em pormenor no quarto
vista do readymade, por exemplo). uma outra peça de Brecht (...) [o] envolvimento cartas eram arrumadas e o talher, prato e copo de capítulo da minha dissertação. Ver “A Critique
34
Bewogen Beweging (“moved movement”) é a força mais radical em todo o trabalho vinho eram incluídos. Na terceira, era tudo retirado e of Abstraction”, in From Abstraction to Model: In
[“movimento movimentado”] decorreu entre 10 analisado neste livro. Além de um pequeno o jogo de damas colocado no meio da mesa, pronto the Event of George Brecht and the Conceptual
de Março e 17 de Abril de 1961, no Stedelijk grupo de iniciados, são poucos os que a ser jogado, com um copo de vinho em cada Turn in the Art of the 1960s, Ph.D. diss.,
Museum, em Amesterdão, e entre 17 de Maio conseguem apreciar a dignidade moral destas um dos lugares. A carta faz parte da Gilbert & Lila Princeton University, 2008.
e 3 de Setembro de 1961, no Moderna Museet, partituras, e menos ainda os que conseguem Silverman Fluxus Collection/Museum of Modern 59
Judd, Complete Writings, p. 118. Meyer
em Estocolmo. tirar prazer da experiência de as pôr em Art, Nova Iorque. refere-se ao trabalho de Brecht como sendo
35
Excerto de “Notes on shipping and exhibiting ... prática, sem qualquer tipo de embaraço”. 53
A colecção das partituras de Brecht, intitulada “representativo da veia cageana da exposição”,
CABINET”, escrito por Brecht para o Museum Veja-se Kaprow, Assemblage, Environments Water Yam e com design de George Maciunas, entendendo a ligação entre Brecht e Morris,

50 51
sugerida por Judd, como um momento em que seguinte paralelismo: “Aquilo que poderia of the Art Object from 1966–1972 (1973; de características do readymade como estrutura
“a fronteira entre o modernismo e o Dada, entre ter sido um jogo de palavras discreto sobre reimp., Berkeley: University of California Press, implícita nos objectos de Morris e respectivos
a escultura abstracta e o readymade [começou] a história modernista converte-se numa 1997), p. 11. contextos é bastante plausível, do mesmo modo
a desvanecer-se”. Veja-se Meyer, Minimalism, performance interminável”. Berger, Labyrinths, 75
No ensaio “Conceptual Art 1962–1969: From que a fotografia está também ela implícita na
p. 86. p. 27. the Aesthetic of Administration to the Critique definição dos Events de Brecht.
60
Judd, ibid. 69
Esta ligação é reiterada por Judd no seu trabalho of Institutions”, Buchloh explica-nos o seguinte: 80
Antes do início do movimento Fluxus, em finais
61
Ibid., p. 119. crítico; num caso específico, é referida de forma “Barry, Kosuth e Weiner, por exemplo, em de 1962, foram poucas as ocasiões em que
62
Veja-se Berger, Labyrinths. indirecta, através de um simples comentário conversas recentes com o autor, negaram Brecht pode produzir os seus Events como
63
Ibid., p. 26. a propósito do “understatement” [subtileza; veementemente qualquer ligação histórica performances. Como anteriormente referido,
64
No início dos anos 60, Morris contactava meias-palavras]. Diz-nos o seguinte: “George com, ou sequer qualquer conhecimento sobre, entre 1959 e 1962, Brecht estava concentrado
bastante com Brecht, tendo participado nos Brecht, numa subtileza extrema, limita-se a expor o movimento Fluxus do princípio dos anos 60”. nas duas outras formas possíveis para os seus
concertos de Brecht e Robert Watts, no Yam qualquer coisa, certa vez um banco azul sobre o Buchloh, publicado em October 55 (Inverno de events: realizá-los como objectos ou como
Festival, concluídos em Maio de 1963. Nestes qual se encontrava uma luva branca”. Continua, 1990), pp. 105–43 (N. de rodapé 1). propostas puramente linguísticas, enviadas
concertos, apresentaram um conjunto de dizendo que “Robert Morris expôs uma coluna 76
Ibid., p. 108. como postais ilustrados pelo correio (a serem ou
bandeiras cinzentas como parte dos “objectos” cinzenta, uma laje cinzenta e uma laje cinzenta 77
Liz Kotz, “Post-Cagean Aesthetics and the não concretizadas).
à venda na “Yam Warehouse”. Em Janeiro suspensa, tudo também muito subtil”. Judd, ‘Event’ Score”, in October 95 (Inverno de 2001), 81
Kotz, “Language Between Performance and
de 1963, Brecht e Watts apresentaram um Complete Writings, p. 153. pp. 55–89; e Kotz, “Between Language and Photography”, in Words To Be Looked At, p.
event no Yam Festival que consistia numa 70
O ensaio de Branden Joseph, “The Tower and Photography”, in October 111 (Inverno de 2005), 191.
palestra falsa (sob o nome Yam Lecture). Em the Line”, ao qual voltamos agora, é a revisão pp. 3–21. Estes textos aparecem revistos como 82
Este tema foi por mim analisado em pormenor,
tom de crítica ao formato típico da palestra, mais recente da genealogia do Minimalismo. capítulos em Kotz, Words To Be Looked At: procurando a origem da experimentação
os dois artistas envergaram batas brancas Joseph concentra-se em Cage e analisa o Language in 1960s Art. O ensaio de Branden fotográfica – como meio de traçar um
de laboratório, tocaram várias bandas trabalho de Morris (bem como os músicos, Joseph, “The Tower and the Line” (supra caminho para além de Pollock e de inscrever
sonoras e projectaram slides modificados. bailarinos e compositores no círculo próximo referido), também aparece revisto no seu livro a contingência na obra de arte – no trabalho
Aparentemente, esta ideia teve continuação em de Morris/Brecht), mas não faz qualquer Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and de Rauschenberg entre 1943-53. Vide a minha
21.3 (1964), uma palestra falsa sobre Panofsky referência a Brecht. Veja-se Joseph, “The the Arts After Cage (New York: Zone Books, dissertação de doutoramento, From Abstraction
proferida por Morris no ano seguinte, para a Tower and the Line: Toward a Genealogy of 2008). to Model.
qual o artista se vestiu de historiador de arte Minimalism”, Grey Room 27 (Primavera de 78
Kotz faz uma distinção entre os “paradigmas 83
Veja-se Joseph, “The Tower and the Line: Towards
e utilizou uma gravação dessincronizada da 2007), pp. 56–81. pós-Cage, orientados para a percepção a Genealogy of Minimalism”.
palestra. 71
O capítulo final da minha dissertação (supra e ‘participativos’, do princípio dos anos 84
Não quer isto dizer “regressivo” em geral, mas
65
Berger, Labyrinths, p. 27. referida) analisa este ponto detalhadamente, 60, e as estruturas da Arte Conceptual, sim regressivo segundo o ponto de vista de
66
Segundo Berger, “(...) as relações padronizadas comparando os usos da linguagem em Brecht manifestamente representativas, Cage. Joseph analisa o interesse de Young
de escala são subitamente relegadas para e em Weiner. sistematizadas e auto-reflexivas”. Veja-se em render-se aos sons e, como refere, em
o plano da percepção individual e da 72
Conforme citação em Donna de Salvo e Ann Kotz, “Language between performance and “entrar dentro deles com alguma profundidade,
subjectividade, e o conceito de medida passa Goldstein: Lawrence Weiner: As Far As The photography”, in Words to Be Looked At, p. para que assim possamos vivenciar um outro
a ser a nossa percepção dela”. Veja-se Berger, Eye Can See (New York: Whitney Museum of 175. “Só através do reconhecimento desta mundo”. Joseph diz ainda que “Cage qualificou
Labyrinths, p. 33. Krauss apresenta uma outra Art; Los Angeles: Museum of Contemporary relação”, entre a prática artística referente às este aspecto do trabalho de Young como
abordagem desta obra, relacionando-a com Art, 2008), p. 325. Weiner afirmou ter sido “fã” partituras do início dos anos 60 e a prática uma ‘fixação’, justapondo-o à sua ideia de
Duchamp, em Robert Morris: The Mind/Body de Brecht, durante uma conversa com o autor, mais recente da Arte Conceptual, prossegue ‘transparência’ e sublinhando a sua oposição:
Problem (New York: Solomon R. Guggenheim em Novembro de 2001. Outra semelhança Kotz, “é que conseguimos entender o que há de ‘Gostaria que entendessem (...) que eu estou
Museum, 1994), p.134. fundamental entre Brecht e Weiner é o diferente, de distinto, no aparecimento de usos onde devo estar’, explicou Cage, ‘enquanto
67
Analisando a notação de Three Yellow Events interesse mútuo pela “filosofia do processo”, da linguagem mais explícitos e deliberadamente Young acha que o nosso lugar deve ser noutro
– à primeira vista, enigmática –, podemos de Alfred North Whitehead. Veja-se Kathryn ‘conceptuais’, empregues quer como estrutura sítio qualquer’”. Por fim, Joseph refere que “para
olhar para a palavra “yellow” [“amarelo”] e Chiong, “Sympathy for Lawrence Weiner (One reiterada, quer como meio de representação.” Cage, a estética de Young não apenas diferente,
considerar várias possibilidades: as diversas Plus One)”, in ibid., p. 328. Ibid. mas (literalmente) regressiva”. Veja-se Joseph,
tonalidades da cor, ou até mesmo o verbo, “to 73
Na última linha de “Specific Objects”, muitas 79
Ibid., p. 177. Em relação a Brecht e Morris, Kotz “The Tower and the Line”, pp. 68–69.
yellow” [“amarelar”]. Brecht acrescenta ainda a vezes omitida nas versões abreviadas, pode cita também o trabalho crítico de Judd (referindo- 85
Ibid., p. 63.
possibilidade de uma definição auditiva da cor ler-se: “George Brecht e Robert Morris utilizam -se à recensão a Black, White, and Gray), 86
Ibid., p. 66.
forte (“loud” [“alto”]) e, por fim, a maneira como objectos reais e dependem do entendimento utilizando-o, contudo, para frisar a diferenciação 87
Hal Foster, “The Crux of Minimalism,” in The
uma determinada cor pode fazer-nos pensar que o observador tem desses mesmos estabelecida por Judd entre a “intencionalidade” Return of the Real (Cambridge, Mass.: MIT Press,
numa outra (“red” [“vermelho”]). objectos”. Veja-se Judd, Complete Writings, p. da escultura de Morris e a dimensão essencial, 1996), pp. 35–69.
68
As palavras que Berger escolhe para descrever 189. de teor readymade, da obra de Brecht. Dado o
Fountain, da autoria de Morris, sugerem o 74
Lucy Lippard, Six Years: The Dematerialization interesse de Morris por Duchamp, a presença

52 53
Tristan Tzara
Vaseline Symphonique, 1921 Fluxversion
Microphone, hands, vaseline.

Vaselina Sinfónica, 1921 Versão Fluxus


Microfone, mãos, vaselina.

Fluxus Bengt af Klintberg


Calls, Canto 5 (Telephone Call)
Make a telephone call in a bathtub, talking with your lower lip

Events under the water surface and your upper lip over it. The piece
requires a long telephone cord.

Chamadas, Canto 5 (Chamada Telefónica)


Faz um telefonema numa banheira, falando com a parte inferior
do auscultador por baixo da água e a parte superior por cima da
água. A peça exige um telefone com um fio comprido.

Ken Friedman

A small Fruit Sonata, 1963


Play baseball with a fruit.

Sonata Fruta, 1963

anthology Joga baseball com uma peça de fruta.

Terrasse du Provence, 27 July 1963


Concert Fluxus,
Uma pequena
antologia
Robert Watts
Washroom, 1962
The local national anthem or another appropriate tune is sung or
played in the washroom under the supervision of a uniformed
attendant.

54 55
Lavandaria, 1962 he got them, the size, the color, why he likes them, etc.
O hino nacional local, ou qualquer outra música apropriada,
é cantado ou tocado na lavandaria sob a supervisão de um Sapatos da Tua Escolh a, 1963
empregado de uniforme. Um membro do público é convidado a falar para um microfone, se
houver um disponível, e descrever um par de sapatos, o par que
está a usar ou um outro. É encorajado a contar onde os comprou,
qual o seu tamanho, a sua cor, porque gosta deles, etc.

Shoes of your choice, 12 November 1966


Alison Knowles performing her
November 1966
Knowle's Shoes of Your Choice, 12
An audience member performing Alison
George Maciunas
Solo for Violin, 1962
Old classic is performed on a violin. Where pauses are called,
violin is mistreated by scratching the floor with it, dropping
pebbles through f hole, pulling out pegs, etc.

Solo para Violino, 1962


Um antigo clássico é interpretado num violino. Quando houver
pausas, o violinista maltrata o violino raspando-o no chão,
deixando cair pedras do f, arrancando as cravelhas, etc.

Robert Bozzi
Choice 18, 1966
Performers use mirrors to show the audience to itself.

Escolha 18, 1966


Os actores usam espelhos de forma a que o público se veja.

Alison Knowles Mieko Shiomi


Shoes of Your Choice, 1963 Smoke Poem, 1966
A member of the audience is invited to come forward to a props: cigarettes, lighters, finest markers
microphone if one is available and describe a pair of shoes, the Each volunteer in the audience writes on a cigarette a name of a
ones he is wearing or another pair. He is encouraged to tell when person whom he hates or doesn´ t feel sympathetic. In case he has

56 57
no such person, he may write a name of a fish. Parceiro de Jogo, 1969(89)
Then they smoke all together. Brinca num balancé com o teu próprio peso em cenouras.
The detailed facts of this performance should be hold in secret
each other. Ben Patterson
Licking Piece, 1964
Poema de Fumo, 1966 cover shapely female with whipped cream
adereços: cigarros, isqueiros, marcadores lick
Cada voluntário do público escreve num cigarro o nome de uma ...
pessoa que odeie ou pela qual não sinta simpatia. No caso de topping of chopped nuts and cherries is optional
não existir tal pessoa, o espectador pode escrever o nome de um
peixe. Peça de Lamber, 1964
Depois fumam todos juntos. cobre uma mulher escultural com chantilly
Os factos detalhados deste espectáculo devem permanecer em Lambe
segredo. ...
cobertura de nozes picadas e cerejas é opcional
Eric Andersen
Opus 46, 1963

1964–65. Photo by Willem de Ridder


Amsterdam, with Dorothea Meijer, winter
Willem de Ridder's Mail Order FluxShop,
This sentence should not be read by more than one person at the
same time.

Opus 46, 1963


Esta frase não deve ser lida por mais do que uma pessoa ao
mesmo tempo.

Larry Miller
Playmate, 1969(89)
Teeter-totter with your own weight in carrots.
Benjamin Patterson and others performing
his Licking Piece, 1964 at 359 Canal St. NYC,
Photograph Peter Moore.

Willem de Ridder
The Big Realization, 1964
Turn off all water, gas, and electricity for one week.
I wish you a good time.

58 59
A Grande Realização, 1964 Julho: Encontra um lobo. Observa-o durante 30 minutos.
Desliga a água, o gás e a electricidade por uma semana. Agosto: Escreve uma carta às Finanças, explicando como é difícil
Espero que te divirtas. alcançar o sublime. [No original, lofty dryness, uma das sete
características da Arte Zen apresentadas por Shin’ichi Hisamatsu]
Ben Vautier Setembro: Faz uma lista dos teus quatro livros preferidos. Envia-me.
Sale, 1962 Outubro: Confecciona o teu prato favorito. Envia-me a receita.
Performers sell the theater. Novembro: Vai a algum lugar e vê nevar. Senta-te com um amigo.
Bebe chá quente.
Venda, 1962 Dezembro: Dá algo que te seja precisoso a outra pessoa.
Os actores vendem o teatro.
George Brecht
Don Boyd Instruction, 1961
A Performance Calendar (for El Djerrida), 1989 Turn on a radio. At the first sound, turn it off.
For whom? Anyone.
When? Anytime. Instrução, 1961
January: Obey all laws 30 days. One day disobey one law. Liga o rádio. Ao primeiro som, desliga-o.
February: Make a work with the fewest elements possible. One item?
March: Watch the clouds on a sunny day for 10 minutes. La Monte Young
April: Watch some kind of insect for 10 minutes. Composition 1960 #5
May: Take a book and a pen. (An old-fashioned ink pen). Sit in the Turn a butterfly (or any number of butterflies) loose in the
woods for 30 minutes watching and listening. Write of what you performance area.
see and feel and hear. When the composition is over, be sure to allow the butterfly to fly
June: Find a sheep. Watch it 30 minutes. away outside.
July: Find a wolf. Watch it 30 minutes. The composition may be any length but if an unlimited amount
August: Write a letter to the IRS (Internal Revenue Service or the of time is available, the doors and windows may be opened
equivalent income tax authority where you live), explaining how before the butterfly is turned loose and the composition may be
difficult it is to achieve lofty dryness. considered finished when the butterfly flies away.
September: Make a list of your four favorite books. Send it to me.
October: Make your favorite dish of food. Send me the recipe. Composição 1960 #5
November: Go somewhere and watch it snow. Sit with a friend. Liberta uma borboleta (ou várias borboletas) no espaço
Drink hot tea. performativo.
December: Give something you treasure to another person. Quando a composição terminar, certifica-te que a borboleta voou
para fora do espaço.
Um Calendário Performan c e (para El Djerrida), 1989 A composição pode ter qualquer duração, mas se não houver
Para quem? Qualquer um. qualquer limite de tempo, as portas e as janelas podem estar
Quando? A qualquer hora. abertas antes de se libertar a borboleta e a composição pode
Janeiro: Obedece a todas as leis durante 30 dias. Um dia considerar-se terminada quando a borboleta sair.
desobedece a uma lei.
Fevereiro: Cria uma obra com o menor número de elementos Tomas Schmit
possível. Um item? Sanitas No. 2, date unknown
Março: Observa as nuvens num dia de sol durante 10 minutos. Auditorium or theatre should be dark. Performers throw small
Abril: Observa qualquer espécie de insecto durante 10 minutos. objects, coins, toys, etc., into the audience and then try to find
Maio: Pega num livro e numa caneta. (Uma caneta antiga de tinta these objects using flashlights.
permanente). Senta-te na floresta durante 30 minutos, observando
e ouvindo. Escreve o que vês e sentes e ouves. Sanitas nº 2, data desconhecida
Junho: Encontra uma ovelha. Observa-a durante 30 minutos. O teatro ou auditório deve estar às escuras. Os actores atiram

60 61
pequenos objectos para a plateia, moedas, brinquedos, etc., e Dick Higgins
depois tentam encontrá-los usando lanternas. Danger Music Number Two, May 1961
Hat. Rags. Paper. Heave. Shave.
Board annoucing Tomas Schmit's Sanitas 2 ,
26 July 1963

Música Perigosa Número Dois, Maio 1961


Chapéu. Trapos. Papel. Arremessar. Barbear.

Wiesbaden 1962, Photo Hartmut Rekort


Fluxus Internationale Festspiele Neuester Musik,
Dick Higgins performing his Danger Music 2 at
Jackson Mac Low
S ocial Project 3, 1963 Ay-O
Find a way to produce everything everybody needs. Rainbow No.1 for Orchestra, date unknown
And get it to them. Soap bubbles are blown out of various wind instruments. The
Make it work. conductor breaks the bubbles with his baton.

Projecto Social 3, 1963 Arco-íris nº1 para Orquestra, data desconhecida


Arranja uma maneira de produzir tudo o que as pessoas precisam. Bolas de sabão saem de vários instrumentos de sopro. O maestro
E faz-lhes chegar. rebenta as bolhas com a sua batuta.
Faz com que resulte.
Nam June Paik
Yoko Ono Prelude, date unknown
Cloud Piece, 1963 spring Audience seats are tied up to backs before performance.
Imagine the clouds dripping.
Dig a hole in your garden to put them in. Prelúdio, data desconhecida
Os assentos das cadeiras da plateia estão amarrados às suas
Peça de Nuvem, 1963 primavera costas, antes da performance.
Imagina as nuvens caindo gota a gota.
Cava um buraco no teu jardim para as guardares.
Selected and translated by / Seleccção e tradução de Ana Luísa Valdeira

62 63
˜
Ensaios Essays
Maria de Almeida Alves The only trouble with violent shocks is that they wear off 1

Para a compreensão da comunidade normativa há que abrir espaço para


a reflexão sobre a heterogeneidade que resulta de qualquer comunidade de
sujeitos. Martha Nussbaum2 tem procurado demonstrar a importância do
papel cognitivo desempenhado pelas emoções no que toca a racionalidade
Espectadores pública. Uma figura a que a mesma autora apela, e que me parece apropria-
da para a reflexão que prossigo, é a propugnada por Adam Smith no The
sem Palco Theory of Moral Sentiments. O «judicious spectator» surge pela pena do re-
ferido autor para nos dar a conhecer o que se lhe afigura como uma teoriza-

˜
ção essencial para a integração das emoções na racionalidade comunitária.
Esta figura caracterizar-se-ia por ser um espectador, ou seja, por não estar
directamente envolvido no que suscitasse emoção mas, ainda assim, capaz
Stageless de imaginar o que seria estar nas situações observadas. O «judicious spec-
tator» reuniria capacidade de empatia e de observação distanciada. Smith
Spectators
˜
The only trouble with violent shocks is that they wear off 1
Campo de Concentração de Auscwitz.
Auschwitz concentration camp.

To grasp the meaning of a normative community, one must reflect on the


diverseness emerging from a community composed by human beings. Mar-
tha Nussbaum2 is known for bringing forth the relevance of the cognitive
aspect in respect to emotions and public rationality. Nussbaum highlights
a term, coined by Adam Smith in The Theory of Moral Sentiments, which is
relevant for the thesis I will be pursuing: the «judicious spectator». Smith
describes this particular type of spectator as an ideal one, which thereby
is able to link emotions to public rationality. His main characteristics are a
certain emotional detachment, as the word «spectator» suggests, tempered
by the capability of imagining what it would be to experience what is seen.
He would be empathic but this would be filtered by his capacity to observe.
Smith exemplifies what he has in mind by referring to the reader and the

1 - BROOK, Peter, The Empty Space, 1968, p. 61. 1 - BROOK, Peter, The Empty Space, 1968, p. 61.
2 - NUSSBAUM, Martha C., Poetic Justice, Boston, 2 - NUSSBAUM, Martha C., Poetic Justice, Boston,
1995, p. 72 e ss. 1995, p. 72 e ss.

66 67
Yevgeni Bauer, Daydreams (1915)
destaca o leitor e o espectador de teatro como paradigmas da sua noção. intersubjectiva, através da cognição e da capacidade de julgar. O Direito
A ideia que subjaz à criação da figura seria ter pessoas que cultivassem a Penal alberga esta mesma realidade através da tónica que coloca em certos
sua preocupação com a autonomia e acção humanas. É indiscutível a liga- estados emocionais. Assim, veja-se no Código Penal o artigo 33º, nº2, em
ção de tais elementos com o aprofundamento do conhecimento da pessoa que se ordena a exculpação quando o excesso de legítima defesa decorrer
e das suas possíveis repercussões nos agentes do Direito, ainda que não de perturbação, medo ou susto, quando não censuráveis. Ou o artigo 133º
determinável quanto aos efeitos. Ao se incluir o outro na compreensão que determina que a pena será significativamente diminuída se o homicí-
individual de acções, essa inclusão permite um entendimento privado dos dio for determinado por compreensível emoção violenta, compaixão ou
acontecimentos que se integra como factor de estabilidade na compreen- desespero. Ainda que sejam artigos sobre os quais muito se tem escrito na
são do mundo. Neste sentido, diz Robin West: “The knowledge we acqui- tentativa de desbravar a letra da lei, é inegável que as emoções referidas
re through sympathetic sensitivity to the subjectivity of the other cannot, são fundamentais para a determinação da moldura penal. Como refere
indeed, be quantified or calculated. (…) But that does not mean that such Nussbaum “What the ancient pity tradition claims for epic and tragedy
knowledge does not exist”3. might now be claimed for the novel [e acrescento para o teatro]: that this
Acreditar, por exemplo, que alguém sofre de forma desproporcional re- complex cast of mind is essential in order to take the full measure of the
lativamente ao que quer que tenha feito – ou se nada tiver feito - não tem adversity and suffering of others, and that this appraisal is necessary for
nada de irracional e, como tal, deve ser integrado na nossa experiência full social rationality.”4 No entanto, importa ter presente uma afirmação

˜
theatre spectator as paradigmatic of such notion. The author´s purpose was
to have people cultivate their attention towards human autonomy and ac-
˜
ability to evaluate. The Portuguese Criminal Law takes this into account,
reserving room for certain emotional states. The Criminal Code, in its 33º/2
tion. Such elements are indisputably relevant to augment the knowledge one exculpates an agent who acts in self-defense, with excess, if the excess de-
has of human existence as well as their possible repercussion in law agents, rives from fear or fright, and they are not censurable. 133º of the same Code
despite the indeterminacy of its effects. determines that the penalty will be significantly reduced if the murder was
When the «other» is taken into account in the individual apprehension committed due to an understandable violent emotion, compassion or de-
of actions, this inclusion permits a private comprehension of the events, spair. Naturally, these articles have given way, over the years, to different
which functions as a stability factor in our being in the world. To exemplify interpretations, but the importance given to the aforementioned emotions
this assertion, I quote Robin West: “The knowledge we acquire through by the legal framework is undeniable.
sympathetic sensitivity to the subjectivity of the other cannot, indeed, be Returning to Nussbaum “What the ancient pity tradition claims for epic
quantified or calculated. (…) But that does not mean that such knowledge and tragedy might now be claimed for the novel [to which I add the theatre]:
does not exist”3. that this complex cast of mind is essential in order to take the full measure
For example, to believe that someone is suffering disproportionally to of the adversity and suffering of others, and that this appraisal is necessary
what one has done, if he has in fact done anything, is not an irrational be- for full social rationality.”4 Notwithstanding, it is important to bear in mind
havior and should be integrated in our subjective experience, through our that though the empathic capacity can be enhanced by our contact with

3 - West, citada por AGUIAR E SILVA, Joana, A 3 - West, em AGUIAR E SILVA, Joana, A Prática Judi- 4 - Ob. Cit., p.66. 4 - Ob. Cit., p.66.
Prática Judiciária entre Direito e Literatura, Lisboa, ciária entre Direito e Literatura, Lisboa, 2001, p.119.
2001, p.119.

70 71
por demais óbvia mas frequentemente ignorada, que explicita que se a na tentativa de ultrapassar o “mal do olhar”, enquanto expressão de passi-
capacidade empática pode, de facto, sair reforçada pelo contacto com a vidade – desde Brecht a Artaud –, penso que será mais proveitoso explicitar
ficção, tal não implica que assim seja, nem que daí decorram consequências a minha desconfiança perante a visão descrita para depois poder retomar
no que pode ser designado como um aprofundamento ético do sujeito que a ligação entre o direito e o teatro. Parto de uma citação de Rancière para
está em “diálogo” com os textos. explicitar as razões da minha concordância com o autor. O filósofo diz que
O problema que se coloca é que a distanciação que preexiste na dispo- “Ser espectador não é condição passiva que devêssemos transformar em
sição de quem se apieda tem sido motivo de desconfiança contínua para actividade. É a nossa situação normal”6. A percepção visiva tem carácter
os que, desenvolvendo várias teorias no âmbito do teatro no último sécu- construtivo e, assim, percebemos a que Rancière se refere quando defende
lo e meio, vêem o papel do espectador como um mal. Recorro a Jacques que a nossa situação normal é a de espectador e que tal não se prende com
Rancière5 quando n´O Espectador Emancipado expõe as razões associadas inactividade. Em suma, que a distância não é um mal a abolir mas uma par-
a tais teses. Por um lado, olhar – tradicionalmente associado à posição do te integrante de toda a comunicação.
espectador - seria encarado como o contrário de conhecer. Por outro, seria No entanto, quando uma pessoa assiste a uma performance, o seu papel
tido como o contrário de agir. Destas duas ordens de razão, concluiu-se que enquanto ser social é circunscrito pelo ritual no qual se integra e do qual
o espectador deveria ser subtraído à posição do observador fascinado pelas tem expectativas. Estas prendem-se com a aceitação de que o que irá ver é
aparências e à do observador toldado pela empatia. Ora, ao invés de entrar em parte real e em parte ficção. Ou seja, o espectador estará num estado de
em explicações pormenorizadas das várias concepções que foram surgindo espírito lúdico, o qual potenciará o paradoxo descrito por Baz Kershaw, no

˜
fiction, this alone does not have any proven consequence of making human
beings more ethical – an obvious remark yet often forgotten.
˜
Let me quote Rancière, in order to express the reasons for accepting his
thesis: “To be a spectator is not a passive condition in need of being turned
The problem which arises is that the proposed detachment of the person into activity. It is our normal condition.”5. What is said by Rancière is that
who feels pity has given way to a sentiment of continued distrust. This has our visual perception has a constructive component, not inactive at all, and
been felt by those who, in the last century and a half, have seen the role thus our normal condition should be seen as such. In sum, the detachment
of the spectator as a kind of evil. Jacques Rancière, in The Emancipated present in our perceptions as spectators is not a disease that should be eradi-
Spectator, describes the thesis underlying the referred sentiment. For one, cated, but a constitutive part of all communication.
to «look» – traditionally associated with the spectator – is thought of as the Passing onto a different aspect, let us think about performances. When
contrary of knowing something. Furthermore, it is viewed as the contrary one goes to see a performance, the person´s social role is limited by the rit-
of acting. The conclusion seems to be that the spectator must be retrieved ual to which they are part of and the expectations arising from the context.
from its observant position, fascinated by appearances, and from the sweet A person knows that she will be seeing something part real part fiction. The
and deceitful embrace of empathy. I will not describe the conceptions which spectator will be in a ludic state of mind, maximizing the paradox described
surfaced – from Brecht to Artaud – in reaction to the «malade» aforemen- by Baz Kershaw, in Performance, Community, Culture, the rule-breaking-
tioned. I think it best to express my distrust regarding this view, with the within-rule-keeping maxim, which ensures the possibility of taking pleas-
purpose of returning to the connection between the normative and theatre. ure of the performance without retrieving anything from it onto one´s life,

5 -RANCIÈRE, Jacques, O Espectador Emancipado 6 - Ob. Cit., p. 28. 5 - Ob. Cit., p. 28.
(2008), trad. port. de José Miranda Justo, Lisboa, 2010,
p. 9 e ss.

72 73
seu livro Performance, Community, Culture, de rule-breaking-within-rule- Teatro Experimental, se vê o derrube das quatro paredes que limitavam as
-keeping, que assegura ao espectador a possibilidade de fruir da perfor- actuações, a integração do espectador na performance, e a do actor entre
mance sem dela retirar consequências para a sua vida, uma vez que está os espectadores, o desconhecimento de quem desempenha que papel, a
perante uma encenação. É esta posição que julgo questionável, pelo menos, improvisação, entre outros; se se abole a distanciação e se coloca a pessoa
se entendida à letra. Há, claramente, consequências; os espectadores ex- que assiste à actuação como performer, que papel é que esta consubstanciação
perimentam piedade e temor, as quais podem regular reacções emotivas do teatro pode ter no espectador? A compaixão, como hipótese de reflexão
das pessoas, inclusive no seu contexto quotidiano, podendo ter implicações sobre o outro, esfuma-se e o que temos é uma posição que manipula – sem
éticas e políticas. finalidade garantida ainda que desejada pelo encenador – e que ao colocar
A questão que se coloca é se não há dúvida que quem partilhe da o sujeito no centro da performance pode assustá-lo ou enraivecê-lo, uma vez
posição de inúmeros juristas que advogam a importância do contacto com que, uma ou outra das reacções se prende com a salvaguarda de si. Optei
a ficção nos seus vários domínios para uma mais completa compreensão por me focar num exemplo, uma vez que seria absurda a pretensão de querer
do humano, ainda que sem resultados garantidos, antes como uma forma atribuir a todas as manifestações de teatro experimental a integração do
de potenciar tal possibilidade, então que lugar podem os mesmos juristas espectador na própria performance. A companhia de teatro que referirei
reservar para uma ficção que se pretende realidade? Até que ponto é que actua com base numa tese intitulada Theatre of Violence que pode ser
um esbatimento da fronteira entre ficção e realidade pode ter interesse para reconduzida, ainda que com diferenças, ao teatro da crueldade de Antonin
um desbravamento da comunitas? Se, sob a designação por demais geral de Artaud, o qual defendia dever subtrair-se o espectador à sua posição de

˜
due to the certainty of being in a staging. However, I believe this assertion
to be quite debatable, at least if taken literally. There are, naturally, con-
˜
and we are left to be manipulated. The person who is put at the center of a
performance can be frightened or angered, as each of these reactions repre-
sequences; spectators experience pity and fear, which can have impact on sents a form of self-safekeeping.
people´s emotional reactions, even when spectators are thrown once again I shall focus on one situation to exemplify what has been said. Previously,
onto their daily contexts. As such, these experiences can have ethical and a remark to say it would be absurd to describe Experimental Theatre as a
political implications. kind in which the spectator is always integrated in the performance. The
Focusing on the position adopted by several legal practitioners, which Theatre Company I will be referring to, acts based on a thesis entitled Thea-
states that a close contact with fiction enhances a better understanding of tre of Violence, which has some resemblances to Artaud´s Theater of Cru-
human beings, despite the incognito of a sure outcome in this regard, what elty. Artaud believed that the spectator had to be taken from its observant
place is to be given, by the same agents, to fiction that aims at being real- position and “disowned of such illusory domains and dragged into the magic
ity? What is the scope of interest of these events – which try to erase the circle of theatrical action, being stripped of all detachment”6.
boundaries between fiction and reality – in apprehending the comunitas? In 2008, a performance entitled The Factory was produced in Edinburgh,
If, under the necessarily broad designation of Experimental Theatre, we by the Badac Theatre Company. The purpose was to stage a concentration
see staging taking place far away from theatre rooms, the spectator as part camp. Some of the actors played Auschwitz guards leading the spectators
of the performance, the actor amidst spectators, the concealment of who is – the supposed prisoners – to the gas chambers, whilst other actors were
playing which role, improvisation, among others; if an end is put to the de-
tachment between the spectator and the performer, which role will all of this
6 - RANCIÈRE, ob. Cit., p.10-11
play within the spectator? Piety, as reflection about the «other», disappears

74 75
observador, devendo ser “desapossado desse domínio ilusório e arrastado optasse por se ir embora.
para dentro do círculo mágico da acção teatral, perdendo toda a distância.”7 O fundador da Badac Theatre Company, Steve Lambert, explica o seu
Em 2008, foi produzida em Edimburgo a performance intitulada The trabalho da seguinte forma: “The experience this creates for both the actors
Factory pelo grupo Badac Theatre Company. Pretendia-se “encenar” and the audience will be intense, disturbing, brutal and destructive. This is
um campo de concentração. Alguns actores representavam guardas de what we want. If we are to understand both the capabilities and the suffering
Auschwitz que encaminhavam os espectadores – substitutos dos verdadeiros of man then we must expect the experience to be painful”8.
prisioneiros − para as câmaras de gás, enquanto outros actores estavam No exemplo referido, a fronteira entre realidade e ficção esbate-se uma
dispersos pelo público. Os primeiros davam ordens num tom autoritário, vez que não é possível ao espectador saber qual o guião que está a incitar
faziam barulhos ensurdecedores com bastões contra peças metálicas, as suas acções. Quando, numa situação de performance, é pedido aos
aproximavam-se dos espectadores numa atitude intimidatória e isolavam- espectadores para se despirem ou se encostarem à parede, o facto de ser
nos em grupos pequenos. Por fim, voltavam a reuni-los e ordenaram-lhes que a própria integridade física da pessoa a ser questionada, levanta questões
tirassem a roupa - os actores que estavam misturados com os espectadores éticas complexas. O que é que está a ser proposto? Que através destas
obedeceram. A seguir, foi-lhes dito que se encostassem contra a parede. experiências se tome consciência da violência? Que um espectador se sinta
Alguns espectadores disseram, posteriormente, que estavam aterrorizados, em Auschwitz? A ligação entre a encenação de um campo de concentração
outros começaram a chorar durante a performance e houve ainda quem recorrendo aos espectadores não tem uma reacção definível, espectável.

˜
mixed with the audience. The guards gave orders, made deafening sounds,
and intimidated the spectators, whilst isolating them in small groups. At last,
˜
being questioned. This gives rise to complex ethical questions. What is being
proposed here? That we become acquainted with violence? That a spectator
they regrouped them again and ordered the spectators to take their clothes feels he is in a concentration camp? To stage a concentration camp, using
of. The actors, in the midst of the spectators, obliged. Then they were told the spectators to ensure it, is something that bears no definable reaction. It
to lean against the wall. Afterwards, some of the spectators said they were is difficult to make way for pity for the real prisoners in an experience of this
terrorized. Others began to cry during the performance and some left. fashion. I regard as quite different the situation in which one reads Primo
The founder of the Badac Theatre Company, Steve Lambert, explains Levi´s If this is a Man. Here we are not confronted by our personal experi-
his work in the following manner “The experience this creates for both the ence of discomfort – without a real parallel between spectator and prisoner
actors and the audience will be intense, disturbing, brutal and destructive. – but with an account of what someone did in fact experience whilst in a
This is what we want. If we are to understand both the capabilities and the concentration camp.
suffering of man then we must expect the experience to be painful”7. What I think begs for scrutiny, regarding the performance mentioned, is
In the aforementioned example, the boundaries between reality and fic- its potential effects. It is quite unlikely that someone feels they understand
tion are blurred, because the spectator has no way of knowing which script what it is to be in a concentration camp after being in this performance. Steve
is guiding his actions. When, in a performance, spectators are asked to take Lambert states that to experience violence is to understand it, but I believe
their clothes of or lean against a wall, it is their physical integrity that is this to be a fragile thesis. The end of miscomprehensions does not seem to

7 - RANCIÈRE, ob. Cit., p.10-11 7 - Lambert em LAFRANCE, Mary, The Disappearing 8 - Lambert citado por LAFRANCE, Mary, The Disap-
Fourth Wall: Law, Ethics, and Experiential Theatre, pdf, pearing Fourth Wall: Law, Ethics, and Experiential
p. 524. Theatre, pdf, p. 524.

76 77
Como é notório, é difícil retirar de uma experiência como esta algum tipo
de compaixão pelo que os verdadeiros prisioneiros sofreram. Penso que
já será diferente se se ler, por exemplo, Se Isto é um Homem de Primo
Levi, na medida em que somos confrontados não com uma encenação de
uma suposta crueldade que nos pode ferir – sem verdadeiro paralelo entre
o espectador e o prisioneiro –, mas com um relato do que uma pessoa
experienciou enquanto esteve, de facto, num campo de concentração.
O ponto que me interessa discutir, tendo em conta a performance descrita,
é a dos seus potenciais efeitos. Será muito improvável que alguém sinta que
percebeu o que era estar enclausurado em Auschwitz por ter estado presente
na performance. O ponto de Steve Lambert é que só experienciando
violência se pode compreendê-la, no entanto, trata-se de uma tese frágil. A
solução para o fim das incompreensões não parece ser, pura e simplesmente,
a vivência do que as fundamenta. Como refere o encenador Peter Brook
“From the arresting words “Theatre of Cruelty” comes a groping towards

˜
be in experiencing what gives rise to them. As said by Peter Brooks “From
the arresting words “Theatre of Cruelty” comes a groping towards a theatre,
more violent, less rational, more extreme, less verbal, more dangerous. There
is a joy in violent shocks. The only trouble with violent shocks is that they wear
off. What follows a shock?”8
It is obvious that, as a spectator, I can choose the performances I go to,
exposing myself to the experiences I solely desire. Yet, one of the charac-
teristics of this kind of event is to offer as little information about them as
possible, to ensure the impact pursued. The lack of knowledge of the script
is thought of as essential to assure a genuine experience. The Experimental
Theatre which chooses to put the spectator at the center of the action, thus
diminishing his capability of discernment, submitting him to a construed
experience, is quite irrelevant to understand the «other». Theatre begging
to be life, and subjecting spectators to accomplish it, shares a timeline with
the law, regarding reflection about human autonomy.

8 - BROOK, Peter, The Empty Space, 1968, London,


p. 61.

78 79
a theatre, more violent, less rational, more extreme, less verbal, more espaço de questionamento sobre a autonomia do sujeito.
dangerous. There is a joy in violent shocks. The only trouble with violent Se muito pode ser dito sobre a curiosidade e as suas potencialidades para
shocks is that they wear off. What follows a shock?” 9 a compreensão do que é diferente, a verdade é que, como refere Hans Blu-
Importa esclarecer que enquanto espectadora posso escolher a que per- menberg10, esta depende em grande medida da segurança sentida por quem
formances assisto, de forma a tentar expor-me só às experiencias que desejo. observa e da inexistência de um estado de sofrimento do observador. Ao
Porém, uma das características que encenações da do género acima descrita comentário anterior deve acrescentar-se a tese de Rancière que nos propõe
optam por ter é a da disponibilização mínima de informação de forma a po- uma “(…) suspensão de toda e qualquer relação determinável entre a inten-
tenciar os efeitos intendidos pelo próprio espectáculo. O desconhecimento ção de um artista, uma forma sensível apresentada num lugar dedicado à
de um guião é essencial para se assegurar a genuinidade pretendida pelos arte, o olhar de um espectador e um estado da comunidade.11 Desta junção,
encenadores na fruição do espectáculo oferecido. insinua-se uma luz que me parece benéfica e interessante para continuar
O teatro experimental que se foque em trazer o espectador para o centro a pensar nas interligações entre normatividade e experimentação artística.
da acção e lhe diminua o âmbito de pessoa enquanto sujeito capaz de dis-
cernir, sem ser através da submissão à experiência que lhe é sugerida, releva
pouco no que concerne à compreensão do outro. O teatro que se queira vida
através da actuação-sujeição dos espectadores comungará com o direito um

˜
Much can be said about curiosity and its potentialities in regard to under-
standing others, but, the truth is, as Hans Blumenberg has pointed out, this
˜
depends on how safe the observer feels and his lack of personal suffering.
As Rancière states, it is best if “(…) there is a suspension of all determinable
relations between the intention of an artist (…) the spectator and the state of
the community”. From this type of clarity, shines a beneficial and interest-
ing light, guiding the way in a continuous and continued reflection about the
interconnections between normativity and artistic experimentation.

9 - BROOK, Peter, The Empty Space, 1968, London, 10 - BLUMENBERG, Hans, Naufrágio com Especta-
p. 61. dor, trad. port. Manuel Loureiro, Lisboa, p.58.
11 - Ob. Cit., p. 85.

80 81
82 83
Amanda Vox A Crise Ecológica

Se do séc. XIX em diante, sinais claros, inegáveis e, muitas vezes, assus-


tadores do impacto que as práticas humanas (de consumo e da indústria)
têm sobre o meio ambiente começaram a ser notados, agora - no séc. XXI
- encontramo-nos ansiosamente à procura de maneiras para lidar com as
Apontamentos sobre consequências deste impacto. Questões ecológicas têm tomado precedência
e agora desempenham um papel orientador não só na política, na economia,
a Arte Ambiental nas ciências, e na cultura como um todo, mas também no nosso dia-a-dia, na
separação do lixo para reciclagem, na forma de impostos verdes, ou na larga

˜
sombra projetada pelo aquecimento global sobre as nossas ideias a respeito
do clima.
Hoje é lugar-comum falarmos sobre como a interferência profunda do
Notes on ser humano sobre os sistemas planetários tem repercussões inesperadas
(muitas vezes negativas) e que em muitos casos já não é possível reverter-
Environmental Art mos tal processo. Contemplamos aflitos os ecossistemas perturbados, o

˜
A Thousand Stones Added To The Footpath Cairn
Richard Long, 1974

The Ecological Crisis

If from the 19th century onwards the clear, undeniable, and often fright-
ening signs of the impact human practices (of consumption and industry)
have had upon the environment became visible, now - in the 21th century -
we find ourselves struggling to discover ways to deal with the consequences
of this impact. Ecological issues have been taking precedence and now play
an important role not only in politics, in the economy, in the sciences, and
in culture as a whole, but also in our day-to-day lives, as in refuse separation
and recycling, in the shape of green taxes, or the broad shadow cast by global
warming over our thoughts on climate.
Today it is commonplace to talk about how the profound human inter-
ference on planet systems has unpredicted repercussions (often negative
ones), and that many times we cannot revert such processes. Anxiously we

84 85
desaparecimento de espécies, a acidificação dos oceanos, as ilhas de lixo, pele - um risco que existe, em grande parte, devido à destruição de filtros
o desmatamento, e o termômetro planetário a subir. Não podemos dar-nos atmosféricos causada pela atividade humana.
ao luxo de ignorar estes fatos enquanto a sexta extinção em massa está em
curso no planeta devido a ações humanas. Estamos vivendo num momento A Arte Ambiental
de crise, uma crise na relação entre o ser humano e o meio ambiente, uma
crise chamada Aquecimento Global. Ao refletirmos acerca das diferentes maneiras como o meio ambiente
Esta crise permeia não só o planeta mas também o pensamento, infil- informa e enforma as práticas artísticas - o modo como o artista vê e se
trando-se no reino da produção artística. Constatamos que estamos viven- relaciona com este meio - notamos que ele desempenha um papel deter-
do no Antropoceno - a mais recente época geológica, caracterizada pelas minante sobre o resultado final, o objeto de arte em si, que se torna mais
marcas de origem humana sobre a crosta terrestre - reciclamos o lixo e um entre os vários elementos que compõem este ambiente. As diferentes
estamos conscientes dos problemas ocasionados pela queima de combus- concepções de meio ambiente sustentadas pelas diversas comunidades hu-
tíveis fósseis, vemos imagens do lixo que flutua no Pacífico e sabemos que manas são, assim, refletidas em sua produção e sua prática artística.
“jogar fora” transformou-se em expressão idiomática, pois “fora” é sempre Um conjunto de respostas culturais começou a desenvolver-se na se-
ainda “dentro” do planeta, dentro ainda dos limites da biosfera. Sentimos gunda metade do século XX, um reflexo deste cenário intimidante. Foram
(literalmente na pele) o quão embutidos estamos neste ciclo de feedbacks surgindo formas de arte que lidam conscientemente com ideias e questões
quando somos obrigados a passar protetor solar a fim de evitar o câncer de ligadas ao meio ambiente, à sua crescente degradação e à relação entre os

˜
contemplate the disturbed ecosystems, species disappearing, and the acidi-
fication of the oceans, deforestation, and the planetary thermometer moving
˜
skin cancer - a risk that exists in great part due to the destruction of atmos-
pheric filters by human activity.
up. We cannot afford to ignore those signs while the sixth mass extinction is
under way due to human actions. We are living in a moment of crisis, a crisis Environmental Art
in the relationship between humans and the environment, a crisis called
Global Warming. When reflecting upon the different ways in which the environment in-
This crisis permeates not only the planet, but thinking itself, percolating forms and shapes artistic practices - how the artist perceives and relates to
into the realm of art production. We have learned we are living in the An- the environment - we realize that it plays a decisive role in the final outcome,
thropocene - the latest geological epoch, characterized by marks of human the art object itself, which also becomes one more element among those
origin on the Earth’s crust - we recycle our rubbish and we are conscious many objects that constitute its very environment. The different conceptions
of the problems caused by the use of fossil fuels. We see images of garbage of environment held by the various human communities are thus reflected in
floating on the Pacific and we know that “to throw away” has become an their artistic practices and production.
idiom, “away” being always still “inside” the planet, still within the limits of Reflecting this intimidating scenario, a variety of cultural responses began
the biosphere. We feel (literally on our skin) how embedded we are in these to develop in the second half of the 20th century. Different artistic strategies
feedback loops when we have to wear sunblock to sunbathe, in order to avoid that consciously deal with ideas and issues that relate to the environment,

86 87
elementos humanos e não-humanos que compõem esse ambiente. Obras meio ambiente é a matéria-prima (Earthworks, Land Art); a tentativa de
de arte in situ e correntes como a Land Art e a Arte Povera começaram a minimizar o impacto ambiental de uma obra (Arte sustentável ou verde); a
aparecer nos anos 60 e 70 com artistas como o americano Robert Smith- restauração de uma área ou objeto a seu estado natural (Eco-intervenção);
son e o italiano Germano Celant. Antes ainda, desde o séc. XIX, artistas obras que focam os processos de degradação (Arte Efêmera); a colabora-
(como os autores americanos Ralph Waldo Emerson, John Muir e Henry ção interdisciplinar entre artistas e cientistas explorando a dimensão obje-
Thoreau) usaram a literatura para tentar articular uma nova relação entre tiva da investigação dos fenômenos naturais, e muitas outras.
o progresso industrial e a preservação de espaços e recursos naturais, en- Apesar do largo escopo que estas variadas estratégias apresentam, so-
tre o civilizado e o selvagem, entre o humano e o não-humano, por vezes mente agora artistas e críticos começam a perceber a potencial amplitude
rejeitando radicalmente o primeiro termo em cada par. Porém, somente desta categoria. De certa forma, toda a arte é ambiental, na medida em
no século XX a Arte Ambiental passou a ser tratada como uma categoria que ela existe diretamente como fruto e parte de seu meio ambiente.
específica, na qual abordagens históricas da Natureza e tipos de trabalho Muitos dos artistas e obras reconhecidos como ambientais apontam
ecologicamente motivados puderam convergir. para a periclitância da situação em que nos encontramos, e procuram
Desde então, a Arte Ambiental tem sido caracterizada pelo engajamen- fazer-nos refletir e agir de maneira a apaziguar os efeitos destrutivos da
to ativo do artista e/ou do público com o ambiente que propicia e envolve nossa existência no planeta. Esta estratégia, que busca induzir a reflexão,
a obra. Esta categoria invoca muitas possibilidades: a incorporação de ele- e uma transformação profunda nas atitudes do sujeito, é também comum
mentos vivos nas obras (Bio-arte); obras exteriores, em grande escala, cujo a grande parte do discurso ambientalista. Por vezes, as obras deixam-nos

˜
its increasing degradation, and with the relationship between the human
and non-human elements that compose it, have emerged. Site-specific works
˜
This category allows for countless possibilities: the incorporation of living
elements to into the work (Bio Art); outdoor, big scale, site-specific works
and currents such as Land Art and Arte Povera started to crop up in the 60s that take the environment itself as raw material (Land Art, Earthworks);
and 70s, with artists such as the American Robert Smithson and the Italian the simple attempt to minimize the impact of an art object (Sustainable or
Germano Celant. Even before, since the 19th century, writers (such as the Green Art); the restoration of an area or object to its natural state (Eco-
American authors Ralph Waldo Emerson, John Muir and Henry Thoreau) intervention); the emphasis on processes of degradation (Ephemeral Art);
have used literature to try to articulate a new relation between industrial the interdisciplinary collaboration between artists and scientists exploring
progress and the preservation of natural spaces and resources, between the the objective dimension of natural phenomena, and many more.
civilized and the wild, the human and the non-human, many times as a radi- Despite the seemingly broad scope of possibilities brought about by focus-
cal rejection of the first term in each pair. Nevertheless, only in the 20th cen- ing on the environment, only now artists and critics are beginning to realize
tury Environmental Art began to be treated as a specific category, in which the potential amplitude of this category. In a way all art is environmental, in
historical approaches to Nature and ecologically-motivated types of work the sense that it exists as direct fruit and part of its environment.
could converge. Many of the artists and works recognized as environmental point to the
Since, it has been associated with the active engagement of the artist difficulty of the situation we find ourselves in, and try to make us reflect and
and/or the public with the environment from/in which the work emerges. act so as to appease the destructive effects of our existence on the planet.

88 89
90
91

A Straight Hundred Mile Walk In Japan, Richard Long, 1976.


a sensação de sermos alvo de um plano de conversão, uma campanha de Tudo isto mostra a inviabilidade de um projeto de re-encantamento, ou
convencimento, estimulando-nos a perceber o verdadeiro valor, beleza e mesmo de afirmação, de um ente exterior, separado, chamado “Natureza”.
importância da Natureza para, assim, garantir a sua preservação. Por mostrar-se essencialmente turvo, este termo já não serve como ferra-
menta heurística num momento crucial, em que precisamos de encontrar
Crítica da Natureza formas de adaptar, sintonizar e harmonizar a nossa existência como parte
dos complexos sistemas terrestres. Quando falamos em Ecologia hoje fala-
O conceito de Natureza, já problematizado em diversas ocasiões, pode mos de carros, sacos plásticos e chaminés industriais, de corais, golfinhos
ser entendido como coisas diversas: longas listas de fenômenos (coelhos e florestas, de ciência, mas também de filosofia e de arte, e sobre como
+ árvores + riachos + montanhas + flores + ... = natureza); como força incluir (no pensamento e na prática) tudo aquilo posto à parte do universo
criativa e reguladora destes fenômenos; como aquilo que não foi cultivado, humano. A Ecologia guarda relação com os nossos impostos, com a ele-
o não-artificial, intocado pela influência da civilização; como o caráter, a tricidade na tomada, com a vida marinha abissal, e com a chuva que cai
personalidade, o temperamento ou disposição de um indivíduo; ou ainda inesperadamente, em igual medida.
como regra da normalidade, padrão ao qual se contrapõe o monstruoso Mas o termo Natureza ainda tende a representar algo distanciado, re-
ou o antinatural. Esta Natureza imprecisa e nebulosa não pode ser consi- tirado do espaço social, um estoque infinito de materiais (que o filósofo
derada sólida o suficiente para suportar o desenvolvimento de uma nova Martin Heidegger chamara Bestand1), ou ainda uma paisagem que con-
experiência estética do mundo. templamos numa viagem de fim-de-semana. Esta noção corrente cria um

˜
This strategy, aiming to induce reflection and a profound transformation in
the subject’s attitudes, is also common in much of the environmentalist dis-
˜
monstrous and the unnatural are measured. This imprecise and nebulous
Nature cannot be considered as a foundation solid enough to support the
course. Many times we are left feeling we are being targeted by a conversion development of a new aesthetic experience of the world.
plan, coaxed into realizing the true value, beauty and importance of Nature All this shows the infeasibility of a project of re-enchantment, or even
in order to ensure its preservation. affirmation, of an external, separated being called “Nature”. Because it is
essentially blurry, the term no longer serves as a heuristic device exactly at
Critique of Nature the moment in which we must find ways to adapt, attune and harmonize our
existence as part of the complex Earth systems. When dealing with Ecology
The very concept of Nature, which has been problematized on many oc- today we talk about cars, plastic bags, industrial chimneys, coral, dolphins
casions, can be understood as a great variety of different things: long lists and forests, about science, but also about philosophy and art, and about how
of phenomena (rabbits + trees + rivers + mountains + flowers + ... = Na- to include (in thought and in practice) all that is usually set apart from the
ture); as the creative and regulative force behind these phenomena; as that human universe. Ecology bears some form of relation to our taxes, to the
which has not been cultivated, the non-artificial, untouched by the influence electricity in the plug, to deep sea life, and to the unexpected rain that falls
of civilization; as the character, personality, temperament or disposition of in equal measure.
an individual; or as the rule of normality, the standard against which the But the term Nature still tends to represent something distant, something

1 - Em A Questão da Técnica (Die Frage nach der


Technik), originalmente publicado em 1954.

92 93
distanciamento ilusório, e é em última instância contraproducente. O filó-
sofo Timothy Morton afirma:

Colocar uma coisa chamada Natureza sobre um pedestal e


admirá-la à distância faz pelo meio ambiente aquilo que o re-
gime patriarcal faz pela figura da Mulher. Trata-se de um ato
paradoxal de admiração sádica.2

Sob a luz destas observações, fica claro como a esfera de ação da cha-
mada Arte Ambiental precisa de ser significativamente ampliada, e como
uma Crítica pode ser construída a partir desta perspectiva, de maneira
semelhante a como críticas Feministas lidam com implicações que dizem
respeito ao gênero em obras que não as abordam explicitamente. Não de-
vemos atribuir relevância ecológica somente a obras que apontam direta-
mente para a Natureza.
Que aparência pode ter então uma obra de Arte Ambiental nestes termos

˜
removed from social space, an infinite reserve of raw material (Martin Hei-
degger’s Bestand1 ), or even still, a landscape we contemplate when we travel
on weekends. This common interpretation creates an illusory distance, and
is ultimately counter-productive. The philosopher Timothy Morton affirms:

Putting something called Nature on a pedestal and admiring it


from afar does for the environment what patriarchy does for the
figure of Woman. It is a paradoxical act of sadistic admiration.2

Under the light of such observations it becomes clear how the sphere of
what is called Environmental Art must be significantly expanded, and how
a critique can be developed from this angle, similarly to the way Feminist
critiques point towards gender issues in artworks that do not explicitly deal

2 - Morton, Timothy, 2007. Ecology Without Nature 1 - In The Question Concerning Technology (Die Frage
- Rethinking Environmental Aesthetics. Cambridge, nach der Technik), originally published in 1954.
Massachusetts: Harvard University Press, p.5.
2 - Morton, Timothy, 2007. Ecology Without Nature
- Rethinking Environmental Aesthetics. Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, p.5.

94 95
alargados, que incluem toda a espécie de elementos e todos os tipos de re- das relações ecológicas são ressaltados.
lação em seu discurso? Encontramos também nas artes visuais inúmeros exemplos de obras que
apontam para a importância que a sua constituição material tem para o
Exemplos significado que ela propõe. Nos quadros de Jackson Pollock podemos ob-
servar claramente, para além do movimento rítmico e energético de sua
Com base nesta perspectiva alargada percebemos que o célebre poema personalidade, a liquidez das tintas usadas, a maneira como a tela foi dis-
Un Coup de Dés Jamais N'Abolira Le Hasard, escrito pelo poeta simbolista posta no chão (ao invés do cavalete) e as restrições que esta configuração
francês Stéphane Mallarmé em 1897, possui traços fortemente ecológicos. colocou sobre o artista durante o processo de pintura. Por outras palavras,
Nele, versos livres, em fontes diversas, são dispostos de maneira não-con- o quadro dá-nos uma ideia das interações que deram origem àquela obra,
vencional sobre a página, dando origem não só a uma estrutura de signi- e também aponta para a maneira como o público agora desfruta de novas
ficado linguístico, mas chamando a atenção do leitor para o próprio meio, relações com aqueles elementos.
a folha de papel na qual o poema se inscreve, que parece ter sido esticada Alcançando ainda mais atrás na História da Arte, encontramos o grupo
e torcida como se fosse de borracha. Reparamos na variedade tipográfica de pintores ingleses que, no século XIX, ficou conhecido como Irmandade
- que nos traz à mente as diferentes peças usadas na impressão - não só a Pré-Rafaelita. Todo o projeto estético desenvolvido pela Irmandade, ape-
mensagem mas o meio, a mídia que a transmite é posta em foco. O poema sar de não ter questões ambientais como foco, possui um tom distintamen-
é imbuído de corporealidade, a sua função e atividade dentro do quadro te ecológico. A apresentação abarrotada, com elementos que não parecem

˜
with them. We should not attribute ecological relevance exclusively to works
that point directly to Nature.
˜
printing process - not only the message, but the medium that transmits it, is
emphasized. The poem is imbued with corporeality, its activity and function
What does Environmental Art - taken in this broad sense, which includes within the framework of ecological relations is highlighted.
all kinds of elements and relations - look like? In the visual arts we also find several examples of works that point to the
relevance of its material constitution to its proposed meaning. In Jackson
Examples Pollock’s paintings we can clearly see beyond the rhythmic motion and en-
ergy of the artist's personality, we perceive the liquidity of the paint he used,
Grounded on this broad perspective we realize the celebrated poem Un how the canvas was positioned on the floor (and not on an easel), the con-
Coup de Dés Jamais N'Abolira Le Hasard, written by the French symbolist straints this configuration put on the artist during the process of painting. In
poet Stéphane Mallarmé in 1897, has strongly ecological traits. In it the free other words, the painting gives us an idea of the interactions that originated
verse, in various fonts, is spread about the page, not only creating a linguistic it, and also points to the fact that the public now enjoys new relations to
structure of meaning, but also calling the reader’s attention to the very me- those elements.
dium, the sheet of paper over which the poem is inscribed - and that looks Going further back into Art History we meet the group of English paint-
as if it were a stretched and twisted rubber sheet. We notice the typograph- ers that, in the 19th century, became known as the Pre-Raphaelite Brother-
ic variety - that brings to mind the different parts and pieces used in the hood. The whole aesthetic project developed by the Brotherhood, despite

96 97
Isabella and Lorenzo, John Everett Millais, 1849

ter papel significante no todo do quadro mas que, ainda assim, preenchem
cada centímetro disponível na tela, não permite uma rápida hierarquiza-
ção dos elementos ou decodificação da imagem. Ao analisarmos quadros
como Isabella and Lorenzo (de John Everett Millais, 1849) ou The Hireling
Shepherd (William Holman Hunt, 1851), notamos rapidamente que estes
artistas tiveram de abrir mão de uma posição antropocêntrica para re-
tratar com a mesma fidelidade e detalhamento a mais humilde lâmina de
relva e os rostos das personagens centrais. A profundidade escorçada das
obras Pré-Rafaelitas desafia os nossos olhos - acostumados à perspectiva
realista da arte pós-Renascentista - e parece estranha, com objetos de-
sordenadamente uns por cima dos outros, como em Ecce Ancilla Domini
(Dante Gabriel Rossetti, 1850). A multiplicidade de elementos represen-
tados não se encontra dentro do espaço mas, pelo contrário, é ela própria
constitutiva deste espaço. Cada objeto cria o espaço que ocupa com a exe-
cução de sua realidade individual. Da mesma forma, a distribuição destes
vários objetos sobre toda a superfície da tela constitui não só um segundo

˜
not having environmental issues as their main focus, has a distinctly eco-
logical tone. The crowded presentation - with elements that do not seem to
play any meaningful role in the overall picture but still take up all available
space on the surface of the canvas - does not allow for a quick ranking of
the elements, or decodification of the image. When we analyse paintings
such as Isabella and Lorenzo (by John Everett Millais, 1849), or The Hireling
Shepherd (William Holman Hunt, 1851), we soon realize how these artists
had to let go of an anthropocentric position in order to represent with the
same fidelity and detail the humblest blade of grass and the faces of the
main characters. The foreshortening of Pre-Raphaelite paintings challenges
our eyes - used to the realist perspective of post-Renaissance art - and looks
weird, with objects disorderly on top of each other, as in Ecce Ancilla Domini
(Dante Gabriel Rossetti, 1850). The multiplicity of elements represented is
not inside space, but it is itself constitutive of space. Each object creates the
space it takes up with the execution of its unique, individual reality. In the

98 99
plano, mas a totalidade do mundo retratado no quadro. O filósofo Sla- ecológicas apenas recentemente vimos que artistas de diferentes períodos
voj Žižek afirma que os objetos representados nas pinturas Pré-Rafaelitas e lugares já as haviam descrito com força e sutileza.
formam o horizonte ontológico - a moldura - da realidade representada. 3 Procuramos delinear uma abordagem crítica que leva em consideração
o modo como toda a obra de arte é parte constituinte e fundamento do
* * * meio que a propicia e envolve. Defendemos como, em meio à crise ecoló-
Estabelecemos a maneira como a Ecologia vem enformando as diferen- gica, a categoria de Arte Ambiental deve incluir não só obras que lidam
tes áreas da experiência humana, e como a crise ambiental que enfrenta- explicitamente com temas ligados à Natureza, mas também aquelas que
mos no presente nos obriga a alargar a categoria de Arte Ambiental para apontam para a sua própria posição na malha das relações (ecológicas)
além dos limites do conceito de Natureza. Argumentamos que a dificul- entre todas as coisas.
dade em se delinear tal conceito é exatamente o que impede que o utili- Se o mundo hoje precisa que abandonemos a perspectiva antropocên-
zemos como base para as transformações políticas, filosóficas, científicas trica e incluamos o não-humano em nossas ideias e ações, é papel (e talvez
e culturais. Tais transformações precisam concretizar-se para que, final- responsabilidade) das Artes tornar possível a descoberta e o cultivo deste
mente, possamos lidar com os problemas que nos assombram no Antro- novo olhar.
poceno. Apesar da íntima conexão e da co-dependência entre os elemen-
tos que compõem a realidade terem sido descritas em termos de relações

˜
same way the distribution of these objects throughout the canvas constitutes
not only a background, but the totality of the world depicted in the paint-
˜
order for us to be finally able to deal with the problems that haunt us in the
Anthropocene. Even though the intimate connection and co-dependence
ing. The philosopher Slavoj Žižek affirms that objects represented in Pre- among elements that compose reality have only been articulated in terms of
Raphaelite paintings make up the ontological horizon - the frame - of the ecological relations fairly recently, we have seen that artists from different
reality represented.3 periods and places had already described them with power and subtlety.
In this essay we have tried to delineate a critical approach that takes into
* * * consideration the way every work of art is part of, and at the same time
ground for, the environment that surrounds it. We defended that within
We have established that Ecology has been informing the many different the present ecological crisis the Environmental Art category must include
spheres of human experience, and how the ecological crisis we are living in not only works that deal with themes connected to Nature, but also those
forces us to expand the category of what we call Environmental Art beyond that point towards its position within the (ecological) mesh of relations
the nebulous limits of Nature. The difficulty in outlining such a concept, as among things.
we have argued, is exactly what impedes its use as a ground for political, If the world today needs us to abandon the anthropocentric perspective
philosophical, scientific and cultural transformations that must take place in and include the non-human in our thoughts and actions, it is the role (if not
the responsibility) of the Arts to make it possible to unearth and to cultivate
this new perspective.
3 - Žižek, S. ´ Slavoj Zizek on David Lynch ,´ para a revista 3 - Žižek, S. ´ Slavoj Zizek on David Lynch ,´ for the digital
digital The Symptom, em: http://www.lacan.com/ magazine The Symptom.
thesymptom/?page id=1955 (visitado em 10/set/2015) In: http://www.lacan.com/thesymptom/?page id=1955
(accessed10/Set/2015)

10 0 101
por dentro inside of

inside of por dentro


margarida vale de gato

{ }

A Cultura Popular Norte-Americana tem sido uma área North-American Popular Culture is a course subject recently
disciplinar desenvolvida nos anos recentes pela oferta em introduced into the American Studies curricula in the School
Estudos Americanos da Faculdade de Letras da Universidade of Arts and Letters of the University of Lisbon. Implying us all,
de Lisboa. Tocando-nos a todos, revela não só uma dimensão it reveals a colonialist bend that we can't easily put aside, but
Perspetivas Portuguesas sobre a Pop Americana

colonizadora difícil de escamotear, mas também, se for

Portuguese Outlooks on American Pop Culture


also, if we take it in relative and relational terms, it provides us
aproveitada em termos relativos e relacionais, uma excelente plenty of material to combine the academy and the community.
matéria de articulação entre a academia e a comunidade. É This is testified by the texts herein, resulting from invitations,
o que testemunham os textos aqui incluídos, resultado de tailored for FLUL's undergraduate classes, to colleagues
uma série de convites feitos expressamente para as aulas de and personalities of the Portuguese artistic scene. Strikingly,
licenciatura da FLUL a colegas e a personalidades do mundo many of them have in common the memory of Generation X's
das artes em Portugal. Muitos, curiosamente, centram-se numa childhood (a US label, by the way), occupied by America through
infância comum à Geração X (também esta uma "etiqueta television, videoclubs, records, sci-fi stories and comic books —
americana") em que a América entrou em força pelas televisões, undifferentiated from the local context and only later producing
clubes de vídeo, discos, histórias de ficção científica e revistas the desire to create diverse forms, whose challenges are
aos quadradinhos — numa indistinção com o contexto local foregrounded in texts that debate the rationale of (American)
que só mais tarde produziu vontades de criações diferenciadas, pop culture among us.
com desafios prevalecentes em textos que pensam a pop norte-
-americana entre nós.

10 4 10 5
rui zink Precisão. Precisão e um realismo mais real que a realidade, eis
o que o policial americano me ensinou. Nada de rodriguinhos, nada
{ }
de sentimentos espúrios – espero com isto ter levado neste momen-
to alguns alunos ao dicionário, a verem o que quer dizer sentimen-
tos. O policial norte-americano não é uno mas, na minha memória
imaginada de leitor (e a leitura só tem graça quando se torna ima-
ginação da memória), há nele um som pesado que se distingue do
que havia antes, do que haverá
depois, do que se faz noutros
lados. A «selva de asfalto» foi
Precisão inventada com o hardboiled hammettiano, cujo protagonista é
o único ser à face da terra mais cínico que uma colher de pau.1
O detective privado não manda em nada, não é particularmen-
e Bom Senso te inteligente, e decerto não muito nobre. É um tipo que faz um
trabalho, muitas vezes um trabalho sujo, só que alguém tem de o

- fazer. Mesmo em Chandler, que romantiza e «faz mais» literatura,

1 - A Dashiell Hammett é atribuído o cunhar do «hardboiled» – cínico e duro – cujo expoente

Precision and
encontramos tanto no seu romance The Maltese Falcon (1930) como na versão fílmica com
Humphrey Bogart, em 1941.

Sound Judgement Precision. Precision and a realism and what will be there after, or from
more real than reality — et voilá what what was done in other parts. The
the American detective novel taught concrete jungle was invented with the
me. No sugar-coating, no spurious Hammettian hardboiled whose pro-
feelings — I hope that this will have tagonist is the only being on the face of
brought in at this moment some stu- the Earth more cynical than a wooden
dents to the diction- spoon.1 The private
ary to see what "feel- detective isn't really
ings" mean. The the one who calls
American detective the shots. He isn't
novel is not a uniform being; however, particularly intelligent and certainly
in my imagined memory as a reader not very noble. He is the type of guy
(and reading is only fun when it be-
comes an imagined memory), there is 1 - Dashiell Hammett is credited with the term
“hardboiled”—cynical and hard—traits we find as
within it a heavy sound that is distin- much in his novel The Maltese Falcon (1930) as in
guishable from what was there before the 1941 film version with Humphrey Bogart.

10 6 10 7
o detective é um assalariado, um mercenário a soldo, um herói em tanto o mundo da lei como o mundo do crime. A todos ele inco-
saldo. Quando encontra o cliente diz o seu preço, algo como «50 moda, de todos os lados pode vir o tiro ou a naifada. Não é mui-
dólares por dia mais despesas». E, depois, pronto, qual Lancelot to bem pago – nisso lembra muito os professores e os escritores.
em cavalo de pau, vai em demanda da dama desaparecida, umas Apenas os tais «50 dólares mais despesas». Por que motivo, então,
vezes uma herdeira volúvel, outras uma esposa arredada, muitas arrisca ele a sua vida? Spenser2, talvez o mais legítimo herdeiro
vezes uma mulher fatal. do Marlowe de Chandler, dá a melhor e mais sucinta explicação:
Sim, o policial americano é por vezes misógino, há azar? As mu- «Because that’s what I do.» O detective faz o que tem a fazer por-
lheres não são de confiança – o que vale é que os homens também que é o que ele faz, é aquilo em que ele é bom. O detective não é
não. O detective, contudo, tem uma ética laboral. Se lhe pagam, uma força moral, valha-nos Deus. Ele não luta contra a podridão
ele está disposto a tudo, até a descer aos infernos (geralmente são – apenas a destapa. E (está bem, melga) num momento ou outro lá
logo ali, no andar de baixo), e aceita levar porrada, e tiros, e ser faz «a coisa certa». Mas não por querer; apenas porque, por vezes,
manipulado e marionetado, porque um contrato é para cumprir, felizmente não muitas, a coisa certa é mesmo a coisa certa a fazer.
mesmo quando nos pode custar a vida e suspeitamos que o nosso Com Dashiell Hammett e Raymond Chandler, o policial ameri-
cliente não nos contou a história toda e até pode ser ele barra ela cano ganhou estilo e complexidade. Nem por isso amoleceu. O de-
o mau da fita. A cidade é uma selva de asfalto. Se riscarmos um tective não é um choramingas. Um sentimental? Sim, se o salário
pouco a superfície cromada descobrimos que todos têm segredos lho permitir. Mesmo que o detective quisesse parar para cheirar
sórdidos – excepto aqueles que não têm segredos sórdidos, porque as flores, não há nenhumas ao redor.
são sórdidos e perigosos mesmo à superfície. 2 - Parker, Robert B. The Godwulf Manuscript, de 1973, é o primeiro de 40 romances com este
O detective privado é um cavaleiro solitário que tem contra ele narrador autodiegético.

who does a job, often a dirty job, solely are not to be trusted — and, for the themselves and dangerous on the very what he is good at. The detective isn't
because someone has to do it. Even in record, neither are men. The detec- surface. a force for morality, thank God. He
Chandler, who romanticizes and in- tive, however, has a strong work ethic. The private eye is a solitary horse- doesn't fight corruption, he just un-
flates the detective type with a more If you pay him, he is up for anything, man who has the law against him just covers it. And (alright, buster) sooner
literary vigueur, the detective is a sala- even descending to the depths of hell as much as the world of crime. He or later he does "the right thing." But
ried worker, a mercenary for hire, a (usually they are close by, on the base- makes everyone uncomfortable, from not because he wants to, just because,
hero on sale. When he meets his client ment), taking beatings, and gunshots, any direction may come a gunshot sometimes, luckily not often, the right
he names his price, something like "50 and being manipulated and pup- or a dagger. He isn't very well paid thing is the right thing to do.
dollars per day plus expenses." And peted, because a contract is meant to either, in this he reminds us our Por- With Dashiell Hammet and Ray-
then it starts: this unlikely Lancelot be honored, even when it may cost us tuguese teachers and writers. Only mond Chandler, the American detec-
on a wooden horse goes looking for our lives and we suspect that our cli- those "50 dollars plus expenses." For tive novel gained style and complexity.
the missing damsel in distress, some- ent hasn't told us the entire story and what reason, then, would he risk his Nevertheless it never softened, the
times a fickle rich widow, others an he slash she might actually be the bad life? Spenser2 , perhaps the most legiti- American detective isn't a crybaby. Is
estranged spouse, but mostly a femme guy. The city is a concrete jungle. If mate heir to Marlowe and Chandler, he sentimental? Yes, if his salary al-
fatale. we do away with the chrome exterior gives the best and most succinct ex- lows it. Even if the detective wanted
Indeed, the American detective we discover that everyone has shady planation: "because that's what I do."
2 - Parker, Robert B. The Godwulf Manuscript,
novel is at times misogynistic—ex- secrets — except those that don't have The detective does what he has to do of 1973, is the first of 40 novels with this
cuse me, is there a problem? Women shady secrets because they are shady because that is what he does, that is autodiegetic narrator.

10 8 10 9
110 111
É um mundo sem metafísica. A América, ah, a América. Não doença – contaminar todo o livro. A América não é para meninos.
há lugar onde a América seja mais pragmática, terra-a-terra, Gustave Flaubert escreveu Madame Bovary (1857), um estudo
brutal, irónica, pura e dura, do que no policial. Podíamos dizer minucioso sobre a vida – física e psicológica – de uma burguesa de
«no policial hard boiled», no «romance negro», mas não há razão província. O equivalente na América é In Cold Blood4 , um roman-
para se ser redundante, pois não? A América é como o Esteves ce que inaugura um novo género: o romance de não-ficção. Só que
da Tabacaria3 , não tem metafísica. É um sítio duro, não é para esse romance de não-ficção é, na verdade, um romance policial, só
meninos. Daí a importância de as palavras serem precisas, exac- que desta feita mesmo com nomes reais e não apenas «baseado em
tas, disparadas com intenção, a fim de acertarem no alvo, sem ro- factos reais» mas narrando esses mesmos factos reais. Hoje é todo
driguinhos, sem mariquices, sem elegâncias europeias ou outras. um subgénero editorial e literário: o do True Crime, ou «Crime
Não há, literalmente, boas maneiras no romance policial ameri- Real». O livro de Truman Capote é um prodígio estilístico, uma
cano. Só há más maneiras. As más maneiras são as únicas manei- lição de estilo. Uma súmula feliz do que veio antes e nem sempre
ras. Têm a vantagem de ser económicas e exactas, e irem direito viria depois, mas que é o génio do policial americano: a precisão.
ao assunto. Todos mentem, para começar. Nada é o que parece. Nem uma palavra a mais ou a menos. Parágrafos perfeitos.
Todos mentem porque têm algo a esconder. A América gosta de Uma máquina narrativa assente numa estrutura simples que,
coisas claras. Nada é mais claro do que esta simples e bela (embo- depois, se pode desdobrar e revelar mais complexa, mas que nun-
ra brutal) premissa: todos mentem. Alguém que não mentisse te- ca se afasta da batida inicial, monocórdica, monotemática, crua.
ria de ser morto logo na primeira página, sob risco de – com a sua Personagens fortes, uma trama simples (cavaleiro com uma missão),
3 - Recuso-me a pôr aqui nota de rodapé. Peço desculpa, mas recuso-me. Raio de alunos, se esta
lhes passa. 4 - Truman Capote, In Cold Blood, 1966. O título português é A Sangue Frio.

to stop to smell the roses, there aren't target, without sugar coating, without lies. If there was someone that didn't True Crime. Truman Capote’s book
any around him. It is a world without fancy trimmings, without European lie they would have died on the first is a stylistic masterpiece, a lesson
the metaphysical. elegance—or any other kind, for that page, at the risk of—with their sick- in style. A happy sum of what came
America, ah, America. There isn't a matter. There are no good manners in ness—contaminating the entire book. before and not always would come
place where pragmatic, down-to-earth American crime novels. There are just America isn't for crybabies. after, but In Cold Blood stands for
America is more pragmatic, down-to- bad manners. Because: bad manners Gustave Flaubert wrote Madame the American detective novel’s geni-
earth, brutal, ironic, pure and tough are the only manners. They have the Bovary (1857), a detailed study about us: precision. Not a single word too
than in the detective genre. We could advantage of being economic and ex- life — the physical and psychologi- many. Perfect paragraphs.
rather say in the "hardboiled detective act, and of getting directly to the point. cal — of a provincial bourgeoisie. A narrative machine based on a
fiction" or in the "noir novel," but there For starters, everyone lies. Nothing is The equivalent in America is In Cold simple structure that may well, after
is no reason to be redundant, is there? what it seems. Everyone lies because Blood4 , a novel that inaugurated a new all, unfold and reveal itself more com-
America is like Pessoa’s character, they have something to hide. America genre: the nonfiction novel. Only, plex, though never shying away from
Esteves from Tabacaria3 , metaphysics likes things clear. Nothing is more this non-fiction novel is, in fact, a de- its initial beat, monotonous, monothe-
are out of the question. It is a tough clear than this simple and beautiful tective novel, except that it is written matic, raw. Strong characters, a simple
place, and it isn't for crybabies. For (although brutal) premise: everyone with real names and not just based on plot (a knight on a mission), dry dia-
this reason it is of the utmost impor- "true events," it shows & tells these logues, an unabashed worldvision: and
3 - I refuse to put a footnote here. Forgive me,
tance that the words be precise, exact, but I refuse. Enough is enough, I don’t care if the
"true events." Today it represents a 4 - Truman Capote, In Cold Blood, 1966. The
fired intentionally, so that they hit the students don’t get it. whole literary and editorial subgenre: Portuguese title is A Sangue Frio.

112 113
diálogos secos, uma visão desafrontada: e agora? Como resolver o macha do Mike Hammer de Mickey Spillane (1947). Quando es-
próximo problema? O nec plus ultra do cinismo é virarmos máqui- crevi o meu primeiro romance, não foi só por ter homenageado
nas. A mais perfeita máquina é Parker5, um criminoso com ética, Truman Capote (p. 14) e o cinema negro americano, entre outra
que não gosta de ser traído e abandonado como morto. Por um tanta Americana que ulula e pulula no meu primeiro romance-
cúmplice o ter traído e ficado a dever uns míseros 70 mil dólares co: a dado ponto o romance vira policial, com prisão, intriga,
vai deitar abaixo «the outfit», toda uma mega-organização da máfia. mulher fatal (mas não muito fatal, ‘Arminda’ é portuguesa) e
Alguém a meio da cadeia alimentar lhe tivesse pago e ele não teria noite sinistra (também não muito sinistra, é Portugal…). 6 Já em
feito aquilo que nunca a polícia tentaria sequer. Podia ser um milhão Dádiva Divina (2004), o caso pia mais sério: o meu protagonista
ou cinco em vez de 70 mil dólares? Sim, mas não teria tanta graça. é um detective novaiorquino com mau feitio, pragmático, mesqui-
Depois vêm as variantes, claro. E as variantes são bastantes, nho mesmo, que aceita um trabalho porque é o que ele faz, aceitar
embora menos do que se poderia esperar, se considerarmos que, trabalhos se para tal houver clientes. É a menos metafísica das
entre livros, filmes e tele-séries, os Estados Unidos produziram personagens, embora tenha um nome filosófico: Espinosa. A intri-
nos últimos 80 anos dezenas de milhares de histórias policiais. ga resume-se à frase de contracapa: «Ele não sabe, mas vai encon-
Talvez mais. No entanto, o tenente Horatio Caine do CSI Miami trar Jesus.» E não é que encontra? O problema é que o resultado
(2002-2012) continua a ser um herdeiro directo do detective é o mesmo que em tantos e tantos romance policiais americanos:
hammetiano e, lamento dizê-lo, não muito distante da bazófia frustrante. E aplico a lição que Philip Marlowe7 descobriu 74 anos
antes: que o nosso cliente pode ser quem nos trama e, julgando
5 - Richard Stark, The Hunter, 1962. Stark é um pseudónimo de Donald Westlake, que também
assina com o próprio nome. No cinema, Parker já foi interpretado por Lee Marvin até Jonatham
Stratham, passando por Mel Gibson, entre outros. 6 - Hotel Lusitano, Lisboa, Planeta. A primeira edição é de 1986, a mais recente de 2011.

now? How to solve the next problem? course. And the variations are nu- novel, it was not just to pay homage to although he has a philosophical name:
The most refined form of genius is to merous, although less than one could Truman Capote (p.14) and American Espinosa. The plot is summarized on
turn ourselves into a machine. And hope for, if we consider that, between dark cinema, among other Ameri- the inside cover, "He didn’t know it,
the most perfect machine is Parker 5 , a books, films and television series, the cana that howled and teemed within but he was about to find Jesus." And,
criminal with ethics, that doesn't like United States has produced in the last my first little novel: at some point a surprise, surprise, isn't it what he
to be crossed and left for dead. Once 80 years thousands of detective stories. book that turned into a crime novel, finds? The problem is that the result
betrayed by an accomplice, because Maybe more. Nevertheless, lieutenant with prison, intrigue, a femme fatale ends up being the same as in so many
he feels owed a miserable 70 thousand Horatio Caine of CSI Miami (2002- (but not very fatal—my "Arminda" is American crime novels: frustrating.
dollars, he brings down "the outfit," 2012) continues to be a direct heir Portuguese) and the bleak night (also And I apply the lesson learned by Phil-
an entire mafia style mega organiza- of the Hammettian detective and, it not that bleak—Portuguese night, you lip Marlowe7 74 years earlier: that our
tion. If someone in the middle of the hurts to say it, not very different from know).6 In Dádiva Divina (2004) the client may be the very one deceiving
food chain would just have paid him, Mickey Spillane's bravado filled Mike case turned more serious: my pro- us, and that, naïvely thinking we are
he wouldn't have done what not even Hammer (1947). When I wrote my first tagonist is a bad tempered New York working for the good guy, we happen
the Police dared trying. Could it have detective, pragmatic, mean, and he to actually be working for the bad guy.
5 - Richard Stark, The Hunter, 1962. Stark is
been one or million or five million dol- a pseudonym of Donald Westlake, who also accepts a job that smells a rat because As for the beginning please do tell me
lars instead of seventy thousand? Yes, signs with his own name. In film, Parker has that is what he does, he accepts jobs if
been played by tough actors from Lee Marvin
but it wouldn't have been as amusing. to Jonathan Stratham, even Mel Gibson, among
a client comes around. He is the least 6 - Hotel Lusitano, Lisboa, Planeta. The first
After that come the variations, of others. metaphysical of the novel’s characters, edition is from 1986, the most recent is from 2011.

114 115
estar ao serviço do bem, estamos ao serviço do mal. Quanto ao maior que a própria vida. (…) Sam pediu ao motorista para
início, peço muitas desculpas mas digam lá se não é «hardboiled» incluir a gorjeta no recibo, ninguém fosse pensar que brincava
à maneira: em serviço, era um profissional.

Dinheiro. Que outra razão no mundo? Dinheiro: a única pro-


priedade móvel, a suprema omolete sem ovos, a única essên-
cia igualmente visível e invisível, fogo que arde sem se ver, um
contentamento descontente, a alegria sofrida de servir a quem
vence o vencedor, nosso servo e nosso mestre, um perfume
sem cheiro, aquilo que quanto menos se tem mais nos pesa.
Dinheiro, sim, dinheiro. Dinheiro era o que movia a multidão
pelas catacumbas do metro, labirintos intestinos de uma cidade

7 - Philip Marlowe foi criado por Raymond Chandler em The Big Sleep (1939). Chandler é
considerado o pai do romance policial literário, o que é uma injustiça para Hammett, que é apenas
menos sentimental e mais duro, mais «straight to the point». Mas menos literário? Ná! Pessoalmente,
em caso de dúvida, voto Hammett. Embora não seja necessário, até porque Humphrey Bogart uniu as
duas pontas em filme, ao interpretar também Marlowe em 1946.

if this isn’t hardboiled to a T: intestinal labyrinth of a city larger


than life… Sam asked the driver
Money. What other reason to include the tip on the receipt,
was there in the world? Money: no one could think he would mess
the only movable property, the around with his work, he was a
supreme omelette without eggs, fucking professional.
the only essence both visible and
invisible, a fire that burns with- Translated by Nicholas Csargo
out being seen, a discontent con-
tentment, the happiness suffered
from serving he who defeated the
winner, our servant and our mas- 7 - Philip Marlowe was created by Raymond
Chandler in The Big Sleep (1939). Chandler is
ter, a perfume without a scent, considered the father of detective novels, which
that thing of which the less we is an injustice to Hammettt, who is slightly less
sentimental and tougher, more «straight to the
have the more it weighs on us. point», yes. Less literary? Never! Personally, if
Money, yes, Money. Money was ever in doubt I vote Hammett. Even though it isn't
necessary, especially because Humphrey Bogart
what moved the masses through united the two figures in film, by playing also
the catacombs of the subway, the Marlowe in 1946.

116 117
ivo canelas

{ }

ROCKY COMMA

ou como a cultura or how American


popular americana influencia pop culture influences
o meu trabalho de actor my work as an actor

COBRA RAMBO
O título deste texto refere-se a um personagem inventado por o meu ponto de vista em relação ao cinema bélico americano em
mim quando tinha 12 anos. Era uma combinação de 4 persona- geral (e aos meus personagens em particular) retirando-me o pra-
gens bélicos da cultura popular americana. O Rocky, um boxeur, o zer sossegado da linearidade narrativa deste género de filmes.
Commando, um soldado de elite, o Cobra, um vigilante, e o Ram- Numa das muitas cenas de carros de polícia a explodir, o meu
bo, o ícone máximo de um soldado americano em luta contra (si pai perguntou-me se tinha reparado no carro a explodir com dois
próprio?) o seu próprio país. polícias lá dentro. (Polícias sem rosto que facilitam a des-sensiti-
Na imaginação (bélica) de um rapaz de 12 anos, a combinação vação em relação ao inimigo). Eu disse que sim, claro que tinha
destes 4 personagens criava o herói máximo. E com este persona- visto e tinha vibrado de alegria porque eles eram os “maus” e por-
gem, eu e os meus amigos invadíamos os pátios vizinhos com fitas tanto mereciam morrer. Ao qual o meu pai contrapôs que “não
na cabeça e M-60 invisíveis com munições infinitas. eram maus” mas que estavam a cumprir as suas obrigações!
Matávamos e morríamos em inglês, gritando “NOOOOO”. E.. (golpe final) qualquer um daqueles polícias podia ser.... “o
Este personagem é representativo da importância que a cultura teu próprio pai”.
americana teve e tem na minha formação pessoal e consequente- Nunca mais vi um filme descansado. Porque toda a gente pode
mente como actor. ser o pai de alguém.
Olhando para trás lembro-me do primeiro dia em que vi o Felizmente que este acontecimento não foi forte o suficiente
Rambo à tarde com o meu pai, lembro-me do meu prazer linear para me impedir de continuar a brincar ao “RockyComaCobra-
(e redutor) de ver o Rambo a lutar contra TODOS. E de como to- Rambo”. Mas algo em mim mudou profundamente, vi-me obri-
dos, um a um iam morrendo nas suas mãos. (Como se a América gado a acrescentar camadas morais ao meu personagem. Matava
só aceitasse ser “morta” pela própria América representada por à mesma, mas agora ao matar via-me confrontado com dúvidas
este soldado). Mas o meu pai fez um comentário que condicionou éticas e morais que a meu ver enriqueceram este personagem e

This title refers to a character I We killed and died in English, yell- soldier). But my dad made a comment to die. To which my dad argued that
made up when I was 12. It was a com- ing “NOOOO”. which conditioned my point of view “they weren’t bad,” but merely fulfill-
bination of 4 warrior characters from This character represents how im- towards American war films in gen- ing their obligations!
American pop culture. Rocky, a boxer; portant American culture was and is eral (and my characters in particular), And… (the final blow) any of those
Commando, an elite soldier; Cobra, a in my personal growth and, conse- taking away the quiet pleasure I took cops could have been… “your own fa-
vigilante; and Rambo, the biggest icon quently, as an actor. in the narrative linearity of this type ther”.
of an American soldier fighting (him- Looking back, I remember the first of movie. I never watched a movie in peace
self?) his own country. day I watched Rambo in the after- In one of the many exploding po- again. Because everyone can be some-
In a 12 year old boy’s (belligerent) noon with my dad, and I remember lice car scenes, my dad asked me if I’d body’s father.
imagination, the combination of these my linear (and simplistic) pleasure noticed the car blowing up with two Fortunately, this event wasn’t
4 characters was the highest represen- in watching Rambo fight EVERY- cops in it. (Faceless cops who make it big enough to stop me from playing
tation of a hero. And with this charac- ONE. And how they all, one by one, easier to be desensitized towards the “RockyCommaCobraRambo”. How-
ter, my friends and I invaded neighbor- were killed at his hands. (As though enemy). I said yes, of course I’d seen ever, something in me was deeply
ing backyards with headbands and in- America only accepted to be “killed” it, and I was thrilled because they were changed – I saw myself forced to add
visible M60s with infinite ammunition. by America itself, represented by this the “bad” guys and therefore deserved moral layers to my character. I would

12 2 12 3
também a forma como encarei os personagens ao longo da minha um lado paranóico e alucinado, destruído e distante da Natureza.
vida profissional. (Curiosamente a banda desenhada esteve sempre um passo à frente na
E despertaram a minha sensibilidade para um universo emocio- complexidade narrativa dos personagens, foi nos últimos 15 anos que
nal onde as coisas não eram apenas “preto ou branco”. Os milha- essa complexidade chegou em força à televisão por cabo, através do
res de tons de cinzentos estavam agora a descoberto. magnífico canal HBO e das suas inovadoras séries).
Os personagens não eram bons ou maus. Eram bons E maus.
Foi com esta nova consciência que comecei a: Estes são apenas alguns exemplos da minha mudança de sensi-
bilidade em relação à influência da cultura americana.
– (re) ouvir (o que não sabia ouvir até aí) a música de Bruce Séries como Hill Street Blues, Buck Rogers, Space 1999, Galactica,
Springsteen, onde o hino e a crítica à América andam sempre de mãos V, Blue Lightning, All in the Family, Twilight Zone, Alf, Alaska, Simp-
dadas. sons (os melhores actores do mundo) marcaram o meu período de
inocência em relação ao consumo da cultura norte-americana.
– ler o universo escrito e desenhado por Frank Miller que re-apresenta Posteriormente, séries como os Anjos na América, Sopranos,
os heróis de sempre mas agora trágicos, imperfeitos, sujos e moralmente Letra L, Sete Palmos Debaixo de Terra, Californication, Mad Men,
duvidosos. Como exemplo, um Batman velho, sem paciência nem Breaking Bad e House of Cards marcaram a minha mudança de
escrúpulos combate o crime como pode. Ou um Super-Homem sensibilidade.
corporativo e efeminado ao serviço da administração Reagan. Já em adulto, escritores como Tennessee Williams, Sam Shepard,
Jack Kerouac e Bukowski reforçaram a complexidade do meu ima-
– ler o Allan Moore que, através de um herói esquecido como o Monstro ginário americano.
do Pântano, mostrou-me outro lado da América “Flower Power”, Comediantes/pensadores como Lenny Bruce, George Carlin

still kill, but now while killing I was – (re) listen to (what I hadn’t known – read Allan Moore, who through a Series such as Hill Street Blues,
confronted by ethical and moral ques- how to listen to until then) Bruce forgotten hero such as the Swamp Buck Rogers, Space 1999, Galactica, V,
tions which, the way I see it, enriched Springsteen’s music, where hymn and Thing, showed me the other side of Blue Lightning, All in the Family, Twi-
this character as well as the way I per- criticism towards America always go “Flower Power” America, a paranoid and light Zone, Alf, Alaska, The Simpsons
ceived characters throughout my pro- hand in hand; hallucinated side, destroyed and distant (the best actors in the world) marked
fessional life. from Nature. (Interestingly enough, my period of innocence towards the
And they awakened my sensitivity – read the universe, written and drawn comic books were always a step ahead consumption of North-American cul-
towards an emotional universe where by Frank Miller, who reintroduces the in the narrative complexity of characters. ture.
things weren’t just “black or white”. same old heroes in a tragic, imperfect, It was only in the last 15 years that this Later on, series like Angels in
The thousands of grey shades were dirty and morally questionable way. complexity hit cable TV in full force, America, The Sopranos, The L-word,
now uncovered. Such as an old Batman without any through the amazing HBO channel and Six Feet Under, Californication, Mad
Characters weren’t good or bad. patience or scruples, fighting crime any its innovative series.) Man, Breaking Bad and House of Cards
They were good AND bad. way he can. Or a corporate, effeminate marked my change in sensitivity.
It was with this newfound aware- Superman at the service of the Reagan These are but a few examples of my Already as an adult, writers such
ness that I began to: administration; change in sensitivity regarding the as Tennessee Williams, Sam Shepard,
influence of American culture. Jack Kerouac and Bukowski rein-

12 4 12 5
e Robin Williams aguçaram o meu sentido crítico em relação à americana pela “Liberdade”, não sei se a América é um país ver-
América. dadeiramente livre, talvez essa obsessão pela liberdade seja na
Professores como o Lee Strasberg fizeram-me questionar o li- verdade a sua maior prisão.
mite da verdade e da realidade na representação. Mas, no corpo musculado e sempre exposto do irreverente he-
Pessoalmente, e por formação, acredito que as memórias, as rói americano, ela existe. Existe e sugere-me uma vontade de re-
influências, depois de apreendidas são “armazenadas” no corpo. gressar a um estado mais primitivo, mais puro, mais livre. Esta
Como quando estamos a aprender a conduzir e ao princípio temos relação com a liberdade do corpo (e a irreverência) é sem dúvida
de pensar no que estamos a fazer, sendo que mais tarde isso se para mim a maior influência no meu trabalho como actor.
torna parte integrante do nosso corpo. Já não é preciso pensar. Da
mesma forma, todas estas influências estão hoje armazenadas no
meu corpo. E provavelmente no corpo de cada um de nós.
Quando frequentei o Lee Strasberg Institute em Nova Iorque,
ouvi uma frase sobre a arte de representar que me marcou “This
is ACTING. Not WORDING”. Ouvi isto como uma crítica a um
colega que insistia em apenas utilizar as palavras ignorando (cas-
trando?) o corpo como elemento máximo de expressão.
E isto traz-me de volta ao meu personagem R.C.C.R., e aos he-
róis ensanguentados de tronco nu que estamos tão habituados a
ver a salvar o mundo todos os verões.
Eu hoje tenho muitas dúvidas em relação à obsessão nacional

forced the complexity of my American later on it becomes an integrated part And this brings me back to my char- relationship with the freedom of the
imagination. of our body. You no longer need to acter, R.C.C.R., and to the bloody, body (and irreverence) is without a
Comedians/thinkers like Lenny think. The same way, all these influ- shirtless heroes we’re so used to see- doubt the biggest influence in my work
Bruce, George Carlin and Robin Wil- ences are now stored in my body. And ing saving the world every summer. as an actor.
liams heightened my critical spirit to- probably in the body of each and every Nowadays, I have many doubts
wards America. one of us. about the American national obses- Translated by Joana Silva
Teachers like Lee Strasberg made When I attended the Lee Strasberg sion with “Liberty”. I don’t know if
me question the limits of truth and re- Institute in New York, I heard a sen- America is a truly free country – per-
ality in acting. tence on the art of acting which left an haps that obsession with freedom is in
Personally, and due to my academic impression on me: “This is ACTING. fact its greatest prison.
background, I believe that memories, Not WORDING”. I heard this said as Yet, it exists, in the muscled and
influences, are “stored” in your body a critique about a classmate who only always exposed body of the irreverent
after being learned. Like when we’re insisted on using words, ignoring (cas- American hero. It exists and inspires
learning how to drive and at first have trating?) the body as the main element in me the urge to return to a more
to think about what we’re doing, yet of expression. primitive, pure, and free state. This

12 6 12 7
Ana Rita Martins

{ }

Sobre
Banda Desenhada

On
Comic Books
12 8 12 9
No início dos anos 90, ainda criança, comecei a ler banda de- proezas, tentámos tornar a sua vida pessoal e problemas pessoais
senhada (suponho) como qualquer outra pessoa da mesma ida- tão realistas e interessantes quanto possível. Queríamos que eles
de. A maioria das minhas leituras incluíam as aventuras do Rato se assemelhassem a pessoas reais com as quais o leitor gostaria de
Mickey, Pato Donald ou outras personagens da Disney. Contudo, passar tempo e conhecer melhor. (Huffington Post 2012)
a maioria das minhas memórias de adolescência estão permeadas
com histórias sobre super-heróis, d’O Homem-Aranha ao Super- Talvez devido a esta tentativa de realismo, quando era adoles-
Homem, Wolverine a Batman, estava fascinada com estas perso- cente estava muito mais interessada nos super-heróis publicados
nagens fantásticas com poderes para além do humano, mas que pela Marvel Comics do que nos da DC Comics, as editoras norte--
aparentemente continuavam a lutar com problemas comuns. Os -americanas que lia mais. No artigo “‘I am New York’ - Spider--
dilemas de Peter Parker incluíam não apenas os vilões extraordi- Man, New York and the Marvel Universe”, Jason Bainbridge faz
nários com que este se debatia enquanto Homem-Aranha, mas notar que “os super-heróis da Marvel são estas figuras ‘extraor-
também questões escolares bem como a morte dos pais e, mais dinárias’ num ‘mundo comum’ ao contrário dos super-heróis da
tarde, do seu Tio Ben. Em 2012, quando questionado sobre o mo- DC – incluindo Batman – que funcionam mais como arquétipos
tivo que levaria os jovens de hoje a identificarem-se com persona- de cidades ‘intensificadas e exageradas’, mantidas à distância das
gens criadas há quase 50 anos, Stand Lee1 declarou: nossas” (166). Todavia, havia uma personagem da DC que eu con-
siderava bastante interessante e a qual aprendi progressivamente
Tentámos fazer as nossas personagens tão humanas e empáti-
a gostar: Batman, o Cavaleiro das Trevas de Gotham.
cas quanto possível. Em vez de apenas dar ênfase às suas super
Tanto quanto me recordo sempre tive livros de banda dese-
1 - Stan Lee, um dos mais conhecidos escritores de banda desenhada, é o cocriador de alguns dos
nhada sobre Batman em casa, vi as adaptações de Tim Burton,
mais populares heróis do Universo Marvel, como O Homem-Aranha, O Quarteto Fantástico, O Hulk, Batman (1989) e Batman: O Retorno (1992), mais vezes do que
Os X-Men, entre outros.

As a child in the early 90s I started as the death of his parents and later possible. We wanted to make them ‘extraordinary’ figures ‘in an ordinary
reading comic books like (I suppose) of his uncle Ben. In 2012, when asked seem like real people whom the read- world’ as opposed to DC superheroes –
any other child did. Most of my read- why he thought characters created er would like to spend time with and including Batman – who function more
ings then were Mickey Mouse Adven- nearly 50 years ago still resonate with want to know better. (The Huffing- as archetypes in ‘heightened and exag-
tures, Donald Duck or any other Dis- today’s youth, Stan Lee1 stated: ton Post, April 27 2012). gerated’ cities, kept removed from our
ney Comics’ character. However, most own” (166). However, there was one
We tried to make our characters as
of my teen memories are filled with Perhaps because of this attempt DC character I thought quite inter-
human and empathetic as possible.
superheroes’ pages, from Spider-Man at realism, as a teenager I was much esting and have grown to enjoy more
Instead of merely emphasizing their
to Superman, Wolverine to Batman, I more engrossed by Marvel Com- over the years: Batman, Gotham’s Dark
super feats, we attempted to make
was fascinated by these fantastic char- ics’ superheroes than by those of DC Knight.
their personal life and personal prob-
acters with beyond human powers who Comics, which were the two publish- As far as I can recall, I always had
lems as realistic and as interesting as
seemingly still struggled with very hu- ers I read the most. In the article “’I Batman comics at home, I watched Tim
man issues. Peter Parker’s problems 1 - One of the best-known comic book writers,
am New York’ – Spider-Man, New Burton’s Batman adaptations, Batman
included not only the extraordinary Stan Lee is credited with being the co-creator of York and the Marvel Universe,” Jason (1989) and Batman Returns (1992),
some of Marvel’s most popular heroes such as
villains he fought against as Spider- Bainbridge also claims that “(…) Mar- more times than I would care to ad-
Spider-Man, The Fantastic Four, The Hulk, The
-Man, but also school matters as well X-Men, among others. vel superheroes are very much these mit and, like any other comic books’

13 0 131
gostaria de admitir e, como uma boa fã de banda de desenha-
da, tenho a minha própria t-shirt do Batman. Batman ou Bruce
Wayne, o homem por detrás da máscara, foi criado em 1939 pelo
escritor Bill Finger e o ilustrador Bob Kane após o aparecimen-
to do primeiro super-herói, Super-Homem2. O desenvolvimento
destas duas personagens foi um momento crucial para a banda
desenhada norte-americana já que, por um lado, ajudaram a
estabelecer a que tem vindo a ser referida como “a formula do
super-herói” e, por outro lado, deram início à Idade de Ouro da
Banda Desenhada Americana (1930-1950). De acordo com Peter
Coogan em Superhero. The Secret Origin of a Genre, para uma
personagem ser considerada um super-herói/super-heróina deverá
ter: superpoderes; uma identidade a qual “inclui o nome de código
e o uniforme, sendo a identidade secreta a contraparte habitual
do nome de código (32); e uma missão: “a convenção da missão
é essencial para o género do super-herói pois aquele que não age
de modo altruísta para ajudar outros quando necessário não é

2 - O Super-Homem foi desenvolvido em 1933 pelo autor Jerry Siegel e o ilustrador Joe Shuster,
tendo aparecido pela primeira vez na revista Action Comics#1 em 1938.

fan, have my very own Batman t-shirt. According to Peter Coogan in Super-
Batman or Bruce Wayne, the man be- hero. The Secret Origin of a Genre, in
hind the mask, was created in 1939 by order for one to be considered a super-
writer Bill Finger and illustrator Bob hero/super-heroine he/she must have
Kane following the development of the the following: superpowers; an identity
first superhero, Superman2. The devel- element, which “comprises the code-
opment of these two characters was a name and the costume, with the secret
crucial moment for American comic identity being a customary counterpart
books as, on the one hand, they helped to the codename” (32); and a mission:
to establish what has been referred “The mission convention is essential to
to as “the superhero formula” and, the superhero genre because someone
on the other, introduced The Golden who does not act selflessly to aid oth-
Age of American Comics (1930-1950). ers in times of need is not heroic and
therefore not a hero” (31). However,
2 - Superman was developed in 1933 by writer
Jerry Siegel and artist Joe Shuster and appeared
if one is to look at Superman and Bat-
for the first time in Action Comics#1 in 1938. man today, it is clear there are different

13 2 13 3
heróico e, como tal, não é um herói” (31). Contudo, ao olharmos
para o Super-Homem e o Batman hoje é claro que estamos peran-
te diferentes tipos de super-heróis. Ao pensar brevemente sobre a
evolução do super-herói nas páginas de banda desenhada é fun-
damental ter em consideração os anos 80, uma década durante a
qual temas mais maduros começaram a ser abordados de modo
mais sofisticado.
Os anos 80 foram uma época decisiva no desenvolvimento de fi-
guras heróicas na banda desenhada. Com o aumento da liberdade
artística dada a escritores e ilustradores, primeiro gradualmente,
mas mais tarde com cada vez maior frequência as histórias sobre
super-heróis tradicionais tornaram-se mais negras, as suas perso-
nalidades com mais falhas e as suas acções igualmente questio-
náveis. As designadas “trevas do heroísmo” (Harvey 148) haviam
começado. A década de 80 foi também importante à medida que
testemunhámos o aumento da popularidade da banda desenha-
da para leitores adultos, nomeadamente com o sucesso comercial
de Watchmen (1986-1987, DC Comics) de Alan Moore, The Dark
Knight Returns (1986, DC Comics) de Frank Miller e, mais tar-
de, da série The Sandman (1989-1996, DC Comics, mais tarde

types of superheroes. Thinking briefly had begun. The 80s were equally im-
about the evolution of the superhero on portant as we witnessed the increas-
the pages of comic books, it is essential ing popularity of graphic novels aimed
to bear in mind the 1980s, a decade in at an adult audience, namely with the
which comics began to address mature commercial success of Alan Moore’s
themes in sophisticated terms. Watchmen (1986-1987, DC Comics),
The 1980s were a decisive decade Frank Miller’s The Dark Knight Re-
in the development of heroic figures. turns (1986, DC Comics) and later
With increasing artistic freedom being Neil Gaiman’s The Sandman series
given to writers and illustrators, grad- (1989-1996, DC Comics, later Verti-
ually at first, but then more frequently, go). Although I only discovered these
stories about the traditional super- works much later in life, Moore, Miller
heroes became darker, their person- and Gaiman opened the door in com-
alities more flawed and their actions mercial publishing for the personal vi-
more questionable. The so-called sion or expression of writers and their
“darkening of heroism” (Harvey 148) reinterpretations of the superhero.

13 4 13 5
Vertigo) escrita por Neil Gaiman. Embora só tenha descoberto es- Obras citadas Works Cited
tas obras mais tarde, Moore, Miller e Gaiman contribuíram para Bainbridge, Jason. “’I am New York’ – Spider-Man, New York and the Marvel Universe.”
que, em publicações comerciais, houvesse uma maior abertura Comics and the City. Urban Space in Print, Picture and Sequence. Eds. Arno Meteling and
Jörn Ahrens. London: Continuum International Publishing Group Ltd., 2010. 163-179.
para a visão ou expressão pessoal dos escritores e das suas reinter-
pretações do(s) super-herói(s). De um ponto de vista pessoal, estes Blodgett, Lucy. “Stan Lee Interview: The Comic Book Creator On Adventures, Women &
Which Superhero Has The Highest Value To Humanity: MY LA.” The Huffington Post Los
autores estão entre os que mais influenciaram o modo como leio Angeles Apr. 27 2012: n. pag. Web. 10 Mar. 2015.
banda desenhada. Mais do que isso, eles ensinaram-me(nos) que http://www.huffingtonpost.com/2012/04/27/stan-lee-interview_n_1459536.html

a BD, a qual em última instância é uma “forma híbrida: composta Coogan, Peter. Superhero. The Secret Origin of a Genre. Austin: MonkeyBrain Books, 2006.
por palavras e imagens” (Harvey 3), pode ser forma literária que Finger, Bill (w), Bob Kane (a). “Batman vs. the Vampire.” Detective Comics#31. N.p.: DC
nos permite pensar sobre temas complexos e, por isso, é assim que Comics. Sept. 1939.
deveria ser lida. Fiske, John. Reading the Popular. 2nd Ed. London and New York: Routledge, 2004.

Gaiman, Neil.
The Sandman. Preludes and Nocturnes. Volume 1. New York: DC Comics, 1995.
---. The Sandman. The Doll’s House. Volume 2. New York: DC Comics, 1995.
---. The Sandman. Dream Country. Volume 3. New York: DC Comics, 1995.
---. The Sandman. Season of Mists. Volume 4. New York: DC Comics, 1992.
---. The Sandman. A Game of You. Volume 5. New York: DC Comics, 1993.
---. The Sandman. Fables & Reflections. Volume 6. New York: DC Comics, 1993.
---. The Sandman. Brief Lives. Volume 7. New York: DC Comics, 1994.
---. The Sandman. World’s End. Volume 8. New York: DC Comics, 1994.
---. The Sandman. The Kindly Ones. Volume 9. New York: DC Comics, 1996.
---. The Sandman. The Wake. Volume 10. New York: DC Comics, 1997.

Harvey, Robert C. The Art of the Comic Book. An Aesthetic History. Jackson: University
Press of Mississippi, 1996.

Heer, Jeet, and Kent Worcester, eds. A Comics Studies Reader. Jackson: University Press of
On a personal level, these authors are
Mississippi, 2009.
among those who have most deeply
influenced how I read comic books Moore, Alan, and Dave Gibbons. Watchmen. New York: DC Comics, 2014.
and/or graphic novels. More than that,
Siegel, Jerry (w), and Joe Shuster (a). Action Comics #1. N.p.: DC Comics. June 1938.
they have taught me (us) that comic
books or graphic novels, which ulti- Uricchio, William. “The Batman's Gotham City : Story, Ideology, Performance.” Comics and
mately are “a hybrid form: words and the City. Urban Space in Print, Picture and Sequence. Eds. Arno
pictures” (Harvey 3), can be means of Meteling and Jörn Ahrens. New York: London: Continuum International Publishing Group
Ltd., 2010. 119-131.
addressing thoughtful and complex
themes and, therefore, ought to be Wolk, Douglas. Reading Comics: How Graphic Novels Work and What They Mean. Phila-
read as such. delphia: Da Capo Press, 2008.

Filmografia Filmography

Batman. Dir. Tim Burton. DVD. Warner Bros, 1989.


Batman Returns. Dir. Tim Burton. DVD. Warner Bros, 1992.

13 6 137
filipe melo Cresci nos anos 80 na parte nova de Benfica, um arrabalde para
onde se mudaram muitas famílias nos anos 60. Muitos dos pré-
{ }
dios, segundo sei, não tinham sequer direito a arquitectos, eram
desenhados por engenheiros que pediam depois aos gabinetes de
arquitectura uma assinatura para que o projecto fosse aprovado.
Estes edifícios, tão organizados como cinzentos, eram coloridos

Filipe Melo pela cultura "pop" que importávamos dos Estados Unidos. É mui-
to importante conhecer o contexto em que passei a minha infân-
cia. Estávamos no fim da Guerra Fria. Ouvia falar na Perestroika
e a Pop Americana sem saber muito bem do que se tratava, e, nas notícias e nos jor-
nais, no braço de ferro entre Reagan e Gorbatchev, na ameaça
constante de uma guerra nuclear ou no mega-vilão Gaddafi que
nos destruiria com um mero premir de um botão. Esta ameaça
existia e metia-nos medo.
Porém, nada disso me interessava verdadeiramente. Era uma
criança. A América que eu queria estava nos videoclubes. Verdade
seja dita, não sabia distinguir a cultura americana da nossa. Todos
queríamos ser americanos. No meu armário, as t-shirts do Michael
Jackson. Na parede, um poster do E.T e outro da Madonna. Nas ruas
e nos programas da tarde, a competição feroz para ver quem melhor

I grew up in the Eighties in the new the news and in the papers, about the
area of Benfica, in the outskirts of Lis- tug-of-war between Reagan and Gor-
bon, where many families moved to batchev, the constant threat of nuclear
in the Sixties. Many of the buildings, war or the mega-villain Gaddafi who
as far as I know, weren’t even worthy would destroy us with the simple pres-
of an architect but were designed by sure of a button. This threat was real
engineers who would then ask the ar- and scared us.
chitecture studios for a signature so However, none of this really inter-
Filipe Melo that the project would be approved.
These buildings, as organized as they
ested me. I was a child. The America
I wanted was in the video clubs. Truth
were grey, were coloured by the “pop” be told, I couldn’t tell the difference

and American Pop culture that we imported from the


United States. It’s very important to
understand the context I grew up in. It
between American culture and ours.
We all wanted to be American. In my
closet, Michael Jackson t-shirts. On the
was the end of the Cold War. I would wall, an E.T poster and one with Ma-
hear of the Perestroika without quite donna. On the streets and afternoon
knowing what it was all about and, on TV shows, the fierce competition to

13 8 13 9
dançava breakdance. No entanto, a Guerra Fria estava presente nos
grandes écrãs. Se o americano Rocky Balboa lutava contra o russo
Ivan Drago, a mensagem política não podia ser mais clara - o Rocky
teria de ganhar porque os russos eram maus. Lembro-me do dia em
que a pequena sala de cinema no Fonte Nova aplaudiu de pé a vitó-
ria de Rocky contra o "mau". Estes filmes serviam para nos entreter,
mas aproveitavam para nos educar desde cedo de quem eram os
bons e os maus. Lembro-me que, já a entrar na adolescência, quan-
do os gringos e os soviéticos finalmente lá se começaram a enten-
der, dei por mim a torcer por um russo pela primeira vez no filme
Red Dawn (1984), que era interpretado por Arnold Schwarzenegger
e que tinha como amigo um americano, o James Belushi.
A canção Born in the USA tornou-se um hino. Sentíamos sem-
pre um misto de inveja e de um complexo de inferioridade perante
aquela que era a maior potência bélica e cultural do mundo. No
entanto, nenhum de nós percebia que havia uma lavagem cerebral
subliminar, porque, no meio desta propaganda, contavam-se algu-
mas das melhores histórias e algumas das mais originais narrativas
que, até ao dia de hoje, continuam a marcar o nosso imaginário
colectivo. E, se muitas delas eram a favor do governo americano

see who was the best at breakdance. along and I found myself for the first
Nevertheless, the Cold War was pre- time rooting for a Russian in the film
sent on the big screen. If Rocky Bal- Red Dawn (1984), played by Arnold
boa, the American, fought Ivan Dra- Schwarzenegger, who had an Ameri-
go, the Russian, the political message can for a friend, James Belushi.
couldn’t be clearer - Rocky would have The song Born in the USA became
to win because the Russians were the an anthem. We always felt a mixture
bad guys. I remember the day when the of envy and inferiority complex to-
audience of the small movie theatre in wards what was the world’s greatest
the Fonte Nova mall gave Rocky’s vic- military and cultural power. Howev-
tory over the “bad guy” a standing ova- er, none of us realized that there was
tion. These films entertained us, but subliminal brainwashing going on, as,
they also served to educate us, from an in the midst of this propaganda were
early age, as to who were the good and some of the best stories and some of
who were the bad guys. I can remem- the most original plots, which to this
ber when, in my early teens, the “grin- day continue to imprint our collective
gos” and the soviets finally began to get imagination. And, if many of these

14 0 141
e o protegiam, muitas outras atacaram-no com unhas e dentes. O país. O jazz. Este género de música, que nasceu do sofrimento dos
poder das grandes corporações americanas era atacado em filmes escravos, foi ganhando um papel cada vez mais importante na mi-
como Total Recall (1990) ou Robocop (1987). O consumismo e a nha vida. Foi por causa dele que um dia fiz as malas e rumei ao país
apatia eram criticados em filmes como Dawn of the Dead (1978) e o que tanto me inspirara - a América, com todos os seus defeitos e
perigo da tecnologia desenfreada era um dos alvos de Terminator virtudes.
(1984) ou de War Games (1983) . Cheguei a Boston no dia em que morreu a princesa Diana.
A gigante indústria de comics e dos filmes, em Hollywood, fez Completamente focado na música, vi-me rodeado de fontes de
com que a nossa própria imaginação levantasse voo. Os bonecos inspiração. Concertos, jam sessions e palestras de muitos dos
do Star Wars (1977) foram a minha companhia enquanto brincava, meus heróis musicais de infância. No entanto, o meu passado vol-
e, nos pinhais de Tondela, nas férias, os galhos das árvores eram tava para me assombrar - ao terminar o dia de estudo na música,
os sabre-luz dos cavaleiros jedi. Devido ao crescimento e desen- descobri a secção Midnight Movies na defunta Tower Records. Os
volvimento desta indústria, melhoraram também as histórias, os meus dias tornaram-se mais interessantes: naquela secção, desco-
argumentos e as tecnologias dos filmes. A América exportava os bri os filmes americanos que não chegavam a Portugal - filmes de
livros, os filmes e a música que consumíamos, e nós adorávamos. zombies, de mulheres na prisão, de gore gratuito. Filmes feitos por
Somos do tempo em que havia telediscos, e não videoclips, em que paixão e só por paixão, sem concessões à indústria ou à política.
as salas tinham projecção em 70mm. Foram tempos mágicos, e Filmes feitos por guerreiros cinematográficos, que se viam margi-
era para mim um motivo de orgulho saber quem eram os actores, nalizados naquela pequena secção do videoclube.
os músicos e os técnicos responsáveis por essas obras de arte. Foi também nesses sítios que, numa mistura de puro gozo e
Muitos anos mais tarde, ao entrar na faculdade, apaixonei-me investigação, mergulhei no universo dos standards, dos temas do
por aquela que considero ser a melhor coisa que originou esse cancioneiro americano, e no repertório gigante de filmes musicais

were in favour of the American gov- tree branches were the light sabres of ever produced. Jazz. This type of mu- Tower Records. My days became more
ernment and protected it, many others the Jedi knights. Due to the growth and sic, born from the suffering of slaves, interesting: in that section I discovered
attacked it tooth and nail. The power development of this industry, the sto- gained an ever increasing role in my the American films that didn’t make
of the great American corporations ries, screenplays and technology of the life. It was the reason that made me it to Portugal - zombie films, women’s
was attacked in films such as Total Re- films also improved. America exported pack my bags one day and head to- jailhouse films, gratuitous gore films.
call (1990) or Robocop (1987). Con- the books, films and music that we con- wards the country that had inspired me Films made with passion and only pas-
sumism and apathy were criticized in sumed, and we loved it. We belong to so much - America, with all its flaws sion, without concessions to the indus-
films like Dawn of the Dead (1978) and the age of music videos on TV and not and virtues. try or politics. Films made by warrior
the danger of unbridled technology videoclips, when the movie theatres I arrived in Boston on the day of film-makers, who found themselves be-
was one of the targets of Terminator still projected 70mm films. They were Princess Diana’s death. Totally focused ing set aside in that small section of the
(1984) or of War Games (1983). magical times, and for me it was a mat- on music, I found myself surrounded by video store.
The vast Hollywood industry of ter of pride to know the names of the sources of inspiration. Concerts, jam It was also here that, mixing pure
comic books and films made our own actors, musicians and technicians re- sessions and talks by many of my child- enjoyment and research, I plunged into
imagination take flight. The Star Wars sponsible for those works of art. hood musical heroes. However, my past the universe of standards, the theme
(1977) toy figures were my company Many years later, when starting returned to haunt me - at the end of a songs of the American song-book, and
while I played and, in the pine forests college, I fell in love with what I con- day of studying music I found the Mid- the massive repertoire of the RKO
of Tondela, during the holidays, the sider to be the best thing that country night Movies section in the defunct and MGM musicals, from the Marx

14 2 14 3
da RKO e da MGM, desde os irmãos Marx ao Fred Astaire. Que, apesar de sermos um país pobre e de recursos limitados na
Ao regressar a Portugal, quatro anos depois, senti a responsa- concretização de projectos, não somos pobres em ideias. E, cada
bilidade de começar a fazer coisas. Mais do que responsabilidade, dia mais, tentamos apreciar a nossa própria herança cultural, em
sentia uma enorme ansiedade por contar histórias, influenciadas qualquer formato que seja.
por aquelas que me acompanharam por tantos anos. Desde esse Até ao dia de hoje, o meu próprio trabalho era um reflexo às
dia, tento usar as ferramentas que conheço, assumindo aquilo que fontes de inspiração que tive. Os filmes, as músicas, os livros de
sou: uma gigante mistela de influências. A cultura pop americana banda desenhada. É o que faço. Cada dia mais, no entanto, tento
teve um impacto tremendo naquilo que sou. Não o poderia evitar. afastar-me de tudo isso, porque só assim poderei fazer algo que
Está-me no sangue e cresci com ela, foi a minha companhia e a não seja um parente pobre das gigantes produções que eram o
minha melhor amiga, ao ponto de ter percebido em Boston que resultado de uma indústria tão grande como o país que a gerou.
nós, no nosso cantinho à beira-mar, conhecemos melhor a cultura Cabe-nos a nós, agora, passadas algumas décadas, a análise
pop americana do que a maioria dos meus colegas de universidade crítica desse período fascinante e glorioso da cultura pop ameri-
que lá tinham nascido. cana. Como referi acima, as histórias que foram contadas foram
Com os anos, percebemos que há algumas coisas que, pela ve- intemporais ao ponto de, hoje em dia, se investir mais em remakes
locidade a que se movem, não poderiam ser feitas por americanos. ou reboots das criações mirabolantes do passado. A indústria ame-
Ao estarem isolados da sua cultura frenética, os países de leste ricana está em queda criativa: exceptuando alguns visionários, a
desenvolveram a sua forma muito peculiar de ver o mundo e a norma é um gigante micro-ondas criativo onde se vão aquecer as
ficção científica, oferecendo-nos pérolas como Solaris ou Stalker. grandes ideias do passado recente.
Só mais tarde, e com o declínio do grandioso império america-
no na opinião pública, começámos a ver que existem mais coisas.

brothers to Fred Astaire. pop culture than most of my college in ideas. And more and more we are American pop culture. As I mentioned
Four years later, when I returned classmates who were born in the USA. trying to appreciate our own cultural earlier, the stories that were told were
to Portugal, I felt I should start doing Over the years, we understood that heritage, in any form or shape. timeless, to the extent that, nowadays,
things. Not only did I feel it a responsi- some things, due to the pace at which So far, my own work has reflected more is invested in remakes or reboots
bility, I was anxious to start telling sto- they move, couldn’t have been created my sources of inspiration. The films, of the amazing creations of the past.
ries, influenced by those that had ac- by Americans. The eastern European music, comic books. It’s what I do. The American industry is on a creative
companied me for so many years. Since countries, being isolated from the fre- However, each day, more and more, I decline: with the exception of a few vi-
that day I have tried to use the tools I netic American culture, developed try to distance myself from all of this, sionaries, the norm is a giant creative
am familiar with, admitting what I am: their own very particular way of look- because that’s the only way I can do microwave oven where the great ideas
a huge medley of influences. Ameri- ing at the world and at science fiction, something that won’t be a “poor rela- of the past are re-heated.
can pop culture had a tremendous im- giving us such gems as Solaris or Stalk- tion” of the gigantic productions which
pact on what I am. There was no way er. Only later, with the decline of the were the result of an industry as great
to avoid it. It is in my blood and I grew great American empire in public opin- as the country that created it. Translated by Ana Rita Palmeirim
up with it, it was my companion and my ion, did we become aware that other Now, a few decades on, it’s up to
best friend, to the extent that in Boston things exist. That, in spite of being a us to undertake a critical analysis of
I realized that we, in our little corner poor country with limited resources for that glorious and fascinating period of
by the sea, know more about American materializing projects, we are not poor

14 6 147
A – Apocalipse: O zombie é A – Apocalypse: The zombie is
uma figura que inspira medo e terror, a figure that inspires fear and terror
ana daniela coelho
surgindo frequentemente associado and is frequently associated with
& josé duarte
a uma visão apocalíptica. Contudo, o an apocalyptic vision. However, the
{ } zombie nem sempre foi associado a zombie was not always a metaphor for
uma expressão reveladora do fim dos the end of days.
dias.
B – Bravery: Living in an
B – Bravura: A vivência num apocalyptic world requires bravery
mundo pós-apocalíptico exige coragem because we are dealing with our worst
porque lidamos com as nossas maiores fears and anxieties, since humanity is a
ansiedades e medos, pois, neste threat to itself.

O Zombie mundo, a humanidade apresenta-se


como uma ameaça a si mesmo. C – Control: The zombie’s body
is central in folklore as well as fiction

de A a Z C – Controlo: O corpo do zombie


tem destaque no folclore e na ficção e
associa-se, por influência das crenças
and, influenced by voodoo beliefs, is
associated to the idea of control: it is,
above all, slave to will of a dominator
vudu, à ideia de controlo: é, antes de or slave to its insatiable hunger.
mais, escravo da vontade, quer seja de
um outro dominador, quer seja da sua D – Destruction: The zombie
insaciável fome. leaves a trail of destruction and there
- D – Destruição: Por onde passa,
is little chance of survival in a zombie
world, leaving us at the will of our
o zombie deixa um rasto de destruição most primitive instincts.
e há pouca hipótese de sobrevivência,
deixando-nos à mercê dos nossos E – Epidemic: The idea of the
instintos mais primitivos. zombie as a disease that propagates
The Zombie E – Epidémico: A ideia do
through biting – the mouth as an
important element – is not heir to
zombie como uma doença que se Haitian or African folklore, but it has
from A to Z propaga através de dentadas – a boca
como um importante elemento – não
been used in contemporaneity as a
warning for the danger of the unknown.
é herdeira do folclore haitiano ou
africano, mas tem vindo a ser usada F – Family: In most zombie
na contemporaneidade como aviso do narratives the family in decay is an
perigo do desconhecido. important theme. At the same time,
other families are created and new
F – Família: Na maior parte das societies arise.
narrativas de zombies a dissolução
familiar é um dos temas principais. G – George Romero: A major

14 8 14 9
Ao mesmo tempo, criam-se figure in “zombie cinema”, Romero salvação. Contudo, também na maior and folklore directly to cinema.
outras famílias e erguem-se novas is responsible for creating a new parte destas obras, os personagens Nonetheless, zombies – as well as
sociedades. language for the zombie, since it com um carácter mais violento acabam vampires – have been widely used in
distances itself from the folklore por morrer às mãos de zombies. literary pastiches as, for example, Pride
G – George Romero: explored by White Zombie (1932). Há conflitos entre os sobreviventes and Prejudice and Zombies (2009), by
Figura maior do “cinema de zombies” porque, mesmo por entre os destroços Seth Grahame-Smith.
Romero é responsável por uma nova H – Haiti: The Zombie mythology da civilização, a questão do poder e
linguagem na criação do zombie, uma is related to the voodoo magic in this controlo continua a existir. M – Memory: The brain is an
vez que se afasta claramente do folclore country and is connected, mainly, with important part in zombies, but only
de que se aproximava White Zombie the complex history of Haiti in terms of L – Literatura: O zombie é in its primitive side – the return to all
(1932). social, cultural, religious and political um caso curioso, porque salta da beginnings – since these are not very
issues. mitologia e folclore directamente smart beings, which is an advantage to
H – Haiti: A mitologia Zombie surge para o cinema, sem antecedentes those alive.
associada às práticas de vudu neste I – Invisible: The zombie is, at literários. Todavia, a figura do zombie
país e relaciona-se em grande parte first, an invisible threat that becomes – a par da do vampiro – tem sido N – Night of the Living Dead:
com a complexa história do Haiti a visible with the rising corpses. muito aproveitada para pastiche A landmark movie released in 1968
nível social, cultural e, maioritariamente, literários como, por exemplo, Pride and directed by George Romero that
político e religioso. J – Jogging: When faced with and Prejudice and Zombies (2009), de creates a new language of how to
a zombie threat jogging is useless. Seth Grahame-Smith. understand the zombie.
I – Invisível: O zombie é uma The slow living-dead is now quick
ameaça inicialmente invisível, tornada and deadly. Running from the new M – Memória: O cérebro parece O – Other: The Other that exists
visível com a proliferação desenfreada millennium zombies requires good ser uma parte importante no zombie, in us – Unheimlich – the strange and
de cadáveres. cardio – Cf. Zombieland (2009) and mas apenas e só num lado primitivo the familiar at the same time, since the
the rules of survival to a zombie – o regresso a todos os princípios zombie is the image of decadence,
J – Jogging : O jogging é inútil apocalypse. – até porque estes seres não são death and disease that we want to
perante o zombie: inicialmente propriamente inteligentes, algo que avoid at all costs because it represents
cadáveres em decadência e lentos, K – Karma: Contrary to the first abona a favor dos sobreviventes. our natural fear of things.
são agora seres implacáveis e Romero films, in which there is
imparáveis. Umas das características no redemption for the living, the N – Night of the Living Dead: P – Popular: In 1983, Michael
mais importantes quando fugimos contemporary movies offer the Importante filme de 1968 realizado Jackson appears on “Thriller”, one of
dos zombies do novo milénio é uma opportunity to salvation. However, por George Romero que cria uma the most successful musical videos of
resistência física acima da média in most of these pictures, violent nova linguagem para o modo de music history, where he dances next
– veja-se Zombieland (2009) e as characters tend to die at the hands of compreender o zombie. to zombies in a kind of nightmare. This
regras de sobrevivência ao apocalipse zombies. There are conflicts between video shows, right from the beginning,
zombie. the living because, even among the O – Outro: o Outro que somos nós the popularity of the living-dead,
civilization debris, the issues of power – Unheimlich, aquilo que é estranho e particularly because “Thriller” was
K – Karma: Contrariamente aos and control continue to exist. simultaneamente familiar, uma vez que on the emergent MTV, the channel
primeiros filmes de Romero, em que o zombie é a imagem de decadência, that would take the term “pop” to
não havia qualquer redenção possível L – Literature: The zombie is a de morte, da doença que queremos, a the extreme. The Zombie has gained
para os vivos, os filmes mais recentes curious case because it has no literary todo o custo, evitar, porque representa o popularity especially in the last ten
deixam em aberto a hipótese de heritage. It comes from mythology nosso medo natural das coisas. years.

15 0 151
P – Popular: Em 1983, Michael Q – Questioning: The zombie in Robert Kirkman, The Walking Dead, V – Vision: The zombie is a being
Jackson aparece em “Thriller”, um dos cinema and its rising popularity make centra-se em temas como a solidão, a “in-between” life and death and maybe
mais bem sucedidos vídeos musicais him one of the most important figures to família, a morte, o apocalipse, teorias it is impossible to recover the living
da história da música, onde dança ao question contemporaneity, functioning da conspiração, o horror, mas também part of the living-dead. Ultimately,
lado de zombies numa espécie de as a metaphor for our violent side and a esperança e a possibilidade de the zombie embodies the loss of our
pesadelo. Este vídeo mostra, desde revealing terrifying truths about human um novo mundo que só é possível humanity; the monster that was human
logo, a popularidade que os mortos- existence. eliminando (quase) todo o mal. and that symbolizes a bigger tragedy.
-vivos estavam a ter, até porque “Thriller”
passava na emergente MTV, o canal R – Restarting: In an unjustly U – Urbano: O zombie é, por W – Warm Bodies: The 2013 film
televisivo que viria a levar a expressão profound society, the zombie brings excelência, um ser urbano, porque was not successful among the critics
“pop” ao extremo. Nos últimos dez anos, equality to all: unaware of their é aí que se concentra a maior parte but depicts a different perspective
em particular, o zombie tem vindo a condition and their differences, this da população e, portanto, mais of the zombie. In this movie zombies
ganhar popularidade. being levels the existing disparities, comida. Nas grandes metrópoles have a sort of basic conscience,
creating an uniformity that it is also a encontram-se os símbolos de implying that this being is not that
Q – Questionamento: O new start for the living. consumo: supermercados, centros primitive and is not completely devoid
aparecimento do zombie no cinema e comerciais ou bancos; mas também of humanity.
a sua crescente popularidade fazem S – Survival: The most as instituições responsáveis pelas leis
dele uma das figuras mais importantes important thing is to survive and que regem a sociedade: governos, X – Xamanism: In voodoo the
para questionar a contemporaneidade, the apocalyptic world brings to the tribunais ou tecnologia desaparecem “death theory” says that the human
funcionando como elemento revelador surface our most primitive instincts. mostrando, por completo, todas as being is composed of material support
do nosso lado mais violento e nossas fragilidades. and two “spiritual principles” called
apresentando verdades terríveis sobre a T – The Walking Dead: Based gros bon ange and petit bon ange. The
existência humana. upon the comics created by Robert V – Visão: O Zombie é um ser first is close to the Christian definition of
Kirkman, The Walking Dead explores “entre” a vida e a morte e talvez seja soul and can be captured, thus allowing
R – Recomeçar: Numa sociedade such issues as loneliness, family, death, impossível recuperar a parte viva do the control of the unconscious body: a
profundamente desigual, o zombie apocalypse, conspiracy theories, morto-vivo. Em última análise, o zombie zombie.
devolve a igualdade a todos: sem the horror, but also the hope and reflecte sobre a perda do lado humano,
consciência do que são, sem possibility of a new world that is only sobre o monstro que outrora foi humano Y – You are what you eat:
reconhecimento das suas diferenças, possible by erasing (almost) all evil. e talvez seja essa uma tragédia maior. The mouth acts as the zombie’s defining
este ser nivela as disparidades center, functioning as the metaphor for
existentes, criando uma igualdade que U – Urban: The zombie is, by its W – Warm Bodies: Lançado em humanity’s uncontrolled consumption:
é também uma hipótese de recomeço own right, an urban being because 2013, e apesar de não ter sido bem the zombie cannot stop eating,
para os que estão vivos. cities have a large population and, aceite pela crítica, é interessante notar showing how contemporary society
therefore, represent more food. Big que se trata de um filme que mostra a is characterized by capitalist culture.
S – Sobrevivência: Em primeiro metropolises stand for symbols of perspectiva do zombie com algum tipo The zombie’s mouth is, therefore,
lugar, interessa sobreviver e o mundo consumption: supermarkets, malls de consciência básica. Esta ideia implica double fatal: not only predatory but
zombie apocalíptico traz à superfície os or banks; but also the institutions que o zombie, afinal, não é um ser assim also the responsible for an epidemic
instintos primitivos da humanidade. responsible for the laws of society: tão primitivo, e, mais do que isso, que a propagation.
governments, courts and technology sua humanidade não lhe foi roubada por
T – The Walking Dead: Baseada disappear, showing our greatest completo. Z – Zombie: A definition of zombie
na banda desenhada criada por frailties. includes the following: 1) an animated

15 2 15 3
X – Xamanismo: A “teoria da body that feeds on the living; 2) a Christie, Deborah & Lauro, Sarah Juliet Night of the Living Dead, dir. George
morte”, no vudu, defende que o ser voodoo spell that makes the dead (eds.) (2011). Better off Dead: The Romero, 1968.
humano é composto por um suporte come to life; 3) (informal) a word that is Evolution of the Zombie as Post-
material e dois “princípios espirituais”, used to describe someone who walks Human. Bronx: Fordham University Planet Terror, dir. Robert Rodríguez, 2008.
que são chamados gros bon ange e slowly and is not aware of the reality Press.
petit bon ange. O primeiro assemelha- that surrounds him, especially because Resident Evil, dir. Paul W. S. Anderson,
-se à noção de alma do cristianismo e he seems very tired. The origins of the Flint, David (2009). Zombie Holocaust: 2002.

pode ser capturado, permitindo assim zombie start in the 19th century and How the Living Dead Devoured Pop Shaun of the Dead, dir. Edgar Wright,
o controlo do corpo desprovido de it is a word that comes from Western Culture. London: Plexus Publishing. 2004.

consciência: aquilo que conhecemos Africa. Zombie may derive from the
como Zombie. Kimbundu word “nzúmbi”, meaning Greene, Richard & Mohammed, K. The Walking Dead, criador/creator,
ghost. Initially connected with voodoo Silem (eds.) (2008). The Undead Frank Darabont, 2010 -.
Y – You are what you eat: A boca, and magic, the modern zombies – and Philosophy: Chicken Soup for
centro definidor do zombie, funciona thanks to Romero – became part of the Soulless. Chicago: Open Court Warm Bodies, dir. Jonathan Levine,
como metáfora para o consumo popular culture. Publishing. 2013.

desenfreado da humanidade: o
zombie não consegue parar de Lowder, James (ed.) (2011). Triumph of White Zombie, dir. Victor Halperin, 1932.
comer, mostrando como a sociedade the Walking Dead: Robert Kirkman’s
contemporânea está marcada pela Bibliografia Zombie Epic on Page and Screen. Dallas: World War Z, dir. Marc Foster, 2013.
cultura capitalista. A boca do zombie Zombie Bibliography Smart Pop.
é, além disso, duplamente fatal: não Zombieland, dir. Ruben Fleischer, 2009.
apenas arma predatória mas também Bishop, Kyle William (2010). American Seslick, Dale (2010). Dr Dale’s Zombie
elemento propagador da epidemia. Zombie Gothic: The Rise and Fall (and Dictionary: The A-Z Guide to Staying
Rise) of the Walking Dead in Popular Alive. London: Allison & Busby.
Z – Zombie: Uma definição de Culture. Jefferson: MacFarland &
Zombie inclui as seguintes leituras: 1) Company, Inc. Filmografia Zombie
corpo animado que se alimenta de carne ---. (2015). How zombies conquered Zombie Filmography
viva; 2) feitiço vudu que faz viver os popular culture: the multifarious
mortos; 3) (informal) palavra utilizada para walking dead in the 21st century. 28 days later, dir. Danny Boyle, 2002.
descrever uma pessoa que anda muito Jefferson: MacFarland & Company, Inc.
devagar ou está pouco consciente da 28 weeks later, dir. Juan Carlos
realidade que a rodeia especialmente Boluck, Stephanie & Lenz, Wylie (eds.) Fresnadillo, 2007.
porque aparenta estar muito cansada. As (2011). Generation Zombie: Essays on
origens de zombie remontam ao séc. XIX, the Living Dead in Modern Culture. Dawn of the Dead, dir. George
sendo uma palavra originária da África Jefferson: McFarland & Company, Inc. Romero, 1978.
Ocidental que se aproxima à palavra Exit Humanity, dir. John Geddes, 2011.
Kimbundu “nzúmbe”, que significa Brooks, Max (2004). The Zombie
fantasma. Inicialmente ligado ao vudu e Survival Guide: Complete Protection Fido, dir. Andrew Currie, 2006.
à magia, os zombies contemporâneos – from the Living Dead. London:
graças a George Romero – tornaram-se Duckworth Publishers. I am Legend, dir. Francis Lawrence, 2007.
parte integrante da cultura popular.

15 4 15 5
margarida vale de gato Monterey, California

{ }

Para a Golgona Anghel Cindi Lauper sang on MTV that girls


just wanna have fun, and everyone but me
Cindi Lauper na MTV cantava que as miúdas was like her or Michael Jackson,
queriam mas era curtir e todos menos eu Afro-American broads with Guess jeans
eram como ela ou o Michael Jackson and nails, hair sticking straight up,
broads afro-americanas com jeans da guess dense, thick, erect – the girls
e unhas e cabelos em pé – densos of Martin Luther King Middle
espessos erectos – meninas hid bottles in their lockers
da Martin Luther King Middle and had incredibly messy mothers.
escondiam garrafas nos lockers There must be a yearbook.
e tinham mães incrivelmente desmazeladas. I’d be mortified to come across
De certeza que há um year-book that little Portuguese nerd, ungainly,
e como ainda hoje me embaraçaria dar pubescent, giggling through
com a portuguesa nerd malfeita the rotten American afternoon. I pledge
de púbere idade giggling na tarde allegiance to the flag of the United States
podre americana. I pledge allegiance of America, 1985, Chernobyl number 4
to the flag of the United States of America. bursting at the seams, Reagan’s
Estávamos em 85/6, a central vertia em Chernobyl troups parading for CNN.
e as tropas de Ronald Reagan desfilavam para a CNN.
The Social Studies prof wanted me
Pedia-me a stôra de Social Studies to point to where I came from on the map.
que apontasse no mapa de onde eu era. She made me research Margaret Mead.
Também me fez pesquisar Margaret Mead. Me at twelve with my doltish,
Eu com doze anos a minha inépcia unfigurable ethnic existence.
e indecidível existência étnica. They filed me with the Mexicans,
Acabaram por me arrolar com os mexicanos proud of their parents that year
que nesse ano se orgulhavam dos seus pais of the World Cup. They couldn’t
por causa do Campeonato do Mundo. get their tongues around my language,
Apesar de mal planarem na minha língua but let me party anyway, churros and ganzas,
deixavam-me por ali cheirar churros e ganzas watching Portugal lose on TV.
e via Portugal perder na TV.
One of the many skills that stuck:
Umas quantas habilidades que guardei: typing blind, dreaming with an accent,
dactilografar sem ver, sonhar com sotaque, imitating seals at Fisherman’s Wharf.
imitar as focas no Fisherman’s Wharf.
Translated by Martin Earl

15 6 157
*
spoiler
jorge vaz nande

O bom governo The good government

Em 2015, toda a gente andou a fazer- democrática para as tensões históricas. In 2015, everyone was asking them- historical tension. By gathering multi-
-se duas perguntas. Reunindo os múltiplos interesses e os selves two things. ple interests and conflicts into a single
Primeiro, o que é mesmo a Europa, múltiplos conflitos num só lugar, pode- Firstly, what is Europe really? That place, we could be sure that authoritar-
aquela Europa que nos foi ensinada ríamos estar certos de que não haveria Europe that was taught to us in school, ian voices would no longer be tempted
na escola, aquela de que usufruímos mais a tentação de vozes autoritárias the one we benefited from when we re- to try to impose their reason over that
quando recorremos aos seus fundos tentarem impor a sua razão à razão dos sorted to its monetary funds, when we of others.
monetários, quando viajamos sem outros. traveled without a passport between And yet, after the crisis in Greece,
passaporte de país para país, quando E, no entanto, depois da crise da countries, when we went on Erasmus, the feeling we get is that this is precise-
fizemos Erasmus, quando passámos a Grécia, a sensação que fica é que foi when we spent all night looking for ly what happened: that one voice, one
noite à procura de festas de Erasmus, isso mesmo que aconteceu: que uma Erasmus parties, when we went on reason, one solution presented itself to
quando fizemos Interrail. voz, uma razão, uma solução apresen- Interrail. all others as inevitable, saying “do what
Segundo, que monstro é este que foi tou-se a todas as outras como inevitá- Secondly, what is this monster that I say, or else…”. That the gentlemen’s
criado, dizem, em nosso nome e por nós vel, dizendo “façam como eu digo, se- was created, they say, in our name and agreement that Europe was based on
mesmos. não…”. Que o acordo de cavalheiros em by us? fell to the ground and was shattered
Fosse qual fosse a resposta – se é que que a Europa se baseava caiu ao chão e Whatever the answer – if we found into a million pieces. And that we all
conseguimos encontrar respostas –, partiu-se em mil pedaços. E que todos any answers at all – one thing became fell into a trap.
uma coisa ficou clara, se é que já não o caímos numa armadilha. clear, if it wasn’t already: the phrase Yes, a trap, because we European
estava: a expressão “União Europeia” é Uma armadilha, sim, porque nós, “European Union” is a contradiction voters didn’t go into this adventure to
uma contradição em si mesma. eleitores europeus, não entramos nes- in and of itself. humiliate each other. When we went
Como não o poderia ser? O nosso ta aventura para agora nos humilhar- How could it not be? Our common into it, nobody told us that entities of
passado comum foi alicerçado no con- mos uns aos outros. Ninguém nos disse past was set in conflict and, until we dubious democratic legitimacy (as they
flito e, até termos ganhado juízo depois quando entrámos que entidades com came to our senses after 1945, it was were not elected) would dictate solu-
de 1945, era razoável assumir a guerra legitimidade democrática duvidosa, reasonable to think of war as an eco- tions with no alternative. Nobody told
como motor económico e político. A porque não eleitas, ditariam soluções nomic and political engine. Uniting us that, if the economy went bad, they
união dos países europeus numa enti- sem alternativa. Ninguém nos disse European countries into a single entity would come to us with a whip instead
dade comum foi uma elegante solução que, caso a economia apertasse, viriam was an elegant democratic solution for of a helping hand.

15 8 15 9
chicotear-nos em vez de nos virem em que ela deve ser pensada: uma asso- During the endless weeks of nego- be: an association of people who, to-
acudir. ciação de povos que, juntos, procuram o tiation, those who spoke against the gether, search for a path of peace and
Quem falou contra os gregos durante caminho da paz e do bem estar. O pro- Greeks yelled out the argument that well-being. The Greek problem was
as intermináveis semanas de negocia- blema grego era europeu antes de o ser, “they didn’t fulfill their part”. But what European before it became so, and no-
ção brandiu o argumento do “eles não e ninguém no-lo disse, talvez porque did the Greek voters know, after all, body told us that, perhaps because no-
cumpriram o que deviam”. Mas o que ninguém o pensou. aside from the promise of better days body thought it.
sabiam os eleitores gregos, afinal, além A Europa tem um problema de va- in 1986 and that, once those days were Europe has a problem with values
de que em 1986 lhes foram prometidos lores e ninguém dentro dela com o over, what followed was a spectacular and no one in it has enough power of
dias melhores e que, quando estes aca- poder de persuasão suficiente para os economic beating where they were all persuasion to re-balance them. With
baram, seguiu-se um fenomenal arraial reequilibrar. Com a Grécia, o FMI e a but crucified and pinned up on top of Greece, the IMF and troika proved
de porrada económica em que só falta- troika provaram que a infalibilidade do the Parthenon for the entire world to that the infallibility of the path they
va crucificá-los e espetá-los no topo do caminho que eles apontaram era, afi- see? pointed was, after all, quite fallible, and
Parténon para todo o mundo ver? nal, bastante falível, e outra prova não é It’s not an unreasonable analogy. It no other evidence is necessary beyond
A imagem não é despropositada. necessária além da evidência de que os was quickly obvious that Greece was the fact that the Greek can’t take it any
Desde cedo ficou óbvio que a Grécia gregos não o aguentarem mais. E esse paying for the sins of the world. The longer. And that was the big German
estava a pagar pelos pecados do mun- foi o grande erro alemão, o erro que faz sin of a Europe that is neither black mistake, which makes Mrs. Merkel and
do. O pecado de uma Europa que não é da senhora Merkel e do senhor Shäu- nor white. A Europe that works very Mr. Shäuble another pair of pawns in
carne nem é peixe. Que funciona muito ble mais um par de joguetes no Grande well in the silence of the good days and the Big Neoliberal Game of the World,
bem no silêncio dos dias bons e se per- Jogo Neoliberal do Mundo, aquele que gets lost in the chaos of the bad ones. the one we keep playing the same way
de na confusão dos dias maus. Que até continuamos a jogar da mesma forma That until recently took pride in not be- the First World War soldiers fought un-
há pouco tempo se orgulhava de não ser que os soldados da Primeira Guerra ing purely intergovernmental nor com- til the very end: without knowing why.
nem puramente intergovernamentalista Mundial a continuavam a lutar até ao pletely federalist and ended up having In the 1982 film, Gandhi said “there
nem completamente federalista e afinal fim: sem saber porquê. an identity crisis which paralyzed it. is no people on Earth who would not
acabou por ter uma crise de identidade No filme de 1982, Gandhi dizia “the- What kind of Europe is this, where prefer their own bad government to the
que a paralisou. re is no people on Earth who would not the problem was “Greek” until the good government of an alien power”.
Que raio de Europa é esta em que o prefer their own bad government to the moment where it inevitably became By sneering at the fate of the Greeks,
problema foi “grego” até ao momento em good government of an alien power”. “European”? both the European institutions and
que, inevitavelmente, ele era “europeu”? Ao desdenhar do destino dos gregos, After the generations that shaped Germany inarguably presented them-
Depois das gerações que a molda- as instituições europeias e a Alema- it, this union of European countries selves as just that: a foreign power who
ram, esta união dos países europeus nha apresentaram-se indiscutivelmente lives in the peculiar situation of re- manipulates another country at its will,
vive a condição esdrúxula de persistir como isso mesmo, um poder estrangei- maining void of Europeanists. It has torturing it beyond measure in order to
esvaziada de europeístas. Ela tem bu- ro que manipula a seu bel-prazer um bureaucrats, it has politicians defend- satisfy its own political sadism.
rocratas, tem políticos defendendo os outro país, torturando-o além da conta ing their own interests or the interests It was this state of things that al-
interesses próprios ou dos seus países para satisfazer o seu próprio sadismo of their countries (which aren’t always lowed Syriza to show up like Bryan Ad-
(nem sempre os mesmos), mas não tem político. the same), but has no one who can ef- ams, singing Everything I do, I do it for
alguém que aja eficazmente dentro das Foi esse estado de coisas que per- fectively act within the institutions and you to his people. The Sheriff of Not-
instituições pensando a Europa naquilo mitiu que o Syriza aparecesse como o think about Europe into what it should tingham had found his Robin Hood,

16 0 161
Bryan Adams, cantando Everything I and while they played bow and arrow,
do, I do it for you ao seu povo. O Xerife Europe became forever lost.
de Nottingham encontrara o seu Robin After all, the European dream had
Hood e, enquanto eles brincavam ao been no more than that, just a dream,
arco e flecha, a Europa perdia-se para and it ended the moment that one of
sempre. its member countries understood that
Afinal, o sonho europeu não fora its well-being wasn’t the main thing
mais do que isso, um sonho, e o seu fim being taken into account. Europe was
deu-se no momento em que um país no longer theirs either. So now, it is no
membro entendeu que o seu bem estar longer anybody’s. Now, we are on one
não era o valor principal que estava a side and the EU is on the other. The
ser levado em conta. A Europa já não South versus the North. The poor ver-
era deles também. Por isso, agora ela sus the wealthy. In the end, we’ve re-
já não é de ninguém. Agora, estamos turned to a world before EEC: we are
nós de um lado e a UE do outro. O sul all against each other.
contra o norte. Pobres contra ricos. No Alexis Tsipras did everything to play
fundo, voltamos a um mundo pré-CEE: the game. It was appropriately Greek
estamos todos contra todos. and appropriately tragic if we think of
Alexis Tsipras fez tudo para jogar “European institutions” instead of the
o jogo. Foi apropriadamente grego, Olympus, and of “Angela Merkel” in-
apropriadamente trágico, se em vez de stead of Zeus. Syriza told his people
Olimpo pensarmos em “instituições “we are going to fight for you”, and
europeias” e em “Angela Merkel” em that’s what he did, for better or for
vez de Zeus. O Syriza disse ao seu povo worse. And, if we think about it, the
“vamos lutar por vocês”, e foi isso que German side and its followers also have
fez, com melhor ou pior resultado. E, a point: they said “we believe that it’s
se pensarmos bem, o lado alemão e de best for Europe if things work this way”
seus adeptos também tem a sua razão: and they fought for it.
eles disseram “acreditamos que o me- I think that, deep down, we’re all
lhor para a Europa é que as coisas fun- afraid to admit that our world is wrong
cionem assim”, e lutaram por isso. Acho while our certainties go tumbling down.
que, no fundo, o que todos temos medo And we’re frightened by the possibility
de admitir enquanto as nossas certezas that it won’t change before we leave it.
caem é que o nosso mundo está errado,
E amedronta-nos a possibilidade de que Translated by Joana Silva
ele não mude antes de o deixarmos.

16 2 16 3
Lisboa 2016
Impresso / Printed
Maiadouro
500 exemplares
Depósito Legal
302 121/09

Você também pode gostar