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Paisagens  Ocultas  
Notas  sobre  Arte,  Ciência  e  Criatividade  Distribuída  
 
 
 
 
Carlos  M.  Fernandes  
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Título original:
Paisagens Ocultas: Notas Sobre Arte, Ciência e Criatividade Distribuída
Colecção Reflex
©2015 Carlos M. Fernandes
Texto: Carlos M. Fernandes
Revisão de texto e traduções: Carlos Sousa de Almeida
Editor: Susana Paiva | The Porfolio Project
Imagem da capa: © Carlos M. Fernandes, da série Abstracting the Abstract.
Design editorial: Luís Pinto

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Para Inês

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Carlos M. Fernandes
www.carlosmfernandes.com
Nasceu em Luanda em 1973. Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica em 1998 e concluiu um mestrado
em computação bio-inspirada em 2002. Doutorou-se em 2009 com uma tese sobre algoritmos evolutivos.
Entre 1994 e 1996, estudou fotografia e história da fotografia no Ar.Co., Lisboa. Exerce uma actividade
regular em fotografia desde os anos 1990.

Livros
C. M. Fernandes, Kaluptein, Lisboa: IST Press, 2001.
C. M. Fernandes, I-S-T 95-75-15, Lisboa: IST Press, 2006.
C. M. Fernandes, Pherographia, Lisboa: P4Photography, 2009.
C. M. Fernandes, Quia in Inferno Nulla est Redemptio, edição de autor, 2014.
C. S. Almeida e C. M. Fernandes (eds.), O Lápis Mágico: Uma História da Construção da Fotografia, Lisboa: IST
Press, 2014.

Artigos Científicos
C. M. Fernandes, A. M. Mora, J. J. Merelo, A. C.Rosa, «Photorealistic rendering with an Ant Algorithm», Studies in
Computational Intelligence, vol. 577, Springer-Verlag, 2015, pp. 63-77.
C. M. Fernandes, A. M. Mora, J. J. Merelo, A. C. Rosa, «KANTS: A Stigmergic Ant Algorithm for Cluster Analysis
and Swarm Art», IEEE Transactions on Systems, Man and Cybernetics, vol. 44, n.º 6, 2014, pp. 843-56.
A. M. Mora, C. M. Fernandes, J. J. Merelo, «KANTS: A Self-Organized Ant System for Pattern Clustering and
Classification», in Ant Colonies: Behavior in Insects and Computer Applications, Nova Iorque: Nova Science
Publishers, 2011, pp. 195-211.
C. M. Fernandes, «Pherographia: Drawing by Ants», Leonardo, vol. 43, n.º 2, 2010, pp. 107-112.

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Agradecimentos
Este livro deve-se ao convite que a Susana Paiva me fez no ano passado. A ela, quero manifestar o meu
primeiro agradecimento, pelo desafio e por esta colecção exemplar. O agradecimento estende-se ao Luís
Pinto, colaborador do projecto e responsável pela paginação e desenho gráfico da colecção.
Quero também agradecer ao Núcleo de Arte Fotográfica do Instituto Superior Técnico – um dos últimos
redutos da fotografia analógica em Lisboa – o apoio à edição desta obra, e à Fundação para a Ciência e
Tecnologia a bolsa de investigação pós-doutoramento SFRH/BPD/66876/2009, no âmbito da qual este
trabalho foi realizado.
Aos meus colegas do Laboratório de Sistema Evolutivos e Engenharia Biomédica (Instituto Superior
Técnico) e da GeNeura Team (Universidade de Granada) que trabalharam comigo nos sistemas descritos no
livro, deixo também o meu agradecimento, pela colaboração e por todos estes anos de convivência.
O Carlos Sousa de Almeida foi quem fez as traduções das citações que abundam no texto e a revisão do
mesmo. Como se não bastasse, contribuiu com sugestões, sobre a forma, o conteúdo e o estilo, apontando
vícios discursivos e podando os excessos. Sem ele, o livro não seria metade do que é. Obrigado.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ............................................................. 8
DIÁLOGOS ................................................................. 11
CISMAS....................................................................... 19
PONTES ...................................................................... 26
SONHOS...................................................................... 38
 
 
 

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INTRODUÇÃO

Também a ciência, chegada ao termo dos seus paradoxos, deixa de propor e detém-se a contemplar e a
desenhar a paisagem sempre virgem dos fenómenos.

ALBERT CAMUS, O Mito de Sísifo

No princípio era uma ideia simples: agregar num volume da colecção REFLEX um conjunto disperso de
ensaios e comunicações científicas sobre arte e ciência que publiquei entre 2009 e 2014. Feito o convite
pelo The Portfolio Project, comecei a organizar e a reler os textos que poderiam ser incluídos no livro. E
aquilo que parecia simples complicou-se.
Alguns artigos ficaram marcados pelo contexto e pelas circunstâncias em que foram editados e não têm
autonomia suficiente para uma publicação deste tipo. Noutros, encontrei fragmentos irrelevantes, ou
simplesmente mal escritos, com retórica e adjectivação escusadas. Há ainda comentários e analogias que
se repetem em vários textos. Finalmente, os artigos mais relevantes foram escritos em inglês para
publicação académica e a sua inclusão nesta colecção exigiria a retroversão dos textos, ou, mais
prudentemente, um exercício de reescrita. Julguei então ser mais sensato preparar, de raiz, um
documento que resumisse os temas e os conceitos sobre os quais tenho trabalhado, e que, ao mesmo
tempo, ensaiasse outros caminhos, discutindo os resultados mais recentes de uma linha de investigação
pessoal baseada na manipulação de ferramentas de criação alternativas e em sistemas computacionais
autónomos.
Usando como estrutura de base um artigo que na altura em que escrevo este intróito aguarda publicação
no International Journal of Arts and Technology1 (artigo que já era o resultado de quatro anos de
investigação sobre a possibilidade da inteligência artificial colectiva como ponte privilegiada entre a arte
e a ciência), bem como os seminários sobre criatividade computacional que venho leccionando desde
2010 no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), tentei esboçar um texto novo, ainda que, em
grande parte, expondo ideias e hipóteses antigas. E assim nasceu Paisagens Ocultas: Notas Sobre Arte,
Ciência e Criatividade Distribuída.

O TÍTULO PAISAGENS OCULTAS é uma homenagem ao professor, pintor e fotógrafo György Kepes (1906-
2001). Kepes, através do ensino, da escrita e da prática artística, fez uma ponte entre a ciência e as
humanidades em tempos de divergência. Numa primeira fase da sua carreira, trabalhou em Berlim com
o artista húngaro László Moholy-Nagy (1895-1946). Em 1937, emigrou para Chicago, onde foi director
da New Bauhaus.2 Entre 1947 e 1974, período durante o qual esteve ao serviço do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), conviveu com artistas, arquitectos, cientistas e engenheiros num
ambiente multidisciplinar que viria a reforçar a sua convicção na unidade do conhecimento.
                                                                                                                     
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Carlos M. Fernandes, «Pherographs and Other Hidden Landscapes», International Journal of Arts and Technology, a
publicar.  
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A Bauhaus foi uma escola de arte fundada pelo arquitecto alemão Walter Gropius (1883-1969) em 1919. Desde a
fundação até 1925, esteve em Weimar, tendo sido transferida nesse ano para Dessau, e em 1932 para Berlim, onde viria
a ser encerrada definitivamente, pela Gestapo, no ano seguinte. László Moholy-Nagy foi professor na Bauhaus entre
1923 e 1928. Em 1928, foi para Berlim, onde trabalhou como designer e viria a conhecer Kepes. Depois de uma
temporada em Inglaterra, viajou para os Estados Unidos e foi para o Illinois Institute of Technology (IIT), em Chicago,
e ali fundou o IIT Institute of Design, que apodou de New Bauhaus. Kepes foi professor da escola desde 1937 até 1943.  
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Em 1956, publicou o livro New Landscape: in Art and Science, no qual discute as afinidades entre a arte
e a ciência e prossegue a via da estetização da fotografia científica inaugurada no princípio do século
por Moholy-Nagy. A nova paisagem de Kepes é a natureza vista mediante as janelas da microfotografia,
dos raios X, do estroboscópio e dos outros instrumentos usados nos laboratórios científicos da época. É
a paisagem da técnica. E a técnica é a aplicação da ciência.
Na década seguinte à publicação do New Landscape, os computadores ocuparam os laboratórios
científicos e a arte digital deu os primeiros sinais de vida (voltaremos a este tema no Capítulo 4). Com a
generalização dos computadores como ferramenta de investigação e desenvolvimento e o aumento
continuado do poder de cálculo, a ciência da complexidade3 ganhou um campo de experimentação
adequado às características dos sistemas que se propôs estudar. Modelos matemáticos e simulações em
larga escala tornaram possível a compreensão parcial dos mecanismos básicos da complexidade, bem
como dos outrora misteriosos fenómenos de emergência de padrões globais complexos a partir da
interacção de partes simples. E descobriram-se novas paisagens: as formas auto-similares e infinitas por
detrás do conjunto de Mandelbrot, os mapas químicos sob a laboriosa capa da auto-organização das
colónias de formigas, as redes complexas que estruturam a World Wide Web, entre outras. São as
paisagens ocultas do título deste livro.
A arte generativa, que se refere à criação artística baseada em sistemas (ferramentas) com um certo grau
de autonomia, move-se hoje, em parte, nestes cenários da complexidade. Termos como arte evolutiva ou
arte de enxame são usados para descrever os trabalhos criativos que recorrem às teorias e aos modelos
desenvolvidos nos laboratórios de computação evolutiva e de inteligência de enxame,4 respectivamente.
Esses trabalhos reproduzem muitas vezes, directa ou indirectamente, o estado dos modelos em
determinada fase do seu progresso ou usam esse mesmo estado como suporte (físico ou informativo)
para a construção de outras estruturas. Quando assim acontece, podemos falar de um instantâneo do
modelo, uma imagem de um determinado ponto do seu espaço-tempo virtual.
Porque demonstra uma aptidão intrigante para sondar novos mundos e registar os seus estados e
transições de estado, e porque é um produto da ciência, o conjunto de instrumentos usado neste tipo de
arte generativa pode ser entendido como um parente, ainda que distante, da fotografia (e de outras
técnicas de visualização da natureza). Terá herdado a capacidade de estar em permanente diálogo com
as duas culturas, a ciência e as humanidades? Sem ter uma tese central, este livro aventa, no entanto,
essa hipótese: a arte generativa é hoje um meio de comunicação entre a arte e a ciência, um espaço de
criação e pesquisa que vai além do acesso a técnicas de vanguarda, agregando discursos
simultaneamente científicos, artísticos e filosóficos. A complexidade e as técnicas de visualização dos
sistemas, quando integradas no panorama geral da arte generativa, formam, sem dúvida, uma linha de
comunicação entre arte e ciência.
Ainda que possa seguir um rumo argumentativo que termina numa alegação (irresoluta), Paisagens
Ocultas não deixa de ser um conjunto de notas, entre factos históricos e especulações arriscadas, que
anuncia mais dúvidas do que certezas. É um livro de notas sobre arte, ciência e criatividade. Ou
criatividade distribuída: entre os criadores e as ferramentas de criação. Ferramentas que incorporam
incerteza, erro, novidade e mudança, e que oferecem um meio alternativo para a exploração do espaço
de possibilidades.

PARTINDO DE TRÊS TEMAS fundamentais — a unidade do conhecimento, o cisma entre a ciência e as


humanidades, a arte generativa —, dividi as notas por quatro capítulos. A natureza da criatividade é uma

                                                                                                                     
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A ciência da complexidade é o estudo científico dos sistemas complexos, isto é, dos sistemas compostos por
elementos que interagem e conduzem o sistema a um estado crítico, no qual emergem comportamentos e padrões
globais que não podem ser facilmente explicados pelas características dos elementos. O cérebro, os mercados, as redes
de telecomunicações, as cidades, os ecossistemas e as colónias de insectos sociais (como as formigas, as térmitas e as
abelhas) são exemplos de sistemas complexos. No Capítulo 4, discutiremos alguns destes sistemas.  
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A computação evolutiva e a inteligência de enxame são dois ramos da inteligência artificial associados também à
ciência da complexidade (voltaremos mais tarde, e com mais detalhes, a estes conceitos).  
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preocupação constante ao longo do livro: primeiro, como espaço comum entre a arte e a ciência; depois,
como espaço alargado à hipótese de uma criatividade distribuída e simbiótica entre homem e máquina.
A fotografia tem um papel central na exposição dos argumentos. A razão é evidente: é um meio
privilegiado de diálogo entre as duas culturas. A fotografia não é arte nem é ciência, mas assiste uma e
outra e, por vezes, as origens e os propósitos da imagem técnica esbatem-se na região de fronteira.
Projectos fotocientíficos como as imagens múltiplas do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-
1904) ou as experiências cinéticas do engenheiro Harold Edgerton (1903-1990) são hoje obras
fundamentais na História da Fotografia. Mesmo o movimento pictorialista, que tentou levar a fotografia
para os terrenos da pintura, recorreu aos mais variados artifícios químicos para fazer valer os seus
intentos e foi em grande parte um movimento amparado pela técnica e pela experimentação
protocientífica.
Finalmente, e como já referi em cima, a continuidade aparente entre a fotografia e as novas técnicas de
visualização de sistemas complexos que se utilizam no âmbito da arte generativa impõem a presença da
técnica fotográfica em qualquer tentativa de discurso sobre essas novas artes científicas.

FEITA A INTRODUÇÃO, vejamos então o estado da arte. Um dos temas deste livro pode resumir-se na
seguinte questão: há uma diferença significativa entre a criatividade orientada para a ciência e a
criatividade na arte? As últimas gerações formadas nas humanidades, desde os românticos aos pós-
modernos, foram ensinadas a acreditar que sim, que a criatividade científica e artística são
fundamentalmente diferentes. Foram até condicionadas a pensar que não há lugar para a criatividade na
ciência, que a ciência é uma receita reducionista aplicada com rigor mecânico, com regras muito
próprias e intransponíveis, incompatível com as mentes especulativas e aniquiladora da criatividade. E
quando introduzimos os computadores e a inteligência artificial no debate, o cepticismo dá lugar à
incredulidade e à rejeição.
Apesar dos aparelhos que nos reconciliaram com a ciência e a técnica, e não obstante a crescente
cumplicidade entre agentes científicos, artísticos e literários, é este o estado da arte. Nem sempre foi
assim. No Renascimento e no Século das Luzes, não havia compartimentos exclusivos para cada cultura.
Comecemos então pelo Renascimento – não deixando de olhar a montante –, e pelo polímato, símbolo
perdido da unidade do conhecimento.

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DIÁLOGOS

A maior empresa da mente sempre foi e sempre será a tentativa de ligação das ciências com as
humanidades.
EDWARD O. WILSON, A Unidade do Conhecimento: Consiliência

A ciência moderna surgiu no Renascimento e fez-se adulta com o Iluminismo. Quando Leonardo da
Vinci (1452-1519) recuperou as proporções anatómicas ideais projectadas por Marco Vitrúvio (80-70
a.C.- ca. 25 a.C.) e desenhou o Homem Vitruviano, não existia ainda uma divisão clara entre a ciência e
as humanidades. Baseada na observação do mundo e na formulação de princípios, e orientada no sentido
de uma melhor compreensão da vida e da natureza, a pesquisa científica de Leonardo era, ainda assim,
pré-moderna: estava estreitamente ligada à arte, tinha uma frágil constituição teórica e dava os primeiros
passos no empirismo metódico. Leonardo estava entre a filosofia natural e a ciência, entre a cosmogonia
aristotélica e as revoluções protagonizadas por Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-
1642) e Francis Bacon (1561-1626). Porém, o seu talento multidisciplinar, curiosidade infinita e poder
de observação, aliados a uma inteligência invulgar, deixaram para a posteridade uma colecção de
contributos que assentavam num diálogo permanente entre culturas, e que por isso eram transversais a
quase todo o alcance do conhecimento humano, desde a matemática às artes, passando pela engenharia e
pela literatura. Na política e na ciência moderna governa a máxima: divide et impera. O conhecimento
pré-científico unia-se para reinar.
Leonardo foi um polímato, termo que deriva das raízes gregas polys (muito) e manthanein (aprender) e
que é atribuído, desde o século XVII, aos indivíduos eruditos com conhecimentos sólidos em diversas
áreas. Pintor, escultor, matemático, engenheiro, arquitecto e músico, Leonardo realizou ainda estudos de
anatomia, botânica e geologia, desenhou mapas para os seus patronos e chegou a projectar um autómato
humanóide, num esboço que esteve perdido durante séculos e viria a ser reencontrado em 1957 pelo
historiador Carlo Pedretti (n.1928).
Mark Elling Rosheim (n.?), engenheiro mecânico especializado em robótica, construiu um protótipo da
máquina em 2002. Depois de estudar exaustivamente os livros de notas e as invenções de Leonardo,
Rosheim concluiu que o robô, tal como os outros autómatos atribuídos ao génio de Da Vinci, é mais
sofisticado do que se pensava até há pouco tempo. Contudo, a sua sofisticação emerge de uma estrutura
elementar. Baseado num sistema de roldanas, cabos e rodas dentadas, o robô segue princípios básicos de
engenharia: é simples e não tem partes redundantes ou supérfluas. Boa engenharia, de uma época em
que a engenharia era uma arte.

A PALAVRA ROBÔ deriva do eslovaco robota, que significa «trabalho árduo», e foi usada em 1921 pelo
dramaturgo checo Karel Čapek (1890-1938) na peça R.U.R. (acrónimo de Rossum’s Universal Robots).
O termo vingou e é hoje utilizado para descrever as máquinas que, com maior ou menor aparência
humana, apresentam algum tipo de motricidade e autonomia. Curiosamente, os R.U.R. não são robôs no
sentido estrito do termo, mas sim andróides, ou criaturas de um Frankenstein sofisticado, porquanto são
constituídos por elementos orgânicos. No final da peça, rebelam-se contra a sua condição e os seus

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criadores, como o fizeram o monstro de Mary Shelley (1797-1851),5 o Maschinenmensch6 de Fritz Lang
(1890-1976), ou os andróides7 de Philip K. Dick (1928-1982). Na imaginação popular, as três leis da
robótica, estabelecidas pelo escritor e químico Isaac Asimov (1920-1992) no conto de ficção científica
«Runaround» (1942),8 soçobram sempre nas teias da autoconsciência. O medo da máquina projecta-se
na sua antropomorfização.
A robótica (e a pré-robótica), talvez por propor quimeras e induzir ansiedades relacionadas com a
natureza humana, parece caminhar entre as duas culturas. A sua origem remonta à Antiguidade clássica.
Na Grécia Antiga, houve máquinas autónomas idealizadas como acessórios da mitologia e outras que
não passaram de intenções conceptuais. No entanto, desse período, ficaram também registos de
autómatos funcionais, como as pombas movidas a vapor do filósofo e matemático grego Arquitas (428
a.C-347 a.C.) ou as máquinas hidráulicas de Filão de Bizâncio (280 a.C.-220 a.C.). Além disso, uma
significativa parte do tratado de mecânica de Herão de Alexandria (ca.100 d.C.) é dedicada a estes
mecanismos, alguns deles com potencial aplicação prática.
Depois, o gosto pelos autómatos viajou para o Oriente e foi transmitido aos Bizantinos e aos Árabes.
Estes últimos trabalharam a técnica e levaram-na desde a Antiguidade até à Idade Média. A engenharia
medieval também se interessou pelo tema, mas foi no Renascimento que a arte e a ciência das máquinas
autónomas encontraram um ambiente favorável para prosperar. Começou a discutir-se, e a questionar-
se, as diferenças entre os seres humanos e os objectos que se movem como os humanos. No final do
Renascimento, já em plena época das revoluções científicas, o Discurso do Método9 de Descartes deu
uma caução teórica a estes debates e preparou o terreno para os autómatos modernos. Veio então o
século XVIII, período em que se deram avanços significativos na construção de robôs, enquanto se
travavam intensas discussões sobre a natureza mecanicista do homem. Com o avanço técnico e as
controvérsias teóricas e filosóficas, despontava uma caricata galeria de máquinas, da qual a mais famosa
é, provavelmente, o pato mecânico de Vaucanson.

O INVENTOR FRANCÊS Jacques Vaucanson (1709-1782) chegou a Paris com vinte e seis anos de idade.
Versado em relojoaria e anatomia, e influenciado pela filosofia dualista de Descartes – que, de acordo com
uma lenda, também desenhou um autómato, uma boneca mecânica a que chamou Francine –, Vaucanson
propôs-se construir figuras anatómicas moventes («anatomies mouvants») para os médicos e os cirurgiões
praticarem o seu ofício. A ciência aplicada punha-se ao serviço da ciência, numa espécie de oroboros
técnico. (Noutros casos, a técnica precede a ciência, como aconteceu mais tarde com a máquina a vapor e a
termodinâmica. Voltaremos ao tema no Capítulo 2.)
A realidade, contudo, não cooperou. O financiamento necessário para levar os projectos a bom termo falhou
e Vaucanson virou-se para o espectáculo. Entre 1737 e 1738, construiu um pato e dois músicos artificiais e
apresentou-os à Académie des Sciences. O êxito foi considerável, não só junto do público leigo, como
também nos círculos literatos. O pato era um prodígio técnico para a época, com quatrocentas partes móveis
e um aparelho digestivo artificial (por isso se chamava Canard Digérateur, ainda que a digestão não fosse
mais do que um truque de feira). Foi particularmente apreciado pelas audiências e fez digressões na Europa,
tendo sido aclamado por onde passou. Com o tempo, deteriorou-se, avariou, foi reparado, mais tarde perdido
e depois recuperado. Goethe (1749-1832) viu-o em 1805, na colecção privada do químico alemão Gottfried
Christoph Beireis (1730-1809). Em 1844, fez a última aparição formal, na Exposição Universal que teve

                                                                                                                     
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Ver Mary Shelley, Frankenstein; or, The Modern Prometheus, Londres: Lackington, Hughes, Harding, Mavor &
Jones, 1818.  
6
Ver o filme Metropolis (1927), do realizador alemão Fritz Lang.  
7
Ver Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep?, Nova Iorque: Doubleday & Company, 1968.  
8
Isaac Asimov, «Runaround», Astounding Science Fiction, Março de 1942, pp. 94-103. Mais tarde publicado nas
colectâneas I, Robot (1950), The Complete Robot (1982), The Asimov Chronicles: Fifty Years of Isaac Asimov (1889) e
Robot Visions (1990). O termo robótica foi usado pela primeira vez neste conto de Asimov.  
9
O título completo da obra de Descartes é Discurso do método de bem conduzir a razão e de procurar a verdade nas
ciências; mais a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, que são os ensaios deste método, e foi publicada em Leiden, na
Holanda, em 1637.  
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lugar no Palais Royal, em Paris. Foi depois avistado num museu de Cracóvia, onde viria a sucumbir a um
incêndio, em 1879.
Em meados do século XX, nos arquivos do Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, foi
encontrado um conjunto de fotografias do pato artificial. A autenticidade do modelo que se vê nas imagens
tem sido posta em causa, e pensa-se que pode tratar-se da réplica construída pelo relojoeiro alemão Johann
Bartholome Rechsteiner (1810-1893) entre 1840 e 1844. Na verdade, as aparições posteriores da máquina,
incluindo a do Palais Royal, estão turvadas pela sombra da dúvida: seria o palmípede mecânico de
Vaucanson ou a cópia de Rechsteiner? A objectividade da imagem técnica sempre foi um atributo exagerado.
Porém, seja qual for o pato que aparece nas fotos, é notório que estava em ruínas. A fotografia foi inventada
demasiado tarde para nos deixar uma memória imagética fiável do pato de Vaucanson, um dos melhores
exemplos da técnica dos autómatos aplicada ao entretenimento. Mais tarde, a ciência aplicada, a arte e o
espectáculo voltariam a encontrar-se e a animar auditórios. Era o cinema, e pela sua tela passaram quase
todos os autómatos e andróides que ocupam o imaginário popular.
Os autómatos são hoje uma componente fundamental da investigação em inteligência artificial e as
aplicações práticas são cada mais vez mais comuns. Há robôs humanóides, seguindo a tradição
antropomórfica da engenharia medieval, e autómatos celulares, que são apenas abstracções matemáticas sem
corpo físico, com aplicações na criptografia e nas ciências da computação. Entre estes dois extremos há uma
miríade de robôs, dos mais diversos tamanhos e feitios, e concebidos para diferentes objectivos. Na arte
generativa também há robôs, como veremos no Capítulo 4.

OS ROBÔS E OS AUTÓMATOS são produtos da engenharia. E a engenharia, como a arte, é um território de


criatividade intrínseco à condição humana. Despertou com a alvorada do Homem e afirmou-se com a
civilização: da invenção da roda à nave Apollo há uma continuidade assente no engenho. Na abertura do
filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, o cineasta norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999) fez mesmo
uma associação simbólica entre um artefacto pré-humano e uma nave espacial. A inventividade manifesta-se
tanto na simplicidade como na sofisticação e a engenharia, tal como a criação artística, é um fenómeno
cultural, capaz de assimilar o passado e projectar o futuro.
Marco Vitrúvio foi quem fez a síntese da estética e da engenharia na arquitectura. Em De architectura,
considerado o mais antigo tratado sobre o tema, Vitrúvio estabeleceu três princípios para o mester: firmitas,
utilitas, venustas. Solidez, utilidade, beleza. A solidez e a utilidade eram normas da engenharia. A beleza, às
vezes, por inspiração do engenheiro ou como produto involuntário da funcionalidade (a «forma segue a
função» de Louis Sullivan10 aplicada à engenharia). Ao caminharmos hoje pelas principais cidades do
mundo, não podemos deixar de pensar que a venustas foi esquecida pela arquitectura vernacular
contemporânea. Com a especialização e a compartimentação do conhecimento, a arquitectura resume-se
novamente à engenharia utilitária. A forma já não segue a função.
Leon Battista Alberti (1404-1472) foi arquitecto, além de pintor, músico, escultor, poeta e criptógrafo: um
polímato, portanto. Escreveu um livro sobre escultura, De statua (1464), e outro sobre arquitectura, De re
aedificatoria (1485), mas foram os estudos sobre a perspectiva, nomeadamente a enunciação da teoria da
perspectiva linear publicada em De pictura11, que o puseram no centro das revoluções renascentistas. Antes,
a perspectiva linear havia sido intuída – pelo pintor Ambrogio Lorenzetti (ca.1290-1348), na Anunciação
(1344) –, e descoberta12 – pelo arquitecto e engenheiro Filippo Brunelleschi (1377-1446). Alberti
formalizou-a.
Não será exagero dizer que as experiências do Brunelleschi com os espelhos perfurados, diante do
Baptistério de São João, em Florença, mudaram o curso da História da Arte (ou, pelo menos, desencadearam
a mudança inevitável) e estabeleceram as bases para a pintura do Renascimento e do Barroco: a perspectiva e
a aparência tridimensional. O ponto de vista múltiplo da arte medieval dava lugar à ilusão de um espaço visto
                                                                                                                     
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Louis Sullivan (1856-1924). Arquitecto norte-americano.  
11
Leone Battista Alberti, De pictura, 1435; publicado em latim, foi depois traduzido para italiano e editado com o título
Della Pittura (1436).  
12
Talvez seja mais rigoroso dizer redescoberta, pois os Gregos e os Romanos já entendiam a perspectiva linear. No
entanto, o seu conhecimento e uso perdeu-se na Idade Média.  
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através de uma posição única e fixa. O individualismo, condição fulcral do humanismo renascentista,
consubstanciava-se no observador solitário da pintura renascentista.

NO SÉCULO XV, a ciência, a arte e a técnica convergiram para mudar o panorama das artes visuais. A
revolução artística começou com o jogo de espelhos do Brunelleschi, mas a influência da técnica na moderna
representação visual foi mais abrangente. A camera obscura, por exemplo, instrumento dos astrónomos
antigos e futuro suporte mecânico da fotografia, teve um papel muito importante nos percursos da pintura
ocidental.
A camera obscura foi «a máquina fotográfica» antes da invenção da fotografia. O dispositivo óptico que
viria a condicionar a forma como interpretamos o mundo não podia ser mais simples: uma caixa e um furo.
A luz e as leis da física fazem o resto: aponte-se a face com o furo para um cenário iluminado, e a imagem
vai aparecer, invertida, na face oposta da caixa. A imagem é efémera como o reflexo num espelho, mas com
uma tela fotossensível posta sobre a superfície que serve de pantalha, com o manejo químico adequado e
seguindo o método correcto, podemos obter um desenho de luz. Thomas Wedgwood (1771-1805) foi o
primeiro a tentá-lo. De acordo com o químico inglês Humphry Davy (1778-1829),13 não conseguiu repetir
com a camera obscura aquilo que havia feito por contacto directo.14 E mesmo que o tivesse conseguido, a
proeza ficaria incompleta: Wedgwood não sabia conservar (fixar) as imagens. Como gatos de Schrödinger
agoirados, as fotografias de Wedgwood não tinham qualquer hipótese de sobrevivência. Abrir a caixa era
condená-las a morrer com a luz que as criava.  
A fotografia teve de esperar pelas pesquisas do cientista inglês John Herschel (1792-1871), que, em 1819,
publicou um artigo em que descrevia as propriedades do hipossulfito de sódio como dissolvente dos sais de
prata.15 Em 1839, animado pelas notícias das experiências de Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851) e
de William Henry Fox Talbot (1800-1877), regressou ao tema e testou pela primeira vez um procedimento
fotográfico que usava o hipossulfito para fixar as provas.16 Nos meses seguintes, Daguerre e Talbot adoptaram a
solução de Herschel, e a fotografia convertia-se, finalmente, num processo exequível. Mas quando Johann
Heinrich Schulze (1687-1744) fez fotogramas com letras recortadas e coladas em garrafas cheias com cloreto
de prata e ácido nítrico, quando a daguerreotipia ainda era um sonho de Niépce (1765-1833), já o apparatus
estava preparado para receber a invenção futura. E, enquanto esperava, deixava-se usar como ferramenta
para outras artes.
A camera obscura renascentista, portável e com plena desenvoltura óptica (tinha agora uma lente no lugar do
furo), é um auxiliar de desenho, uma base sofisticada para calcar por transparência. Através da lente, a
imagem é projectada num espelho, que por sua vez a reenvia para um vidro despolido. Sobre esse vidro, o

                                                                                                                     
13
Humphry Davy, «An Account of a method of copying Paintings upon Glass, and of making Profiles, by the agency of
Light upon Nitrate of Silver. Invented by T. WEDGWOOD, ESQ. With Observations by H. DAVY in Tom Wedgwood,
the first photographer; an account of his life, his discovery and his friendship with Samuel Taylor Coleridge, including
the letters of Coleridge to the Wedgwoods and an examination of accounts of alleged earlier photographic discoveries»,
Journals of The Royal Institution, volume I, 1802, pp. 189-194. (Ver Carlos Sousa de Almeida e Carlos M. Fernandes
(eds.), O Lápis Mágico: Uma História da Construção da Fotografia, Lisboa: IST Press, 2014, pp. 34-37.)  
14
No final do século XVIII, Thomas Wedgwood, filho do famoso ceramista inglês Josiah Wedgwood (1730-1795),
conseguiu fazer fotogramas – imagens realizadas directamente em base fotossensível, sem a intermediação do aparelho
fotográfico. Mas não sabia como fixar a imagem, isto é, como remover os sais de prata que não são escurecidos pela
luz.  
15
Ver John F. W. Herschel, «On the Hyposulphurous Acid and its Compounds», Edinburgh Philosophical Journal, vol.
1, 1819, pp. 8-29. Em Alfred Brothers, «Note on the First Use of the Hyposulphite of Soda in Photography», The
British Journal of Photography, vol. 13, 18 de Maio, 1866, p.236, que transcreve parcialmente o primeiro, pode ler-se:
«Uma das qualidades características mais singulares dos hipossulfitos é a propriedade que as suas soluções possuem de
dissolver o muriato de prata e de o conservar em quantidades consideráveis na solução permanente.» (Ver Carlos Sousa
de Almeida e Carlos M. Fernandes (eds.), O Lápis Mágico: Uma História da Construção da Fotografia, Lisboa: IST
Press, 2014, p. 42.)  
16
As experiências e os resultados foram publicados em John F. W. Herschel, «Note on the Art of Photography, or the
application of the Chemical Rays of Light to the purposes of Pictorial Representation», The Athenæum, n.º 595, 23 de
Março, 1839, p. 223. (Ver Carlos Sousa de Almeida e Carlos M. Fernandes (eds.), O Lápis Mágico: Uma História da
Construção da Fotografia, Lisboa: IST Press, 2014, pp. 38-40.)  
14
15

desenhador põe uma folha de papel suficientemente translúcida para permitir o traço imitador. O
procedimento é semelhante ao das modernas máquinas fotográficas SLR.17 Nestas, a imagem incide sobre
um espelho, colocado a 45º em relação ao plano de focagem, que a reflecte para um despolido de focagem.
Quando o obturador é activado, o espelho move-se e a imagem fica registada (em modo latente) na película.
A mesma luz, o mesmo aparelho, e a prata como substituto do lápis do pintor.
O interesse dos pintores renascentistas nos dispositivos ópticos não se restringia à tentação da cópia e da
reprodução fidedigna dos detalhes. Os artistas procuravam insistentemente os jogos visuais entre objectos e
espelhos, os efeitos de perspectiva e de distorção, os exercícios com a posição do observador. O quadro de
Hans Holbein (1497-1543), Os Embaixadores, pintado em 1533, retrata duas figuras de pé, apoiadas numa
estrutura de madeira. No solo, há um elemento estranho, que parece estar representado numa perspectiva
distinta do resto da imagem. Na realidade, trata-se de um crânio humano em perspectiva anamórfica, uma
projecção distorcida da forma original que requer um dispositivo óptico ou um ângulo de observação pouco
convencional para ser reconstruída visualmente. Os artistas renascentistas estavam bem informados dos
avanços no campo da óptica e faziam os seus próprios ensaios criativos.
Posteriormente, inventaram-se mais aparelhos ópticos com aplicações no desenho e na pintura, prolongando
o período histórico das indagações sobre a natureza da imagem, da luz e da perspectiva. A camera lucida,
por exemplo, patenteada em 1803, é uma estrutura de espelhos que faz uma justaposição ilusória do objecto
de estudo com a superfície de desenho. O espelho de Claude, popular nos séculos XVIII e XIX, também
pode ser incluído na colecção de auxiliares técnicos de pintura e de desenho, embora, neste caso, o propósito
passe pelo rearranjo da escala tonal e simplificação das cores, a fim de conferir à imagem qualidade pictórica
e não pelo realismo ou pela reprodução rigorosa dos detalhes. Poderíamos ainda falar sobre aparelhos
mecânicos como o pantógrafo ou o fisiotraço, inventados em 1603 e em 1786, respectivamente, e que
permitiam a qualquer pessoa, mesmo quando desprovida de talento natural para o desenho, esboçar uma
paisagem ou um retrato. No entanto, o dispositivo técnico que mais influenciou o curso da arte pós-medieval
foi sem dúvida a camera obscura. A sua presença nas correntes principais da pintura prolongou-se muito
além do Renascimento, tendo deixado marcas no Barroco e na Escola de Veneza. Johannes Vermeer (1632-
1675), Cannaletto (1697-1768) e Francesco Guardi (1712-1793), entre outros, exploraram as propriedades da
camera obscura e de outros dispositivos ópticos, e pensa-se que terão encontrado no aparelho um meio
auxiliar de reprodução realista e de apuramento dos detalhes.18
Quando a fotografia apareceu, houve quem se pronunciasse contra o carácter mecânico do novo método,
incompatível com a ideia de belas-artes e verdugo da pintura. Porém, a ponte entre as duas formas de
representação pictórica já havia sido levantada pelos artistas que levavam a camera obscura a tiracolo
quando saíam do estúdio e traziam de volta a perspectiva fotográfica. Se é certo que, no final do século XIX,
a fotografia tentou imitar a pintura (veja-se o movimento pictorialista), também é verdade que a pintura já
havia imitado a fotografia. E ainda antes de esta ser inventada.

NO RENASCIMENTO, como vimos, a arquitectura, a geometria e a pintura estavam em permanente diálogo, e


dessa comunicação resultou um salto teórico que mudou a forma como a arte interpretava o mundo. Os
contributos decisivos foram dados por homens instruídos, simultaneamente, nas mais diversas disciplinas. A
unidade de conhecimento foi o combustível das revoluções renascentistas e os polímatos os seus
navegadores.
O polímato é sinónimo de homem do Renascimento, mas a transversalidade de competências é antiga. O
período de ouro do Islão, compreendido entre os séculos VII e XIV, trouxe técnica e conhecimento, deixando
registos de alguns dos mais importantes polímatos da Idade Média, como Al-Kindi (ca. 801-873), Ibn al-
Haytham (965-1039) e Ibn Rushd (1126-1198). Os três, educados na filosofia, na ciência e na arte, deram
                                                                                                                     
17
Single-lens Reflex (SLR): câmara reflex monobjectiva.  
18
Ver David Hockney, Secret Knowledge: Rediscovering the Lost Techniques of the Old Masters, Londres: Thames and
Hudson, 2006. Sobre Vermeer e a camera obscura, não há consenso. A tese de Hockney sobre a utilização directa do
instrumento nas obras de Vermeer não está demonstrada nem é aceite por toda a comunidade artística e científica, mas
parece claro que o pintor estava familiarizado com a camera obscura e que esta, de certa forma, treinou-lhe o olhar no
sentido de uma perspectiva e de uma luz com características fotográficas.  
15
16

contributos relevantes em vários domínios, incluindo a óptica; Ibn al-Haytham fez mesmo o primeiro estudo
e descrição da camera obscura.
A ciência árabe, que recuperou a filosofia natural grega, era fundamentalmente aristotélica, e, nesse sentido,
claramente pré-moderna. Só com Copérnico e Galileu é que houve uma ruptura definitiva com a explicação
aristotélica do mundo. Em 1543, a publicação da obra de Nicolau Copérnico De revolutionibus orbium
celestium inaugurou uma nova era científica, e às transformações que se seguiram convencionou-se chamar
revoluções. Em Itália (que ainda não era a Itália actual), as revoluções tiveram um protagonista: Galileu
Galilei. Mas apenas um. Ao contrário do que aconteceu na arte, as revoluções científicas do Renascimento
não ficaram associadas quase exclusivamente à península italiana.
Fernand Braudel (1902-1985), historiador francês que fez do Mediterrâneo um dos seus objectos favoritos de
pesquisa, escreveu: «De 1450 a 1650, durante dois séculos particularmente movimentados, a Itália das
muitas cores, todas elas cintilantes, irradiou para além dos seus próprios limites e a sua luz espalhou-se pelo
mundo.»19 De «1450 a 1650» é, aproximadamente, o período que está compreendido entre o nascimento de
Leonardo (1452) e a morte de Galileu (1642). O primeiro é o arquétipo do polímato, símbolo perdido da
unidade e do diálogo entre culturas; Galileu é o primeiro cientista moderno. Um e outro balizam a glória de
Itália e de uma época de diálogo entre ciência, técnica, artes e humanidades.
Se a arte renascentista foi essencialmente italiana, estendendo a glória para os séculos posteriores, o mesmo
não se pode dizer da ciência moderna, que, arrastada pelas ideias de Descartes e de Francis Bacon (1561-
1626), pais-fundadores do método científico, se deslocou para o centro e norte da Europa, enquanto a Itália e
o sul caíam numa letargia civilizacional, avessa à ciência e à inovação. Não sabemos se a causa foi
circunstancial (o confronto de Galileu com a Inquisição), ou um sintoma de uma incompatibilidade
setentrional com a investigação metódica, reducionista e conjectural. Sabemos apenas que, após a morte de
Galileu, em 1642, o sul europeu não voltou a acolher um génio da ciência. Entretanto, no dia de Natal desse
mesmo ano, nascia, em Woolsthorpe-by-Colsterworth, Inglaterra, o maior génio científico da Idade
Moderna: Sir Isaac Newton.

ISAAC NEWTON FORMULOU as leis da gravitação em 1684. Três anos mais tarde, enunciou as leis do
movimento e publicou tudo em Philosophiae naturalis principia mathematica, que incluía ainda a
demonstração das leis de Kepler do movimento planetário. Com estas formulações, cumpriam-se as
revoluções científicas, consolidava-se a estrutura da ciência moderna e demonstrava-se que há uma ordem no
caos aparente do universo. E que podemos decifrá-la.
As bases para uma nova configuração do conhecimento estavam erguidas. As ferramentas cartesianas e
baconianas – o reducionismo, o método científico, o empirismo, a indução – funcionavam e desvendavam os
segredos da natureza. Do lado da filosofia, Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704)
pavimentavam o caminho para o primado do indivíduo e da razão: o Século das Luzes, último estertor da
Idade Moderna.
Época científica por vocação («A ciência foi o motor do Iluminismo», escreveu E.O. Wilson20), o
Iluminismo acalentou o sonho da consiliência: a convergência e a unidade do conhecimento, a ambição de
agrupar todas as ciências, todas as artes, todas as visões do mundo num conjunto consistente, auto-
explicativo, numa árvore estruturada e coerente. O saber queria-se enciclopédico e as enciclopédias das
Luzes, fundadoras do conceito contemporâneo do termo, tinham títulos a condizer: Enciclopédia ou
Dicionário Crítico das Ciências, Artes e Ofícios;21 Grande e Completa Enciclopédia Universal de Todas as
Ciências e Artes que Foram Descobertas e Melhoradas Graças à Compreensão e Engenho Humanos;22
Enciclopédia Britânica; ou um Dicionário das Artes e Ciências compilado segundo um novo plano.23
                                                                                                                     
19
Fernand Braudel, O Modelo Italiano, Lisboa: Teorema, 1995, p. 5, trad. Telma Costa.  
20
E.O. Wilson, Consilience: The Unity of Knowledge, Nova Iorque: Vintage Books, 1999, p. 24.  
21
Trata-se da lendária Encyclopédie organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d’Alembert (1717-
1783). Composta por 33 volumes, foi publicada entre 1751 e 1772.  
22
Publicada pelo livreiro alemão Johann Heinrich Zedler entre 1732 e 1750, em sessenta e quatro volumes.  
23
A Enciclopédia Britânica, a enciclopédia mais conhecida e usada em todo o mundo. Está hoje na sua 15.ª edição. A
primeira edição foi publicada, em fascículos, entre 1768 e 1771.  
16
17

Paralelamente a estes trabalhos de análise, que não hierarquizavam nem dividiam o conhecimento, somente o
estruturavam, despertava um impulso de síntese. Se o método científico conseguia explicar o movimento dos
planetas e prever a passagem dos cometas, por que razão não poderia também elaborar uma descrição formal
da natureza humana, do sentido estético ou das interacções sociais? Com as ferramentas da nova ciência tudo
parecia possível e o diálogo já não era suficiente para uma comunidade intelectual que procurava a unidade
uniformizadora. Uma coisa, no entanto, são as intenções, outra é a História e o universo, sempre renitente em
encaixar nas «teorias de tudo». Ao contrário do que era proposto, o reducionismo, com a achega da
formalização da ciência e da institucionalização dos cientistas, levou a uma compartimentação das
competências. Os três ramos do conhecimento – as ciências naturais, as ciências sociais e as humanidades –
emergiam e consolidavam-se, em contracorrente aos esforços de síntese e unificação. O sonho estava
condenado ao fracasso. E fracassou.
A fragmentação do conhecimento era irreversível e a síntese improvável. Contudo, durante o século XVIII, a
análise enciclopédica e a transversalidade dos estudos manteve as culturas em diálogo. Os cientistas e os
artistas especializavam-se, mas não havia qualquer animosidade entre os dois campos. Com Gottfried
Leibniz (1646-1716), com Benjamin Franklin (1706-1790), e principalmente com o marquês de Condorcet
(1743-1794), paradigma do polímato iluminista, a criatividade permanecia na sua rota multidisciplinar. Os
primeiros sinais de discórdia só apareceram com o romantismo, movimento artístico, literário e filosófico
que surgiu como reacção ao Iluminismo e à Revolução Industrial.
Os românticos viam no método reducionista e na primazia da razão uma afronta à complexidade do espírito
humano, mas não declararam guerra aberta à ciência, e podemos mesmo identificar tendências românticas no
seio das ciências naturais. O químico e cronista das experiências pré-fotográficas de Wedgwood, Humphry
Davy, foi uma das principais figuras do romantismo britânico, tal como o astrónomo William Herschel
(1738-1822), pai de John Herschel. E Goethe, escritor e um dos expoentes do movimento na Alemanha,
repartia a sua vocação para as humanidades com esforçados estudos científicos. No seu diário, escreveu:
«[E]m anatomia estou bastante bem preparado»,24 e ficou conhecido o seu empenho em descrever uma teoria
científica das cores (sem grande sucesso junto da comunidade científica). A ciência era compatível com o
romantismo, ainda que reinventando uma abordagem pré-moderna, holística. A ruptura total veio mais tarde.
O movimento romântico e a ciência holística ganharam ascendente com a Revolução Industrial e as
consequências sociais de uma transformação radical dos meios de produção. À desconfiança em relação aos
fundamentos da ciência moderna juntava-se o medo da máquina. Em 1836, em carta dirigida ao pai, o
arquitecto francês Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879) escreveu: «[O] homem, felizmente, tem horror à
máquina».25 A «máquina» aqui era a máquina fotográfica, ainda por inventar. Corria a notícia de que
Daguerre estaria a aperfeiçoar um processo para registar permanentemente as imagens projectadas na câmara
escura, e Viollet-le-Duc discutia, com o pai, as implicações da descoberta, mostrando-se céptico: «[A]té vê-
lo com os meus próprios olhos (…) não acredito.»26
A ciência aplicada, na figura da máquina, teve um contributo decisivo para a separação de cientistas e
artistas, mas por vezes o alvo eram mesmo os fundamentos do método científico. O poeta romântico inglês
William Blake (1757-1827) nutria uma aversão particular por Newton e escreveu: «A ciência é a árvore da
morte.»27 No poema Lamia, publicado em 1819, o também inglês (e igualmente romântico) John Keats
(1795-1821) arremeteu contra a ciência por esta, presumivelmente, destruir a poesia redentora de um arco-
íris: «Não se esvaem todos os encantos / Ao mero toque da fria filosofia?»,28 e Edgar Allan Poe, no Soneto à
                                                                                                                     
24
Das notas de Goethe sobre a sua viagem a Itália (1786-88). Roma, 20 de Janeiro de 1787: «Em Anatomia estou muito
bem preparado, e adquiri, até certo ponto e não sem trabalho, o conhecimento do corpo humano. Aqui, ao observar
estátuas sem parar, continuo a aprender, mas de maneira mais elevada. A nossa Anatomia médico-cirúrgica trata
simplesmente de conhecer o órgão, e um músculo miserável serve na perfeição. Mas em Roma, os órgãos não
significam nada se, ao mesmo tempo, não oferecem uma forma nobre e bela.» As notas seriam publicadas em 1816-17
no livro Viagem a Itália (Italienische Reise, no original).  
25
Laurent Baridon, Imaginaire scientifique de Viollet-le-Duc, Paris: Editions l’Harmattan, 1996.  
26
Idem.  
27
William Blake, «Appendix to the Prophetic Books (From Blake’s Engraving of the Laocoon)», in John Sampson
(ed.), Poetical Works, Oxford, 1905.  
28
John Keats, The Poetical Works of John Keats, Londres: Bradbury and Evans, 1841, p. 118.  
17
18

Ciência, de 1832, lamentava-se: «Ciência! Do velho Tempo és filha predilecta! / Tudo alteras, com o olhar
que tudo inquire e invade! / Por que rasgas assim o coração do poeta, / abutre, que asas tens de triste
Realidade?»29
Do outro lado, os cientistas afastavam-se das humanidades, fechavam-se nos estritos limites do método e do
racionalismo e preparavam a resposta. Esta viria na forma do positivismo, que, paradoxalmente, terá feito
mais danos à imagem pública da ciência e contribuído mais para a divisão entre cientistas, cientistas sociais e
artistas, do que o romantismo e o holismo dos românticos.

O MOMENTO EXACTO da ruptura entre a ciência e as humanidades não é claro. Hoje, o pós-modernismo
comanda o discurso hostil sobre a ciência, e ainda que essa hostilidade possa ter tido a sua origem nos
movimentos antitecnológicos da segunda metade do século XX, os sinais de um cisma iminente são muito
mais antigos e dispersos. Talvez o jargão dos filósofos românticos tenha afastado os intelectuais que optaram
por manter-se fiéis à clareza de raciocínio e de discurso. Talvez a consolidação definitiva das ciências sociais
tenha levado essas áreas de investigação para um lugar à parte no universo do conhecimento humano,
alargando assim a brecha. Talvez a ameaça nuclear, a partir da Segunda Guerra Mundial, tenha induzido
horror à ciência na sociedade. Ou, possivelmente, tudo tenha resultado de uma convergência de factores
díspares: a especialização, a reacção dos românticos, a contra-reacção dos positivistas, o medo da máquina, a
Revolução Industrial, o obscurantismo, Hiroshima.
Independentemente das causas ou das adversidades da História, a ciência e as humanidades estão
incomunicáveis. Já não há polímatos e as guerras das ciências substituíram o diálogo. Para o observador
comum, falam agora línguas diferentes.
O sarcasmo ou o confronto directo pode ser uma forma de lidar com as atitudes estereotipadas em relação à
ciência, à técnica, às artes e às humanidades. Como Richard Feynman (1918-1988), quando disse, numa
entrevista à BBC: «Tenho um amigo artista que, por vezes, tem pontos de vista com os quais não concordo.
Pega numa flor e diz: "Olha como é bonita", e eu concordo. Mas depois acrescenta: "Eu, como artista que
sou, consigo ver quão bonita a flor é, mas tu, como cientista que és, dissecas a flor e ela perde o fascínio."
Acho que ele é tonto.»30 Outra estratégia passa por argumentar que o método científico é, na verdade, um
método criativo. É o que nos propomos fazer. Mas primeiro vamos tentar perceber o cisma entre a ciência e
as humanidades, as suas consequências e os equívocos sobre os quais assenta.

                                                                                                                     
29
Edgar Allan Poe, Edgar Allan Poe’s Complete Poetical Works, Floating Press, 2012, p.129. Em 1840, Poe viria a
escrever três textos sobre a invenção da fotografia, em tom laudatório. Já «O Retrato Oval», conto publicado em 1842,
podemos interpretá-lo como uma crítica à imagem técnica e à obsessão pela reprodução fiel da realidade.  
30
Richard Feynman, What do You Care What Other People Think?: Further Adventures of a Curious Character,
Londres: Penguin Books, 2007, p. 11.  
18

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