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MINISTÉRIO DO ABSURDO

ou O PODER

“Dentro dos limites adequados, o poder


pode contribuir bastante para a felicidade,
mas, como objetivo único na vida, só leva
ao desastre, tanto interior como exterior.”
(Bertrand Russell - A Conquista da
Felicidade, pág. 19).
“É muito bom ser importante: porém é
muito mais importante ser bom.” (Pe.
Antonio Vieira).
“Ó poder! Ó grandeza! Milhões de olhos
falsos se fixam em ti.” (William
Shakespeare - Medida por Medida).
“Quase todos os homens são capazes de
suportar adversidades, mas se quiser por à
prova o caráter de um homem, dê-lhe
poder." (Abraham Lincoln).
“Precisamos ensinar a nossos filhos que a
consciência não pode ser vendida por nada:
nem pelo poder, nem pelos prazeres deste
mundo e, muito menos por causa do
dinheiro.” (Felipe Aquino - Família,
santuário da vida, pag. 167).

A você leitor que me deu a


honra de ler este livro,

A minha filha Cintia,


pelo apoio e incentivo literário,
alegrias e bons momentos que tive a se lado.

1
NOTA ESCLARECEDORA

Este romance trata de uma história


fictícia. Totalmente fictícia.
Ao escrevê-lo, baseei-me em alguns
fatos e algumas pessoas da vida real.
Entretanto genericamente.
Faço questão de deixar bem claro
que nenhum enredo, cômico ou trágico, foi
retratado exatamente como aconteceu.
Nenhum ou nenhuma personagem é
ninguém precisamente como eu conheci ou
ouvi falar. Tive todo o cuidado para que
não ficasse parecido com ninguém. A
semelhança é mais difícil de proteger, pois
o subjetivo do ser humano fará parecer
pessoas com outras que, para mim, não
teriam nada em comum. Até os nomes, eu
os procurei entre àqueles com menor
incidência. Exceção se faz aos nomes
Antonia e Benedito, pois se trata de uma
homenagem pessoal.
Ministério do Absurdo também é
totalmente fictício, não se parecendo com
nenhum lugar do serviço público em que
trabalhei. Eu o criei para poder movimentar
os personagens que circulam na narrativa.
Como o Mabs não existe, ficou bem fácil
colocar as pessoas.
Infelizmente em todo órgão do
governo existe uma série de absurdos. E
também nas empresas particulares. Nestas,
se houver, há uma grande possibilidade de
vir à falência. É a única diferença. Existem
ainda nos órgãos de comunicação e outros
segmentos.
Como o tema é poder, coloquei a
novela junto ao serviço público, porém esta
poderá acontecer — e acontece — em
empresas privadas. Principalmente as
grandes.
2
As histórias do Mabs infelizmente
existem no Brasil e também no exterior. Sei
disso por relatos que escutei de pessoas que
trabalharam fora de nossas fronteiras,
inclusive no serviço público de lá.
Sobre corrupção, o enfoque foi
simbólico e abstrato. A intenção era
abordar as causas e os envolvimentos. O
subjetivo desse comportamento negativo.

3
ÍNDICE

1 – Os casais conterrâneos se encontram em


Brasília - .
2 – Tentativa de aproximação - .
3 – Festa de aniversário em ônibus coletivo -
.
4 – Fofocas - .
5 – Recém-chegado puxa-saco - .
6 – Matrona jogada nua embaixo de prédio -
.
7 – Ministro do Mabs em entrevista com o
homem mais poderoso do país - .
8 – Origem de Rubião, Secretário mais
poderoso - .
9 – Circe e Corinto se aproximam de Rubião
- .
10 – Cremilda, a amante do Ministro do
Mabs - .
11 – Belarmina, a apetitosa - .
12 – Belarmina rouba parecer de funcionária
competente - .
13 – O filho de Circe e Corinto - .
14 – Funcionário inicia-se na corrupção -
.
15 – Aniversário do filho de Benedito e
Antonia - .
16 – Cremilda e o assédio do motorista e ao
garçom - .
17 – O Eixão - .
18 – Benedito concede função a quem
merece e não a protegido - .
19 –Circe badala a esposa e a amante do
Ministro - .
20 – Circe tem relacionamento sexual com
poderosos - .
21 – Funcionária tem projeto furtado - .
22 – Eixo Monumental - .
23 – O falso moralista - .
24 – Comissão de alto nível Ministerial - .

4
25 – O aniversário de Belarmina. O canto de
poderoso - .
26 – Viagens a serviço. “Todos os ossos do
mundo são meus”. “Jabuti na árvore” - .
27 – A hostilidade ao antigo poderoso - .
28 – Corrupção - .
29 – D. Altiva. A queda de Cremilda - .
30 – As obrigações do ônus do poder. O
preço da inexperiência - .
31 – O sumiço do processo - .
32 – Longe do poder, há salvação - .
33 – O Secretário mais competente - .
34 – Divisão de bolo - .
35 – O parecer de Benedito - .
36 – Muito dinheiro em negócio duvidoso -
37 – A mágica da porta do gabinete - .
38 – Esperteza do casal Corinto e Circe - .
39 – Junior e os desajustes da adolescência -
40 – Ananias tenta deixar a corrupção - .
41 – Ascensão de Corinto e Circe - .
42 – Fuga do estelionatário - .
43 – Herança da Dra. Aurélia e desilusão de
assessor - .
44 – Antonia consegue uma função - .
45 – Posse de Corinto e Circe. E a morte - .
46 – Triste situação da mãe e do filho do
casal morto - .
47 – Estoura a corrupção no Mabs. O caso
“Rubião” - .
48 – Retorno do Poderoso a sua cidade natal
- .
49 – Prisão do Dr. Joab - .
50 - Rubião e sua pena - .
51 – Final de Ananias - .
52 – Belarmina e a cadeia - .
53 – Condenação de Cremilda - .
54 – O que aconteceu com os funcionários
do Mabs - .
55 – Tragédia com a mãe e o filho de
Corinto e Circe - .
56 – Final feliz! - .
5
PRIMEIRA PARTE

Era uma tarde calma. Em Brasília há


seca esturricada ou chuva em demasia.
Nesse dia não havia nem uma nem outra.
Embaixo do apartamento, Antonia
estava sentada num banco de jardim,
enquanto suas crianças brincavam. Suas
roupas eram comuns: um short, uma blusa
de malha e uma sandália.
Circe e Corinto chegam. Antonia vai
ao encontro deles radiante.
— Estou tão alegre com a vinda de
vocês a Brasília. Além de amigos de tantos
anos, somos da mesma terra. Espero que
sejamos como uma família...
— Eu também fiquei contente de
vocês já estarem morando aqui, e
trabalhando no mesmo Ministério do
Absurdo – o nosso Mabs. Espero que vocês
nos dêem todas as dicas daqui... nós nem
sabíamos qual roupa usar...
— Imagine, casa de amigos. Não
precisava arrumação, é que você gosta de
estar sempre elegante. Olha lá o Benedito
descendo do elevador.
Benedito, também vestido com
simplicidade, recebe os dois com
entusiasmo.
— Vocês nos fazem lembrar nossa
terra. Quem não tem amor a suas origens,
não tem amor a ninguém.
— Talvez estejamos atrapalhando,
vocês dois aqui a cuidar destas crianças tão
lindinhas!
— Como é? Vocês preferem ficar
aqui embaixo ou subir para o apartamento?
— Subir. Sei que Circe prefere. Fica
mais reservado.
6
— Não por isso.

Os quatros conterrâneos se sentaram


na sala do apartamento. As crianças
brincam no aposento ao lado. Apesar de
todo o carinho e dedicação que lhes
dedicavam, sabiam impor-lhes os limites
necessários e uma disciplina com bom
senso.
— Quando a Antonia recebeu o
telefonema de Circe falando que vocês
viriam, imaginamos como poderia ser
agradável esta amizade sincera.
— Estes móveis vocês conseguiram
no Ministério?
— Não, tudo nós trouxemos de lá da
nossa terra ou compramos aqui. Só o
apartamento pertence à União. Isso porque
o Benedito foi requisitado para trabalhar
num projeto. Nós lemos, numa revista
especializada, sobre um Concurso de
Monografia, e era justamente o tema que
ele estava estudando há muito tempo.
Mandou e ganhou o 1º lugar. Então
apareceu o tal professor americano Mr.
Honour. Leu o trabalho e ficou
entusiasmado. Por coincidência o Ministro
da época queria pessoas capacitadas para o
assunto. Aí entrou a indicação dele e
aconteceu. Posteriormente ele fez um
concurso público, passou e tomou posse
num cargo e continuou com a função que
ocupava.
— Protegido de americano
poderoso...
—– Mr. Honour é um professor
idealista. Não manda nada no Brasil. Há
pouco tempo mandou uma mensagem em
que lamentava muito o fato de nosso país
7
não ter verba nem interesse para um tema
tão importante.
— Ele sabe que o Benedito tem
capacidade de desenvolver trabalhos que
contribuiriam muito para o nosso povo.
Quiçá para o planeta.
— Talvez em outra área você fique
melhor. Um primo da Circe disse que tem
gente que consegue móveis. Até quadros e
muito mais ...
— Não sei. Acho que só se for
ministro, deputado, senador, ou algum
apadrinhado muito especial. Nem sei se
isso é muito ético e legal.
— E você, Tó, como entrou para
trabalhar?
— Também fiz concurso público.
— O Ministro é do nosso Estado,
não protege os conterrâneos?
— Não. Ele foi indicado por um
partido político. Por isso é obrigado a
colocar nos cargos quem o tal partido quer.
Às vezes nem conhece. Há casos de
disputarem entre si e se odiarem.
Normalmente quem indica é o PR —
Partido dos Ricos — ou o PdP – Partido
dos Poderosos — e outros, mais a UB —
União dos Banqueiros, a UC — União dos
Comerciantes, a UI — União dos
Industriais, e UFL — União dos
Fazendeiros e Latifundiários, e outros.
— E quando o POL — Partido dos
Operários e dos Lavradores — consegue
uma coisa?
– Tem até alguns bons e idealistas,
como em todos os partidos, que
infelizmente sofrem pressão dos outros ...
Todos riem.
— Quando viemos para cá,
pensávamos, não é Benedito, em muitas
realizações para o nosso país. Sonhávamos
8
que a nossa presença pudesse contribuir
para a melhora de outros, nem que fosse
pouco.
— Como se consegue funções,
mordomias? As menores, não aquela dos
graúdos. É começar por baixo, quando não
se tem outro jeito. Já que não temos
proteção. Por enquanto.
— Nem fazemos idéia.
— Onde mora o Ministro?
— Parece que é no Lago Sul.
— Em que quadra?
— Não sei. Outro dia escutei uma
funcionária falando, mas não dei atenção.
— Amiga, isso é imperdoável. Os
filhos onde estudam? Qual o cabeleireiro
que a mulher freqüenta?
— Não sei. Para que você queria
saber tudo isso? Que iria adiantar?
— Oras, oras, Antonia.
— Vocês mudaram a semana
passada. Já se acostumaram à quadra, à
Brasília?
— Nós já tínhamos morado na
cidade da Grande Metrópole, por isso
espero que nos adaptemos fácil. Confesso
que acho aqui muito estranho. Tem pedaço
que é só apartamento, tem outro que só tem
casas, outro ainda que é só colégio, outro
igrejas. Que loucura!
— Quando vocês se acostumarem,
vão é gostar.
— Antonia tem razão. Endereço,
quando vocês pegarem o jeito, é uma
maravilha. Se alguém disser onde mora,
imediatamente se sabe onde é, quantos
andarem tem o prédio do apartamento ou
coisa assim.
— Chegaremos lá.
— Outra coisa que precisamos saber
é sobre os chefes, Secretários, etc.
9
— Como?
— Como é a personalidade, como
se chega a eles, o Estado que pertencem,
para não se dar fora.
— Aqui em Brasília tem uma regra
tácita: não se fala mal de nenhum Estado. A
não ser que se conheça aonde nasceram
todos os participantes da conversa...
Todos riem.
— Nos Estados há muito bairrismo.
Só a terra deles é boa e fazem gozação do
Estado dos outros sem piedade. É São
Paulo, Rio, Minas, Nordeste, Goiás, Rio
Grande do Sul, etc. Parece que todos se
julgam melhores, ou fingem que são.
Todos riem de novo.
— Aqui tem uma vantagem, que em
muitas outras cidades infelizmente não tem.
— Qual?
— Em Brasília se respeita “faixa de
pedestres”, igual a muitos lugares no
exterior, no dito primeiro mundo. O
trabalho começou nas escolas, por isso deu
certo. É um orgulho nosso.
O casal visitante não se entusiasmou
muito.
— Vamos lanchar?

No dia seguinte, a vida continua no


apartamento. Era dia do aniversário da
empregada doméstica de Antonia.
— Parabéns, muitas felicidades,
Alpínia!
— “ Parabéns para você ....... ”
— Obrigado, D. Tó. Fico tão
emocionada.
— Você continua querendo sua
torta dentro do ônibus? Acho uma coisa de
doido.
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— Eu prometi pra eles. A Florinda,
a Maria, todas estão esperando.
— Você não acha que era melhor
uma torta mais seca?
— Ah, D. Tó, todo mundo gosta
mesmo é da minha torta de chocolate. Com
bastante cobertura e muito recheio.
— E bem doce ...
— Assim é que fica boa. Eu já
adiantei o serviço na casa desde ontem, pra
hoje caprichar nela. Lembra o primeiro ano
de meu aniversário, eu já trabalhando aqui?
— Lembro. Eu lhe perguntei o que
queria de aniversário. Você respondeu que
era uma torta dessas bem enfeitadas e
compradas em doçaria/doceria. Cada um
pegava um pedaço, depois você a levaria
para o seu quarto e comeria todinha.
— Foi bom... Desta vez só vou ficar
chateada que vocês não vão comer da torta.
— Alpínia, pense mais uma vez.
Você vai sair daqui, com a sua filha do
lado, pegar um ônibus lotado, com uma
torta de chocolate bem molhada...
— Vai dar certo. Eu vou levar na
vasilha de plástico. Pra cortar, vou levar
uma faca. Não se preocupe, pois amanhã eu
trago tudo de volta, não vou perder.
— O que eu estou menos
preocupada é perder uma faca. Mas é bom
levar daquelas bem velhas. Vai ser uma
bagunça!
— Até o motorista e a cobradora
vão comer um pedaço.
— Alpínia, em que as pessoas vão
comer?
— Na mão ...
— Vai ficar uma lambuzeira.
Cobertura e recheio nas pessoas, nas
roupas... O ônibus lotado de gente. Vai ser
uma lambrecada, uma sujeira ...
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— Naaão. Não vai ter sujeira no
ônibus. Outro dia a Gervásia trouxe uma
torta para o ônibus das seis da manhã. O
ônibus também estava muito cheio e foi
tranqüilo... Por isso eu tive a idéia. Eu
preferi à tarde, porque ela teve de acordar
muito cedo. Outra coisa: eu pego as coisas
aqui em sua casa.
As duas riem.
— Eu vou fazer o possível para a
minha torta servir o maior número de
pessoas. Se faltar alguém, é porque não é
meu amigo do peito, nem daqueles que não
vão todo dia. Aí tem que entender.
— Então leva um pacote de
guardanapo.
— Não precisa, D. Tó. Pra quê?
— Pras pessoas pegarem a torta
com a mão.
— Não precisa.
— E como vai ser limpa a
“sujeiraiada” que vai ficar.
— Não vai ter sujeira.
— Só você mesmo, Alpínia. Levar
uma torta de chocolate com muito creme,
para ser comemorado seu aniversário num
ônibus apinhado de gente, inclusive pessoas
se amontoando em pé.
Alpínia passou a tarde inteira
fazendo, com muito gosto, seu bolo de
aniversário. Feliz pela comemoração que,
de fato, aconteceu num ônibus coletivo
lotado, que demorava no mínimo uma hora
no trajeto. Os usuários mal se equilibravam.
Na saída do trabalho, ela tinha a
vasilha de plástico com a torta cremosa
bem grande. Também ia uma bagagem com
as coisas dela, e da Margarida, a filha que
ficava na creche, para elas irem a
Brasilinha.

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Brasilinha, cujo nome oficial é
Planaltina de Goiás, pertencia à periferia de
Brasília, porém não era mais Distrito
Federal. Era Estado de Goiás, lá bem
distante, aonde os pobres de Brasília foram
morar (espero que quando você ler, não
estejam mais longe). No futuro irão mais
distante.
Margarida também levava uma
mochila. Alpínia, toda arrumada, com a
saia curtíssima, ia toda alegre.
— Não esquece os guardanapos.
— Não precisa, D. Tó.
— Leva!
— Tá bom. Leva você Margarida!
Por acaso, descuido ou de propósito,
não levaram. Ela deve ter achado
desnecessário.
No outro dia, Alpínia chegou
radiante.
— Como foi a festa no ônibus?
— Foi ótima. Deu um pedaço para
todo mundo. Ihh, elogiaram a minha torta,
disseram que estava uma delícia. A
Florinda e a Gervásia, gulosas, comeram
dois. A cobradora, aquela minha amiga,
“tão gente boa”, a que eu fui ao churrasco
na casa dela, achou que estava igual
àquelas de festa de madame. Ah, o
motorista, aquele que a mulher arrumou
uma confusão outro dia, porque ele estava
namorando a Germana, também comeu
dois. A faca está aqui. Do começo ao fim
do ônibus, todos comeram.
Antonia saía do apartamento quando
encontrou no elevador sua vizinha do andar
de cima.
— Como vai você?
— Bem.

13
Ela percebeu que a outra não estava
alegre. Lembrou então de seu evento de
bufê.
— Ah! Como foi a festa de sua
filha? Você me disse que tinha decoração
de gente badalada, músicos, pessoal de
cerimonial...
— Chique foi e muito. Acontece que
os doces da Sebastiana Silva e os salgados
da Socorro Santos já tinham sido vistos
numa outra festa. E a Sílvia me avisou, pois
é “muuuito” minha amiga.
A palavra muito foi por ela bem
esticada.
— Quem é esta Sílvia?
— Você não deve conhecer
pessoalmente. A Sílvia é alta sociedade,
high society. “Chiquérrima”! Quando ela
me falou, eu fiquei arrasada. Sabe que a
festa não saiu em nenhuma coluna social.
Só pode ser isto.
— Você não foi feliz pela festa de
sua filha só por causa disto?
A outra saiu do elevador sem
escutá-la. Antonia pensou:
– Que vontade de complicar a vida,
dando importância ao que não tem. Parece
até que inconscientemente não quer ser
feliz. Por isso dá tanto valor a coisas
supérfluas. Cada bobagem! Tanta futilidade
que até os doces e salgadinhos têm que ter
nome e sobrenome. E ser diferente. Pra
mim, eu gosto deles sempre iguais!
Alpínia foi muito feliz na sua festa
num ônibus apinhado de gente, enquanto
algumas pessoas contratam salão, bufê,
músicos e até convidam pessoas ilustres, e
não o são.

14
4

Passou–se algum tempo.


Eram nove horas da manhã no
Mabs.
Antonia estava trabalhando, tendo
parado para tomar o cafezinho. Cicinha,
outra funcionária, chega e desembesta a
falar, contando as últimas fofocas. Circe
chega.
— Cheguei na hora certa. Conta aí,
Cicinha, as últimas novidades que a “Rádio
Corredor” soltou.
— Vocês escutaram que, sábado, o
Poderoso se recolheu numa reunião, a
portas fechadas, com empresários e líderes
de comunidades?
— Eu não.
— Eu li nos jornais. Eu sempre
estou bem informada. E daí?
— Sabe o que era a tal reunião?
— Arrumaram uma menina de 16
anos pra ele. Antes tinha comido uma
feijoada. Ah não deu outra, teve uma
congestão. Por sorte foi acudido às pressas.
Não pôde ir à posse que estava marcada,
tiveram de arrumar uma desculpa, e mandar
um representante. Foi um qüiproquó.
— Cicinha, o Poderoso não é bem
casado? A D. Cacilda, a esposa dele, não
vive fazendo natais, dia disso e dia daquilo?
— É, é bem casado. Além do mais
D. Cacilda, uma mulher tão fina, é de
família importante e poderosíssima na sua
terra.
— Por isso ele não apronta
descarado.
— Dr. Gumercindo não é nada
bonito. O poder é sensual. Um homem é
careca, barrigudo, e todo desengonçado. Se
subir pra cargo alto, com poder, arruma
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logo muitas mulheres, muitas mesmo, para
lhe fazer assédio sexual. O difícil é saber
qual delas ele escolhe.
— Que horror!
— Que horror não, é da vida.
Pensando melhor, horror eu acho que é.
Infelizmente é muito difícil encontrar
aquele que o poder não sobe a cabeça, sem
ficar deslumbrado.
— O dinheiro faz isso também.
— Felizmente existem pessoas que
o poder não lhes sobe à cabeça. São
pessoas que dão valor a coisas intelectuais
e espirituais. Não as materiais.
Cicinha acrescenta:
— Dinheiro é tão importante que, na
minha terra, dizem que tem doutor de
estudo e doutor de dinheiro.
— Isso na época que ser doutor era
status.
A conversa continua animada.
— Na minha opinião, Circe, homem
feio sabe (e mulher também), que, se tiver
poder ou dinheiro, vai haver muitas pessoas
tentando conquistas em cima dele. Por isso
se empenha tanto para a ascensão de
dinheiro ou profissional. Com a auto-estima
baixa, precisa disto. O bonito, ou o mais ou
menos conformado, não precisa. Depois a
vaidade do feio não deixa mais lembrar da
realidade, e passa a acreditar. Aí é que
mora o perigo para ele.
— Credo!
— Querer crescer na vida
profissional é normal, o problema é quando
isso fica obsessivo. Doentio mesmo.
— E só existe este motivo para a
subida?
— Não. Lutar para subir na vida é
saudável. Ficar obsessivo, só querendo
subir, sem admitir a descida é neurótico. Às
16
vezes, o motivo está nos seus problemas
psicológicos.
— Tó, hoje você está muito
filosófica!
Virando-se novamente para a
funcionária fofoqueira:
— Cicinha, conta outras.
— Eu, minha gente, vou voltar a
trabalhar, porque não quero ficar além do
horário, pois tenho muita coisa para fazer
fora daqui.
— Desse jeito você nunca vai subir.
Assim, Antonia voltou ao trabalho.
Circe saiu com a mão no ombro de
Cicinha, escutando todas as suas fofocas.
Toda simpática e envolvente. Seu objetivo
era ter o maior número de informações para
usar no momento certo num jogo
maquiavélico.
— Cicinha, qual seu nome
verdadeiro?
— É tão feio...
— Não deve ser, você está
exagerando
— Não estou não.
— Conta de uma vez!
— Pafúncia. Meu pai é que colocou,
mas minha mãe sempre me chamou de
Cicinha.
Circe achou o nome tão estranho,
que quase se traiu. Entretanto logo se
recompôs:
— É um nome marcante. Mas
concordo com sua mãezinha. Cicinha é a
sua cara. Conta mais!
— Sabe, doutora, hoje o Dr. Joab
entregou uma cesta de biscoitos e geléias
para todos da minha seção e da outra.
Gente boa ele!
— Por que você acha que ele faz
isso?
17
— Porque quer. Para aqueles mais
importantes, os presentes são almoços em
restaurantes caríssimos, jóias, pacotes
turísticos e gandaia. E dinheiro. De acordo
com a preferência de cada um.
— Dizem que ele é corrupto...
— Eu e o pessoal da minha seção
não estamos nessa de corrupção. A única
coisa é que, quando entra qualquer assunto
do interesse dele, nós fazemos tudo bem
rápido.
— Deixa pra lá. Conta outra.
— Sabe o Dr. Porfírio. Está batendo
de frente com o Dr. Rubião.
— Diga uma coisa: o Dr. Rubião
não é o homem de confiança do Poderoso.
— É seu braço direito.
— E o Dr. Porfírio não foi colocado
aqui pelo Emiliano Sousa, o poderosíssimo.
O homem que mais manda neste país.
Acima dele só o Presidente. Nem sei se é.
— Tudo isso é verdade, porém o Dr.
Porfírio está indo contra tudo que o outro
quer. Está fazendo jogo de braço.
Disputando com o outro. Como se fossem
dois meninos.
— Então os ânimos estão fervendo.
— E queimam quem estiver por
perto.
— É bom que eu saiba.
— O assunto está tão feio que o
Poderoso irá conversar com o Emiliano
Sousa esta semana. Dizem que ele disse
que do jeito que está, não dá para continuar.
As duas se despediram. Era cômico
ver Circe toda elegante e chique dando
beijinhos na outra. Cafona, mal arrumada e
mal penteada. Entretanto bem informada,
apesar de ingênua.
Cicinha era carente. Usava contar
fofocas para que as pessoas lhe dessem
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atenção. Não fazia por mal, porém podia
causar muitos males.

Na mesma seção de Cicinha


trabalhava Absalão. Era moço. Ele chegou
no Mabs há pouco tempo. Tinha uma
vontade de subir e badalar sem limites.
Logo soube da proteção de Porfírio.
— Protegido de Emiliano Sousa não
cai nunca. O homem “tá” mandando no
país. Aqui o poderoso é Porfírio. O outro
foi indicado – nem é protegido – pelo
Poderoso daqui. Aqui todos são fracos.
Força tem o outro.
Sem saber como eram as malhas e
artimanhas dali, colocou-se abertamente do
lado deste contra Rubião.
— Logo, logo serei o homem nº 1
dele. Portanto serei o homem nº 1 do Mabs.
Porfírio achou deliciosa a bajulação
do outro. Em razão dela, exagerou na
atenção, em indicações e nas viagens
concedidas. Deu-lhe até uma função, pela
qual ele ganhava uma quantia polpuda a
mais.
Absalão então se julgou mais
esperto que todos os colegas. E também
bem mais inteligente. Em seus miolos ele
era um vencedor.
Considerava o casal Corinto e Circe
seus amigos. Nunca percebeu que os dois
escondiam o relacionamento com eles.
Como não queria desagradar de
nenhum jeito o seu protetor, passava por
Rubião e não o cumprimentava.
Acintosamente o ignorava.
Quando Porfírio sabia ou percebia
essas situações de embaraço do
confrontado, ele dava-lhe mais “asas”.
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Entre eles, criaram apelidos e adoravam
ridicularizar o pretenso inimigo. Isso lhes
permitia uma intimidade.
Assim, na inexperiente cabeça de
Absalão, ele estava no céu.
Faziam isso na frente de qualquer
um do Mabs. Eles até riam para não
desagradar, porém ninguém queria tomar
partido.
Como se achava melhor que os
outros, tratava-os mal, com hostilidade e
jocosamente.
A língua rolava solta.

Duas funcionárias, Cicinha e


Joaquina, vieram contar uma história para
Antonia.
— Lembra da Dona Galdina.
— Não.
— Aquela senhora gorda, morena
clara, de cabelo liso preso atrás. Ela
trabalha na P 11.
— Não lembro.
— Ela tem mais de quarenta anos.
Matrona, suas saias são abaixo do joelho.
Fala pouco. É toda envergonhada.
— Lembrei. Que há com ela?
— Ela vive com um homem.
— Eu achei que ela era solteirona.
— Solteira é oficialmente, porém
vive com um homem que quase não
trabalha. E bebe. Ainda tem dois filhos
moços. Esses radicalmente não trabalham.
Só arrumam arruaça. Dizem que são
viciados em bebida e droga.
— Que perfil de família triste. Por
que ela estaria ligada a um homem assim?
Ela tem o emprego dela. O apartamento é
pequeno, entretanto é dela.
20
— Acho que ela gosta de ter
homem. Na idade em que ela está, talvez
imagine que não arrumaria outro.
— Eu acho que é solidão. Diga por
que ela veio à tona?
— No último sábado o tal fulano foi
pro bar de manhã e bebeu muito. Voltou
depois do almoço, e começou a arrumar
confusão. Logo em seguida chegaram os
dois filhos. Totalmente drogados, vinham
da farra de sexta-feira à noite.
— Que horror!
— Foram gritos e pancadaria. Um
forrobodó!
— Incomodou os vizinhos, que
ficaram preocupados com ela. Uma pessoa
querida por todos.
— E depois?
— Uma hora depois, eles abriram a
porta, e empurravam a coitada para fora do
apartamento. Nua. Ela se debatia com todas
as suas forças. Certamente com vergonha.
— Nua, como?
— Totalmente nua. Com as suas
partes pudicas e íntimas à mostra. Ela tão
recatada...
— E ainda o velho disse: “Pra todos
deste prédio verem como você é puta”, e
um dos filhos acrescentou: ”Pra todos
verem o bagulho que meu pai tem que
transar pra gente morar aqui”.
— Ela queria entrar no apartamento
e eles não deixavam. Rindo, ficavam
toureando a infeliz.
— E ninguém fez nada?
— Apesar de que eles ameaçavam:
”Quem tocar nela, vai se ver com a gente”,
uma vizinha tentou puxá-la para dentro do
seu apartamento. Eles lhe deram um tranco
violento.
— Foi então que os dois jovens a
21
arrastaram para debaixo do prédio. O pai
assistia a tudo. Ria e xingava a humilhada
de prostituta. Lá a deixaram. Nua. Nua em
pêlo.
Alguém desceu e lhe entregou dois
lençóis. Ela se cobriu imediatamente e
ficou lá por muito tempo. Chorava baixinho
sem parar. Depois sumiu.
— No domingo pela manhã o
zelador a viu sair com uma mala. Disse-lhe
que iria para a sua cidade natal, no interior
do seu Estado. Seus olhos estavam até
deformados de tanto chorar. Fora os
hematomas. Entregou-lhe um telefone, caso
fosse necessário.
— Que tristeza!
As três do grupo também estavam
tristes e se calaram meditando.

O Poderoso do Mabs teve uma


entrevista com Emiliano Sousa. O homem
mais, ou quase mais, influente do país.
Demorou semanas para conseguir. Antes, já
lhe avisaram que seriam somente vinte
minutos. Como pessoa experiente, levou
toda a fala esquematizada.
Chegou tenso. Não queria
desagradá-lo de nenhuma forma. Tentou
parecer o mais natural possível.
O outro percebeu todo o nervosismo
do seu interlocutor. Deu-lhe até uns
minutos de amenidades para relaxá-lo. Se
havia chegado onde estava, é por ser bom
conhecedor da alma humana, por saber
manipular as pessoas, e por avaliar bem o
limite de cada situação.
— Dr. Emiliano ...
— Chame-me de Emiliano. Ou não
somos amigos?
22
— Sou seu amigo incondicional.
— Bom isso. Vamos ao que trouxe
você aqui.
— Emiliano, você havia me pedido
para colocar o Porfírio num cargo lá no
Mabs.
— Ele é da minha terra, pessoa de
meu apreço.
— Acontece que infelizmente...
Você não imagina como eu gostaria de não
ter de lhe falar sobre isso. Estou muito
chateado de lhe falar sobre isso.
— Sim, já que veio, continue!
— Infelizmente ele está causando
constrangimento lá no Mabs. Eu tenho uma
pessoa de minha confiança, o Rubião.
Quando alguém do PdP ou do PR, ou de
outro partido aliado a nós, pede um favor,
eu determino a essa pessoa. Por sua vez, o
Porfírio tem ódio dele. Não sei se por
histórias do passado, por rabo-de-saia, por
dinheiro ou por qualquer outra coisa. Só sei
que seu apadrinhado indo contra o tal
fulano, não obedece aos pedidos dos
nossos. Já tentei falar com ele, que Rubião
faz o que os nossos aliados querem, e por
isso ele não pode se rivalizar. Não adianta.
Pelo menos para mim, ele diz que faz o que
ele quer, pois é seu protegido.
— Ele veio falar comigo. Eu
percebi que ele é muito radical. Uma das
histórias que ele me contou, eu sabia que
era do interesse de um grupo
importantíssimo. Achei que a posição dele
não era a mais recomendável.
— Você mesmo percebeu que ele
não entende as regras como devem ser.
— Num cargo de tanto poder, não
se pode ter alguém com birras infantis. Mas
vou meditar.
— Quando o senhor...
23
— Você, meu amigo.
Todos esses pequenos expedientes
faziam parte de sua técnica.
— Desculpe. Quando você quer que
eu ligue para saber?
— Não precisa. Eu telefono para
você. Pode aguardar.
Chamou a secretária, e
elegantemente o colocou fora do gabinete.
Mal deu tempo para a despedida.
— O Dr. Emiliano pede desculpas
por estar tão ocupado.
— Não precisa se preocupar. Eu é
que vim incomodá-lo com coisas banais.
— O senhor aceita uma água, um
chá, um café?
— Não, obrigado.
Saiu cabisbaixo. Chegando à
Repartição, chamou os bajuladores para
ilusoriamente lhe recomporem.
Porém em seus miolos:
— Agora sim é que eu não sei o que
fazer com esse problema. Esse sujeito não
sabe nem ter padrinho político. Consegue
me azucrinar e o padrinho também. Por
sorte vou viajar amanhã e passar quase uma
semana fora. O pior é que, quando eu
voltar, não vou saber o que fazer.
Entretanto um dia depois de voltar
da viagem, recebeu um telefonema de
Emiliano Sousa:
— Gumercindo, pode demitir o
Porfírio. Desnecessário dizer que é para ser
da forma mais educada e mais branda
possível.
— Aqui seu desejo é uma ordem.
Eu me sentia tão honrado de ter uma pessoa
sua na minha equipe. Sob esse aspecto,
lamento muito.
O outro reconhecia de longe a
badalação.
24
— Tá bom, Gumercindo. Até mais,
tenho de atender uma outra ligação.
Um mês após, Rubião demitia o
simples servidor Absalão da função e o
transferia para a pior seção do Mabs. Ele
até tentou pedir benevolências ao pretenso
casal de amigos Corinto e Circe, entretanto
eles alegaram falta de tempo para recebê-
lo. E ele teve que descer. Um ano depois
começou a beber e a usar drogas, acabando
por atolar-se.

Rubião era uma pessoa de origem


humilde. Seus pais lutaram a vida inteira
para comprar uma casinha simples pelo
sistema financeiro.
Com muita luta, estudando à noite e
ajuda minguada de casa, conseguiu chegar
a um curso superior. Este não lhe teria sido
de grande valia, se não fosse sua
perspicácia para fazer o que era de interesse
dos chefes, dos poderosos. Tinha também a
seu favor uma simpatia nata e o dom de
falar bem.
Depois de beber “algumas” na roda
do bar da esquina, afirmava que, se lhe
dessem quinze minutos, convencia
qualquer pessoa. E até uma multidão. Não
era bem assim, e havia muito exagero.
Convencia com facilidade, principalmente
quando os poderosos lhe davam todo o
suporte.
Havia se casado com Agar. Ao se
conhecerem, ela era professora e mulher
exuberante. Ele a achava o máximo que
poderia conseguir. Tiveram três filhos e ela
passou a cuidar deles.
Como sempre tinha sido muito
preguiçosa, ela achou essa tarefa
25
descomunal. Então começou a pensar que
fazia demais. Seu corpo foi despencando.
Além disso, não tinha atualização na vida
em nada, nem na informática que voava em
sua evolução. Não se preocupava em
melhorar em nada.
Ele teve algumas aventuras
amorosas. Porém eram mulheres de baixa
categoria. A única que lhe balançou a base
foi uma colega de faculdade. Ele ficou
alucinado. Entretanto a tal era dez anos
mais velha do que ele e tinha filhos
adolescentes complicados. Depois de um
porre e uma ressaca, ele pesou os prós e os
contras na balança: decidiu ficar com o
casamento. Ele gostava de sua família e
queria continuar com ela. A esposa não
percebeu nada ou fez de conta que não
estava acontecendo nada.
Na vida profissional ele fazia tudo
para subir. Bajulava chefes, trabalhava fora
do horário e lutava para freqüentar todos os
cursos que apareciam. Seu esforço era
enorme. Dizia que fazia tudo isso para não
perder o emprego. Era certo que a fila,
esperando ele cair de seu cargo, era grande.
Porém ele extrapolava. Ficava evidente que
ele queria mais. Pelo menos tentaria. Assim
ele subia, subia.
Do magistério, Agar pediu licença.
Primeiro forjou uma de saúde, depois sem
vencimentos. Quando voltou, o marido
tinha lhe arrumado um lugar com um
amigo. Ficava encostada. Trabalhava uma
horinha e pouco, nem todo dia. Mesmo
assim achava muito. Diziam até que, quem
recebia o salário dela, era o tal fulano,
diante de tanta condescendência. Diante da
saída dele, ela teria de voltar à sala de aula.
Mais uma vez pediu licença sem
vencimentos. Sua vida profissional não lhe
26
era importante. Nem sua vida pessoal.
Parecia que se atolava na preguiça.
Levantava cansada e lamentando
tudo. Nessa altura da vida, faltando um mês
para ter de voltar a trabalhar, com seus
filhos maiores e seu marido acomodado,
surgiu o convite para Brasília. Ela adorou a
mudança. O principal motivo foi imaginar
que não teria de trabalhar fora, e que
estavam ricos, devido ao alto salário dele,
além das mordomias que teriam.
Eles foram de uma cidadezinha do
interior para as intrigas e artimanhas da
Corte.

No começo o novo Secretário só


pensava numa coisa: agradar o Poderoso.
Fazer tudo que seu mestre mandasse.
Circe e Corinto conseguiram ir a
uma solenidade e ter contacto com Rubião.
Eles não precisavam ter ido. Foi bem
depois do expediente e quase não havia
ninguém que Rubião conhecesse.
— Ambiente muito propício!
Para eles o principal objetivo de
vida era subir na carreira profissional. Por
isso consegue-se imaginar o quanto eles
agradaram e bajularam o mesmo. Até a
mulher dele.
A adulação foi tanta que, em outro
evento, os dois conseguiram novamente
chegar perto dele, que logo os chamou para
ficar ao seu lado. Queria continuar a sentir
as fictícias delícias da badalação.
Sem imaginar as façanhas dos dois
amigos, Benedito e Antonia conversavam
em seu apartamento num momento de
descontração dos dois:
— Ter orgulho e aceitar bajulação
27
são péssimos para qualquer pessoa.
Entretanto para quem tem poder é pior
ainda. No primeiro, o indivíduo se imagina
com qualidades que não tem, sem perceber
seus defeitos e suas limitações. No
segundo, para obter benefícios para si, o
puxa-saco mente qualidades que o outro
não tem. Nisso se aprimoram tanto, que o
bobão, cheio de problemas de inferioridade
e de superioridade, com auto-estima baixa,
passa a acreditar piamente.
— Poderoso tem problemas de
inferioridade e de superioridade? Sempre
imaginei que não.
— Engano seu. Alguns os têm e
graves.
Frisando e soletrando a primeira
palavra, acrescentou:
— D e v e r i a m ser um mar de
equilíbrio!
— Se alguém sincero lhe alertar, ele
o refutará. O orgulhoso é o alvo perfeito do
puxa-saquismo. Infelizmente poucas
pessoas não o são.
— Como dizia Shakespeare, “quem
gosta de ser adulado é digno do adulador”*.
Os dois riram.
— Quem também tem problemas de
auto-estima baixa são aquelas pessoas que
têm preconceito.
— Preconceito de quê?
— De tudo: racial,
homossexualismo, de sexo, etc.
— Você acha?
— Acho não, tenho certeza. Quem
está sempre, sempre sofrendo preconceito
muitas vezes também tem auto-estima
baixa.
— Vou meditar sobre isso.
* William Shakespeare – Timão de Atenas

28
— Medite, e se chegar a uma outra
conclusão, avise-me.

10

— Sabe quem é a nova ocupante de


alto cargo vindo da terra deles?
— Conta, Cicinha!
— A Cremilda. Toda bonitona.
— Uma loura que exala perfume e
sexo?
— É essa mesma. Alta, de salto bem
alto, com o cabelo comprido e solto.
Roupas colantes mostrando bem o corpo
perfeito que a natureza lhe deu. Uma bela
fêmea, como um tio meu dizia.
— Quem é ela?
— Estão dizendo que é a nova
amante do Poderoso.
Sabendo que a tal loura entrara em
determinada sala, Circe arrumou um jeito
de adentrar na mesma, alegando erro de
sala.
A outra, cuja desconfiança a levou a
ares pedantes, olhou de esgueira. De cima.
Tensa. Acostumara-se a hostilidades em
razão do seu comportamento moral e
também da sua beleza.
Como o objetivo era badalá-la, ela
nem se preocupou como isso. Começou lhe
dando as boas-vindas.
Nervosa ela falava sem parar,
sempre com um sorriso na boca. As mãos
gesticulavam com premeditação, tentando
envolvê-la, como se fosse um polvo.
Logo em seguida, ela foi se
colocando à disposição da outra, sempre
solícita e agradável. Simpatia esbanjada.
Depois de uma hora, saía com ela,
para se encontrar com o marido. Iam levá-
la para almoçar em sua casa. No seu lar
29
com seu filho e sua mãe. Evidentemente
Corinto concordou com tudo. Não jantar,
pois poderia atrapalhar os encontros com o
Poderoso. Não era essa a intenção.
Cremilda não estava ambientada a
reuniões familiares. Por isso se encantou.
Suas carências levaram-na a fantasiar que
ela era uma pessoa “de família” e que
estava entrando para o bojo da nobreza.
Na residência do casal, quando
sentou, todos viram suas calcinhas e suas
partes pudicas. Fazia um movimento e seus
seios ficavam a mostra. Estava acostumada
a isso. Nem Circe se chateou nem Corinto
se excitou sexualmente. Serviram-lhe carne
de panela, farofa e salada. Corinto havia
comprado uma torta salgada e uma doce
para dar à refeição um pouco a mais. As
tortas bem enfeitadas. Na carne de panela
colocaram uns legumes de forma
sofisticada para incrementar. Também foi
dado um nome bem chique.
— Espero, minha doce Cremilda,
que você goste de filé a Villeneuve?
A jovem respondeu que sim, com
empáfia. Mentindo. Tinha muita
experiência em alcova, porém era crua em
etiqueta. Quando saía com um homem para
jantar, ela pensava em comer, e ele em
desfrutar seu corpo e exibir sua estampa.
Derramou farofa na toalha e até no
chão. Ela adorava farofa. Um tomate pulou
do prato. Com os talheres ela fez uma
confusão.
Um rosto harmonioso, um cabelo
bonito e um corpo delineado como se fosse
uma escultura grega. Tudo aliado a um
charme enorme e a uma sensualidade
provocante. Sabia de todo o desejo que
provocava. Isso a deixava mais cobiçada.
Mas queria ser o que não era. Por isso
30
aquele almoço simples na casa de
funcionários públicos lhe desconcertava.
Vinha à tona sua cafonice, que ela estava
insistindo em esconder.
Entretanto os dois fizeram de conta
que ela era uma dama. A mãe de Circe
também.
Tudo isso serviu para que a moça
confirmasse suas fantasias.
O filho almoçou com a empregada
na cozinha.
— Criança, às vezes, tem uma
sinceridade insuportável!
Quando contou sobre isso a Antonia,
esta a censurou. Cinicamente ela falou:
— Ela está chegando aqui sem
ninguém. Meu coração é tão bom...
Antonia acreditou.
Não era verdade. Não havia
caridade. Não gostava da moça em nada.
Até sua beleza a incomodava. Porém o
importante era tirar o maior proveito de seu
relacionamento com o Poderoso.

11

Havia outra moça de nome


Belarmina. Não era funcionária pública.
Pertencia a uma empresa terceirizada.
Quando foi selecionada, colocou uma
fotografia de maiô bem provocante. Além
da cruzada de pernas sensual. O quarentão
da seleção endoidou e deu a vaga para ela.
Evidentemente que antes tiveram uma
transa sexual.
— Coitada! Ele aproveitou-se dela.
— Não. Ela não estava procurando
trabalho, serviço, estava procurando
assédio sexual.
Depois colocaram-na no Mabs. Ela
fez questão de ficar em um posto que desse
31
acesso a quem tinha poder. Suas blusas
eram decotadas e suas saias bem curtas.
Bem provocantes.
Sua mãe lhe dizia:
— Use seu corpo e sua beleza
enquanto é jovem e bonita. Ganhe o
máximo de dinheiro possível. Quando as
carnes começarem a cair, case com um
traste, igual a seu pai, como eu fiz. Ganhei
esta casinha no Paranoá. Você pode ir mais
longe.
— E se o fulano for muito feio?
— Faça como muitas fazem: feche
os olhos e imagine o artista galã do
momento. E pronto.
— Vou imaginar o ...
— Você só não deve ser prostituta.
Isso é feio.
Uma cunhada empinada lhe
respondeu:
— Prostituta é aquela que faz sexo
por dinheiro. Ou por poder. Seria o caso.
— Você é ignorante. Prostituta é
quem roda bolsinha na zona...
A jovem terceirizada logo arrumou
um jeito de chegar perto de Rubião. Este a
percebeu sem demora. Ela conseguiu um
assunto para ir ao gabinete. Uma ralada
aqui, um achego acolá e a mão dele subiu
por suas pernas. Pouco tempo depois
estavam fazendo sexo no banheiro
privativo do Secretário.
Antes ele tivera o cuidado de
interfonar à secretária:
— Vou dar um telefonema ao
exterior e não posso ser interrompido de
forma nenhuma.
— E se o Ministro ou alguém da
Presidência ligar?

32
— O Ministro estará muito ocupado
esta tarde e, se for do Planalto, eu ligo em
seguida.
Nem ela nem ele eram fiéis. Nem
faziam questão da fidelidade. Nem sua nem
do outro.
— Será que ele não se importa
mesmo com a fidelidade dela?
— Sabe como é a história?
— O homem “coroa”* arruma uma
mocinha nova. Começam então a fazer
sexo. Fala para os amigos — contar é muito
importante para os homens — que ela diz
ser ele o máximo, muito macho, melhor
que qualquer jovem. Depois ele começa a
perceber que ela lhe põe chifres. E ai?
— Aí fica mal, principalmente se
ele chegou ao ponto de desfazer casamento
ou burrada parecida.
— Então acontece o seguinte: ele
faz-de-conta que não percebe. Só não pode
admitir, nem pra ele, que ele não é o bam-
bam-bam do sexo. Em especial para os
amigos.
— É verdade. Eu nunca vejo
homem maduro, ou velho mesmo, com
ciúmes de garotinha nova.
Havia muitos com vontade de dar
uma “bicadinha” em Belarmina. Os
poderosos ou ricos conseguiam. Os mais
humildes imaginavam.
Ela tinha os olhos apertados, os
lábios muito finos e um nariz afilado e
comprido, mas seu rosto não era feio. Era
branca, sem ter a pele muito clara,
entretanto sempre pintava o cabelo de loiro.
Quanto ao corpo, tinha pouca carne nos
quadris e muito busto. Um pouco demais.
A cintura não era fina. Porém sensualidade
*coroa é uma pessoa que passou da juventude e está
na meia-idade ou mais.
33
não lhe faltava. Era tanta, que exalava sexo.
Fora seus olhos que convidavam até mesmo
quem ela não queria.
— Ela tem uma bunda chupada,
muito busto e não tem cintura.
— Mas ela é apetitosa, deliciosa!
— O que ela tem é cheiro de
“putice” que vocês adoram...
— O que é “putice”?
— È a capacidade de fazer as outras
pessoas imaginarem consigo luxúrias e
mais luxúrias. Quase todos adoram isso.
Quanto ao sexo masculino, dizem que não
tem um a excluir..... .
O Poderoso também experimentou
só para não ficar para trás. Coisa de
machão.
Não dava para compará-la com
Cremilda. Essa era linda. Mesmo os que a
invejavam ou não gostavam dela, tinham de
admitir sua beleza. Tinha lá suas
vulgaridades também.
Ambas tinham uma moral elástica.
Entretanto a moça do Paranoá fazia sexo
com qualquer um. Diziam que um antigo
patrão tarado e bissexual inventou nas
escadas. Ela era tão vulgar que os
faxineiros lhe faziam propostas de maneira
indecorosa. A outra não. Estava longe de
ser uma dama, entretanto não chegava a
certas baixarias.
Belarmina não tinha namorado fixo.
— É um absurdo perder tempo com
esses pobretões que não vão lhe dar nada.
O certo é que nenhum lhe dedicava
sentimentos bons. Também só queriam se
aproveitar.
Usada e abusada, ela tinha o hábito
de se lavar demais.
— A meleca desses homens parece
que não sai, nem com sabão.
34
Era comum entrar na seção com um
mau humor insuportável.
Na intimidade desabafava:
— Se um dia eu tiver um cargo
importante, faço como fazem comigo:
obrigo a terem sexo quando e como eu
quero.
Descarregava então toda a raiva de
dentro dela em quem estivesse por perto.
Seus colegas e os mais humildes eram
quem mais sofriam. Até sua chefe não era
poupada. Apesar do absurdo, tinha mais
poder.
Mudava de humor num minuto.
Infelizmente sempre para pior.
— Ela está com tudo. Manda e
desmanda. Dizem que vai até em viagem
para Europa e Estados Unidos, mas não é
feliz.
— Está insatisfeita. Tem dinheiro e
poder, mas não tem respeito e dignidade.
Quando termina o dia, a semana, o mês, só
há um vazio.
— Outro dia foi muito grosseira
com a Antonia. O motivo é a inveja...
— Inveja boa ou má?
— Para mim não existe inveja boa.
Esse sentimento negativo é um dos sete
pecados capitais. E é horroroso! O que
pode existir é a admiração a sentimentos ou
condições que não possuímos.
— Então inveja boa é admiração.
— Não! E não mesmo! Inveja é um
pecado, um sentimento negativo e feio.
Nunca é boa. Já a admiração é bonita. É
saudável e louvável. Nas famílias onde há
inveja, todos vão pra baixo, e nas famílias
onde há admiração às coisas positivas,
todos vão pra cima.
— Por que?

35
— No primeiro caso, as boas
qualidades são ridicularizadas e no segundo
são exaltadas. As pessoas em volta passam
a dar importância ao que escutam.
— Voltando ao assunto, o motivo da
grosseria a Antonia é a inveja de quem não
precisa fazer sexo bestialmente.
— Se quisesse, também não
precisava se degradar. Entretanto não teria
as vantagens materiais que tem. Acontece
que isso é mais importante para ela.
— Então fica assim mesmo.
— Não é fácil agüentar vadia
insatisfeita!

12

O serviço de Belarmina era pouco e


sem importância. Enganava na seção em
que Açucena trabalhava. Esta era muito
competente e trabalhadora, entretanto tinha
de agüentá-la. Uma tarde de domingo,
quando a jovem terceirizada descansava
junto à mãe e a uma irmã com deficiência
física, conversavam.
— Lá o “povo” é chique e
inteligente. Minha chefe é doutora.
— Deve ser emproada...
— E é. Não foi mais longe porque o
marido é um tal de ativista radical. Mas
todos consideram a d o u t o r a uma
grande figura na matéria da minha seção.
— E por que não está em alto
cargo?
— Porque eles gostam é de mim.
Mas eu queria que falassem de mim como
falam dela. Tenho até inveja.
— Oras, minha filha, pega um
parecer dela, tira o nome dela, coloca o seu,
e entrega para o Dr. Rubião. Diz que é seu.
Ela não vai poder bufar contra você.
36
— Sabe que é uma boa idéia!
Assim pensou, assim fez.
Quando a capacitada funcionária
reclamou, ela tranqüila e descaradamente
expôs sua sórdida ameaça:
— É isso mesmo. Tirei seu nome e
coloquei o meu. Se quiser, reclame para o
Rubião. A única coisa é que, se você fizer
isso, eu vou ficar furiosa com você. Em vez
da minha amizade, proteção – como você
quiser chamar – terá toda minha raiva,
“queridinha”.
Açucena chorou muito. Ficou muito
triste. Sabia que tinha a antipatia dos
poderosos. Depois pensou e meditou.
Chegou à conclusão que era melhor deixar
como estava. Dolorosamente.
Talvez para se vingar, inventou uma
saída, que também não era férias, e
telefonou avisando. O fato passou
desapercebido. O serviço acumulou e
ninguém reclamou.
Quanto à parte profissional da
sensual jovem, circulava pelos corredores:
— Parecer da Belarmina é bom,
sempre é a Açucena que faz ...
A admiração dos funcionários à
intelectual e capacitada funcionária crescia
a cada dia.

13

Corinto logo conseguiu um cargo de


assessor.
— Preciso adivinhar o que eles
querem, para sempre ir do lado deles.
— Você não pode também dar um
parecer ou fazer qualquer ato que vá contra
o PdP, PR ou qualquer união de mandões.
— Lóoogico, minha cara Cyssi

37
Cyssi era o apelido que Circe tinha
na intimidade.
O filho Júnior era cuidado pela
empregada Justa. Era uma solteirona de
trinta e poucos anos. Sem nenhum parente
em Brasília, nem no mundo, que se
importasse com ela.
Foi muito difícil arrumar uma
auxiliar doméstica que lhe servisse. Quando
conseguiu, deu-lhe bom salário e muita
mordomia.
Aos poucos, a serviçal começou a
mandar na casa. A patroa achava era bom.
Também se pôs a dar ordens para o
menino. O instinto materno da mãe quase
não existia. O pai, também omisso,
somente pagava tudo.
Com o tempo, até a carteira do
plano de saúde do filho foi dada a Justa,
para que fosse providenciada alguma
atitude que se fizesse necessária. O
motorista do ponto de táxi foi contratado
para ser acionado em emergências.
A mãe às vezes lhe comprava
roupas, para que andasse arrumado como
convinha a um filho seu.
Quando Corinto dava um parecer,
não se preocupava com o que é justo ou
certo. Somente com a política interna do
Mabs. Tinha tanto jeito para carreirista,
que, naqueles casos do passado em que o
Rubião e Porfírio estavam se
desentendendo, conseguia passar para outro
colega. De uma maneira não muito certa.
Entretanto um empurrão aqui, uma pequena
trapaça ali, ele sempre arrumava uma
justificação.
Desse jeito seus pareceres
começaram a ficar famosos. Com o tempo
virariam regras para superiores desonestos.

38
14

No departamento em que trabalhava


Benedito, havia outros funcionários. Entre
eles havia um chamado Ananias e outro
Simão. Entre os três houve uma empatia
inicial. Até em final de semana se
encontravam com mulher e filhos. Era bem
divertido. Tudo calmo e sereno.
Acontece que Ananias achava o
outro exageradamente honesto.
Às vezes lá estava ele entusiasmado
falando sobre mulher ou alguma fofoca,
quando chegava Benedito. Ele se sentia
mal. Situações semelhantes aconteciam,
fazendo-lhe se sentir um personagem
negativo.
Ele gostava do outro.
— Tenho até admiração pelo
Benedito. Principalmente pela parte
profissional. O problema é que ele é muito
radical.
Com Simão havia uma
reciprocidade maior, porém ele também
não era tão certinho quanto o outro.
O Dr. Joab ia freqüentemente ao
departamento.
Benedito não fazia concessão
alguma a ele. Respondia-lhe com o mínimo
necessário, sempre com palavras frias e
terminativas. No seu íntimo tinha uma
aversão a ele.
Já Ananias conversava
tranqüilamente. Não lhe fazia favores, nem
lhe foi pedido, entretanto era bem cordial.
O bate-papo ficava cada dia mais
animado. Um dia o Dr. Joab, como quem
não quer nada, perguntou-lhe:
— Janeiro é mês de férias de
crianças. Sua esposa é professora e está de
férias, não é?
39
Ele nem percebeu que o outro estava
sabendo muito de sua vida.
— Em casa todos nós estaremos de
férias em janeiro. Nós vamos passá-las no
interior do Estado da minha mulher.
— Eu sei que você nasceu aqui,
cidade grande, e não deve gostar de passar
um mês num lugarzinho sem ter o que
fazer.
— A gente tem que inventar...! Não
tenho mesmo dinheiro para ir para outro
lugar. Portanto assim tem que estar bom.
— Eu tenho um apartamento
pequeno na praia das Palmeiras. De frente
para o mar. As crianças iriam adorar, creio
eu. E sua mulher também.
— Até eu. É. Acontece que não dá.
Sua família deve querer ir para lá. Ou o
senhor deve alugá-lo caro. Eu não posso
pagar. Por esse motivo nós nunca fomos
para a praia.
— Inconcebível! Inconcebível! Vou
lhe emprestar e não admito recusa. Não
poderá ser um mês, porém o apartamento
ficará vazio durante quatorze dias. Faço
questão.
— Não posso, doutor.
Ele pensava que todos haveriam de
imaginar coisas.
— Não pode por quê? Alguma vez
eu lhe pedi algum favor?
— Não.
— Então... E tem outra coisa, seria
um segredinho entre nós. Sabe, tantas
pessoas me pedem este mimo. Se souberem
que estou lhe oferecendo, ficarão com
ciúmes.
Infelizmente ele tinha razão.
Ananias disse que falaria com a
mulher. Na verdade queria pensar um
pouco. Sabia que sua esposa tinha um
40
projeto antigo de conhecer o mar. Na escola
em que ela trabalhava, as outras professoras
falavam tanto de suas temporadas no
Nordeste e em outras praias. Seus filhos
então sonhavam em conhecer o litoral, que
seus colegas e amigos tanto exaltavam.
Sinceramente ele sempre se sentiu mal por
não poder dar à sua família tudo isso.
— O problema é a fama do
homem...
Benedito ficou sabendo e o
repreendeu:
— O importante das férias é a
companhia. Você vai sempre no mesmo
lugar, que é um ambiente calmo e sem
violência para você e sua família relaxarem
do trabalho e do estresse anual. Tudo isso
você tem na pequena cidade do interior do
Estado em que sua mulher nasceu.
— Todo ano é igual. Além do mais
a Judite e os meninos iriam adorar.
— Isso é consumismo. Sei que não
vão se divertir mais. E o mais grave é que o
Dr. Joab tem fama de corrupto.
— Como é, Benedito, você não acha
feio fazer fofoca?
Rindo saiu abraçado com o amigo.
— Eu vou pensar.
De fato, ficou durante três dias com
as caraminholas quentes. Então encontrou o
tal no corredor:
— Como é meu amigo, você vai
querer ou não o apartamento. Há outros
querendo...
Sabedor que isso correspondia à
verdade, respondeu que sim.
Em janeiro foi para a praia, levou
mulher, filhos, mãe e sogra. Ninguém
queria perder a oportunidade.
Gastaram mais, brigaram mais e se
desgastaram mais. Entretanto o mais
41
gostoso foi voltar e contar para as outras
pessoas. Que delícia!
Antes da viagem, no dia 27 de
dezembro o expediente estava terminando.
Já passavam dez minutos do término,
quando chegou um assessor do Dr. Joab,
para dar entrada em uma petição cujo prazo
findava naquele dia.
— Não pode, já passou das 18:00
horas.
— Telefona para o Dr. Joab.
Enquanto o rapaz completava a
ligação no celular, Ananias pensava
rapidamente.
— Falar com ele por telefone. Pode
ter gravação. E se ele tirar o apartamento.
Todos estão animados. Seria a mesma coisa
que jogar um banho de água fria. Além do
mais, protocolar uma petição uns
minutinhos depois não é corrupção.
Olhou de lado para ver se ninguém
estava vendo e consolidou a entrada do
documento.
Outro detalhe: Ananias foi incluído
na lista das cestas de Natal do Dr. Joab.
Envergonhado a escondeu. Ficou quarenta
minutos a mais na hora do almoço para
carregá-la e ninguém vê-la. Principalmente
Benedito.

15

O filho mais velho de Benedito fez


aniversário.
Eles fizeram-lhe uma festa simples,
mas agradável. Tinha docinhos de
brigadeiro e de coco. Feitos por Antonia,
sua empregada e pela criançada. Estas mais
comiam que faziam. Havia também torta
doce e salgadinhos. Ambos comprados na
confeitaria da quadra, de perto. Na hora a
42
empregada Alpínia fez sanduíche de
salsicha. Tudo em fartura. Refrigerantes e
cervejas não faltaram.
Os convidados foram os amiguinhos
das crianças e poucos casais com quem
conviviam. Também Corinto e Circe.
Esses chegaram no final. Começou
às cinco da tarde e os conterrâneos
chegaram às oito e meia.
— Aquilo vai estar horrível. Não
tem ninguém importante nem poderoso. É
capaz até que tenha docinho de brigadeiro.
Vamos chegar bem tarde. Com sorte, já
terminou tudo.
O filho e a empregada chegaram no
horário certo. Júnior era alguns poucos
anos mais velho do que as crianças
presentes, entretanto tinha dificuldade de se
ambientar. Parece que sentia que aquela
turma o rejeitava e o ignorava. Na verdade
sua carência o tornava vulnerável.
A pedido dos pais, o aniversariante
tentava colocá-lo à vontade.
Ele não conseguia muito, porém
Júnior estava exultante. Quando os pais
chegaram, logo disse:
— A festa está tão boa!
— Cada idéia! Como pode ter essa
opinião, tendo já estado em recepções finas,
em casas maravilhosas. E na semana
passada, no dia da criança do Mabs, que
teve até decorador e animador vindo de
fora.
Como ainda havia de tudo,
comeram e gostaram. Inclusive brigadeiro.

16

Numa manhã o Poderoso tinha de ir


a uma solenidade.

43
Estava com Cremilda no gabinete e
teve vontade de ficar com ela. Bolinações e
beijinhos. Queria continuar com seu
brinquedo. Por isso a levou. Durante o
caminho os dois se abaixavam e faziam
estrepolias pela Esplanada dos Ministérios.
O motorista na frente fazia de conta
que nada estava vendo. Essa função lhe
dava uns bons trocados a mais.
Porém quando chegaram ao evento,
o Poderoso caiu em si. Percebeu que ela
não podia fazer parte do contexto.
— Minha bonequinha de luxo, lá eu
tenho de ir só. É tão maçante. Sinceramente
preferiria mil vezes ficar aqui, mas não
posso.
Virando-se para o motorista, falou:
— Saul, leve a moça daqui.
Conserve-a num lugar sem acesso da
imprensa. Infelizmente vou demorar mais
de uma hora.
— Oh, meu leão, eu tenho de ficar
longe de você? Vou ficar tão triste!
Ela estava acostumada a essas
mentiras, entretanto ele ficava enlevado,
imaginando-se o que não era.
Ela se abaixou o quanto pôde, ele
desceu do carro alguns metros antes, e
entrou para a tal solenidade.
O carro oficial seguiu em frente.
O motorista havia se excitado com
as cenas anteriores. Para agravar mais, ela,
livre da representação teatral, ficou à
vontade. Não se preocupando em ficar com
as pernas fechadas nem os seios compostos.
Então ele começou a conversar com
ela. Não mais lhe chamando de Senhorita
Cremilda, agora só pelo nome. Ela nem
percebeu.
Quando pararam num semáforo, ele
se voltou para trás e jogou todo seu charme.
44
Ela olhou para ele e percebeu um belo
macho. Aliás isso já tinha acontecido de
outras vezes.
Na sua cidade sempre esteve
acostumada a muito sexo com jovens.
Estava mesmo sentindo falta de homem
viril.
Ela se pôs toda perto do banco dele.
A mão dele foi ousada.
Não precisou muito para que os dois
estivessem fazendo sexo dentro do carro
oficial na Praça do Buriti, em frente ao
Palácio dos Buritis do Governador do
Distrito Federal. Apesar da
irresponsabilidade do ato, por sorte dos
dois, ninguém viu. Nem houve
conseqüências. Só não se pode dizer que
ninguém soube, porque, depois da saída do
Dr. Gumercindo, Saul contou, para quem
quis ouvir, tudo e mais o que aumentava.
Uma hora e meia depois, lá estavam
os dois. Parecia que estavam iguais ao que
o Poderoso deixara. Ele voltou a brincar
com ela e tinha a impressão de que era
muito malandro nisso.
Ela era muito bonita, entretanto em
cabeça parecia uma criança. Às vezes
parecia mais infantil que uma menina
ajuizada.
Quando chegou a Brasília, suas
unhas tinham florzinhas e estrelinhas.
Apesar do Poderoso não enxergar nenhum
problema nisso, Rubião percebeu e
encarregou Circe do assunto.
Como os argumentos iniciais não
convenciam, ela teve de dizer que isso era
proibido no serviço público.
— Não é não. A recepcionista
também tem. Eu até queria perguntar onde
ela conseguiu umas prateadas.

45
— Minha doce jovem, a proibição é
só para o alto escalão. De nós para cima.
Entendeu?
Ela não queria entender. Mesmo
sem gosto, ela submeteu-se à exigência.
— Tudo em nome da etiqueta.
Inventaram também para ela uns
conjuntos de roupas, os tailleurs. Apesar de
não fazer parte dela, ficou toda
entusiasmada por ser de uma loja de grande
nome e de ser usada por pessoas que ela
considerava de classe. Ficava assim vestida
tão sóbria como se fosse para se apresentar
à rainha da Inglaterra. Porém conseguia dar
um toque pessoal brega, pois gostava
também da sandália de uma apresentadora
da televisão e de uns brincos enormes que a
personagem da atriz do momento usava.
Isso sem contar que esses acessórios não
combinavam nem com o ambiente nem
com a figura pela qual ela queria se fazer
passar.
Suas roupas eram pagas pelo Dr.
Joab.
Houve um evento no Mabs e o
Poderoso não estava presente. Havia
música e foram designados garçons para
servir. Um deles era da Secretária de
Rubião. Chamava-se Aliomar. Era alto,
belo e tinha os olhos verdes.
Conforme ela bateu os olhos nele,
se encantou.
Ele procurava agradá-la o melhor
que podia para ficar bem com o Poderoso.
Ela o chamava de você. Como ele a tratava
com cerimônia, ela insistia para também ser
tratada de você.
— Não precisa frescura comigo.
Lá pelas tantas, como lhe deu
vontade de dançar, ela o convidou.
— Eu estou trabalhando.
46
Sem perceber a situação, ela lhe
tirou a bandeja das mãos, colocando-se
entre os braços dele, e começando a dançar.
Muito sem graça, ele dançou
também.
No dia seguinte, ela se pôs a
telefonar para o gabinete do Rubião,
procurando por ele.
Apesar de toda a atração física que
sentia por ela, Aliomar fugia dela o que
podia.
— Ela é uma mulher maravilhosa.
Pra ser sincero ela é muito para mim.
— A mulher está se oferecendo,
aproveita.
— Não é assim não. Eu tenho minha
esposa e minhas filhas. Eu gosto demais
delas e não quero comprometer minha
felicidade conjugal por umas horas de
paixão. E tem outra: imagine se o Poderoso
fica sabendo que eu botei chifre nele,
arruma uma confusão comigo. Soube de
um caso semelhante na Esplanada, que
arrumaram até processo contra o infeliz.
Comprei minha casinha na Candangolândia
e preciso terminar de pagar. Estou
estudando à noite para melhorar. Já
terminei até o segundo grau. Quero
melhorar, não piorar.
Assim pensando, o garçom fugia
dela que o perseguia.
— Ele não sabe que eu não dou
importância a diferenças sociais.
Ela não percebia a realidade: ela não
estava acima dele.

17

Todo dia pela manhã Benedito e


Antonia levavam seus filhos à escola,
depois iam para o trabalho. Voltavam
47
juntos também. Às vezes, como algum
deles tinha alguma outra coisa para fazer,
pediam carona ou andavam de ônibus.
Ainda bem que isso acontecia pouco.
Certa manhã ambos tinham ido
pegar o resultado de um exame médico. Por
isso resolveram ir pelo Eixão. Esse é o
nome dado à via que vai do final da Asa
Norte, passa pelo centro, terminando no
final da Asa Sul. Nos dois extremos ela se
liga com outros locais, inclusive com
cidades satélites. Hoje, início do século
XXI, elas são bairros da capital.
— Você já viu como é linda essa
cidade?
— A arquitetura dela é festejada em
todo o mundo.
— É. Os europeus são os mais
fascinados. Mas não estou dizendo só da
arquitetura.
— Você está se referindo como é
agradável andar pelo Eixão...
— As árvores, as flores, o sol
iluminando, tudo isso é tão lindo!
Havia árvores e flores nos dois
lados.
Árvores frutíferas, principalmente
manga e amora, saboreadas por quem
quiser pegá-las. Muitas e muitas. Aquela
fartura que a Natureza dá sem pensar em
estoque, em posse. Em algumas épocas elas
abundam para atualmente tentar saciar a
fome desse povo (antigamente
conseguiam). Depois cessam. Estão se
preparando para a próxima temporada. Elas
querem caprichar, se aprimorar tanto, que
passam a maior parte do tempo para a sua
grande oferta a nós. Enquanto isso, outras
estarão produzindo. Na mata virgem dos
instrumentos do homem, o revezamento é
perfeito e harmônico.
48
Árvores do cerrado. Retorcidas.
Quem chega na cidade, inicialmente não as
aprecia por serem muito diferentes
daquelas que as paisagens européias nos
acostumaram. Porém aos poucos o
imigrante vai aprendendo a admirá-las.
Algumas vezes se vislumbra uma tristeza
nelas. Um sofrimento que parece que vem
do fundo de seu íntimo. Entretanto isso é
uma fortaleza enorme que a seca de meses
não a deixa abater. Uma perseverança de
continuar a lutar para ficar naquele mesmo
lugar, mesmo com todas as dificuldades
que a própria natureza e a vida moderna lhe
impõem. Suas raízes heroicamente vão
pegar sustento nas profundezas do solo. Ela
continua ali. Sem fazer questão de ser
notada, muitas vezes maltratada, mas
sempre forte e altiva. Parecem com a
maioria das pessoas: quase anônimas.
E as mais belas: as árvores e
arbustos de flores. Quantas flores. Como
são lindas e coloridas! Algumas têm muita
cor e muita exuberância. Outras são
miudinhas e discretas. Algumas vieram de
outros lugares, outras são daqui mesmo. O
ano inteiro se revezam para alegrar as
nossas vistas. Todas são encantadoras.
Porém o ipê se destaca na época de
seca. Quando as cores das outras se
escasseiam, ele rompe com suas flores. Elas
têm um colorido tão forte e tão intenso que
se impõem maravilhosamente nos
canteiros. Chamam atenção num escândalo
de beleza. Não duram muito, mas suas
cores, que são várias, marcam todos
aqueles que passam pelo Eixão.
Como na temporada de chuva –
como chove o dia inteiro em janeiro – em
que o verde impera exageradamente, nós

49
somos brindados com uma flor aqui outra
acolá para alegrar os dias cinzentos.
E o sol. Quanta luminosidade! Ela é
tão intensa que abrange tudo que a nossa
vista consegue olhar. Parece que vai além
da nossa percepção, penetrando no fundo
de nossas almas.
— Quem pode ficar triste, sem
sentir o divino toque, debaixo do sol do
Eixão?
— E quem pode deixar de agradecer
a Deus por tanta maravilha?

18

A secretária de Benedito pediu


demissão. Havia feito um concurso e foi
para um lugar melhor. A função ficou vaga.
Então se candidatou para o lugar
uma funcionária de nome Ricardina.
— Ela terá de me apresentar suas
habilidades, seu curriculum vitae.
— Ah! Dr. Benedito ela precisa
tanto desse dinheiro.
— Vamos ver se ela tem qualidades
para a vaga. Não vamos chegar à frase de
Rubião, ao dizer, quando perguntado por
Açucena, que qualquer critério é critério.
Ricardina não expôs nada do
exigido. Em vez disso se pôs a andar pelos
corredores falando de suas misérias. Para
terminar foi se lamentar com Antonia.
— Esse é daqueles que gostam da
esposa e é nela que eu vou me pendurar.
À noite Antonia começou a falar
com o marido.
— A Ricardina está querendo a
função de sua secretária.
— Não sei se ela tem capacidade
para o cargo.

50
— É que ela é viúva e tem três
filhos pequenos. O marido morreu numa
troca de tiros na feira do rolo na Ceilândia e
não deixou um centavo para ela. Nem
pensão. Ela está passando dificuldades.
— Antonia, ao indicar o nome de
uma pessoa para a função de minha
secretária, eu não vou estar fazendo
assistência social. Nem tenho esse direito.
A União paga uma quantia para uma pessoa
fazer um determinado trabalho. E a União
paga com o dinheiro dos contribuintes, do
povo que paga impostos. Ela sabe bem
português, lida com computador, tem
desenvoltura para telefonar e lidar com o
público?
— Isso eu não sei.
— Oh! Meu amor, não deixe esse
coração de ouro que você tem dentro do
peito atrapalhar a visão das coisas. Eu
também lamento a situação dela. Se puder,
vou ajudá-la no possível. Entretanto tenho a
obrigação de dar essa função para quem for
desempenhá-la da forma que contribua para
o bem comum do nosso país.
— Você não acha que está
exagerando um pouco. É só uma função de
secretária.
— Não estou exagerando. Se eu lhe
der a tal função sem ela ter capacidade para
tanto, o que vai acontecer? Outra pessoa vai
ter que fazer o trabalho dela sem ganhar.
Isso é justo?
— Não. Aliás é o caso da Cremilda
que a gente critica tanto.
— Sabia que você ia entender
minha posição. Pode ocorrer também que
ela não faça o trabalho por incompetência,
ninguém mais faça e a máquina
administrativa fique emperrada. É um dos

51
motivos por que o serviço público não
deslancha.
No outro dia veio à sua sala seu
amigo Ananias.
— Benedito, eu soube que sua
secretária pediu demissão. Bota a Olandina.
— Vou fazer uma análise e ver se
ela tem todos os requisitos.
— Ah! Ela é minha prima. Qual é?
— Qual é não. Não posso colocá-la
sem as condições necessárias só porque é
sua prima.
— Não seja radical, homem. Se
fosse sua prima, ai sim, iam dizer que você
estaria botando parente, essa história toda.
Mas é minha prima e ninguém nem vai
ficar sabendo. Além de você fazer um favor
para um amigo. Aqui nesse país, amigo é
para essas coisas.
— Não concordo com isso. Essa
função não é presente para os amigos. É
para ser exercida por alguém que contribua
para o bom andamento do Mabs.
— Que exagero!
— Exagero é a mentalidade de
certas pessoas do nosso povo que encara o
serviço público com um cesto de presentes
e favores. É um dos motivos por que fica
difícil se fazer uma nação desenvolvida. Se
eu pensar assim, não poderei criticar os
políticos corruptos. Ficarei igual a eles. O
escritor João Ubaldo Ribeiro* diz que não
são só as elites que são corruptas, o povo
também. Esse episódio está mostrando que
ele tem razão.
— Ela precisa tanto...
* “Esse negócio de dizer que as elites são
corruptas mas o povo é honesto é conversa afiada.
Nós somos um povo de comportamento desonesto
de maneira geral, ou pelo menos um comportamento
pouco recomendável” - João Ubaldo Ribeiro, revista
“Veja” Ed. Abril, ed. 1905. Ano 38, n. 20).
52
— E tem outra coisa: há algum
tempo me disseram que a Olandina falta
demais. Você não me pediria para
negligenciar também isso.
— Não tem jeito não?
— Se ela não tiver os requisitos,
infelizmente não. Lamento não poder
ajudá-la. Não tenho esse direito.
Ele fez uma seleção entre as
funcionárias e escolheu Hortência. Ela era
uma jovem senhora que fazia faculdade de
letras à noite. Antes fizera um curso de
informática pelo Senac. Era também
desembaraçada e educada. Fazia jus à
quantia suplementar que o governo lhe
pagava.
Teve muita gente no Mabs que não
entendeu a posição de Benedito e houve
muitas acusações contra ele pelo episódio.
Com certeza isso lhe deixou magoado.
Porém ele estava tranqüilo com sua
consciência. E isso lhe bastava.

19

Circe badalava o Poderoso, a esposa


dele e Cremilda. Difícil imaginar como
conseguia elogiar as duas. E ainda dar
razão às duas. Quando ambas estavam num
mesmo lugar, tinha de fazer um grande
esforço. Então dizia a Cremilda:
— Como “a esposa” é emproada e
exibida. Ninguém agüenta essa perua com a
sua “tradicional família”.
Para D. Cacilda falava:
— Não sei como uma pessoa tão
aristocrática e fina, igual à senhora, pode
conviver com essa vadia. Sem classe nem
moral nenhuma.
Pode parecer paradoxal, mas ela
estava sendo sincera com as duas. Apesar
53
de não se importar em nada com a verdade.
E outras coisas assim.
Houve uma vez em que, após o
expediente, ela foi à casa do Poderoso, para
ajudar D. Cacilda a fazer as malas do casal
para uma viagem internacional que
apareceu de repente. Como sabia o horário
do avião, quando chegou à sua casa,
telefonou para Cremilda, para saber as
últimas informações sobre as trapaças e a
escória do Mabs. Ela sabia que o Poderoso
com a esposa, era “todo religião”, protocolo
cerimonial, tradição e boas maneiras.
Entretanto com a outra, desabafava sobre
toda a sujeira a que era obrigado a fazer e a
engolir.
Já não mais precisava procurar
Cicinha. Porém se encontrava com esta,
punha os assuntos em dia. Somente da
outra para ela.

20

O casal Corinto e Circe grudou em


Rubião. Era previsível.
Ele conseguia que o Secretário
ganhasse quase sempre no jogo.
— Será que o outro não é melhor
jogador ou ele não se distrai muito?
— Não. Ele é campeão na jogatina e
está sempre atento. Ficar sem atenção não é
característica dele.
— Interesseiro lembra sempre de
tudo e de todos para agradar os poderosos.
O outro não percebia.
Um dia Rubião e Circe foram a uma
reunião fora da cidade. Aconteceu um
clima entre os dois e eles foram para o
quarto de hotel do próprio aeroporto.
Quando regressaram a Brasília, o Secretário
fingiu um problema de saúde para não
54
enfrentar o marido da assessora. Ela não.
Estava tão calma que parecia que tinha
comprado uma escova de dente no
aeroporto. Somente.
Como conhecia bem toda a situação,
a mulher que tinha e não queria ver nem
tomar nenhuma atitude, Corinto
inconscientemente percebeu tudo. Melhor
se fazer de desentendido.
Ele tinha a maneira de pensar muito
parecida com o falecido pai da mulher.
Esse era até mais escrachado, pois, por ser
de poucas letras, não tinha o verniz do
genro. Só teve duas qualidades: manteve a
família e deu estudo à filha.
Em casa, Circe contou para a mãe.
— Com uma mulher tão bonita
como você minha filha, que homem pode
resistir? E você, inteligente como é, não
poderia perder essa oportunidade.
Eles não se tornaram amantes. Não
interessava a nenhum dos dois. No período
que se passou depois, houve outros poucos
encontros. Só para ela ter um ponto a mais
que os outros funcionários. Para isso o
casal faria qualquer coisa. Ele mesmo só
não tinha se submetido, porque não se fez
necessário. Tinha até argumentos:
— Eu posso fazer o que for, sempre
vou continuar macho! Além do mais, não
tenho nada contra homossexual. Digo
outra: eu os adoro!
— Eu também adoro homossexual,
homem e mulher.
Quando falavam isto, não havia
admiração pelo chamado terceiro sexo, pois
eram muito preconceituosos. Pensavam
somente em se aproveitar de situações.
Tempos depois ela também teve
uma transa com o Poderoso.
— Certo, minha filha, você
55
precisava tanto daquela função. Tanta gente
querendo... Você tinha que dar um jeito.
Quando disseram dos casos
extraconjugais da amiga a Antonia, esta
não acreditou.
— Como vocês podem afirmar isso
de uma senhora casada. Ela pode até ter uns
pequenos deslizes de caráter, mas falar isso
dela é demais. Eu os conheci adolescentes.
Ponho minha mão no fogo. Sei quem são.
Como vocês descobriram, serviram de
cama?
O que ela não sabia é que as pessoas
mudam com o tempo. Para melhor e para
pior. Outra coisa a se considerar é que
todos nós trazemos, lá dentro, no âmago,
cobras e lagartos em nossos porões
psicológicos. Se não trabalharmos
constantemente a nossa parte positiva e
boa, às vezes podem emergir monstros
horrendos.
Inocentemente foi à casa da amiga e
alertou a própria e a seu marido.
— Imagine se inventam que você
está transando com alguém. Como ficará
seu marido e seu casamento?
A outra, seu marido e sua mãe não
disseram uma palavra.
— Eu estou falando para vocês
terem mais cuidado. Um dia alguém pode
inventar histórias de vocês.
— Tem tanta gente nesse
Ministério que não presta!
Quando ela saiu, eles se olharam e
começaram a rir.
— O que será que quis dizer com
isso?
— Nada não. De tão inocente é
boba.

56
— Acho que é isso mesmo. Além
do mais, como diz nosso amigo Quintino
‘pagando bem, que mal que tem’?
— Dentro dos nossos padrões,
temos um casamento perfeito. Eu não
gostaria nunca de me separar de você.
— Nem eu, Cyssi. Nós somos
apaixonados e nos admiramos.
— Nós nos merecemos!.

21

Minervina era uma funcionária


muito inteligente e capaz. Porém também
gostava de badalar. Por isso começou a ter
amizade com Circe. Trocavam fofocas e
fuxicos.
— Temos de estar bem informadas
para segurarmos nossas funções.
Isso não era verdade, entretanto
como as duas eram muito carreiristas,
davam uma desculpa para si mesmas para
tal procedimento.
Certa tarde, o Poderoso e o
Secretário haviam viajado a serviço. Por
coincidência para seu estado natal.
O Mabs estava sossegado.
— Circe, eu tenho um projeto, no
qual trabalhei alguns meses. Eu queria
trocar idéias com você. Para aprimorar.
— Lógico, estou aqui para escutar
você, minha amiga.
Minervina se pôs a explicá-lo à
interlocutora. Disse que existia uma seção
inteira com oito funcionários que recebiam
determinado tipo de pedido para concessão.
Tratava-se de assunto importante para o
país. Todas essas pessoas precisavam ficar
verificando se não tinham pedidos iguais.
Isso era necessário. Além de exaustivo e
cansativo, sempre havia a possibilidade da
57
falha humana. Ela se interessou pelo
assunto, pois quatro meses antes, alguém
errou, e o assunto foi parar em destaque na
mídia nacional.
Apesar de atenta, a outra se
mantinha em silêncio. Porém como ela
estava empolgada e queria ter as glórias do
feito, continuou.
— Como meu marido lida com
informática, nós trabalhamos muito e acho
que conseguimos uma saída genial.
Colocamos todos os dados no computador,
e cada funcionário, de início, já consegue
perceber se há outro pedido igual.
Praticamente sem margem de erro.
Circe pegou a papelada e então
começou a pedir explicações detalhadas. A
outra lhe deu toda a matéria, acreditando
que ela iria lhe ajudar com o Secretário e
com o Poderoso.
— Consegui uma aliada!
Quando a outra saiu, ela chamou um
rapaz que trabalhava com processamento
de dados. Conversou muito com ele e
percebeu que o mesmo estava aquém do
que ela queria. Pediu-lhe uma
recomendação.
— O meu professor é gênio nessa
matéria.
— Esse me serve. Qual o telefone
dele?
O tal mestre e ela trabalharam no
final de semana. O marido deu-lhe toda a
assistência e o incentivo para a usurpação.
Quando o Secretário chegou na
terça-feira, Circe, com uma tranqüilidade
assombrosa, apresentou a ele o projeto,
como se fosse dela.
Minervina só conseguiu falar com
ele na quinta-feira. Quando começou a
expor, ele lhe disse:
58
— Sobre esse assunto, a Circe
conseguiu uma solução genial.
Passou então a lhe contar sobre o
projeto afanado. Ela ficou boquiaberta. Ele
nem percebeu.
Evidentemente que a impostora não
quis falar com ela durante algum tempo.
Evitou a outra drasticamente.
Entretanto como ela não podia ir
contra alguém tão poderosa, teve de
“engolir o sapo”. Tempos depois as duas
voltaram a se conversar. Interesses
recíprocos.

22

Numa tarde de sexta-feira, o Mabs


estava com pouca gente. Os graúdos
viajaram. Sua corte também. Em seus
locais de trabalho, o serviço estava em dia.
Então Benedito e Antonia se despediram,
entraram em seu carro e iam para casa.
Ao sair, pegaram o Eixo
Monumental.
— Dizem que é a avenida urbana
mais larga do mundo, apesar disso não ser
muito importante.
É a via que vem descendo dos
palácios do governo do Distrito Federal,
cruza a Rodoviária do povão, passa pelos
ministérios e termina na Praça dos Três
Poderes. O Supremo Tribunal Federal fica
do lado direito, o Palácio do Planalto, com
sua famosa rampa, do lado esquerdo e o
Congresso Nacional ao centro. É o gênio do
urbanista Lúcio Costa que se impõe.
Os três prédios são de autoria do
magistral Oscar Neimeyer, arquiteto
reconhecido no mundo inteiro. Apesar de
serem edifícios grandes, são de uma leveza
que encanta. A harmonia entre eles esbanja
59
beleza. Há uma dança de elegância e
charme.
— São obras de arte!
O casal ia calmamente em seu
automóvel, dirigido pelo marido.
— Benedito, preste atenção ao pôr-
do-sol ... Tão lindo!
— É mesmo, minha Antonia
romântica, cheia de poesia.
— Quem consegue ver esse poente
tão belo e não sentir-se tomado de emoção
e alegria.
— Infelizmente a maioria das
pessoas, que passam por aqui, está
pensando em poder, dinheiro e nem presta
atenção a nada. A única coisa que vão se
preocupar em relação à natureza, é que o
sol ofusca sua vista.
— E ofusca mesmo. É intenso e
maravilhoso. Olha as cores do poente, não
são vistas em outros lugares. Não há só o
amarelo, como usualmente se veste o sol,
para se despedir. Aqui ele se enfeita de
vermelho, roxo, salmão, rosa, azul, num
exagero de cores que penetra em nossos
olhos, em nossos sentidos, em nossas
entranhas.
— Como você está romântica!
— A aurora aqui também é muito
linda. Mas o entardecer é tão abrangente,
que até a temperatura cai, quando se
despede o astro sol com seu espetáculo.
— Você tem razão. Quem vem a
Brasília e não se deleita com isso, perde
muito.
— O Eixo Monumental começa no
poder e passa pela arte e pela fé.
— Como assim?
— Do lado direito o Teatro
Nacional, imponente e moderno.
— É mesmo.
60
— Do lado esquerdo, a Catedral.
Oscar Neimeyer, também autor do teatro,
projetou o templo como mãos em prece.
Também moderna e arrojada.
— Os dois monumentos são bem
diferentes dos outros grandes teatros e das
outras grandes catedrais.
— Maravilhosos!
Logo depois, dobraram para o Eixão
e seguiram para pegar seus filhos na escola.
Quando regressaram ao lar, ela
lembrou-se do Eixo Monumental que a
deixara deslumbrada. Era muito sensível ao
belo. E foi feliz...

23

Com Rubião trabalhava Astolfo. Ele


era careca e fez implante. Entretanto a
cirurgia não ficou boa. O cabelo cresceu em
alguns lugares, noutros não.
— Antes ele era um careca
saudável, agora parece um sujeito com
doença no couro cabeludo.
— Dizem que ele quis pagar barato
demais. Vai ver que o tal nem médico era.
Ele fazia questão de se dizer
honesto e detestar a corrupção. Fazia
gozação e piadas do Dr. Joab, porém o
tratava bem. Também de todos os
desonestos que a mídia punha em
evidência. Ria muito. Não percebia que o
chefe e outros davam um sorriso sem graça
e desajeitado.
Tinha frases assim:
“— Música para mim tem de ser
genuinamente brasileira. E com
qualidade, pois temos artistas muito
bons. Não pode ter influência de
outros países. Exceção é a música

61
clássica. Os maus nem deviam
gravar.”
“— Quem pegar do serviço público
uma folha de papel, uma borracha
ou uma caneta, também deve ser
considerado ladrão.”
“— Telefonema particular só em
caso de urgência ou se não houver
outro jeito. E bem rápido.”
“— Durante o expediente de
trabalho, só poderá haver uma breve
pausa para descanso e ida ao
banheiro.”
“— Política e honestidade não
conseguem andar juntas atualmente.
E isso serve para os políticos
nacionais e internacionais.”
Etc.
Às vezes lá estava alguém
entusiasmado falando sobre futebol, ou
mulher ou contando alguma fofoca,
quando ele chegava, deixando os outros se
sentindo mal. Situações semelhantes
aconteciam com freqüência.
Gostava muito de criticar a todos
que pudesse.
— Quem faz, não critica. E quem
critica maldosamente, não faz, ou faz
pouco, bem pouco.
Quando alguém falhava em
qualquer coisa, lá vinha o dedo dele a
apontar. E ria, ria.
No início ele foi comparado ao
Benedito, porém aos poucos foram notadas
algumas diferenças.
Apesar de se dizer uma pessoa sem
máculas, convivia com Cremilda, e suas
iguais, procurando agradá-las o melhor que
podia. Também tinha o cuidado de não
falar em moral perto delas.

62
Quanto à participação de Rubião e
outros em maracutaias, fazia de conta que
não percebia nada. Um dia alguém lhe disse
que eles eram corruptos. Negou
veementemente. Radicalizava que no Mabs
não havia bandalheira. Os erros eram
daqueles que freqüentavam ali.
Era tanta bobagem que os ouvintes
não sabiam se era gozação ou se ele estava
querendo saber de suas opiniões para delas
fazer uso.
— Ele mente e sabe que mente.
— Não é bem assim. Ele mente para
ele mesmo.
— Ele não sabe o que é certo e
errado?
— Sabe. O problema dele é que não
convive com a verdade nem com ele
mesmo. Mas tem o livre arbítrio e noção do
bem e do mal. Erra, sem dúvida.
Não fazia parecer maroto, entretanto
com ele concordava, tomando o cuidado de
elaborar uma frase que não dissesse nada
com nada. Ao se esquivar, dava desculpas
para si e para os outros, justificando sua
atitude. Nunca dizia que aquilo estava
errado, porém não tinha força para ir
contra. Nem de brincadeira admitia isso.
— Se faz de tão sério!

24

A mídia estava dando em cima de


um determinado assunto sobre corrupção
ou coisa semelhante. Era todo dia aquilo no
jornal, na televisão e no rádio.
O Poderoso havia chamado Rubião
para resolver o problema. Por sua vez, ele
chamou a Dra. Aurélia.

63
Ela estava como Secretária há muito
tempo no Mabs. Saía governo, entrava
oposição e ela continuava.
— Por quê?
— Sei lá, ela deve interessar a
algum grupo muito poderoso e importante.
Também se aliava ao fato de que ela
agradava a todos. Bajulava o máximo que
podia. Em política não se metia.
— O importante para mim é o meu
país. Não tenho partido político.
Vez por outra ficava numa situação
delicada, pois não queria desagradar aquele
do partido que já esteve no poder, e
atualmente é oposição, e precisava badalar
o de agora. Porém tinha muito jeito e
diplomacia, conseguindo acertar em tudo.
— Amigo meu é para sempre, com
poder ou fora dele.
Evidentemente não era bem assim.
— Tem o fato de que o poderoso de
hoje, pode precisar dela amanhã.
Com isso, ela continuava no cargo.
Rubião achou que ela poderia
encontrar uma solução, com sua longa
experiência:
— Temos de pôr fim a esse
escândalo. Exagerado demais.
— Isso interessa a determinados
grupos?
— Sim, sim, sim. É óbvio. Caso
contrário, já teríamos encerrado. Tem de
continuar e calar a boca desses fulanos da
imprensa. Eles estão passando dos meus
limites do bom senso. Estou lhe pedindo
uma saída para essa crise. Sabe o que
fazer?
Ela pensou um pouco, depois disse:
— Vamos instituir uma Comissão
de Alto Nível Interministerial.

64
— Mas, Dra. Aurélia, não vamos ter
problemas com outros ministérios. Esse
nós conhecemos, e melhor, nele
mandamos. E nos outros?
— Meu caro, não precisa ver perigo
nos outros ministérios, que em situações
iguais, pessoas iguais a nós vão fazer o
mesmo.
— O nome é bonito.
— O assunto enrola anos e anos.
Todos viajam, todos se esbanjam em
pareceres compridos, prolixos,
ininteligíveis e sem objetivo algum. Vez
por outra passa de um ministério para
outro, sempre com o cuidado de escolher
pessoas iguais a nós, e aí vai mais tempo.
— Podemos pôr o Astolfo para
presidir.
— Boa idéia!
— Se necessário, há o casal Corinto
e Circe. Há também Ananias, Quirina, etc..
— Há muita gente. Pode ser que dê
até briga para ser escolhido para a tal
comissão.
Os dois riram aquele risinho de
safado. A comissão foi nomeada e
instituída... e o assunto morreu na
imprensa.
— Antonia, não é possível, o
Astolfo só faz pareceres, reuniões e nada de
soluções.
— Será que alguém quer resolver o
problema?
— E a moral, o bem comum e o
nosso país?
— Hoje, com a globalização, não é
só no nosso país que se deve pensar, é no
mundo todo. Eu lhe pergunto: aonde vamos
parar?
— Será que só nós dois nos
preocupamos com isso?
65
— Não. Você está exagerando. A
maioria dos funcionários – e dos brasileiros
— é honesta e está preocupada com coisas
positivas.
— A maioria são os concursados.
— A Líria e o marido, que têm a
mesma forma de pensar que nós, me
disseram que eles ensinavam os filhos
todos os bons princípios. Infelizmente eles
eram ridicularizados muitas vezes.
— Então não tem jeito?
— Tem jeito sim. Hoje os filhos
deles são ótimos profissionais e estão bem
na vida amorosa. Muitos dos que os
ridicularizaram, atualmente estão na pior.
— Verdade que há aqueles que
estão ganhando muito dinheiro.
— Quando você faz o melhor que
pode, não deve lamentar.
— É minha Antonia querida, não
podemos desanimar. Como temos moral e
caráter, devemos continuar a caminhada
com nossos ideais.
— Temos de lutar o bom combate,
já diz a Bíblia.

25

Belarmina fez aniversário. Então


alguém resolveu fazer uma festinha.
Primeiro inventaram refrigerantes,
salgadinhos e uma torta doce enfeitada.
Mandaram escrever “Bela Belarmina” para
bajulá-la. Entretanto alguém ponderou:
— Com ela combina mais cerveja,
uísque, etc.. Coisa mais pesada.
Todos riram com escracho.
Apesar de ser proibido bebida
alcóolica em serviço, os participantes
acharam perfeito.

66
— Saiu dos cofres públicos ou do
bolso do Dr. Joab?
— Sei lá. Da aniversariante com
certeza não foi, nem de seu protetor.
Nem esperaram às seis horas da
tarde, quando encerra o expediente.
Quando eram cinco e pouco, Rubião
desceu, e começaram a festa. Estava sem
comer pois não havia tido tempo de
almoçar. Foi só um sanduíche.
— Não convida gente careta! Eles
vão é atrapalhar...
Certas pessoas nem queriam ir
mesmo. Se fossem convidadas, teriam de
dar uma desculpa educada. Porém havia
aqueles que não gostavam daquele
ambiente nem daquilo tudo, mas
estranhamente gostariam de receber o
convite.
— Não sabem o que querem. Será
que sua retidão é mesmo reta?
Muita bebida, talvez droga, em
pouco tempo todos estavam embalados. A
aniversariante ficou perto de seu protetor.
Ananias se pôs a tocar violão e
Rubião, meio embriagado, começou a
cantar. Sua voz era esganiçada e desafinava
muito.
Acontece que o pessoal começou a
elogiá-lo. Exageraram tanto que ele se
julgou um cantor afinado mesmo. E
deslanchou a voz.
— Como canta bem!
— É agradável vê-lo cantar!
— Repita esta última. O senhor
canta todas bem, mas esta da sua região
ficou maravilhosa! Como gosto de
melodias folclóricas. De lá então. E na sua
voz!

67
Na verdade, o badalador nem
conhecia a cidade dele, nem escutaria
nenhuma música regional.
Chegaram ao ponto de fazer coro
enquanto ele arrepiava as canções.
— E como conseguiram?
— Ora, o puxa-saco põe um lá-lá-lá,
o bajulado quer ouvir aquilo e ninguém vai
contra. Ao contrário. Dá tudo certo!
Os participantes da festa
continuaram:
— O senhor tem de gravar um CD.
Vai estourar.
— Não tenho tempo.
— Então o senhor nos promete que,
quando largar o Mabs, fazendo o sacrifício
que está fazendo, grava. Será um sucesso.
Quase embriagado ele afirma: (o
pior para si mesmo)
— Gravo!
E continuou cantando. Estava tão
embevecido que nem viu quando ou com
quem Belarmina saiu.
— Estava mais gostoso que ela.
Saiu às nove horas da noite,
abraçado com Astolfo e Corinto. Eles o
puseram no carro. Nesse estado de
embriaguez foi dirigindo sozinho e
cantando. Pode parecer absurdo, porém
chegou à sua casa e, que se saiba, não fez
nenhuma besteira noticiada.
Entretanto no outro dia se
arrependeu de ter vindo dirigindo
embriagado. Da cantoria não. Estava se
sentindo um grande cantor.
Infelizmente outras vezes repetiu a
bebedeira, a seção de cantos e o
arrependimento.

68
26

Havia no Mabs viagens a serviço.


Na teoria seriam tão desagradáveis que o
governo/empregador teria de pagar uma
quantia extra para despesas fora de casa e
pelo transtorno. Na prática havia dois tipos
de viagem. A primeira era para trabalhar
muito, em lugares distantes e sem nenhuma
atração. Então eram designados
funcionários trabalhadores e sem proteção.
E outra se referia àquelas para cidades de
praia e para o exterior, que se tornavam um
prêmio.
— Quem deve ser designado para
esse trabalho, que nas esticadas fica
agradabilíssimo?
Os Chefes/Secretários, enfim
poderosos do momento, indicavam a si
próprios. No máximo alguém a quem
tivessem interesse. Quando não podiam por
falta de espaço na agenda ou por algum
motivo político contrário, passavam ao seu
subordinado mais cotado. Esse
invariavelmente usava o mesmo critério.
Essa prática tinha poucas exceções, que
sempre vinham carregadas de histórias
pitorescas.
Benedito e Simão estavam
conversando num final de expediente.
— É um absurdo. Tem um encontro
internacional sobre um assunto de interesse
não só do Brasil, mas do mundo inteiro.
Sabe quem estão mandando para nos
representar?
— Sei. O Rubião, a Circe e a
Belarmina. Não sei se vai mais alguém...
— Tenho até medo de saber quem
mais vai... Que horror!
— É isso ai.

69
— Eles não pensam que poderiam
ajudar nosso país e a Humanidade?
— Não. Só olham para si. Vou
contar uma história para você. Eu tenho
uma chácara lá longe, você sabe.
— Conheço. Nós já fomos lá num
domingo.
— Isso. Lá eu tenho uma cachorra
chamada Diana.
— Homenagem à princesa inglesa.
— Não. À deusa grega da caça. É
um animal forte e bonito. Nós gostamos
tanto dela que brincamos que ela fala.
— De faz-de-conta. Prosopopéias.
— Um dia eu pus uma outra
cachorra lá. Era ainda mais bonita. Ficou se
chamando Afrodite. Só que a primeira batia
muito nela. Muito mesmo. Tinha um
veterinário meu amigo que me disse ser
isso normal. O animal se sente dono de
território. Quando chega outro, para ele é
invasor.
— E a segunda ficou apanhando?
— Parece incrível, mas não havia
outra solução. Eu precisava das duas. Num
domingo eu levei uns ossos para elas, e
deixei lá. A Diana pegou o maior, depois o
outro, e ainda o outro. Quando Afrodite foi
pegar o menor, ela rosnou braba e tomou-
lhe o último. Então humildemente ela
perguntou-lhe: “Diana, quais ossos que são
meus e quais são seus?” E ela lhe
respondeu prontamente: “Todos os ossos
do mundo são meus!” E ficou tudo por isso
mesmo. Meu caro amigo, eles se julgam
donos de território.
— Eu entendi a mensagem. Acho
tudo tão absurdo. É isso. É a Cremilda
ganhando pela função na qual a Ráfis
trabalha duro sem ganhar.
— A Cremilda é “jabuti na árvore”.
70
— Que é isso?
— Na Esplanada dos Ministérios
existe esta expressão: “jabuti na árvore”.
— Por quê?
— Você vai andando e se depara
com uma árvore. Então vê um jabuti em
cima dela. O que você pensa?
— É um absurdo. Jabuti não pode
subir em árvore.
— Ele não pode subir e nem tem
capacidade para estar lá. Portanto alguém o
botou lá. “Jabuti na árvore” é estar num
cargo sem capacidade, colocado por um
poderoso. Não se deve mexer, amigo. Se
tentar mudar alguma coisa, dá confusão pro
seu lado.
— Você tem cada história, Simão...
— Esse absurdo não é só na
Esplanada dos Ministérios que existe.
Assista à televisão e veja nas novelas como
tem “jabuti na árvore”... E outros setores
também...
Os dois riram muito. Despediram-se
depois e foram para casa.

27

Voltou a trabalhar em Brasília,


vindo do Rio de Janeiro, o Dr. Eliseu.
Ele havia sido o homem mais
importante do Mabs. Naqueles tempos,
todo empafiado, não atendia ninguém que
não lhe interessasse, julgando-se superior.
Até sua mulher, em sua residência, evitava
receber pessoas e atender telefone. Sua
empregada tinha ordens para barrar as
pessoas.
— Quem quer falar? ... infelizmente
ela (ou ele) não está! ... não vou poder
deixar recado porque vou sair agora. ...

71
Mais tarde também vai ser difícil encontrá-
la (lo).
Depois se desentendeu com o
Poderoso da época. Uns diziam que ele foi
contra interesses cruciais, outros que ele
estava se achando mais do que era. Outros
ainda que houve divergências na hora de
dividir sei lá o que.
O certo é que os dois se trancaram
no gabinete do Ministro, sem testemunhas,
e brigaram feio. Eram gritos e xingamentos.
Quando saíram estressados e
transfigurados, tinha xícaras quebradas e
até uma estátua no chão. Evidentemente
que não falaram com ninguém e nem deram
explicações. Não queriam tocar no assunto.
Dr. Eliseu tirou férias e licença-
prêmio. Quando terminaram, ele foi
trabalhar no Rio em outro órgão.
— Naquele tempo, todos que
vinham de fora viravam funcionários
efetivos. Pelo menos agora, depois que
acaba o padrinho, vão embora. Os que
ficam são os concursados, que são, ou
deveriam ser, os técnicos.
— O apadrinhamento e a proteção
fazem com que outros se acomodem.
Alguns viram até preguiçosos. Vêem os
incapazes lhe passarem à frente e
desanimam.
— É pena. Um dia isso muda. E
para melhor!
Quando retornou a Brasília, ele e a
mulher só queriam ficar perto da filha
casada e dos netos. Tinha uma situação
financeira estável e queria sossego. Não
pretendia mais o estresse do poder, nem
tinha mais saúde para essas emoções.
Isso ele sabia, entretanto não os
carreiristas da época.

72
Apesar de chegar dizendo que
queria ficar num lugar sem nenhum
destaque, somente com tranqüilidade para
completar seu tempo de aposentadoria,
ninguém acreditou nele.
Para começar Circe chamou sua
velha conhecida Cicinha para lhe contar
quem tinha sido esse personagem. Ficou a
escutar durante quase o expediente da
manhã.
Depois disso, ela e o marido
passaram a fazer uma guerra contra aquele
que retornou. Velada como era seu estilo.
E não foram somente eles não.
Todos que tinham posto ou pretendiam ter,
hostilizavam-no.
Havia um acordo tácito entre quase
todos contra ele.
Benedito e Antonia nem entendiam
o motivo de tanta corrente contra. Porém
como diziam que o seu caráter no passado
não era satisfatório, também não o
defendiam.
— Que eu tenho pena de tanta carga
contra, tenho! Ninguém merece.
Deram ao Dr. Eliseu uma mesa bem
estropiada numa sala cheia de processos
velhos e mal cheirosos. Ficava ali também
um funcionário meio atrapalhado das idéias
que, de certa feita, queria tentar o suicídio
da janela gritando o nome da mãe. Antes
ameaçava jogar mesa e máquina pela
janela. O outro passeava o tempo inteiro
pelo prédio e quando parava na sala, era
para telefonar namorando. A última vendia
vasilha e flores de plástico quase o
expediente inteiro.
Não lhe davam nada para fazer. Ele
era um assessor de nada. O famoso
“aspone”*. Como ele era metódico e
* assessor de porcaria nenhuma.
73
cumpridor de horário, ficava o dia todo sem
ter com que trabalhar. Para ele era
insuportável aquela situação. Começou
então a trazer livros, revistas e jornais.
Porém isso não lhe bastava. A sensação
desagradável continuava.
Ele tentou ser útil, bajular e
envolver. Nada adiantou. Até ser simpático
com os mais simples. Eles também não
queriam prosa, para não desagradar seus
chefes. Tudo em vão.
Um dia, ao sair do elevador, deu de
cara com um chefão de um organismo
internacional. Ele o conhecia dos velhos
tempos e tinha vindo para umas reuniões
muito importantes para o Mabs. Apesar de
estar rodeado de várias pessoas, o tal gringo
conversou com ele.
Chegando à reunião sugeriu, com a
segurança de quem exige, o nome dele para
participar das negociações.
— Sei que é uma pessoa de grande
capacidade profissional e irá melhorar o
nível técnico que pretendemos alcançar.
Todos se olharam com conivência,
entretanto como não tinham nenhum
argumento sustentável, tiveram que chamá-
lo.
O Dr. Eliseu veio alegre e feliz.
Atento procurava fazer todas as
anotações. Era a chance que ele precisava.
Passados vinte minutos, a secretária
da reunião chegou ao seu ouvido e disse-
lhe que alguém na ante-sala iria lhe falar.
Chegando lá Corinto lhe disse
secamente:
— Pode voltar para sua sala, não
vamos mais precisar de você hoje.
Quando ele ia retrucar, o outro já
estava fechando a porta. A secretária
também já tinha sumido. O porteiro, de
74
maneira educada mas firme, fez o infeliz
ver que ele nada mais tinha a fazer ali.
O funcionário do tal organismo
internacional ainda perguntou por ele.
— Infelizmente ele teve um
problema de saúde. Ele não está bem. Até
lapsos de memória ele tem. É uma lástima.
Como o gringo no Brasil tinha
muita coisa a fazer, esqueceu dele.
Ele tentou desesperadamente
contacto com o mesmo, porém não era fácil
e não conseguiu. Todos contra. O encontro
na porta do elevador tinha sido um fato
raro.
Aos poucos foi se desencantando de
voltar, pelo menos, a produzir.
Parece incrível, entretanto ainda
badalava a quem podia, para não cair mais.
Ou talvez por costume de bajular.
Também reclamava de injustiças
que outrora cometera igualzinhas. Criticava
com veemência, inclusive com palavras
desabonadoras e grosseiras.
Lutava para não se deprimir.
Com o tempo foi se tornando
inoportuno. Insistia em contar histórias de
quando ele tinha poder. Histórias essas que
ninguém queria escutar, por não
interessarem mais, pois os tempos e as
regras eram diferentes. E por nem
acreditarem nelas.
Em sua casa ninguém o visitava,
além de seus parentes. Porém esses não lhe
bastavam. Queria falar de seu antigo poder.
Já há tempos se arrependera do desfecho
que houve na briga com o Ministro da
época.
Arrumou então amizade com um
antigo oficial militar graduado, que não
sabia falar de nenhum outro assunto que
não fosse seu antigo e descomunal poder.
75
Os dois tinham um acordo tácito. Um
falava, falava sem parar, e o outro ficava
calado. Escutando não seria bem definir a
situação, pois, na realidade, não prestava
atenção. Em seguida o outro falava, falava
e esse ficava calado. Só conversavam
mesmo quando diziam que os tempos eram
outros, tudo estava pior e o país à beira do
abismo. Achavam que precisavam um da
companhia do outro.
Quando se aposentou, fez questão
de trazer uma torta doce. Foi de sala em
sala chamar todos. Pretendia pôr para fora
todo aquele tempo de amarguras e
humilhações. Quase ninguém veio nem
para comer o bolo. Os que vieram, pegaram
um pedaço e retornaram à sua sala. Só veio
e ficou ali uma antiga funcionária. Teve de
engolir seu discurso. O que restou do doce
deu então à faxineira.
A única presente foi Dona Violeta.
Ela também havia tido muito poder.
Tinha sido muito importante no Mabs.
Porém num determinado episódio defendeu
um injustiçado contra um amante de um
Secretário poderosíssimo e homossexual.
Os dois se enfureceram e ela caiu. Caiu
não, despencou. Os dois fecharam questão
contra ela.
Entretanto a reação dela foi
diferente daquela do Dr. Eliseu.
Tinha uma família estruturada.
Gostava demais de sua casa e de cuidar
deles. Quando a colocaram numa sala
estropiada junto a funcionários malucos e
desgovernados, ela começou a organizar
um manual prático da língua portuguesa.
Era muito culta e trabalhadeira. Como tinha
uma noção grande de responsabilidade e
tinha de vir todo dia ao trabalho pelo menos
poucas horas, resolveu organizar alguma
76
coisa curta e acessível a pessoas sem muito
traquejo na língua pátria. Andava pouco
nos corredores e falava o mínimo que
podia.
— Atualmente sou persona non
grata*. Não quero atrapalhar ninguém.
Entretanto as pessoas gostavam de
conversar com ela, e, aos poucos, foram se
aproximando. No começo escondido,
depois devargarzinho se chegavam mais.
Porém ninguém lhe dava a atenção de
antes. Nem de longe.
Ela começou a se dedicar também à
sua Igreja e a obras assistenciais. Elas lhe
tomavam toda a grande energia que tinha
dentro de si.
Quando os dois inimigos se foram
do Mabs, ela imaginou que tudo voltaria ao
normal. Só não pensou que os outros
funcionários tinham medo de sua
concorrência. Por esse motivo a excluíam.
Ela não esperava essa reação e
magoou-se muito. Achava que seus
inimigos eram somente: o Secretário
homossexual e seu namorado.
Era triste ver uma pessoa de tanta
capacidade profissional ser anulada,
entretanto na prática não tinha outro jeito.
A sua grande vantagem era sua
atividade fora do Mabs. Não se deprimiu.
Ao contrário, em sua comunidade, era lhe
dado grande destaque social. Ganhou até
homenagens.
O seu livreto de português também
ganhou um prêmio. Pequeno, simbólico,
sem remuneração nenhuma, porém ganhou.
Apesar de não se ver reconhecida
profissionalmente no Mabs, ela era feliz.

* Expressão latina que significa pessoa que não está


agradando.
77
28

O Dr. Joab envolvia cada dia mais o


maior número de funcionários.
Principalmente os mais graduados.
O casal Corinto e Circe só
almoçava, jantava e viajava às custas dele,
além dos depósitos em contas bancárias.
Eles gastavam muito. Cinicamente
desculpavam-se entre si.
Rubião, além de almoçar, jantar e
viajar, recebia carro, relógio, compras de
sua mulher Agar, etc.. Havia também
dinheiro. Ele desperdiçava demais.
Delirava com o luxo. Foi então que ele
começou a participar de orgias.
— Aí o homem endoidou.
Chegou a um ponto que recebia
ligações do outro:
— Cuidado com a escuta telefônica.
— Não precisa se preocupar. Aqui
no Mabs, tudo que acontece, passa antes
por mim. Fique descansado.
O outro se precavia. Ele não.
E assim ele foi deslizando.
Ananias também cada vez mais se
envolvia na corrupção. Mesmo sem querer.
A importância, que ele dava às coisas
materiais e ao prestígio, o fazia derrapar.
D. Galdina participava do esquema
do Dr. Joab. Quando ela foi transferida para
seu Estado, ajudada por Antonia, que não
conhecia essa sua parte escura e feia, foi
necessário substituí-la. Então Ananias foi
escolhido.
O interessante é que o Dr. Joab era
corrupto, sem caráter e sem moral somente
na parte profissional. Apesar de promover
orgias para os outros, não tinha amantes
nem se servia da luxúria.

78
Em certas ocasiões, quando havia
interesse, ele promovia jantares ou
festinhas com mulheres ou homens
disponíveis. Sempre bonitos, péssima moral
e ávidos por dinheiro. Os seus convivas
ficavam sob o efeito do álcool, das drogas e
de suas taras, colocando para fora seus
podres. Podres esses que seriam usados no
futuro, se necessário. Para disfarçar e
animar seus convidados, nessas ocasiões o
anfitrião ficava sempre com a mesma
moça. Na hora de consolidar a transa, eles
se retiravam, ele pagava o táxi para ela,
dando-lhe uma boa quantia em dinheiro.
Assim ficava parecendo que era o que não
era.
Em casa ele era excelente marido,
pai maravilhoso e filho exemplar. Como
todos estes, era atencioso, gentil e amável.
Passava inclusive segurança emocional aos
seus. Não gostava de falar de negócios
enquanto estava com a família.
— Os meus são somente para
usufruírem do meu trabalho.
Ele fez empenho de suas filhas
terem carreira completamente diferente
daquele meio. Não as queria misturadas
com aquilo.
Num happy hour conversava com
Ananias. Queria que o seu amigo Benedito
desse um parecer favorável a um cliente
seu.
— Ele não vai fazer isso.
— Você tem de arrumar um
“jeitinho”.
— Se o parecer vai ser dele, desista.
É impossível!
— Que maçada!
— Dr. Joab, nós temos uma
camaradagem, não temos? Posso lhe ser
sincero?
79
— Pode. Gosto da sinceridade até
de quem não é meu amigo.
— Diz uma coisa para mim. Nesse
processo, há agressão ao meio ambiente.
Não lhe dá remorsos? É o futuro da
Humanidade, de seus descendentes, que
está em jogo.
— Se eu soubesse que, se eu não
fizesse, ninguém faria, eu desistiria com
certeza. Mas acontece que se não for eu, é
outro. E ainda pior, pode acreditar.
— Será?
— É sim. Quer ver? Andam
comentando que o Rubião está largando da
esposa. Eu particularmente não acho certo.
Acontece que estão culpando a mulherada
com quem ele está andando.
— Não é assim não?
— Ele está largando a Agar porque
o casamento dele está ruim há muito tempo.
Ela fica a desejar. Não evolui, não se cuida.
— É o jeito dela.
— Ninguém pode, nem tem esse
direito. Jeito de se destruir, de ficar feio e
de ser preguiçoso.
— Nisso eu concordo.
— Mas o principal é que ele se
deslumbrou e já não se importa com a
família nem nada. Porque se não fosse
assim, o certo seria ajudá-la, dar-lhe a mão,
apoiando a Agar, para ajudá-la.
— Concordo. Mudando um pouco o
assunto: o senhor é advogado, não tem
vontade de freqüentar o Fórum, de fazer
audiências?
— Fiz a faculdade, mas não gosto
de Fórum, nem da Justiça dos Tribunais.
— Por quê?
— A Justiça brasileira é para a
classe média. Com poucas exceções. A
classe pobre não consegue acesso a ela. Os
80
ricos, principalmente os poderosos, mudam
a lei quando e para onde querem, ao seu
bel-prazer.
— Será mesmo, Dr. Joab?
— Você sabe que sim. Mas voltando
à mulherada. Falam que Circe é casada, que
Belarmina tem dezoito anos e tem
relacionamento com quem pode ser seu pai.
“Tá” errado, “tá”. Acontece que tem muita
mulher doidinha para transar com ele.
Evidentemente por causa do cargo dele,
para obter vantagens. Só não acontece
porque ele não tem fôlego, ou sei lá por
quê. Essas pessoas podem condenar
alguém? Seriam bem poucas aquelas que
não se sujariam nunca. Depois falam de
assédio sexual. O indivíduo está tão
acostumado a elas se jogarem nele. Vez por
outra quebra a cara. Bem poucas aliás.
— Você é terrível!
— Realista. Falam que a Cremilda
tem vinte e um anos e tem um
relacionamento com um velho que pode ser
seu avô. Falam também que ela é isso e
aquilo. Tudo é verdade, você sabe.
Entretanto ninguém procurou ver o porquê
dela ser e fazer as coisas que faz. Nem
ajudá-la mesmo. “Jogam pedras” por
inveja. Queriam estar onde ela está e ter a
beleza dela. Outra coisa: falam de
corrupção, no bem do Brasil e mal da
minha pessoa. Injustamente...
Os dois riram.
— Acontece que também tem muita
gente — homens e mulheres — se
oferecendo a mim para ser corrupto.
Alegam falta de grana, doença, família, até
amantes sugadoras. São desculpas para seu
erro.
— Será...?

81
— Será não, é a mais pura
realidade. Volto a repetir: há poucas
pessoas que não se sujariam jamais.
— Nisso há exagero!
— Exagero... eu é que sei. Mas sei
que existe. Um exemplo é o casal Benedito
e Antonia. E vamos e venhamos, são uns
chatos.
— Nisso eu não concordo. Eu gosto
deles. São exemplos de vida e de família.
— Eu também vejo qualidades
neles. Mas vamos ao que interessa. Você
tem que arrumar um “jeitinho” dele dar um
parecer a favor do meu cliente. Com
Rubião “peixe pequeno” também leva. Isso
não é comum, porque a maioria dos
grandes, pega dinheiro sozinho e obriga os
subordinados a fazer as patifarias que lhe
interessam. Voltando ao assunto, como é?
— Joab, vou ser sincero. Não tem
jeito nem jeitinho com ele. Se alguém
disser que tem, está mentindo. Suas
opiniões são formadas depois de muito
estudo e meditação. A partir daí, ele é
teimoso e incorruptível. Acho melhor você
encontrar outra forma, que não passe por
ele.
— Ananias, se ele fizer o que se
quer, você leva um bolão de dinheiro.
— Não corro atrás do dinheiro, mas
também não fujo dele. Não dá mesmo.
— Pena!

29

A mãe de D. Cacilda, D. Altiva,


veio passar um mês em Brasília.
Ela era uma mulher idosa, porém
conservava os modos e a fala de muito
requinte. Era também muito rica.

82
— Cacilda, temos de nos portar
conforme nossa linhagem.
Estava sempre elegantíssima e
coberta de jóias. Exageradamente. Viajava
muito também.
Circe fez questão de conhecê-la,
levando uma orquídea.
— Apesar de parecer uma árvore de
natal, ela é uma mulher muito fina.
Daí houve tanta bajulação — ela era
mestre nesse assunto — que a velhinha,
mesmo com sua longa experiência de vida,
se deixou encantar. Até se pôs em
confidências.
— Quando pensei em lhe trazer um
mimo, pensei em uma orquídea, pois é fina,
chique e bonita igual à senhora.
— Bonita, eu...?
— Mesmo na sua idade, a senhora é
maravilhosa. Imagino quando a senhora era
jovem, quantos corações arrebatou...
A pele enrugada e a olheira funda
não se enquadravam muito nessa idéia.
Porém ela gostou da falsidade.
— Isso foi verdade. Mas eu fazia de
conta que não estava percebendo. Na minha
época, mulher cortejada era malfalada.
As duas soltaram risinhos contidos.
Circe também.
— Na minha juventude eu me
preocupava demasiadamente com amor,
amor...
— Isso é bom, ou a senhora não tem
mais essa opinião.
— Amor é sempre muito bom. Eu
tive um namorado, meu primeiro amor. Eu
tinha catorze anos. Amava, amava, e o pior:
sofri, sofri. Passaram-se muitos anos, eu
soube até que o tal fulano não gostava de
trabalhar e se envolveu com coisas
obscuras. Eu já estava até casada com
83
filhos e o assunto para mim deixou de ter
importância. Outro dia escutei uma música
que eu, na minha cabecinha boba de
adolescente, dediquei a ele. Minha cara
amiga, era como dar pérolas aos porcos.
Eu, tanto amor e tanta sensibilidade, e ele,
um brutamontes incapaz de ter sentimentos
elevados. Nem me refiro a hoje, mas alguns
anos mais tarde, eu não conseguiria
namorá-lo. Ele pertencia a um personagem
da minha cabeça de adolescente, que não
tinha nada a ver com a realidade dele nem
daqueles dias.
— A senhora tem cada uma...
— O que fica complicado é o jovem
fantasiar, imaginar coisas fora da realidade.
Não é amar, é ter um sentimento egoísta
sobre uma pessoa. Coisa de alguns
adolescentes. Alguns nunca deixam de sê-
lo durante a vida inteira. Alguns nem saem
da infância.
— A senhora está sempre vestida
com roupas elegantes e chiques. E também
sei que não são baratas.
— São caras mesmo. Meu marido
me deixou muito dinheiro. Tinha muitos
defeitos (cochichou sobre os conjugais),
mas sabia ganhar dinheiro e ter prestígio
político em nossa região. Tinha o dom de
agradar os pobres, para conseguir votos, e
bajular os poderosos, para obter vantagens
pessoais. Quando morreu, além da herança,
deixou para mim uma quantia vultosa no
exterior. Meus pais também me deixaram
muitos bens. Não conte para ninguém,
dinheiro é o que não me falta.
— É difícil ver alguém tão
equilibrado em finanças. A senhora ainda
tem a pensão de seu marido, não é?
— Isso é pouco.
— Acho até que vou ser ardida.
84
Amigo tem que falar o que pensa. Desculpe
a sinceridade, mas a senhora não foi citada
como beneficiária de pensão de marajá?
— Em comparação com o que
tenho, não é nada. Aquilo foi armação
política contra meu filho que vai ser
candidato a governador do nosso Estado.
Então eu doei minha pensão para uma
instituição de caridade.
— Que coisa boa!
— Essa doação foi só por três meses
para um asilo, administrado por um
companheiro nosso de partido.
— Vocês tiveram a certeza de ser de
gente idônea.
— Não ponho minha mão no fogo
por ele. Para nós interessou assim. Só
enquanto a mídia esquecia e os políticos
inventavam outra.
— A senhora é tão autêntica!
— Chego ao final do mês e não
consigo gastar o que possuo. Aí então vejo
um amigo que teve um enfarte. Uns
morrem e outros, ainda pior, ficam “de
fraldas”. Outra amiga teve câncer e sofre
demais. Infelizmente conheço inúmeras
pessoas com essa doença. E ainda tem o
pior que pode acontecer a um velho: ficar
ruim da cabeça. Antes chamavam de
caduco.
— Imagino como se sente.
— Então me ponho a gastar com
roupas caras. Minhas jóias, eu as uso o
máximo que posso. Algumas estão na
família há séculos. Tem muitas que estão
somente há décadas e nós falamos há
séculos.
E batia com os ombros em sinal de
desdém.
— Pode reparar que toda velha
gosta de exagerar em jóias. Ela sabe que
85
logo, logo vem uma doença e ela não vai
mais nem poder usar. Outro dia falava a
uma neta: põe seus anéis de brilhantes! Ela
dizia que podia perder. Se perder, perdeu,
pelo menos você usou.
— A senhora gosta de viajar muito.
Outro dia soube que a senhora fez um
roteiro várias vezes.
— Você sabe da minha vida...Viajo
mesmo. E muito. Às vezes nem usufruo
como devia.
Circe teve a impressão de que
aquela anciã queria gastar o máximo que
podia, pois seus dias estavam acabando.
Quando ela estava há doze dias na
capital do País, houve uma festa
beneficente para crianças no Mabs. Na
intenção de agradá-la, o genro convidou
também a sogra. A mulher costumava
mesmo ir.
Ás três horas da tarde começou a
festa.
Muito balão, muitos salgadinhos,
muitos docinhos, refrigerantes à vontade.
Tinha até um funcionário vestido de
palhaço. E também muita criança.
Logo em seguida chegaram as duas
grandes damas.
Cremilda tinha ido almoçar num
restaurante com algumas pessoas. Bebeu
demais. Além da conta. Dizem até que foi
levada por um grupo político contrário ao
Poderoso. Às cinco horas chegou bêbada
ou drogada.
Ainda procurava se controlar,
quando se deparou com as duas senhoras.
Cacilda se colocou numa altivez enorme
para maquiar seu mal-estar. A mãe,
acostumada nesses eventos a ficar bem
acima dos assistidos, causou-lhe uma
sensação muito desconfortante.
86
A cafona bela moça se sentiu um
lixo perto delas. Imaginava-as seguras,
dignas e conscientes de sua linhagem.
Empafiadas e aristocráticas.
De propósito ou por descuido,
alguém lhe aumentou o pileque.
Ela começou a dançar, de acordo
com o estado de sua embriaguez.
Desajeitada e ridícula.
Uma funcionária então resolveu
chegar a ela.
— Toma jeito, mulher, não vê que
estão presentes D. Cacilda, esposa do
Ministro, e a mãe dela, que é condessa.
Aí ela se descontrolou e disse um
monte de bobagens. Inclusive que a mulher
do Ministro de verdade era ela e que com a
esposa — entortava a boca ridicularizando
a palavra esposa — ele não fazia sexo há
muito tempo. E chegou perto dele,
querendo se sentar ao lado.
Foi um horror!
Circe a pegou pelo braço, levando-a
dali.
Cacilda infelizmente já tinha tido
outras situações semelhantes em sua vida.
E não foram poucas. Entretanto nenhuma
em frente da mãe.
Ela saiu do evento como esposa
traída pela primeira vez. A mãe a lhe
envenenar os ouvidos.
Não deu outra: foi exigida a
demissão de Cremilda.
O Poderoso não podia ir contra a
família dela. Principalmente contra o
poderio deles. Foi obrigado pelas
circunstâncias a demiti-la.
Pediu para Rubião providenciar
tudo, inclusive a conversa com ela.
A jovem a ser demitida estava
acostumada a muitas humilhações. Porém
87
desta vez, achava que tinha evoluído.
Imaginava-se funcionária pública, badalada
na Corte e freqüentando festas chiques e
finas. Até embaixadas. Imaginava-se a
Cinderela, cuja história de criança nunca
leu. Não se imaginava mais voltando
àqueles lugares antigos.
Imaginou Rubião um louco.
— Quem demitiria assim uma
funcionária graduada e protegida como eu.
Pensando assim, encaminhou-se ao
Gabinete. Antes todos ficavam com
paparicos com ela. Agora brecavam-lhe a
passagem.
Conforme ela percebia que não
estava podendo mudar nada e a desilusão
aumentava, mais a raiva e o desequilíbrio
se agigantavam nela.
Quando chegou ao seu limite,
passou a se encolerizar. Iniciou fazendo
ameaças. Não percebia mais nada em seu
redor. Queria alcançar uma situação não
mais possível e não se conformava.
Achava que ninguém a estava
escutando. Foi quando ela começou a gritar
nos corredores.
Das ameaças foi para as revelações
de alcova. Depois partiu para a bandalheira.
Gritava que, depois que ele se
tornou Poderoso, tinha ficado impotente, só
ficando nas práticas de libidinagem.
Entretanto falava com palavras de baixo
calão, especificando tudo das transgressões
sexuais.
Ajuntou-se gente de todo lado. Só
não foi pior, por não ter nenhum jornalista
presente.
Circe achou tudo aquilo uma
baixaria e condenava a outra com ares de
superioridade. Chegou ao ponto de se

88
aproximar de Antonia e clamar-lhe os bons
costumes.
— Bons costumes?
— É, bons costumes. Outra coisa:
coitado do Dr. Gumercindo, não merecia
este escândalo.
— Merecia sim. Ele trouxe uma
mulher sem capacidade profissional. Pegou
a tal em ambientes de péssima moral.
Colocou a fulana no meio de trabalhadores
honestos, graduando-a com funções que
deveriam estar na mão de pessoas que
fizessem jus à quantia paga. Enquanto ela
ganhava, outros eram obrigados a realizar
tarefas sem ganhar o numerário devido.
Sustentou sua amante com os cofres do
dinheiro público. Queria se meter com a
lama, sem se enlamear.
— Que horror, Antonia!
— Ele mereceu todo este forrobodó!
Cremilda ainda se pôs a telefonar e
a procurar aquelas pessoas que sua fantasia
julgava amigas. Porém foram tantas
desilusões e situações desagradáveis, que se
viu obrigada a voltar a suas origens.
Mesmo sem querer.
Nunca mais foi a mesma. Imaginara
ter ascendido a uma dignidade e não era
verdade. O sexo a levara a uma situação
falsa, sem consistência. Se não fosse dessa
forma, seria de outra.
O caso foi abafado. Aos poucos as
línguas dos faladores foram se aquietando e
o assunto esquecido.

30

Minervina entrou no gabinete de


Aurélia.

89
— Soube que Dracena teve um
acidente em frente a “A Coisa” quando
vinha de uma chácara no final de semana?
“A Coisa” era uma escultura muito
grande de um artista francês renomado, e
considerado internacionalmente como um
gênio. No início de Brasília, ela foi
colocada no início do quadrilátero do
Distrito Federal na beira de uma estrada
rodoviária que vem do Sul. Era uma obra
moderna tão vanguardista, que o povo não
entendia o que era. Começou então a
chamá-la de “A Coisa”. ‘Aonde vamos nos
encontrar?’, ‘em frente a “A Coisa”. ‘Tá
feito’. E assim ficou.
— Aconteceu algo grave?
— Com ela e os filhos não, mas o
carro sofreu avarias enormes.
— Ela tem seguro?
— Deve ter. Ela é muito previdente.
— Tem uma coisa. Agora é que ela
vai abusar. Vai ficar meses trabalhando
menos ainda.
A outra engoliu um risinho maroto,
pois gostava muito da colega.
— Uma coisa é certa. Ela tem
grande capacidade.
— Por isso eu a agüento. E também
porque gosto dela. Tem um humor ímpar.
Ao sair do gabinete encontrou
Dracena. Trocaram informações, lamentos
e detalhes do acidente.
— Entra lá que a Aurélia está lhe
esperando.
— Eu não. Depois...
— Você é folgada...
— Não, não sou não.
— Você deve convir que abusa.
Não chega na hora e sai sempre antes. No
meio do expediente inventa aula de inglês,
informática, psicóloga, manicure, etc., etc.
90
— Sei da minha capacidade.
Quando estoura um escândalo, Ministro
querendo tudo na hora ou quando o caos se
instala, quem é que chamam? “Euzinha”.
Na moita dou parecer verbal, e ela passa
para os grandes como se fosse dela.
Quantas vezes rascunhei parecer e ela levou
o próprio rascunho – ‘senhor ministro, nem
tive tempo de terminar, sua secretária
poderia fazer o favor de acabá-lo, sem
esquecer meu nome para assinar’ – e assim
fazer sua boa fama.
— Você não se importa?
— Eu não. Açucena se descabela,
entra em estresse, em depressão, quando a
outra lhe toma o trabalho. Eu não, mas tiro
vantagem.
— Verdade que usurpa o trabalho
dela é uma vadiazinha, e o seu é a Aurélia,
mulher de outra estirpe.
— Concordo. Ela inclusive tem bom
senso para saber até onde pode ir. É muito
inteligente. Eu a admiro. Por isso, e por
outras coisas que nós duas sabemos, está no
cargo há tanto tempo. Você sabe que gosto
muito de ler.
— Você é muito culta. Uma das
pessoas com mais conhecimento que
conheço.
— Não exagere, você é minha
amiga e vê qualidades que não tenho.
Voltando ao assunto, modestamente você
sabe que eu entendo de literatura, música,
pintura, história antiga, e dou minhas
opiniões. Ela escuta e presta atenção. Não é
que quando estamos em algum lugar, ela
com a maior cara-de-pau repete minhas
opiniões — aliás ao pé da letra — como se
fossem dela.
Rindo, a outra disse:
— É porque ela admira você, amiga.
91
— Talvez, mas ninguém a vê me
elogiando. Nunca.
— Vou lhe fazer uma pergunta. Se
quiser responder, responda; se não quiser,
não responda. Com toda a sua bagagem,
por que você não se empenha em fazer uma
carreira gloriosa? Você gasta seu tempo em
cursos, aulas, etc..
— Eu não acredito que possa. No
começo eu me esforçava, batalhava. Tudo
em vão. Atualmente não ponho fé. Há
muitos com capacidade que ocupam altos
cargos. Mas tem que ter uma paciência,
além de sorte e oportunidade. E eu acho
que não tenho paciência.
— Quem não tem paciência, não vai
pro céu. Acho é que você gosta de folga,
amiga.
As duas riram.
— Há ainda outro detalhe: uma
pessoa para assumir um cargo, não tem que
querer somente as glórias, o poder e o
dinheiro que ele lhe traz, tem que assumir o
ônus.
— Ônus?
— É. Tem de fazer o que os
poderosos querem ou dar mil voltas para
contornar a situação. Tem de agüentar os
superiores e também os subordinados, com
seus problemas, maluquices e manias. Tem
que estar exposto a tudo e a todos, algumas
vezes até à mídia. Em algumas funções tem
que trabalhar muito, ou estar disponível
durante longos períodos, inclusive
sacrificando o lazer. E por aí afora...
— De fato aqueles que sobem ao
poder só querem o bem-bom, não querem o
ônus.
— O pior é que não estavam
preparados para isso.
Dracena ficou viúva aos 35 anos
92
devido a uma doença fulminante que o
marido teve. Esse, sim, queria subir a
qualquer preço. Ela terminou de criar os
filhos, os quais eram seu objetivo maior na
vida. Divertia-se muito. Gostava de fazer
cursos e lia demasiadamente.
— Você soube que a Cremilda caiu?
— Coitada, estava tão deslumbrada.
Não conhece o poder, a Corte. Lembra que
eu tive vontade de avisá-la e você me
desencorajou?
— E fiz muito bem.
— Acho que sim. Ela não
entenderia, mesmo eu lhe explicando. Eu
tenho dó dela.
— Dó? Ela teve de pagar o preço da
inexperiência..
Minervina alterou a voz, batendo no
peito fortemente com as duas mãos, e
acrescentou:
— Como nóóós pagamos!
— Tem razão. Todos pagam o preço
da inexperiência.
Foi quando a Secretária saiu do
gabinete e deu com ela.
— Soube de seu acidente.
A conversa rolou algumas frases.
Poucas, pois Aurélia era muito ocupada.
— Infelizmente eu vou precisar das
tardes para tratar de assuntos meus...
— Lógico, minha querida. O
importante para mim é você resolver tudo
como deve ser.
— E ainda vai haver dias inteiros
que não vou poder vir.
— Tudo bem, tudo bem.
Ao entrar franziu a testa pelo abuso,
porém não passou recibo.
Dracena calmamente terminou seu
expediente. Em seu horário especial criado
por ela.
93
31

Na mesma secretaria, trabalhava


também um funcionário de nome
Adamastor. Tinha pouco mais de trinta
anos e era um homenzarrão. Não chegava a
ser gordão, porém tinha carnes a mais. Era
alto, tinha quase dois metros. Mais
precisamente 1,93.
Dracena o chamava de:
— Gigante!
— Por quê?
— Porque ele tem o andar de
gigante dos desenhos infantis. Ele é o nosso
bom gigante.
Ele ria muito da brincadeira da
colega. Tinha sempre um sorriso na face e
procurava fazer o bem a quem pudesse.
Seu único problema eram os gases.
Ele os tinha demais. Chegava ao ponto de
ter uma caixa de fósforos na mesa. Alguém
chegava e lá ia ele a acender um fósforo
para disfarçar o cheiro.
— É ótimo conversar com o nosso
bom gigante e ver seu sorriso e sua
simpatia, mas de longe...!
Um dia entrou na seção dele um
processo complicadíssimo do Dr. Herodes.
Tão grande que tinha de altura quase dez
centímetros. Teve seus trâmites normais.
Pelo seu andamento, devia ficar parado
trinta dias para esperar possíveis
contestações ou coisa parecida. Colocaram-
no em cima da mesa de Adamastor.
Há tempos que este reivindicava
uma cadeira maior, devido ao seu tamanho.
Suas pernas eram maiores. Memorandos e
até ofícios, e nada.
Suas pernas e coluna já passavam a
incomodar e doíam, quando ele resolveu
94
tomar uma atitude. Nos pés da mesa pôs
tocos de madeira que trouxe de casa.
Começou a procurar alguma coisa para
colocar em sua cadeira para se elevar e suas
pernas ficarem bem ajustadas.
Procura daqui, tenta dali e não
achava uma solução. Até que deu com o
processo do Dr. Herodes.
— Esse processo vai ter de ficar
parado trinta dias. Até lá eu encontro outra
solução.
Em seguida, pegou o processo e
colocou-o no assento.
— Ficou ótimo! Parece de
encomenda.
O tempo passou e todos, inclusive
Adamastor, esqueceram totalmente do
assunto.
O tema do processo não estava
interessando. Entretanto numa tarde o Dr.
Herodes chegou afobadíssimo ao gabinete
da Dra. Aurélia querendo saber do
processo.
Aí foi uma correria. Um deus-nos-
acuda. E procura o processo que procura e
ninguém achava. O nosso bom gigante
também levantou e procurou muito. Nisso
passou semanas e chegou a meses.
A Secretária fez uma descompostura
acusando e ameaçando. Pôncio fez um
escândalo. Todos tristonhos e receosos,
porém ninguém achava o processo.
Com toda a sua malícia, Dra.
Aurélia não conseguia imaginar nem
corrupção para a atual fase processual.
— É um mistério!
Estava já em fase de restauração de
autos, trabalho complicadíssimo, quando
um dia alguém serviu um copo de
refrigerante ao sorridente funcionário. Um
pouco distraído, caiu líquido em suas
95
calças, fazendo com que ele se levantasse
rapidamente. Foi então que viu respingar
algumas gotas em seu assento. Quando foi
limpá-las, deparou-se com o processo
perdido. Ficou pálido. Chamou a amiga
Dracena, que chamou Minervina, que
chamou Ananias, que chamou Benedito.
Todos concordaram: tinha de ir à
Secretária. E foi o que aconteceu.
Ela, depois do ataque de ira, ficou
aliviada com o desfecho do processo. O Dr.
Herodes deu graças a Deus. Muitos
documentos ali juntados não tinham
similar. Ía ser horrível para ele.
O funcionário Pôncio então se
pronunciou:
— Um funcionário causou o
extravio de um processo durante meses.
Tem de haver processo administrativo.
— Que tem, tem. Mas o bom
gigante não teve intenção de fazer nada de
errado.
— Foi negligência!
— Foi. Mas tem tanta coisa pior que
não dá origem a processo. Se for assim, tem
de ser para tudo. Tudo e tudo.
Pôncio foi saindo meio emburrado e
chegou a Dra. Aurélia, com toda a sua
experiência.
— Que ele merecia, merecia.
Vamos ver como se porta o interessado. Se
ele fizer questão de abrir sindicância,
abrimos. Caso contrário, esqueça-se.
Como era de se esperar, o Dr.
Herodes queria que tudo se resolvesse o
mais breve possível. Não tinha interesse em
sindicância. Aliás detestava a palavra.
Dava-lhe arrepios. A única providência foi
tirar xerox autenticada de todo o processo.
A partir do episódio o tal processo
ficou conhecido como “cheiroso”.
96
32

Simão e Benedito conversavam num


domingo à tarde.
— Aqui em Brasília, houve um
manda-chuva que dizia: “Longe do poder,
não há salvação”. Esse é o motivo pelo qual
eu tento ser simpático com os de cima.
— Eu discordo desse fulano. Longe
do poder há salvação, sim. Se você estiver
bem consigo mesmo, não precisa de
badalação, ostentação, luxo, mídia, etc.
Aqueles que precisam ter poder a qualquer
preço, mascararam para si próprios uma
realidade interior muito feia e triste. Aquele
que não está em harmonia consigo mesmo,
precisa que digam ser ele bonito,
inteligente, até jovem. Mesmo sabendo que
não é nada disso.
— Há aqueles que acreditam...
— Se acreditam... é porque não têm
equilíbrio para perceber a verdade. Se
disserem para mim que sou o homem mais
bonito do Mabs, evidentemente eu saberei
que isso é mentira.
— E se disserem que é o mais
inteligente, Benedito? Todos têm alguma
coisa para o puxa-saco.
— Também não. No mundo atual há
uma variedade tão grande de
conhecimentos, que seria impossível
alguém saber tudo. Hoje a especialização
em áreas está cada vez maior.
— Concordo. Mas você sabe que
“no seu pedaço” é o melhor.
— Sinceramente não posso dizer
isso. Sempre há colegas discordando de
nossas opiniões, de nossas tendências. Eu
até posso achá-los sem razão, mas amanhã
pode ser que provem estarem eles certos e
eu errado. Isso é comum. Você está
97
querendo me agradar ou me pôr em
tentação?
— Você acha mesmo que só as
pessoas com problemas emocionais ou
psicológicos é que têm necessidade de
poder muito, muito, muito grande?
— Acho. Uma psicóloga minha
amiga me disse que a pessoa que precisa
exageradamente ter uma projeção social,
profissional, lá no fundo, tem uma auto-
estima baixa. Essa pessoa não acredita que
alguém normal possa ser aceito.
— Será? Você não acha que
psicólogo erra muito?
— Não sei. Só sei que se você faz
um trabalho que gosta, dando o melhor de
si, quando chegar no final do expediente
estará feliz. Volta para casa, junto à mulher
amada, que também lhe tem amor —
mesmo sem ter o rosto e o corpo da mulher
símbolo sexual do momento — e encontra
seus filhos queridos, você estará num lar.
De vez em quando, toma uma cervejinha
com os amigos sinceros “jogando conversa
fora”. Felicidade maior não existe.
— Você fala como se não houvesse
dinheiro. Ou ele é coisa do mal?
— O meu vem de trabalho. O da
Antonia também. Por isso é abençoado por
Deus. E tem outra: todos nós temos
necessidade dele na época atual. Temos de
ter um teto, de comprar comida, pagar
educação para filhos, ter assistência
médica, etc. Eu até acho que tenho de ter
um carro...
Os dois riem.
— Ninguém precisa de dinheiro em
excesso. Pode ver, quanto mais dinheiro a
pessoa tem, mais quer. Se tiver mais ainda,
quer mais e mais. É uma bola de neve que
não consegue parar.
98
— Que dinheiro é bom, é.
— Só o necessário deixa você bem
consigo mesmo. O excesso não.
— Será?
— Outra coisa: não se pode dizer
que alguém precisa de mulher jovenzinha
para se realizar. Um velhão atrás de uma
moça que só quer usá-lo no que puder:
dinheiro, poder ou fama.
— É, elas são interesseiras.
— Não só elas. Um merece o outro.
Ele quer o corpo e o frescor. Imagina que a
juventude alheia fará milagres com o tempo
que passa implacável, trazendo a velhice.
Só quer sugá-la e vampirizá-la. Não lhe tem
nenhum sentimento nobre. Ela, por sua vez,
recebe os benefícios que sua posição pode
lhe dar. Às vezes tem até nojo ou pensa em
outro, mas finge muito bem. Também não
lhe tem nenhum sentimento positivo.
Empatam. “A conversação dos pecadores é
odiosa, e o seu riso é sobre as delícias do
pecado”*.
— Há região do país com um
ditado popular dizendo que para cavalo
velho, pasto novo.
— Esse dito servia, quando nos
tempos antigos um fazendeiro usava, usava
e usava um cavalo. Ele ficava velho, e o
dono, por carinho e consideração, o deixava
perto da casa grande em pasto novo, como
uma premiação, antes da morte que estava
se avizinhando. Não tem nada a ver com
vigor sexual.
— É amigo, tem gente que pensa
diferente.
— Infelizmente tem e muita.
Atualmente é comum inclusive mulher
velha querer homem moço – pasto novo em
alguma concepção – para ilusoriamente
* Bíblia Sagrada - Eclesiástico 27, 14
99
conseguir a juventude e o fulgor que a
idade e os hormônios estão lhe tirando.
Com a independência profissional e
financeira da mulher, algumas passaram a
não ter paciência com o sexo oposto. Não
querem relacionamento amoroso. Só
querem ter homem-objeto.
— Assim não sofrem...
— Mas também não se realizam
plenamente. Não vivem.
— A mulherada está terrível!
— Gostaria de saber se algum pai
gostaria de ver sua filha servindo de pasto
novo a um velho? Ou sua irmã, etc.
— Aí não. Só para as outras.
Homem tem muitas fantasias sexuais.
— Os homens se perdem nas
fantasias sexuais e as mulheres nas
fantasias românticas.
Riem de novo.
— Você acha impossível um
relacionamento entre pessoas de idades
diferentes?
— Não. Claro que não. Conheço
muita gente assim. A minha própria irmã
casou com meu cunhado, ele é bem mais
novo e os dois vivem harmoniosamente há
décadas. Além desse, conheço outro caso
de um senhor que se casou com uma pessoa
também bem mais nova.
— Então você aceita
relacionamentos entre pessoas de idades
diferentes?
— Sim, com certeza. Estou me
referindo a casos em que não há
sentimento, só prazeres materiais. Como
isso que acabei de lhe narrar.
Simão sorri.
— Você há de convir que, quando o
fulano está interessando...

100
— Ou faz tudo que os poderosos
querem para o benefício de si próprio...
— Sim. Todos o tratam bem, seus
pedidos são aceitos e até riem de suas
piadas.
— Sei. Quando você não está nas
graças dos maiorais, tem muita gente que
passa por você e vira a cara. A Quirina é
um exemplo. Ela é um termômetro do grau
de importância que você está tendo no
momento.
— Seus amigos, o casal Corinto e
Circe, também.
— Com muita tristeza tenho de lhe
dar razão. Mas tem muita gente aqui
diferente desse estilo de vida. Tem um
montão de pessoas que são suas amigas
independentemente de prestígio.
— Só tem uma coisa, se alguém cai
em desgraça, todos lhe viram as costas.
— Você radicaliza. Não acredito
que todos... Há sempre alguma alma
desprendida.
— Talvez você e a Antonia. Mesmo
assim não tenho certeza...
— Quero ter amizade com pessoas
que convivem conosco por nós mesmos,
não por cargo, posição, dinheiro ou
qualquer outro interesse. Riem das minhas
piadas se forem engraçadas e houver clima
descontraído. Nada de falsidade, meu
amigo...
— Continuo a lhe dizer: o homem
comum quer poder, e o que tem, quer mais,
mais e mais...
— Poder demais cega, tira da pessoa
a realidade dos fatos. Difícil, mas difícil
mesmo, será o antigo poderoso voltar a
enxergar as coisas como elas realmente são.
— O mundo sempre foi assim. Nos
escritos da Antigüidade há alusão a isso.
101
— Dona Orquídea foi uma
funcionária que entrou por concurso
público, galgou todas as funções somente
pela capacidade. E ela tinha muita. Nunca
fez concessões. Quando alguém lhe pedia
alguma coisa marota, ela despistava, dava
uma risadinha amena e dizia que não tinha
“costas largas” para agüentar a carga.
Quando havia alguma decisão injusta, ela
calmamente dava sua opinião sem ficar
ofendendo quem quer que seja. Na vida
particular, era tranqüila. Foi casada e teve
seis filhos. Eles estão formados,
trabalhando em cargos de nível superior e
também bem casados. Hoje viúva, ela tem
uma família que qualquer um gostaria de
ter. Está sempre alegre e todos gostam
demais de conversar com ela, pois tem uma
grande sabedoria. Ao se aposentar, perdeu
as funções, o tal poder, virando-se para a
religião e obras assistenciais. Visita pessoas
doentes, que infelizmente não têm com
quem conversar. Sempre que posso, estou
com ela. Continua alegre e feliz. Quando a
vejo, tem sempre um sorriso nos lábios e
uma harmonia que dá gosto ver.
— Ela continua gordinha?
— Continua. Mesmo assim tem
ótima saúde. Ela não é muito gorda.
— Sabe, a Antonia diz que ela ama
muito e por isso é muito amada. Daí a
saúde e disposição.
— Dona Orquídea, grande figura!
— Ela tem sempre tanta gente para
conversar e tantos convites — além das
viagens com os filhos disputando-a — que
não é fácil conseguir incluí-la em alguma
coisa. Algum evento como se diz hoje.
Continuam num ambiente alegre.
— É bom contar piadas e as pessoas
rirem, rirem...
102
— Quando se está por baixo não se
deve nem contar piadas. Em ambiente de
trabalho, não estou falando com amigos.
— Concordo. Ainda vão inventar
uma máquina para fazer rir e concordar
com o que queremos.
— Aí o solitário pira de vez. Simão,
diga uma coisa. Será que vale a pena
vender a alma, só para fazer sexo com um
corpo jovem interesseiro, dinheiro para
comprar coisas que não são importantes
verdadeiramente para nós – pois são
supérfluas – ou para rirem de nossas piadas
mesmo sem graça e concordarem
falsamente com tudo que falamos? Ou
devemos trabalhar honestamente para o
bem comum e para o nosso país?
— Falando assim, de fato, fica
ridículo, mas, como diz o Ananias, é bom
transar com uma fulana toda gostosa, fazer
viagens de sonhos, comprar tudo que o
consumismo nos oferece e escutar que nós
somos o máximo. Ah! Isso é bom demais!
— Olha, meu amigo, pensando
assim, a pessoa fica a um passo deles. Isso
é perigoso!

33

No Mabs havia, além de Rubião,


outro Secretário. Seu nome era Zebedeu.
O Poderoso o trouxera por vários
motivos. Primeiro por ser seu companheiro
de partido político. Também por considerá-
lo pessoa de sabedoria e tê-lo como
profissional capaz. Contornava as situações
com habilidade.
Não tinha a retidão impecável de
Benedito. Fazia muito “jogo de cintura” e
concessões mil. Porém ficava bem acima
do caráter de Rubião.
103
Conviveu com Cremilda e outras.
Com os corruptos também. Procurava até
ser simpático, entretanto conseguia não se
envolver. Discretamente, com um risinho
fino se esquivava.
— Isso não é para mim. Sou peixe
pequeno.
Muitas vezes saía para noitadas,
mas essas não constituíam o seu objetivo.
Eram um meio para conseguir o que queria.
Não se deixava levar pela bajulação.
Sabia de todas as suas limitações e percebia
de longe tudo isso.
Tinha família tranqüila. Tinha
também um escritório grande em sua
cidade, que era um de seus principais
objetivos de vida. Havia-o deixado com um
irmão e um amigo de infância. Estava meio
desativado em virtude do cargo que agora
ocupava. Porém ele colocava tudo que
podia para usar no seu escritório no futuro.
Se houvesse uma apuração rigorosa, isso
não seria exatamente honesto. Entretanto
era o que ele pretendia fazer.
— Todos fazem. E os que não
fazem se arrependem.
Assim pensando, justificava para si
próprio suas atitudes.
Atualmente, pelo menos, não fazia
nada de errado nesse sentido.
Uma coisa era certa: o Poderoso o
admirava. Quando precisava tomar uma
decisão ou uma atitude importante,
chamava Zebedeu. Também quando queria
ter uma conversa franca, com respostas
maneiras porém sinceras.
Infelizmente no dia-a-dia do Mabs,
não brilhava como seu colega. Nem tinha
suas regalias.
Sua secretária chamava-se Oscarina.
— Ela é moça velha.
104
Solteira, já passara da idade de
casar, e principalmente de ter filhos.
Morava com sua mãe, da qual ela não podia
jamais discordar, apesar da aparência frágil
e educada. A matriarca a usava para as
grosserias que não tinha coragem de fazer e
dizer, além de se passar por boazinha.
Como isso veio desde a infância, ela sentia
um prazer neurótico, pois agradava à mãe.
Quando chegava do trabalho, a
idosa senhora a induzia a colocá-la no colo,
mimando-a. Às vezes a infeliz grosseirona
ficava com as costas doendo. Entretanto se
reclamava, logo escutava:
— Fiquei sozinha...
— Mãe, ando três quilômetros a pé
e fico sem almoço, para que a senhora
tenha uma pessoa a lhe fazer companhia
durante o dia.
— Sozinha sem você. Não me
responda. Tem de me dar colo e com gosto.
Não de má vontade. Fica quieta e dê
carinho direito.
Zebedeu percebeu essa limitação de
sua funcionária e também a usava.
Interessante é que ele e a mãe dela, sem se
conhecerem, trocavam presentes e uma boa
relação por telefone.
Todos do Mabs tinham certo medo
das grosserias de Oscarina. Quando se
queixavam ao Secretário, este acalmava as
pessoas:
— Ela é solteira, não tem homem,
não teve filhos, tem de cuidar da mãe
doente. Não é fácil a vida dela. Tenham
paciência com a pobre!
— Há aqueles com quem ela não é
estúpida. Mesmo assim, há ocasiões em que
muda.
O certo é que Oscarina nunca foi
grosseira com quem ele não quisesse, e
105
sempre tratou bem àqueles que a ele
interessavam.
Pelo olhar, pelo muxoxo e pelo
gesto, ela entendia qual deveria ser seu
comportamento. O curioso é que agradar ao
chefe lhe dava a mesma sensação neurótica
de quando agradava à mãe.

34

O fato de Zebedeu ter capacidade e


habilidade profissionais — apesar da
indicação política — não era comum.
Normalmente os partidos políticos
retalhavam o “bolo” dos ministérios, das
secretarias e dos cargos políticos. Tanto na
esfera federal, como na estadual e mais
ainda na municipal. Chegava ao absurdo de
reclamarem publicamente em jornais,
rádios e televisões, como se fosse uma
reivindicação justa.
— Nem o povo percebe mais a
imoralidade disso. Passa a aceitar como
algo normal.
— Já houve Ministro da Justiça que
não era advogado nem do Direito, Ministro
Militar que não era militar, Ministro da
Saúde que não era médico, Ministro da
Educação que não era professor e assim por
diante. Pode uma pessoa ter uma formação
profissional, ser especialista em outra área
e ser até brilhante. Entretanto isso é
exceção.
— O fato é que os poderosos, os
que mandam, às vezes não se preocupam
com a capacidade de ninguém que possa
realmente resolver alguma coisa. Muito
menos com o bem comum, nem com o
Brasil, nem com a meta a que se pretende
chegar. Daí vem esse sorteio, essa
distribuição de favores que visa eleições
106
políticas, maracutaias e enriquecimentos
pessoais.
— Muitas vezes não se pensa no
País como um todo, como uma máquina de
desenvolvimento.
— Ministro não pode ficar apenas
meses, ou por pouco tempo. Ao assumir o
cargo, a pessoa se depara com uma
estrutura completamente diferente de
qualquer outra atividade. Demora um
pouco para entendê-la. Mesmo se vem de
uma correlata na esfera estadual ou
municipal. No seu meio conhece os
costumes e as pessoas. Aqui é tudo muito
diferente. Tanto o Sudeste, como o Centro-
Oeste, o Sul, o Norte e o Nordeste não
podem ser comparados, pois diferem muito
entre si. Governar e estabelecer normas
para um país tão grande como o nosso é
muito difícil.
— E tem que ser regra igual para
todo o país, cumprindo o que reza nossa
Constituição Federal. Que é fácil, não é.
Cidades do interior da Amazônia com
poucos habitantes, onde se leva dias de
barco para se comunicar e a cidade de São
Paulo com tantos milhões de pessoas em
um espaço pequeno a se acotovelar.
— Ministro que entra e sai logo, não
faz nada.
— Há aqueles que ainda atrapalham.
E entram em maracutaias.
— O povo é culpado pois vota mal.
— Não é não. Muitas vezes não há
opção, de tão ruim que são os candidatos.
Às vezes o máximo que se consegue é votar
naquele que é o “menos ruim”. Mesmo
assim é lamentável. Dificilmente se vota
num candidato em que se acredita, que tem
nosso ideal de princípios e uma grande
retidão de vida. E há casos em que eles
107
mudam depois.
— E sempre para pior.
— Antes os políticos eram
fazendeiros, comerciantes, advogados,
médicos, etc., enfim homens com uma vida
e um passado profissional na comunidade.
Infelizmente às vezes entravam na
corrupção. Atualmente são bandidos, com
passagem na polícia por tráfego de drogas,
roubos, receptação, até assassinatos, que
vão ser políticos para se livrar da cadeia.
Isso é um absurdo!
— Ai até eu concordo com você,
Benedito.
— E as fraudes nas eleições... Isso
não poderia acontecer.
— O pior é que está acontecendo no
mundo todo.
— A democracia é tão bonita. O
governo do povo para o povo e pelo povo.
Porém como está, ela fica seriamente
ameaçada. Hoje todo político bandido
eleito contribui para a derrubada da
democracia. E toda fraude nas urnas
também.
— E qual regime a substituiria?
Algo que vai ser inventado ou um pior?
— Parece que haveria um pior,
talvez um retrocesso.
— Que horror!
— Em empresas particulares
também ocorrem distribuições de favores a
quem não merece. Principalmente entre
família e amantes. A diferença é que elas
vão à falência ou algo semelhante, e no
caso do serviço público, quem paga é o
povo com mais miséria, menos educação,
mais doenças, menos habitação, etc.
A conversa continuou, entretanto
eram somente indagações.

108
35

Passaram para Benedito dar parecer


num processo cujo interessado era cliente
do Dr. Joab.
— Por que para mim?
Foi então conversar com Ananias.
— Por que não passaram para os
puxa-sacos, que são tantos?
O amigo tentou, entretanto não
conseguiu uma resposta satisfatória.
A quatro paredes, o Poderoso tinha
confidenciado a Rubião.
— Preciso de um parecer de
profissional de grande capacidade e que seu
nome já convença por si só. A oposição e a
imprensa vão dar em cima do caso.
Necessitamos de estar bem escorados.
Benedito levou dez dias para se
manifestar por escrito. Estudou, pesquisou
e meditou muito.
Enquanto isso, fizeram todas as
pressões possíveis em cima dele e da
mulher. Sua única vantagem foi não ter tido
nenhuma proposta aberta de corrupção.
Não deixava nem chegarem perto.
Depois de muita labuta e muito
nervosismo, ficou pronto.
Contra os interesses, como se
previa.
— Meu amigo, isso vai contra os
interesses dos seus chefes. Eles vão ficar
furiosos.
— Paciência! É para o bem do
Brasil e do mundo. Pensei principalmente
nos brasileiros.
— Mas que Brasil... E se você for
perseguido? Fico preocupado.
— Eu não queria ser perseguido.
Penso em Antonia, apesar dela dizer que
me apóia para o que der e vier. Mas procure
109
entender que eu não posso ir contra os
meus princípios morais e éticos. Há outro
aspecto: assim não vão fazer as safadezas
pretendidas.
— Não seja ingênuo! Você vai se
prejudicar, talvez até sua mulher, e eles vão
fazer tudo que querem, como sempre
fizeram.
— Será? Então por que pediram a
opinião de um técnico? Se não pretendem
segui-la?
— Para constar. Somente. Reveja!
Decisão política se sobrepõe a qualquer
trabalho técnico.
— Aqui em Brasília?
— Em qualquer lugar, meu amigo.
As decisões políticas normalmente vêm
prontas dos Estados.
— Sinto muito. “A sorte está
lançada!”
Quando o processo subiu, os
gabinetes explodiram de tanta raiva.
— Esse homem é louco. Ir contra
projetos que defendemos e damos tanta
importância.
Os bajuladores todos indo contra o
parecerista. Ridicularizando conceitos que
estavam corretos e inventando erros da
estilística gramatical. Depois passaram a
debochar da sua maneira de falar, de andar
e até de vestir. Para seu carro foi dado um
nome bem jocoso. Até sua mulher e seus
filhos entraram na comédia de maneira
debochada.
Não foi fácil para ele. Ao contrário,
foi muito difícil.
Só Antonia ficou do seu lado. Os
funcionários tinham medo e se recolhiam.
Até Simão se esquivou. Só uns poucos
radicais do sindicato se manifestaram a seu
favor. Muito palidamente. Porém o
110
sindicato mesmo e a própria oposição se
omitiram.
— Dá a impressão que ninguém está
percebendo o mal que pode ser causado.
— Benedito, hoje, e talvez sempre,
a humanidade não se preocupa com o
futuro das gerações, do planeta e de nada.
Só com seu umbigo.
— Não adianta terem tanto e tanto.
Eles não percebem o óbvio?
— Não. São muito egoístas!
— É lamentável!

36

Quando retornou ao lar, triste e


desiludido, Benedito se deparou com sua
mulher lhe entregando uma
correspondência de um banco Oficial.
Eles examinaram todos os itens e
chegaram à conclusão de ser um bom
negócio para eles. Iam demorar décadas
para pagar, porém quando terminassem, o
imóvel era deles.
— E largamos esse apartamento do
governo.
Querendo compartilhar, telefonaram
aos amigos dando-lhes a boa-nova.
Eles nem quiseram atendê-los,
dando uma desculpa qualquer. Além disso,
um amigo de Corinto estava oferecendo um
negócio fabuloso.
— Gente, o Aquírio é meu colega de
escola. Eu estou empregando todo o meu
dinheiro. O Rubião também. Só há pessoas
importantes nesse negócio. Podem confiar!
Houve quem chegou a desconfiar
que o casal estivesse levando comissão.
— E não estava?
— Sei lá... Se não estavam é por
não pensaram nisso.
111
O certo é que Rubião empregou
parte de seu dinheiro, e o Dr. Joab uma
parcela bem pequena. Não queriam ficar
fora de alguma chance de lucro.
Antonia chegou a falar para o marido
sobre o assunto.
— Tó, não existe mágica. Faça as
contas e a matemática lhe mostrará que o
tal fulano terá prejuízo.
— Ele é um espertalhão, não vai
ficar no prejuízo.
— O mais certo é que os daqui é
que vão se dar mal. As prestações são
muito altas.
— Quem está nesse negócio é o
casal Corinto e Circe, Rubião, até Dr. Joab.
— Imagina-se ser difícil dar um
golpe neles. Sempre mais espertos que os
outros. Nessa história, parece que vão se
dar mal por não querer nunca perder
alguma oportunidade de lucro. Sei lá...
— Não temos nada a ver com isso
— Vamos pensar mais um pouco
antes de fazer o negócio com o banco
Oficial. Pé no chão. Sem grandes lucros e
vantagens, dentro de nossas possibilidades
orçamentárias, mas sem sustos futuros. É o
que espero.
Posteriormente eles compraram um
apartamento de dois quartos numa das
quadras mais antigas da Asa Norte. E foram
morar lá alegres e felizes.
— O prédio é antigo, mas com uma
sólida construção. Do jeito que não se faz
mais hoje em dia.
Os espertos compraram um
apartamento de quatro quartos de 250 m2. e
três vagas na garagem num prédio em
construção numa quadra nobre de Brasília.

112
37

Sobre o parecer, Benedito,


inconformado, foi à presença de Ananias,
que conversava com Simão.
— Você precisa alertar a alta cúpula
das futuras conseqüências...
— Eu falei que você devia mudar
seu parecer.
— Não sou eu quem tem que mudar,
são eles. Aliás se me convencerem do
contrário, eu mudo de gosto. Se quiserem,
estou disposto a explicar. Preciso que
alguém me arrume uma reunião lá em cima.
Dentro de si, Ananias achava
incrível a inocência do amigo. Como viu
que não adiantava, não insistiu.
Entretanto Benedito continuava a
falar. Simão calado. Diante de ser flagrado
ao lado daquele que não era pessoa de
agrado, e ser catalogado como quem está
contra os poderosos, teve de pensar em
alguma atitude.
— Benedito, eu tenho uma reunião
com Dr. Rubião agora. Resolvi que vou
dizer a ele, ao Poderoso, se estiver perto, e
aos outros, sabe o quê? O Benedito é a
pessoa mais capaz e honesta que existe no
Mabs. O parecer dele está correto, além de
vanguardista.
Simão tentou maneirar.
— Deixa pra lá, Ananias.
— Ponho até minha função a
disposição.
Desnecessário dizer que ele tinha
conseguido uma função, que lhe dava uma
boa quantia a mais no salário.
— Espera aqui. Deixa comigo.
Inocentemente Benedito ficou
alegre, vendo a saída dele.

113
— Pra ele esse dinheiro a mais da
função é importante. Mas ele está
mostrando que é amigo.
Simão, que se mantinha calado, não
se conteve:
— Não seja inocente, Benedito! Ele
não vai falar nada a seu favor, e se falar,
será contra. Parece que não conhece as
pessoas do mundo que vive.
— Será?
— Tenho certeza. Olha, ele
esqueceu esta pasta. Vou atrás dele, só pra
ver o que acontece.
Dito e feito, ele foi atrás do outro.
Com a desculpa da pasta, adentrou no
gabinete do Secretário.
— O Benedito foi à minha sala. Está
totalmente desequilibrado. Por isso deu um
parecer daqueles. Eu logo disse pra ele que
não se deve contrariar você, que é uma
pessoa tão capacitada. Eu lhe dei todos os
conselhos e falei: respeita o Rubião.
— E será que ele ouve você?
— Eu vou continuar, mas não
acredito. Tome outro rumo. É muito turrão!
Estava tão entretido que não se
preocupou com a presença do outro lhe
entregando a tal pasta.
Simão voltou e contou ao amigo o
principal, sem se ater a detalhes sórdidos.
— A porta de gabinete – qualquer
uma – é mágica. Quando se reúnem em
grupos, falam mal do chefe, do Poderoso.
Quando ultrapassam a porta do gabinete,
passam instantaneamente à bajulação.
— Todos?
— Poucos não o fazem. Mesmo
assim esses poucos se calam somente. Senti
isso quando fiz lá aquele trabalho durante
meses.

114
— É triste. Por isso que os
poderosos ficam com uma imagem
distorcida da realidade.
— Passam a ficar tão viciados nessa
fantasia, que já não querem, e nem
admitem, alguém que lhes seja sincero.
Aconselhou a nem esperar o
regresso do pretenso amigo. Benedito
entendeu e se foi. Quando o outro voltou,
parecia que nem lembrava mais da história.
Achou muito bom não ter que se deparar
com o que não queria enfrentar.
Simão não lhe disse uma palavra.
Achava que tinha se envolvido demais.

38

Corinto e Circe estavam em


ascensão. Ele estava em toda viagem que
fosse vantajosa.
— Como ele faz quando não
entende nada do assunto?
— Faz de conta. Repete uma frase
que ouviu de alguém capaz, badala quem
interessa, participa do social ativamente e
usa o sexo no que pode.
— Como assim?
— Ele usa a sua pessoa ou alcovita,
se necessário.
— Escrúpulos ele não os tem...
Além disso, conseguiu uma função
mais alta. E ainda estava muito interessado
em ser Presidente de uma Comissão
importante.
Ela também subiu. Foi para função
mais lucrativa e estava cogitando ser
Secretária duma área sem grande
expressão. Entretanto para ela havia muitas
vantagens.
Apesar disso estavam com as
finanças apertadas. As prestações do
115
apartamento eram altas. Como outras
pessoas importantes também estavam,
resolveram arrumar um jeito de resolver o
problema.
Reuniram-se todos e bolaram um
jeito. Entraram com uma ação judicial.
Antes da citação, inventaram uma tabela
econômica absurda, e conseguiram editar
uma norma jurídica toda defeituosa, que
qualquer análise jurídica derrubaria.
Esconderam da mídia. Houve chantagem
daqui, favores dali e engavetaram-na.
— Engavetaram no Mabs ou no
Congresso?
— Não sei. Só sei que esta valendo.
— Comentaram que puseram Fundo
de Garantia, PIS, etc. no meio.
— Será? Não pode ser. O
Congresso Nacional brecaria.
— Disseram que tem gente de lá
também na maracutaia, não sei se graúda
ou miúda. Por isso vai sair.
— Será?
— Não sei.
O certo é que os apartamentos foram
quitados e o tal Aquírio pôs a mão em parte
do dinheiro.
Os espertos se acharam o máximo.
Comemoraram muito.

39

No apartamento o casal Corinto e


Circe tomava café da manhã num domingo
descontraído.
Júnior estava alegre. O fato do pai e
da mãe no local era motivo de felicidade
para ele.
Começaram a conversar.
— Como você está se saindo na
escola?
116
Antes de ele responder.
Continuaram:
— Lá é caríssimo. Foi sua mãe
quem inventou de colocar você nesse
colégio.
— Meu amigo disse que tem um
outro em que o estudo é melhor.
— E uma criança lá sabe o que é
bom...
— Ele não é criança. Nem eu.
— Lá só estudam os filhos das
melhores famílias de Brasília. Até os filhos
do Poderoso, além de filhos de senadores,
deputados e ministros dos tribunais
superiores. Isso é que interessa ao Júnior. E
sei que você, Corinto, concorda comigo.
— Concordo, Cyssi.
— Mas sou eu o estudante, não?
— Você viu a coluna social de hoje.
— Evidentemente. Precisamos estar
bem informados do que acontece na Corte.
— Mãe, ontem houve uma briga no
lugar onde eu estava.
— Tem uma notícia que nos
interessa em particular, você prestou
atenção, Cyssi?
— Qual?
— Pai, espancaram um colega meu.
Eram seis contra ele.
— Haverá uma festa na qual o
presidente do PR vai homenagear o
Emiliano Sousa, o homem mais poderoso
desse país.
— Meu querido, eu já me antecipei.
Nesse momento entra a mãe dela.
— Estou com uma dor no peito.
— Meu colega está no hospital.
— Como você se antecipou?
— Estou tentando conseguir os
convites com Cacilda. Mas estou em outras
empreitadas, se não der certo.
117
— Estou com tontura.
— E o pior para mim não é isso. É
que o Donaldo está me oferecendo droga na
escola.
— Precisamos ir a essa festa.
— Não só por sair nas colunas
sociais, como também os contatos políticos
e profissionais. Esses são o melhor motivo.
— No meu colégio dá muito
maconheiro e muito drogado. Não é só essa
gente de que você fala, mãe.
— A aproximação de Emiliano está
nos meus planos.
— Precisamos subir, subir, subir.
Por sorte nossa, aqui nessa terra poucos têm
nossas metas. E com coragem e obstinação
para consegui-las.
— Não vacile. Sempre há alguns.
Nervoso por ninguém escutá-lo, o
filho grita:
— Pai, escuta, o Donaldo está me
oferecendo droga!
— Não grita! Se alguém quer
vender droga, é simples: não compra!
Cyssi, nós não devemos nos descuidar. Há
muita gente querendo ir aonde planejamos.
— Eu sou mulher de descuidar?
— Mãe, se eu não me juntar a eles,
a turma começa a me provocar.
— Nós estamos nos posicionando
muito bem. Melhorando a cada dia nosso
relacionamento.
— E pensar que quando chegamos
aqui procuramos o casal Benedito e
Antonia.
Os dois riram muito.
— Não queria me drogar, mas não
posso ficar sem me unir a eles. Se se drogar
não é bom, não ter a proteção deles é pior.
Não vê o caso do meu amigo que foi
espancado. Há até casos de morte. Do lado
118
da droga, eu não teria problema com os
briguentos. Quem quer enfrentar os
traficantes? Vocês não acham?
— Mãe, hoje você está tão quieta.
Não quer conversa? Em compensação seu
neto nessa manhã está falando por dez.
— Hoje eu não estou com vontade.
O casal continuou a falar seus
assuntos e o filho foi para a televisão,
internet, etc..
A avó continuou na sala. Dois dias
depois, ela foi fazer uma consulta e teve
que ser internada. Circe reclamou demais
daquilo tudo. Culpou os médicos pelo
acontecido, porém não deixou de continuar
sua vida profissional. Principalmente a
social. Poucos dias depois sua mãe teve
alta. Quem foi buscá-la foi sua empregada
doméstica. Quem ficou no hospital
também.
Entretanto a velha hospitalizada não
achou que a filha estivesse errada.
Numa manhã Justa comentou com
todos:
— Júnior está muito estranho. Que
será que está acontecendo com ele? Não
entendo.
— Crise de adolescência!
Ninguém se importou com isso. A
frase da moça não entrou em seus ouvidos.
Muito menos em sua cabeça e em suas
preocupações.

40

Ananias não estava se sentindo


muito bem com tanta bandalheira. Sua
esposa ficava no seu pé. Sua mãe também.
Ao perceber o vulto da confusão em
que havia se metido, quis recuar. Depois de
muito pensar, deu então um telefonema.
119
— Dr. Joab, não tenho nada contra o
que vocês fazem, mas eu não vou
continuar.
— O quê? Você deve estar
brincando ou ficou louco.
Meio sem graça, ele deu uma
risadinha amarela e falou timidamente:
— Estou falando sério. Estou
avisando para não contarem mais comigo
nas “situações paralelas” do Mabs.
— Ananias, amanhã às oito da
manhã você deve estar no gabinete do
Rubião, e acertaremos nossas contas.
Ele achou bom o desfecho. Lá não
poderia acontecer nada de ruim.
Quando chegou, estavam os dois. O
Dr. Joab falou:
— Por que você agora resolveu sair
de banda?
Ainda quis agradar.
— Eu tenho muita admiração por
vocês...
— Deixa de ser mentiroso, homem.
Você está se borrando de medo. Você é
frouxo. Não é igual a nós, Rubião.
— Igual a nós é difícil.
— E você achou que chegava, sabia
de nossas manobras, nomes, situações, e
quando lhe desse na cachola, saía como
meninota dum parque?
Ele começou a sentir um frio na
espinha.
— Nós não somos bandidos, não.
Mas uma coisa é certa. Quem entra no
nosso esquema, fica sabendo de coisas,
como você sabe, não sai nunca mais!
— Entendeu?
— Entendeu, Ananias?
Ele sentado, estava com os dois
debruçados na mesa em cima dele.
Sussurrando, apavorado, respondeu:
120
— Entendi.
Já saindo, ainda falou:
— Talvez vocês não entenderam
bem o que eu quis dizer. Eu tenho uma
admiração muito grande por vocês.
Apavorado voltou ao seu lugar.
Bebeu demais nesse dia. Chegando à sua
casa, brigou com a mulher. No final de
semana, foi grosseiro com os pais. Estava
desencontrado.
— Meteu-se onde não devia.
— É malandro borboleta. Quer ser
esperto e é otário.

41

As pessoas comentavam que


Corinto iria para a função de Presidente da
Comissão de maior importância e Circe
seria a nova Secretária de uma pasta do
Mabs.
Ambos negavam isso para os seus
iguais e para os de menor posição
funcional.
— Que interessa a essa gente para
quais funções vamos ou não?
— Para ajudar não é.
— Com certeza... Só se for para
pedir.
Entretanto estavam lutando com
todas as suas armas. Jogavam todas as
cartadas. Bajulavam, blefavam e mentiam
no que fosse necessário.
— Presidente dessa Comissão no
Mabs, se bem trabalhado, vira Secretário
Executivo. Vou passar até o Rubião.
— Você merece. Nós temos lutado
tanto, trabalhado tanto...
— Até fora do expediente.
Assim pensando continuaram em
suas batalhas. O objetivo era subir, subir,
121
subir cada vez mais alto. Nem sabiam ao
certo onde queriam chegar.
Estavam tão obsessivos que
esqueceram do campeonato do filho.
Também da reunião que a orientadora
pedagógica da escola marcou.
— Essa fulana não tem mais o que
fazer na vida a não ser conversar com pais.
Eu não. Telefone você Justa!
— O Júnior nem está indo à aula.
Será que não é importante?
— Nem vou responder tamanho
absurdo.
— Minha filha, concentre-se no
Mabs. Afinal pagamos escola caríssima pra
quê? Para eles resolverem os problemas dos
alunos.
Assim pensando, o casal continuou
em sua escalada.
Empregando todas as suas
artimanhas, conseguiram chegar onde
queriam. Primeiro ele, umas semanas
depois ela.
Apesar de ele já estar exercendo a
nova função, eles conseguiram que fosse
marcada a posse dos dois no mesmo dia.

42

Estourou a notícia no Mabs:


Aquírio, o amigo de Corinto, fugiu, levou o
dinheiro que pôde e passou todo mundo
para trás. Inclusive o amigo que o
apresentara. Nem esse poupou.
Corinto ficou sem graça.
— Parecia uma pessoa tão distinta,
tão influente...
— O pior é que colocamos todo o
nosso dinheiro nessa empreitada. Estamos
lisos.

122
— Isso é mau! Em nossas novas
funções vamos conseguir jogadas que vão
restabelecer nossa vida financeira.
— Há outra coisa ruim: ele agiu
contra o Rubião, Dr. Joab e contra outros
que não podia.
— Os pobres, os “pés-rapados” não
importam. Apesar de serem os mais
afetados, pois puseram todas as suas
economias nisso.
— Repetindo você: isso é mau! Mas
não é tanto. O Dr. Joab colocou uma
pequena parte de sua enorme fortuna e o
Rubião arruma alguma maracutaia e se
restabelece.
— Sorte que nossas nomeações já
saíram.
— Não fale assim. Essa gente é
capaz de tudo. Inclusive de anularem o que
já está certo.
— Vamos fazer uma tragédia. Dizer
que você, Corinto, passou mal de saúde.
— Eu não. Preciso ter boa saúde
para subir. Bota sua mãe.
— Boa idéia. E tem outra: o
apartamento está lá. Na planta, mas está lá.
Aquela jogada que conseguimos, quitou
uma parte, podemos negociá-la.
Apesar de muita gente esperar que
eles se desesperassem, continuaram a se
preparar para a posse.
A parte mais trágica do estelionato
do Aquírio ficou com os pequenos do
Mabs. Confiando no talento dos maiorais,
empregaram todo o seu dinheiro,
imaginando lucrar muito. Perderam tudo,
economias que foram tiradas da boca, do
corpo. E ainda muitos se endividaram.
— Pagaram caro demais por não
quererem ver a realidade e terem a
ganância de dinheiro fácil.
123
43

A Dra. Aurélia, aquela antiga e


experiente Secretária, continuava seu
trabalho.
Ela tinha um assessor chamado
Pôncio. Ele era vinte anos mais novo que
ela e era casado. Ela o tinha como amante e
era apaixonada por ele.
Ele mandava e desmandava. Era
engraçado vê-lo numa posição outorgada
pela protetora, e ele fazendo questão de se
passar por conhecedor da matéria. Às vezes
ia à seção de Benedito e trocavam idéias.
Ele se empolgava todo. Porém quando
chegava à Secretária, esta lhe jogava água
fria:
— Esse assunto não interessa a
determinado partido. Não insista!
Ele ficava emburrado por uns
tempos, evitava Benedito, depois tudo
voltava ao normal.
Ela era maluca por ele. Por esse
motivo, ele tinha um poder enorme. Igual
ou quase igual às cortesãs de plantão. Por
esse motivo abusava. E como abusava.
Tinha apadrinhados entre a raia miúda. E
perseguidos também.
— Pobre de quem vai contra ele.
— Dizem que a esposa dele sabe, e
se faz de boba.
Vez por outra vinha ao Mabs e a
Secretária conversava com ela
amistosamente. E assim durante muito
tempo as coisas correram.
Ele e Dracena tinham um acordo
tácito. Um não mexia com o outro.
Um dia Aurélia ficou com câncer.
Um tipo muito forte. Vieram dias muito
tristes.

124
— Ela não tem família, tenho de
cuidar dela.
— Ela não tem uma irmã paterna,
que mora na cidade em que ela nasceu?
— Essa irmã morreu também. Era
filha de um caso extraconjugal do pai.
Deixou uma sobrinha. Sobrinha torta.
Pouco se falam.
— Tem também uma empregada..
— Coitada da Bebé, é meio
abobada.
Pôncio começou a cuidar da
enferma, que tinha um patrimônio muito
grande. Era muito abastada. Ninguém da
família aparecia e ele se desdobrando.
Passava até final de semana. A esposa
apoiando:
— Dra. Aurélia só pode deixar tudo
para ele, não tem mais ninguém.
A moral ficava de fora. A
possibilidade do dinheiro fazia esquecer
tudo.
Num final de ano, ela piorou muito.
Os dois renunciaram ao Natal e, às vésperas
do Reveillon, ela morreu. Cancelaram tudo
e prepararam o enterro. Chorosos. Ele então
parecia o viúvo...
A saída fúnebre ao cemitério estava
marcada para as dez horas da manhã,
quando às oito chegou a sobrinha vinda de
uma viagem cansativa. Bebé se posicionou
ao seu lado. A moça acompanhada do
marido estava discreta, entretanto era dona
da situação.
Pôncio estranhou. Fazendo das
tripas coração, foi até lá ironizando:
— Bom ter alguém da família.
Como ficou sabendo?
— Bebé me avisou.
— Bebé não anda nem de elevador,
como pôde dar um interurbano ao telefone.
125
A empregada toda envergonhada e
acabrunhada:
— Madrinha dizia que esta sobrinha
era muito parecida com o avó, pai de
madrinha. O filho dela então era a cara do
bisavô.
— Minha tia a instruiu. Era seu
desejo que eu estivesse no seu enterro, e
tomasse conta de sua casa. Depois de seu
patrimônio.
Ele não se conteve. Esbravejou. Sua
mulher furiosa junto.
— Vou entrar na justiça. É um
absurdo!
O certo é que a sobrinha tomou
posse da casa e levou junto Bebé. Ficou
com tudo da falecida.

44

Antonia também conseguiu uma


função. Ficou muito alegre.
Isso aconteceu porque precisavam
de uma funcionária honesta, pois a mídia e
a oposição estavam de olho na corrupção
daquele setor. Também precisava ser
trabalhadora e com capacidade. Por esses
atributos foi escolhida.
A maioria do Mabs comemorou e
lhe deu os parabéns. Principalmente
aqueles que não tinham proteção. Viam
acontecer com ela o que queriam que se
desse com eles próprios.
Até Circe e Corinto, quando a
encontraram, a felicitaram.
O casal estava tão feliz que
Benedito resolveu sair para jantar e
comemorar. Com os filhos.
No começo ela não queria:
— É uma extravagância, nós vamos
gastar sem precisão.
126
— É importante economizar, minha
doce Antonia, mas o lazer é bom também.
A data e você merecem.
— Nós todos!
Alegres foram comemorar numa
casa de massas. Tomaram até um pouco de
vinho. Voltaram felizes.
Em seu ninho se amaram muito e
dormiram o sono dos justos.
Não longe dali, Corinto e Circe
voltaram de uma festa luxuosa, que contava
com a nata da política nacional e local.
Acesos e com a cabeça cheia de mil planos
para uma ascensão maior, não conseguiam
repousar. No final da madrugada,
desmaiaram de cansaço.

45

Foi marcada a posse do casal


Corinto e Circe. Eles não pensavam na
função/no cargo com a responsabilidade
que teriam. Muito menos do bem comum
do País. Nem lhes passava pela cabeça o
quanto teriam de trabalho e de metas a
serem desenvolvidas. Ao contrário, era só
uma escada para mais, e mais.
Os bajuladores logo disseram:
— Vamos fazer uma festança aqui
no Mabs.
— Não precisa não.
A sós, comentavam:
— Pra quê? Para esse pessoal sem
importância?
— Pode vir o Poderoso ...
— Para quem nos interessa, faremos
um jantar elegante e fino em casa ou em
algum restaurante chique.
Acontece que o Dr. Joab, sem
perceber ou sem se importar com a ojeriza
do casal ao povão, quis bancar a
127
comemoração. Todos apoiaram tão
efusivamente, que eles não tiveram como
dizer não.
Quatro dias depois da saída de
Benedito e Antonia para jantar.
A velha raposa comprou queijos,
frios, carnes e patês numa das rotisseries
mais badaladas da cidade. Incluiu
salgadinhos, refrigerantes e também – é
óbvio – muita bebida.
Vieram muitos: o Poderoso, Rubião,
os outros Secretários, os puxa-sacos de
ambos os sexos, os carreiristas, as cortesãs,
ou melhor os cortesões, e Ananias.
Também estava a raia miúda.
Benedito e Antonia não foram
convidados, nem souberam. Talvez não
tivessem ido. O caráter e a maneira de viver
os separavam a cada dia dos conterrâneos.
Apesar de proibido, nem bem havia
terminado o expediente, a bebida rolava
solta. Quiçá drogas. Todos beberam muito,
inclusive o casal homenageado e os
graúdos do Mabs.
Lá pelas tantas o Poderoso saiu com
sua nova “bonequinha de luxo”. A partir
daí Rubião se sentiu o máximo. Não se
sabe o motivo por que não resolveu cantar.
Porém como estava cada vez mais
alcoolizado, cismou com Circe. Talvez a
julgasse devedora. Ela e o marido.
Primeiro começou a bolinar seu
traseiro discretamente. Ela, numa situação
peculiar, não queria desagradá-lo nem se
expor em público. Corinto fazendo de conta
que não estava percebendo nada, pelos
mesmos motivos.
Ela resolveu sair de lado e sentou-se
num sofá onde estavam outras pessoas. O
Secretário embriagado a seguiu, depois de
beber outra dose. Em seguida pediu para
128
uma funcionária se levantar e ficou ao seu
lado. E então se pôs a tocar suas pernas.
Mesmo alcoolizada, ela se levantou,
meio cambaleante, e postou-se perto da
janela. Rubião bebeu mais. Cismado como
estava com ela, foi atrás. Totalmente
bêbado, agora já estava partindo para a
baixaria. Chegou a um ponto que Astolfo e
Ananias interferiram. Porém ele não
gostou:
— Não perturbem. Vão pro inferno!
Corinto se fazendo de totalmente
embriagado, bebia cada vez mais. Entrou
na droga também. Apesar de sua moral
elástica, a verdade é que estava se sentindo
péssimo.
Depois de um se urinar e outro
vomitar, terminou a noitada.
O casal homenageado nunca se
importou com bons princípios, entretanto
aquilo tudo havia mexido com algo que
mesmo os mais canalhas têm dentro de si.
Eles não percebiam isso muito claramente,
porém sentiam.
Saíram juntos, como sempre
estiveram, e entraram em seu carro.
Estavam longe da lucidez.
O carro pegou o Eixão. Eles falavam
coisas desconexas e absurdas. Ele corria
muito. Ela estava tão fora de si, que nem
percebia.
Era já madrugada e a via iluminada
parecia um pavilhão. Tão linda que não
merecia um motorista bêbado.
Ele corria e fazia zigue-zague no
trânsito. Ria muito. Gargalhava. Ela
também se pôs a gargalhar. Então
resolveram se esbofetear. Eles sempre
unidos nos seus sórdidos objetivos de vida,
riam e se estapeavam. E gargalhavam
muito, muito.
129
Como era previsível, não precisou
muito para que o carro se desgovernasse.
Bateu numa árvore com tudo. A força foi
tanta que a partiu ao meio, e esmagou o
veículo. Logo em seguida veio a explosão e
começou a pegar fogo. O carro em chamas
voltou para o meio do Eixão e quase
ocasionou outros acidentes. Por sorte não.
O trânsito teve que ser interrompido
nos dois sentidos. Os bombeiros chegaram
depois.
Os dois estavam mortos.
A manhã chegou suave iluminando
o triste espetáculo. Os jornais estampavam
o acontecido e o trânsito estava caótico em
mais um dia de trabalho na capital da
República.

130
SEGUNDA PARTE

46

Depois do enterro, a mãe e o filho


de Corinto e Circe ficaram na pior. Tiveram
de sair da moradia funcional. O tal
apartamento que compraram estava
enrolado e a questão demoraria anos para
se resolver. O carro virou sucata. Não tinha
seguro, pois para eles tudo se resolvia com
a varinha de condão.
Regressaram para a cidade de
origem. A velha ainda tinha uma casa
pequena de subúrbio, porém era própria.
Foi ai que surgiu uma dúvida: como
fazer a mudança, passagens para os dois,
etc.. Não tinham dinheiro, e tiveram de
vender o que conseguiram arrematar. O
valor foi bem abaixo do preço do mercado.
Antonia ajudou no que pode.
Ajudou também a regularizarem a pensão
para o rapazinho. Foi muito difícil e só
conseguiram da parte de Circe. Era muito
pouco. Do Corinto não foi possível pois
não conseguiram provar determinados
períodos. Não se entendeu o porquê
daquilo.
Voltaram a viver na sua cidade natal
com pouco dinheiro e sofrendo todas as
privações e provações que os cidadãos
comuns enfrentam. E que o casal morto
havia contribuído, em pequena parcela,
para isso se agravar.

47

Estourou uma bomba no Mabs.


A Polícia Federal, com ordem
judicial, havia feito escuta telefônica,
devido a muitas denúncias. Dessa forma
131
descobriram uma teia de corrupção. Depois
dessa, foi uma avalanche de infrações
penais.
O Ministério Público entrou com
tudo. Não deu trégua.
Foram indiciados Rubião, Dr. Joab,
muitos funcionários pequenos, e até
Ananias. Sobrou até para Cremilda,
Belarmina e Cicinha. Essa última teve que
prestar muitos depoimentos na polícia e
teve muita dor de cabeça, entretanto os
Procuradores da República não a incluíram
na denúncia.
O Poderoso entrou também na
história. Ficou enrolado até o último fio de
cabelo e teve os bens em disponibilidade
para averiguação. Entretanto não foi
denunciado criminalmente.
— Será por quê?
— Será por que é inocente ou por
que a família da esposa tem muita
influência em seu Estado?
— Não sei. Será difícil saber.
O assunto foi para mídia e ficou
conhecido como “caso Rubião”. Virou
piada em programa humorístico. Durante
meses saía todo dia em rede nacional.
Depois diminuiu um pouco, entretanto vira-
e-mexe voltava às manchetes.

48

Gumercindo retornou para sua


cidade com Cacilda. Ela sim, não teve
nenhuma participação no caso.
Ele veio da classe média e não tinha
patrimônio para se sustentar. Conheceu sua
esposa, quando ela era moça, cheia de
conto de fadas na cabeça, e ficou
apaixonada por ele. Apesar dos conselhos
contra, chorava e se descabelava por ele.
132
Chegou a ficar dias sem comer, como
menina emburrada. Ele era todo afagos e
carinho com ela.
— Ela, boba, acreditou.
Chegou a um ponto que casaram.
Porém foi exigido o regime de separação de
bens. Ele concordou de imediato, tentando
agradar a todos da família dela.
Começou a vida profissional
ocupando um cargo por indicação deles.
Fez carreira política às custas de conchavos
e concessões, porém também por empurrão
deles, chegando inclusive a Ministro.
Ele não foi um bom marido. Era
adúltero, impaciente com ela, não escutava
seus assuntos e não se importava com o que
se passava com ela. Aos poucos ela foi
percebendo que ele não lhe tinha amor. Era
só interesse no poderio e prestígio dos seus.
Quando se deu conta, já tinha filhos dele e
se acomodou.
Quando voltaram, foram morar
numa casa de propriedade dela.
— Cacilda, preciso de alguns bens
seus para iniciar um negócio meu na vida
privada. Seu irmão me disse que agora não
é o momento de eu aparecer em nada aqui
no nosso Estado. Foi até grosseiro...
Quando jovem, ela se ofendia
quando algum de seus parentes falava e
fazia algo pequeno contra a sua grande
paixão. Porém dessa vez, pensou:
— Meu irmão tem razão, você está
enlameando tudo em volta, inclusive eu e
meus filhos.
Ele, voltado a seu umbigo como
sempre esteve, continuou:
— Preciso disso rápido. Nem vou
falar com advogado. Eu mesmo vou fazer
as procurações e você assina. Entendeu?
Ela não lhe respondeu e pensou:
133
— Não posso ter meu patrimônio
enrolado nessa sujeira que os jornais e a
televisão estão explodindo.
Ele estava tão acostumado a não
prestar atenção nela, que não percebeu que
ela não havia concordado. Ela saiu e foi
pedir conselho à mãe.
— Ainda bem que você teve o bom
senso de vir a nós se aconselhar, antes de
fazer burradas. Parece que está criando
juízo.
— Que faço?
— Em primeiro lugar, não dê nada a
ele. Nem o carro que ele dirige, fica em
nome dele. Nada. Segundo, você não assina
nada. Ele é mau caráter e falsário. Não
assina nem aviso de recebimento de
correio. Terceiro, não se deixe levar pela
bobeira da paixão da sua juventude.
— Pode deixar, mãe, vou escutar
todos os seus conselhos.
— Para garantir tudo isso - sei que
você é uma bocó e uma fraca – vou mandar
para lhe assessorar sua tia Firmina, irmã de
seu pai, que é solteirona, ranzinza, odeia os
homens, e principalmente seu marido.
Sempre o soube um caça-dotes. Ela vai
ficar hospedada em sua casa até eu achar
que você pode ficar sozinha. Nem sei se vai
chegar esse dia.
— Ela vai querer?
— Ela está idosa e anda se
queixando muito de estar só. Tem medo de
empregados a maltratarem e a enganarem.
Você faz um pouquinho de companhia a
ela, e ela se sentirá mais segura ao seu lado.
— Mãe, ela é tão chata...
— É o preço de não deixar o
desonesto do seu marido acabar com seus
bens, além de colocá-la na mídia como
cúmplice dele. Você quer isso?
134
— Nããão...!
— Vou falar com os nossos, mas de
antemão já sei que vão concordar. Então
vou telefonar para ela e acertar tudo.
— Que eu faço em casa?
— Como sei que você é uma
panaca, invente uma viagem para algum
dos apartamentos ou casas de praia de
nossa família. Diz que é inadiável.
Comunica amanhã de manhã, já com as
malas prontas, que nosso avião particular
estará esperando você. Além de o meu
motorista e segurança ir apanhá-la. Eu
providencio isso. Na porta de saída,
comunique a hospedagem de sua tia.
Assim ela fez. Quando chegou, ele
não estava. Foi dormir bem cedo de
propósito. Pela manhã anunciou a viagem.
— Cacilda, eu preciso que você
assine papéis para assuntos importantes e
você fala em imóvel da praia com
problemas inadiáveis. É o cúmulo da
idiotice.
Ele continuou a esbravejar e ela
quieta e tranqüila.
Em seguida, chegou o motorista e
segurança de Altiva, que pegou as malas
dela. Voltou, colocando-se à disposição.
Na porta da saída, ela calmamente
anunciou:
— Gumercindo, tia Firmina vai
passar uns tempos aqui em casa.
— Aquela velha rabugenta? Nunca.
— Coitada, será um ato de caridade,
ela é tão velha...
Agora gritando:
— Não admito! Na minha casa
nunca!
Ela foi passar algum tempo na praia,
enquanto a tia se aprontava para vir para
sua casa.
135
E veio. Apesar dos xingos e
ameaças.
Quando ela entrou, ele estava
emburrado, entretanto não teve coragem de
desfeiteá-la.
Ao contrário, ela chegou segura e
disposta a atormentá-lo.
Chegou com Brígida, uma senhora
de uns quarenta anos, que lhe servia de
dama de companhia.
Ao final da tarde, após ter lanchado
o que quis, apaparicada pela serviçal,
perguntou-lhe:
— Você não trabalha? Quem é que
vai querer uma pessoa que está na televisão
e nos jornais metido no escândalo Rubião.
Na nossa família nunca existiu isso.
— Olha aqui, Dona Firmina, esta
casa é minha ...
— Sua não, é da Cacilda, herdada de
meu irmão.
— Dona Firmina, se a senhora
continuar ...
Cacilda começou a chamar os
empregados:
— Acudam, acudam! Tia, vai para
seu quarto, que está tudo bem.
Quando a tia saiu, disse ao marido:
— Você não tem paciência com
uma pessoa idosa. Que horror! Não quero
vê-la sendo maltratada.
— Com ela, você não reclama, só
comigo. Se continuar assim, vou embora.
— Calma, calma!
Os bens dele estavam em
disponibilidade na Justiça. Só os dele, os
dela não, por serem casados em separação
de bens. Ela se sentiu aliviada de ter
acatado os seus, por ocasião do casamento,
no assunto regime de bens. Não deve ter
sido por acaso, que esse aspecto vazou e a
136
mídia noticiou. Ela ficou resguardada e ele
acabado ainda mais.
Ele não podia ir embora. Não podia
deixar a proteção da família dela. Mesmo
com a hostilidade e palavras desagradáveis
deles, era melhor do que na rua, sem
proteção nenhuma. Além do que, ele
fantasiava que ia dar a volta por cima e
ninguém iria provar nada contra ninguém,
muito menos contra ele. Também se
acostumou ao luxo deles e voltar para uma
vidinha simples de casa no subúrbio não
estava em seus planos.
— É só eu ter paciência. Cacilda é
uma bobona. Logo, logo eu resolvo com
ela.
Acontece que não foi bem assim. A
sua esposa, antes uma pessoa parada,
iniciou-se em seus negócios. E o fazia bem
ao seu estilo. Alguns assuntos deixava para
seus irmãos resolverem, outros para sua
mãe, ainda outros — bem poucos — para o
marido. Entrelaçava-os de uma forma que
só ela tinha o controle de tudo. Sem
precisar trabalhar, e muito menos se
esfalfar.
Firmina tomava conta da casa, dos
aposentos da casa e da conversa da casa, a
cada dia que passava. Na mesma proporção
ele recuava.
Um dia, triste e melancólico, rasgou
as tais procurações que havia feito para ela
assinar.
Ele só tinha os filhos. Apesar da
vergonha que passavam perante todos,
ainda lhe tinham afeto. Meio misturado
com revolta. Cobravam a indiferença da
infância. Agrediam o pai, depois sentiam
culpa, ocasionando um sentimento confuso
e angustiante.

137
A tia não perdia oportunidade de
retrucar:
— A revolta deles é culpa
exclusivamente do pai. Eles são as maiores
vítimas. Coitados! Imagine se o avô, meu
irmão, os visse passando esse vexame.
De fato eles eram as grandes
vítimas, pois não tinham contribuído em
nada para aquilo tudo.
A esposa, apesar de toda situação
constrangedora, sentia um pouquinho de
gosto, ao vê-lo em situação tão vergonhosa.
— Ele não soube retribuir todos os
sentimentos lindos e inocentes de sua
juventude, humilhando-a depois no que
pôde.
Em sentimentos, o fraco se vinga
sempre.
Pela posição de sua família, logo,
logo foi sendo convidada para tudo
novamente. E ninguém lhe falava do
marido.
— E as bonequinhas de luxo de que
tanto gostava?
— De luxo, não deve ter mais, mas
umas prostitutas baratas, isso ele não deve
dispensar. É a tara.
— Concordo!
Assim seguiam as coisas naquela
casa.
Um dia ele teve um problema do
coração e ficou limitado quase a uma cama,
no máximo a um quarto. Foi-lhe dado todo
o conforto.
— Não seja burra de botar mulher
para cuidar dele, porque ele lhe põe os
cornos dentro de sua casa.
O motivo não se sabe, porém dois
enfermeiros foram contratados.
De vez em quando, raramente, tinha
relacionamento sexual adúltero — não
138
conseguia ficar sem — com Brígida. Ela,
apesar de gordinha, desengonçada e de
cabelo estranho, tinha um furor incrível.
Sua patroa nunca desconfiou, nem
ninguém. Esse era o motivo que deixava
tudo mais excitante. Na calada e no
inacreditável.
No começo de uma manhã Firmina
morreu. Teve um lado bom e outro ruim:
ele ficou sem a odiosa criatura, porém ficou
sem sua serviçal.
Nessa altura das circunstâncias,
Cacilda já estava dona da situação e
calmamente seguiu em frente. Para sua boa
surpresa, além de herdar da velha tia o que
seria seu, ficou com um pedaço bem maior,
por ter cuidado dela no fim da vida.
A família decidiu lutar para tirar os
bens dele da disponibilidade.
— Aquela merreca não vale a pena
não. Mas é o nosso nome, e principalmente
o nome dos filhos, que são da nossa
família, é que conta.
Conseguiram. Foi uma das poucas
alegrias dele. Chamou os filhos e disse:
— Vocês vão poder herdar o que é
meu.
Os filhos olharam sem entusiasmo,
ficaram parados alguns momentos e depois
saíram. Era tão pouco, perto do que a mãe
ia lhes deixar. Sem contar a vergonha que
ele lhes impingiu. Apesar da indiferença,
houve respeito, pois não lhe jogaram na
cara seus erros.
Ele durou ainda muito. Quatro anos
e meio. Num final de tarde morreu.
Cacilda viveu muito, muito mesmo.
Chegou quase aos cem anos. Lúcida e
capaz de andar com suas próprias pernas.
Tinha também assessoria e mordomia que a
ajudavam e a cercavam.
139
49

O Dr. Joab foi preso. O que mais o


incomodava, além da vergonha de sair na
mídia como bandido, era ver sua mulher e
suas filhas enlameadas e expostas a todos.
Elas ficaram à mercê de toda a vergonha, à
margem do que tinham e do que eram.
Antes, como tinham muito dinheiro, eram
convidadas, apaparicadas e badaladas.
Agora todos as evitavam. Ninguém queria
comprometimento com elas.
Como ele tinha curso superior, ficou
em cela especial. Compartilhou-a com um
tesoureiro de campanha eleitoral
fraudulenta.
— O que ele não sabia, agora
aprende.
Tinha televisão, ventilador, comida
de restaurante, e outras mordomias que o
dinheiro pode comprar.
Alguém foi visitá-lo, para tirar
proveito ou para curtição.
— Como é, Dr. Joab, o senhor está
muito bem.
— Dinheiro compra tudo. Ou quase
tudo.
— E esse pessoal que vive mal em
celas cheias em condições subumanas?
— A coisa funciona assim: para os
ricos e/ou poderosos, os pobres só existem
para lhes servirem. Quando a massa deles
se adapta ao trabalho, eles os exploram o
possível, pagando o mínimo, fazendo-os
trabalharem o máximo e lucrando quanto
mais puderem. Para a nossa sociedade, em
que os ricos são os titulares, aqueles que
não se adaptam a isso, terão duas opções:
desempregados, adoecem e morrem à
míngua, ou revoltados descambam para o
140
crime. Nessa última escolha, eles são
jogados em celas, que na verdade são
depósitos sem nenhuma dignidade. Ali só
lhes resta esperar a morte: assassinados ou
pegando alguma doença.
— Mas isso não é para você, rico!
Assim se passou muito tempo.
Muito tempo mesmo.
Um dia, no Mabs, lembraram dele e
perguntaram:
— O que foi feito do Dr. Joab? Ele
foi solto, continua preso?
— Você não sabe?
— Não.
— Ele morreu meses antes de ser
dada sua última sentença de condenação
por um Tribunal Federal. Por esse motivo,
o processo penal foi julgado extinto. Ainda
serviu para a sua esposa ter direito à pensão
da Previdência Social comum, que ele
pagava pelo teto máximo.
— Essa pensão para ela, com tanto
dinheiro, não era nada.
— Você está enganado. Na cadeia
onde ele estava, tudo era pago, até água
para beber. E caro, muito caro.
— Ele adorava corrupção.
— Eles o sugaram tanto, que teve de
começar a vender seus bens. Foi indo,
indo... Quando viu, não tinha mais nada.
Nem a pequena herança de seus pais podia
mexer, para não entrar no bolo que a União
iria tirar-lhe para compensar o rombo
causado por sua corrupção. Depois de sua
morte, sua mulher e suas filhas foram
morar na casinha herdada numa cidade
pequenina no interior de seu Estado. Uma
vida modesta. Só uma delas fez faculdade,
concurso e ficou em Brasília. Entretanto
sem o glamour de antes. Como o
sobrenome era brasileiro e muito comum,
141
ninguém a associava ao pai e ao escândalo
Rubião.
— Triste fim!
— Acho que ele morreu, porque não
agüentou imaginar a vida sem luxo e muito
dinheiro.
— Será?
— Houve uma coisa boa que
aconteceu a suas filhas.
— O que foi?
— Todas casaram com bons
maridos.
— Teriam sido iguais ao pai delas:
um canalha, mas bom pai e bom marido?
— Não sei...

50

Rubião foi o mais castigado. Não


tinha bens nem dinheiro para nada. O Dr.
Joab lhe pagou advogado, que lhe ferrou.
Apesar de não ser ético, o mau causídico
defendia quem lhe pagava. Entretanto ele
achava que não podia nem reclamar. Se
saísse desse, teria de ir para Defensor
Público. Não seria pior, porém essa não era
sua opinião.
Além disso, as provas contra ele
eram as mais comprovadas. Os outros
conseguiam se safar daqui e dali. Ele não se
precaveu em nada. Julgava-se tão acima de
tudo e de todos, que não percebeu nem de
longe a lama em que estava se sujando.
Seus personagens dos programas de
humor eram os mais ridículos possíveis.
Embranqueceu os cabelos e envelheceu
muito.
Em sentenças, sua condenação era
sempre a pior.
Na cadeia não tinha mordomia
nenhuma. Devido ao enorme enfoque dado
142
a ele, os funcionários penitenciários tinham
medo de se comprometer. Não queriam
nem conversar com ele. Principalmente
sem dinheiro. Seu único consolo era um
senhor da Pastoral Carcerária, que tentava
lhe passar a religião. Porém ele nunca
conseguiu ter fé, nem Deus no coração.
Agar voltou à cidade natal e se
encostou nos sogros. O parco salário do avô
é que sustentava a ela e aos netos. Tudo
muito espremido. As crianças não puderam
seguir estudos. Infelizmente herdaram da
mãe a preguiça. Ela nunca lhes impôs
limites e o avô não conseguiu fazê-lo, pois
teve contato com eles já crescidos e mal
acostumados. Não sentia falta do marido.
Quando estava em Brasília, estavam cada
vez mais afastados. Sexo com ele diminuía
na mesma proporção em que ele arrumava
outra e outra amante. Nas poucas vezes, era
vazio e sem gosto. No auge, punha as mãos
atrás do pescoço dele, e imaginava-se
dando-lhe uma facada nas costas.
Ela engordou muito e envelheceu.
Sua vantagem era seu desligamento para
com todo o caso.
— Ela não está nem aí!
Como ele tinha um sobrenome
diferente, dos bisavós que vieram de outros
países, os seus ficaram marcados.
Sem estudo, seus filhos tiveram de
se submeter a empregos sem qualificação.
Mesmo assim, conforme sabiam que havia
ligação com o caso Rubião, os patrões se
desvencilhavam de imediato. Ninguém
queria se comprometer. Assim foram
rolando para baixo.
Um deles, uma vez, voltou a
Brasília para ver o pai. Viu um trapo de
gente, igual a ele. A mãe do preso ia todos
os anos. Chorava, chorava, chorava. A
143
esposa nunca mais. Dizia que não tinha
dinheiro, entretanto não tinha vontade.
Com o tempo Agar e os filhos foram
virando molambos.
Apesar de tudo que sofreu, Rubião
viveu muito. Depois de muito tempo,
conseguiu sair da prisão. A mídia não o
esqueceu e foi um alvoroço. Ele tentou tirar
vantagem disso, porém não conseguiu.
Terminou como camelô/ambulante numa
feira da capital de seu Estado. Sustentava a
mulher, que também não morreu.

51

Ananias também foi preso. Judite,


sua esposa, e seus pais choraram muito.
Entretanto deram-lhe assistência na cadeia,
indo visitá-lo.
Benedito e Antonia também foram
poucas vezes.
— Você sabe que eu não concordo
com o que você fez. Antes eu havia lhe
alertado.
Ele abaixou a cabeça.
— Eu quis sair, mas é difícil.
Quando se entra numa dessas, não se pode
sair. Eu não sabia.
— Espero que tenha aprendido a
lição. Tarde demais, mas sempre é tempo
para arrepender-se. Como o que está feito,
não se pode mudar, vamos ao que interessa.
No meu prédio vive um morador cujo filho
é Defensor Público do Estado.
— É o chefe deles.
— Nós vamos pedir a ele, para lhe
indicar um profissional de grande
capacidade nessa área. Essa proteção não é
muito certa não. Por seus filhos, por seus
pais, por sua esposa e pela nossa amizade,
vou lhe fazer uma concessão.
144
— Obrigado. Muito obrigado. Nem
sei como agradecer a vocês.
Assim foi feito, ele teve uma boa
defesa e pegou uma pena justa.
Enquanto esteve na prisão, sua
mulher levou o lar nas costas. Comparecia
nas visitas permitidas durante todos os
anos.
Houve uma época em que ela faltava
algumas vezes. Quando ia, parecia arisca.
Andaram-lhe enchendo os ouvidos:
— Será que ela não está com
alguém?
Se esteve ou não, certo não se sabe.
Se esteve, acabou por ela ou pelo outro.
Ficou triste uns tempos. Aos poucos, voltou
ao que era. Ele não queria e nem podia
pensar no assunto.
Ele trabalhou na administração do
presídio, teve bom comportamento e saiu o
mais breve que foi possível. Seus pais
estiveram sempre presentes lá e na casa
dele.
Perdeu o emprego no Mabs. Com a
ajuda de Judite e dos pais dele, conseguiu
comprar um carro e ser motorista de táxi.
— Parece que aprendeu a lição e
nunca mais se meteu em confusão.
Raramente se encontravam com
Benedito e Antonia. Não é que o casal os
evitavam, porém não mais tinham
afinidades.
— Infelizmente são raros os
corruptos que vão para a cadeia.
— Há aqueles que não vão para a
cadeia, mas destroem a própria família, por
não darem importância a ela, não escutando
nem amando os seus. Ficam escravos do
poder e do dinheiro. Não podem perdê-los,
pois todo o seu projeto de vida está ligado
diretamente a essas coisas materiais. Isso é
145
efêmero, num piscar de olhos pode acabar.
Como sabem disso, ficam sempre em
tensão. Sem perceber estão se destruindo si
próprios.
— Não sei como conseguem.
Também há muito corrupto com família
tranqüila, bem consigo mesmo e parecendo
gozar a vida numa boa.
— Parece, mas não é. Há também
pessoas como o Dr. Joab. Se não houvesse
as denúncias e o escândalo, na vida privada
ele vivia bem.
— São aqueles errados na vida
profissional, mas sua vida familiar deve ser
decente. Dão inclusive muita atenção aos
filhos.
— Será? Como será seu íntimo?
— Necessário seria se fazer um
estudo sociológico e psicológico para
sabermos e entendermos esse assunto.
A vida de Ananias era pior do que
no Mabs. Entretanto foi o que ficou melhor,
depois que terminou a tragédia. Tinha
emprego e uma família. Voltou inclusive à
sua dignidade.
Teve sorte que seu sobrenome era o
mais comum no país. Sua participação foi
pequena e não houve muita divulgação de
seu nome. Com o tempo ninguém o ligava,
nem aos filhos, ao escândalo Rubião.

52

Belarmina também fez parte no


processo. Ela e sua família não entenderam
o porquê. Atribuíram o fato a algum
trabalho feito de macumba por alguém que
não gostava delas.
No começo o assédio da mídia as
deixara com destaque na vizinhança.
Entretanto diante das perguntas hostis e das
146
fotos não desejadas, elas foram percebendo
que aquilo não era bom. Com a decretação
da prisão, viram claramente que as coisas
estavam péssimas.
Quando ela foi presa, levou um
susto ao se deparar com condições tão
ruins. Seus pais e sua irmã foram lá, e
prestaram-lhe a assistência que puderam.
Era quase nada. Porém serviu para sua
parte emocional.
Com os conselhos maternais e
fraternos — péssimos, entretanto ela
sempre escutou — começou a fazer sexo
com os funcionários da polícia e da cadeia.
Quando pegou um graúdo, fez o melhor
possível. Com sua larga experiência,
conseguiu ficar numa posição boa. Seu
cabelo nunca deixou de ser loiro.
Um dia um jornalista foi à prisão
para fazer uma matéria. Queria até um
livro, se conseguisse. O tal graúdo lhe
contou sobre ela, transformando-a numa
vítima. Pobre, ignorante e abusada. Disse
que ela nem sabia as maracutaias em que
estava se metendo. Na verdade, ela se
locupletava com elas e gostava muito.
Entretanto não tinha condições de avaliar o
alcance da gravidade do erro que cometia
como os outros.
Ele fez uma entrevista com ela, e
evidentemente fizeram sexo. Depois disso,
ela se transformou numa vítima social.
Quando houve a condenação, as
provas eram poucas, além do apelo do tal
folhetim, ela não pegou uma pena pesada.

53

A princípio ninguém conseguia


encontrar Cremilda, que também foi

147
indiciada. Também se locupletou da
bandalheira.
Ao voltar à sua cidade, entrou em
depressão e começou a se drogar muito.
Teve de sair dos lugares antes freqüentados
e foi morar na periferia.
Quando contava histórias de
Brasília, ninguém acreditava.
Não tinha o apoio da família. Nunca
teve. Belarmina parecia diferente. Porém
não era muito. Tinha de se submeter àquilo
que lhe era programado. Nenhuma nunca
tivera amor.
Suas histórias no cárcere foram
parecidas. Foram usadas sexualmente,
entretanto tiraram o melhor proveito que
puderam.
Cremilda pegou pena bem maior do
que merecia. Não teve bom advogado nem
boa defesa. As vantagens, compras e
viagens que teve, ela as havia pago na
cama.

54

O Dr. Elisseu se aposentou e foi se


desmilingüindo. Os netos já estavam
crescidos e não precisavam mais dele. A
idade avançava a cada dia. Era comum vê-
lo bem cedo em caminhadas no Lago Sul
com uma bermuda estropiada e uma
camiseta surrada e desbotada. Às vezes até
com furinhos.
Porfírio, ao regressar, falava mal de
Brasília o quanto podia.
Zebedeu voltou para seu Estado e
para seu escritório. Usando seu passado em
Brasília, conseguiu elevar muito sua
carreira profissional. Quando lembrava do
Mabs, apesar dos dissabores,

148
contrariedades e estresse, reconhecia o
quanto se beneficiara.
Astolfo continuou até onde pôde.
Suas frases continuaram a ser no seu
estilo:
“Sempre fui melhor que Rubião.
Aliás não existe secretário que se
iguale a mim. Aqueles que me
passaram foi por corrupção, sem-
vergonhice ou coisa parecida.
Não faço nenhum concurso porque
minha capacidade está acima.
Meu lugar deveria ter sido de
ministro. E não daqui, mas daquele
importante. Para ser mais claro,
meu lugar mesmo é de Presidente.
Presidente da República.”
No meio do caminho se desentendeu
com alguém poderoso. Quando percebeu,
estava no ostracismo. Como não houve
jeito de remediar a situação, foi demitido.
Voltou e estabeleceu-se na sua profissão,
sem muito talento, muito menos brilho.
Dracena, depois dos filhos
crescidos, fez um concurso difícil, o mesmo
que o Benedito fez. Disseram que houve
cambalacho, entretanto os dois
conseguiram passar por competência. Tinha
ela tanta capacidade, que conseguiu esse
feito apesar de não ser novinha,
ultrapassando o preconceito de idade.
— Será que lá ela vai trabalhar
muito?
— Não sei. Se não houver outro
jeito ou ela se entusiasmar com o trabalho...
— Será?
Minervina subiu muito no Mabs.
Seus caminhos não eram totalmente retos,
entretanto nunca foram classificados como
infrações penais. Chegou a participar de
uma Comissão importantíssima, que lhe
149
proporcionava várias viagens, inclusive
internacionais. Tinha também muito
prestígio com todos. Tanto os técnicos,
como os políticos, como os lobistas. Ela,
que desde criança nunca teve espaço em
sua casa, e talvez nunca terá.
Simão foi o que teve a melhor
carreira. Maneirinho e obscuro chegou a ser
Secretário Executivo do Mabs, e a
Ministro, por seis meses, enquanto o
Poderoso da época se afastou para
concorrer a cargo eleitoral. A mídia só
falou em seu nome no dia do afastamento
do outro. Depois, ao citarem algum feito de
sua área, citavam o ministério como um
todo, sem o nome dele. Quando mudou o
governo, destituíram-no do cargo. Deram-
lhe outro. Nem um ano se passou e ele
estava de volta. Nunca faltava, ia trabalhar
até em dia enforcado entre feriado.
Conhecia todo o mecanismo administrativo
necessário, principalmente para informar a
quem vem de fora e não conhece a máquina
do governo. Nunca teve poder e só assinava
aquilo que não tinha importância. Tinha
também o talento de se livrar daquilo que
não era correto.

55

O filho do casal Corinto e Circe


tornou-se um drogado. Com pouquíssimo
dinheiro, teve de começar a traficar e se
prostituir.
Tinha um relacionamento
conturbado e confuso com uma prostituta.
Estranhamente se entendiam.
A avó sofria muito com seus maus-
tratos. Inclusive agressões físicas.
Um dia Júnior e sua companheira
resolveram vender a casa dela. Ela recusou
150
veementemente. Começou então o calvário
da velha avó.
O vício era forte e eles não tinham
forças para controlá-lo. Ao contrário, a
cada dia se atolavam mais.
Chegaram a prendê-la e a deixá-la
sem comer. Numa madrugada, alucinados
pela droga, mataram-na.
Alguns dias depois, a polícia
conseguiu desvendar o crime e eles foram
presos.
Júnior ainda chegou a sair da cadeia,
porém logo se meteu em outra confusão,
sendo morto por um outro criminoso.

56

Benedito e Antonia ficaram vivendo


muito bem.
A tal maracutaia dos apartamentos,
que os espertalhões do Mabs arrumaram,
beneficiou os dois. Eles nem sabiam. Foi o
próprio gerente do banco oficial quem os
avisou que o imóvel deles seria incluído no
benefício. Não quitaram, entretanto ficaram
perto. Com poupança economizada mês a
mês, puseram fim à dívida logo. Foi motivo
de muita comemoração.
Mais tarde compraram um carro
simples e básico, porém zero quilômetro.
Também houve muita alegria.
Tempos depois se deram ao luxo de
ter uma chácara pequena, porém muito
ajeitada e bonita. Lá passavam a maioria de
seus fins de semana. Alguns amigos
também iam.
Chegaram até a fazer uma piscina e
uma churrasqueira. Isso aconteceu também
porque ele havia passado em um concurso
muito difícil, o mesmo da Dracena, e
ganhava muito bem.
151
Ela havia melhorado sua função e
ganhava um pouquinho a mais.
Seus filhos cresceram se firmando,
fizeram boas faculdades e tiveram
realização profissional.
Para eles, tudo isso era bem mais até
do que haviam planejado e agradeciam a
Deus todos os dias, em oração matinal.

FIM

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