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ou O PODER
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NOTA ESCLARECEDORA
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ÍNDICE
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25 – O aniversário de Belarmina. O canto de
poderoso - .
26 – Viagens a serviço. “Todos os ossos do
mundo são meus”. “Jabuti na árvore” - .
27 – A hostilidade ao antigo poderoso - .
28 – Corrupção - .
29 – D. Altiva. A queda de Cremilda - .
30 – As obrigações do ônus do poder. O
preço da inexperiência - .
31 – O sumiço do processo - .
32 – Longe do poder, há salvação - .
33 – O Secretário mais competente - .
34 – Divisão de bolo - .
35 – O parecer de Benedito - .
36 – Muito dinheiro em negócio duvidoso -
37 – A mágica da porta do gabinete - .
38 – Esperteza do casal Corinto e Circe - .
39 – Junior e os desajustes da adolescência -
40 – Ananias tenta deixar a corrupção - .
41 – Ascensão de Corinto e Circe - .
42 – Fuga do estelionatário - .
43 – Herança da Dra. Aurélia e desilusão de
assessor - .
44 – Antonia consegue uma função - .
45 – Posse de Corinto e Circe. E a morte - .
46 – Triste situação da mãe e do filho do
casal morto - .
47 – Estoura a corrupção no Mabs. O caso
“Rubião” - .
48 – Retorno do Poderoso a sua cidade natal
- .
49 – Prisão do Dr. Joab - .
50 - Rubião e sua pena - .
51 – Final de Ananias - .
52 – Belarmina e a cadeia - .
53 – Condenação de Cremilda - .
54 – O que aconteceu com os funcionários
do Mabs - .
55 – Tragédia com a mãe e o filho de
Corinto e Circe - .
56 – Final feliz! - .
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PRIMEIRA PARTE
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Brasilinha, cujo nome oficial é
Planaltina de Goiás, pertencia à periferia de
Brasília, porém não era mais Distrito
Federal. Era Estado de Goiás, lá bem
distante, aonde os pobres de Brasília foram
morar (espero que quando você ler, não
estejam mais longe). No futuro irão mais
distante.
Margarida também levava uma
mochila. Alpínia, toda arrumada, com a
saia curtíssima, ia toda alegre.
— Não esquece os guardanapos.
— Não precisa, D. Tó.
— Leva!
— Tá bom. Leva você Margarida!
Por acaso, descuido ou de propósito,
não levaram. Ela deve ter achado
desnecessário.
No outro dia, Alpínia chegou
radiante.
— Como foi a festa no ônibus?
— Foi ótima. Deu um pedaço para
todo mundo. Ihh, elogiaram a minha torta,
disseram que estava uma delícia. A
Florinda e a Gervásia, gulosas, comeram
dois. A cobradora, aquela minha amiga,
“tão gente boa”, a que eu fui ao churrasco
na casa dela, achou que estava igual
àquelas de festa de madame. Ah, o
motorista, aquele que a mulher arrumou
uma confusão outro dia, porque ele estava
namorando a Germana, também comeu
dois. A faca está aqui. Do começo ao fim
do ônibus, todos comeram.
Antonia saía do apartamento quando
encontrou no elevador sua vizinha do andar
de cima.
— Como vai você?
— Bem.
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Ela percebeu que a outra não estava
alegre. Lembrou então de seu evento de
bufê.
— Ah! Como foi a festa de sua
filha? Você me disse que tinha decoração
de gente badalada, músicos, pessoal de
cerimonial...
— Chique foi e muito. Acontece que
os doces da Sebastiana Silva e os salgados
da Socorro Santos já tinham sido vistos
numa outra festa. E a Sílvia me avisou, pois
é “muuuito” minha amiga.
A palavra muito foi por ela bem
esticada.
— Quem é esta Sílvia?
— Você não deve conhecer
pessoalmente. A Sílvia é alta sociedade,
high society. “Chiquérrima”! Quando ela
me falou, eu fiquei arrasada. Sabe que a
festa não saiu em nenhuma coluna social.
Só pode ser isto.
— Você não foi feliz pela festa de
sua filha só por causa disto?
A outra saiu do elevador sem
escutá-la. Antonia pensou:
– Que vontade de complicar a vida,
dando importância ao que não tem. Parece
até que inconscientemente não quer ser
feliz. Por isso dá tanto valor a coisas
supérfluas. Cada bobagem! Tanta futilidade
que até os doces e salgadinhos têm que ter
nome e sobrenome. E ser diferente. Pra
mim, eu gosto deles sempre iguais!
Alpínia foi muito feliz na sua festa
num ônibus apinhado de gente, enquanto
algumas pessoas contratam salão, bufê,
músicos e até convidam pessoas ilustres, e
não o são.
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— Medite, e se chegar a uma outra
conclusão, avise-me.
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— O Ministro estará muito ocupado
esta tarde e, se for do Planalto, eu ligo em
seguida.
Nem ela nem ele eram fiéis. Nem
faziam questão da fidelidade. Nem sua nem
do outro.
— Será que ele não se importa
mesmo com a fidelidade dela?
— Sabe como é a história?
— O homem “coroa”* arruma uma
mocinha nova. Começam então a fazer
sexo. Fala para os amigos — contar é muito
importante para os homens — que ela diz
ser ele o máximo, muito macho, melhor
que qualquer jovem. Depois ele começa a
perceber que ela lhe põe chifres. E ai?
— Aí fica mal, principalmente se
ele chegou ao ponto de desfazer casamento
ou burrada parecida.
— Então acontece o seguinte: ele
faz-de-conta que não percebe. Só não pode
admitir, nem pra ele, que ele não é o bam-
bam-bam do sexo. Em especial para os
amigos.
— É verdade. Eu nunca vejo
homem maduro, ou velho mesmo, com
ciúmes de garotinha nova.
Havia muitos com vontade de dar
uma “bicadinha” em Belarmina. Os
poderosos ou ricos conseguiam. Os mais
humildes imaginavam.
Ela tinha os olhos apertados, os
lábios muito finos e um nariz afilado e
comprido, mas seu rosto não era feio. Era
branca, sem ter a pele muito clara,
entretanto sempre pintava o cabelo de loiro.
Quanto ao corpo, tinha pouca carne nos
quadris e muito busto. Um pouco demais.
A cintura não era fina. Porém sensualidade
*coroa é uma pessoa que passou da juventude e está
na meia-idade ou mais.
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não lhe faltava. Era tanta, que exalava sexo.
Fora seus olhos que convidavam até mesmo
quem ela não queria.
— Ela tem uma bunda chupada,
muito busto e não tem cintura.
— Mas ela é apetitosa, deliciosa!
— O que ela tem é cheiro de
“putice” que vocês adoram...
— O que é “putice”?
— È a capacidade de fazer as outras
pessoas imaginarem consigo luxúrias e
mais luxúrias. Quase todos adoram isso.
Quanto ao sexo masculino, dizem que não
tem um a excluir..... .
O Poderoso também experimentou
só para não ficar para trás. Coisa de
machão.
Não dava para compará-la com
Cremilda. Essa era linda. Mesmo os que a
invejavam ou não gostavam dela, tinham de
admitir sua beleza. Tinha lá suas
vulgaridades também.
Ambas tinham uma moral elástica.
Entretanto a moça do Paranoá fazia sexo
com qualquer um. Diziam que um antigo
patrão tarado e bissexual inventou nas
escadas. Ela era tão vulgar que os
faxineiros lhe faziam propostas de maneira
indecorosa. A outra não. Estava longe de
ser uma dama, entretanto não chegava a
certas baixarias.
Belarmina não tinha namorado fixo.
— É um absurdo perder tempo com
esses pobretões que não vão lhe dar nada.
O certo é que nenhum lhe dedicava
sentimentos bons. Também só queriam se
aproveitar.
Usada e abusada, ela tinha o hábito
de se lavar demais.
— A meleca desses homens parece
que não sai, nem com sabão.
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Era comum entrar na seção com um
mau humor insuportável.
Na intimidade desabafava:
— Se um dia eu tiver um cargo
importante, faço como fazem comigo:
obrigo a terem sexo quando e como eu
quero.
Descarregava então toda a raiva de
dentro dela em quem estivesse por perto.
Seus colegas e os mais humildes eram
quem mais sofriam. Até sua chefe não era
poupada. Apesar do absurdo, tinha mais
poder.
Mudava de humor num minuto.
Infelizmente sempre para pior.
— Ela está com tudo. Manda e
desmanda. Dizem que vai até em viagem
para Europa e Estados Unidos, mas não é
feliz.
— Está insatisfeita. Tem dinheiro e
poder, mas não tem respeito e dignidade.
Quando termina o dia, a semana, o mês, só
há um vazio.
— Outro dia foi muito grosseira
com a Antonia. O motivo é a inveja...
— Inveja boa ou má?
— Para mim não existe inveja boa.
Esse sentimento negativo é um dos sete
pecados capitais. E é horroroso! O que
pode existir é a admiração a sentimentos ou
condições que não possuímos.
— Então inveja boa é admiração.
— Não! E não mesmo! Inveja é um
pecado, um sentimento negativo e feio.
Nunca é boa. Já a admiração é bonita. É
saudável e louvável. Nas famílias onde há
inveja, todos vão pra baixo, e nas famílias
onde há admiração às coisas positivas,
todos vão pra cima.
— Por que?
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— No primeiro caso, as boas
qualidades são ridicularizadas e no segundo
são exaltadas. As pessoas em volta passam
a dar importância ao que escutam.
— Voltando ao assunto, o motivo da
grosseria a Antonia é a inveja de quem não
precisa fazer sexo bestialmente.
— Se quisesse, também não
precisava se degradar. Entretanto não teria
as vantagens materiais que tem. Acontece
que isso é mais importante para ela.
— Então fica assim mesmo.
— Não é fácil agüentar vadia
insatisfeita!
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Cyssi era o apelido que Circe tinha
na intimidade.
O filho Júnior era cuidado pela
empregada Justa. Era uma solteirona de
trinta e poucos anos. Sem nenhum parente
em Brasília, nem no mundo, que se
importasse com ela.
Foi muito difícil arrumar uma
auxiliar doméstica que lhe servisse. Quando
conseguiu, deu-lhe bom salário e muita
mordomia.
Aos poucos, a serviçal começou a
mandar na casa. A patroa achava era bom.
Também se pôs a dar ordens para o
menino. O instinto materno da mãe quase
não existia. O pai, também omisso,
somente pagava tudo.
Com o tempo, até a carteira do
plano de saúde do filho foi dada a Justa,
para que fosse providenciada alguma
atitude que se fizesse necessária. O
motorista do ponto de táxi foi contratado
para ser acionado em emergências.
A mãe às vezes lhe comprava
roupas, para que andasse arrumado como
convinha a um filho seu.
Quando Corinto dava um parecer,
não se preocupava com o que é justo ou
certo. Somente com a política interna do
Mabs. Tinha tanto jeito para carreirista,
que, naqueles casos do passado em que o
Rubião e Porfírio estavam se
desentendendo, conseguia passar para outro
colega. De uma maneira não muito certa.
Entretanto um empurrão aqui, uma pequena
trapaça ali, ele sempre arrumava uma
justificação.
Desse jeito seus pareceres
começaram a ficar famosos. Com o tempo
virariam regras para superiores desonestos.
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Estava com Cremilda no gabinete e
teve vontade de ficar com ela. Bolinações e
beijinhos. Queria continuar com seu
brinquedo. Por isso a levou. Durante o
caminho os dois se abaixavam e faziam
estrepolias pela Esplanada dos Ministérios.
O motorista na frente fazia de conta
que nada estava vendo. Essa função lhe
dava uns bons trocados a mais.
Porém quando chegaram ao evento,
o Poderoso caiu em si. Percebeu que ela
não podia fazer parte do contexto.
— Minha bonequinha de luxo, lá eu
tenho de ir só. É tão maçante. Sinceramente
preferiria mil vezes ficar aqui, mas não
posso.
Virando-se para o motorista, falou:
— Saul, leve a moça daqui.
Conserve-a num lugar sem acesso da
imprensa. Infelizmente vou demorar mais
de uma hora.
— Oh, meu leão, eu tenho de ficar
longe de você? Vou ficar tão triste!
Ela estava acostumada a essas
mentiras, entretanto ele ficava enlevado,
imaginando-se o que não era.
Ela se abaixou o quanto pôde, ele
desceu do carro alguns metros antes, e
entrou para a tal solenidade.
O carro oficial seguiu em frente.
O motorista havia se excitado com
as cenas anteriores. Para agravar mais, ela,
livre da representação teatral, ficou à
vontade. Não se preocupando em ficar com
as pernas fechadas nem os seios compostos.
Então ele começou a conversar com
ela. Não mais lhe chamando de Senhorita
Cremilda, agora só pelo nome. Ela nem
percebeu.
Quando pararam num semáforo, ele
se voltou para trás e jogou todo seu charme.
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Ela olhou para ele e percebeu um belo
macho. Aliás isso já tinha acontecido de
outras vezes.
Na sua cidade sempre esteve
acostumada a muito sexo com jovens.
Estava mesmo sentindo falta de homem
viril.
Ela se pôs toda perto do banco dele.
A mão dele foi ousada.
Não precisou muito para que os dois
estivessem fazendo sexo dentro do carro
oficial na Praça do Buriti, em frente ao
Palácio dos Buritis do Governador do
Distrito Federal. Apesar da
irresponsabilidade do ato, por sorte dos
dois, ninguém viu. Nem houve
conseqüências. Só não se pode dizer que
ninguém soube, porque, depois da saída do
Dr. Gumercindo, Saul contou, para quem
quis ouvir, tudo e mais o que aumentava.
Uma hora e meia depois, lá estavam
os dois. Parecia que estavam iguais ao que
o Poderoso deixara. Ele voltou a brincar
com ela e tinha a impressão de que era
muito malandro nisso.
Ela era muito bonita, entretanto em
cabeça parecia uma criança. Às vezes
parecia mais infantil que uma menina
ajuizada.
Quando chegou a Brasília, suas
unhas tinham florzinhas e estrelinhas.
Apesar do Poderoso não enxergar nenhum
problema nisso, Rubião percebeu e
encarregou Circe do assunto.
Como os argumentos iniciais não
convenciam, ela teve de dizer que isso era
proibido no serviço público.
— Não é não. A recepcionista
também tem. Eu até queria perguntar onde
ela conseguiu umas prateadas.
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— Minha doce jovem, a proibição é
só para o alto escalão. De nós para cima.
Entendeu?
Ela não queria entender. Mesmo
sem gosto, ela submeteu-se à exigência.
— Tudo em nome da etiqueta.
Inventaram também para ela uns
conjuntos de roupas, os tailleurs. Apesar de
não fazer parte dela, ficou toda
entusiasmada por ser de uma loja de grande
nome e de ser usada por pessoas que ela
considerava de classe. Ficava assim vestida
tão sóbria como se fosse para se apresentar
à rainha da Inglaterra. Porém conseguia dar
um toque pessoal brega, pois gostava
também da sandália de uma apresentadora
da televisão e de uns brincos enormes que a
personagem da atriz do momento usava.
Isso sem contar que esses acessórios não
combinavam nem com o ambiente nem
com a figura pela qual ela queria se fazer
passar.
Suas roupas eram pagas pelo Dr.
Joab.
Houve um evento no Mabs e o
Poderoso não estava presente. Havia
música e foram designados garçons para
servir. Um deles era da Secretária de
Rubião. Chamava-se Aliomar. Era alto,
belo e tinha os olhos verdes.
Conforme ela bateu os olhos nele,
se encantou.
Ele procurava agradá-la o melhor
que podia para ficar bem com o Poderoso.
Ela o chamava de você. Como ele a tratava
com cerimônia, ela insistia para também ser
tratada de você.
— Não precisa frescura comigo.
Lá pelas tantas, como lhe deu
vontade de dançar, ela o convidou.
— Eu estou trabalhando.
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Sem perceber a situação, ela lhe
tirou a bandeja das mãos, colocando-se
entre os braços dele, e começando a dançar.
Muito sem graça, ele dançou
também.
No dia seguinte, ela se pôs a
telefonar para o gabinete do Rubião,
procurando por ele.
Apesar de toda a atração física que
sentia por ela, Aliomar fugia dela o que
podia.
— Ela é uma mulher maravilhosa.
Pra ser sincero ela é muito para mim.
— A mulher está se oferecendo,
aproveita.
— Não é assim não. Eu tenho minha
esposa e minhas filhas. Eu gosto demais
delas e não quero comprometer minha
felicidade conjugal por umas horas de
paixão. E tem outra: imagine se o Poderoso
fica sabendo que eu botei chifre nele,
arruma uma confusão comigo. Soube de
um caso semelhante na Esplanada, que
arrumaram até processo contra o infeliz.
Comprei minha casinha na Candangolândia
e preciso terminar de pagar. Estou
estudando à noite para melhorar. Já
terminei até o segundo grau. Quero
melhorar, não piorar.
Assim pensando, o garçom fugia
dela que o perseguia.
— Ele não sabe que eu não dou
importância a diferenças sociais.
Ela não percebia a realidade: ela não
estava acima dele.
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somos brindados com uma flor aqui outra
acolá para alegrar os dias cinzentos.
E o sol. Quanta luminosidade! Ela é
tão intensa que abrange tudo que a nossa
vista consegue olhar. Parece que vai além
da nossa percepção, penetrando no fundo
de nossas almas.
— Quem pode ficar triste, sem
sentir o divino toque, debaixo do sol do
Eixão?
— E quem pode deixar de agradecer
a Deus por tanta maravilha?
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— É que ela é viúva e tem três
filhos pequenos. O marido morreu numa
troca de tiros na feira do rolo na Ceilândia e
não deixou um centavo para ela. Nem
pensão. Ela está passando dificuldades.
— Antonia, ao indicar o nome de
uma pessoa para a função de minha
secretária, eu não vou estar fazendo
assistência social. Nem tenho esse direito.
A União paga uma quantia para uma pessoa
fazer um determinado trabalho. E a União
paga com o dinheiro dos contribuintes, do
povo que paga impostos. Ela sabe bem
português, lida com computador, tem
desenvoltura para telefonar e lidar com o
público?
— Isso eu não sei.
— Oh! Meu amor, não deixe esse
coração de ouro que você tem dentro do
peito atrapalhar a visão das coisas. Eu
também lamento a situação dela. Se puder,
vou ajudá-la no possível. Entretanto tenho a
obrigação de dar essa função para quem for
desempenhá-la da forma que contribua para
o bem comum do nosso país.
— Você não acha que está
exagerando um pouco. É só uma função de
secretária.
— Não estou exagerando. Se eu lhe
der a tal função sem ela ter capacidade para
tanto, o que vai acontecer? Outra pessoa vai
ter que fazer o trabalho dela sem ganhar.
Isso é justo?
— Não. Aliás é o caso da Cremilda
que a gente critica tanto.
— Sabia que você ia entender
minha posição. Pode ocorrer também que
ela não faça o trabalho por incompetência,
ninguém mais faça e a máquina
administrativa fique emperrada. É um dos
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motivos por que o serviço público não
deslancha.
No outro dia veio à sua sala seu
amigo Ananias.
— Benedito, eu soube que sua
secretária pediu demissão. Bota a Olandina.
— Vou fazer uma análise e ver se
ela tem todos os requisitos.
— Ah! Ela é minha prima. Qual é?
— Qual é não. Não posso colocá-la
sem as condições necessárias só porque é
sua prima.
— Não seja radical, homem. Se
fosse sua prima, ai sim, iam dizer que você
estaria botando parente, essa história toda.
Mas é minha prima e ninguém nem vai
ficar sabendo. Além de você fazer um favor
para um amigo. Aqui nesse país, amigo é
para essas coisas.
— Não concordo com isso. Essa
função não é presente para os amigos. É
para ser exercida por alguém que contribua
para o bom andamento do Mabs.
— Que exagero!
— Exagero é a mentalidade de
certas pessoas do nosso povo que encara o
serviço público com um cesto de presentes
e favores. É um dos motivos por que fica
difícil se fazer uma nação desenvolvida. Se
eu pensar assim, não poderei criticar os
políticos corruptos. Ficarei igual a eles. O
escritor João Ubaldo Ribeiro* diz que não
são só as elites que são corruptas, o povo
também. Esse episódio está mostrando que
ele tem razão.
— Ela precisa tanto...
* “Esse negócio de dizer que as elites são
corruptas mas o povo é honesto é conversa afiada.
Nós somos um povo de comportamento desonesto
de maneira geral, ou pelo menos um comportamento
pouco recomendável” - João Ubaldo Ribeiro, revista
“Veja” Ed. Abril, ed. 1905. Ano 38, n. 20).
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— E tem outra coisa: há algum
tempo me disseram que a Olandina falta
demais. Você não me pediria para
negligenciar também isso.
— Não tem jeito não?
— Se ela não tiver os requisitos,
infelizmente não. Lamento não poder
ajudá-la. Não tenho esse direito.
Ele fez uma seleção entre as
funcionárias e escolheu Hortência. Ela era
uma jovem senhora que fazia faculdade de
letras à noite. Antes fizera um curso de
informática pelo Senac. Era também
desembaraçada e educada. Fazia jus à
quantia suplementar que o governo lhe
pagava.
Teve muita gente no Mabs que não
entendeu a posição de Benedito e houve
muitas acusações contra ele pelo episódio.
Com certeza isso lhe deixou magoado.
Porém ele estava tranqüilo com sua
consciência. E isso lhe bastava.
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— Acho que é isso mesmo. Além
do mais, como diz nosso amigo Quintino
‘pagando bem, que mal que tem’?
— Dentro dos nossos padrões,
temos um casamento perfeito. Eu não
gostaria nunca de me separar de você.
— Nem eu, Cyssi. Nós somos
apaixonados e nos admiramos.
— Nós nos merecemos!.
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clássica. Os maus nem deviam
gravar.”
“— Quem pegar do serviço público
uma folha de papel, uma borracha
ou uma caneta, também deve ser
considerado ladrão.”
“— Telefonema particular só em
caso de urgência ou se não houver
outro jeito. E bem rápido.”
“— Durante o expediente de
trabalho, só poderá haver uma breve
pausa para descanso e ida ao
banheiro.”
“— Política e honestidade não
conseguem andar juntas atualmente.
E isso serve para os políticos
nacionais e internacionais.”
Etc.
Às vezes lá estava alguém
entusiasmado falando sobre futebol, ou
mulher ou contando alguma fofoca,
quando ele chegava, deixando os outros se
sentindo mal. Situações semelhantes
aconteciam com freqüência.
Gostava muito de criticar a todos
que pudesse.
— Quem faz, não critica. E quem
critica maldosamente, não faz, ou faz
pouco, bem pouco.
Quando alguém falhava em
qualquer coisa, lá vinha o dedo dele a
apontar. E ria, ria.
No início ele foi comparado ao
Benedito, porém aos poucos foram notadas
algumas diferenças.
Apesar de se dizer uma pessoa sem
máculas, convivia com Cremilda, e suas
iguais, procurando agradá-las o melhor que
podia. Também tinha o cuidado de não
falar em moral perto delas.
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Quanto à participação de Rubião e
outros em maracutaias, fazia de conta que
não percebia nada. Um dia alguém lhe disse
que eles eram corruptos. Negou
veementemente. Radicalizava que no Mabs
não havia bandalheira. Os erros eram
daqueles que freqüentavam ali.
Era tanta bobagem que os ouvintes
não sabiam se era gozação ou se ele estava
querendo saber de suas opiniões para delas
fazer uso.
— Ele mente e sabe que mente.
— Não é bem assim. Ele mente para
ele mesmo.
— Ele não sabe o que é certo e
errado?
— Sabe. O problema dele é que não
convive com a verdade nem com ele
mesmo. Mas tem o livre arbítrio e noção do
bem e do mal. Erra, sem dúvida.
Não fazia parecer maroto, entretanto
com ele concordava, tomando o cuidado de
elaborar uma frase que não dissesse nada
com nada. Ao se esquivar, dava desculpas
para si e para os outros, justificando sua
atitude. Nunca dizia que aquilo estava
errado, porém não tinha força para ir
contra. Nem de brincadeira admitia isso.
— Se faz de tão sério!
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Ela estava como Secretária há muito
tempo no Mabs. Saía governo, entrava
oposição e ela continuava.
— Por quê?
— Sei lá, ela deve interessar a
algum grupo muito poderoso e importante.
Também se aliava ao fato de que ela
agradava a todos. Bajulava o máximo que
podia. Em política não se metia.
— O importante para mim é o meu
país. Não tenho partido político.
Vez por outra ficava numa situação
delicada, pois não queria desagradar aquele
do partido que já esteve no poder, e
atualmente é oposição, e precisava badalar
o de agora. Porém tinha muito jeito e
diplomacia, conseguindo acertar em tudo.
— Amigo meu é para sempre, com
poder ou fora dele.
Evidentemente não era bem assim.
— Tem o fato de que o poderoso de
hoje, pode precisar dela amanhã.
Com isso, ela continuava no cargo.
Rubião achou que ela poderia
encontrar uma solução, com sua longa
experiência:
— Temos de pôr fim a esse
escândalo. Exagerado demais.
— Isso interessa a determinados
grupos?
— Sim, sim, sim. É óbvio. Caso
contrário, já teríamos encerrado. Tem de
continuar e calar a boca desses fulanos da
imprensa. Eles estão passando dos meus
limites do bom senso. Estou lhe pedindo
uma saída para essa crise. Sabe o que
fazer?
Ela pensou um pouco, depois disse:
— Vamos instituir uma Comissão
de Alto Nível Interministerial.
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— Mas, Dra. Aurélia, não vamos ter
problemas com outros ministérios. Esse
nós conhecemos, e melhor, nele
mandamos. E nos outros?
— Meu caro, não precisa ver perigo
nos outros ministérios, que em situações
iguais, pessoas iguais a nós vão fazer o
mesmo.
— O nome é bonito.
— O assunto enrola anos e anos.
Todos viajam, todos se esbanjam em
pareceres compridos, prolixos,
ininteligíveis e sem objetivo algum. Vez
por outra passa de um ministério para
outro, sempre com o cuidado de escolher
pessoas iguais a nós, e aí vai mais tempo.
— Podemos pôr o Astolfo para
presidir.
— Boa idéia!
— Se necessário, há o casal Corinto
e Circe. Há também Ananias, Quirina, etc..
— Há muita gente. Pode ser que dê
até briga para ser escolhido para a tal
comissão.
Os dois riram aquele risinho de
safado. A comissão foi nomeada e
instituída... e o assunto morreu na
imprensa.
— Antonia, não é possível, o
Astolfo só faz pareceres, reuniões e nada de
soluções.
— Será que alguém quer resolver o
problema?
— E a moral, o bem comum e o
nosso país?
— Hoje, com a globalização, não é
só no nosso país que se deve pensar, é no
mundo todo. Eu lhe pergunto: aonde vamos
parar?
— Será que só nós dois nos
preocupamos com isso?
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— Não. Você está exagerando. A
maioria dos funcionários – e dos brasileiros
— é honesta e está preocupada com coisas
positivas.
— A maioria são os concursados.
— A Líria e o marido, que têm a
mesma forma de pensar que nós, me
disseram que eles ensinavam os filhos
todos os bons princípios. Infelizmente eles
eram ridicularizados muitas vezes.
— Então não tem jeito?
— Tem jeito sim. Hoje os filhos
deles são ótimos profissionais e estão bem
na vida amorosa. Muitos dos que os
ridicularizaram, atualmente estão na pior.
— Verdade que há aqueles que
estão ganhando muito dinheiro.
— Quando você faz o melhor que
pode, não deve lamentar.
— É minha Antonia querida, não
podemos desanimar. Como temos moral e
caráter, devemos continuar a caminhada
com nossos ideais.
— Temos de lutar o bom combate,
já diz a Bíblia.
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— Saiu dos cofres públicos ou do
bolso do Dr. Joab?
— Sei lá. Da aniversariante com
certeza não foi, nem de seu protetor.
Nem esperaram às seis horas da
tarde, quando encerra o expediente.
Quando eram cinco e pouco, Rubião
desceu, e começaram a festa. Estava sem
comer pois não havia tido tempo de
almoçar. Foi só um sanduíche.
— Não convida gente careta! Eles
vão é atrapalhar...
Certas pessoas nem queriam ir
mesmo. Se fossem convidadas, teriam de
dar uma desculpa educada. Porém havia
aqueles que não gostavam daquele
ambiente nem daquilo tudo, mas
estranhamente gostariam de receber o
convite.
— Não sabem o que querem. Será
que sua retidão é mesmo reta?
Muita bebida, talvez droga, em
pouco tempo todos estavam embalados. A
aniversariante ficou perto de seu protetor.
Ananias se pôs a tocar violão e
Rubião, meio embriagado, começou a
cantar. Sua voz era esganiçada e desafinava
muito.
Acontece que o pessoal começou a
elogiá-lo. Exageraram tanto que ele se
julgou um cantor afinado mesmo. E
deslanchou a voz.
— Como canta bem!
— É agradável vê-lo cantar!
— Repita esta última. O senhor
canta todas bem, mas esta da sua região
ficou maravilhosa! Como gosto de
melodias folclóricas. De lá então. E na sua
voz!
67
Na verdade, o badalador nem
conhecia a cidade dele, nem escutaria
nenhuma música regional.
Chegaram ao ponto de fazer coro
enquanto ele arrepiava as canções.
— E como conseguiram?
— Ora, o puxa-saco põe um lá-lá-lá,
o bajulado quer ouvir aquilo e ninguém vai
contra. Ao contrário. Dá tudo certo!
Os participantes da festa
continuaram:
— O senhor tem de gravar um CD.
Vai estourar.
— Não tenho tempo.
— Então o senhor nos promete que,
quando largar o Mabs, fazendo o sacrifício
que está fazendo, grava. Será um sucesso.
Quase embriagado ele afirma: (o
pior para si mesmo)
— Gravo!
E continuou cantando. Estava tão
embevecido que nem viu quando ou com
quem Belarmina saiu.
— Estava mais gostoso que ela.
Saiu às nove horas da noite,
abraçado com Astolfo e Corinto. Eles o
puseram no carro. Nesse estado de
embriaguez foi dirigindo sozinho e
cantando. Pode parecer absurdo, porém
chegou à sua casa e, que se saiba, não fez
nenhuma besteira noticiada.
Entretanto no outro dia se
arrependeu de ter vindo dirigindo
embriagado. Da cantoria não. Estava se
sentindo um grande cantor.
Infelizmente outras vezes repetiu a
bebedeira, a seção de cantos e o
arrependimento.
68
26
69
— Eles não pensam que poderiam
ajudar nosso país e a Humanidade?
— Não. Só olham para si. Vou
contar uma história para você. Eu tenho
uma chácara lá longe, você sabe.
— Conheço. Nós já fomos lá num
domingo.
— Isso. Lá eu tenho uma cachorra
chamada Diana.
— Homenagem à princesa inglesa.
— Não. À deusa grega da caça. É
um animal forte e bonito. Nós gostamos
tanto dela que brincamos que ela fala.
— De faz-de-conta. Prosopopéias.
— Um dia eu pus uma outra
cachorra lá. Era ainda mais bonita. Ficou se
chamando Afrodite. Só que a primeira batia
muito nela. Muito mesmo. Tinha um
veterinário meu amigo que me disse ser
isso normal. O animal se sente dono de
território. Quando chega outro, para ele é
invasor.
— E a segunda ficou apanhando?
— Parece incrível, mas não havia
outra solução. Eu precisava das duas. Num
domingo eu levei uns ossos para elas, e
deixei lá. A Diana pegou o maior, depois o
outro, e ainda o outro. Quando Afrodite foi
pegar o menor, ela rosnou braba e tomou-
lhe o último. Então humildemente ela
perguntou-lhe: “Diana, quais ossos que são
meus e quais são seus?” E ela lhe
respondeu prontamente: “Todos os ossos
do mundo são meus!” E ficou tudo por isso
mesmo. Meu caro amigo, eles se julgam
donos de território.
— Eu entendi a mensagem. Acho
tudo tão absurdo. É isso. É a Cremilda
ganhando pela função na qual a Ráfis
trabalha duro sem ganhar.
— A Cremilda é “jabuti na árvore”.
70
— Que é isso?
— Na Esplanada dos Ministérios
existe esta expressão: “jabuti na árvore”.
— Por quê?
— Você vai andando e se depara
com uma árvore. Então vê um jabuti em
cima dela. O que você pensa?
— É um absurdo. Jabuti não pode
subir em árvore.
— Ele não pode subir e nem tem
capacidade para estar lá. Portanto alguém o
botou lá. “Jabuti na árvore” é estar num
cargo sem capacidade, colocado por um
poderoso. Não se deve mexer, amigo. Se
tentar mudar alguma coisa, dá confusão pro
seu lado.
— Você tem cada história, Simão...
— Esse absurdo não é só na
Esplanada dos Ministérios que existe.
Assista à televisão e veja nas novelas como
tem “jabuti na árvore”... E outros setores
também...
Os dois riram muito. Despediram-se
depois e foram para casa.
27
71
Mais tarde também vai ser difícil encontrá-
la (lo).
Depois se desentendeu com o
Poderoso da época. Uns diziam que ele foi
contra interesses cruciais, outros que ele
estava se achando mais do que era. Outros
ainda que houve divergências na hora de
dividir sei lá o que.
O certo é que os dois se trancaram
no gabinete do Ministro, sem testemunhas,
e brigaram feio. Eram gritos e xingamentos.
Quando saíram estressados e
transfigurados, tinha xícaras quebradas e
até uma estátua no chão. Evidentemente
que não falaram com ninguém e nem deram
explicações. Não queriam tocar no assunto.
Dr. Eliseu tirou férias e licença-
prêmio. Quando terminaram, ele foi
trabalhar no Rio em outro órgão.
— Naquele tempo, todos que
vinham de fora viravam funcionários
efetivos. Pelo menos agora, depois que
acaba o padrinho, vão embora. Os que
ficam são os concursados, que são, ou
deveriam ser, os técnicos.
— O apadrinhamento e a proteção
fazem com que outros se acomodem.
Alguns viram até preguiçosos. Vêem os
incapazes lhe passarem à frente e
desanimam.
— É pena. Um dia isso muda. E
para melhor!
Quando retornou a Brasília, ele e a
mulher só queriam ficar perto da filha
casada e dos netos. Tinha uma situação
financeira estável e queria sossego. Não
pretendia mais o estresse do poder, nem
tinha mais saúde para essas emoções.
Isso ele sabia, entretanto não os
carreiristas da época.
72
Apesar de chegar dizendo que
queria ficar num lugar sem nenhum
destaque, somente com tranqüilidade para
completar seu tempo de aposentadoria,
ninguém acreditou nele.
Para começar Circe chamou sua
velha conhecida Cicinha para lhe contar
quem tinha sido esse personagem. Ficou a
escutar durante quase o expediente da
manhã.
Depois disso, ela e o marido
passaram a fazer uma guerra contra aquele
que retornou. Velada como era seu estilo.
E não foram somente eles não.
Todos que tinham posto ou pretendiam ter,
hostilizavam-no.
Havia um acordo tácito entre quase
todos contra ele.
Benedito e Antonia nem entendiam
o motivo de tanta corrente contra. Porém
como diziam que o seu caráter no passado
não era satisfatório, também não o
defendiam.
— Que eu tenho pena de tanta carga
contra, tenho! Ninguém merece.
Deram ao Dr. Eliseu uma mesa bem
estropiada numa sala cheia de processos
velhos e mal cheirosos. Ficava ali também
um funcionário meio atrapalhado das idéias
que, de certa feita, queria tentar o suicídio
da janela gritando o nome da mãe. Antes
ameaçava jogar mesa e máquina pela
janela. O outro passeava o tempo inteiro
pelo prédio e quando parava na sala, era
para telefonar namorando. A última vendia
vasilha e flores de plástico quase o
expediente inteiro.
Não lhe davam nada para fazer. Ele
era um assessor de nada. O famoso
“aspone”*. Como ele era metódico e
* assessor de porcaria nenhuma.
73
cumpridor de horário, ficava o dia todo sem
ter com que trabalhar. Para ele era
insuportável aquela situação. Começou
então a trazer livros, revistas e jornais.
Porém isso não lhe bastava. A sensação
desagradável continuava.
Ele tentou ser útil, bajular e
envolver. Nada adiantou. Até ser simpático
com os mais simples. Eles também não
queriam prosa, para não desagradar seus
chefes. Tudo em vão.
Um dia, ao sair do elevador, deu de
cara com um chefão de um organismo
internacional. Ele o conhecia dos velhos
tempos e tinha vindo para umas reuniões
muito importantes para o Mabs. Apesar de
estar rodeado de várias pessoas, o tal gringo
conversou com ele.
Chegando à reunião sugeriu, com a
segurança de quem exige, o nome dele para
participar das negociações.
— Sei que é uma pessoa de grande
capacidade profissional e irá melhorar o
nível técnico que pretendemos alcançar.
Todos se olharam com conivência,
entretanto como não tinham nenhum
argumento sustentável, tiveram que chamá-
lo.
O Dr. Eliseu veio alegre e feliz.
Atento procurava fazer todas as
anotações. Era a chance que ele precisava.
Passados vinte minutos, a secretária
da reunião chegou ao seu ouvido e disse-
lhe que alguém na ante-sala iria lhe falar.
Chegando lá Corinto lhe disse
secamente:
— Pode voltar para sua sala, não
vamos mais precisar de você hoje.
Quando ele ia retrucar, o outro já
estava fechando a porta. A secretária
também já tinha sumido. O porteiro, de
74
maneira educada mas firme, fez o infeliz
ver que ele nada mais tinha a fazer ali.
O funcionário do tal organismo
internacional ainda perguntou por ele.
— Infelizmente ele teve um
problema de saúde. Ele não está bem. Até
lapsos de memória ele tem. É uma lástima.
Como o gringo no Brasil tinha
muita coisa a fazer, esqueceu dele.
Ele tentou desesperadamente
contacto com o mesmo, porém não era fácil
e não conseguiu. Todos contra. O encontro
na porta do elevador tinha sido um fato
raro.
Aos poucos foi se desencantando de
voltar, pelo menos, a produzir.
Parece incrível, entretanto ainda
badalava a quem podia, para não cair mais.
Ou talvez por costume de bajular.
Também reclamava de injustiças
que outrora cometera igualzinhas. Criticava
com veemência, inclusive com palavras
desabonadoras e grosseiras.
Lutava para não se deprimir.
Com o tempo foi se tornando
inoportuno. Insistia em contar histórias de
quando ele tinha poder. Histórias essas que
ninguém queria escutar, por não
interessarem mais, pois os tempos e as
regras eram diferentes. E por nem
acreditarem nelas.
Em sua casa ninguém o visitava,
além de seus parentes. Porém esses não lhe
bastavam. Queria falar de seu antigo poder.
Já há tempos se arrependera do desfecho
que houve na briga com o Ministro da
época.
Arrumou então amizade com um
antigo oficial militar graduado, que não
sabia falar de nenhum outro assunto que
não fosse seu antigo e descomunal poder.
75
Os dois tinham um acordo tácito. Um
falava, falava sem parar, e o outro ficava
calado. Escutando não seria bem definir a
situação, pois, na realidade, não prestava
atenção. Em seguida o outro falava, falava
e esse ficava calado. Só conversavam
mesmo quando diziam que os tempos eram
outros, tudo estava pior e o país à beira do
abismo. Achavam que precisavam um da
companhia do outro.
Quando se aposentou, fez questão
de trazer uma torta doce. Foi de sala em
sala chamar todos. Pretendia pôr para fora
todo aquele tempo de amarguras e
humilhações. Quase ninguém veio nem
para comer o bolo. Os que vieram, pegaram
um pedaço e retornaram à sua sala. Só veio
e ficou ali uma antiga funcionária. Teve de
engolir seu discurso. O que restou do doce
deu então à faxineira.
A única presente foi Dona Violeta.
Ela também havia tido muito poder.
Tinha sido muito importante no Mabs.
Porém num determinado episódio defendeu
um injustiçado contra um amante de um
Secretário poderosíssimo e homossexual.
Os dois se enfureceram e ela caiu. Caiu
não, despencou. Os dois fecharam questão
contra ela.
Entretanto a reação dela foi
diferente daquela do Dr. Eliseu.
Tinha uma família estruturada.
Gostava demais de sua casa e de cuidar
deles. Quando a colocaram numa sala
estropiada junto a funcionários malucos e
desgovernados, ela começou a organizar
um manual prático da língua portuguesa.
Era muito culta e trabalhadeira. Como tinha
uma noção grande de responsabilidade e
tinha de vir todo dia ao trabalho pelo menos
poucas horas, resolveu organizar alguma
76
coisa curta e acessível a pessoas sem muito
traquejo na língua pátria. Andava pouco
nos corredores e falava o mínimo que
podia.
— Atualmente sou persona non
grata*. Não quero atrapalhar ninguém.
Entretanto as pessoas gostavam de
conversar com ela, e, aos poucos, foram se
aproximando. No começo escondido,
depois devargarzinho se chegavam mais.
Porém ninguém lhe dava a atenção de
antes. Nem de longe.
Ela começou a se dedicar também à
sua Igreja e a obras assistenciais. Elas lhe
tomavam toda a grande energia que tinha
dentro de si.
Quando os dois inimigos se foram
do Mabs, ela imaginou que tudo voltaria ao
normal. Só não pensou que os outros
funcionários tinham medo de sua
concorrência. Por esse motivo a excluíam.
Ela não esperava essa reação e
magoou-se muito. Achava que seus
inimigos eram somente: o Secretário
homossexual e seu namorado.
Era triste ver uma pessoa de tanta
capacidade profissional ser anulada,
entretanto na prática não tinha outro jeito.
A sua grande vantagem era sua
atividade fora do Mabs. Não se deprimiu.
Ao contrário, em sua comunidade, era lhe
dado grande destaque social. Ganhou até
homenagens.
O seu livreto de português também
ganhou um prêmio. Pequeno, simbólico,
sem remuneração nenhuma, porém ganhou.
Apesar de não se ver reconhecida
profissionalmente no Mabs, ela era feliz.
78
Em certas ocasiões, quando havia
interesse, ele promovia jantares ou
festinhas com mulheres ou homens
disponíveis. Sempre bonitos, péssima moral
e ávidos por dinheiro. Os seus convivas
ficavam sob o efeito do álcool, das drogas e
de suas taras, colocando para fora seus
podres. Podres esses que seriam usados no
futuro, se necessário. Para disfarçar e
animar seus convidados, nessas ocasiões o
anfitrião ficava sempre com a mesma
moça. Na hora de consolidar a transa, eles
se retiravam, ele pagava o táxi para ela,
dando-lhe uma boa quantia em dinheiro.
Assim ficava parecendo que era o que não
era.
Em casa ele era excelente marido,
pai maravilhoso e filho exemplar. Como
todos estes, era atencioso, gentil e amável.
Passava inclusive segurança emocional aos
seus. Não gostava de falar de negócios
enquanto estava com a família.
— Os meus são somente para
usufruírem do meu trabalho.
Ele fez empenho de suas filhas
terem carreira completamente diferente
daquele meio. Não as queria misturadas
com aquilo.
Num happy hour conversava com
Ananias. Queria que o seu amigo Benedito
desse um parecer favorável a um cliente
seu.
— Ele não vai fazer isso.
— Você tem de arrumar um
“jeitinho”.
— Se o parecer vai ser dele, desista.
É impossível!
— Que maçada!
— Dr. Joab, nós temos uma
camaradagem, não temos? Posso lhe ser
sincero?
79
— Pode. Gosto da sinceridade até
de quem não é meu amigo.
— Diz uma coisa para mim. Nesse
processo, há agressão ao meio ambiente.
Não lhe dá remorsos? É o futuro da
Humanidade, de seus descendentes, que
está em jogo.
— Se eu soubesse que, se eu não
fizesse, ninguém faria, eu desistiria com
certeza. Mas acontece que se não for eu, é
outro. E ainda pior, pode acreditar.
— Será?
— É sim. Quer ver? Andam
comentando que o Rubião está largando da
esposa. Eu particularmente não acho certo.
Acontece que estão culpando a mulherada
com quem ele está andando.
— Não é assim não?
— Ele está largando a Agar porque
o casamento dele está ruim há muito tempo.
Ela fica a desejar. Não evolui, não se cuida.
— É o jeito dela.
— Ninguém pode, nem tem esse
direito. Jeito de se destruir, de ficar feio e
de ser preguiçoso.
— Nisso eu concordo.
— Mas o principal é que ele se
deslumbrou e já não se importa com a
família nem nada. Porque se não fosse
assim, o certo seria ajudá-la, dar-lhe a mão,
apoiando a Agar, para ajudá-la.
— Concordo. Mudando um pouco o
assunto: o senhor é advogado, não tem
vontade de freqüentar o Fórum, de fazer
audiências?
— Fiz a faculdade, mas não gosto
de Fórum, nem da Justiça dos Tribunais.
— Por quê?
— A Justiça brasileira é para a
classe média. Com poucas exceções. A
classe pobre não consegue acesso a ela. Os
80
ricos, principalmente os poderosos, mudam
a lei quando e para onde querem, ao seu
bel-prazer.
— Será mesmo, Dr. Joab?
— Você sabe que sim. Mas voltando
à mulherada. Falam que Circe é casada, que
Belarmina tem dezoito anos e tem
relacionamento com quem pode ser seu pai.
“Tá” errado, “tá”. Acontece que tem muita
mulher doidinha para transar com ele.
Evidentemente por causa do cargo dele,
para obter vantagens. Só não acontece
porque ele não tem fôlego, ou sei lá por
quê. Essas pessoas podem condenar
alguém? Seriam bem poucas aquelas que
não se sujariam nunca. Depois falam de
assédio sexual. O indivíduo está tão
acostumado a elas se jogarem nele. Vez por
outra quebra a cara. Bem poucas aliás.
— Você é terrível!
— Realista. Falam que a Cremilda
tem vinte e um anos e tem um
relacionamento com um velho que pode ser
seu avô. Falam também que ela é isso e
aquilo. Tudo é verdade, você sabe.
Entretanto ninguém procurou ver o porquê
dela ser e fazer as coisas que faz. Nem
ajudá-la mesmo. “Jogam pedras” por
inveja. Queriam estar onde ela está e ter a
beleza dela. Outra coisa: falam de
corrupção, no bem do Brasil e mal da
minha pessoa. Injustamente...
Os dois riram.
— Acontece que também tem muita
gente — homens e mulheres — se
oferecendo a mim para ser corrupto.
Alegam falta de grana, doença, família, até
amantes sugadoras. São desculpas para seu
erro.
— Será...?
81
— Será não, é a mais pura
realidade. Volto a repetir: há poucas
pessoas que não se sujariam jamais.
— Nisso há exagero!
— Exagero... eu é que sei. Mas sei
que existe. Um exemplo é o casal Benedito
e Antonia. E vamos e venhamos, são uns
chatos.
— Nisso eu não concordo. Eu gosto
deles. São exemplos de vida e de família.
— Eu também vejo qualidades
neles. Mas vamos ao que interessa. Você
tem que arrumar um “jeitinho” dele dar um
parecer a favor do meu cliente. Com
Rubião “peixe pequeno” também leva. Isso
não é comum, porque a maioria dos
grandes, pega dinheiro sozinho e obriga os
subordinados a fazer as patifarias que lhe
interessam. Voltando ao assunto, como é?
— Joab, vou ser sincero. Não tem
jeito nem jeitinho com ele. Se alguém
disser que tem, está mentindo. Suas
opiniões são formadas depois de muito
estudo e meditação. A partir daí, ele é
teimoso e incorruptível. Acho melhor você
encontrar outra forma, que não passe por
ele.
— Ananias, se ele fizer o que se
quer, você leva um bolão de dinheiro.
— Não corro atrás do dinheiro, mas
também não fujo dele. Não dá mesmo.
— Pena!
29
82
— Cacilda, temos de nos portar
conforme nossa linhagem.
Estava sempre elegantíssima e
coberta de jóias. Exageradamente. Viajava
muito também.
Circe fez questão de conhecê-la,
levando uma orquídea.
— Apesar de parecer uma árvore de
natal, ela é uma mulher muito fina.
Daí houve tanta bajulação — ela era
mestre nesse assunto — que a velhinha,
mesmo com sua longa experiência de vida,
se deixou encantar. Até se pôs em
confidências.
— Quando pensei em lhe trazer um
mimo, pensei em uma orquídea, pois é fina,
chique e bonita igual à senhora.
— Bonita, eu...?
— Mesmo na sua idade, a senhora é
maravilhosa. Imagino quando a senhora era
jovem, quantos corações arrebatou...
A pele enrugada e a olheira funda
não se enquadravam muito nessa idéia.
Porém ela gostou da falsidade.
— Isso foi verdade. Mas eu fazia de
conta que não estava percebendo. Na minha
época, mulher cortejada era malfalada.
As duas soltaram risinhos contidos.
Circe também.
— Na minha juventude eu me
preocupava demasiadamente com amor,
amor...
— Isso é bom, ou a senhora não tem
mais essa opinião.
— Amor é sempre muito bom. Eu
tive um namorado, meu primeiro amor. Eu
tinha catorze anos. Amava, amava, e o pior:
sofri, sofri. Passaram-se muitos anos, eu
soube até que o tal fulano não gostava de
trabalhar e se envolveu com coisas
obscuras. Eu já estava até casada com
83
filhos e o assunto para mim deixou de ter
importância. Outro dia escutei uma música
que eu, na minha cabecinha boba de
adolescente, dediquei a ele. Minha cara
amiga, era como dar pérolas aos porcos.
Eu, tanto amor e tanta sensibilidade, e ele,
um brutamontes incapaz de ter sentimentos
elevados. Nem me refiro a hoje, mas alguns
anos mais tarde, eu não conseguiria
namorá-lo. Ele pertencia a um personagem
da minha cabeça de adolescente, que não
tinha nada a ver com a realidade dele nem
daqueles dias.
— A senhora tem cada uma...
— O que fica complicado é o jovem
fantasiar, imaginar coisas fora da realidade.
Não é amar, é ter um sentimento egoísta
sobre uma pessoa. Coisa de alguns
adolescentes. Alguns nunca deixam de sê-
lo durante a vida inteira. Alguns nem saem
da infância.
— A senhora está sempre vestida
com roupas elegantes e chiques. E também
sei que não são baratas.
— São caras mesmo. Meu marido
me deixou muito dinheiro. Tinha muitos
defeitos (cochichou sobre os conjugais),
mas sabia ganhar dinheiro e ter prestígio
político em nossa região. Tinha o dom de
agradar os pobres, para conseguir votos, e
bajular os poderosos, para obter vantagens
pessoais. Quando morreu, além da herança,
deixou para mim uma quantia vultosa no
exterior. Meus pais também me deixaram
muitos bens. Não conte para ninguém,
dinheiro é o que não me falta.
— É difícil ver alguém tão
equilibrado em finanças. A senhora ainda
tem a pensão de seu marido, não é?
— Isso é pouco.
— Acho até que vou ser ardida.
84
Amigo tem que falar o que pensa. Desculpe
a sinceridade, mas a senhora não foi citada
como beneficiária de pensão de marajá?
— Em comparação com o que
tenho, não é nada. Aquilo foi armação
política contra meu filho que vai ser
candidato a governador do nosso Estado.
Então eu doei minha pensão para uma
instituição de caridade.
— Que coisa boa!
— Essa doação foi só por três meses
para um asilo, administrado por um
companheiro nosso de partido.
— Vocês tiveram a certeza de ser de
gente idônea.
— Não ponho minha mão no fogo
por ele. Para nós interessou assim. Só
enquanto a mídia esquecia e os políticos
inventavam outra.
— A senhora é tão autêntica!
— Chego ao final do mês e não
consigo gastar o que possuo. Aí então vejo
um amigo que teve um enfarte. Uns
morrem e outros, ainda pior, ficam “de
fraldas”. Outra amiga teve câncer e sofre
demais. Infelizmente conheço inúmeras
pessoas com essa doença. E ainda tem o
pior que pode acontecer a um velho: ficar
ruim da cabeça. Antes chamavam de
caduco.
— Imagino como se sente.
— Então me ponho a gastar com
roupas caras. Minhas jóias, eu as uso o
máximo que posso. Algumas estão na
família há séculos. Tem muitas que estão
somente há décadas e nós falamos há
séculos.
E batia com os ombros em sinal de
desdém.
— Pode reparar que toda velha
gosta de exagerar em jóias. Ela sabe que
85
logo, logo vem uma doença e ela não vai
mais nem poder usar. Outro dia falava a
uma neta: põe seus anéis de brilhantes! Ela
dizia que podia perder. Se perder, perdeu,
pelo menos você usou.
— A senhora gosta de viajar muito.
Outro dia soube que a senhora fez um
roteiro várias vezes.
— Você sabe da minha vida...Viajo
mesmo. E muito. Às vezes nem usufruo
como devia.
Circe teve a impressão de que
aquela anciã queria gastar o máximo que
podia, pois seus dias estavam acabando.
Quando ela estava há doze dias na
capital do País, houve uma festa
beneficente para crianças no Mabs. Na
intenção de agradá-la, o genro convidou
também a sogra. A mulher costumava
mesmo ir.
Ás três horas da tarde começou a
festa.
Muito balão, muitos salgadinhos,
muitos docinhos, refrigerantes à vontade.
Tinha até um funcionário vestido de
palhaço. E também muita criança.
Logo em seguida chegaram as duas
grandes damas.
Cremilda tinha ido almoçar num
restaurante com algumas pessoas. Bebeu
demais. Além da conta. Dizem até que foi
levada por um grupo político contrário ao
Poderoso. Às cinco horas chegou bêbada
ou drogada.
Ainda procurava se controlar,
quando se deparou com as duas senhoras.
Cacilda se colocou numa altivez enorme
para maquiar seu mal-estar. A mãe,
acostumada nesses eventos a ficar bem
acima dos assistidos, causou-lhe uma
sensação muito desconfortante.
86
A cafona bela moça se sentiu um
lixo perto delas. Imaginava-as seguras,
dignas e conscientes de sua linhagem.
Empafiadas e aristocráticas.
De propósito ou por descuido,
alguém lhe aumentou o pileque.
Ela começou a dançar, de acordo
com o estado de sua embriaguez.
Desajeitada e ridícula.
Uma funcionária então resolveu
chegar a ela.
— Toma jeito, mulher, não vê que
estão presentes D. Cacilda, esposa do
Ministro, e a mãe dela, que é condessa.
Aí ela se descontrolou e disse um
monte de bobagens. Inclusive que a mulher
do Ministro de verdade era ela e que com a
esposa — entortava a boca ridicularizando
a palavra esposa — ele não fazia sexo há
muito tempo. E chegou perto dele,
querendo se sentar ao lado.
Foi um horror!
Circe a pegou pelo braço, levando-a
dali.
Cacilda infelizmente já tinha tido
outras situações semelhantes em sua vida.
E não foram poucas. Entretanto nenhuma
em frente da mãe.
Ela saiu do evento como esposa
traída pela primeira vez. A mãe a lhe
envenenar os ouvidos.
Não deu outra: foi exigida a
demissão de Cremilda.
O Poderoso não podia ir contra a
família dela. Principalmente contra o
poderio deles. Foi obrigado pelas
circunstâncias a demiti-la.
Pediu para Rubião providenciar
tudo, inclusive a conversa com ela.
A jovem a ser demitida estava
acostumada a muitas humilhações. Porém
87
desta vez, achava que tinha evoluído.
Imaginava-se funcionária pública, badalada
na Corte e freqüentando festas chiques e
finas. Até embaixadas. Imaginava-se a
Cinderela, cuja história de criança nunca
leu. Não se imaginava mais voltando
àqueles lugares antigos.
Imaginou Rubião um louco.
— Quem demitiria assim uma
funcionária graduada e protegida como eu.
Pensando assim, encaminhou-se ao
Gabinete. Antes todos ficavam com
paparicos com ela. Agora brecavam-lhe a
passagem.
Conforme ela percebia que não
estava podendo mudar nada e a desilusão
aumentava, mais a raiva e o desequilíbrio
se agigantavam nela.
Quando chegou ao seu limite,
passou a se encolerizar. Iniciou fazendo
ameaças. Não percebia mais nada em seu
redor. Queria alcançar uma situação não
mais possível e não se conformava.
Achava que ninguém a estava
escutando. Foi quando ela começou a gritar
nos corredores.
Das ameaças foi para as revelações
de alcova. Depois partiu para a bandalheira.
Gritava que, depois que ele se
tornou Poderoso, tinha ficado impotente, só
ficando nas práticas de libidinagem.
Entretanto falava com palavras de baixo
calão, especificando tudo das transgressões
sexuais.
Ajuntou-se gente de todo lado. Só
não foi pior, por não ter nenhum jornalista
presente.
Circe achou tudo aquilo uma
baixaria e condenava a outra com ares de
superioridade. Chegou ao ponto de se
88
aproximar de Antonia e clamar-lhe os bons
costumes.
— Bons costumes?
— É, bons costumes. Outra coisa:
coitado do Dr. Gumercindo, não merecia
este escândalo.
— Merecia sim. Ele trouxe uma
mulher sem capacidade profissional. Pegou
a tal em ambientes de péssima moral.
Colocou a fulana no meio de trabalhadores
honestos, graduando-a com funções que
deveriam estar na mão de pessoas que
fizessem jus à quantia paga. Enquanto ela
ganhava, outros eram obrigados a realizar
tarefas sem ganhar o numerário devido.
Sustentou sua amante com os cofres do
dinheiro público. Queria se meter com a
lama, sem se enlamear.
— Que horror, Antonia!
— Ele mereceu todo este forrobodó!
Cremilda ainda se pôs a telefonar e
a procurar aquelas pessoas que sua fantasia
julgava amigas. Porém foram tantas
desilusões e situações desagradáveis, que se
viu obrigada a voltar a suas origens.
Mesmo sem querer.
Nunca mais foi a mesma. Imaginara
ter ascendido a uma dignidade e não era
verdade. O sexo a levara a uma situação
falsa, sem consistência. Se não fosse dessa
forma, seria de outra.
O caso foi abafado. Aos poucos as
línguas dos faladores foram se aquietando e
o assunto esquecido.
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89
— Soube que Dracena teve um
acidente em frente a “A Coisa” quando
vinha de uma chácara no final de semana?
“A Coisa” era uma escultura muito
grande de um artista francês renomado, e
considerado internacionalmente como um
gênio. No início de Brasília, ela foi
colocada no início do quadrilátero do
Distrito Federal na beira de uma estrada
rodoviária que vem do Sul. Era uma obra
moderna tão vanguardista, que o povo não
entendia o que era. Começou então a
chamá-la de “A Coisa”. ‘Aonde vamos nos
encontrar?’, ‘em frente a “A Coisa”. ‘Tá
feito’. E assim ficou.
— Aconteceu algo grave?
— Com ela e os filhos não, mas o
carro sofreu avarias enormes.
— Ela tem seguro?
— Deve ter. Ela é muito previdente.
— Tem uma coisa. Agora é que ela
vai abusar. Vai ficar meses trabalhando
menos ainda.
A outra engoliu um risinho maroto,
pois gostava muito da colega.
— Uma coisa é certa. Ela tem
grande capacidade.
— Por isso eu a agüento. E também
porque gosto dela. Tem um humor ímpar.
Ao sair do gabinete encontrou
Dracena. Trocaram informações, lamentos
e detalhes do acidente.
— Entra lá que a Aurélia está lhe
esperando.
— Eu não. Depois...
— Você é folgada...
— Não, não sou não.
— Você deve convir que abusa.
Não chega na hora e sai sempre antes. No
meio do expediente inventa aula de inglês,
informática, psicóloga, manicure, etc., etc.
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— Sei da minha capacidade.
Quando estoura um escândalo, Ministro
querendo tudo na hora ou quando o caos se
instala, quem é que chamam? “Euzinha”.
Na moita dou parecer verbal, e ela passa
para os grandes como se fosse dela.
Quantas vezes rascunhei parecer e ela levou
o próprio rascunho – ‘senhor ministro, nem
tive tempo de terminar, sua secretária
poderia fazer o favor de acabá-lo, sem
esquecer meu nome para assinar’ – e assim
fazer sua boa fama.
— Você não se importa?
— Eu não. Açucena se descabela,
entra em estresse, em depressão, quando a
outra lhe toma o trabalho. Eu não, mas tiro
vantagem.
— Verdade que usurpa o trabalho
dela é uma vadiazinha, e o seu é a Aurélia,
mulher de outra estirpe.
— Concordo. Ela inclusive tem bom
senso para saber até onde pode ir. É muito
inteligente. Eu a admiro. Por isso, e por
outras coisas que nós duas sabemos, está no
cargo há tanto tempo. Você sabe que gosto
muito de ler.
— Você é muito culta. Uma das
pessoas com mais conhecimento que
conheço.
— Não exagere, você é minha
amiga e vê qualidades que não tenho.
Voltando ao assunto, modestamente você
sabe que eu entendo de literatura, música,
pintura, história antiga, e dou minhas
opiniões. Ela escuta e presta atenção. Não é
que quando estamos em algum lugar, ela
com a maior cara-de-pau repete minhas
opiniões — aliás ao pé da letra — como se
fossem dela.
Rindo, a outra disse:
— É porque ela admira você, amiga.
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— Talvez, mas ninguém a vê me
elogiando. Nunca.
— Vou lhe fazer uma pergunta. Se
quiser responder, responda; se não quiser,
não responda. Com toda a sua bagagem,
por que você não se empenha em fazer uma
carreira gloriosa? Você gasta seu tempo em
cursos, aulas, etc..
— Eu não acredito que possa. No
começo eu me esforçava, batalhava. Tudo
em vão. Atualmente não ponho fé. Há
muitos com capacidade que ocupam altos
cargos. Mas tem que ter uma paciência,
além de sorte e oportunidade. E eu acho
que não tenho paciência.
— Quem não tem paciência, não vai
pro céu. Acho é que você gosta de folga,
amiga.
As duas riram.
— Há ainda outro detalhe: uma
pessoa para assumir um cargo, não tem que
querer somente as glórias, o poder e o
dinheiro que ele lhe traz, tem que assumir o
ônus.
— Ônus?
— É. Tem de fazer o que os
poderosos querem ou dar mil voltas para
contornar a situação. Tem de agüentar os
superiores e também os subordinados, com
seus problemas, maluquices e manias. Tem
que estar exposto a tudo e a todos, algumas
vezes até à mídia. Em algumas funções tem
que trabalhar muito, ou estar disponível
durante longos períodos, inclusive
sacrificando o lazer. E por aí afora...
— De fato aqueles que sobem ao
poder só querem o bem-bom, não querem o
ônus.
— O pior é que não estavam
preparados para isso.
Dracena ficou viúva aos 35 anos
92
devido a uma doença fulminante que o
marido teve. Esse, sim, queria subir a
qualquer preço. Ela terminou de criar os
filhos, os quais eram seu objetivo maior na
vida. Divertia-se muito. Gostava de fazer
cursos e lia demasiadamente.
— Você soube que a Cremilda caiu?
— Coitada, estava tão deslumbrada.
Não conhece o poder, a Corte. Lembra que
eu tive vontade de avisá-la e você me
desencorajou?
— E fiz muito bem.
— Acho que sim. Ela não
entenderia, mesmo eu lhe explicando. Eu
tenho dó dela.
— Dó? Ela teve de pagar o preço da
inexperiência..
Minervina alterou a voz, batendo no
peito fortemente com as duas mãos, e
acrescentou:
— Como nóóós pagamos!
— Tem razão. Todos pagam o preço
da inexperiência.
Foi quando a Secretária saiu do
gabinete e deu com ela.
— Soube de seu acidente.
A conversa rolou algumas frases.
Poucas, pois Aurélia era muito ocupada.
— Infelizmente eu vou precisar das
tardes para tratar de assuntos meus...
— Lógico, minha querida. O
importante para mim é você resolver tudo
como deve ser.
— E ainda vai haver dias inteiros
que não vou poder vir.
— Tudo bem, tudo bem.
Ao entrar franziu a testa pelo abuso,
porém não passou recibo.
Dracena calmamente terminou seu
expediente. Em seu horário especial criado
por ela.
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— Ou faz tudo que os poderosos
querem para o benefício de si próprio...
— Sim. Todos o tratam bem, seus
pedidos são aceitos e até riem de suas
piadas.
— Sei. Quando você não está nas
graças dos maiorais, tem muita gente que
passa por você e vira a cara. A Quirina é
um exemplo. Ela é um termômetro do grau
de importância que você está tendo no
momento.
— Seus amigos, o casal Corinto e
Circe, também.
— Com muita tristeza tenho de lhe
dar razão. Mas tem muita gente aqui
diferente desse estilo de vida. Tem um
montão de pessoas que são suas amigas
independentemente de prestígio.
— Só tem uma coisa, se alguém cai
em desgraça, todos lhe viram as costas.
— Você radicaliza. Não acredito
que todos... Há sempre alguma alma
desprendida.
— Talvez você e a Antonia. Mesmo
assim não tenho certeza...
— Quero ter amizade com pessoas
que convivem conosco por nós mesmos,
não por cargo, posição, dinheiro ou
qualquer outro interesse. Riem das minhas
piadas se forem engraçadas e houver clima
descontraído. Nada de falsidade, meu
amigo...
— Continuo a lhe dizer: o homem
comum quer poder, e o que tem, quer mais,
mais e mais...
— Poder demais cega, tira da pessoa
a realidade dos fatos. Difícil, mas difícil
mesmo, será o antigo poderoso voltar a
enxergar as coisas como elas realmente são.
— O mundo sempre foi assim. Nos
escritos da Antigüidade há alusão a isso.
101
— Dona Orquídea foi uma
funcionária que entrou por concurso
público, galgou todas as funções somente
pela capacidade. E ela tinha muita. Nunca
fez concessões. Quando alguém lhe pedia
alguma coisa marota, ela despistava, dava
uma risadinha amena e dizia que não tinha
“costas largas” para agüentar a carga.
Quando havia alguma decisão injusta, ela
calmamente dava sua opinião sem ficar
ofendendo quem quer que seja. Na vida
particular, era tranqüila. Foi casada e teve
seis filhos. Eles estão formados,
trabalhando em cargos de nível superior e
também bem casados. Hoje viúva, ela tem
uma família que qualquer um gostaria de
ter. Está sempre alegre e todos gostam
demais de conversar com ela, pois tem uma
grande sabedoria. Ao se aposentar, perdeu
as funções, o tal poder, virando-se para a
religião e obras assistenciais. Visita pessoas
doentes, que infelizmente não têm com
quem conversar. Sempre que posso, estou
com ela. Continua alegre e feliz. Quando a
vejo, tem sempre um sorriso nos lábios e
uma harmonia que dá gosto ver.
— Ela continua gordinha?
— Continua. Mesmo assim tem
ótima saúde. Ela não é muito gorda.
— Sabe, a Antonia diz que ela ama
muito e por isso é muito amada. Daí a
saúde e disposição.
— Dona Orquídea, grande figura!
— Ela tem sempre tanta gente para
conversar e tantos convites — além das
viagens com os filhos disputando-a — que
não é fácil conseguir incluí-la em alguma
coisa. Algum evento como se diz hoje.
Continuam num ambiente alegre.
— É bom contar piadas e as pessoas
rirem, rirem...
102
— Quando se está por baixo não se
deve nem contar piadas. Em ambiente de
trabalho, não estou falando com amigos.
— Concordo. Ainda vão inventar
uma máquina para fazer rir e concordar
com o que queremos.
— Aí o solitário pira de vez. Simão,
diga uma coisa. Será que vale a pena
vender a alma, só para fazer sexo com um
corpo jovem interesseiro, dinheiro para
comprar coisas que não são importantes
verdadeiramente para nós – pois são
supérfluas – ou para rirem de nossas piadas
mesmo sem graça e concordarem
falsamente com tudo que falamos? Ou
devemos trabalhar honestamente para o
bem comum e para o nosso país?
— Falando assim, de fato, fica
ridículo, mas, como diz o Ananias, é bom
transar com uma fulana toda gostosa, fazer
viagens de sonhos, comprar tudo que o
consumismo nos oferece e escutar que nós
somos o máximo. Ah! Isso é bom demais!
— Olha, meu amigo, pensando
assim, a pessoa fica a um passo deles. Isso
é perigoso!
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— Pra ele esse dinheiro a mais da
função é importante. Mas ele está
mostrando que é amigo.
Simão, que se mantinha calado, não
se conteve:
— Não seja inocente, Benedito! Ele
não vai falar nada a seu favor, e se falar,
será contra. Parece que não conhece as
pessoas do mundo que vive.
— Será?
— Tenho certeza. Olha, ele
esqueceu esta pasta. Vou atrás dele, só pra
ver o que acontece.
Dito e feito, ele foi atrás do outro.
Com a desculpa da pasta, adentrou no
gabinete do Secretário.
— O Benedito foi à minha sala. Está
totalmente desequilibrado. Por isso deu um
parecer daqueles. Eu logo disse pra ele que
não se deve contrariar você, que é uma
pessoa tão capacitada. Eu lhe dei todos os
conselhos e falei: respeita o Rubião.
— E será que ele ouve você?
— Eu vou continuar, mas não
acredito. Tome outro rumo. É muito turrão!
Estava tão entretido que não se
preocupou com a presença do outro lhe
entregando a tal pasta.
Simão voltou e contou ao amigo o
principal, sem se ater a detalhes sórdidos.
— A porta de gabinete – qualquer
uma – é mágica. Quando se reúnem em
grupos, falam mal do chefe, do Poderoso.
Quando ultrapassam a porta do gabinete,
passam instantaneamente à bajulação.
— Todos?
— Poucos não o fazem. Mesmo
assim esses poucos se calam somente. Senti
isso quando fiz lá aquele trabalho durante
meses.
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— É triste. Por isso que os
poderosos ficam com uma imagem
distorcida da realidade.
— Passam a ficar tão viciados nessa
fantasia, que já não querem, e nem
admitem, alguém que lhes seja sincero.
Aconselhou a nem esperar o
regresso do pretenso amigo. Benedito
entendeu e se foi. Quando o outro voltou,
parecia que nem lembrava mais da história.
Achou muito bom não ter que se deparar
com o que não queria enfrentar.
Simão não lhe disse uma palavra.
Achava que tinha se envolvido demais.
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— Isso é mau! Em nossas novas
funções vamos conseguir jogadas que vão
restabelecer nossa vida financeira.
— Há outra coisa ruim: ele agiu
contra o Rubião, Dr. Joab e contra outros
que não podia.
— Os pobres, os “pés-rapados” não
importam. Apesar de serem os mais
afetados, pois puseram todas as suas
economias nisso.
— Repetindo você: isso é mau! Mas
não é tanto. O Dr. Joab colocou uma
pequena parte de sua enorme fortuna e o
Rubião arruma alguma maracutaia e se
restabelece.
— Sorte que nossas nomeações já
saíram.
— Não fale assim. Essa gente é
capaz de tudo. Inclusive de anularem o que
já está certo.
— Vamos fazer uma tragédia. Dizer
que você, Corinto, passou mal de saúde.
— Eu não. Preciso ter boa saúde
para subir. Bota sua mãe.
— Boa idéia. E tem outra: o
apartamento está lá. Na planta, mas está lá.
Aquela jogada que conseguimos, quitou
uma parte, podemos negociá-la.
Apesar de muita gente esperar que
eles se desesperassem, continuaram a se
preparar para a posse.
A parte mais trágica do estelionato
do Aquírio ficou com os pequenos do
Mabs. Confiando no talento dos maiorais,
empregaram todo o seu dinheiro,
imaginando lucrar muito. Perderam tudo,
economias que foram tiradas da boca, do
corpo. E ainda muitos se endividaram.
— Pagaram caro demais por não
quererem ver a realidade e terem a
ganância de dinheiro fácil.
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— Ela não tem família, tenho de
cuidar dela.
— Ela não tem uma irmã paterna,
que mora na cidade em que ela nasceu?
— Essa irmã morreu também. Era
filha de um caso extraconjugal do pai.
Deixou uma sobrinha. Sobrinha torta.
Pouco se falam.
— Tem também uma empregada..
— Coitada da Bebé, é meio
abobada.
Pôncio começou a cuidar da
enferma, que tinha um patrimônio muito
grande. Era muito abastada. Ninguém da
família aparecia e ele se desdobrando.
Passava até final de semana. A esposa
apoiando:
— Dra. Aurélia só pode deixar tudo
para ele, não tem mais ninguém.
A moral ficava de fora. A
possibilidade do dinheiro fazia esquecer
tudo.
Num final de ano, ela piorou muito.
Os dois renunciaram ao Natal e, às vésperas
do Reveillon, ela morreu. Cancelaram tudo
e prepararam o enterro. Chorosos. Ele então
parecia o viúvo...
A saída fúnebre ao cemitério estava
marcada para as dez horas da manhã,
quando às oito chegou a sobrinha vinda de
uma viagem cansativa. Bebé se posicionou
ao seu lado. A moça acompanhada do
marido estava discreta, entretanto era dona
da situação.
Pôncio estranhou. Fazendo das
tripas coração, foi até lá ironizando:
— Bom ter alguém da família.
Como ficou sabendo?
— Bebé me avisou.
— Bebé não anda nem de elevador,
como pôde dar um interurbano ao telefone.
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A empregada toda envergonhada e
acabrunhada:
— Madrinha dizia que esta sobrinha
era muito parecida com o avó, pai de
madrinha. O filho dela então era a cara do
bisavô.
— Minha tia a instruiu. Era seu
desejo que eu estivesse no seu enterro, e
tomasse conta de sua casa. Depois de seu
patrimônio.
Ele não se conteve. Esbravejou. Sua
mulher furiosa junto.
— Vou entrar na justiça. É um
absurdo!
O certo é que a sobrinha tomou
posse da casa e levou junto Bebé. Ficou
com tudo da falecida.
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SEGUNDA PARTE
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A tia não perdia oportunidade de
retrucar:
— A revolta deles é culpa
exclusivamente do pai. Eles são as maiores
vítimas. Coitados! Imagine se o avô, meu
irmão, os visse passando esse vexame.
De fato eles eram as grandes
vítimas, pois não tinham contribuído em
nada para aquilo tudo.
A esposa, apesar de toda situação
constrangedora, sentia um pouquinho de
gosto, ao vê-lo em situação tão vergonhosa.
— Ele não soube retribuir todos os
sentimentos lindos e inocentes de sua
juventude, humilhando-a depois no que
pôde.
Em sentimentos, o fraco se vinga
sempre.
Pela posição de sua família, logo,
logo foi sendo convidada para tudo
novamente. E ninguém lhe falava do
marido.
— E as bonequinhas de luxo de que
tanto gostava?
— De luxo, não deve ter mais, mas
umas prostitutas baratas, isso ele não deve
dispensar. É a tara.
— Concordo!
Assim seguiam as coisas naquela
casa.
Um dia ele teve um problema do
coração e ficou limitado quase a uma cama,
no máximo a um quarto. Foi-lhe dado todo
o conforto.
— Não seja burra de botar mulher
para cuidar dele, porque ele lhe põe os
cornos dentro de sua casa.
O motivo não se sabe, porém dois
enfermeiros foram contratados.
De vez em quando, raramente, tinha
relacionamento sexual adúltero — não
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conseguia ficar sem — com Brígida. Ela,
apesar de gordinha, desengonçada e de
cabelo estranho, tinha um furor incrível.
Sua patroa nunca desconfiou, nem
ninguém. Esse era o motivo que deixava
tudo mais excitante. Na calada e no
inacreditável.
No começo de uma manhã Firmina
morreu. Teve um lado bom e outro ruim:
ele ficou sem a odiosa criatura, porém ficou
sem sua serviçal.
Nessa altura das circunstâncias,
Cacilda já estava dona da situação e
calmamente seguiu em frente. Para sua boa
surpresa, além de herdar da velha tia o que
seria seu, ficou com um pedaço bem maior,
por ter cuidado dela no fim da vida.
A família decidiu lutar para tirar os
bens dele da disponibilidade.
— Aquela merreca não vale a pena
não. Mas é o nosso nome, e principalmente
o nome dos filhos, que são da nossa
família, é que conta.
Conseguiram. Foi uma das poucas
alegrias dele. Chamou os filhos e disse:
— Vocês vão poder herdar o que é
meu.
Os filhos olharam sem entusiasmo,
ficaram parados alguns momentos e depois
saíram. Era tão pouco, perto do que a mãe
ia lhes deixar. Sem contar a vergonha que
ele lhes impingiu. Apesar da indiferença,
houve respeito, pois não lhe jogaram na
cara seus erros.
Ele durou ainda muito. Quatro anos
e meio. Num final de tarde morreu.
Cacilda viveu muito, muito mesmo.
Chegou quase aos cem anos. Lúcida e
capaz de andar com suas próprias pernas.
Tinha também assessoria e mordomia que a
ajudavam e a cercavam.
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indiciada. Também se locupletou da
bandalheira.
Ao voltar à sua cidade, entrou em
depressão e começou a se drogar muito.
Teve de sair dos lugares antes freqüentados
e foi morar na periferia.
Quando contava histórias de
Brasília, ninguém acreditava.
Não tinha o apoio da família. Nunca
teve. Belarmina parecia diferente. Porém
não era muito. Tinha de se submeter àquilo
que lhe era programado. Nenhuma nunca
tivera amor.
Suas histórias no cárcere foram
parecidas. Foram usadas sexualmente,
entretanto tiraram o melhor proveito que
puderam.
Cremilda pegou pena bem maior do
que merecia. Não teve bom advogado nem
boa defesa. As vantagens, compras e
viagens que teve, ela as havia pago na
cama.
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contrariedades e estresse, reconhecia o
quanto se beneficiara.
Astolfo continuou até onde pôde.
Suas frases continuaram a ser no seu
estilo:
“Sempre fui melhor que Rubião.
Aliás não existe secretário que se
iguale a mim. Aqueles que me
passaram foi por corrupção, sem-
vergonhice ou coisa parecida.
Não faço nenhum concurso porque
minha capacidade está acima.
Meu lugar deveria ter sido de
ministro. E não daqui, mas daquele
importante. Para ser mais claro,
meu lugar mesmo é de Presidente.
Presidente da República.”
No meio do caminho se desentendeu
com alguém poderoso. Quando percebeu,
estava no ostracismo. Como não houve
jeito de remediar a situação, foi demitido.
Voltou e estabeleceu-se na sua profissão,
sem muito talento, muito menos brilho.
Dracena, depois dos filhos
crescidos, fez um concurso difícil, o mesmo
que o Benedito fez. Disseram que houve
cambalacho, entretanto os dois
conseguiram passar por competência. Tinha
ela tanta capacidade, que conseguiu esse
feito apesar de não ser novinha,
ultrapassando o preconceito de idade.
— Será que lá ela vai trabalhar
muito?
— Não sei. Se não houver outro
jeito ou ela se entusiasmar com o trabalho...
— Será?
Minervina subiu muito no Mabs.
Seus caminhos não eram totalmente retos,
entretanto nunca foram classificados como
infrações penais. Chegou a participar de
uma Comissão importantíssima, que lhe
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proporcionava várias viagens, inclusive
internacionais. Tinha também muito
prestígio com todos. Tanto os técnicos,
como os políticos, como os lobistas. Ela,
que desde criança nunca teve espaço em
sua casa, e talvez nunca terá.
Simão foi o que teve a melhor
carreira. Maneirinho e obscuro chegou a ser
Secretário Executivo do Mabs, e a
Ministro, por seis meses, enquanto o
Poderoso da época se afastou para
concorrer a cargo eleitoral. A mídia só
falou em seu nome no dia do afastamento
do outro. Depois, ao citarem algum feito de
sua área, citavam o ministério como um
todo, sem o nome dele. Quando mudou o
governo, destituíram-no do cargo. Deram-
lhe outro. Nem um ano se passou e ele
estava de volta. Nunca faltava, ia trabalhar
até em dia enforcado entre feriado.
Conhecia todo o mecanismo administrativo
necessário, principalmente para informar a
quem vem de fora e não conhece a máquina
do governo. Nunca teve poder e só assinava
aquilo que não tinha importância. Tinha
também o talento de se livrar daquilo que
não era correto.
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FIM
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