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O

ESTRANGEIRO
ALBERT CAMUS
SUMÁRIO
Parte Um
I
II
III
IV
V
VI

Parte Dois
I
II
III
IV
V
PARTE UM
I
Mamãe morreu hoje. Ou, talvez, ontem; Eu não tenho certeza. O telegrama
do Lar dizia: SUA MÃE FALECEU. FUNERAL AMANHÃ. SINCEROS PÊSAMES. O que deixa
a questão mais duvidosa; poderia ter sido ontem.
O Lar para Pessoas Idosas fica em Marengo, uns oitenta quilômetros de
Argel. Com o ônibus das duas eu conseguirei chegar lá bem antes do anoitecer.
Então eu poderei passar a noite lá, mantendo a usual vigília sobre o corpo,
retornando de volta para casa na tarde de amanhã. Eu acertei com meu patrão
minha ausência por dois dias; obviamente, sobre as circunstâncias, ele não
poderia recusar. Ainda assim, eu tive uma impressão de que ele parecia irritado,
eu disse, sem perguntar: “Desculpe, senhor, mas não é minha culpa, você sabe.”
Depois disso me bateu a ideia de que eu não deveria ter dito isso. Eu não
tinha razão para me desculpar; era ele quem deveria expressar sua simpatia
apesar de tudo. Provavelmente ele peça desculpas depois de amanhã, quando me
ver de preto. Agora, é como se Mamãe não estivesse realmente morta. O funeral
irá me convencer melhor, colocando um selo oficial nisso, assim por dizer.
Eu peguei o ônibus das duas horas. Era uma tarde sufocante e quente. Eu
lanchei, como de costume, no restaurante do Céleste. Todos foram muito gentis e
Céleste me disse, “Não existe ninguém como uma mãe.” Quando eu deixei o
restaurante eles foram comigo até a porta. Foi uma pequena corrida, saindo, e
por um último momento eu tive que passar no apartamento de Emmanuel para
pegar emprestado sua gravata preta e a faixa de luto. Ele perdeu seu tio a alguns
meses atrás.
Eu tive que me apressar para pegar o ônibus. Eu suponho que foi a minha
pressa assim, que junto com o desânimo da estrada, o cheiro de gasolina, e os
solavancos, fizeram me sentir com sono. De qualquer forma, dormi a maior parte
do caminho. Quando acordei eu estava escorado em um soldado; ele riu e me
perguntou se eu tinha vindo de uma longa viagem, apenas assenti para encurtar o
diálogo. Não estava com humor para falar.
O Lar fica a cerca de um quilômetro e meio da vila. Eu cheguei até lá a pé.
Pedi para ser permitido a ver Mamãe de uma vez, mas o porteiro me disse que eu
precisaria ver o diretor primeiro. Ele estava ocupado, então eu tive que esperar
mais um pouco. O porteiro ficou conversando comigo enquanto eu esperava;
depois ele me levou até o escritório. O diretor era um homem bem pequeno, com
cabelos grisalhos e uma legião de rosetas de honra em sua coleção. Ele me deu
uma longa olhada com seus olhos azuis aquosos. Então apertamos nossas mãos e
ele me abraçou por tanto tempo que comecei a me sentir embaraçado. Logo após
ele consultou um registro em sua mesa e disse: “Madame Meursault entrou no
Lar três anos atrás. Ela não tinha meios próprios e dependia inteiramente de
você.”
Eu senti que ele estivesse me culpando, e comecei a explicar. Mas ele me
interrompeu de imediato.
“Não há por que você se desculpar, meu filho. Eu olhei o registro e
obviamente você não estava em posição de cuidar dela. Ela precisava de alguém
para estar com ela todo o tempo, apesar de tudo homens jovens em trabalhos
como o seu não são muito bem pagos. De toda forma, ela estava muito mais feliz
no Lar.”
Eu disse, “Sim, senhor; tenho certeza disso.”
Então ele acrescentou: “Ela tinha bons amigos aqui, você sabe, velhos
camaradas como ela e sempre nos damos melhor com pessoas de nossa própria
geração. Você é muito novo; não seria uma das melhores companhias para ela.”
Foi isso. Quando nós vivíamos juntos, Mamãe sempre estava me
observando, mas nós dificilmente conversavamos. Durante suas poucas
primeiras semanas no Lar ela costumava chorar muito. Mas isso era apenas por
que ela não tinha se acostumado. Depois de um ou dois meses ela choraria se
fosse dito que ela devesse deixar o Lar. Pois isso, também, teria sido um baque.
Foi por isso que, durante o último ano, eu raramente iria visitá la. Também isso
significaria perder meu domingo – para não mencionar o trabalho de ir até o
ponto de ônibus, comprar minha passagem e passar duas horas na estrada a cada
ida.
O diretor continuou a falar, mas eu não prestei muita atenção. Finalmente
ele disse:
“Agora, eu suponho que você queira ver sua mãe?”
Eu me levantei sem responder e ele me levou até a porta. Quando
estávamos descendo as escadas ele explicou:
“Eu tive que mover o corpo para nosso pequeno mortuário – para não
entristecer os outros mais velhos, você entende. Cada vez que um morre aqui,
eles ficam em um estado muito nervoso por dois ou três dias. O que significa,
claro, mais trabalho e preocupação para nossa equipe.”
Nós cruzamos um pátio onde havia um grande número de homens velhos,
conversando entre si em pequenos grupos. Eles ficaram em silêncio quando
chegamos a eles. Então, às nossas costas, a tagarelice começou novamente. Suas
vozes me lembraram de periquitos em uma gaiola, o som não era tão estridente.
O diretor parou do lado de fora da entrada de um prédio pequeno e baixo.
“Então aqui eu te deixo, Monsieur Meursault. Se você precisar de mim para
qualquer coisa, me achará em meu escritório. Nos propomos a ter o funeral
amanhã de manhã. Isso vai permitir que você passe a noite ao lado do caixão de
sua mãe, como, sem dúvida, você desejaria fazer. Apenas mais uma coisa; eu
soube pelos amigos de sua mãe que ela desejou ser enterrada com os ritos da
Igreja. Eu fiz os preparativos; mas gostaria de fazê-lo saber.”
Eu agradeci a ele. Até onde eu sabia, minha mãe, apesar de não ser ateísta
declarada, nunca dera um pensamento para religião em sua vida.
Eu entrei no mortuário. Era uma sala clara, impecavelmente limpa, com
paredes brancas e uma grande clarabóia. A mobília consistia em algumas
cadeiras e cavaletes. Duas das escadas estavam abertas no centro da sala e o
caixão repousava sobre ela. A tampa estava no lugar, mas tinham sido dadas
apenas algumas voltas nos parafusos e suas cabeças de níquel sobravam sobre a
madeira de nogueira escura. Uma mulher árabe – a enfermeira, eu supus – estava
sentada ao lado do esquife; ela estava vestindo uma blusa azul e tinha um
cachecol meio vistoso enrolado em seus cabelos.
Só então o porteiro veio atrás de mim. Ele evidentemente correu, pois ele
estava um pouco sem fôlego.
“Nós colocamos a tampa, mas me pediram para removê-la quando você
chegasse, para que você pudesse vê-la.”
Enquanto ele estava indo até o caixão eu disse a ele para não se dar o
trabalho.
“Hã? O que é?” ele exclamou. “Você não quer que eu abra o caixão?”
“Não,” eu disse.
Então ele colocou a chave de fenda em seu bolso e olhou ficou olhando
para mim. Eu então percebi que eu não deveria ter dito, “Não,” pois isso me
deixou um tanto envergonhado. Depois de ficar me olhando por uns momentos
ele perguntou:
“Por que não?” Mas ele não soou repreensivo; ele simplesmente queria
saber o motivo.
“Bem, realmente eu não poderia dizer,” Eu respondi.
Ele começou a girar seu bigode branco; então, sem olhar para mim, disse
gentilmente:
"Compreendo."
Ele era um homem de aparência agradável, com olhos azuis e bochechas
coradas. Ele arrastou uma cadeira para mim perto do caixão, e se sentou logo
atrás. A enfermeira se levantou e foi até a porta. Enquanto ela passava, o porteiro
sussurrou no meu ouvido:

"Ela tem um tumor, coitadinha."
Eu olhei para ela com mais cuidado e notei que ela tinha uma bandagem em
volta da cabeça, logo abaixo dos olhos dela. Ficava completamente plana na
ponte do nariz e não podia se ver quase nada de seu rosto exceto aquela faixa de
brancura.
Assim que ela se foi, o porteiro se levantou.
"Agora vou deixar você sozinho."
Eu não sei se fiz algum gesto, mas ao invés de ir ele ficou parado atrás da
minha cadeira. A sensação de alguém atrás de mim me deixou desconfortável. O
sol estava se pondo e toda sala foi inundada com uma prazerosa luz suave.
Duas vespas estavam zunindo acima de minha cabeça, perto da clarabóia.
Eu estava tão sonolento que eu dificilmente podia deixar meus olhos abertos.
Sem olhar em volta, eu perguntei ao porteiro quanto tempo ele estava no Lar.
“Cinco anos.” Ele respondeu tão rapidamente que parecia já estar esperando pela
pergunta.
Isso fez com que ele ficasse bem falante. Se alguém tivesse dito a dez anos
atrás que ele terminaria seus dias como porteiro em uma casa de Marengo, ele
não acreditaria. Ele tinha sessenta e quatro anos, ele disse e ficou exaltando
Paris.
Enquanto ele falava, eu o interrompi. “Ah, você não é daqui?”
Eu me lembrei que, antes de me levar até o diretor, ele me disse algo sobre
Mamãe. Disse que ela deveria ser enterrada com mais rapidez por causa do calor
nestas áreas, especialmente nas planícies. “Em Paris eles permanecem com o
corpo por três dias, as vezes quatro.” Depois disso ele mencionou que ele
passou a melhor parte de sua vida em Paris, e nunca conseguiria esquecer.
"Aqui", dissera ele, "coisas tem que ir com pressa. Você dificilmente tem tempo
de se acostumar com a ideia de que alguém está morto, antes de você ser
arrastado para o funeral." “Isso é o suficiente,” sua esposa acabara de chegar.
"Você não deveria dizer essas coisas para o pobre jovem cavalheiro." O velho
amigo ficou e corado e começou a se desculpar. Eu disse a ele que estava tudo
bem. De fato, achei muito interessante o que ele estava me dizendo; Eu não tinha
pensado nisso antes.
Agora ele passou a dizer que ele entrou no Lar como um interno comum.
Mas ele ainda era bastante sério e saudável, e quando o trabalho do porteiro
ficou vago, ele se ofereceu para ocupá-lo.
Eu pontuei que, mesmo assim, ele era realmente um interno como os
outros, mas ele não quis ouvir falar disso. Ele era "como um oficial." Eu já tinha
sido pego por seu hábito de dizer "eles" ou, menos frequentemente, "os velhos
camaradas", quando se referia a internos que não eram mais velhos do que ele.
Mesmo assim, pude entendê-lo. Como porteiro ele tinha certa posição e alguma
autoridade sobre o resto deles.
Só então a enfermeira voltou. A noite caiu muito depressa; De repente,
parecia que o céu estava negro acima da clarabóia. O porteiro ligou as lâmpadas
e eu fiquei quase cego com a luz.
Ele sugeriu que eu deveria ir ao refeitório para jantar, mas eu não estava
com fome. Então ele propôs trazer-me uma caneca de café com leite. Como
gosto muito do café au lait, eu disse: "Obrigado", e alguns minutos depois ele
voltou com uma bandeja. Tomei o café e depois quis um cigarro. Mas eu não
tinha certeza se deveria fumar, sob as circunstâncias — na presença da Mamãe.
Eu pensei sobre isso; na verdade, isso não parecia importar, então eu ofereci um
cigarro ao porteiro e nós dois fumamos.
Depois de um tempo ele começou a falar novamente.
“Você sabe, os amigos da sua mãe virão em breve, para manter a vigília
com você ao lado do corpo. Nós sempre temos uma "vigília" aqui, quando
alguém morre. É melhor eu ir buscar algumas cadeiras e um bule de café preto.
O brilho das paredes brancas estava fazendo meus olhos doerem, eu
perguntei se ele não podia desligar uma das lâmpadas. "Não é possível", disse
ele. Eles instalaram as luzes assim; ou as duas acendem ou as duas apagam.
Depois disso, não prestei muito mais atenção a ele. Ele saiu, trouxe algumas
cadeiras e as colocou ao redor do caixão. Em um ele colocou uma cafeteira e dez
ou uma dúzia de xícaras. Então ele se sentou de frente para mim, do outro lado
da Mamãe. A enfermeira estava do outro lado da sala, de costas para mim. Eu
não conseguia ver o que ela estava fazendo, mas pela forma como os braços dela
se moviam, imaginei que ela estava tricotando. Eu estava me sentindo muito
confortável; o café me aqueceu e, pela porta aberta, vieram aromas de flores e o
ar frio da noite. Acho que adormeci por um tempo.
Eu fui acordado por um farfalhar estranho em meus ouvidos. Depois de
fechar os olhos, tive a sensação de que a luz havia ficado ainda mais forte do que
antes. Não havia um traço de sombra em lugar algum, e cada objeto, cada curva
ou ângulo, parecia marcar seu contorno nos olhos. Os velhos, amigos da Mamãe,
estavam chegando. Contei dez ao todo, deslizando quase silenciosamente através
do brilho branco e sombrio. Nenhuma das cadeiras rangeu quando se sentaram.
Nunca na minha vida vi alguém tão claramente como vi essas pessoas; nem um
detalhe de suas roupas ou recursos me escapou. E ainda assim eu não conseguia
ouvi-los, e era difícil acreditar que eles realmente existissem.
Quase todas as mulheres usavam aventais, e as cordas apertadas ao redor de
suas cinturas faziam seus grandes estômagos ainda maiores. Eu ainda não havia
percebido como as mulheres idosas usualmente tinham grandes panças. A
maioria dos homens, no entanto, era magra como ancinhos, e todos carregavam
bengalas.
O que mais me impressionou em seus rostos foi que não se podia ver seus
olhos, apenas um brilho apagado em uma espécie de ninho de rugas.
Ao se sentarem, eles olharam para mim e abanaram as cabeças
desajeitadamente, seus lábios sugados entre as gengivas desdentadas. Eu não
conseguia decidir se eles estavam me cumprimentando e tentando dizer alguma
coisa, ou se era devido a alguma enfermidade de idade. Inclinei-me a pensar que
me cumprimentavam, à sua maneira, mas tinha um efeito estranho, vendo todos
aqueles velhos agrupados em volta do porteiro, olhando-me solenemente e
balançando as cabeças de um lado para o outro. Por um momento, tive a
impressão absurda de que eles tinham vindo me julgar.
Alguns minutos depois, uma das mulheres começou a chorar. Ela estava na
segunda fila e eu não pude ver seu rosto por causa de outra mulher na frente. Em
intervalos regulares ela emitia um pequeno soluço sufocante; Tive a sensação de
que ela nunca iria parar. Os outros não pareciam notar. Sentaram-se em silêncio,
caídos em suas cadeiras, olhando para o caixão ou para suas bengalas ou
qualquer objeto bem na frente deles, e nunca tiravam os olhos deles. E a mulher
continuava soluçando. Fiquei bastante surpreso, pois não sabia quem ela era. Eu
queria que ela parasse de chorar, mas não ousei falar com ela. Depois de algum
tempo, o porteiro se inclinou para ela e sussurrou em seu ouvido; mas ela apenas
balançou a cabeça, resmungou algo que eu não pude entender, e continuou
soluçando como antes.
O porteiro se levantou e moveu sua cadeira ao lado da minha. No começo
ele ficou em silêncio; então, sem olhar para mim, ele explicou.
“Ela era afeiçoada à sua mãe. Ela disse que sua mãe era sua única amiga no
mundo e agora está sozinha.”
Eu não tinha nada a dizer e o silêncio durou um bom tempo. Logo os
suspiros e soluços da mulher tornaram-se menos frequentes e, depois de assoar o
nariz e fungar por alguns minutos, ela também ficou em silêncio.
Eu parei de sentir sono, mas eu estava muito cansado e minhas pernas
doíam muito. E agora percebi que o silêncio dessas pessoas estava me dando nos
nervos. O único som era bastante estranho; veio apenas de vez em quando e, a
princípio, fiquei intrigado com isso. No entanto, depois de ouvir atentamente, eu
adivinhei o que era; os velhos estavam sugando o interior de suas bochechas, e
isso causou os ruídos estranhos e ofegantes que me haviam intrigado. Eles
estavam tão absorvidos em seus pensamentos que não sabiam o que estavam
fazendo. Eu até tive a impressão de que o corpo morto no meio deles não
significava nada para eles. Mas agora suspeito que estava enganado sobre isso.
Todos nós bebemos o café que o porteiro deixou ao lado. Depois disso, não
me lembro de muita coisa; de alguma forma a noite passou. Só me lembro de um
momento; Eu abri meus olhos e vi os velhos dormindo encurvados em suas
cadeiras, com uma exceção. Apoiando as suas mãos no queixo sustentadas por
sua bengala, ele estava me encarando, como se estivesse esperando que eu
acordasse. Então adormeci novamente. Acordei um pouco depois, porque a dor
nas minhas pernas havia se transformado em uma espécie de cãibra.
Houve um vislumbre de alvorada acima da clarabóia. Um ou dois minutos
depois, um dos homens acordou e tossiu repetidamente. Cuspiu em um grande
lenço listrado e, a cada vez que cuspia, soava como se estivesse vomitando. Isso
acordou os outros, e o porteiro disse a eles que era hora de se moverem. Todos
eles se levantaram de uma só vez. Seus rostos estavam cinzentos depois da longa
e desconfortável vigília. Para minha surpresa, cada um deles apertou a minha
mão, como se esta noite juntos, em que não havíamos trocado uma palavra,
tivéssemos criado uma espécie de intimidade.
Eu estava bem cansado. O porteiro me levou ao seu quarto e eu me arrumei
um pouco. Ele me deu um pouco mais de café “branco”, e pareceu me fazer
bem. Quando saí, o sol estava alto e o céu manchado de vermelho acima das
colinas entre Marengo e o mar. Uma brisa matinal soprava e tinha um sabor
agradável e salgado. Era a promessa de um dia muito bom. Eu não estava no país
há alguns anos, e me peguei pensando que agradável caminhada eu poderia ter
tido, se não fosse pela Mamãe.
Assim, esperei no pátio, debaixo de um plátano. Eu cheirei os odor da terra
fria e percebi que não estava mais com sono. Então pensei nos outros
companheiros do trabalho. A essa hora, eles se levantariam, se preparando para
ir trabalhar; para mim esta sempre foi a pior hora do dia. Continuei pensando
assim por dez minutos; Então o som de um sino dentro do prédio atraiu minha
atenção. Eu podia ver movimentos atrás das janelas; então tudo ficou calmo de
novo. O sol havia subido um pouco mais e começava a esquentar meus pés. O
porteiro atravessou o pátio e disse que o diretor queria me ver. Fui ao escritório
dele e ele me fez assinar algum documento. Percebi que ele estava de preto, com
calças de risca brancas Ele pegou o telefone e olhou para mim.
“Os homens da funerária chegaram há alguns instantes e vão ao mortuário
para fechar o caixão. Devo lhes dizer que esperem, para que você tenha um
último vislumbre de sua mãe?”
"Não,” eu disse.
Ele falou no receptor, abaixando a voz. “Tudo bem, Figeac. Diga aos
homens para irem agora.”
Ele então me informou que iria ao funeral e eu o agradeci. Sentando-se
atrás de sua mesa, ele cruzou as pernas curtas e se inclinou para trás. Além da
enfermeira de plantão, ele me disse que seríamos os únicos presentes no funeral.
Era uma regra do Lar que os internos não deveriam comparecer aos funerais,
embora não houvesse objeção em deixar que alguns deles se sentassem ao lado
do caixão, na noite anterior.
"É para o bem deles", explicou ele, "poupar seus sentimentos. Mas neste
caso específico, dei permissão a um velho amigo de sua mãe para vir conosco.
Seu nome é Thomas Pérez. O diretor sorriu. “De certa forma é uma pequena
história bastante tocante. Ele e sua mãe se tornaram quase inseparáveis. Os
outros velhos costumavam provocar Pérez por ter uma noiva. "Quando você vai
se casar com ela?", Eles perguntavam. Ele respondia com uma risada. Era uma
piada familiar, na verdade. Então, como você deve imaginar, ele se sente muito
mal com a morte da sua mãe. Eu pensei que não poderia decentemente recusar
sua permissão para comparecer ao funeral. Mas, a conselho de nosso médico, eu
o proibi de sentar ao lado do corpo na noite passada.
Por algum tempo nos sentamos lá e ficamos sem conversar. Então o diretor
se levantou e foi até a janela. Passado pouco tempo ele disse:
“Ah, tem o padre de Marengo. Ele está um pouco adiantado.”
Ele me avisou que nos levaria uns bons três quartos de hora, andando até a
igreja, que ficava na vila. Então descemos as escadas.
O padre aguardava do lado de fora da porta da mortuário. Com ele estavam
dois acólitos, um dos quais tinha um incensário. O padre estava inclinado sobre
ele, ajustando o comprimento da corrente de prata na qual estava pendurado.
Quando ele nos viu, ele se endireitou e disse algumas palavras para mim, se
dirigindo a mim como "Meu filho". Então ele liderou o caminho para o
mortuário.
Eu percebi imediatamente que quatro homens de preto estavam de pé atrás
do caixão e os parafusos na tampa tinham sido ajustados. No mesmo momento,
ouvi o diretor dizer que a charrete fúnebre havia chegado e o padre iniciava suas
orações. Então todos fizeram um movimento. Segurando uma tira de pano preto,
os quatro homens se aproximaram do caixão, enquanto o padre, os meninos e eu
saímos. Uma senhora que eu não tinha visto antes estava em pé ao lado da porta.
"Este é Monsieur Meursault", o diretor disse a ela. Eu não peguei o nome dela,
mas percebi que ela era uma irmã enfermeira ligada ao Lar. Quando fui
apresentado, ela se curvou, sem o menor sinal de sorriso em seu rosto longo e
magro. Nós nos afastamos da porta para deixar o caixão passar; depois, seguindo
os carregadores pelo corredor, chegamos à entrada da frente, onde uma charrete
fúnebre aguardava. De cor preta oblonga, brilhante e envernizada, lembrava
vagamente as bandejas de caneta no escritório.
Ao lado da charrete fúnebre estava um homenzinho elegantemente vestido,
cujo dever era, eu entendi, supervisionar o funeral, como uma espécie de mestre
de cerimônias. Perto dele, parecendo constrangido, quase tímido, estava o velho
M. Pérez, amigo especial da minha mãe. Ele usava um chapéu de feltro macio no
topo de sua cabeça, tinha uma aba bem larga e lebrara uma pequena bacia de
pudim — assim que o caixão chegou até a porta ele tirou o chapéu — calças
sanfonadas até os seus sapatos, uma gravata preta muito pequena para seu alto
colarinho duplo. Sob um nariz bulboso e cheio de espinhas, seus lábios tremiam.
Mas o que mais me chamou a atenção foram seus ouvidos; orelhas pendentes e
escarlates que se mostravam como gotas de lacre na palidez de suas bochechas e
estavam emolduradas por mechas de cabelo branco sedoso.
O factótum do agente funerário nos colocou em nossos lugares, com o
padre em frente a charrete fúnebre e os quatro homens de preto de cada lado. O
diretor e eu fomos os próximos e, logo atrás, o velho Pérez e a enfermeira.
O céu já estava bastante claro e o ar subia rapidamente. Senti as primeiras
ondas de calor batendo nas minhas costas e meu terno escuro piorou as coisas.
Não pude imaginar porque esperamos tanto tempo para começar. O velho Pérez,
que colocara o chapéu, retirou-o novamente. Eu tinha me virado um pouco na
direção dele e estava olhando-lhe quando o diretor começou a me contar mais
sobre ele. Lembro-me de ele ter dito que o velho Pérez e minha mãe
costumavam caminhar um longo passeio juntos no frescor da noite; às vezes
iam tão longe quanto a vila, acompanhados por uma enfermeira, claro.
Olhei para o campo, para as longas fileiras de ciprestes inclinadas para o
horizonte e as colinas, o solo vermelho quente manchado de verde vívido e, aqui
e ali, uma casa solitária bem delineada contra a luz — e pude entender os
sentimentos da minha mãe. As noites nessas partes devem ser uma espécie de
consolo pesaroso. Agora, no brilho intenso do sol da manhã, com tudo brilhando
no sol esturricante, havia algo desumano, desencorajador, nessa paisagem.
Finalmente nós começamos a andar. Só então notei que Pérez estava
mancando levemente. O velho amigo perdeu terreno firme à medida que a
charrete ganhava velocidade. Um dos homens ao lado cambaleou para trás e
aproximou-se de mim. Fiquei surpreso ao ver a rapidez com que o sol estava
subindo ao céu, e só então me ocorreu que por um bom tempo o ar estava
pulsando com o zumbido de insetos e o farfalhar de grama se aquecendo. O suor
escorria pelo meu rosto. Como não tinha chapéu, tentei me abanar com o lenço.
Um dos agentes funerários se virou para mim e disse algo que eu não
entendi. Naquele mesmo momento, ele limpou sua testa com um lenço que
segurava na mão esquerda, enquanto com a direita levantava o chapéu. Eu
perguntei o que ele disse. Ele apontou para cima.
"O sol está muito forte, não é?"
"Sim,” eu disse. Depois de um tempo, ele perguntou: "É a sua mãe que
estamos enterrando?"
"Sim", eu disse novamente.
"Qual era a idade dela?"
"Bem, ela estava se dando bem." Na verdade, eu não sabia exatamente
quantos anos ela tinha.
Depois disso, ele ficou em silêncio. Olhando para trás, vi Pérez mancando a
uns cinquenta metros. Ele estava balançando seu grande chapéu de feltro em
compasso com o braço, tentando fazer o ritmo das pernas. Eu também dei uma
olhada no diretor. Ele caminhava com passos cuidadosamente medidos,
economizando cada gesto. Gotas de suor brilhavam em sua testa, mas ele não as
limpou.
Tive a impressão de que nossa pequena procissão estava se movendo um
pouco mais rápido. Para onde quer que olhasse, via a mesma paisagem banhada
pelo sol, e o céu estava tão claro que não me atrevi a levantar os olhos. Naquele
momento, encontramos um rua recém-asfaltada. Um brilho de calor passou por
ela e os pés eram batidos a cada passo, deixando marcas afundadas pretas e
brilhantes. Na frente, o chapéu preto do cocheiro parecia um pedaço da mesma
substância pegajosa, equilibrada acima da charrete fúnebre. Deu uma impressão
esquisita e onírica, aquele clarão branco-azulado e toda essa escuridão em torno
de um: o preto elegante da charrete fúnebre, o preto opaco das roupas dos
homens e as marcas pretas prateados na estrada. E então havia os cheiros,
cheiros de couro quente e esterco de cavalo da charrete fúnebre, cheios de
fumaça de incenso. O que com estes e a ressaca de uma noite de sono ruim, eu
encontrei meus olhos e pensamentos ficando embaçados.
Eu olhei novamente. Pérez parecia muito distante agora, quase escondido
pela miragem; então, abruptamente, ele desapareceu completamente. Depois de
pensar um pouco sobre isso, imaginei que ele tivesse saído da estrada para os
campos. Então notei que havia uma curva da estrada um pouco adiante.
Obviamente, Pérez, que conhecia bem o distrito, tomou um atalho para nos
acompanhar. Ele se juntou a nós logo depois que estávamos na curva; então
começou a perder terreno novamente. Ele pegou outro atalho e nos encontrou
novamente; De fato, isso aconteceu várias vezes durante a próxima meia hora.
Mas logo perdi o interesse em seus movimentos; minhas têmporas estavam
latejando e eu mal conseguia me arrastar.
Depois disso, tudo correu com pressa; e também com tal precisão e cálculo
que me lembro de quase nenhum detalhe. Só que quando estávamos nos
arredores da aldeia a enfermeira me disse alguma coisa. Sua voz me pegou de
surpresa; não combinava com o rosto dela; era musical e ligeiramente trêmula. O
que ela disse foi: “Se você for muito devagar, há o risco de uma insolação. Mas,
se você for muito rápido, você transpira, e o ar frio na igreja lhe dá um calafrio.”
Ela estava certa. Não havia outra saída.
Algumas outras lembranças do funeral ficaram em minha mente. O rosto do
velho, por exemplo, quando ele nos alcançou pela última vez, do lado de fora da
aldeia. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, exaustão ou angústia, ou ambos
juntos. Mas por causa das rugas, elas não puderam escorrer. Eles se espalharam,
entrecruzaram-se e formaram um brilho suave no velho e desgastado rosto.
E lembro-me da aparência da igreja, dos aldeões da rua, das flores de
gerânios vermelhos nas sepulturas, do desmaio de Pérez — ele se encolheu
como uma boneca de pano, — a terra vermelha misturada com algumas
pequenas raízes batucando no caixão de Mamãe; então mais pessoas, vozes, a
espera do lado de fora de uma cafeteria esperando pelo ônibus, o barulho do
motor, e minha pequena emoção de prazer quando entramos nas primeiras ruas
iluminadas de Argel, e me imaginei indo direto para a cama e dormindo por doze
horas ininterruptas.
II
Ao acordar, entendi por que meu empregador parecia muito zangado
quando pedi meus dois dias de folga; é um sábado hoje. Eu não tinha pensado
nisso naquele momento; só me surpreendeu quando saí da cama. Obviamente ele
tinha visto que isso significaria que eu tiraria quatro dias de férias, e não se podia
esperar que ele gostasse disso. Ainda assim, por uma coisa, não foi minha culpa
se Mamãe foi enterrada ontem e não hoje; em todo caso eu teria tido meu sábado
e domingo de folga. Mas naturalmente isso não me impediu de ver o ponto do
meu patrão.
Me levantar foi um esforço, já que eu estava realmente exausto com as
experiências do dia anterior. Enquanto me barbeava, imaginei como passar a
manhã e decidi que um mergulho me faria bem. Então peguei o bonde que desce
até o porto.
Foi como nos velhos tempos; muitos jovens estavam na piscina, entre eles
Marie Cardona, que costumava ser datilógrafa no escritório. Eu gostava muito
dela naquele tempo, e imagino que ela também gostasse de mim. Mas ela ficou
conosco tão pouco tempo que nada aconteceu.
Enquanto eu a ajudava a subir em uma bóia, deixei minha mão passar por
seus seios. Então ela ficou deitada na bóia, enquanto eu pisei água. Depois de
um momento, ela se virou e olhou para mim. Seu cabelo estava sobre os olhos e
ela estava rindo. Subi na balsa, ao lado dela. O ar estava agradavelmente quente
e, meio brincando, deixei minha cabeça afundar em seu colo. Ela não parecia se
importar, então permaneci. Eu tinha o céu cheio em meus olhos, todo azul e
dourado, e eu podia sentir o estômago de Marie subindo e descendo suavemente
sob minha cabeça. Devemos ter ficado uma boa meia hora na bóia, ambos meio
dormindo. Quando o sol ficou muito quente, ela mergulhou e eu a segui. Eu a
alcancei, coloquei meu braço em volta de sua cintura e nadamos lado a lado. Ela
ainda estava rindo.
Enquanto estávamos nos secando na beira da piscina, ela disse: "Eu sou
mais morena do que você". Perguntei se ela queria ir ao cinema comigo naquela
noite. Ela riu de novo e disse: "Sim", se eu a levasse para o filme de comédia que
todo mundo estava falando, aquela com Fernandel.
Quando nos vestimos, ela olhou para minha gravata preta e perguntou se eu
estava de luto. Expliquei que minha mãe havia morrido. "Quando?", Ela
perguntou, e eu disse: "Ontem." Ela não fez nenhum comentário, embora eu
achasse que ela se afastou um pouco. Eu iria explicar a ela que não era minha
culpa, mas eu pensei rapidamente e me lembrei de ter dito a mesma coisa para o
meu patrão, e percebi que soava um pouco tolo. Ainda assim, tolo ou não, de
alguma forma, não se pode deixar de se sentir um pouco culpado, eu suponho.
De qualquer forma, à noite, Marie havia se esquecido tudo. O filme era
engraçado em algumas partes, mas algumas eram completamente estúpidas. Ela
apertou a perna dela contra a minha enquanto estávamos na cabana de fotografia,
e eu estava acariciando seu seio. Perto do final do filme eu a beijei, mas
desajeitadamente. Depois ela voltou comigo para meu apartamento.
Quando acordei, Marie tinha ido embora. Ela me disse que sua tia a
esperava prontamente pela manhã. Lembrei que era domingo e então fiquei na
cama; Eu nunca me importei com os domingos. Então virei a cabeça e
preguiçosamente cheirei o cheiro de salmoura que a cabeça de Marie deixara no
travesseiro. Eu dormi até as dez. Depois disso, fiquei na cama até o meio dia,
fumando cigarros. Decidi não almoçar no restaurante do Céleste como
costumava fazer; eles me incomodariam com perguntas e eu não gosto de ser
questionado. Então eu fritei alguns ovos na frigideira e os comi. Eu fiz sem pão
pois não havia sobrado nenhum, e eu não queria me incomodar descendo para
comprar mais.
Depois do almoço, eu me senti em pontas soltas e vaguei pelo pequeno
apartamento. Nos convinha muito bem quando Mamãe estava comigo, mas
agora que eu estava sozinho era muito grande e movi a mesa de jantar para o
meu quarto. Aquele era agora o único quarto que eu usava; tinha toda a mobília
de que eu precisava: uma cama de latão, uma penteadeira, algumas poltronas de
madeira cujos assentos tinham mais ou menos desmoronado, um guarda-roupa
com um espelho embaçado. O resto do apartamento nunca foi usado, então eu
não me preocupava em cuidar dele.
Um pouco depois, por falta de algo melhor para fazer, peguei um jornal
velho que estava no chão e o li. Havia uma anúncio dos Sais Kruschen e eu o
cortei e colei em um álbum onde guardo coisas que me divertem nos jornais.
Depois lavei as mãos e, por fim, saí para a varanda.
Meu quarto tem vista para a rua principal do nosso bairro. Apesar de ter
sido uma boa tarde, os blocos de pavimentação estavam pretos e brilhantes. O
que poucas pessoas percebiam pois pareciam estar em uma pressa absurda.
Primeiramente passava uma família, indo para a sua caminhada de domingo à
tarde; dois meninos pequenos em ternos de marinheiro, com calças curtas quase
até os joelhos, e parecendo um pouco desconfortáveis em seu melhor domingo;
depois uma garotinha com um grande laço rosa e sapatos pretos de couro. Atrás
deles estava sua mãe, uma mulher extremamente gorda em um vestido de seda
marrom, e seu pai, um homenzinho elegante, a quem eu conhecia de vista. Ele
tinha um chapéu de palha, uma bengala e uma gravata borboleta. Ao vê-lo ao
lado de sua esposa, entendi por que as pessoas diziam que ele vinha de uma boa
família e se casara com alguém abaixo dele.
Em seguida veio um grupo de jovens amigos, os "sangues bons" locais,
com cabelos lustrosos e oleados, gravatas vermelhas, casacos bem curtos na
cintura, bolsos trançados e sapatos com dedos quadrados. Eu imaginei que eles
estavam indo para um dos grandes cinemas no centro da cidade. Foi por isso que
eles começaram tão cedo e estavam correndo para o ponto de bonde, rindo e
conversando bem alto.
Depois que eles passaram, a rua gradualmente se esvaziou. A essa altura,
todos os matinês deviam ter começado. Apenas alguns lojistas e gatos
permaneciam por perto. Acima dos sicômoro que margeavam a estrada, o céu
estava sem nuvens, mas a luz era suave. O dono da tabacaria do outro lado da
rua trouxe uma cadeira para a calçada em frente à sua porta e se sentou sobre ela,
apoiando os braços nas costas. Os bondes que alguns minutos antes estavam
lotados estavam quase vazios. No pequeno café, Chez Pierrot, ao lado da
tabacaria, o garçom estava varrendo a serragem no restaurante vazio. Uma típica
tarde de domingo...
Virei a cadeira e me sentei como o dono da tabacaria, pois era mais
confortável assim. Depois de fumar um par de cigarros, voltei ao quarto, peguei
um tablete de chocolate e voltei para a janela para comer. Logo depois, o céu
ficou nublado e pensei que uma tempestade de verão estava chegando. No
entanto, as nuvens foram gradualmente se afastando. Mesmo assim, eles haviam
deixado na rua uma espécie de ameaça de chuva, o que tornava tudo mais
sombrio. Eu fiquei observando o céu por um bom tempo.
Às cinco horas houve um tinir alto dos bondes. Eles estavam vindo do
estádio de nosso subúrbio onde houve uma partida de futebol. Até as plataformas
traseiras estavam lotadas e as pessoas estavam de pé nos degraus. Então outro
bonde trouxe de volta as equipes. Eu sabia que eles eram os jogadores pela
pequena bolsa que cada homem carregava. Eles estavam gritando a música da
equipe: "Mantenha a bola rolando, meninos." Um deles olhou para mim e gritou:
"Nós os dominamos!" Acenei minha mão e gritei de volta: "Bom trabalho!" A
partir de agora era um fluxo constante de carros particulares.
O céu havia mudado de novo; Um brilho avermelhado se espalhava além
dos telhados. Ao anoitecer, a rua ficou mais cheia. As pessoas estavam
retornando de suas caminhadas, e notei o homenzinho elegante com a esposa
gorda entre os transeuntes. As crianças choramingavam e seguiam cansadas atrás
dos pais. Depois de alguns minutos, as sessões dos cinemas dispersaram suas
audiências. Notei que os jovens que vinham deles davam passos mais longos e
gesticulavam com mais vigor do que em tempos normais; sem dúvida, o filme
que eles estavam vendo tinha temática de faroeste. Aqueles que foram para para
o cinema no meio da cidade vieram um pouco mais tarde, e pareciam mais
tranqüilos, embora alguns ainda estivessem rindo. No geral, porém, pareciam
lânguidos e exaustos. Alguns deles permaneceram vadiando na rua debaixo da
minha janela. Um grupo de garotas veio andando de braços dados. Os rapazes
sob minha janela se desviaram para roçar-se contra eles e gritaram comentários
humorísticos, que fizeram as garotas virarem a cabeça e darem uma risadinha.
Eu as reconheci como garotas da minha vizinhança, e duas ou três delas, que
conheci, ergueram os olhos e acenaram para mim.
Só então as luzes da rua se acenderam, e fizeram as estrelas que
começavam a brilhar no céu noturno ainda mais pálidas. Senti meus olhos
cansados, com as luzes e todo o movimento que eu estava assistindo na rua.
Havia pequenas poças de brilho sob as lâmpadas, e de vez em quando um bonde
passava, iluminando o cabelo de uma garota, ou um sorriso, ou uma pulseira de
prata.
Logo depois disso, quando os bondes se tornaram menos frequentes e o céu
se mostrou preto aveludado sob as árvores e os lampiões, a rua ficou mais vazia,
quase imperceptivelmente, até que chegou a hora em que ninguém podia ser
visto e um gato, o primeiro da noite atravessou, sem pressa, a rua deserta.
Achei que seria melhor eu procurar um jantar. Eu estava me apoiando tanto
nas costas da cadeira, olhando para baixo, que meu pescoço doía quando me
endireitei. Eu desci, comprei um pouco de pão e espaguete, cozinhei e comi
minha refeição em pé. Eu pretendia fumar outro cigarro na minha janela, mas a
noite estava um pouco fria e eu mudei de ideia.
Quando eu voltava, depois de fechar a janela, olhei de relance para o
espelho e vi refletido nele um canto da minha mesa com meu abajur e alguns
pedaços de pão ao lado. Me ocorreu que de alguma forma eu tinha passado outro
domingo, que Mamãe agora estava enterrada, e amanhã eu voltaria a trabalhar
como de costume. Realmente, nada na minha vida havia mudado.
III
Eu tive uma manhã ocupada no escritório. Meu empregador estava de bom
humor. Ele até perguntou se eu não estava muito cansado, e seguiu perguntando
qual era a idade da minha mãe. Eu pensei um pouco e depois respondi: "Por
volta de sessenta", como eu não queria cometer um erro. Em que ele parecia
aliviado — por que, eu não posso imaginar — e parecia pensar que isso
encerrava o assunto.
Havia uma papel na minha mesa e eu tive que passar por todos eles. Antes
de sair para o almoço, lavei as mãos. Eu sempre gostei de fazer isso ao meio dia.
À noite era menos agradável, pois o rolo toalha depois de ser usado por tantas
pessoas, estava encharcado. Certa vez, avisei ao meu empregador. Era
lamentável, ele concordou — mas, em sua opinião, um mero detalhe. Saí do
prédio de escritórios um pouco depois do habitual, às doze e meia, com
Emmanuel, que trabalha no Departamento de Encaminhamento. Nosso prédio
tem vista para o mar, e paramos por um momento na calçada para ver o
transporte no porto. O sol estava quente demais. Só então um grande caminhão
apareceu, com um barulho de correntes e escapamentos do motor, e Emmanuel
sugeriu que pulássemos nele. Eu comecei a correr. O caminhão estava bem longe
e tivemos que persegui-lo por uma boa distância. Com o calor e o barulho do
motor, senti-me meio tonto. Tudo o que eu estava consciente era de nossa louca
correria ao longo da frente da água, entre guindastes e guinchos, com cascos
escuros de navios ao lado e mastros balançando ao largo. Eu fui o primeiro a
alcançar o caminhão. Tomei um salto voador, aterrei em segurança e ajudei
Emmanuel a se aproximar de mim. Nós dois estávamos sem fôlego, e os
solavancos do caminhão nas pedras da calçada tornavam as coisas piores.
Emmanuel riu e ofegou em meu ouvido: "Nós conseguimos!"
Quando chegamos ao restaurante do Céleste, estávamos suando. Céleste
estava em seu lugar habitual ao lado da entrada, com o avental saliente na
barriga e o bigode branco bem à frente. Quando ele me viu, ele foi simpático e
"desejou que eu não estivesse me sentindo muito mal". Eu disse: "Não", mas eu
estava com muita fome. Eu comi muito rapidamente e tomei um pouco de café
para terminar. Então eu fui para a minha casa e tirei uma soneca, já que eu tomei
taças de vinho demais.
Quando acordei, fumei um cigarro antes de sair da cama. Eu estava um
pouco atrasado e tive que correr para o bonde. O escritório estava sufocante, e
permaneci no mesmo lugar por toda tarde. Foi um alívio quando fechamos e eu
passeava devagar pelos cais no frescor da brisa. O céu estava verde e era
agradável estar do lado de fora do escritório abafado. No entanto, fui direto para
casa, pois tinha que colocar algumas batatas para ferver.
O corredor estava escuro e, quando eu estava começando a subir as escadas,
quase esbarrei no velho Salamano, que morava no mesmo andar que eu. Como
de costume, ele estava com seu cachorro. Por oito anos os dois eram
inseparáveis. O spaniel de Salamano é um bruto feio, afligido por alguma doença
de pele — sarna, eu suspeito; de qualquer forma, perdeu todo o cabelo e seu
corpo está coberto de crostas marrons. Talvez vivendo em uma pequena sala,
confinada com seu cachorro, Salamano se assemelha a ela. Seu cabelo crespo
ficou muito fino e ele tinha manchas avermelhadas no rosto. E o cão
desenvolveu algo do andar venerável de seu dono; Tem sempre o focinho
esticado para a frente e o nariz para o chão. Mas, por incrível que pareça, embora
sejam muito parecidos, eles detestam um ao outro.

Duas vezes por dia, às onze e seis horas, o velho leva seu cachorro para
passear e, durante oito anos, esse passeio nunca mudou. Você pode vê-los na rue
de Lyon, o cão puxando seu dono o mais forte que pode, até que finalmente o
velho bate um passo e quase cai. Então ele bate no cachorro e começa a xingar.
O cão se encolhe e fica para trás, e é a vez de seu dono arrastá-lo. Então o cão
esquece e começa a puxar a coleira novamente, recebe outro sacolejo e mais
abuso. Então os dois param na calçada e se encaram; o cachorro com terror e o
homem com ódio em seus olhos. Toda vez que eles saem, isso acontece. Quando
o cachorro quer parar em um poste de luz, o velho não o deixa, e o arrasta, e o
miserável spaniel deixa para trás um rastro de pequenas gotas. Mas, se ele faz
isso na sala, significa outro saculejo.
Isso vem acontecendo assim há oito anos, e Céleste sempre diz que é uma
"vergonha", e algo deve ser feito sobre isso; mas realmente não se pode ter
certeza. Quando o encontrei no corredor, Salamano estava berrando com seu
cachorro, chamando-o de bastardo, um péssimo vira-lata e assim por diante, e o
cachorro choramingava. Eu disse: “Boa noite”, mas o velho não prestou atenção
e continuou xingando. Então eu pensei em perguntar o que o cachorro tinha
feito. Mais uma vez, ele não respondeu, mas continuou gritando: "Seu maldito!"
E continuou. Eu não conseguia enxergar com muita clareza, mas ele parecia
estar consertando algo na coleira do cachorro. Eu levantei minha voz um pouco.
Sem olhar em volta, ele resmungou em uma espécie de fúria reprimida: "Ele está
sempre no caminho, atropele-o!" Então ele começou a subir as escadas, mas o
cão tentou resistir e se jogou no chão, então ele teve que arrastá-lo na coleira,
degrau por degrau.
Só então um outro homem que mora no meu andar chegou da rua. As
pessoas aqui acham que ele é um cafetão. Mas se você perguntar a ele qual é o
seu trabalho, ele diz que é um armazenista. Uma coisa é certa: ele não é popular
na nossa rua. Ainda assim, ele frequentemente tem algo a me falar, às vezes,
algumas vezes temos uma conversa curta no meu quarto, porque eu o ouço. De
fato, acho o que ele diz bastante interessante. Então, eu realmente não tenho
motivos para ignorá-lo. Seu nome é Sintès; Raymond Sintès. Ele é pequeno e
roliço, tem um nariz como o de um boxeador e sempre se veste muito bem. Ele
também me disse uma vez, referindo-se a Salamano, que era "uma pena", e me
perguntou se eu não estava enojado com a maneira como o velho tratava seu
cachorro. Eu respondi: "Não".
Subimos as escadas juntos, Sintès e eu, e quando eu estava chegando à
minha porta, ele disse:
"Olhe aqui! Que comer comigo? Eu tenho morcela e um pouco de vinho.”
Pareceu-me que isso salvaria minha necessidade de preparar meu jantar,
então eu disse: "Muito obrigado".
Ele também tem apenas um quarto e uma pequena cozinha sem janela. Eu
vi um anjo de gesso branco e rosa em cima da cama dele, e algumas fotos de
campeões esportivos e mulheres nuas presas na parede oposta. A cama não tinha
sido feita e o quarto estava sujo. Ele começou acendendo uma lâmpada de
parafina; Em seguida, procurou no seu bolso e tirou uma atadura suja, que ele
enrolou em volta da mão direita. Eu perguntei a ele qual era o problema. Ele me
disse havia brigado com um cara que o aborreceu.

"Eu não sou aquele que procura brigas", explicou ele, "só que eu sou um
pouco mal-humorado. Esse sujeito me desafiou: 'Desça do bonde, se você é
homem.' Eu disse: 'Você fica quieto, eu não fiz nada com você'. Então ele me
falou que eu não tinha coragem. Isso fez com que eu ficasse nervoso. Desci do
bonde e disse a ele: "É melhor você ficar de boca fechada, ou vou fechar para
você." "Eu gostaria de ver você tentar!", Disse ele. Então eu dei a ele um soco no
rosto e o deitei de forma adequada. Depois de um tempo, comecei a ajudá-lo a se
levantar, mas tudo o que ele fez foi chutar-me de onde estava. Então eu o acertei
com meu joelho e mais alguns golpes. Ele estava sangrando como um porco
quando eu terminei. Perguntei se ele tinha o suficiente e ele disse "Sim".
Sintès estava ocupado consertando a bandagem enquanto falava, e eu estava
sentado na cama.
"Então você vê", disse ele, "não foi minha culpa; ele estava pedindo por
isso, não foi?
Eu balancei a cabeça e ele acrescentou:
“De fato, prefiro pedir seu conselho sobre algo; está ligado a este negócio.
Você andou um pouco pelo mundo e eu acho que você pode me ajudar. Eu serei
seu amigo por toda a vida; nunca me esqueço de quem me faz uma favor.
Quando não fiz comentários, ele perguntou se eu gostaria que fôssemos
amigos. Eu respondi que não tinha objeção, e isso pareceu satisfazê-lo. Ele
pegou a morcela, cozinhou em uma frigideira, depois colocou a mesa, tirando
duas garrafas de vinho. Enquanto ele estava fazendo isso ele não falou nada.
Nós começamos o jantar, e então ele começou a me contar a história toda,
hesitando um pouco no início.
“Há uma garota por trás disso — como de costume. Eu e ela dormimos
juntos muitas vezes. Eu estava mantendo ela, na verdade, e ela me custou uma
boa grana. Esse cara que eu derrubei é o irmão dela."
Percebendo que eu não disse nada, ele acrescentou que sabia o que os
vizinhos diziam sobre ele, mas era uma mentira imunda. Ele tinha seus
princípios como todos os outros e um trabalho em um armazém.
"Bem", ele disse, "para continuar com a minha história... Eu descobri que
ela estava me decepcionando." Ele deu a ela dinheiro suficiente para mantê-la,
sem extravagância; ele pagava o aluguel do quarto dela e vinte francos por dia
para comida. “Trezentos francos para o aluguel e seiscentos para a alimentação
dela, com um presentinho de vez em quando, um par de meias ou algo assim.
Uns mil francos por mês. Mas isso não foi suficiente para minha bela dama; ela
estava sempre resmungando que ela não conseguia fazer as duas pontas se
encontrarem com o que eu dava a ela. Então, um dia eu disse a ela: "Olhe aqui,
por que não arruma um emprego de algumas horas por dia? Isso tornaria as
coisas mais fáceis para mim também. Eu comprei para você um vestido novo
este mês, eu pago seu aluguel e dou vinte francos por dia. Mas você vai e
desperdiça seu dinheiro no café com um bando de garotas. Você lhes dá café e
açúcar. E, claro, o dinheiro sai do meu bolso. Eu te trato tão bem e é assim que
você me paga de volta.” Mas ela não queria saber de trabalho, embora ela
continuasse dizendo que não poderia se contentar com o que eu dava a ela. E
então um dia eu descobri que ela estava me deprimindo.
Ele explicou que encontrou um bilhete de loteria em sua bolsa e, quando
perguntou de onde o dinheiro viria para comprá-lo, ela não lhe contava. Então,
outra vez, ele encontrou um bilhete de penhor para duas pulseiras que ele nunca
tinha visto.
"Então eu sabia que havia um trabalho sujo acontecendo, e eu disse a ela
que não teria mais nada a ver com ela. Mas, primeiro, dei-lhe uma boa sova e
contei-lhe algumas verdades. Eu disse que havia apenas uma coisa que a
interessava e que era ir para a cama com homens sempre que ela tivesse a
chance. E eu disse a ela: ‘Você vai se arrepender um dia, menina, e vai desejar
me ter de volta. Todas as meninas na rua estão com inveja da sua sorte em ter-
me para te manter.'”
Ele a espancou até o sangue correr. Antes disso ele nunca tinha a
espancado. “Bem, não tão forte, de qualquer maneira; apenas carinhosamente.
Ela uivaria um pouco e eu tive que fechar a janela. Então, claro, terminou como
de costume. Mas desta vez eu terminei com ela. Só que, na minha opinião, eu
não a castiguei o suficiente. Vê aonde quero chegar?
Ele explicou que era sobre isso que ele queria meu conselho. A lâmpada
estava fumegando e ele parou de andar de um lado para o outro na sala, para
abaixar o pavio. Eu apenas escutei, sem falar. Eu tinha uma garrafa inteira de
vinho para mim e minha cabeça estava zumbindo. Como todos os meus cigarros
tinham acabado e me pus a fumar os cigarros do Raymond. Alguns últimos
bondes passavam e os últimos ruídos da rua desapareciam com eles. Raymond
continuou falando. O que o entediava era que ele tinha "uma espécie de tara
nela" como ele dizia. Mas ele estava determinado a ensinar-lhe uma lição.
Sua primeira ideia, ele disse, foi levá-la a um motel e depois chamar a
polícia especial. Ele os persuadiria a colocá-la no registro como uma "prostituta
comum", e isso a deixaria louca. Ele procurou alguns amigos seus no submundo,
companheiros que mantinham prostitutas e abusavam delas, mas eles não tinham
praticamente nada a sugerir. Ainda assim, como ele apontou, esse tipo de coisa
deveria ser experiência deles; Qual é a vantagem de estar no submundo se você
não sabe como tratar uma garota que te decepciona? Quando ele lhes disse isso,
eles sugeriram que ele deveria "marcá-la". Mas isso não era o que ele queria
também. Seria preciso pensar muito.. Mas, primeiro, ele gostaria de me
perguntar uma coisa. Antes de perguntar, no entanto, ele gostaria de ter minha
opinião sobre a história que ele estava contando, de uma forma geral.
Eu disse que não tinha, mas achei interessante.
Se eu acho que ela realmente pisou na bola?
Eu tive que admitir que sim. Então ele me perguntou se eu não achava que
ela deveria ser punida e o que eu faria se estivesse no lugar dele. Eu disse a ele
que nunca se poderia ter certeza de como agir em tais casos, mas eu entendia que
ele queria que ela sofresse por isso.
Bebi mais um pouco de vinho, enquanto Raymond acendeu outro cigarro e
começou a explicar o que ele propunha fazer. Ele queria escrever uma carta para
ela, "uma bem forte e convincente, que a pegasse de isca" e, ao mesmo tempo,
fazer com que ela se arrependesse do que fez. Então, quando ela voltasse, ele iria
para a cama com ela e, justamente quando ela estivesse "devidamente
preparada", ele cuspiria no rosto dela e a jogaria para fora do quarto. Eu
concordei que não era um plano ruim; isso a puniria, tudo bem.
Mas, Raymond me disse que ele não se sentia à vontade para escrever o
tipo de carta que era necessário, e era aí que eu poderia ajudar. Quando eu não
disse nada, ele me perguntou se eu me importaria em fazer isso imediatamente, e
eu disse: "Não", eu arriscaria.
Ele bebeu um copo de vinho e se levantou. Depois, empurrou para o lado os
pratos e o pedaço de morcela, para dar espaço à mesa. Depois de limpar
cuidadosamente o oleado, pegou uma folha de papel quadriculado da gaveta da
mesinha de cabeceira; depois disso, um envelope, um pequeno porta-canetas
vermelho de madeira e um tinteiro quadrado com tinta roxa. No momento em
que ele mencionou o nome da garota, eu sabia que ela era uma moura.
Eu escrevi a carta. Eu não me importei muito com os detalhes, mas eu
queria agradar Raymond, já que eu não tinha motivo para não agradá-lo. Então
eu li o que eu escrevi. Sacudindo o cigarro, ele escutou, assentindo de vez em
quando. "Leia de novo, por favor", disse ele. Ele parecia encantado. "Essa é a
carta!", ele riu. "Eu sabia que você era inteligente, grande garoto, você sabe das
coisas."
No começo eu mal notei aquele “grande garoto”. Percebi isso quando ele
me deu um tapinha no ombro e disse: “Então agora somos amigos, não é?” Eu
mantive silêncio e ele disse de novo. Eu não me importava de um jeito ou de
outro, mas como ele parecia tão determinado, eu acenei e disse: "Sim".
Ele colocou a carta no envelope e terminamos o vinho. Então nós dois
fumamos por alguns minutos, sem falar. A rua estava bem quieta, exceto quando,
de vez em quando, passava um carro. Finalmente, observei que estava ficando
tarde e Raymond concordou. "O tempo passou muito rápido esta noite",
acrescentou ele, e de uma maneira isso era verdade. Eu queria estar na cama, só
que esse esforço fazia um movimento. Eu devo ter parecido cansado, pois
Raymond me disse: "Você não deve deixar as coisas te derrubarem." No começo
eu não entendi o que ele queria dizer. Então ele explicou que tinha ouvido falar
da morte da minha mãe; de qualquer forma, ele disse que isso era algo que
aconteceria um dia ou outro. Eu gostei do que ele me falou e disse-lhe isso.
Quando me levantei, Raymond apertou as mãos muito calorosamente,
observando que os homens sempre se entendiam. Depois de fechar a porta atrás
de mim, permaneci por alguns momentos no mesmo lugar. O prédio inteiro
estava tão quieto quanto um túmulo, um cheiro escuro e úmido subindo do
corrimão da escada. Eu não conseguia ouvir nada além do sangue pulsando nos
meus ouvidos e, por um momento, parei, ouvindo. Então o cão começou a uivar
no quarto do velho Salamano e, no ecoar das estruturas do prédio, o pequeno
som melancólico se elevou lentamente, como uma flor nascendo do silêncio e da
escuridão.
IV
Eu estava bastante ocupado no escritório durante a semana. Raymond
apareceu uma vez para me dizer que havia enviado a carta. Fui ao cinema duas
vezes com Emmanuel, que nem sempre entende o que está acontecendo na tela e
pede que eu explique. Ontem foi sábado, e Marie veio como nós combinamos
Ela tinha um vestido muito bonito, com listras vermelhas e brancas e sandálias
de couro, e eu não conseguia tirar os olhos dela. Podia-se ver o contorno de seus
pequenos seios firmes, e seu rosto bronzeado pelo sol era como uma flor marrom
aveludada. Nós pegamos o ônibus e fomos para uma praia que eu conheço,
alguns quilômetros fora de Argel. É apenas uma faixa de areia entre duas esporas
rochosas, com uma linha de juncos nas costas, ao longo da linha da maré. Às
quatro horas o sol não estava muito quente, mas a água estava agradavelmente
morna e pequenas ondulações lânguidas subiam pela areia.
Marie me ensinou um novo jogo. A ideia era que, enquanto um nadava,
sugasse um gole de água das ondas e, quando a boca estivesse cheia, deitasse de
costas e a repelisse contra o céu. Parecia uma espécie de névoa espumosa que se
derretia no ar ou caia como um banho quente nas bochechas. Mas muito em
breve minha boca estava dolorida com todo o sal que eu tinha sugado; então
Marie veio e me abraçou na água, e pressionou sua boca na minha. Sua língua
esfriou meus lábios e deixamos as ondas rodopiarem por um minuto ou dois
antes de nadarmos de volta para a praia.
Quando terminamos de nos vestir, Marie olhou para mim com dificuldade.
Seus olhos estavam brilhando. Eu a beijei; depois disso nenhum de nós falou por
um bom tempo. Eu a pressionei para o meu lado enquanto subíamos a ladeira.
Nós dois estávamos com pressa de pegar o ônibus, voltar para minha casa e cair
na cama. Eu deixei minha janela aberta, e foi agradável sentir o ar frio da noite
fluindo sobre nossos corpos bronzeados.
Marie disse que estava livre na manhã seguinte, então eu propus que ela
deveria almoçar comigo. Ela concordou e eu desci para comprar um pouco de
carne. No caminho de volta, ouvi a voz de uma mulher no quarto de Raymond.
Um pouco mais tarde, o velho Salamano começou a resmungar com seu
cachorro e logo ouvi um som de botas e patas na escada de madeira; então,
“Cachorro sujo! Ande, seu vira-lata!” E os dois saíram para a rua. Contei a
Marie sobre os hábitos do velho e isso a fez rir. Ela estava usando um dos meus
ternos de pijama e tinha as mangas arregaçadas. Quando ela riu eu a queria
novamente. Um momento depois, ela me perguntou se eu a amava. Eu disse que
esse tipo de pergunta não tinha sentido, realmente; mas eu acho que não a
amava. Ela parecia um pouco triste, mas quando estávamos preparando nosso
almoço, ela se alegrou e começou a rir, e quando ela ri eu sempre quero beijá-la.
Foi então que o tumulto começou no quarto de Raymond.
Primeiro ouvimos uma mulher dizendo algo em voz alta; então Raymond
berrando para ela: “Você me decepcionou, sua puta! Eu vou te ensinar o que é
me decepcionar!” Houve algumas batidas, depois um grito agudo — fez com
que o sangue corresse frio — e, em um momento, havia uma multidão de
pessoas no andar. Marie e eu saímos para ver. A mulher ainda estava gritando e
Raymond ainda estava batendo nela. Marie disse, isso é horrível! Eu não
respondi nada. Então ela me pediu para ir chamar um policial, mas eu disse a ela
que não gostava de policiais. No entanto, um apareceu no momento; o inquilino
do segundo andar, um encanador, aproximou-se com ele. Quando ele bateu na
porta, o barulho parou dentro do quarto. Ele bateu de novo e, depois de um
momento, a mulher começou a chorar e Raymond abriu a porta. Ele tinha um
cigarro pendurado em seu lábio inferior e um sorriso meio doentio.
"Seu nome?" Raymond deu seu nome. "Tire esse cigarro da sua boca
quando você estiver falando comigo", disse o policial rispidamente. Raymond
ficou indeciso, olhou para mim e manteve o cigarro na boca. O policial
prontamente balançou o braço e deu-lhe um bom murro na bochecha esquerda.
O cigarro disparou de seus lábios e caiu a um metro de distância. Raymond fez
uma careta, mas não disse nada por um momento. Então, em um tom humilde,
ele perguntou se ele não poderia pegar o cigarro.
O oficial disse: "Sim" e acrescentou: "Mas, da próxima vez, você não se
esqueça de que não toleramos nenhum absurdo, não de caras como você".
Enquanto isso, a menina continuava soluçando e repetindo: “Ele me
agrediu, o covarde. Ele é um cafetão.”
“Com licença, oficial,” disse Raymond, mas isso é certo, chamar um
homem de cafetão na presença de testemunhas?
O policial disse a ele para fechar a boca.
Raymond então se virou para a garota. "Não se preocupe, minha cadela.
Vamos nos encontrar de novo.“ “Já chega”, disse o policial, e mandou a garota ir
embora. Raymond deveria ficar em seu quarto até ser chamado à delegacia.
"Você deveria ter vergonha de si mesmo", acrescentou o policial, "só pelo fato de
eu me aproximar você não consegue ficar quieto. Por que você está tremendo?”
"Eu não estou calmo", explicou Raymond. “Quando vejo você aí parado
olhando para mim, não consigo evitar de me tremer. Isso é natural.”
Então ele fechou a porta e todos nós fomos embora. Marie e eu terminamos
de preparar nosso almoço. Mas ela não tinha nenhum apetite e eu comi quase
tudo. Ela saiu a uma hora e eu tirei uma soneca.
Por volta das três houve uma batida na minha porta e Raymond entrou. Ele
sentou-se na beira da minha cama e por um minuto ou dois não disse nada. Eu
perguntei a ele como tinha saído. Ele disse que tudo foi bem tranquilo no início,
conforme o programado; Só então ela deu um tapa no rosto dele e ele viu
vermelho, então começou a bater nela. Quanto ao que aconteceu depois disso,
ele não precisava me dizer, como eu estava lá.
"Bem", eu disse, "você a ensinou uma lição, tudo bem, era isso que você
queria, não era?"
Ele concordou, e apontou que o que quer que a polícia fizesse, isso não
mudaria o fato de ela ter tido sua vingança. Quanto à polícia, ele sabia
exatamente como lidar com eles. Mas ele gostaria de saber se eu esperava que
ele devolvesse o golpe quando o policial o acertou.
Eu disse a ele que não esperava nada e, de qualquer forma, não via
utilidade para a polícia. Raymond parecia satisfeito e perguntou se eu gostaria
de sair para dar um giro com ele. Eu me levantei da cama e comecei a escovar
meu cabelo. Então Raymond disse que o que ele realmente queria era que eu
agisse como sua testemunha. Eu disse a ele que não tinha objeção; só eu não
sabia o que ele esperava que eu dissesse.
"É bem simples", ele respondeu. "Você só precisa dizer a eles que a garota
me decepcionou."
Então eu concordei em ser sua testemunha.
Saímos juntos e Raymond me pagou um conhaque em uma cafeteria. Então
nós jogamos bilhar; foi um jogo apertado e perdi por apenas alguns pontos.
Depois disso, ele propôs ir a um bordel, mas eu recusei; Eu não estava para isso.
Enquanto andávamos devagar, ele me disse que estava satisfeito por ter pago sua
amante tão bem. Ele se tornou extremamente agradável para mim, e eu gostei
muito da nossa caminhada.
Quando estávamos quase em casa, vi o velho Salamano na soleira da porta;
ele parecia muito animado. Eu notei que o cachorro dele não estava com ele. Ele
estava girando como um pião, olhando em todas as direções, e às vezes olhando
na escuridão do corredor com seus pequenos olhos vermelhos. Então ele
murmuraria algo para si mesmo e começaria a olhar para cima e para baixo da
rua novamente.
Raymond perguntou a ele o que estava acontecendo, mas ele não respondeu
imediatamente. Então eu o ouvi grunhir: “O bastardo! O maldito vira-lata!
”Quando lhe perguntei onde estava seu cachorro, ele fez uma careta para mim e
disse: “Fugiu!” Um momento depois, de repente, ele começou a falar.
"Eu o levei para o desfile, como de costume. Houve uma feira, e você
dificilmente poderia se mover na multidão. Parei em uma das cabines para olhar
o Rei Algema. Quando me virei para ir, o cachorro tinha ido embora. Eu pensei
em pegar uma coleira mais apertada, mas nunca pensei que o idiota pudesse
escorregar e fugir daquele jeito.”
Raymond assegurou-lhe que o cão encontraria o caminho de casa e contou-
lhe histórias de cães que viajaram quilômetros e quilômetros para voltar para
seus donos. Mas isso pareceu deixar o velho mais preocupado ainda do que
antes.
"Você não entende, eles vão acabar com ele; a polícia, quero dizer. Não é
provável que alguém o acolha e cuide dele; com todas aquelas feridas ele deixa
todo mundo assustado.
Eu disse a ele que havia uma canto na delegacia de polícia, onde os cães
vadios eram levados. Seu cachorro certamente estava lá e ele poderia recuperá-lo
com o pagamento de uma pequena taxa. Ele me perguntou quanto custava, mas
não consegui ajudá-lo. Então ele ficou furioso novamente.
“Acha que eu pagaria dinheiro para um vira-lata assim? Nenhum sonhando!
Eles podem matá-lo, eu não me importo.” E ele continuou chamando seu
cachorro de nomes usuais.
Raymond deu uma risada e entrou no corredor. Eu o segui até o andar de
cima e nos separamos no mesmo andar. Um minuto ou dois depois, ouvi os
passos de Salamano e uma batida na minha porta.
Quando abri, ele parou por um momento na porta.
"Com licença... Espero não estar incomodando você."
Eu disse para ele entrar, mas ele balançou a cabeça. Ele estava olhando para
as pontas dos pés, e as velhas mãos retorcidas tremiam. Sem encontrar meus
olhos, ele começou a falar.
"Eles realmente não vão tirá-lo de mim, não é Monsieur Meursault?
Certamente eles não fariam uma coisa dessas. Se eles fizerem isso, não sei o que
será de mim.
Eu disse a ele que, até onde eu sabia, eles mantinham cães vadios lá por três
dias, esperando por seus donos para chamá-los. Depois disso, eles descartaram
os cães como eles achavam adequado.
Ele me encarou em silêncio por um momento, depois disse: — Boa noite.
Depois disso, ouvi-o andando de um lado para o outro no quarto por um bom
tempo. Então sua cama rangeu. Através da parede, veio-me um pequeno som de
chiado, e imaginei que ele estivesse chorando. Por alguma razão, não sei qual,
comecei a pensar em minha mãe. Mas eu tive que acordar cedo no dia seguinte;
Então, como eu não estava com fome, eu fiquei sem jantar e fui direto para a
cama.
V
Raymond me ligou no escritório. Ele disse que um amigo dele — a quem
ele havia falado sobre mim — me convidou para passar o próximo domingo em
seu pequeno bangalô à beira-mar nos arredores de Argel. Eu disse a ele que
ficaria encantado; só que eu tinha prometido passar o domingo com uma garota.
Raymond respondeu prontamente que ela também poderia ir. Na verdade, a
esposa de seu amigo ficaria muito satisfeita em não ser a única mulher em um
grupo de homens.
Eu queria desligar imediatamente, pois meu empregador não aprova o uso
do telefone do escritório para chamadas particulares. Mas Raymond me pediu
para segurar; ele tinha outra coisa para me dizer, e foi por isso que ele me ligou,
embora ele pudesse ter esperado até a noite para fazer o convite.
"É assim", disse ele. "Fui seguido a manhã toda por alguns árabes. Um
deles é o irmão daquela garota com quem eu briguei. Se você o vir perto de casa
quando voltar, me avise.
Eu prometi fazer isso.
Só então meu patrão me chamou. Por um momento me senti
desconfortável, pois esperava que ele me dissesse para continuar meu trabalho e
não perder tempo conversando com amigos pelo telefone. No entanto, não foi
nada disso. Ele queria discutir um projeto que ele tinha em vista, embora até
agora ele não tenha tomado nenhuma decisão. Era para abrir uma filial em Paris,
para poder lidar com as grandes empresas no local, sem atrasos postais, e ele
queria saber se eu gostaria de um posto lá.
"Você é um jovem", ele disse, "e tenho certeza que você gostaria de morar
em Paris. E, claro, você poderia viajar pela França por alguns meses no ano.”
Eu disse a ele que estava preparado para ir; mas realmente eu não me
importava muito de um jeito ou de outro.
Ele então perguntou se uma "mudança de vida", como ele chamava, não me
atraía, e eu respondi que nunca se muda o modo de vida; uma vida era tão boa
quanto outra, e a minha atual me serviu muito bem.
Com isso, ele pareceu bastante magoado e disse-me que eu sempre era
desentusiasmado, e que não tinha ambição — um defeito grave, em sua mente,
quando se tratava de negócios
Voltei ao meu trabalho. Eu preferia não irritá-lo, mas não via razão para
"mudar minha vida". Em geral, não era desagradável. Como estudante, tive
muita ambição do tipo que ele queria dizer. Mas, quando tive que abandonar
meus estudos, logo percebi que tudo aquilo era bem fútil.
Marie veio naquela noite e perguntou se eu me casaria com ela. Eu disse
que não me importaria; se ela estivesse interessada, nos casaríamos.
Então ela me perguntou de novo se eu a amava. Eu respondi, tanto quanto
antes, que a pergunta dela não fazia sentido ou quase nenhum — mas eu supus
que não.
"Se é assim que você se sente", ela disse, "por que se casar comigo?"
Expliquei que não tinha importância, mas, se isso lhe desse prazer,
poderíamos nos casar imediatamente. Eu mostrei que, de qualquer forma, a
sugestão veio dela; Quanto a mim, eu simplesmente disse: "Sim".
Então ela disse que o casamento era um assunto sério.
Ao que eu respondi: "Não."
Ela ficou em silêncio depois disso, olhando para mim de uma maneira
curiosa. Então ela perguntou:
"Suponha que outra garota tenha lhe pedido para se casar com ela — quero
dizer, uma garota que você gostasse da mesma forma que você gosta de mim —
você teria dito 'Sim' para ela também?"
"Naturalmente."
Então ela disse que se perguntava se realmente me amava ou não. Eu, claro,
não poderia esclarecê-la quanto a isso. E, depois de outro silêncio, ela murmurou
algo sobre eu ser "um sujeito estranho". "E eu diria que é por isso que eu te
amo", ela acrescentou. "Mas talvez seja por isso que um dia eu vou odiar você."
Eu não tinha nada a dizer, então não falei nada.
Ela pensou um pouco, depois começou a sorrir e, tomando o meu braço,
repetiu que estava falando seriamente; ela realmente queria se casar comigo.
"Tudo bem", eu respondi. "Nós nos casaremos quando você quiser." Então
mencionei a proposta feita pelo meu empregador, e Marie disse que adoraria ir a
Paris.
Quando eu disse a ela que eu morei em Paris por um tempo, ela me
perguntou como era.
“Um tipo sujo de cidade, na minha opinião. Muitos pombos e pátios
escuros. E as pessoas têm rostos brancos e desbotados.”
Depois fomos dar uma volta pelas ruas principais da cidade. As mulheres
eram bonitas e eu perguntei a Marie se ela também notara isso. Ela disse: "Sim",
ela entendeu o que eu quis dizer. Depois disso, não dissemos nada por alguns
minutos. No entanto, como eu não queria que ela me deixasse, sugeri que
fôssemos jantar juntos no Céleste. Ela adoraria jantar comigo, ela disse, só que
ela tinha um compromisso para a noite. Estávamos perto da minha casa e eu
disse: “Au revoir, então”.
Ela me olhou nos olhos.
"Você não quer saber o que vou fazer esta noite?"
Eu queria saber, mas eu não tinha pensado em perguntar a ela, e imaginei
que ela estivesse fazendo uma queixa. Devo ter parecido embaraçado, pois de
repente ela começou a rir e se inclinou para mim, fazendo beicinho para um
beijo.
Eu fui sozinho para o Céleste. Quando comecei a jantar, uma mulherzinha
de aparência estranha entrou e perguntou se poderia sentar-se à minha mesa.
Claro que ela podia. Ela tinha um rosto gordinho parecido com uma maçã
madura, olhos brilhantes, e movia-se de um jeito curiosamente brusco, como se
estivesse em fios de marioneta. Depois de tirar a jaqueta justa, sentou-se e
começou a estudar a nota com uma espécie de atenção extasiada. Então ela
chamou Céleste e fez o pedido do cardápio, muito rápida, mas bastante distinta;
Ninguém perdeu uma palavra. Enquanto aguardava os aperitivos, ela abriu a
bolsa, tirou um pedaço de papel e um lápis e anotou a conta antecipadamente.
Mergulhando na bolsa de novo, ela pegou uma bolsa e tirou a soma exata, além
de uma pequena gorjeta, e colocou-a no pano à sua frente.
Pouco tempo depois, o garçom trouxe os aperitivos e ela começou a devorá-
los vorazmente. Enquanto aguardava o próximo, ela pegou outro lápis, desta vez
azul, da bolsa e uma revista de cronogramas da rádio para a semana seguinte, e
começou a fazer tiques contra quase todos os itens dos programas diários. Havia
uma dúzia de páginas na revista, e ela continuou estudando-as de perto durante a
refeição. Quando terminei o meu jantar, ela ainda estava assinalando itens com a
mesma atenção meticulosa. Então ela se levantou, vestiu o casaco novamente
com os mesmos gestos abruptos e parecidos com robôs, e saiu rapidamente do
restaurante.
Não tendo nada melhor para fazer, eu a segui por uma curta distância.
Mantendo-se na calçada da calçada, ela andou em frente, nunca desviando ou
olhando para trás, e foi extraordinário o quão rápido ela andava, considerando
sua pequenez. Na verdade, o ritmo era demais para mim, e logo a perdi de vista e
voltei para casa. Por um momento, o "pequeno robô" (como eu pensava nela) me
impressionou muito, mas logo me esqueci dela.
Quando estava chegando à minha porta, encontrei o velho Salamano. Pedi-
lhe para entrar no meu quarto e ele me contou que seu cachorro estava
definitivamente perdido. Ele tinha ido à delegacia para perguntar, mas não estava
lá, e a equipe disse a ele que provavelmente tinha sido atropelado. Quando ele
perguntou se havia alguma investigador na delegacia, eles disseram que a
polícia tinha coisas mais importantes para cuidar do que manter registros de cães
vadios atropelados nas ruas. Eu sugeri que ele deveria ter outro cachorro, mas,
sensatamente, ele me disse que já estava acostumado com este, e não seria a
mesma coisa.
Eu estava deitado na minha cama, com as pernas para cima, e Salamano
em uma cadeira ao lado da mesa, de frente para mim, com as mãos espalmadas
nos joelhos. Ele havia mantido o chapéu de feltro batido e estava murmurando
atrás do bigode amarelado. Eu o achei bastante chato, mas não tinha nada para
fazer e não me sentia sonolento. Então, para continuar a conversa, fiz algumas
perguntas sobre o cachorro — quanto tempo ele o tinha e assim por diante. Ele
me disse que o tinha conseguido logo após a morte de sua esposa. Ele se casou
um pouco tarde na vida. Quando jovem, ele queria subir ao palco; durante seu
serviço militar, ele muitas vezes tocava nos teatros regimentais e interpretava
muito bem, assim todos disseram. No entanto, finalmente, ele conseguiu um
emprego na ferrovia e não se arrependeu, pois agora tinha uma pequeno salário.
Ele e sua esposa nunca se deram muito bem, mas se acostumaram um com o
outro e, quando ela morreu, ele se sentiu solitário. Um dos seus companheiros de
trabalho, cuja cadela tinha acabado de ter filhotes, ofereceu-lhe um, e ele o
aceitou como acompanhante. Ele teve que alimentá-lo na mamadeira no começo.
Mas, como a vida de um cachorro é mais curta que a de um homem, eles
envelheceram juntos, por assim dizer.
"Ele era um bruto rabugento", disse Salamano. "De vez em quando,
tínhamos algumas briguinhas, ele e eu. Mas ele era um bom vira-lata de qualquer
forma."
Eu disse que ele foi bem alimentado, e isso evidentemente agradou ao
velho.
"Ah, mas você deveria tê-lo visto antes de sua doença!", Disse ele. “Ele
tinha uma pelagem maravilhosa; Na verdade, esse era o seu melhor atributo. Eu
tentei curá-lo; Todas as noites mortais, depois que ele teve aquela doença de
pele, eu esfreguei uma pomada. Mas o problema real dele era a velhice, e não há
cura para isso.
Só então eu bocejei, e o velho disse que seria melhor ele ir. Eu disse a ele
que poderia ficar e que lamentava o que havia acontecido com o seu cachorro.
Ele me agradeceu e mencionou que minha mãe gostava muito do cachorro. Ele
se referia a ela como "sua pobre mãe" e temia que eu sentisse terrivelmente sua
morte. Quando eu não disse nada, ele acrescentou apressadamente e com um ar
bastante envergonhado que algumas das pessoas na rua disseram coisas
desagradáveis sobre mim porque eu mandei minha mãe para o Lar. Mas ele, é
claro, sabia melhor; ele sabia o quanto eu sempre fui dedicado à minha mãe.
Eu respondi — por que, eu ainda não sei — que me surpreendeu saber que
eu tinha produzido uma impressão tão ruim. Como eu não podia me dar ao luxo
de mantê-la aqui, parecia a coisa mais óbvia a ser feita, mandá-la para uma casa
de idosos. “De qualquer forma”, acrescentei, “durante anos ela nunca teve algo
para me dizer, e pude ver que ela estava deprimida, sem ninguém para
conversar.”
"Sim", disse ele, "e em uma abrigo se faz amigos, de qualquer forma".
Levantou-se, dizendo que já era hora de ele ir para a cama e acrescentou
que a vida seria um problema para ele, sob as novas condições. Pela primeira vez
desde que eu o conheci, ele estendeu a mão para mim — bastante timidamente,
pensei — e pude sentir os calos em sua pele. Assim que ele estava saindo pela
porta, ele se virou e, sorrindo um pouco, disse:
"Espero que os cachorros não vão latir novamente hoje à noite. Eu sempre
penso que é o meu que eu ouço...”
VI
Foi um esforço acordar naquela manhã de domingo; Marie teve que sacudir
meus ombros e gritar meu nome. Como queríamos entrar na água cedo, não nos
preocupamos com o café da manhã. Minha cabeça doía um pouco e meu
primeiro cigarro tinha um gosto amargo. Marie me disse que eu parecia um
enlutado em um funeral e certamente me sentia muito monótono. Ela estava
usando um vestido branco e tinha o cabelo solto. Eu disse a ela que ela parecia
muito encantadora e ela riu alegremente.
Quando saímos, batemos na porta de Raymond e ele gritou que estaria
conosco em um instante. Nós descemos para a calçada, por causa de eu estar
acostumado com a escuridão do quarto, o brilho do sol da manhã me atingiu nos
olhos como um punho cerrado.
Marie, no entanto, estava quase dançando de prazer e repetia: "Que dia
maravilhoso!" Depois de alguns minutos, estava me sentindo melhor e percebi
que estava com fome. Mencionei isso para Marie, mas ela não prestou atenção.
Ela estava carregando uma bolsa à prova d'água na qual ela havia guardado
nosso kit de banho e uma toalha. Logo ouvimos Raymond fechando a porta. Ele
vestia calça azul, camisa branca de mangas curtas e chapéu de palha. Notei que
seus antebraços eram bastante peludos, mas a pele estava muito branca por
baixo. O chapéu de palha fez Marie rir. Pessoalmente, eu fiquei um pouco
envergonhado com a sua roupa. Ele parecia em alto astral e estava assobiando
quando desceu as escadas. Ele me cumprimentou com "Olá, meu velho!" E se
dirigiu a Marie como "Mademoiselle".
Na noite anterior, visitamos a delegacia, onde eu dei provas para Raymond
— sobre a garota ter sido falsa para ele. Então eles o soltaram com um aviso.
Eles não verificaram minha declaração.
Após algumas conversas na porta, decidimos pegar o ônibus. A praia estava
a uma curta distância, mas quanto mais cedo chegamos lá, melhor. Assim que
nós estávamos começando a ir para o ponto de ônibus, Raymond tocou no meu
ombro e me disse para olhar do outro lado da rua. Eu vi alguns árabes
descansando contra a janela da tabacaria. Eles estavam nos olhando
silenciosamente, de maneira especial que essas pessoas têm — como se
fôssemos blocos de pedra ou árvores mortas. Raymond sussurrou que o segundo
árabe da esquerda era "o homem", e eu notei que Raymond parecia bastante
preocupado. No entanto, ele me assegurou que tudo aquilo era aquela fama de
história antiga. Marie, que não compreendeu seus comentários, perguntou: "O
que é?"
Expliquei que aqueles árabes do outro lado tinham rancor contra Raymond.
Ela insistiu em apressarmos os passos. Então Raymond riu e endireitou os
ombros. A jovem estava certa, ele disse. Não havia sentido em ficar por aqui. No
meio do caminho até o ponto de ônibus, ele olhou por cima do ombro e disse que
os árabes não estavam seguindo. Eu também olhei para trás. Eles estavam
exatamente como antes, olhando da mesma maneira vaga para o local onde
estávamos.
Quando estávamos no ônibus, Raymond, que agora parecia bem à vontade,
continuava fazendo piadas para divertir Marie. Eu podia ver que ele estava
atraído por ela, mas ela mal falava uma palavra com ele. De vez em quando ela
olhava para mim e sorria.
Nós paramos fora de Argel. A praia não ficava longe do ponto de ônibus;
bastava atravessar um morrinho, uma espécie de planalto, que tem vista para o
mar e descer abruptamente até as areias. O chão estava coberto de pedrinhas
amarelas e lírios selvagens, que se mostravam brancos como a neve contra o azul
do céu, com um brilho metálico e duro que ficava em dias muito quentes. Marie
divertiu-se esfregando a bolsa contra as flores e enviando as pétalas em todas as
direções. Depois andamos entre duas fileiras de casinhas com varandas de
madeira cobertas por palhas verdes e brancas. Algumas delas estavam meio
escondidas em tufos de tamargueira; outras se mostravam rígidas no planalto
pedregoso. Antes de chegarmos ao fim, o mar estava à vista; o leito era liso
como um espelho e, à distância, uma grande península que se projetava sobre o
reflexo negro. Através do vento veio o zumbido fraco de um motor e vimos um
barco de pesca muito longe, deslizando quase imperceptivelmente com uma
suavidade deslumbrante.
Marie pegou algumas pedras azuladas. Descendo o caminho íngreme que
leva ao mar, vimos alguns banhistas já nas areias.
O amigo de Raymond era dono de um pequeno bangalô de madeira no final
da praia. O fundo repousava contra o penhasco, enquanto a frente ficava sobre
um amontanhado, que a água já estava alcançando. Raymond nos apresentou a
seu amigo, cujo nome era Masson. Ele era alto, de ombros largos e corpulento;
sua esposa era uma mulher gordinha e alegre que falava com um sotaque
parisiense.
Masson prontamente nos disse para nos sentirmos em casa. Ele tinha saído
para pescar logo pela manhã,e haveria peixe frito no almoço, disse ele.
Parabenizei-o por seu pequeno bangalô e ele disse que sempre passava sua
semana e feriados aqui. "Com a patroa, sem precisar dizer", acrescentou. Olhei
para ela e percebi que ela e Marie pareciam estar se dando bem; rindo e
conversando. Pela primeira vez, talvez, considerei seriamente a possibilidade de
me casar com Marie.
Masson queria muito nadar, mas sua mulher e Raymond não estavam
dispostos a acompanhá-lo. Então apenas nós três, Marie, Masson e eu, descemos
à praia. Marie prontamente mergulhou, mas eu e Masson esperamos um pouco.
Ele era bastante lento em falar e tinha, eu percebi, o hábito de dizer "e o que
mais" entre suas frases — mesmo quando outra pessoas não acrescentava nada.
Falando de Marie, ele disse: "Ela é uma garota muito bonita, e o que mais,
charmosa".
Mas logo deixei de prestar atenção a essa mania dele; Eu estava me
aquecendo à luz do sol, o que, percebi, me fazia sentir muito melhor. A areia
começava a subir e, embora eu estivesse ansioso por um mergulho, adiei por
mais um ou dois minutos. Por fim, eu disse a Masson: “Vamos entrar agora?” E
mergulhei. Masson entrou cautelosamente e só começou a nadar quando estava
com água a sua altura. Ele nadou dando uma braçada por vez e fez um lento
progresso, então eu o deixei para trás e alcancei Marie. A água estava fria e me
senti melhor por isso. Nadamos um longo caminho, Marie e eu, lado a lado, e foi
agradável sentir como nossos movimentos combinavam, os dela e os meus, e
como estávamos ambos no mesmo clima, aproveitando cada momento.
Assim que saímos a céu aberto, deitamos de costas e, enquanto olhava para
o céu, podia sentir o sol desenhando uma camada água salgada em meus lábios e
bochechas. Vimos Masson nadar de volta à praia e cair na areia sob o sol. Ao
longe, ele parecia enorme, como uma baleia encalhada. Então Marie pediu para
que nadássemos juntos. Ela foi em frente e eu coloquei meus braços em volta de
sua cintura, por trás, e enquanto ela me puxava para frente com os braços, eu
chutava para trás para facilitar.
Aquele som de pequenos respingos tinha estado nos meus ouvidos por tanto
tempo que comecei a sentir que tinha o suficiente disso. Então soltei Marie e
voltei em um ritmo calmo, respirando longa e profundamente. Quando cheguei a
praia, estiquei-me de barriga para baixo ao lado de Masson, descansando o rosto
na areia. Eu disse a ele se "estava tudo bem" aqui, e ele concordou. Logo Marie
voltou. Levantei a cabeça para vê-la se aproximar. Ela estava brilhando com
salmoura e segurando o cabelo para trás. Então ela se deitou ao meu lado, e com
o calor combinado de nossos corpos e do sol, eu me senti sonolento.
Depois de algum tempo, Marie cutucou meu braço e disse que Masson
havia ido para seu bangalô; devia estar quase na hora do almoço. Eu me levantei
imediatamente, como eu estava me sentindo com fome, mas Marie me disse que
eu não a beijei desde o início da manhã. Foi assim, embora eu quisesse, várias
vezes. "Vamos voltar para a água", disse ela, e corremos para o mar e nos
deitamos entre as ondas por um momento. Então nadamos algumas braçadas e,
quando estávamos quase nos afundando, ela me lançou os braços e me abraçou.
Senti suas pernas entrelaçadas nas minhas e meus sentidos formigaram.
Quando voltamos, Masson estava nos degraus de seu bangalô, gritando para
que viéssemos. Eu disse a ele que estava faminto, e ele prontamente se virou
para a esposa e disse que tinha gostado muito de mim. O pão estava excelente, e
eu tive um peixe todo para mim. Depois vieram alguns bifes e batatas fritas.
Nenhum de nós falou enquanto comia. Masson bebeu muito vinho e continuou a
reabastecer meu copo no momento em que estava vazio. No momento em que o
café foi entregue, eu estava me sentindo um pouco confuso e comecei a fumar
um cigarro atrás do outro. Masson, Raymond e eu discutimos um plano de
passar todo o mês de agosto juntos na praia, dividindo as despesas.
De repente, Marie exclamou: “Posso dizer uma coisa? Você sabe que horas
são? São apenas onze e meia!
Ficamos todos surpresos com isso, e Masson comentou que tínhamos
almoçado muito cedo, mas na verdade o almoço era um banquete móvel, você
fazia quando se sentia com fome. Marie estava rindo, eu não sei porque. Eu
suspeito que ela tenha bebido demais.
Então Masson perguntou se eu gostaria de ir com ele para um passeio na
praia.
"Minha esposa sempre tira uma soneca depois do almoço", disse ele.
"Pessoalmente, acho que não combina comigo; o que eu preciso é de uma curta
caminhada. Eu estou sempre dizendo a ela que é muito melhor para a saúde.
Mas, claro, ela tem direito a fazer o que quer.”
Marie propôs ficar e ajudar na lavagem de pratos. Masson sorriu e disse
que, nesse caso, a primeira coisa era tirar os homens do caminho. Então saímos
juntos, nós três.
O sol estava quase lá no alto e o brilho da água queimava os olhos. A praia
estava bastante deserta agora. Podia-se ouvir um leve tilintar de facas, garfos e
louças nos barracos e bangalôs ao longo da costa. O calor subia das rochas e mal
dava para respirar.
No começo, Raymond e Masson conversaram sobre coisas e pessoas que eu
não conhecia. Eu entendi que eles já se conheciam há algum tempo e até
moraram juntos. Nós descemos até a beira da água e caminhamos ao longo dela;
de vez em quando uma onda mais longa molhava nossos sapatos de passeio. Eu
não estava pensando em nada, porque toda aquela luz do sol batendo na minha
cabeça nua me fez sentir meio adormecido.
Só então Raymond disse algo para Masson que eu não entendi direito. Mas
no mesmo instante notei dois árabes de macacão azul bem longe na praia, vindo
em nossa direção. Eu olhei para Raymond e ele assentiu, dizendo: “É ele”.
Continuamos andando. Masson se perguntou como eles conseguiram nos achar
aqui. Minha impressão era de que tinham nos visto pegar o ônibus e notado a
bolsa de banho de Marie; mas eu não falei nada.
Embora os árabes andassem bem devagar, eles já estavam muito mais
próximos. Nós não mudamos o nosso ritmo, mas o Raymond disse:
"Ouça! Se houver uma briga, você, Masson, enfrenta o segundo. Vou atacar
o sujeito que está me procurando. E você, Meursault, fica de prontidão para
ajudar se surgir outro, e deitá-lo.
Eu disse: "Certo", e Masson colocou as mãos nos bolsos.
A areia estava tão quente quanto o fogo, e eu poderia jurar que estava
brilhando vermelho. A distância entre nós e os árabes diminuía constantemente.
Quando estávamos a poucos passos de distância, os árabes pararam. Masson e eu
diminuímos a velocidade, enquanto Raymond foi em direção ao homem. Eu não
pude ouvir o que ele disse, mas eu vi o nativo abaixando a cabeça, como se fosse
bater no peito dele. Raymond atacou prontamente e gritou para Masson que
ajudasse. Masson foi até o homem que ele estava marcando e o golpeou duas
vezes com todas as suas forças. O sujeito caiu na água e ficou lá por alguns
segundos com bolhas subindo à superfície em volta da cabeça. Enquanto isso,
Raymond estava batendo no outro homem, cujo rosto estava cheio de sangue.
Ele olhou para mim por cima do ombro e gritou:
“Só assiste! Eu não terminei com ele ainda!”
"Cuidado!" Eu gritei. "Ele tem uma faca."
Eu falei tarde demais. O homem tinha cortado o braço de Raymond e sua
boca também.
Masson saltou para frente. O outro árabe levantou-se da água e colocou-se
atrás do sujeito com a faca. Nós não nos atrevemos a nos mover. Os dois nativos
recuaram devagar, mantendo-nos afastados com a ajuda da faca e sem tirar os
olhos de nós. Quando estavam a uma distância segura, viraram-se e deram os
calcanhares. Ficamos parados, com a luz do sol batendo em nós. O sangue
escorria do braço ferido de Raymond e ele apertava o ferimento com tanta força
acima do cotovelo.
Masson disse que havia um médico que sempre passava os domingos aqui,
e Raymond disse: “Ótimo. Vamos até ele imediatamente. Ele mal conseguia
pronunciar as palavras, enquanto o sangue de sua outra ferida fazia bolhas em
sua boca.
Cada um de nós deu-lhe um braço e ajudou-o a voltar para o bangalô.
Quando chegamos lá, ele nos disse que as feridas não eram muito profundas e
ele podia caminhar até onde o médico estava. Marie ficou pálida e Masson
chorava.
Masson e Raymond foram ao médico enquanto eu ficava no bangalô para
explicar as coisas para as mulheres. Eu não gostei muito da tarefa e logo
terminei, então comecei a fumar, olhando para o mar.
Raymond voltou por volta da uma e meia, acompanhado por Masson. Ele
estava com o braço enfaixado e uma tira de esparadrapo no canto da boca. O
médico assegurou que não era nada sério, mas ele estava muito triste. Masson
tentou fazê-lo rir, mas sem sucesso.
Logo, Raymond disse que ia dar um passeio na praia. Perguntei-lhe onde
ele se propunha a ir e ele murmurou algo sobre "querer tomar o ar". Nós —
Masson e eu — dissemos que íamos com ele, mas ele ficou furioso e nos disse
para cuidarmos de nós mesmos. Masson disse que não devíamos insistir, vendo o
estado em que ele estava. No entanto, quando ele saiu, eu o segui.
Era como uma fornalha do lado de fora, com a luz do sol se dividindo em
flocos de fogo na areia e no mar. Nós andamos por um bom tempo, e eu tinha
uma ideia de que Raymond tinha uma ideia fixa de onde ele estava indo; mas
provavelmente eu estava enganado sobre isso.
No final da praia, chegamos a um riacho fazia um canal na areia, depois de
sair de trás de uma pedra grande. Lá encontramos nossos dois árabes novamente,
deitados na areia em seus macacões azuis. Eles pareciam inofensivos o
suficiente, como se não tivessem qualquer malícia, e nenhum dos dois fez
qualquer movimento quando nos aproximamos. O homem que havia cortado
Raymond olhou para ele sem falar. O outro homem soprava uma flauta e extraía
três notas musicais, que ele tocava repetidas vezes, enquanto nos observava do
canto de um olho.
Por um tempo ninguém se mexeu; havia apenas a luz do sol e o silêncio,
exceto pelo tilintar do riacho e aqueles três pequenos sons solitários. Então
Raymond colocou a mão no bolso do revólver, e os árabes ainda não se mexiam.
Notei que o homem que tocava a flauta tinha os dedos dos pés grandes esticados
quase em ângulo reto com os pés.
Ainda mantendo os olhos em seu homem, Raymond me disse: "Devo enfiá-
lo uma?"
Eu pensei rapidamente. Se eu dissesse a ele que não, considerando o humor
em que ele estava, ele poderia muito bem ter um temperamento e usar sua arma.
Então eu disse a primeira coisa que veio na minha cabeça.
"Ele ainda não falou com você. Seria uma covardia atirar nele assim, a
sangue frio.
Mais uma vez, por alguns instantes, não se ouviu nada além do tilintar do
riacho e das notas de flauta que serpenteavam através do ar quente e parado.
"Bem", finalmente Raymond disse, "se é assim que você acha, é melhor eu
dizer algo ofensivo e se ele responder de volta eu vou atirar."
"Certo", eu disse. "Apenas, se ele não pegar a faca, você não tem razão para
atirar." Raymond estava começando a se mexer. O árabe com a flauta continuou
tocando, e os dois assistiram a todos os nossos movimentos.
"Escute", eu disse a Raymond. “Você cuida do colega à direita e me dá seu
revólver. Se o outro começar a causar problemas ou tirar a faca, eu vou atirar.”
O sol brilhou no revólver de Raymond quando ele me entregou. Mas
ninguém havia feito nada ainda; Era como se tudo estivesse se fechando em nós
para que não pudéssemos nos mexer. Nós só podíamos nos observar, nunca
abaixando nossos olhos; o mundo inteiro parecia ter parado naquela pequena
faixa de areia entre a luz do sol e o mar, o silêncio duplo da flauta e do riacho. E
só então passou pela minha cabeça que alguém poderia atirar, ou não atirar — e
chegaria a absolutamente a mesma coisa.
Então, de repente, os árabes desapareceram; eles escorregaram como
lagartos sob o manto da rocha. Então Raymond e eu nos viramos e voltamos
para o bangalô. Ele parecia mais feliz e começou a falar sobre o ônibus para
retornarmos.
Quando chegamos ao bangalô, Raymond prontamente subiu os degraus de
madeira, mas eu parei na parte de baixo. A luz parecia batendo na minha cabeça
e eu não conseguia encarar o esforço necessário para subir os degraus e me fazer
amável para as mulheres. Mas o calor era tão grande que era desconfortável
ficar onde eu estava, sob aquela luz ofuscante que caía do céu. Para ficar, ou para
me mover — era a mesma coisa. Depois de um momento voltei para a praia e
comecei a andar.
Havia o mesmo clarão vermelho até onde os olhos podiam alcançar, e
pequenas ondas estavam lambendo a areia quente em pequenos suspiros.
Enquanto caminhava lentamente em direção às rochas no final da praia, sob o
impacto da luz senti minhas têmporas inchando. Essa luz se pressionava contra
mim, tentando verificar meu progresso. E a cada vez que eu sentia um jato
quente na minha testa, cerrei os dentes e os punhos nos bolsos das calças e
apertei cada nervo para afastar o sol e a confusão que estava se despejando em
mim. Sempre que uma lâmina de luz vívida subia de uma concha ou de um vidro
quebrado na areia, minhas mandíbulas se endureciam. Eu não ia ser vencido e
continuei andando.
A pequena e escura corcova de pedra apareceu bem ao longe na praia.
Estava coberta por um brilho ofuscante de luz e leves borrifos d'água, mas eu
estava mesmo era pensando naquele riacho cristalino e com águas tão amenas,
desejando ouvir novamente o tilintar de água corrente. Para me livrar do clarão,
a visão das mulheres em lágrimas, a tensão e o esforço — e recuperar-me na
sombra perto das rochas junto do silêncio!
Mas quando cheguei mais perto, vi que o árabe de Raymond havia
retornado. Ele estava sozinho desta vez, deitado de costas, com as mãos atrás da
cabeça, o rosto sombreado pela rocha enquanto o sol batia no resto do corpo.
Podia se ver seus macacão fumegando no calor. Fiquei um pouco surpreso;
minha impressão foi de que o incidente tinha sido encerrado e eu não pensei
nisso a caminho das rochas.
Ao me ver, o árabe levantou-se um pouco e levou a mão ao bolso.
Naturalmente, agarrei o revólver de Raymond no bolso do meu casaco. Então o
árabe deixou-se afundar de novo, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava a
alguma distância, pelo menos dez metros, e na maior parte do tempo eu o vi
como uma forma borrada e escura balançando na miragem de calor. Às vezes,
porém, eu tinha vislumbres de seus olhos brilhando entre as pálpebras
semicerradas. O som das ondas era cada vez mais lento, mais débil do que ao
meio-dia. Mas a luz não mudou; estava batendo tão ferozmente como antes na
longa extensão de areia que terminava na rocha. Por duas horas o sol parecia não
ter se movido; uma calma em um mar de aço fundido. No horizonte, um navio a
vapor estava passando; Eu podia apenas distinguir do canto de um olho o
pequeno retalho preto em movimento, enquanto mantive meu olhar fixo no
árabe.
Pareceu-me que tudo que eu tinha que fazer era me virar, ir embora e não
pensar mais sobre isso. Mas toda a praia, pulsando com o calor, estava
pressionando minhas costas. Eu dei alguns passos em direção ao riacho. O árabe
não se mexeu. Afinal, ainda havia alguma distância entre nós. Talvez por causa
da sombra em seu rosto, ele parecia estar rindo de mim.
Eu esperei. O calor estava começando a queimar minhas bochechas; gotas
de suor se juntavam em minhas sobrancelhas. Era apenas o mesmo tipo de calor
que fazia no funeral da minha mãe, e eu tive as mesmas sensações desagradáveis
— especialmente na minha testa, onde todas as veias pareciam estar estourando
através da pele. Eu não aguentei mais e dei outro passo à frente. Eu sabia que era
uma coisa tola de se fazer; Eu não sairia do sol andando um ou mais metros. Mas
eu dei esse passo, apenas um passo, para frente. E então o árabe sacou a faca e
segurou-a na minha direção, em frente à luz do sol.
Um raio de luz refletiu no aço e era como se uma lâmina longa e fina
transpassasse minha testa. No mesmo momento todo o suor que se acumulou em
minhas sobrancelhas caiu sobre minhas pálpebras, cobrindo-as com uma
sensação quente de umidade. Sob um véu de salmoura e lágrimas, meus olhos
estavam cegos; Eu estava consciente apenas dos címbalos do sol batendo no meu
crânio e, menos distintamente, da afiada lâmina de luz que brilhava na faca,
cicatrizando meus cílios e cortando meus olhos.
Então tudo começou a rolar diante dos meus olhos, uma rajada de fogo veio
do mar, enquanto o céu se partiu em dois, de ponta a ponta, e uma grande chama
de fogo desceu pela fenda. Cada nervo do meu corpo era uma mola de aço e meu
aperto se fechou no revólver. O gatilho foi pressionado, senti a parte inferior lisa
da coronha deslizando na palma da minha mão. E assim, com aquele som afiado
e ensurdecedor, tudo começou. Eu sacudi meu suor e o sol. Sabia que tinha
quebrado o equilíbrio do dia, o excepcional silêncio de uma praia onde eu estava
feliz. Atirei mais quatro tiros no corpo inerte, no qual eles alojaram sem deixar
vestígios. E cada tiro sucessivo era como bater quatro vezes na porta da
infelicidade.
PARTE DOIS
I
Fui interrogado várias vezes imediatamente após a minha prisão. Mas todos
eram examinações formais, quanto à minha identidade e assim por diante. No
primeiro deles, que ocorreu na delegacia, ninguém parecia ter muito interesse no
caso. No entanto, uma semana depois, quando fui levado ao magistrado
examinador, percebi que ele me olhava com curiosidade distinta. Como os
outros, ele começou perguntando meu nome, endereço e ocupação, a data e o
local do meu nascimento. Então ele perguntou se eu havia escolhido um
advogado para me defender. Respondi: "Não", não pensei nisso e perguntei se
era realmente necessário que eu tivesse um.
"Por que você pergunta isso?", Ele disse. Respondi que considerava o meu
caso muito simples. Ele sorriu. “Bem, pode parecer para você. Mas temos que
cumprir a lei e, se você não contratar um advogado, o tribunal terá que nomear
um para você.”
Me tomou de surpresa o fato de que as autoridades olhavam para detalhes
desse tipo, e eu lhe disse isso. Ele assentiu e concordou que o Código era uma
dos melhores já elaborados.
No começo eu não o levei muito a sério. A sala em que ele me entrevistou
era muito parecida com uma sala de estar comum, com janelas com cortinas e
uma única lâmpada de pé sobre a mesa. Sua luz caiu na poltrona em que ele me
fez sentar, enquanto seu próprio rosto ficou na sombra.
Eu havia lido descrições de tais cenas em livros e, a princípio, tudo parecia
um jogo. Depois da nossa conversa, no entanto, eu dei uma boa olhada nele. Ele
era um homem alto, com feições limpas, olhos azuis profundos, um grande
bigode grisalho e um abundante cabelo quase branco como a neve, e ele me dava
a impressão de ser muito inteligente e, no geral, bastante simpático. Havia
apenas uma coisa que estragava as outras: sua boca tinha de vez em quando uma
torção bastante feia; mas parecia ser apenas um tipo de tique nervoso. Ao sair,
quase estendi a mão e disse: “Adeus”; bem a tempo, lembrei que tinha matado
um homem.
No dia seguinte, um advogado veio à minha cela; um homem pequeno,
gorducho e jovem, com cabelos negros e lustrosos. Apesar do calor — eu estava
usando uma camisa de manga — ele usava um terno escuro, colarinho duro e
uma gravata bastante vistosa, com largas listras pretas e brancas. Depois de
depositar sua maleta na minha cama, ele se apresentou e acrescentou que tinha
lido o registro do meu caso com o maior cuidado. Sua opinião era que precisaria
de manejo cauteloso, mas havia toda a perspectiva de minha saída, desde que
seguisse seu conselho. Agradeci e ele disse: “Bom. Agora vamos falar sobre
isso.”
Sentado na cama, ele disse que eles estavam investigando minha vida
particular. Eles descobriram que minha mãe morreu recentemente em um lar de
idosos. Consultas foram feitas em Marengo e a polícia informou que eu havia
mostrado "grande insensibilidade" no funeral da minha mãe.
“Você deve entender”, disse o advogado, “que não gosto de ter que
questionar você sobre tal assunto. Mas isso tem muita importância e, a menos
que eu encontre alguma forma de responder à acusação de "insensibilidade",
ficarei incapacitado em conduzir sua defesa. E é aí que você, e só você, pode me
ajudar.
Ele continuou perguntando se eu sentira pesar por aquela “triste ocasião”. A
questão me pareceu estranha; Eu ficaria muito envergonhado se tivesse que
perguntar a alguém uma coisa dessas.
Respondi que, nos últimos anos, perdi o hábito de perceber meus
sentimentos e mal sabia o que responder. Eu poderia sinceramente dizer que
gostava muito de mamãe — mas na verdade isso não significa muito. Todas as
pessoas normais, acrescentei, depois da reflexão, tinham mais ou menos
desejado a morte daqueles que amavam, em algum momento ou outro.
Aqui o advogado me interrompeu, parecendo muito perturbado.
"Você deve prometer-me a não dizer nada desse tipo no julgamento, ou ao
magistrado examinador."
Eu prometi, para satisfazê-lo, mas expliquei que minha condição física em
qualquer momento influenciou meus sentimentos. Por exemplo, no dia em que
assisti ao funeral de mamãe, eu estava exausto e meio acordado. Então, na
verdade, mal me dei conta do que estava acontecendo. De qualquer forma, eu
poderia garantir-lhe uma coisa: que eu preferia que a mãe não tivesse morrido.
O advogado, no entanto, parecia descontente. "Isso não é suficiente", ele
disse secamente.
Depois de pensar um pouco, ele me perguntou se poderia dizer que naquele
dia eu mantive meus sentimentos sob controle.
"Não”, eu disse. "Isso não seria verdade."
Ele me deu um olhar esquisito, como se eu o tivesse revoltado um pouco;
Em seguida, informou-me, em tom quase hostil, que em qualquer caso, o chefe
do Lar e alguns funcionários seriam citados como testemunhas de acusação.
"E isso poderia criar uma reviravolta muito desagradável", concluiu ele.
Quando sugeri que a morte de minha mãe não tinha ligação com a acusação
do meu crime, ele simplesmente respondeu que essa observação mostrava que eu
nunca tinha tido contato com a lei.
Logo depois disso ele saiu, parecendo bastante irritado. Gostaria que ele
tivesse ficado mais tempo e eu pudesse ter explicado que queria sua simpatia,
não que ele fizesse um trabalho melhor em minha defesa, mas, se é que posso
dizer, espontaneamente. Eu pude ver que eu lhe dei nos nervos; ele não podia me
expulsar e, naturalmente, isso o irritava. Uma ou duas vezes tive a ideia de
garantir a ele que eu era igual a todos os demais; uma pessoa muito comum.
Mas, na verdade, isso não teria servido a nenhum grande propósito, e deixei
passar — por preguiça tanto quanto por qualquer outra coisa.
Mais tarde, no mesmo dia, fui levado de novo ao gabinete do magistrado
examinador. Eram duas da tarde e, desta vez, a sala estava inundada de luz —
havia apenas uma fina cortina na janela — e extremamente quente.
Depois de me convidar a sentar, o magistrado me informou em um tom
muito educado que, “devido a circunstâncias imprevistas”, meu advogado não
pôde estar presente. Eu deveria ter o direito, acrescentou, de reservar minhas
respostas às suas perguntas até que meu advogado pudesse comparecer.
Contudo eu respondi que eu poderia responder por mim mesmo. Ele
apertou um sino em sua mesa e um jovem funcionário entrou e sentou-se logo
atrás de mim. Então nós — eu e o magistrado — nos acomodamos em nossas
cadeiras e o interrogatório começou. Ele comentou que eu tinha a reputação de
ser uma pessoa taciturna e egocêntrica, e gostaria de saber o que eu tinha a dizer
sobre isso. Eu respondi:
“Bem, eu raramente tenho muito a dizer. Então, naturalmente, eu fico de
boca fechada.
Ele sorriu como na ocasião anterior e concordou que essa era a melhor das
razões. "Em qualquer caso", acrescentou ele, "tem pouca ou nenhuma
importância".
Depois de um curto silêncio, ele de repente se inclinou para frente, me
olhou nos olhos e disse, levantando um pouco a voz:
"O que realmente me interessa é — você!"
Eu não estava bem certo do que ele queria dizer com isso, então não fiz
nenhum comentário.
"Há várias coisas", continuou ele, "que me intrigam com o seu crime. Tenho
certeza de que você vai me ajudar a entendê-lo.”
Quando eu respondi que realmente era bem simples, ele me pediu para lhe
dar um resumo do que eu fiz naquele dia. De fato, eu já havia contado a ele em
nossa primeira entrevista — de uma forma resumida, é claro — sobre Raymond,
a praia, nossa natação, a briga, depois a praia novamente, e os cinco tiros que eu
disparei. Mas eu repassei tudo de novo, e depois de cada frase ele assentiu.
“Sério?” Quando descrevi o corpo deitado na areia, ele assentiu com mais ênfase
e disse: “Ótimo!” Eu estava cansado de repetir a mesma história; Eu senti como
se nunca tivesse falado tanto em toda a minha vida.
Depois de outro silêncio, ele se levantou e disse que gostaria de me ajudar;
Ele havia se interessado no meu caso e, com a ajuda de Deus, ele faria algo por
mim. Mas, primeiro, ele deve fazer mais algumas perguntas.
Ele começou perguntando sem rodeios se eu amava minha mãe.
"Sim", respondi, "como todo mundo." O escrivão atrás de mim, que estava
digitando em um ritmo constante, deve ter batido nas teclas erradas, quando o
ouvi empurrando o suporte para trás e riscando algo.
Em seguida, sem qualquer conexão lógica aparente, o magistrado fez outra
pergunta.
"Por que você disparou cinco tiros consecutivos?"
Eu pensei um pouco; em seguida, expliquei que eles não eram todos
consecutivos. Eu disparei um no início e os outros quatro depois de um curto
intervalo.
"Por que você fez uma pausa entre o primeiro e o segundo tiro?"
Parecia ver novamente o clarão pairando de novo diante dos meus olhos, o
brilho vermelho da praia e sentindo aqueles jatos de impulso das balas ardente
nas minhas bochechas — e, dessa vez, eu não respondi.
Durante o silêncio que se seguiu, o magistrado continuou a mexer-se,
passando os dedos pelos cabelos, quase se levantando e depois se sentando
novamente. Finalmente, plantando os cotovelos na mesa, ele se inclinou para
mim com uma expressão esquisita.
"Mas por que, por que você continua atirando em um homem prostrado?"
Mais uma vez não encontrei nada para responder.
O magistrado passou a mão pela testa e repetiu num tom ligeiramente
diferente:
"Eu pergunto a você ‘Por quê?’ Eu insisto em que você me conte." Eu ainda
permaneci em silêncio.
De repente ele se levantou, caminhou até um armário de arquivos que
estava de pé contra a parede oposta, abriu uma gaveta e tirou de lá um crucifixo
de prata, que ele estava acenando ao voltar para a mesa.
"Você sabe quem é este?" Sua voz mudou completamente; foi vibrante com
emoção.
"Claro que sim", respondi.
Isso pareceu iniciá-lo; ele começou a falar em um ótimo ritmo. Ele me disse
que acreditava em Deus e que até o pior dos pecadores poderia obter o perdão
dele. Mas primeiro ele deveria se arrepender e tornar-se como uma criancinha,
com um coração simples e confiante, aberto à convicção. Ele estava inclinado
sobre a mesa, brandindo seu crucifixo diante dos meus olhos.
De fato, eu tive grande dificuldade em seguir seus comentários, pois, em
primeiro lugar, o escritório estava tão quente e as moscas voavam e se
acomodavam em minhas bochechas; também porque ele me alarmou. Claro,
percebi que era absurdo me sentir assim, considerando que, afinal de contas, era
eu quem era o criminoso. No entanto, enquanto ele continuava falando, eu fiz o
meu melhor para entender, e percebi que havia apenas um ponto em minha
confissão que precisava ser esclarecido — o fato de eu ter esperado antes de
atirar pela segunda vez. Todo o resto estava, por assim dizer, bem em ordem;
mas isso o confundiu completamente.
Comecei a dizer-lhe que ele estava errado em insistir nisso; o ponto era de
pouca importância. Mas, antes que eu pudesse pronunciar as palavras, ele havia
chegado ao auge e me perguntava com muita sinceridade se eu acreditava em
Deus. Quando eu disse "Não", ele se sentou indignado na cadeira.
Isso era impensável, ele disse; todos os homens crêem em Deus, mesmo
aqueles que o rejeitam. Disso ele tinha absoluta certeza; se alguma vez chegasse
a duvidar disso, sua vida perderia todo o sentido. “Você deseja,” ele perguntou
indignado, “minha vida não ter nenhum significado?” Realmente eu não pude
ver como meus desejos faziam parte disso, e eu disse a ele o mesmo.
Enquanto falava, ele enfiou o crucifixo de novo bem debaixo do meu nariz
e gritou: “Eu, de qualquer forma, sou cristão. E eu peço a Jesus que te perdoe
pelos seus pecados. Meu pobre jovem, como você não pode acreditar que ele
sofreu por sua causa?”
Percebi que seus modos pareciam genuinamente solícitos quando ele dizia:
"Meu pobre jovem" — mas eu estava começando a me encher. A sala estava
ficando cada vez mais quente.
Como costumo fazer quando quero me livrar de alguém cuja conversa me
aborrece, fingi concordar. Em que, para minha surpresa, seu rosto se iluminou.
"Entende! Entende! Você acredita, Não é? E você vai colocar sua confiança
nele, não vai?”
Devo ter discordado e balançando a cabeça, pois ele afundou na cadeira, se
mostrando muito abatido.
Por alguns momentos, houve um silêncio durante o qual o escrivão, que
estivera sempre datilografando, ainda estava escrevendo as últimas frases. Então
o magistrado me olhou atentamente e com bastante tristeza.
"Nunca em toda a minha experiência eu conheci uma alma tão endurecida
como a sua", ele disse em um tom baixo. "Todos os criminosos que vieram antes
de mim até agora choraram quando viram este símbolo do sofrimento de nosso
Senhor."
Eu estava a ponto de responder que era precisamente porque eles eram
criminosos. Mas então eu percebi que eu também estava sob essa descrição. De
alguma forma, foi uma ideia que eu nunca consegui reconciliar.
Para indicar, presumivelmente, que a entrevista havia terminado, o
magistrado se levantou. No mesmo tom cansado, ele me fez uma última
pergunta: Eu me arrependi do que fiz?
Depois de pensar um pouco, eu disse que o que eu sentia era menos
arrependimento do que um tipo de vexação — eu não conseguia encontrar uma
palavra melhor para isso. Mas ele não parecia entender... Isso foi o mais longe
que as coisas aconteceram no questionário daquele dia.
Eu visitei o magistrado muitas vezes mais, mas nessas ocasiões meu
advogado sempre me acompanhava. Os interrogatórios limitaram-se a pedir-me
para explicar minhas declarações anteriores. Ou então o magistrado e meu
advogado discutiram aspectos técnicos. Nesses momentos, eles me davam pouca
atenção e, em qualquer caso, o tom dos exames mudava com o passar do tempo.
O magistrado parecia ter perdido o interesse em mim e chegado a algum tipo de
decisão sobre o meu caso. Ele nunca mais mencionou Deus ou mostrou qualquer
fervor religioso que eu achei tão embaraçoso em nossa primeira entrevista. O
resultado foi que nossas relações se tornaram mais cordiais. Após algumas
perguntas, seguidas de uma troca de comentários com o advogado, o magistrado
encerrou a entrevista. Meu caso foi "seguir seu curso", como ele disse. Às vezes,
também, a conversa era de ordem geral, e o magistrado e o advogado me
incentivavam a participar. Eu comecei a respirar mais livremente. Nenhum dos
dois homens, naqueles tempos, mostrou a menor hostilidade em relação a mim, e
tudo correu tão bem, tão amavelmente, que tive a impressão absurda de ser "um
da família". Posso dizer honestamente que durante os onze meses que esses
exames duraram, fiquei tão acostumado com eles que fiquei quase surpreso por
ter alguma vez desfrutado de algo melhor do que os raros momentos em que o
magistrado, depois de me escoltar até a porta do escritório, me dava tapinhas no
ombro e dizia em tom amistoso: Bem, Sr. Anticristo, isso é tudo até o
momento!” Depois disso eu era entregue aos meus carcereiros.
II
Há algumas coisas das quais nunca gostei de falar. E, algum tempo depois
de eu ter sido enviado para a prisão, decidi que essa fase da minha vida era uma
delas. No entanto, com o passar do tempo, passei a sentir que essa aversão não
tinha justificativa real. Na verdade, naqueles primeiros dias, mal tinha
consciência de estar na prisão; Eu sempre tinha uma vaga esperança de que
alguma coisa acontecesse, alguma surpresa agradável.
Tudo começou após a primeira e única visita de Marie. Desde o dia em que
recebi sua carta dizendo que não a deixariam vir me ver mais, porque ela não era
minha esposa — foi a partir daquele dia que percebi que essa cela era minha
última casa, um beco sem saída, por assim dizer.
No dia da minha prisão, eles me colocaram em uma sala enorme com vários
outros prisioneiros, a maioria árabes. Eles sorriram quando me viram entrar e me
perguntaram o que eu tinha feito. Eu disse a eles que eu tinha matado um árabe e
eles ficaram calados por um tempo. Mas a noite começou a cair e um deles me
explicou como arrumar meu tapete de dormir. Ao enrolar uma das extremidades,
faz-se uma espécie de apoio. A noite toda eu senti insetos rastejando sobre o meu
rosto.
Alguns dias depois, fui colocado em uma cela onde dormi em uma cama de
tábuas presa à parede. O único outro móvel era uma latrina e um lavatório. A
prisão fica em terreno elevado e, através da minha pequena janela, vislumbrei o
mar. Um dia, quando estava pendurado nas barras, forçando os olhos para a luz
do sol tocando as ondas, um carcereiro entrou e disse que eu tinha uma visita. Eu
pensei que deveria ser Marie, e estava certo.
Para ir ao quarto de visitas, fui conduzido por um corredor, depois por um
lance de escadas e depois por outro corredor. Era uma sala muito grande,
iluminada por uma grande janela de proa, e dividida em três compartimentos por
grades de ferro altas, correndo transversalmente. Entre as duas grades havia um
espaço de cerca de nove metros, que separava os visitantes dos prisioneiros. Fui
levado a um ponto exatamente oposto a Marie, que usava o vestido listrado. Do
meu lado havia cerca de uma dúzia de outros prisioneiros, os árabes em sua
maior parte. Do lado de Marie estavam principalmente mulheres mouriscas. Ela
estava entalada entre uma senhora pequena e de lábios apertados e uma matrona
gorda, sem chapéu, que falava alto e gesticulava o tempo todo. Por causa da
distância entre os visitantes e os prisioneiros, descobri que também precisava
levantar a voz.
Quando entrei na sala, o emaranhado de vozes ecoando nas paredes nuas e a
luz do sol entrando, inundando tudo em um clarão branco, me fez sentir muito
tonto. Depois da relativa escuridão e do silêncio da minha cela, levei alguns
momentos para me acostumar com esse ambiente. Depois de um tempo, no
entanto, cheguei a ver cada rosto claramente, iluminado como se um holofote
tocasse neles.
Eu notei um carcereiro sentado em cada extremidade da área. Os
prisioneiros nativos e suas esposas do outro lado estavam agachados em frente
um do outro. Eles não levantaram a voz e, apesar do barulho, conseguiram
conversar quase em sussurros. Esse murmúrio de vozes fazia uma espécie de
acompanhamento das conversas que se passavam acima de suas cabeças. Eu fiz
um balanço de tudo isso muito rapidamente e dei um passo adiante em direção a
Marie. Ela estava pressionando o rosto marrom bronzeado contra as barras e
sorrindo o mais forte que podia. Eu achei ela muito bonita, mas de alguma forma
não consegui dizer isso a ela.
"Bem", ela perguntou, lançando sua voz muito alta. “E isso? Você está bem,
tem tudo o que você quer?
"Ah sim. Eu tenho tudo o que eu quero.”
Ficamos em silêncio por alguns momentos; Marie continuou sorrindo. A
mulher gorda estava berrando com o prisioneiro ao meu lado, presumivelmente
seu marido, um homem alto, loiro e bem aparentado.
"Jeanne se recusou a tê-lo", ela gritou.
"Isso é muito ruim", respondeu o homem.
“Sim, e eu disse a ela que você o levaria de volta assim que saísse; mas ela
não quis saber sobre isso.”
Marie gritou através da grade que Raymond me enviou seus melhores
desejos, e eu disse: "Obrigado". Mas minha voz foi abafada pela do meu vizinho,
perguntando "Ele está bem?" A mulher gorda deu uma risada. "Ele nunca esteve
melhor.”
Enquanto isso, o prisioneiro à minha esquerda, um jovem de mãos finas e
femininas, não dizia uma palavra. Seus olhos, notei, estavam fixos na velhinha
oposta a ele. Mas eu tive que parar de olhar para eles enquanto Marie gritava
para mim que não deviamos perder a esperança.
"Certamente não", respondi. Meu olhar caiu sobre os ombros dela, e eu tive
um súbito desejo de apertá-los, através do vestido fino. Sua textura sedosa me
fascinou, e tive a sensação de que a esperança de que ela falava se centrava
nisso, de alguma forma. Imagino que algo do mesmo tipo estivesse na mente de
Marie, pois ela continuou sorrindo, olhando diretamente para mim.
"Tudo vai dar certo, você verá, e então nos casaremos."
Tudo o que pude ver agora era o clarão branco de seus dentes e os pequenos
franzidos em volta dos olhos. Eu respondi: "Você realmente acha isso?" apenas
porque senti que era para mim responder alguma coisa de volta.
Ela começou a falar muito rápido na mesma voz estridente.
"Sim, você será absolvido e voltaremos a tomar banho aos domingos."
A mulher ao meu lado ainda gritava, dizendo ao marido que deixara uma
cesta para ele no escritório da prisão. Ela deu uma lista das coisas que tinha
trazido e disse para ele checá-las com cuidado, pois algumas custaram bastante.
O jovem do outro lado e a mãe ainda olhavam tristes um para o outro, e o
murmúrio dos árabes continuou abaixo de nós. A luz lá fora parecia estar
subindo contra a janela.
Comecei a me sentir um pouco enjoado e desejei poder ir embora. A voz
estridente ao meu lado estava machucando os meus ouvidos. Mas, por outro
lado, queria ter o máximo que pudesse da companhia de Marie. Eu não tenho
ideia de quanto tempo passou. Lembro-me de Marie me descrever seu trabalho,
com aquele sorriso sempre em seu rosto. Não houve um momento de pausa no
barulho — gritos, conversas e sempre aquele tom murmurante. O único oásis de
silêncio foi feito pelo jovem e pela velha olhando nos olhos um do outro.
Então, um por um, os árabes foram levados embora; a sala foi ficando mais
silenciosa a partir do momento em que o primeiro árabe foi levado A velhinha
apertou-se contra as barras e no mesmo instante um carcereiro bateu no ombro
do filho. Ele disse: "Au revoir, mãe", e, deslizando a mão entre as barras, ela
deu-lhe um pequeno aperto de mão.
Assim que ela se foi, um homem de chapéu na mão tomou o seu lugar. Um
prisioneiro foi conduzido até o lugar vazio ao meu lado, e os dois começaram
uma rápida troca de comentários — não alto, no entanto, quando a sala se tornou
relativamente quieta. Alguém veio e chamou o homem à minha direita, e sua
esposa gritou com ele — ela não pareceu perceber que não era mais necessário
gritar — “Agora, lembre-se de cuidar de si mesmo, querida, e não faça nada sem
pensar!"
Minha vez veio em seguida. Marie me deu um beijo. Eu olhei para trás
enquanto me afastava. Ela não se moveu; seu rosto ainda estava pressionado
contra as grades, seus lábios ainda separados naquele sorriso tenso e torcido.
Logo depois disso, recebi uma carta dela. E foi então que as coisas de que
nunca gostei de falar começaram. Não que elas fossem particularmente terríveis;
Eu não quero exagerar e sofri menos que os outros. Ainda assim, havia uma
coisa naqueles primeiros dias que era realmente penosa: meu hábito de pensar
como um homem livre. Por exemplo, de repente eu seria tomado pelo desejo de
ir à praia nadar. E meramente ter imaginado o som de ondulações aos meus pés,
a sensação suave da água em meu corpo enquanto eu me debatia, e a
maravilhosa sensação de alívio que dava trouxe à tona ainda mais cruelmente a
estreiteza de minha cela.
Ainda assim, essa fase durou apenas alguns meses. Depois disso, tive
pensamentos de prisioneiro. Esperei o banho de sol diário no pátio ou a visita do
meu advogado. Quanto ao resto do tempo, eu lidei muito bem, realmente. Eu
costumeiramente pensava que tinha sido obrigado a viver no tronco de uma
árvore morta, sem nada para fazer além de olhar para o pedaço de céu que estava
bem acima, eu me acostumei com isso gradativamente. Eu aprendi a observar o
revoar dos pássaros ou as nuvens à deriva, também viera observar as gravatas
estranhas do meu advogado e, assim como antes, esperava pacientemente até o
domingo para ver Marie. Bem, aqui, de qualquer forma, eu não estava preso em
um tronco de árvore oco. Havia outras pessoas no mundo em situação pior do
que a minha. Lembrei-me que essa era a ideia favorita de Mamãe — ela estava
sempre falando isso — que, com o tempo, as pessoas se acostumam com
qualquer coisa.
No entanto, eu não levava as coisas tão a sério. Aqueles primeiros meses
estava tentando, claro; mas o próprio esforço que eu tive que fazer me ajudou a
passar o tempo. Por exemplo, eu estava sempre atormentado pelo desejo de ter
uma mulher — o que era natural o suficiente, considerando a minha idade. Eu
nunca pensei em Marie especialmente. Eu estava obcecado em pensar sobre
mulheres, de todas as que eu havia beijado, todas as formas em que eu as amava;
tanto que a cela ficou lotada de rostos, fantasmas das minhas velhas paixões.
Isso me inquietou, sem dúvida; mas, pelo menos, serviu para matar o tempo.
Aos poucos me tornei bastante amigável com o carcereiro-chefe, que fazia
turnos como ajudante da cozinha durante as refeições. Foi ele quem começou a
falar sobre as mulheres.
"É sobre isso que os homens mais reclamam aqui,” ele me disse.
Eu falei a ele que também sentia falta e que isso era um tratamento injusto.
"Mas esse é o ponto principal", disse ele; "É por isso que vocês são
mantidos na prisão."
"Eu não entendo."
"Liberdade", disse ele, "significa isso. Você está sendo privado de sua
liberdade.”
Nunca tinha pensado sobre isso. Eu concordei. "Isso é verdade", eu disse.
"Caso contrário, não seria um castigo."
O carcereiro assentiu. "Sim, você entende essas coisas. Os outros não.
Mesmo assim, esses caras encontram uma saída; eles acabam fazendo isso
sozinhos.” Com essa observação, o carcereiro deixou minha cela.
A falta de cigarros também foi uma provação. Quando fui levado para a
prisão, eles levaram meu cinto, meus cadarços e tudo que estava nos meus
bolsos, inclusive meus cigarros. Quando recebi uma cela só para mim, pedi para
devolverem, de toda forma, os cigarros. Fumar era proibido, eles me
informaram. Isso, talvez, foi o que mais me abalou; na verdade, sofri muito
durante os primeiros dias. Eu até tirei lascas da minha cama de tábuas e as
chupei. Durante todo o dia senti-me fraco e irritado. Eu entendi porque eu não
deveria sequer ser permitido fumar; mesmo não fazendo mal a ninguém. Mais
tarde, entendi a ideia por trás disso; essa privação também fazia parte do meu
castigo. Mas, no momento em que entendi, perdi o desejo, por isso deixara de ser
um castigo.
Tirando essas privações, eu não estava muito infeliz. Mais uma vez, todo o
problema era: como matar o tempo. Depois de um período, no entanto, comecei
a lembrar das coisas e então nunca ficava com um momento de tédio. Às vezes
eu exercitava minha memória no meu quarto e, a partir de um canto, fazia a
volta, observando cada objeto que via no caminho. No começo, durava um
minuto ou dois. Mas a cada vez que eu repetia a experiência, demorava um
pouco mais. Eu fiz questão de visualizar cada peça de mobília, cada artigo em
cima ou dentro dos móveis, todos os detalhes de cada objetos e, finalmente, os
detalhes dos detalhes, por assim dizer: um pequeno chanfrado ou incrustação, ou
uma borda lascada, a textura e a cor exatos da madeira. Ao mesmo tempo,
forcei-me a manter o meu inventário em mente do início ao fim, na ordem certa,
sem omitir nenhum item. Resultando que, depois de algumas semanas, eu
poderia passar horas simplesmente listando os objetos no meu quarto. Descobri
que quanto mais eu pensava, mais detalhes, meio esquecidos ou mal observados,
flutuavam da minha memória. Parecia não haver fim para eles.
Então aprendi que, mesmo depois de um dia de experiência do mundo
exterior, um homem poderia facilmente viver cem anos na prisão. Ele teria
acumulado memórias suficientes para nunca ficar entediado. Obviamente, de
certa forma, isso era uma compensação.
Então houve sono. Para começar, dormia mal à noite e nunca de dia. Mas
gradualmente minhas noites se tornaram melhores e eu também consegui
cochilar durante o dia. De fato, durante os últimos meses, devo ter dormido
dezesseis ou dezoito horas das vinte e quatro. Então, restavam apenas seis horas
para preencher — com as refeições, aliviando minhas necessidades, as
memórias... e a história dos Tchecos.
Um dia, ao revirar meu colchão de palha, encontrei um pedaço de jornal
preso à parte de baixo. O papel era amarelo e bem antigo, quase transparente,
mas eu ainda conseguia distinguir a letra impressa. Foi a história de um crime. A
primeira parte estava faltando, mas percebi que o caso aconteceu em uma aldeia
na Tchecoslováquia. Um dos aldeões havia saído de casa para tentar a sorte no
exterior. Depois de vinte e cinco anos, tendo feito fortuna, ele retornou ao seu
país com sua esposa e filho. Enquanto isso, sua mãe e irmã tinham administrado
um pequeno hotel na aldeia onde ele nasceu. Ele decidiu dar-lhes uma surpresa
e, deixando sua esposa e filho em outra pousada, ele foi ficar no hotel de sua
mãe, reservando um quarto com um nome falso. Sua mãe e irmã não o
reconheceram. No jantar daquela noite, mostrou-lhes uma grande quantia em
dinheiro e, no decorrer da noite, mataram-no com um martelo. Depois de pegar o
dinheiro, jogaram o corpo no rio. Na manhã seguinte, sua esposa veio e, sem
pensar, informou a identidade do hóspede. Sua mãe se enforcou. Sua irmã se
jogou em um poço. Eu devo ter lido essa história milhares de vezes. De certa
forma, parecia improvável; de outra, era plausível o suficiente. De qualquer
forma, na minha opinião, o homem estava caçando problemas; não se deve fazer
brincadeiras desse tipo.
Então, com longos períodos de sono, minhas lembranças, leituras daquele
pedaço de jornal, as marés de luz e escuridão, os dias passavam. Eu li, é claro,
que na prisão as pessoas acabavam perdendo a noção do tempo. Eu não tinha
dado muita importância para isso quando havia lido. Eu não tinha entendido
como os dias poderiam ser ao mesmo tempo longos e curtos. Longo, sem dúvida,
como períodos para viver, mas tão distendidos que acabaram se sobrepondo uns
aos outros. Eles perderam seus nomes; apenas as palavras “ontem” e “amanhã”
ainda mantinham algum significado.
Quando, certa manhã, o carcereiro me informou que eu estava a seis meses
na cadeia, acreditei nele — mas as palavras não levavam nada à minha mente.
Para mim, parecia que o mesmo dia estava acontecendo desde que eu estava na
minha cela, e eu estava fazendo a mesma coisa o tempo todo.
Depois que o carcereiro me deixou, eu poli um prato e me olhei no reflexo.
Minha expressão era terrivelmente séria, pensei, mesmo quando eu tentava
sorrir. Eu segurei o prato em diferentes ângulos, mas sempre meu rosto tinha a
mesma expressão triste e tensa.
O sol estava se pondo e era a hora em que eu preferiria não falar — “a hora
sem nome”, eu a chamava — quando os sons noturnos subiam de todos os
andares da prisão em uma espécie de procissão furtiva. Fui até a janela gradeada
e nos últimos raios olhei mais uma vez para o meu rosto refletido. Era tão sério
quanto antes; e isso não foi surpresa, pois naquele momento eu estava me
sentindo sério. Mas, ao mesmo tempo, ouvi algo que não ouvia há meses. Foi o
som de uma voz; minha própria voz, não havia dúvidas. E eu reconheci isso
como a voz que, por muitos dias atrás, soava em meus ouvidos. Então eu sabia
que todo esse tempo eu estava falando comigo mesmo.
E algo que me disseram voltou em minha memória, uma observação feita
pela enfermeira no funeral da Mamãe. Não, não havia outra saída, e ninguém
podia imaginar como são as noites na prisão.
III
No geral, não posso dizer que esses meses tenham passado devagar; outro
verão estava a caminho quase antes de eu perceber que o primeiro tinha acabado.
E eu sabia que nos primeiros dias escaldantes algo novo estava reservado para
mim. Meu caso foi para as últimas sessões do Tribunal de Assize, e as sessões
deveriam terminar em junho.
O sol estava muito forte no dia em que meu julgamento começou. Meu
advogado me garantiu que o caso levaria apenas dois ou três dias. "Pelo que
ouvi", acrescentou ele, "o tribunal vai julgar seu caso o mais rápido possível, já
que não é o mais importante na lista de causas. Há um caso de parricídio logo
depois, o que levará mais tempo.
Eles me chamaram às sete e meia da manhã e eu fui levado para os
tribunais em uma van da prisão. Os dois policiais me levaram para uma pequena
sala que cheirava a escuridão. Nós nos sentamos perto de uma porta através da
qual vinham sons de vozes, gritos, cadeiras raspando no chão; um burburinho
vago que me fez lembrar de uma daquelas reuniões "sociais" quando, após o
término do concerto, o salão fica livre para dançar.
Um dos meus policiais me disse que os juízes ainda não haviam chegado e
me ofereceram um cigarro, que eu recusei. Depois de um tempo ele me
perguntou se eu estava me sentindo nervoso. Eu disse “Não” e que a perspectiva
de testemunhar um julgamento me interessava; Eu nunca tive a oportunidade de
participar de um antes.
"Talvez", o outro policial disse. "Mas depois de uma ou duas horas já fica
enjoativo."
Depois de um tempo, um pequeno sino elétrico ronronou no quarto. Eles
soltaram minhas algemas, abriram a porta e me levaram até a doca do
prisioneiro.
Havia uma grande multidão no tribunal. Embora as venezianas estivessem
abaixadas, a luz filtrava-se pelas fendas e o ar já estava quente demais. As
janelas haviam sido mantidas fechadas. Sentei-me e os policiais sentaram-se de
cada lado da minha cadeira.
Foi então que notei uma fila de rostos à minha frente. Essas pessoas
estavam me encarando, e eu imaginei que elas fossem o júri. Mas de alguma
forma eu não os vi como indivíduos. Eu estava me sentindo um pouco tonto
também, com todas aquelas pessoas naquela sala abafada. Olhei ao redor do
tribunal novamente, mas não consegui distinguir um único rosto. De início eu
não tinha percebido que todas aquelas pessoas estavam se aglomerando para me
ver. Normalmente as pessoas não prestavam muita atenção em mim.
"Que plateia!", Comentei para o policial à minha esquerda, e ele explicou
que os jornais eram responsáveis por isso.
Ele apontou para um grupo de homens em uma mesa logo abaixo do júri.
"Lá estão eles!"
"Quem?", Perguntei, e ele respondeu: "A imprensa". Um deles, ele
acrescentou, era um velho amigo seu.
Um momento depois, o homem que ele mencionou olhou em nossa direção
e, chegando ao banco dos réus, apertou as mãos calorosamente com o policial. O
jornalista era um homem velho com uma expressão bastante sombria, mas seus
modos eram bastante agradáveis. Só então percebi que quase todas as pessoas no
tribunal se cumprimentavam, trocando comentários e formando grupos — se
comportando, de fato, como em um clube onde a companhia de outros de seus
próprios gostos e prestígio nos faz sentir à vontade. Isso, sem dúvida, explicava a
estranha impressão que tive de ser de trop, uma espécie de intruso.
No entanto, o jornalista se dirigiu a mim de maneira bastante amigável e
disse que esperava que tudo corresse bem para mim. Agradeci e ele acrescentou
com um sorriso:
“Você sabe, nós estamos cobrindo seu caso. O verão é uma das temporadas
mais baixas para notícias. Há muito pouco sobre o que escrever, exceto seu caso
e o que está vindo depois. Eu espero que você tenha ouvido sobre isso; é um
caso de parricídio.
Ele chamou minha atenção para um dos integrantes do grupo à mesa da
imprensa, um homenzinho rechonchudo, com enormes óculos de aro preto, que
me fez pensar em uma doninha superalimentada.
Esse sujeito é o correspondente especial de um dos jornais diários de Paris.
Na verdade, ele não veio para cobrir seu caso. Ele foi enviado para o caso do
parricídio, mas pediram que ele cobrisse a sua também.
Estava na ponta da minha língua dizer: "Isso foi muito gentil deles", mas
depois pensei que soaria bobo. Com um aceno amigável de sua mão, ele nos
deixou e, por alguns minutos, nada aconteceu.
Então, acompanhado por alguns colegas, meu advogado entrou apressado
usando sua toga. Ele foi até a mesa da imprensa e apertou a mão dos jornalistas.
Eles continuaram rindo e conversando juntos, todos parecendo muito em casa,
até que um sino estridente tocou e todos foram para o seu lugar. Meu advogado
veio até mim, apertou as minhas mãos e me aconselhou a responder a todas as
perguntas o mais breve possível, a não fornecer informações voluntárias e a
confiar nele.
Ouvi uma cadeira raspar à minha esquerda, e um homem alto e magro
usando um pince-nez acomodou as dobras de sua toga vermelha quando se
sentou. O Promotor de justiça, eu acho. Um funcionário do tribunal anunciou
que Suas Excelências estavam entrando e, no mesmo momento, dois grandes
ventiladores elétricos começaram a zumbir no alto. Três juízes, dois em preto e o
terceiro em escarlate, com maletas embaixo dos braços, entraram e caminharam
rapidamente para a tribuna, que ficava a um ou dois metros acima do nível do
tribunal. O homem em toga escarlate ocupou a cadeira central de encosto alto,
colocou sua boina sobre sobre a mesa, passou um lenço sobre a pequena cabeça
careca e anunciou que a audiência começaria.
Os jornalistas tinham suas canetas-tinteiro prontas; todos usavam a mesma
expressão de indiferença levemente irônica, com exceção de um homem muito
mais jovem do que seus colegas, de flanela cinza com gravata azul, que,
deixando a caneta sobre a mesa, olhava para mim com dificuldade. Ele tinha um
rosto simples e robusto; o que mais me chamou a atenção foram os olhos dele,
muito claros e pálidos, fixos em mim, embora não traíssem nenhuma emoção
definida. Por um momento tive uma impressão estranha, como se estivesse
sendo examinado por mim mesmo. Isso — e o fato de eu não estar familiarizado
com os procedimentos judiciais — pode explicar por que não acompanhei muito
bem as fases de abertura: o sorteio do júri, as várias perguntas feitas pelo juiz ao
promotor, o líder do júri e meu advogado (cada vez que ele falava, todos os
jurados voltavam sua atenção para sua banca), a leitura apressada da folha de
acusação, no decurso da qual reconheci alguns nomes familiares de pessoas e
lugares; então algumas perguntas suplementares colocadas ao meu advogado.
Em seguida, o juiz anunciou que o tribunal iria convocar a lista de
testemunhas. Alguns dos nomes lidos pelo funcionário me surpreenderam. Do
meio da multidão, que até então eu tinha visto como um mero borrão de rostos,
subiu, um após o outro, Raymond, Masson, Salamano, o porteiro do Lar, o velho
Pérez e Marie, que me deu um pequeno aceno nervoso da mão dela antes de
seguir os outros por uma porta lateral. Eu estava pensando como era estranho eu
não ter notado nenhum deles antes, então ouvi o último nome chamado, o de
Céleste. Quando ele se levantou, notei ao seu lado a pequena mulher com um
casaco masculino e um ar decidido, que compartilhara minha mesa no
restaurante. Ela tinha os olhos fixos em mim, notei. Mas eu não tinha tempo para
pensar sobre ela; o juiz começou a falar novamente.
Ele disse que o julgamento propriamente dito estava prestes a começar, e
esperava que o público se abstivesse de qualquer demonstração. Explicou que
ele estava lá para supervisionar o processo, como uma espécie de árbitro, e que
ele teria uma visão escrupulosamente imparcial do caso. O veredito do júri seria
interpretado por ele em um espírito de justiça. Finalmente, ao menor sinal de
perturbação, ele teria a corte liberada.
O dia estava se animando. Algumas pessoas se abanavam com jornais, e
havia um farfalhar constante de papel amassado. Em um sinal feito por um dos
juízes, o funcionário da corte trouxe três abanos de palha trançada, que os três
juízes prontamente começaram a balançar.
Minha interrogação começou imediatamente. O juiz me questionou com
muita calma e até, pensei, com uma pitada de cordialidade. Pela enésima vez,
pediram-me para dar detalhes de minha identidade e, apesar de estar muito
cansado dessa formalidade, percebi que era natural o suficiente; afinal de contas,
seria uma coisa chocante para o tribunal estar julgando o homem errado.
O juiz então explicou o motivo de eu estar sendo julgado, parando a cada
duas ou três frases para me perguntar: "Isso está correto?" Ao que eu sempre
respondia: "Sim, senhor", como meu advogado havia me aconselhado. Foi um
negócio longo, já que o juiz permaneceu em cada detalhe. Enquanto isso, os
jornalistas transcreviam. Mas às vezes eu ficava ciente do olhar do mais jovem
fixado em mim; também aquele da pequena mulher que parecia uma marionete.
Os jurados, no entanto, estavam todos olhando para o juiz vestido de vermelho, e
eu fui novamente lembrado da fila de passageiros de um lado de um bonde.
Logo ele soltou uma leve tosse, virou algumas páginas de seu arquivo e, ainda
abanando o rosto, me dirigiu gravemente.
Ele agora propôs, disse ele, trinchar certas questões que, numa visão
superficial, podem parecer estranhas ao caso, mas na verdade eram altamente
relevantes. Imaginei que ele ia falar sobre mamãe e, no mesmo momento,
percebi o quanto eu acharia isso odioso. Sua primeira pergunta foi: por que eu
mandara minha mãe para uma abrigo de idosos? Eu respondi que a razão era
simples; Eu não tinha dinheiro suficiente para que ela fosse devidamente cuidada
em casa. Então ele perguntou se a separação não me causou sofrimento.
Expliquei que nem Mamãe nem eu esperávamos muito um do outro — nós dois
nos acostumamos com novas condições muito facilmente. O juiz disse então que
não tinha vontade de insistir no assunto e perguntou ao promotor se poderia
pensar em mais perguntas que deveriam ser feitas a mim nessa etapa.
O Promotor, que estava de costas para mim, disse, sem olhar na minha
direção, que, sujeito à aprovação de Sua Excelência, ele gostaria de saber se eu
tinha voltado ao riacho com a intenção de matar o árabe. Eu disse: "Não". Nesse
caso, então por que eu levara um revólver comigo e por que voltar precisamente
àquele ponto? Eu disse que era uma questão de puro acaso. O promotor então
observou em um tom desagradável: “Muito bom. Isso será tudo para o presente
”.
Eu não consegui acompanhar o que veio depois. De qualquer forma, depois
de algum palavrório entre a banca, o promotor e meu advogado, o juiz anunciou
que o tribunal agora se levantaria; houve um intervalo até a tarde, quando as
provas seriam consideradas.
Antes mesmo de me dar conta, fui levado correndo para a van da prisão,
que me levou de volta e recebi minha refeição do meio-dia. Depois de um curto
período de tempo, apenas o suficiente para eu perceber o quão cansado eu estava
me sentindo, eles vieram novamente até mim. Eu estava de volta ao mesmo
quarto, confrontando os mesmos rostos, e tudo começou de novo. Mas o calor
aumentou enquanto isso, e por algum milagre, abanos foram entregue para
todos: o júri, meu advogado, o promotor e alguns dos jornalistas também. O
jovem e a mulher robô ainda estavam em seus lugares. Mas eles não estavam se
abanando e, como antes, nunca tiraram os olhos de mim.
Limpei o suor do meu rosto, mas mal tinha consciência de onde ou quem eu
era até ouvir o diretor do Lar ser chamado para a tribuna das testemunhas.
Quando perguntado se minha mãe reclamou da minha conduta, ele disse: "Sim",
mas isso não significava muito; quase todos os internos do Lar tinham queixas
contra seus parentes. O juiz pediu-lhe para ser mais explícito; Se ela me
reprovou por tê-la mandado para o Lar, e ele disse: "Sim" novamente. Mas desta
vez ele não qualificou sua resposta.
Em outra pergunta, ele respondeu que, no dia do funeral, ficou um pouco
surpreso com a minha calma. Quando lhe pediram para explicar o que ele queria
dizer com "minha calma", o diretor baixou os olhos e olhou para os sapatos por
um momento. Então ele explicou que eu não queria ver o corpo da Mamãe, ou
derramar uma única lágrima, e que eu tinha saído imediatamente quando o
funeral terminou. Outra coisa o surpreendeu. Um dos homens do serviço fúnebre
disse a ele que eu não sabia a idade da minha mãe. Houve um curto silêncio;
então o juiz perguntou se ele estava se referindo ao prisioneiro no banco dos
réus. O diretor pareceu intrigado com isso, e o juiz explicou: “É uma pergunta
formal. Eu sou obrigado a fazê-la.
O Procurador foi então perguntado se ele tinha alguma pergunta a colocar, e
ele respondeu em voz alta: “Certamente que não! Eu tenho tudo o que preciso.”
Seu tom e o olhar de triunfo em seu rosto, enquanto ele olhava para mim, eram
tão marcantes que eu me sentia como não sentia há séculos. Eu tive um desejo
tolo de desabar em lágrimas. Pela primeira vez, percebi como todas essas
pessoas me detestavam.
Depois de perguntar ao júri e ao meu advogado se eles tinham alguma
dúvida, o juiz ouviu as provas do porteiro. Ao subir na tribuna, o homem lançou
um olhar para mim, depois desviou o olhar. Respondendo a perguntas, ele disse
que eu não quis ver o corpo da minha mãe, eu tinha fumado, dormido e bebido
café com leite. Foi então que senti uma espécie de onda de indignação se
espalhando pelo tribunal, e pela primeira vez entendi que era culpado. Eles
pediram ao porteiro para repetir o que ele havia dito sobre o café e o cigarro.
O Promotor voltou-se para mim, com um olhar de regozijo nos olhos. Meu
advogado perguntou ao porteiro se ele também não fumou. Mas o promotor
tomou uma forte exceção a isso. "Eu gostaria de saber", ele gritou indignado,
"quem está sendo julgado neste tribunal. Ou será que meu amigo acha que, ao
caluniar uma testemunha da acusação, ele vai derrubar a evidência, a evidência
abundante e convincente, contra seu cliente?” Não obstante, o juiz disse ao
porteiro para responder à pergunta.
O velho companheiro se mexeu um pouco. Então, "Bem, eu sei que não
deveria ter feito isso", ele murmurou, "mas eu peguei um cigarro do jovem
cavalheiro quando ele ofereceu — apenas por cortesia."
O juiz me perguntou se eu tinha algum comentário a fazer. "Nenhum", eu
disse, "exceto que a testemunha está certa. É verdade que eu lhe ofereci um
cigarro.
O porteiro olhou para mim com surpresa e uma espécie de gratidão. Então,
depois de hesitar um pouco, ele declarou que foi ele quem sugeriu que eu
deveria tomar um café.
Meu advogado foi exultante. "O júri apreciará", disse ele, "a importância
dessa admissão".
O Promotor, no entanto, prontamente se pôs de pé novamente. "Muito
bem", ele ressoou. “O júri vai gostar. E eles chegarão à conclusão de que,
embora um terceiro pudesse inadvertidamente oferecer-lhe uma xícara de café, o
réu, em comum decência, deveria tê-lo recusado, mesmo que apenas em respeito
ao cadáver da pobre mulher que o trouxera ao mundo."
Depois disso, o porteiro voltou ao seu lugar.
Quando Thomas Pérez foi chamado, um oficial de justiça foi ajudá-lo a
chegar até a tribuna. Pérez afirmou que, apesar de ter sido um grande amigo da
minha mãe, ele havia me conhecido apenas uma vez, no dia do funeral.
Perguntado como eu me comportei naquele dia, ele disse:
“Bem, eu estava bem triste, você sabe. Muito chateado para perceber as
coisas. Minha tristeza me cegou, eu acho. Foi um grande choque, a morte de
minha querida amiga; Na verdade, eu desmaiei durante o funeral. Então, eu mal
percebi o jovem cavalheiro.”
O Promotor pediu que ele dissesse ao tribunal se ele me viu chorar. E
quando Pérez respondeu: “Não”, e o promotor acrescentou enfaticamente:
“Confio que o júri tomará nota desta resposta”.
Meu advogado levantou-se imediatamente e perguntou a Pérez em um tom
que me pareceu desnecessariamente agressivo:
“Agora, pense bem, meu homem! Você pode jurar que viu que ele não
derramou uma lágrima?"
Perez respondeu: "Não.”
Nesse momento, algumas pessoas riram e meu advogado, empurrando uma
das mangas do vestido, disse com firmeza:
“Isso é típico da forma como este caso está sendo conduzido. Nenhuma
tentativa está sendo feita para elucidar os fatos verdadeiros ”.
O promotor ignorou essa observação; ele estava fazendo pinceladas com o
lápis na capa de seu sumário, aparentemente bastante indiferente.
Houve uma pausa de cinco minutos, durante os quais meu advogado me
disse que o caso estava indo muito bem. Então Céleste foi chamado. Ele foi
anunciado como testemunha da defesa. A defesa significava-me.
De vez em quando Céleste me lançava um olhar; ele continuou apertando
seu chapéu-panamá entre as mãos enquanto dava provas. Estava em seu melhor
terno, o que ele usava quando às vezes em um domingo ia comigo caminhar.
Mas, evidentemente, ele não conseguiu dobrar a gola. Perguntado se eu era um
de seus clientes, ele disse: "Sim, e um amigo também." Solicitado a declarar sua
opinião sobre mim, ele disse que eu era um homem; quando lhe foi dito para
explicar o que ele queria dizer com isso, ele respondeu que todos sabiam o que
isso significava.
O promotor perguntou se eu sempre pagava minha conta mensal em seu
restaurante quando ele a apresentava. Céleste riu. “Oh, ele pagava sempre, tudo
em dia. Mas as contas eram apenas um detalhe entre ele e eu.” Então ele foi
solicitado a dizer o que achava sobre o crime. Ele colocou as mãos no parapeito
da bancada e podia se dizer que ele tinha um discurso preparado.
“Na minha opinião, foi apenas um acidente, ou um golpe de azar, se você
preferir. E uma coisa dessas te tira a guarda.”
Ele queria continuar, mas o juiz o interrompeu. “Muito obrigado, isso é
tudo.”
Por um momento, Céleste pareceu espantado; então ele explicou que não
tinha terminado o que queria dizer. Eles lhe disseram para continuar, mas para
resumir.
Ele apenas repetiu que foi "apenas um acidente".
"Pode ter sido", observou o juiz. “Mas o que estamos fazendo aqui é tratar
esses acidentes, de acordo com a lei. Você pode se sentar.”
Céleste se virou e olhou para mim. Seus olhos estavam úmidos e seus lábios
tremiam. Era exatamente como se ele tivesse dito: “Bem, eu fiz o meu melhor
por você, meu velho. Receio que não tenha ajudado tanto. Eu sinto Muito."
Eu não disse nada, nem fiz nenhum movimento, mas pela primeira vez na
vida eu quis beijar um homem.
O juiz repetiu sua ordem para se sentar e Céleste retornou ao seu lugar entre
a multidão. Durante o resto da audiência, ele permaneceu lá, inclinando-se para a
frente, cotovelos nos joelhos e seu Panamá entre as mãos, sem perder uma
palavra do processo.
Foi a vez de Marie em seguida. Ela tinha um chapéu e ainda parecia muito
bonita, embora eu a preferisse com o cabelo solto. De onde eu estava, eu tinha
vislumbres da curva suave de seus seios, e seu lábio inferior tinha o beicinho que
sempre me fascinava. Ela parecia muito nervosa.
A primeira pergunta foi: Há quanto tempo ela me conhecia? Desde a época
em que ela estava em nosso escritório, ela respondeu. Então o juiz perguntou a
ela qual era a relação entre nós, e ela disse que era minha namorada.
Respondendo a outra pergunta, ela admitiu prometer casar-se comigo. O
promotor, que estivera estudando um documento à sua frente, perguntou-lhe com
bastante nitidez quando nossa “ligação” havia começado. Ela deu a data. Ele
então observou com um ar casual que aparentemente este era o dia seguinte ao
funeral da minha mãe. Depois de deixar esse ponto, ele comentou num tom
ligeiramente irônico que, obviamente, esse era um “assunto delicado” e que ele
podia entrar nos sentimentos da moça, mas — e ali sua voz ficou mais severa —
seu dever o obrigou a dispensar considerações de delicadeza.
Depois de fazer este aviso, ele pediu a Marie para relatar todos os nossos
feitos no dia em que eu tive “relações” com ela pela primeira vez. Marie não
responderia a princípio, mas o Promotor insistiu, e então ela disse a ele que nos
encontramos nos banhos, fomos juntos para o cinema e depois para a minha
casa. Ele então informou ao tribunal que, como resultado de certas declarações
feitas por Marie nos procedimentos perante o magistrado, ele havia estudado os
programas de filmes daquela data e, ao se virar para Marie, pediu que ela
nomeasse o filme que tínhamos ido ver. Em voz muito baixa, ela disse que era
um filme com Fernandel. Quando ela terminou, o tribunal ficou tão quieto que
você poderia ter ouvido um alfinete cair.
Parecendo muito sério, o promotor se ergueu em toda a sua altura e,
apontando para mim, disse em tal tom que eu poderia jurar que ele estava
genuinamente comovido:
“Senhores do júri, gostaria que você notasse que no dia seguinte ao funeral
de sua mãe o homem estava visitando a piscina, iniciando um contato com uma
garota e indo assistir a um filme de comédia. É tudo o que tenho a dizer.”
Quando ele se sentou, houve o mesmo silêncio mortal. Então, de repente,
Marie começou a chorar. Ele entendeu tudo errado, ela disse; não era bem assim,
ele a intimidou dizendo o oposto do que ela queria dizer. Ela me conhecia muito
bem e tinha certeza de que eu não tinha feito nada realmente errado — e assim
por diante. A um sinal do juiz, um dos oficiais do tribunal levou-a embora e a
audiência continuou.
Quase ninguém parecia ouvir Masson, a próxima testemunha. Ele afirmou
que eu era um jovem respeitável; "E, o que é mais, um cara muito decente." Eles
também não prestaram mais atenção em Salamano, quando ele disse a eles como
eu sempre fui gentil com seu cachorro, ou quando, em resposta a uma pergunta
sobre minha mãe e sobre mim mesmo. Ele disse que minha mãe e eu tínhamos
muito pouco em comum e isso explicava por que eu tinha posto ela no Lar.
"Você precisa entender", acrescentou. "Você tem que entender." Mas ninguém
parecia entender. Ele foi dito para se sentar.
Raymond foi a última testemunha. Ele me deu um pequeno aceno e partiu
dizendo que eu era inocente. O juiz o repreendeu.
"Você está aqui para dar provas, não suas opiniões sobre o caso, e você
deve limitar-se a responder às perguntas."
Pediram então a ele que esclarecesse suas relações com o falecido, e
Raymond aproveitou a oportunidade para explicar que era ele, não eu, contra
quem o morto tinha rancor, porque ele, Raymond, espancara sua irmã. O juiz
perguntou-lhe se o falecido também não tinha motivos para não gostar de mim.
Raymond disse a ele que minha presença na praia naquela manhã era pura
coincidência.
“Então como explica,” o Procurador inquiriu, “que a carta que levou a esta
tragédia foi escrita pelo réu?”
Raymond respondeu que isso também se devia ao mero acaso.
Ao qual o Promotor replicou que, neste caso, "acaso" ou "mera
coincidência" parecia desempenhar um papel notavelmente grande. Foi por
acaso que eu não intervi quando Raymond agrediu sua amante? Será que esse
termo conveniente “acaso” explica que eu testemunhei para Raymond na
delegacia de polícia e fiz, nessa ocasião, declarações extravagantemente
favoráveis a ele? Em conclusão, ele pediu a Raymond que declarasse quais eram
seus meios de trabalho.
Ao se descrever como dono de um armazém, o promotor informou ao júri
que era de conhecimento comum que a testemunha vivia dos ganhos imorais da
prostituição de mulheres. Eu, o promotor disse, era o amigo e sócio mais íntimo
de Raymond; De fato, todo o pano de fundo do crime era da descrição mais
depauperada. E o que tornava ainda mais odiosa a personalidade do réu, um
monstro desumano totalmente sem senso moral.
Raymond começou a protestar e meu advogado também protestou. Foi-lhes
dito que o Procurador devia poder terminar as suas observações.
"Estou quase terminando", disse ele; então se virou para Raymond. "O réu
era seu amigo?"
"Certamente. Nós éramos os melhores amigos, como eles dizem.”
O promotor me fez a mesma pergunta. Eu olhei diretamente para Raymond
e ele não desviou o olhar.
Então respondi: "Sim".
O Promotor se voltou para o júri.
“Não só o homem diante de vocês no banco dos réus se entregou às orgias
mais vergonhosas no dia seguinte à morte de sua mãe. Ele matou um homem a
sangue-frio, em busca de alguma vingança sórdida no submundo de prostitutas e
cafetões. Isso, senhores do júri, é o tipo de homem que o prisioneiro é.”
Tão logo ele se sentou, meu advogado, sem paciência, levantou os braços
tão alto que suas mangas caíram para trás, mostrando o comprimento total de sua
camisa engomada.
"Meu cliente está sendo julgado por ter enterrado sua mãe ou por matar um
homem?", Ele perguntou.
Houve alguns risos no tribunal. Mas então o Promotor ficou de pé e,
enrolando o vestido em volta dele, disse que estava surpreso com a ingenuidade
de seu amigo ao não ver que entre esses dois elementos do caso havia um elo
vital. Eles se atrelavam psicologicamente, se é que ele pode dizer isso.
“Resumindo”, concluiu, falando com veemência, “acuso o prisioneiro de se
comportar no funeral de sua mãe de uma forma que mostrava que ele já era um
criminoso de coração”.
Essas palavras pareciam ter muito efeito sobre o júri e o público. Meu
advogado apenas encolheu os ombros e enxugou o suor da testa. Mas,
obviamente, ele estava agitado e eu tinha a sensação de que as coisas não iam
bem para mim.
Logo após este ocorrido, o tribunal se levantou. Assim que eu era levado do
tribunal para a van da prisão, eu estava consciente por alguns breves momentos
da sensação familiar de uma noite de verão ao ar livre. E, sentado na escuridão
da minha cela móvel, reconheci, ecoando em meu cérebro cansado, todos os
sons característicos de uma cidade que eu amava e de uma certa hora do dia que
eu sempre gostei particularmente. Os gritos de vendedores de jornal no ar já
lânguido, os últimos cantos dos pássaros no jardim público, os gritos dos
vendedores de sanduíches, o barulho dos bondes nos cantos íngremes da cidade
alta e aquele leve farfalhar no alto enquanto a escuridão penetrava o porto —
todos esses sons fizeram meu retorno à prisão como uma jornada de um cego ao
longo de uma rota cujo cada centímetro ele conhece de cor.
Sim, aquela era a hora do entardecer, quando — há quanto tempo parecia!
— sempre me senti tão contente com a vida. Então, o que me esperava era uma
noite de sono fácil e sem sonhos. Esta era a mesma hora, mas com uma
diferença; Eu estava voltando para uma cela e o que me esperava era uma noite
assombrada pelos pressentimentos do dia seguinte. Como se caminhos familiares
traçados nos céus de verão pudessem levar tão facilmente à prisão quanto ao
sono dos inocentes.
IV
É sempre interessante, mesmo no banco dos réus, ouvir pessoas falando
sobre você. E, certamente, nos discursos de meu advogado e do promotor, muita
coisa foi dita sobre mim; mais, na verdade, sobre mim pessoalmente do que
sobre o meu crime.
Realmente não houve grande diferença entre os dois discursos. O meu
advogado ergueu seus braços e me declarou culpado, mas com circunstâncias
atenuantes. O promotor fez gestos semelhantes; ele concordou que eu era
culpado, mas negou circunstâncias atenuantes.
Uma coisa sobre esta fase do julgamento foi bastante irritante. Muitas
vezes, interessado como eu estava no que eles tinham a dizer, fiquei tentado a
falar alguma palavra, eu mesmo. Mas meu advogado me aconselhou a não fazê-
lo. "Você não vai fazer bem ao seu caso falando", ele me avisou. De fato, parecia
haver uma conspiração para me excluir do processo; Eu não podia me manifestar
e meu destino parecia ser decidido fora de meu controle.
Era um grande esforço, às vezes, abster-me de interrompê-los e dizer:
“Mas, caramba, quem está em julgamento neste tribunal, gostaria de saber? É
um assunto sério para um homem ser acusado de assassinato. E eu tenho algo
realmente importante para falar.”
No entanto, pensando bem, descobri que não tinha nada a dizer. Além disso,
devo admitir que ouvir falar de si mesmo se torna bem desinteressante. O
discurso do Promotor, especialmente, começou a me entediar antes que ele
terminasse. As únicas coisas que realmente me chamaram a atenção foram frases
ocasionais, seus gestos e algumas tiradas elaboradas — mas estas eram menos
frequentes.
O que ele pretendia, concluí, era mostrar que meu crime foi premeditado.
Lembro-me dele dizendo em um momento: “Eu posso provar isso, senhores do
júri, ao máximo. Primeiro, você tem os fatos do crime; que são tão claros quanto
a luz do dia. E então você tem o que eu posso chamar de o lado negro deste caso,
o funcionamento sombrio de uma mentalidade criminosa ”.
Ele começou resumindo os fatos, da morte de minha mãe em diante. Ele
enfatizou minha falta de coração, minha incapacidade de declarar a idade da
minha mãe, minha visita à piscina onde conheci Marie, nossa matinê no cinema
onde um filme de Fernandel estava sendo exibido e, finalmente, meu retorno
com Marie para minha casa. Eu não segui seus comentários no início, como ele
continuou mencionando "amante do prisioneiro", enquanto que para mim ela era
apenas "Marie". Então ele chegou ao assunto de Raymond. Pareceu-me que sua
maneira de tratar os fatos mostrava certa astúcia. Tudo o que ele disse soou
bastante plausível. Eu tinha escrito a carta em conluio com Raymond, de modo a
atrair sua amante para o seu quarto e submetê-la a maus-tratos por um homem
"de reputação duvidosa". Então, na praia, eu provoquei uma briga com os
inimigos de Raymond, no curso do qual Raymond foi ferido. Eu pedi seu
revólver emprestado e voltei sozinho com a intenção de usá-lo. Então eu atirei
no árabe. Depois do primeiro tiro eu esperei. Então, “para ter certeza de fazer um
bom trabalho”, eu atirei mais quatro vezes deliberadamente, à queima-roupa e a
sangue frio na minha vítima.
"Essa é a minha interpretação", disse ele. “Eu descrevi a vocês um a série
de eventos que levaram este homem a matar o falecido, plenamente consciente
do que ele estava fazendo. Eu enfatizo este ponto. Nós não estamos tratando de
um ato de homicídio cometido em um impulso súbito que pode servir como
atenuante. Peço-lhe que notem, senhores do júri, que o réu é um homem
educado. Vocês observaram a maneira como ele respondeu minhas perguntas; ele
é inteligente e sabe o valor das palavras. E repito que é completamente
impossível supor que, quando ele cometeu o crime, ele não sabia o que estava
fazendo.”
Percebi que ele enfatizava minha “inteligência”. O que mais me intrigava
era que o que seria considerado uma boa característica em uma pessoa comum
deveria ser usado contra um acusado como uma prova esmagadora de sua culpa.
Enquanto pensava sobre isso, perdi o que ele disse em seguida, até ouvi-lo
exclamar indignado: “E por acaso ele proferiu alguma palavra de pesar pelo seu
crime mais odioso? Nem uma palavra, senhores. Nem uma vez no decorrer deste
processo este homem mostrou a menor contrição”.
Virando-se, ele apontou um dedo para mim e continuou com a mesma
tonalidade. Eu realmente não conseguia entender por que ele insistiu muito nesse
ponto. Claro, eu tinha que reconhecer que ele estava certo; Eu não me arrependi
muito do que fiz. Ainda assim, na minha opinião, ele exagerou, e eu gostaria de
ter a chance de explicar a ele, de uma maneira bastante amigável e quase
afetuosa, que nunca consegui realmente me arrepender de nada em toda a minha
vida. Eu sempre fui muito absorvido no momento presente, ou no futuro
imediato, para pensar no passado. Mas, naturalmente, dada a posição em que eu
estava, não conseguia falar com ninguém dessa maneira. Eu não tinha o direito
de mostrar qualquer sentimento ou boa vontade. E eu tentei ouvir novamente,
porque o promotor começou a falar sobre minha alma.
Ele disse que me estudou de perto — e tinha encontrado nada,
“literalmente nada, cavalheiros do júri”. Realmente, ele disse, eu não tinha
alma, não havia nada humano em mim, nenhuma daquelas qualidades morais
que os homens normais possuíam havia tomado lugar na minha mentalidade.
“Sem dúvida”, acrescentou ele, “não devemos reprova-lo por isso. Não podemos
culpar um homem por não ter o que nunca foi capaz de adquirir. Mas em um
tribunal criminal, o ideal passivo de tolerância deve dar lugar a um ideal mais
severo e mais elevado, o da justiça. Especialmente quando essa falta de decência
se transforma em uma ameaça à sociedade.” Ele começou a discutir minha
conduta em relação à minha mãe, repetindo o que ele dissera no decorrer da
audiência. Mas ele se prolongou no meu crime — tanto que, na verdade, perdi o
fio e fiquei consciente apenas do calor cada vez maior.
Chegou um momento em que o Promotor fez uma pausa e, depois de um
breve silêncio, disse em voz baixa e vibrante: “Esse mesmo tribunal, senhores,
será chamado para julgar amanhã o mais odioso dos crimes, o assassinato de um
pai por seu filho.” Em sua opinião, tal crime era quase inimaginável. A ele só
restava esperar que a justiça fosse feita. E ainda assim, ele ousou dizer, que o
horror que até mesmo o crime de parricídio havia criado nele empalideceu-se ao
lado da aversão inspirada por minha insensibilidade.
“Esse homem, que é moralmente culpado pela morte de sua mãe, não é
capaz de viver em sociedade tanto quanto o outro homem que matou o próprio
pai. E, de fato, o seu crime levou ao outro; o primeiro desses dois criminosos, o
homem no banco dos réus, estabeleceu um precedente, se é que posso dizer, e
autorizou o segundo crime. Sim, senhores, estou convencido” — aqui ele
levantou a voz — "que vocês não acharão muito ousado se eu sugerir a vocês
que o homem que está sentado no banco dos réus também é culpado do
assassinato a ser julgado neste tribunal amanhã. E eu espero que ele seja punido
de acordo."
O promotor fez outra pausa, para enxugar o suor do rosto. Ele então
explicou que seu dever era doloroso, mas ele faria isso sem vacilar. “Este
homem, repito, não tem lugar em uma comunidade cujos princípios básicos ele
despreza sem remorso. Nem insensível como ele é, ele tem qualquer pretensão
de misericórdia. Peço-lhes para impor a penalidade máxima da lei; e eu pergunto
sem medo. No decorrer de uma longa carreira, na qual muitas vezes tenho o
dever de pedir a pena de morte, nunca senti que esse dever doloroso pesasse tão
pouco em minha mente como no presente caso. Ao exigir um veredicto de
assassinato sem circunstâncias atenuantes, estou seguindo não apenas os ditames
de minha consciência e uma obrigação sagrada, mas também aqueles da
indignação natural e justa que sinto diante de um criminoso desprovido da
mínima centelha de humanidade.”
Quando o promotor sentou-se, houve um longo silêncio. Fui vencido pelo
calor e pelo espanto do que estava ouvindo. O juiz deu uma tosse curta e
perguntou-me em voz muito baixa se eu tinha algo a dizer. Levantei-me e,
enquanto me sentia à vontade para falar, disse a primeira coisa que passou pela
minha cabeça: que não tinha intenção de matar o árabe. O juiz respondeu que
esta declaração seria levada em consideração pelo tribunal. Enquanto isso ele
ficaria feliz em ouvir, antes que meu advogado se dirigisse ao tribunal, quais
eram os motivos do meu crime. Até agora, ele admitiu, não ter entendido
completamente os motivos da minha defesa.
Eu tentei explicar que o mitovo era causado pelo sol escaldante, mas eu
falei rápido demais e corri minhas palavras umas com as outras. Eu estava
consciente de que isso soava absurdo e, na verdade, ouvi pessoas rindo.
Meu advogado encolheu os ombros. Então ele foi direcionado a se dirigir
ao tribunal, por sua vez. Mas tudo o que ele fez foi apontar o atraso da hora e
pedir um adiamento até a tarde seguinte. Com isso, o juiz concordou.
Quando eu fui trazido de volta no dia seguinte, os ventiladores elétricos
ainda estavam levantando o ar pesado e os jurados sacolejavam seus vistosos
pequenos abanos em um ritmo constante. O discurso do meu advogado de defesa
pareceu interminável. Em um momento, porém, eu fiquei atento; quando o ouvi
dizer: “É verdade que eu matei um homem”. Ele continuou na mesma linha,
dizendo “eu” quando se referiu a mim. Era tão esquisito que me inclinei para o
policial à minha direita e pedi que ele explicasse. Ele me disse para calar a boca;
então, depois de um momento, sussurrou: “Todos fazem isso.” Pareceu-me que a
ideia por trás disso era ainda mais para me excluir do caso, para me tirar do
mapa. por assim dizer, substituindo o advogado por mim. De qualquer forma,
dificilmente importava; Eu já me sentia bem longe deste tribunal e seus tediosos
"procedimentos".
Além disso, meu advogado parecia ridículo para mim. Ele interpôs com a
alegação de provocação, e então ele também falou sobre a minha alma. Mas tive
a impressão de que ele tinha muito menos talento do que o promotor.
“Eu também”, disse ele, “tenho estudado atentamente a alma deste homem;
mas, ao contrário do meu culto amigo promotor, eu encontrei algo lá. De fato,
posso dizer que li a mente do prisioneiro como um livro aberto.” O que ele leu
ali foi que eu era um excelente rapaz, um trabalhador firme e honesto que fazia o
melhor para meu empregador; que eu era formidável com todos e simpático nos
problemas dos outros. Segundo ele, eu era um filho obediente, que apoiara
minha mãe desde que eu fosse capaz. E que depois de uma consideração ansiosa,
cheguei à conclusão de que, ao colocá-la em uma casa de idosos, a ela teria um
conforto que eu não poderia a propiciar. “Estou espantado, senhores”,
acrescentou ele, “pela atitude assumida por meu amigo instruído ao se referir a
este Lar de idosos. Certamente, se for necessário provar a utilidade de tais
instituições, só precisamos nos lembrar de que elas são promovidas e financiadas
pelo estado.” Notei que ele não fazia referência ao funeral, e isso pareceu-me
uma séria omissão. Mas, com o seu longo fôlego, os intermináveis dias e horas
em que estiveram discutindo a minha “alma” e o resto, descobri que minha
mente tinha ficado turva; tudo estava se dissolvendo em uma névoa acinzentada
e aquosa.
No final, tudo que lembro é que, enquanto meu advogado continuava
conversando, eu podia ouvir através da salas de audiência o barulho do vendedor
de sorvetes e seu trompete. Fui assaltado por lembranças de uma vida que não
era mais minha, mas em que encontrei as alegrias mais simples e duradouras: os
cheiros do verão, a parte da cidade que eu amava, um certo céu noturno, os
vestidos de Marie e a maneira como ela ria. A futilidade do que estava
acontecendo aqui parecia me pegar pela garganta, eu senti vontade de vomitar, e
só tive uma idéia: acabar com isso, voltar para minha cela e dormir... e dormir.
Vagamente ouvi meu advogado fazer o seu último apelo.
“Senhores do júri, certamente vocês não enviarão à morte um jovem
decente e trabalhador, porque por um trágico instante ele perdeu seu
autocontrole? Ele não vai ser suficientemente castigado pelo remorso que terá
por toda a vida? Aguardo com confiança o seu veredito, o único veredicto
possível — o de homicídio com circunstâncias atenuantes.”
O tribunal levantou-se e o advogado sentou-se, parecendo completamente
cansado. Alguns de seus colegas vieram até ele e apertaram sua mão. "Você fez
um magnífico trabalho", ouvi um deles dizer. Outro advogado até me perguntou:
“Tudo bem, não foi?” Eu concordei, mas sem sinceridade; Eu estava cansado
demais para julgar se tinha sido "bom" ou não.
Enquanto isso, o dia estava terminando e o calor se tornando menos intenso.
Por alguns sons vagos que me chegavam da rua, eu sabia que o frescor da noite
havia se estabelecido. Todos nos sentamos, esperando. E o que todos nós
estávamos esperando realmente preocupava ninguém além de mim. Eu olhei ao
redor do tribunal. Foi exatamente como no primeiro dia. Olhei para o jovem
jornalista em cinza e para a mulher que parecia uma marionete. Isso me lembrou
que nem uma vez durante toda a audiência eu tentei pegar o olho de Marie. Não
era que eu tivesse esquecido dela; só eu estava preocupado demais. Eu a vi
agora, sentada entre Céleste e Raymond. Ela me deu um pequeno aceno de mão,
como se dissesse: "Finalmente!" Ela sorria, mas percebi que estava bastante
ansiosa. Meu coração parecia transformado em pedra, e eu não consegui nem
retornar seu sorriso.
Os juízes voltaram para seus lugares. Alguém leu para o júri, muito
rapidamente, uma série de perguntas. Eu peguei uma palavra aqui e ali.
“Assassinato de malícia antecipada... Provocação... Circunstâncias atenuantes.”
O júri saiu e fui levado para a pequena sala onde eu já havia esperado. Meu
advogado veio me ver; Ele estava falando muito e mostrou mais cordialidade e
confiança do que nunca. Ele me garantiu que tudo iria bem e eu sairia com
alguns anos de prisão ou desterro. Perguntei a ele quais eram as chances de
anular a sentença. Ele disse que não havia chance disso. Ele não havia levantado
nenhuma questão de direito, pois isso poderia prejudicar o júri. E era difícil
conseguir anular um julgamento exceto por motivos técnicos. Eu vi o seu ponto
e concordei. Vendo o assunto de forma desapaixonada, compartilhei sua opinião.
Caso contrário, não haveria fim ao litígio. “De qualquer forma”, disse o
advogado, “você pode apelar da maneira usual. Mas estou convencido de que o
veredito será favorável”.
Esperamos por um bom tempo, uns bons três quartos de hora, devo dizer.
Então um sino tocou. Meu advogado me deixou dizendo:
“O presidente do júri lerá as respostas. Você será chamado depois disso para
ouvir o julgamento.”
Algumas portas bateram. Eu ouvi as pessoas correndo pelos degraus, mas
não sabia se estavam perto ou distantes. Então ouvi uma voz zunindo no
tribunal.
Quando a campainha tocou de novo e eu voltei para o banco dos réus, o
silêncio do tribunal se fechou ao meu redor, e com o silêncio veio uma sensação
esquisita quando notei que, pela primeira vez, o jovem jornalista manteve os
olhos desviados. Eu não olhei na direção de Marie. Na verdade, não tive tempo
de olhar, pois o juiz já havia começado a pronunciar uma ladainha de que “em
nome do povo francês” eu seria decapitado em algum lugar público.
Pareceu-me então que eu podia interpretar as expressões nos rostos dos
presentes; foi uma das quase respeitosas simpatia. Os policiais também me
trataram com muita gentileza. O advogado colocou a mão no meu pulso. Eu
parei de pensar completamente. Eu ouvi a voz do juiz perguntando se eu tinha
mais alguma coisa a dizer. Depois de pensar por um momento, respondi: “Não.”
Então os policiais me levaram para fora.
Esperamos por um bom tempo, uns bons três quartos de hora, devo dizer.
Então um sino tocou. Meu advogado me deixou dizendo:
“O presidente do júri lerá as respostas. Você será chamado depois disso para
ouvir o julgamento.”
Algumas portas bateram. Eu ouvi as pessoas correndo pelos degraus, mas
não sabia se estavam perto ou distantes. Então ouvi uma voz zunindo no
tribunal.
Quando a campainha tocou de novo e eu voltei para o banco dos réus, o
silêncio do tribunal se fechou ao meu redor, e com o silêncio veio uma sensação
esquisita quando notei que, pela primeira vez, o jovem jornalista manteve os
olhos desviados. Eu não olhei na direção de Marie. Na verdade, não tive tempo
de olhar, pois o juiz já havia começado a pronunciar uma ladainha de que “em
nome do povo francês” eu seria decapitado em algum lugar público.
Pareceu-me então que eu podia interpretar as expressões nos rostos dos
presentes; foi uma das quase respeitosas simpatia. Os policiais também me
trataram com muita gentileza. O advogado colocou a mão no meu pulso. Eu
parei de pensar completamente. Eu ouvi a voz do juiz perguntando se eu tinha
mais alguma coisa a dizer. Depois de pensar por um momento, respondi: “Não.”
Então os policiais me levaram para fora.
V
Acabei de recusar, pela terceira vez, ver o capelão da prisão. Não tenho
nada a dizer para ele, não sinto vontade de falar — e de qualquer forma vou vê-
lo em breve. A única coisa que me interessa agora é achar uma brecha no
maquinário.
Eles me mudaram para outra cela. Nesta, deitado de costas, posso ver o céu
e não há mais nada para ver. Todo o meu tempo é gasto em observar as cores que
mudam lentamente do céu, como o dia passa para a noite. Coloco minhas mãos
atrás da cabeça, olho para cima e espero.
Este problema de uma brecha me obcecou; Sempre me pergunto se houve
casos de prisioneiros condenados fugindo no último instante do maquinário
implacável da justiça, rompendo o cordão de isolamento da polícia,
desaparecendo na hora certa antes da queda da guilhotina. Muitas vezes me
culpo por não ter dado mais atenção aos relatos de execuções públicas. Deve-se
sempre ter interesse em tais assuntos. Nunca há como saber a que alguém pode
chegar. Como todo mundo, eu li descrições de execuções nos jornais. Mas livros
técnicos que tratam desse assunto certamente devem existir; eu nunca me senti
suficientemente interessado em procurá-los. E nesses livros eu poderia ter
encontrado histórias de fuga. Seguramente eles teriam me dito de algum caso em
que, de certa forma, as engrenagens da guilhotina pararam; ou que uma vez, pelo
menos uma vez, naqueles procedimentos, o acaso ou a sorte desempenhou um
papel feliz. Só uma vez! De fato, acho que um único caso me tranquilizaria.
Minha emoção teria feito o resto. Os jornais costumam falar de “uma dívida para
com a sociedade” — uma dívida que, segundo eles, deve ser paga pelo infrator.
Mas falar desse tipo não toca a imaginação. Não, a única coisa que contava para
mim era a possibilidade de fugir e derrotar seu rito sanguinário; de uma corrida
louca para a liberdade que de qualquer forma me daria um momento de
esperança, o último lance do jogador. Naturalmente, tudo o que a "esperança"
poderia significar era ser derrubado na esquina de uma rua ou ser atingido por
uma bala nas minhas costas. Mas, considerando todas as coisas, até mesmo esse
luxo me foi proibido; eu fui pego na ratoeira de forma irrevogável.
Por mais que tentasse, não conseguia aguentar essa certeza brutal. Na
verdade, quando parado para pensar nisso, havia uma desproporcionalidade entre
o julgamento e o momento em que a sentença foi dada. O fato do veredito ser
lido às oito da noite ao invés de cinco da tarde, o fato de que poderia ter sido
bem diferente, que foi dado por homens que mudam suas roupas íntimas, e foi
creditado a uma entidade tão vaga quanto o "povo francês" — por que não aos
chineses? ou o povo alemão? — Todos esses fatos pareciam privar a seriedade
da decisão. No entanto, eu não podia deixar de reconhecer que, a partir do
momento em que o veredicto foi dado, seus efeitos tornaram-se tão convincentes
e tangíveis quanto, por exemplo, a parede contra a qual eu estava deitado.
Quando tais pensamentos passaram pela minha cabeça, lembrei-me de uma
história que minha mãe costumava me contar sobre meu pai. Eu nunca pude
conhecê-lo. Talvez as únicas coisas que eu realmente soubesse sobre ele eram o
que Mamãe me contara. Uma delas foi que ele foi ver um assassino ser
executado. O simples pensamento disso virou seu estômago. Mas ele tinha visto
e, ao chegar em casa, estava violentamente traumatizado. Na época, achei a
conduta do meu pai bastante deplorável. Mas agora eu entendi; foi tão natural.
Como deixei de reconhecer que nada era mais importante que uma execução?
Que, visto de um ângulo, é a única coisa que pode genuinamente interessar a um
homem? E eu decidi que, se alguma vez saísse da cadeia, assistiria todas as
execuções que acontecessem. Eu era insensato, sem dúvida, mesmo para
considerar essa possibilidade. Pois, no momento em que me imaginei em
liberdade, em pé atrás de uma fila dupla de policiais — do lado direito da linha,
por assim dizer — o simples pensamento de ser um espectador que vem ver o
espetáculo e pode ir para casa e vomitar depois, inundou minha mente com uma
exultação absurda e selvagem. Foi uma coisa idiota deixar minha imaginação me
levar embora assim; um momento depois, tive um calafrio e tive que me
envolver de imediato no meu cobertor. Mas meus dentes continuaram se
batendo; nada os deteria.
Ainda assim, obviamente, não se pode ser sensível o tempo todo. Minha
outra fantasia ridícula era estruturar novas leis, alterando as penalidades. O que
eu queria, era dar ao criminoso uma chance, mesmo que apenas uma pequena
chance; digamos, uma chance em mil. Podia haver alguma droga, ou
combinação de drogas, que mataria o paciente (eu pensava nele como “o
paciente”) novecentas e noventa vezes em mil. Que ele deveria saber que havia
uma possibilidade de dar errado. Pois depois de pensar muito, com calma,
cheguei à conclusão de que o que havia de errado na guilhotina era que o
condenado não tinha chance alguma, absolutamente nenhuma. De fato, a morte
do paciente era ordenada irrevogavelmente. Se por algum acaso a lâmina não
fizesse o seu trabalho, eles começariam de novo. Então chegou a isto, que —
sem dúvida, o condenado tinha que esperar que o aparelho estivesse em boas
condições! Isso, pensei, era uma falha no sistema; e, em face disso, minha visão
era sólida o suficiente. Por outro lado, eu tive que admitir que isso provava a
eficiência do sistema. O homem sentenciado era obrigado a colaborar
mentalmente, era do seu interesse que tudo saísse sem problemas para ambos.
Outra coisa que eu tinha que reconhecer era que, até agora, eu tinha idéias
erradas sobre o assunto. Por alguma razão eu sempre supus que era preciso subir
degraus e subir em um andaime para ser guilhotinado. Provavelmente isso foi
por causa da Revolução de 1789; Quer dizer, o que eu aprendi sobre ela na
escola e as fotos que eu vi. Então, certa manhã, lembrei-me de uma fotografia
que os jornais publicaram na ocasião da execução de um criminoso famoso. Na
verdade, o aparelho ficava no chão; Não havia nada muito impressionante sobre
isso, e era muito mais estreito do que eu imaginava. Pareceu-me bastante
estranho que aquela foto tivesse escapado da minha memória até agora. O que
me impressionou na época foi a boa aparência da guilhotina; suas superfícies
brilhantes e acabamento me lembraram de algum instrumento de laboratório.
Sempre exageramos as ideias sobre o que não se sabe. Agora eu tinha que
admitir que parecia um processo muito simples, ser guilhotinado; a máquina está
no mesmo nível que o homem, e ele caminha em direção a ela enquanto avança
para encontrar alguém que conhece. De certo modo, isso também era
decepcionante. O negócio de subir um andaime, deixando o mundo abaixo, por
assim dizer, dava algo para a imaginação de um homem se apoderar. Mas, como
foi, a máquina que dominou tudo; eles te matam discretamente, com uma pitada
de vergonha e muita eficiência.
Havia duas outras coisas sobre as quais eu sempre pensava: o amanhecer e
meu apelo. No entanto, eu fiz o meu melhor para manter minha mente fora
desses pensamentos. Deitei-me, olhei para o céu e me forcei a estudá-lo. Quando
a luz começava a ficar verde eu sabia que a noite estava chegando. Outra coisa
que fazia para desviar o curso dos meus pensamentos foi ouvir meu coração. Eu
não podia imaginar que esse fraco latejamento que estivera comigo por tanto
tempo cessaria. A imaginação nunca foi um dos meus pontos fortes. Ainda
assim, tentei imaginar um momento em que as batidas do meu coração não
ecoariam mais na minha cabeça. Mas em vão. O amanhecer e meu apelo ainda
estavam lá. E terminei acreditando que tentar forçar os pensamentos de alguém a
sair do seu ritmo natural era em vão.
Eles sempre vinham de madrugada, eu sabia disso. E então passei minhas
noites esperando pelo amanhecer. Eu nunca gostei de ser surpreendido. Se algo
vai acontecer comigo, eu quero estar pronto. Foi por isso que acabei dormindo
um pouco durante o dia e depois, a noite toda, esperei pacientemente pela
primeira luz que aparecesse no céu. O momento mais difícil era aquela hora
incerta quando eu sabia que eles geralmente começavam a trabalhar. Depois da
meia-noite, eu esperaria e observava... Meus ouvidos nunca ouviram tantos
ruídos ou pegaram sons tão pequenos. Uma coisa que posso dizer, no entanto, é
que, de certa forma, tive sorte o tempo todo, já que nunca ouvia passos. Mamãe
costumava dizer que por mais miserável que seja, sempre há algo pelo que se
agradecer. E todas as manhãs, quando o céu brilhava e a luz começava a inundar
minha cela, eu concordava com ela. Porque eu poderia facilmente ter ouvido
passos e meu coração poderia ter explodido. Mesmo que o farfalhar mais leve
me tenha levado correndo para a porta e, pressionando um ouvido na madeira
áspera e fria, eu escutava tão intensamente que podia ouvir minha respiração,
rápida e rouca como um cão ofegante — mesmo assim havia um fim; meu
coração não tinha se partido e eu sabia que tinha mais uma pausa de vinte e
quatro horas.
Durante todo o dia pensava no meu recurso. Aproveitei ao máximo essa
ideia. Eu sempre começaria assumindo o pior: meu apelo ser negado. "Bem,
então eu vou morrer." Mais cedo do que outras pessoas, obviamente. Mas todo
mundo sabe que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo eu sabia
perfeitamente bem que não importa muito se você morre aos trinta ou aos setenta
anos, já que em ambos os casos outros homens e mulheres continuarão
naturalmente vivendo. Na verdade, nada poderia ser mais claro. Quer fosse agora
ou daqui a vinte anos, eu ainda morreria. Nesse ponto, o que perturbava minha
linha de pensamento era o salto aterrador que sentiria meu coração ao pensar em
ter mais vinte anos de vida à minha frente. Mas eu simplesmente tive que
sufocá-lo imaginando o que estaria pensando em vinte anos, quando tudo se
resumiria à mesma coisa de qualquer maneira. Já que todos vamos morrer, é
óbvio que quando e como não importa. Portanto (e o difícil era não perder de
vista todo o raciocínio que entrava nesse "portanto"), tive que aceitar a rejeição
do meu apelo.
Nesse estágio, mas apenas nesse estágio, eu tinha, por assim dizer, o direito,
e assim me permiti sair para considerar a outra alternativa; que meu recurso foi
aceito. E então o problema foi acalmar aquela onda repentina de alegria correndo
pelo meu corpo e até mesmo trazendo lágrimas aos meus olhos. Mas eu deveria
controlar meus nervos e estabilizar minha mente; pois, mesmo considerando essa
possibilidade, eu precisava manter alguma ordem em meus pensamentos, de
modo a tornar meus consolos, no que diz respeito à primeira alternativa, mais
plausíveis. Quando conseguia, ganhava uma boa hora de paz mental; e isso, de
qualquer forma, era alguma coisa.
Foi em um desses momentos que mais uma vez me recusei a ver o capelão.
Eu estava deitado, e eu poderia dizer pelo brilho dourado no céu que a noite
estava vindo. Eu acabara de negar meu recurso e podia sentir o pulso constante
do meu sangue circulando dentro de mim. Eu não precisava ver o capelão. Pela
primeira vez em um longo tempo eu comecei a pensar em Marie. Ela não
escrevia há muito tempo; provavelmente, imaginei, ela se cansara de ser a
namorada de um homem condenado à morte. Ou ela pode estar doente ou morta.
Afinal, essas coisas acontecem. Como eu poderia saber, já que, além de nossos
dois corpos, separados agora, não havia nenhum elo entre nós, nada para nos
lembrar um do outro? Supondo que ela estivesse morta, sua memória não
significaria nada; Eu não podia sentir interesse em uma garota morta. Isso me
pareceu bastante normal; Assim como eu percebi que as pessoas logo me
esqueceriam uma vez que eu estivesse morto. Eu não conseguia nem dizer que
isso era difícil de suportar.
Meus pensamentos chegaram a esse ponto quando o capelão entrou, sem se
anunciar. Eu não pude deixar de começar a observá-lo. Ele percebeu isso
evidentemente, quando prontamente me disse para não ficar alarmado. Eu o
lembrei que normalmente as visitas dele eram em outra hora, e para uma ocasião
bem desagradável. Isso, ele respondeu, era apenas uma visita amistosa; não tinha
a menor preocupação com o meu recurso, sobre o qual ele nada sabia. Então ele
se sentou na minha cama, me pedindo para sentar ao lado dele. Eu recusei —
não porque eu tivesse algo contra ele; ele parecia um homem calmo e amigável.
Ele permaneceu imóvel no início, com os braços apoiados nos joelhos, os
olhos fixos nas mãos. Eram mãos delgadas, mas vigorosas, o que me fez pensar
em dois pequenos animais ágeis. Então ele gentilmente os esfregou juntos. Ele
ficou tanto tempo na mesma posição que por um tempo eu quase esqueci que ele
estava lá.
De repente, ele levantou a cabeça e me olhou nos olhos.
"Por que", ele perguntou, "você não me deixa vir ver você?"
Expliquei que não acreditava em Deus.
"Você realmente tem tanta certeza disso?"
Eu disse que não via sentido em incomodar minha cabeça sobre o assunto;
se eu acreditava ou não era, na minha opinião, uma questão de tão pouca
importância.
Ele então recostou-se contra a parede, colocando as mãos em suas coxas.
Quase sem parecer se dirigir a mim, ele observou que muitas vezes notou que
uma pessoa imagina que tem certeza sobre algo, quando na verdade não tem. Eu
não disse nada e ele olhou para mim novamente e perguntou:
"Você não concorda?"
Eu disse que parecia bem possível. Mas, embora eu não tivesse tanta
certeza sobre o que me interessava, eu tinha absoluta certeza sobre o que não me
interessava. E a pergunta que ele levantou não me interessou em nada.
Ele desviou o olhar e, sem alterar sua postura, perguntou se era porque eu
me sentia totalmente desesperado por ter falado assim. Expliquei que não era
desespero, mas medo — o que era natural o suficiente.
“Nesse caso”, ele disse com firmeza, “Deus pode ajudá-lo. Todos os
homens que vi em sua posição se voltaram para ele em seu tempo de angústia”.
Obviamente, respondi, eles tinham a liberdade de fazê-lo, se quisessem. Eu,
no entanto, não queria ser ajudado e não tinha tempo para despertar interesse por
algo que não me interessava.
Ele agitou as mãos com frieza; depois, sentando-se, alisou a batina. Quando
isso foi feito, ele começou a falar novamente, dirigindo-se a mim como "meu
amigo". Não foi porque eu tinha sido condenado à morte, ele disse, que ele falou
comigo dessa maneira. Em sua opinião, todo homem na terra estava sob sentença
de morte.
Eu o interrompi; isso não era a mesma coisa, eu apontei, e apesar de tudo,
isso não poderia ser nenhuma consolação.
Ele assentiu. "Talvez. Ainda assim, se você não morrer logo, você morrerá
um dia. E então a mesma pergunta irá surgir. Como você vai encarar essa hora
final e terrível?”
Eu respondi que eu iria encarar exatamente como eu estava encarando
agora.
Então ele se levantou e me olhou diretamente nos olhos. Era um truque que
eu conhecia bem. Eu costumava me divertir tentando em Emmanuel e Céleste, e
nove em dez vezes eles olhavam desconfortavelmente. Eu podia ver que o
capelão era experiente nisso, pois seu olhar não vacilava. E sua voz era bastante
firme quando ele disse: “Você não tem esperança alguma? Você realmente acha
que quando você morre tudo acaba?”
Eu disse: “Sim."
Ele baixou os olhos e sentou-se novamente. Ele realmente sentia muito por
mim, ele disse.
O padre estava começando a me entediar e, apoiando um ombro na parede,
logo abaixo da pequena clarabóia, desviei o olhar. Embora eu não tenha tido
dificuldade em seguir o que ele disse, eu entendi que ele estava me questionando
novamente. Logo seu tom ficou agitado, urgente e, quando percebi que ele
estava genuinamente angustiado, comecei a prestar mais atenção.
Ele disse que se sentia convencido de que meu apelo teria sucesso, mas eu
estava sobrecarregado com uma carga de culpa, da qual devia me livrar. Em sua
opinião, a justiça do homem era uma coisa vã; só a justiça de Deus importava.
Eu indiquei que o primeiro havia me condenado. Sim, ele concordou, mas o
segundo não me absolveu do meu pecado. Eu disse a ele que não estava
consciente de nenhum "pecado"; tudo que eu sabia era que eu tinha sido culpado
de uma ofensa criminal. Bem, eu estava pagando a penalidade dessa ofensa, e
ninguém tinha o direito de esperar mais de mim.
Nesse momento, ele se levantou de novo, e me ocorreu que, se ele quisesse
se mudar para aquela minúscula cela, a única escolha era entre ficar de pé e
sentar. Eu estava olhando para o chão. Ele deu um único passo em minha direção
e parou, como se não ousasse se aproximar. Então ele olhou através das barras
para o céu.
"Você está enganado, meu filho", ele disse gravemente. “Há mais coisas que
podem ser exigidas de você. E talvez seja exigido de você.”
"O que você quer dizer?"
"Você pode ser solicitado a ver..."
"Ver o que?"
Lentamente, o padre olhou em volta da minha cela e fiquei impressionado
com a tristeza de sua voz quando ele respondeu:
“Esses muros de pedra, sei muito bem, estão impregnados de sofrimento
humano. Eu nunca fui capaz de olhar para eles sem um tremor. E ainda —
acredite em mim, estou falando do fundo do meu coração — eu sei que até
mesmo o mais desgraçado entre vocês alguma vez viu, tomando forma contra
essa parede, um rosto divino. É esse rosto que você é convidado a ver.
Isso me despertou um pouco. Eu informei a ele que eu estava olhando para
as paredes há meses; não havia ninguém, nada no mundo, que as conhecia
melhor. E uma vez, talvez, eu tentei ver um rosto. Mas era um rosto dourado
como o sol, iluminado pelo desejo — o rosto de Marie. Não tive sorte; Eu nunca
vi, e agora desisti de tentar. De fato, eu nunca vi nada "tomando forma", como
ele chamava, contra aquelas paredes cinzentas.
O capelão olhou para mim com uma espécie de tristeza. Eu agora estava de
costas para a parede e a luz estava fluindo sobre a minha testa. Ele murmurou
algumas palavras que eu não peguei; Então, abruptamente perguntou se ele
poderia me beijar. Eu disse: "Não." Então ele se virou, foi até a parede e
lentamente passou a mão ao longo dela.
"Você realmente ama muito essas coisas terrenas?", Ele perguntou em voz
baixa. Eu não respondi.
Por um bom tempo, ele manteve os olhos desviados. Sua presença estava
ficando cada vez mais cansativa, e eu estava a ponto de dizer a ele para ir
embora, e me deixar em paz, quando de repente ele se virou para mim e explodiu
impulsivamente:
"Não! Não! Eu me recuso a acreditar. Tenho certeza de que você sempre
desejou que houvesse vida após a morte. ”
Claro que sim, eu disse a ele. Todo mundo tem esse desejo às vezes. Mas
isso não tinha mais importância do que desejar ser rico, ou nadar muito rápido,
ou ter uma boca mais firme. Era a mesma ordem das coisas. Eu estava indo na
mesma linha, quando ele cortou com uma pergunta. Como imaginava a vida
depois do túmulo?
Eu quase gritei com ele: “Uma vida em que eu possa lembrar desta vida na
terra. Isso é tudo que eu quero.” E ao mesmo tempo eu disse a ele que tinha o
bastante da companhia dele.
Mas, aparentemente, ele tinha mais a dizer sobre o assunto de Deus. Eu fui
perto dele e fiz uma última tentativa de explicar que eu tinha muito pouco
tempo, e eu não iria desperdiçar em Deus.
Então ele tentou mudar de assunto perguntando por que eu não me dirigia a
ele como "Pai", visto que ele era um padre. Isso me irritou ainda mais, e eu disse
a ele que ele não era meu pai; pelo contrário, ele estava do lado dos outros.
"Não, não, meu filho", disse ele, colocando a mão no meu ombro. "Eu estou
do seu lado, embora você não perceba, porque seu coração está endurecido. Mas
eu vou orar por você.”
Então, eu não sei o que aconteceu, mas algo pareceu quebrar dentro de
mim, e eu comecei a gritar o mais alto que podia. Eu o insultei, disse a ele para
não desperdiçar suas preces podres em mim; Era melhor queimar no inferno do
que desaparecer. Eu o peguei pelo colarinho de sua batina e, em uma espécie de
êxtase de alegria e raiva, despejei nele todos os pensamentos que estavam
fervendo em meu cérebro. Ele parecia tão convencido, entende? E, no entanto,
nenhuma de suas certezas valia uma mecha do cabelo de uma mulher. Vivendo
daquela maneira, como um cadáver, ele não podia ter certeza de estar vivo. Pode
parecer que minhas mãos estavam vazias. Na verdade, eu tinha certeza de mim
mesmo, certeza sobre tudo, mais seguro do que ele; certo da minha vida atual e
da morte que estava por vir. Isso, sem dúvida, era tudo que eu tinha; mas pelo
menos essa certeza era algo em que eu poderia me agarrar. Eu estava certo, eu
ainda estava certo, sempre tive razão. Eu vivi minha vida de uma certa forma, e
eu poderia ter vivido de uma maneira diferente, se eu tivesse vontade. Eu agi
assim, e eu não agi de outra forma; Eu não fiz x, enquanto fiz y ou z. E o que
isso significa? Que, o tempo todo, eu estava esperando pelo momento presente,
por aquele amanhecer, amanhã ou outro dia, que era para justificar-me. Nada,
nada tinha a menor importância e eu sabia muito bem por quê. Ele também sabia
por quê. Do horizonte escuro do meu futuro, uma brisa lenta e persistente
soprava em minha direção, durante toda a minha vida, dos anos que estavam por
vir. E no seu caminho essa brisa nivelara todas as ideias que as pessoas tentaram
impingir a mim nos anos igualmente irreais que eu então vivia. Que diferença
poderiam fazer para mim, a morte dos outros, o amor de uma mãe ou de seu
Deus; ou mesmo o modo como um homem decide viver, o destino que ele pensa
que escolhe, uma vez que o mesmo destino estava destinado a "escolher" não
apenas a mim, mas também milhares de milhões de pessoas privilegiadas que,
como ele, se chamavam meus irmãos. Certamente ele deve ver isso? Todo
homem vivo era privilegiado; havia apenas uma classe de homens, a classe
privilegiada. Todos seriam condenados a morrer um dia; a sua vez também viria
como as dos outros. E que diferença poderia fazer se, depois de ser acusado de
assassinato, ele fosse executado porque não chorou no funeral de sua mãe, já que
tudo caminha para o mesmo fim? O mesmo aconteceu com a esposa e com o
cachorro de Salamano. Aquela pequena mulher marionete era tão “culpada”
quanto a garota de Paris que se casara com Masson, ou como Marie, que queria
que eu me casasse com ela. O que importava se Raymond fosse tanto meu amigo
quanto Céleste, que era um homem muito mais meritório? O que importava se
nesse exato momento Marie estivesse beijando um novo namorado? Como
condenado, ele não entendia o que eu queria dizer com aquele vento sombrio que
soprava do meu futuro?...
Eu estava gritando tanto que perdi o fôlego, e então os carcereiros entraram
correndo e começaram a tentar libertar o capelão do meu aperto. Um deles fez
como se me golpeasse. O capelão os acalmou, depois olhou para mim por um
momento sem falar. Eu podia ver lágrimas em seus olhos. Então ele se virou e
saiu da cela.
Depois que ele se foi, me senti calmo de novo. Mas toda essa excitação me
exauriu e caí pesadamente na cama. Eu devo ter tido um longo sono, pois,
quando acordei, as estrelas estavam brilhando no meu rosto. Os sons do campo
entraram fracamente e o ar fresco da noite, cheio de cheiros de terra e sal,
abanou minhas bochechas. A maravilhosa paz da noite de verão adormecida
atravessou-me como uma maré. Então, à beira do amanhecer, ouvi uma sirene de
vapor. As pessoas estavam começando uma viagem para um mundo que deixara
de me preocupar para sempre. Quase pela primeira vez em muitos meses, pensei
em minha mãe. E agora, pareceu-me, entendi por que, no final de sua vida, ela
havia assumido um “noivo”; porque ela tocou em fazer um novo começo. Lá
também, naquele Lar onde as vidas estavam se apagando, o crepúsculo veio
como um consolo pesaroso. Com a morte tão próxima, mamãe deve ter se
sentido como alguém à beira da liberdade, pronta para recomeçar a vida.
Ninguém, ninguém no mundo tinha o direito de chorar por ela. E eu também me
senti pronto para começar a vida de novo. Era como se aquela grande onda de
raiva tivesse me lavado, me esvaziado de esperança e, olhando para o céu escuro
coberto com suas estrelas, pela primeira vez, eu coloquei meu coração aberto
para a benigna indiferença do universo. O senti tão parecido comigo, de fato, tão
fraternal, me fez perceber que eu tinha sido feliz e que eu ainda era feliz. Para
que tudo se realizasse, para me sentir menos solitário, tudo o que restava à
esperança era que, no dia da minha execução, houvesse uma enorme multidão de
espectadores e que eles me saudassem com gritos de ódio.

FIM

Table of Contents
Parte Um
I
II
III
IV
V
VI
Parte Dois
I
II
III
IV
V

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