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A Revista LiteraLivre foi criada para unir

Volume 5, Edição Especial: “Os escritores de Língua Portuguesa,


Melhores do Ano de 2021” publicados ou não, de todos os lugares
do mundo.
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Olá, amigos(as) leitores(as) e autores(as), é com muita honra que trago
até vocês a edição “Os Melhores do Ano da Revista LiteraLivre”, de 2021.
Graças ao apoio dos nossos leitores Beta(não participantes da revista),
foram escolhidos 10 textos de cada edição, para compor esta revista tão
especial.
Quero agradecer aos amigos(as) que nos acompanharam durante o ano,
dedicando um tempinho para ler os textos incríveis que publicamos e com isso,
viajaram pelo mundo através de contos, crônicas e poemas de todos os
lugares.
Obrigada pelas mensagens de carinho!
Lembrando que, em janeiro, teremos nossa edição de 5º aniversário, uma
grande conquista para um caderno literário.
Literatura com liberdade sempre!!
Boas Festas e um 2022 de esperança e renascimento. Abraços poéticos!!
Premiados:
25ª edição...................................................................................................4
Jan./Fev...............................................................................................................................4
Amélia Luz..................................................................................................5
Ana Maria Fázio de Freitas...........................................................................7
Charles Burck..............................................................................................8
Edweine Loureiro.........................................................................................9
Gedeane Costa..........................................................................................11
Joyce Nascimento Silva..............................................................................12
Maria Carolina Fernandes Oliveira.............................................................13
Maria Elza Fernandes Melo Reis.................................................................14
Nercy Grabellos.........................................................................................15
Teresa Azevedo.........................................................................................16
26ª edição.................................................................................................18
Mar./Abr...........................................................................................................................18
Andressa Galvão........................................................................................19
Billie Bee...................................................................................................20
Carmem Aparecida Gomes........................................................................22
Jeane Tertuliano........................................................................................24
Leandro Moreira de Sousa.........................................................................25
Luiz Roberto da Costa Júnior.....................................................................26
Michell Ribeiro Sobral...............................................................................27
Pedro Guerra Demingos............................................................................29
Vitor Sergio de Almeida.............................................................................30
Vitória Ferreira..........................................................................................31
27ª edição.................................................................................................32
Mai./Jun...........................................................................................................................32
Adriana Manduco......................................................................................33
Aline Ferreira do Carmo............................................................................37
JAX............................................................................................................38
Jeferson Ilha..............................................................................................40
Jéssica Iancoski.........................................................................................41
Luciane Leal..............................................................................................42
Marcos Pontal............................................................................................43
Mestre Tinga das Gerais............................................................................44
Paulo Luís Ferreira.....................................................................................45
Rozz Messias............................................................................................50
28ª edição.................................................................................................51
Jul./Ago............................................................................................................................51
Alan Rubens..............................................................................................52
Cleidirene Rosa Machado..........................................................................53
Daniela Genaro..........................................................................................56
Dias Campos.............................................................................................57
Jorge Gonçalves de Abrantes.....................................................................60
Leandro Emanuel Pereira...........................................................................61
Maria Toinha e Marcos Andrade................................................................62
Ovidiu-Marius Bocsa.................................................................................64
Sandra Modesto........................................................................................65
Valéria Barbosa.........................................................................................66
29ª edição.................................................................................................67
Set./Out............................................................................................................................67
Alberto Arecchi.........................................................................................68
Ariane de Medeiros Pereira........................................................................71
Caroline Cristina Pinto Souza....................................................................74
Denis Roso................................................................................................75
Marvyn Castilho........................................................................................76
Nazareth Ferrari........................................................................................77
Nilde Serejo...............................................................................................78
Roberto Schima.........................................................................................79
Rosa Maria Soares Bugarin........................................................................81
Willian Fontana..........................................................................................83
30ª edição.................................................................................................89
Nov./Dez..........................................................................................................................89
Carlos Jorge Azevedo................................................................................90
Conceição Maciel.......................................................................................91
Gisela Peçanha..........................................................................................92
Luisa Cisterna...........................................................................................94
Paulo Cezar Tórtora..................................................................................95
Reinaldo da Silva Fernandes......................................................................96
Rosangela Maluf......................................................................................100
Sigridi Borges..........................................................................................102
Tauã Lima Verdan Rangel........................................................................103
Vadô Cabrera..........................................................................................104
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

25ª edição

Jan./Fev.

Amélia Luz – Mariana/MG - CRÔNICA: CATATAU


Ana Maria Fázio de Freitas – Assis/SP- Triste silêncio
Charles Burck – Rio de Janeiro - Labirintos forjados
Edweine Loureiro - Saitama – Japão - Carpe Diem!
Gedeane Costa – Recife/PE - Sonhar com seus abraços
Joyce Nascimento Silva - Rio de Janeiro/RJ – Maldades
Maria Carolina Fernandes Oliveira - Belo Horizonte/MG - Rosas e Ritas
Maria Elza Fernandes Melo Reis – Capanema/PA - Alimente-se de amor
Nercy Grabellos - Rio de Janeiro - Amor de Irmão – Haicais
Teresa Azevedo - Campinas/SP - Olhar com os olhos de outros

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Amélia Luz
Mariana/MG

CRÔNICA: CATATAU

(Para Paulo Leminski)

A noite era pequena para os seus sonhos eletrizantes. Caía a madrugada e


ele perdido entre letras e metáforas trabalhava no seu ofício com servidão. Às
vezes ele parecia calmo, outras ele parecia agitado e inquieto no seu processo de
criação. Gênio, não se cansava nunca! Dedilhava com entusiasmo e arte o velho
violão, companheiro fiel da sua solidão de poeta. A palavra era a sua lâmina
sangrando veias de onde escorriam mananciais de versos conferidos de
polêmicas vitórias. Sua existência não foi vã, embora incompreensível, vazou a
lápide no canto imortal, cristal transparente, além da tumba... - “Catatau”, saia
debaixo do braço do autor, chegue mais perto, chegue... Permita-nos entendê-lo
na sua complexidade léxica! Peleja criativo o poeta no seu verso universal
buliçoso e alvissareiro na “Metamorfose” da vida que o fez assim, célebre
escritor! Sinaleiro de uma geração sem rumo seguiu trafegando nas veredas da
contramão, ditador de um tempo, persistente que era nas suas certezas...
Vestimos hoje o colorido alegre das suas idéias (in)questionáveis. Somos uns
bandos de inocentes galopando irreverentes em suas trilhas, multiplicadores das
suas verdades, sucedâneos vigilantes da sua memória. Sem gravatas e honrosas
pompas lambuzamos nossas mãos na matéria prima que para nós deixou argila
fresca com a qual construímos silêncios, vozes e manifestos transbordados em
copos de essências puras. Embebedamos a nossa consciência numa eterna
alvorada, “Sintonia para pressa e presságio”.

Dos seus lábios não há mudez de morte. Há um grito poderoso a ecoar


levando-nos a velar sempre pela preciosa obra literária que herdamos das suas
mãos de mestre.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

“Paulo, tu és pedra” Paulo,


filosofal, literária ou poética,
“sobre ti edificaremos”
nosso castelo de sabedoria...

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Ana Maria Fázio de Freitas

Assis/SP

Triste silêncio

Ah! Triste silêncio que atormenta almas


Com seu pincel descolorindo o mundo,
Com tons escuros manchando-as, desalma,
Deformando sentimentos profundos.
Vai sombreando corações moribundos,
Desbotando ilusões, pintando traumas.
Ah! Triste silêncio que atormenta almas
Com seu pincel descolorindo o mundo.
Tingindo os sonhos, roubando a calma,
Borrando no peito o amor profundo.
A magia das cores já não mais acalma
Ocultando vidas em um submundo.
Ah! Triste silêncio que atormenta almas!

https://www.facebook.com/anadefreitas.freitas.3/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Charles Burck
Rio de Janeiro

Labirintos forjados

Havia um canto para onde eu corria para me proteger do mal,

Onde a vida e as pessoas se esqueciam de mim,

Labirinto forjado na inocência do medo,

As fugas dos vazios do mundo

Às vezes, criava asas, fluido na direção contrária do pouso,

E lá do alto eu via as paredes ocres, e as moradas dos pássaros

De cima, vindas do céu minhas lágrimas pareciam chuvas,

Havia nesses momentos um riso solto, a liberdade criando alegrias

E eu era apenas feliz, não sabia de mais nada,

Deus tocava o meu peito menino com um carinho que só Deus tem

Assim eu era dono de mim, filho do mar com os ventos,

Onde os sons tinham bocas e dentes e uma flor no canto dos lábios,

O meu jardim era o espaço, o infinito feito de mim,

Um assovio feito de algum elemento divino chamando o meu nome,

Disseram-me que eu inventei um céu de histórias

Acho que nunca inventei nada, era tudo nascido da vontade de ser

Ainda lembro-me dele até hoje, do menino feliz, me chamando para os seus voos

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Edweine Loureiro
Saitama – Japão

Carpe Diem!

Quem afirma que o povo japonês só no qual empresas e escolas reiniciam


trabalha e jamais se diverte certamente suas atividades. Além de ser um
ainda não presenciou um “hanami”. período em que as pessoas decidem
Aliás, o termo, oriundo da aglutinação mudar de casa, de emprego e até de
entre a palavra “hana” (flor) e a estilo de vida (por exemplo, iniciando
primeira parte do verbo “miru” (ver), já exercícios físicos).
é, em si, de um colorido que reflete Mas o florescimento da cerejeira
muito bem a alegria dos japoneses que, também tem um outro significado, a
todos os anos, reúnem-se para celebrar meu ver, ainda mais poético: o do
— com um bom bate-papo, muita valor da brevidade da vida. Isso
comida e saquê ― o florescimento da porque as flores, adornando a
cerejeira (ou “sakura”). cerejeira por um período de apenas
E não se trata, aqui, de um simples duas semanas, ensinam-nos a
piquenique no parque. Não, caros aproveitar a beleza daquilo que é
leitores: o hanami também simboliza, fugaz... como a própria existência
para os japoneses, a necessidade de humana.
renovação que chega com o fim do Os árcades ― poetas do século XVIII
inverno. É tempo de sair de casa com a que foram influenciados pelo
família e os amigos para apreciar tudo o Iluminismo ― tinham, a respeito
que a Natureza nos proporciona. Tempo dessa fugacidade, um termo em latim
de novos ares... e de esperanças. De que sempre me fascinou: o “carpe
modo que, não coincidentemente, o diem”; que significa “aproveitar o
“abril das cerejeiras” é também o mês dia”. Um princípio que também foi

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

ensinado pelo professor interpretado por O que, traduzido aproximadamente,


Robin Williams no filme “Sociedade dos seria: “Quero ainda ver/ nessas
Poetas Mortos”. E é precisamente o flores, no alvorecer,/ a face de um
“carpe diem” que me vemà lembrança deus”.
quando observo a felicidade Ao escrever tão lindos versos, Bashô
de meus irmãos japoneses ao redor de possivelmente também se inspirava
uma cerejeira em flor: pois percebo, no fenômeno do “komorebi”, que é a
ali, de como às vezes luz do sol, dispersa e “salpicada”,
perdemos tempo tentando “vencer na brilhando através das árvores: como
vida” ou “ganhar uma batalha” (muitas se, de fato, um deus resolvesse
vezes, de ego), quando a verdadeira aparecer, fragmentado, diante de
vitória está em sentar-se e agradecer nossos olhos. É, pois, a imaginação
pelos breves momentos de alegria que a do poeta sendo aguçada pelo registro
vida nos oferece. Uma ideia que, vale de um momento que, exatamente por
ressaltar, também Matsuo Bashō (1644- ser breve, torna-se tão divino: como
1694) transmitiu em haicais como este: o hanami... e a vida.
“Nao mitashi/ hana ni ake yuku/ kami ***
no kao”.

https://www.facebook.com/edweine.loureiro

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Gedeane Costa
Recife/PE

Sonhar com seus abraços

Sonhar com seus abraços


e em cada pensamento
entrego e me laço
repouso,
flutuo sem sair do chão
fincada no seu coração

Sonhar me faz perto de você


escutando os batimentos
do seu coração acelerado
a cada beijo dado
sentindo seu perfume
rezando que o tempo
seja curto para te ver.

Sonhar que você nunca existiu


mas a sua imagem
fica gravada...
mesmo num deserto
seja uma miragem
que meu peito aperta
inquietado, diz:
é mentira!
Foi embora,
como uma vela acesa
que ao vento se apaga...
Não demora!
Minha vontade presa...
do amor que se acaba!!

http://paginasinfinitas.blogspot.com/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Joyce Nascimento Silva


Rio de Janeiro/RJ

Maldades

São tantas cobranças

Destruição

Mentiras e artimanhas

Tanta dor Vício

E muito horror

São tantos demônios

Disfarçados de bons samaritanos

(aparências que enganam)

São tantas armadilhas

Entre o sorriso e um bom dia

(tantas falhas para rimar)

Não, não quero mais escrever

Sobre as maldades que ele fez.

https://www.youtube.com/channel/UCyaiIUU0W0SEdJouPCKrulA
https://anchor.fm/literatura-ja

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Maria Carolina Fernandes Oliveira


Belo Horizonte/MG

Rosas e Ritas

Rosas e Ritas aspiram e expiram.

saem da favela Nós!

e deixam as filhas

(não há opção), Mulher três vezes

partem dos morros tripla jornada

e andam entre mortos batalham e bradam

(bala perdida, absolvição), nos grandes sobrados.

sangram os pés

e rumam à mansão. Todas retornam

flutuam sobre escombros

Esfregam só escoam

vidro manchado sem escolha,

visão embaçada sem escolta,

rouco pó. todas Ritas

e Rosas.

Fadiga e frasco - e o amanhã já ecoa.

ciscos e janelas

pisos e panelas, (Inspirado nas filigranas de Ana Maria

(Elas?) Machado, uma releitura de seu poema Naus e

inspiram e varrem nós).

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Maria Elza Fernandes Melo Reis


Capanema/PA

Alimente-se de amor

Que o amor alimente nossas almas


Nesse deserto de dias distantes
Onde os abraços são desejos necessários
Que a brisa que toca nossa face
Seja de esperança e saudade
Dos dias que cantávamos afeições
Sorria!
É hora de abraçar lembranças
Se revestir de fé, solidariedade
É tempo de rever sentimentos
De olhar pro arco-íris
E contemplar a arte de Deus
Alimente-se do amor que cura
Amor leve que não tortura
Que não te machuca
Que apenas acaricia tua alma
De tanto te querer bem.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Nercy Grabellos
Rio de Janeiro/RJ

Amor de Irmão - Haicais

Amor de irmão
Tua partida
Deixou-me no chão

Desde crianças
Sempre unidos
Nas esperanças

A dor da partida
No meu coração
Até o fim da vida

Nas dificuldades
Com nossa família
Vencemos as adversidades

A paz celestial
Esteja contigo
No espaço sideral

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Teresa Azevedo
Campinas/SP

Olhar com os olhos de outros

Enquanto o elevador descia, meus altivo de quem se sentia acima de


horizontes se abriram em trezentos e qualquer coisa… Espere, não era
sessenta graus e passei a ver não assim que aquele garoto rico
somente sob minha ótica, mas com os pensava, eu soube que não era, ele
olhos dos outros. Primeiro olhei para o olhava o garoto maltrapilho e
alto e senti o prazer de viajar ao lado da pensava em como aquele menino era
mulher amada ao ver que um avião livre, não tinha que viver engomado,
cortava o céu. Mal olhei para frente e ter que cumprir aquela agenda
senti o desespero de um pássaro ao apertada em aulas de inglês, francês,
perceber que colidiria com o prédio e vi espanhol, esgrima, natação, artes
passar outro avião. Sim, era um marciais, ir a jantares chatos ao lado
elevador panorâmico, mas não era isto dos pais que nem sequer o
que me fez ver tudo de modo diferente, conheciam, apenas o queriam como
algo dentro de mim mudou parte da fachada da família rica e
repentinamente como que chamando feliz. Então meu olhar foi para o
minha atenção para o sofrimento alheio. semáforo fechado e, por um instante,
Olhei para baixo e fui arrebatado para eu era o motorista do garoto rico, que
diversas situações. Primeiro vi aquele abriu a janela e deu umas moedas
garoto maltrapilho a mendigar no para o garoto pobre que agradeceu e
semáforo e gelei ao sentir o desprezo acelerou o carro, pois o sinal abrira.
com que olhavam para ele, sua fome, Pensou em sua mulher que havia
frio, medo de não conseguir arrecadar a brigado com ele naquela manhã por
“féria” do dia, seu olhar de desejo de ser um motivo tão fútil que ele nem se
o garoto rico que passava dentro do belo lembrava, maquinando sobre o
carro com um celular em punho, olhar motivo dela estar brigando tanto com

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

ele nos últimos tempos, pois era tão estar presa, mas para saber como
amorosa antes. Foi tomado de um ciúme estavam seus filhinhos quando os viu
repentino ao lembrar do novo vizinho apenas chorando pelo susto. Soube
atlético, ansiando por terminar seu dia e que não tinham se ferido, quis
tirar tudo a limpo. Envolto em seus apenas abraçá-los, porém, foi
pensamentos, o motorista não percebeu angustiante, pois estava presa às
que um carro entrara na contra-mão e ferragens e teve que aguardar que a
não teve tempo para parar antes da tirassem dali. Senti o desespero dela
colisão. Senti todo o desespero do quando viu duas senhoras retirando
motorista naqueles milissegundos em seus filhos do carro para tentar
que vira o carro, que tentara parar e que acalmá-los, e não sossegou até que
não conseguira, meus braços doeram ao ambos fossem colocados próximos a
sentir a força que ele fez para segurar o ela. Muitas pessoas paravam para
carro, virar para trás e ver como estava saber o que estava acontecendo e
o garoto rico, que estava desmaiado e meus olhos passavam a ver como
tinha um corte no rosto causado pelo sendo cada um deles. Quase
impacto do celular que fora arremessado enlouqueci ao perceber como a ótica
na hora da batida. No outro carro estava dos outros é diferente da minha.
uma mulher com a perna direita presa Voltei a mim com o impacto da
na lataria, imediatamente as dores que parada do elevador no andar térreo e
eu sentia nos braços passaram a ser meu celular tocando, avisando que
dores horríveis na perna e minha ótica minha mulher e filhos tinham sofrido
agora era a da mulher que havia saído um acidente.
atrasada de casa porque teve que Concluí que olhar com os olhos dos
refazer a comida que queimara, após a outros nos surpreende não apenas
rotina de acordar, cuidar dos filhos, por saber que o outro nem sempre é
arrumar a casa, lavar, passar, cozinhar e como pensamos, mas porque o que
perceber que estava em cima da hora ele pensa representa muito mais o
para levar as crianças para a escola. que nós sentimos e pensamos do que
Senti seu desespero, não por sua perna imaginamos.

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26ª edição

Mar./Abr.

Andressa Galvão - Rio Grande do Norte - Pandemia: o isolamento das mulheres


Billie Bee - Londrina/PR - Lírica da tormenta
Daniel Cardoso Alves - Belo Horizonte/MG - Sociedade nefasta
Jeane Tertuliano - Campo Alegre/AL - Inefável Perigo
Leandro Moreira de Sousa - Rio de Janeiro/RJ - O homem da máscara de pano
Luiz Roberto da Costa Júnior – Campinas/SP
Michell Ribeiro Sobral - Barreiras/BA - Alexandre, o Grande na batalha do rio Grânico
Pedro Guerra Demingos- Porto Alegre/RS – Imortal
Vitor Sergio de Almeida - Uberlândia/MG - Vil fome – infame sistema
Vitória Ferreira - Porto, Portugal - Outrora, não agora
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Andressa Galvão

Pandemia: o isolamento das mulheres

olhos fortes machismo estrutural


encharcados casa trabalho filhos
inchados falhas nos auxílios jurídicos
de chorar masculinidade como arma
de apanhar relações abusivas
o abrigo virou campo de guerra laços tóxicos
estar em casa é correr riscos a doença social multiplica os óbitos
vide o aumento no índice de agressão às mulheres jornada tripla
barreiras e falhas a pandemia pede isolamento
(in)segurança dentro de casa estar isolado com o inimigo
feminicídio é martirio
sobrecarga amor mascarado
cuidar primeiro a dor
ser cuidada depois o afago
trabalho e intimidade se interpenetram o perdão
sem descanso ou férias quantas chances eles terão
dores nas costas antes de arrancar a vida de quem vive sob
braços e pernas pressão

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Billie Bee
Londrina/PR

Lírica da tormenta

“The angry, the empty, the lonely, the tricked.


We are all museums of fear.”
(Charles Bukowski)

Uivam
os ventos
Presságios
assobiam
Vindouras
desesperanças
Assombrosamente estão prestes a chegar

Negras nuvens absorvem o último afilado feixe de luz


O firmamento enclausura-se, plúmbico, caliginoso, obscuro
Agonizando está o dia, crepúsculo, escuridão total, sufoco oco, soco
Árvores dançam em descompasso, convulsionam, cansam em desperdiço vil
Perigo, trovoadas, estrondos, raios, luminosidade que rompem o cenário
enegrecido
Relâmpagos, intermitência de luzes, comandam, lideram o desalento fulcral e a
aflição
Que dilaceram, sabotam, transtornos, conflitos, palpáveis são a incompreensão e
a discórdia
Os fenômenos, materialidades e projeções de tempestuosidades intempestivas
me amolam

20
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Extrapolam, gritam, a desordem, demência, desvario que insistem em torturar

Quando vou me libertar?


Busco o refrigério
Quero partir (e) só
Devo esperar?

Lá fora
Agora
Estranha
Leveza
Calmaria
Admiro
uma gotícula
no vitral
Ponto
cristalino
que desliza
vacilante
E,
por fim,
se
esvai.

21
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Carmem Aparecida Gomes


Ipameri/GO

Sua Loucura

E daí se eu enlouquecer?

Sentir aquele calor a flor da pele...

Eu quero mais é pecar e aumentar a sua loucura.

Desnuda o meu corpo pedindo para os anjos perdão, sussurra no meu ouvido te amo sem razão
e adoro provocar em você excitação.

Use a sua loucura sem cair em si...

Não olhe para os lados enquanto o seu corpo sobre o meu corpo se movimente como

Se dançasse um fervente tango.

Use mais de sua loucura sem pensar em pecados e nem nos anjos de olhos vendados

Para não nos tornar condenados.

Eu quero ser castigada enquanto deliro que sou sua princesa casta e com você bailo uma valsa.

Não caia em si!

Faça o seu corpo sobre o meu corpo acompanhar o tango em refrão.

Enlouqueça-me de vez!

Ao cair da noite, na cama, no sofá, no chão ou encostados no corrimão.

Mate todos os meus desejos!

Possua-me com doces e longos beijos em vários refrãos.

22
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Não se preocupe!

Não seremos julgados.

Meu amor, os anjos estão de olhos vendados.

Eu quero te ver pecar e o meu corpo por você ser castigado.

Somos dois insanos! Além da cama nos amamos.

Venha me dar o seu corpo. Sinta os meus lábios!

Realize todas as suas fantasias caindo em tentação. Use a sua loucura e me deixe louca sem
pedir perdão.

23
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Jeane Tertuliano
Campo Alegre/AL

Maria não vai com as outras


Maria era ingênua, dum filósofo aclamado.
ou seria ignorante? Maria deixou de ir
Acreditava nas amigas com as outras
(da onça) à igreja.
e fazia A mulher
o que lhes diziam (se reconhecendo
ser o correto, como tal),
não importando já não assistia
se aquilo de fato às novelas,
era certo. preferia
Um dia, ler jornal.
a pobre moça Adquiriu
que lia somente novos livros
o livro s(agrado), e fez da leitura,
recebeu de presente um vício;
da professora descrente Maria cansou
um exemplar da obra de ser gado.

https://instagram.com/lirismoemflor/

24
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Leandro Moreira de Sousa


Rio de Janeiro/RJ

O homem da máscara de pano


no descalabro das pandemias
o vento anuncia que o tempo é rei
e o ser humano coadjuvante
sendo o tal do vírus o ator principal

na televisão só dava ele


soube que usava coroa
e que seu reinado se dava por bocas e gargantas
fugi, mas ele me encontrou em maio

eu me escondi!
me fechei para a vida!
e questionei a humanidade da humanidade

ganhei a liberdade em junho


aí, foi quando questionei a minha liberdade pela primeira vez
-que liberdade?
-se a liberdade que eu ganho tira as liberdades de outras pessoas?
isso não parecia ser liberdade

em julho voltei pra praça consciente


eu virei rebanho
mas não me descuidei, botei no meu rosto a minha arma
tomei a responsabilidade pra mim e pro mundo
esperando sair uma pessoa melhor desse furação
que roubou a minha parca presença no mundo
chega de liberdade que não respeita o próximo!

25
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Luiz Roberto da Costa Júnior


Campinas/SP

S.O.S.

O pulmão do mundo sem ar


não respira o puro oxigênio

Longa distância sobre o mar verde


sobrevoando o horizonte sem fim

Falta ajuda e o cilindro


Corrida contra o tempo

Na enorme fila da eterna espera


Carregar peso vazio para encher

o sopro da vida sem


morrer a esperança

de uma luta sem


trégua pelo viver

http://www.recantodasletras.com.br/autores/lrcostajr

26
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Michell Ribeiro Sobral


Barreiras/BA

Alexandre, o Grande na batalha do rio Grânico (334 a.C.)

Ventos uivantes do Norte Com o sangue dos bravos guerreiros


Trazem o som dos galopes Morrendo com seus companheiros ao
Das tropas guerreiras audazes lado!
Persas bárbaros vorazes
Tremendos soldados algozes
Após cruzarmos o Helisponto
Sem medo, com fúria e velozes
Estamos a margem do rio Grânico
Cavaleiros e infantes vivazes
Esperando aquele momento
Sob ordens dos sátrapas perspicazes
Em que ecos serão ressoados
Levando o estandarte da morte!
Gritos de guerra entoados
Corpos de combatentes marchando
Como flechas lançadas ao alvo Para o confronto pretendido e
Correm os persas gritando e armados inevitável
Também gregos, traidores mercenários Quando o aviso será tocado
Para as margens do rio Grânico Pela corneta de som agradável
Esperando o momento do contato Ordenando o ataque inimaginável!
Dos exércitos que estão separados
Por um fluxo de água límpido
Shaat, Shaat, Shaat!
Que em instantes ficará manchado

27
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Este é o som do embate No momento começa a tombar


Das lanças e escudos no combate O esplendoroso Império Aquemênida
Dos golpes das espadas na carne Cabeças de sátrapas a rolar
Das lesões expelindo sangue Sua soberba será punida
Das dores ao receber o corte Sem ninguém para se consolar
Dos delírios perto da morte Pelos erros e pela infâmia
Das vidas que partem num instante! Tendo a petulância de enfrentar
Os grandes belicosos da Macedônia
Sofrerão pela estupidez de confrontar
Shaat, Shaat, Shaat!
As sarissas das falanges míticas!
Este é o som do embate
Das flechas que chegam dos ares
Dos homens que caem aos milhares Quando falta a coragem
Das espadas quando acertam os golpes Quando os dentes se batem
Dos defensores que protegem seus Quando os valentes se agridem
pares Quando os guerreiros agem
Dos medos que mudam os semblantes Quando a fúria emerge
Dos soldados que esperam por um Quando as dores não ferem
milagre Quando o suor escorre
Das vidas que vão para a eternidade! Quando o sangue percorre
Quando os combatentes morrem!

Sinto as dores da batalha


O cheiro da morte que paira Essa é a vida que levo
A força que surge da raiva Marchando sem medo, confesso
Pelas vidas que foram ceifadas Sobre ruínas, montanhas e desertos
E os gritos de extrema dor Batalhas de longe e de perto
Dos feridos caídos pelo opressor Vitórias alcançadas por certo
Da tristeza trazendo horror Vivendo e lutando ao mesmo tempo
Da agonia sofrida agora Glórias e honra espero
Pelos guerreiros vivos que choram! Cavalgando contra o vento
Com meu cavalo Bucéfalo!

https://www.instagram.com/prof.michellsobral?r=nametag

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Pedro Guerra Demingos


Porto Alegre/RS

Imortal

Eu sou imortal.
Eu sou imoral.
Sou cego, sou seco,
sou sentimental.

Eu faço de tudo.
Me faço de mudo.
Meu canto, meu conto
são gritos aos surdos.

Sou flores jogadas


por bocas atadas
às costas, às custas
de penas e asas.

Me vê de repente
e eu duro pra sempre.
Não calo nem colo:
sei ser paciente.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Vitor Sergio de Almeida


Uberlândia/MG

Soneto - Vil fome – infame sistema

No canto, no lado insalubre a ver

Uma ingênua criança a mendigar

Maltrapilho, a flagelar, sem comer

Débil! Triste, o ser não se prodigar

Ausência de absorver, de litigar

Estômago, juízo e alma a querer

Acinte! É a exclusão a santigar

Biltre, o sistema não é de aceder

Culpa... De quem olha só para si.

Daqueles que creem se afortunar

Aceitar é afrontoso, apequenar

Poucos têm tanto, mas, tantos têm pouco

Rebele-se! Ultraje é esse tampouco

Insurja-te a si. Partilhe-te a si.

https://www.facebook.com/vitor.s.almeida.33

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Vitória Ferreira
Porto, Portugal

Outrora, não agora

Dois corações
Ardentes,
Incandescentes,
Insaciáveis,
Mas, essencialmente,
Esperançosos.
Anseiam que uma boca se prenuncie,
Que uma lágrima derrame,
Que um sinal,
O mais ínfimo sinal de esperança,
Desperte o que outrora existira.
De que, talvez,
Tudo volte a ser como d'antes,
Mas não,
O silêncio permanece,
As lágrimas secaram no passado
E o sinal?
O tal esperado sinal
Esvaiu-se
E a esperança desmoronou.
O que em tempos existira
Já não existe mais
E os corações outrora incandescentes
São agora cinzas do passado."

31
27ª edição

Mai./Jun.

Adriana Manduco - Brasília- DF - Eu, Mulheres ...Mariana Crioula


Aline Ferreira do Carmo - Mogi das Cruzes/SP – Parasita
JAX – Joana-De-Barro
Jeferson Ilha - Santa Maria/RS - A verba da providência
Jéssica Iancoski – Curitiba/PR – O Lago das Carpas
Luciane Leal – Curitiba/PR – Liberdade
Marcos Pontal – Pontal/SP - Ar-condicionado Natural
Mestre Tinga das Gerais - Corinto/MG - Vá Sina!
Paulo Luís Ferreira - São Bernardo do Campo/SP - Cartas de Elisa
Rozz Messias – Colombo/PR – Respirar
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Adriana Manduco
Brasília/DF

Eu, Mulheres ...Mariana Crioula

Novembro, 1838 - Rio de Janeiro - Brasil

A economia cafeeira desponta na região fluminense, Vale do Rio Paraíba.


A mão de obra escrava corresponde a maioria da população da região.
Grandes fazendas crescem e se multiplicam às custas do trabalho forçado de
negros e negras, comprados no mercado de escravos, trazidos em navios
negreiros sob condições totalmente desumanas.
O crescimento financeiro deslumbra os grandes produtores de café que exigem
cada vez mais de seus serviçais.
Constantes e impiedosos castigos eram imputados aos serviçais, muitas vezes
sem motivo algum.
Grandes troncos, estrategicamente colocados no pátio das fazendas, serviam
como mastro onde escravos eram amarrados e açoitados com um instrumento
feito com tiras de couro, até quase a morte. O número de chicotadas eram
definidas de acordo com o “delito” do homem ou mulher castigado.
Quando uma das mucamas cozinheiras errava o tempero da comida de seus
senhores era castigada com bolo, uma espécie de palmatória de madeira,
simplesmente com o objetivo de aleijar as mãos das escravas.
Caso um escravo se rebelasse ou negligenciasse uma de suas tarefas no plantio
do café, era colocado em seu pescoço um colar de metal com pontas salientes,
que dificultavam o seu descanso durante a noite.
Para o escravo fujão, ou que tentava roubar comida, era imposto o castigo da
máscara de ferro que o impedia de se alimentar. Com isso, muitos morriam
subnutridos.
Em alguns casos, mesmo após os castigos, escravos eram colocados no vira-
mundo: espécie de algemas de ferro que prendiam suas mãos e pés.

Dia 05 de Novembro - Vila de Vassouras – Brasil

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Preocupados com as revoltas de Palmares, Haiti e Malês, os escravagistas


tratavam seus escravos com muito mais rigor.
Nas fazendas do capitão-mor, Manuel Francisco Xavier, não era diferente.
No salão da casa grande, Francisca Xavier, sua esposa, conversa tranquila com
Mariana Crioula, sua mucama.
Mariana era considerada uma escrava dócil e gentil, por isso, era admirada e
protegida por sua senhora.
No cafezal e sob um sol escaldante, negros fortes carregam sacas de café recém-
colhidos dos inúmeros pés espalhados pela verde montanha.
Da cozinha, um delicioso cheiro de broa de milho se espalha por todo o casarão.
No galpão, Manuel Gongo, o escravo ferreiro, trabalha com outros seis escravos.
No cair da tarde a frágil calmaria é interrompida após um alto barulho de tiros
vindos da senzala.
Assustada, a senhora Francisca pergunta ao jardineiro:
— O que houve? Esses barulhos foram tiros?
Também temeroso o velho responde:
— Sim, minha senhora! O capataz acaba de matar o escravo Camilo Sapateiro.
— Mas, o que fez ele para merecer a morte?
— Senhora, pelo que ouvi de um outro capataz, o escravo foi morto sem nenhum
motivo aparente.
Atenta, Mariana ouve o diálogo de sua senhora.
A morte do pobre rapaz causou uma enorme revolta nos escravos da fazenda,
crescendo o clima de ódio, sendo este o estopim para um grande levante.
Por volta da meia-noite, um grupo de escravos, liderados por Manuel Congo,
matam o capataz e arrombam as portas da senzala. Mucamas se juntam a eles,
inclusive Mariana.
Antes do dia nascer a rebelião se espalhou pelas outras fazendas de Francisco
Xavier: São Luis da Boa Vista, Cachoeira, Santa Tereza e Monte Alegre. Cerca de
quatrocentos escravos, entre homens e mulheres, embrenharam-se na Serra da
Estrela planejando a formação de um novo Quilombo.
Manuel e Mariana logo tornam-se os líderes do levante e foram intitulados pelos
outros escravos como rei e rainha. Mais que um casal, eles eram guerreiros
natos. Juntos, lutavam pela liberdade!

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Quem poderia imaginar que uma escrava de aparência tão frágil e delicada fosse
na verdade uma grande e visionária mulher?!
Fixaram-se nas matas da Serra da Mantiqueira e iniciaram a montagem de um
Quilombo.
Com as ferramentas saqueadas das fazendas de Manuel Francisco Xavier, os
escravos planejavam iniciar uma plantação para o sustento de todos.
As armas serviriam para a proteção do Quilombo.
Inconformados, os fazendeiros da região solicitaram à Guarda Nacional que
partisse em busca dos fugitivos.

Sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, os


soldados localizaram o grupo de escravos.
Após a troca de tiros entre a Guarda Nacional e os rebelados, onde dois guardas
morreram e outros dois caíram feridos, desencadeou um intenso massacre.
Todos os escravos recusavam a se entregarem, desobedecendo a ordem do
comandante da Guarda.
Cerca de vinte deles são mortos e outros tantos são alvejados por espingarda nas
pernas para impedir a fuga.
O restante dos escravos largaram suas armas e saíram correndo, desesperados.
Manuel e Mariana mantiveram-se firmes.
Aos gritos, ela declarava:
—Morrer sim… Se entregar jamais!
Levados prisioneiros, somente dezesseis negros foram julgados: Manuel Congo,
Pedro Dias, Vicente Moçambique, Antônio Magro, Justino Bengala, Belarmino,
Miguel Crioulo, Canuto Moçambique, Afonso Angola, Adão Bengala, Mariana
Crioula, Rita Crioula, Lourença Crioula, Joanna Mofumbe, Josefa Angola e Emília
Conga.
Mesmo após a tentativa de linchamento pela população, Mariana e todas as
mulheres do grupo foram absolvidas, a pedido de sua dona, Francisca Xavier.
Porém, como forma de castigo, ela foi obrigada a assistir a execução pública de
seu companheiro, Manuel Congo, o único sentenciado a pena de morte em 04 de
setembro de 1839.
Manuel subiu ao cadafalso no Largo da Forca e foi enterrado como indigente.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Outros sete homens receberam seiscentos e cinquenta açoites e passaram três


anos com um gonzo de ferro no pescoço.
Entretanto, o Quilombo de Manoel Congo e Mariana Crioula era a evidência de
que os escravos continuariam sua luta contra a escravidão.
Mariana é lembrada por seu legado de garra e revolta contra a política de maus
tratos, usada pelos Barões do Café.
Somente em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, sendo
o Brasil o último país do continente americano a abolir a escravidão.
Com isso, cerca de setecentos mil escravos foram libertos de sua humilhante
condição.

https://adrianamanduco.wixsite.com/escritora

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Aline Ferreira do Carmo


Mogi das Cruzes/SP

Parasita

Consome meu trabalho


Bebe o suor que compra o meu pão
Amarga minha vida
E como pedido de desculpas
Me escandaliza com leite condensado
Que pinga
E pinga
E pinga
Sobre as covas coletivas
Dos meus irmãos
Que morreram na esperança
De respirar mais um dia

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

JAX

Joana-De-Barro

Havia muitos dessa espécie no Insignificante, resta-lhe


arvoredo diante do edifício. Joões e perambular pela grama, remexendo
Joanas a ciscar por ali e a recolher o folhas, catando barro e fugindo à
barro com que constroem seus lares. eventual aproximação de estranhos.
Mesmo quando se arrisca a ficar
O canto possante,
parada, sem fugir de pronto, o
surpreendentemente forte para o
máximo que consegue é algum olhar
tamanho do corpo, chega a incomodar
de piedade. No mais das vezes,
os moradores na hora da sesta ou em
contudo, recebe olhares de desdém.
outra ocasião que reclame silêncio.
Sofre calada, quase sempre. Se
Fora disso, pouca atenção lhes é
canta, mal revela a tristeza do seu
concedida.
viver pé-no-chão, entre folhas tão
A penugem, de um bege fosco, secas quanto ela.
não contribui para conferir maior
Faz de tudo para permanecer
destaque à sua presença. Mal serve pra
fiel e não causar insatisfação ao
dar pena.
companheiro, cuja cantoria ilude a
Joana ressente-se, porém, da ponto de transformá-lo em ídolo. Ela
indiferença com que é tratada. bem sabe, no entanto, que, se a
Como todo ser, espera alguma situação aperta, ele é capaz de
consideração, sonha até com o amor. entregar a própria mãe. Aprisionar
sua parceira em casa, então, constitui
Qual! Quanta ilusão tola!
tarefa fácil e típica para sua espécie.
Seu cérebro, atrofiado pela falta
Dura lei da sobrevivência!
de acesso à educação, assemelha-se ao
da maioria dos congêneres que alçam Quase não sobra tempo para
vôo incerto, sem estarem habilitados a divertir-se. Joaninha labuta de sol a
subir na vida. sol, expõe o corpo frágil e desbotado
às intempéries, naturais e artificiais.
Pobre dessa Joana-de-barro para
quem nenhum poeta de peso perderá O vento a castiga sem dó,
seu tempo em dedicar seus versos. altera seu curso de vôo, agita suas
roupas como a querer despedaçá-las.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

A chuva, que mata a sede de Um dia, a pobre Joana-de-barro


animais e vegetais, também se mostra sucumbe, perde as forças e entrega
cruel ao exagerar na dose e matar os os pontos, relegada à sua miséria.
sedentos. Joana tenta proteger-se em
Pode ser que alguém chore sua
sua casinha de barro, mas
partida. A maioria seguirá indiferente
frequentemente se vê forçada a
ao drama da morte ou sequer tomará
caminhar debaixo do temporal,
conhecimento de que aquele ser
encharcada.
cessou de existir.
Não bastasse a Natureza hostil, a
Joana! Joana-de-barro! Mais
hostilidade do bicho homem aparece
uma simples e indefesa passarinha
quando menos se espera. Tome pedra e
que passará de uma dimensão
tome pau a zunir, por pouco atingindo a
pedestre para outra, ignorada.
infeliz criatura.

Insultos, deboches, ameaças,


doenças, fome, tudo se torna um
imenso penar. Outubro 2020.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Jeferson Ilha
Santa Maria/RS

A verba da providência

Precisamos conter esses índices da A polícia faz muito escândalo. É pá


previdência! pum!
Cada vez tem mais velhos no mundo.
Não vamos pagar o que a população tem O foco agora é eliminar os velhos,
direito. Um problema de cada vez, deixa os
Precisamos continuar desviando verbas pretos pra depois.
livremente. Não podemos perder a verba da
previdência.
Já sei, aposentadoria somente aos 80 Eis que então, surge milagrosamente
anos um vírus natural.
Ou morrer trabalhando...
Mas esses velhos insistem em viver E libera as escolas, quero ver mais
mais! pobre morrer!
Calma, o monopólio farmacêutico está Querem verba sem trabalhar, a esse
lucrando. privilégio
Só eu tenho direito. Deleite
Ainda não é bom. Libera as armas condensado é pra quem pode.
Pelo menos os pretos vão morrer mais Apascentar e sugar toda a
facilmente imbecilidade desse gado acéfalo.
Sem a culpa recair pra cima do governo. Até que restem apenas os burros de
carga.

https://www.facebook.com/jeferson.ilha

@jeferson_ilha

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Jéssica Iancoski
Curitiba/PR

O Lago das Carpas

A vontade escarpa Num instante de ar puro:


E salta
Ligeira do fundo do lago do íntimo. Queria ser a tilápia
Nas límpidas arpas
O sopro é lisonjeiro. Do barulho das águas.

Tem o cheiro da alforria A conformidade dos dias


Das cerejeiras azuis do japão Prende as nadadeiras,
Plantadas em um vazio qualquer Poda as flores
De Bonsai. E pousa no apuro

O sopro sai De tantas promessas antigas


E pausa o ócio Que não podem mais ser desfeitas.

www.jessicaiancoski.com

@Euiancoski

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Luciane Leal
Curitiba/PR

Liberdade

O voo para a liberdade...

Amanheceu e um canto diferente cantou,


O passarinho com suas penas finas e amarela
A liberdade no romper do dia em um céu imenso no olhar,
Uma árvore verde a pousar, suas folhas a balançar para lá e para cá...

A liberdade contada nos dias que parecia não ter fim, no olhar de dentro da gaiola.

Em fim a porta se abriu e o amanhecer confirmou que poderia arriscar, voar e sonhar,
bastava apenas confiar...

Fé não é acreditar que temos asas,


Fé é saber que Deus nos fará voar, mesmo sem elas...
O voo da alma em busca de sonhos,

Voe passarinho a gaiola foi aberta.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Marcos Pontal
Pontal/SP

Ar-Condicionado Natural

Andando de bicicleta me refresco com o vento,


ar-condicionado natural,
que ao contrário do tradicional,
nos ajuda a ter alento.

Uma aventura sobre duas rodas,


muitos dizem que está fora de moda,
mas isso nem um pouco me incomoda,
porque sei que andar assim, não engorda.

Muitos quando me veem substituindo o carro pela bicicleta,


dizem que sou pão-duro.
Quem me dera,
se fosse só por esse fato.

Sou pão-duro,
porque gasto pouco com remédios,
e penso no meu futuro,
e seus desafios.

Quando ando com a minha magrela,


não poluo o meio ambiente.
As vezes saio sozinho, outras vezes com a galera,
e assim pedalamos alegremente.

Bicicleta é aquela,
que todos deveriam andar.
Porque com ela,
você mantém o seu bem-estar.

www.velivros.visaoespiritual.com.br

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Mestre Tinga das Gerais


Corinto/MG

Vá Sina!

A gente se perde por entre folhagens e os vaga-lumes Iluminam nossas vidas. Se


cairmos como folhas secas, seremos outono, se sentimos o cheiro das flores,
somos primavera, se recolhemos ao frio do vento, somos inverno, se nossos
corpos vertem água, somos verão.
São estações em equilíbrio controlando a diversidade do ser e assim
emudecemos e ficamos à mercê da natureza, que com seu toque refina e
tempera a vida.
As águas serenas se manifestam e nos transformamos em manancial descobrindo
assim o nosso ser!
Para descobrirmos o nosso ser é preciso que a consciência esteja em estado de
pureza e ao nosso redor as ações comunguem com as nossas ideologias.
Uma vez o corpo a mercê da inércia e do descontrole do universo, ele ficará
submerso de indecisões e todo o sistema vira um pandemônio em todas as linhas
as quais vivemos.
O que se nota é a falta de decisão humana no que tange viver em harmonia no
seu habitat e o soro da vida sangue se transforma em água que em lamentos
escorrem e abrem crateras pelo chão – lágrimas.
O antídoto que muito se espera talvez não seja o salvar vidas e sim a segurança
de poder transmitir força e crédito nos nossos líderes, que na naquela inércia
causou o descontrole e o que vimos é o planeta em polvorosa de pés e mãos
atados, esperando a ceifa e nós colheita no labirinto da incógnita.
Um adeus mais sutil talvez fosse: vá sina! E lá a sina indo por entre sonhos e
incertezas e a mente atordoada pelo distanciamento de almas enclausuradas, ali
se alimentasse se insônias e em cada grito de desespero, a frieza da lápide e o lá
o epitáfio: AQUI JAZ UM SER E SUA SINA! VÁ SINA!
As seringas do tempo são os conta-gotas da alma que com sentimentos lúgubres,
mergulham em cada amanhecer na esperança da tal dose que irá salvar a
humanidade!

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Paulo Luís Ferreira


São Bernardo do Campo/SP

Cartas de Elisa

“Sá, (era assim que Elisa me tratava sempre chegar à frente do outro. Que
quando estava deprimida). tenho medo de participar de grupos
de pessoas por que elas podem
“Estou ligando as coisas que
abalar os únicos pontos definidos que
ocorreram comigo, tentando
eu sinto em mim. Que o meu
compreendê-las. Creio que entendendo
complexo de inferioridade quer me
minhas atitudes, boas e más, terei
fazer crer que sou maior e diferente
maior chance de equilibrar-me,
que os outros. E quando sinto que
convencendo-me de que, se elas
alguém pode me “passar a perna”
prejudicam, deverei fazer um esforço
segundo os meus valores, acabo me
para melhorar. Descobri que tenho muita
distanciando. Eu me realizo em
revolta dentro de mim contra todas as
função do descontentamento das
pessoas, homens e mulheres.
outras pessoas. Quando faço uma
Tenho sentido o tempo todo uma certa imagem de alguém e ela me
competição das pessoas comigo. Mas decepciona, vendo pela ótica dos
sou eu que compito. Descobri que quero meus conceitos, eu a anulo por

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

inteiro. E que todas as suas qualidades ideal que traço na minha mente. E
não existem mais. Coloco toda uma todos devem ajustar-se a ele. Eu não
multidão de pessoas como sendo o resto devo ajustar-me a nada. O descrédito
do mundo, como sendo tudo aquilo que que as pessoas têm em minha pessoa
atrapalha. Eu nunca atrapalho, pois não está mais que justificado na minha
me coloco com e como esta multidão. inconstância, no meu chorar e rir ao
Fico sempre no muro observando essas mesmo tempo. Peço desculpas por
pessoas. Mas quando elas sentam no tudo isso que sou, fui e estou sendo
muro para me observar como resto, ao teu lado. Não tinha noção de
tenho medo. quanto eu sou mesquinha. Eu sei que
tem um lado legal em mim, que é
E daí surge o exclusivismo, o
contrário a este mesquinho. Vou em
sentimento de posse, o egoísmo, o
busca deste lado legal. Tenho
sentimento de inferioridade mesclado
esperança.
com o de superioridade, numa
contradição que me sufoca. Eu sei que Ps. O que você me disse aquele
você percebe tudo isso em mim e não dia me ajudou bastante.
está sabendo como me fazer ver de uma
Beijos, Elisa.
forma que eu aceite. Sinto-me mal,
muito mal, sabendo que todos esses “Oi Saulo,
sentimentos me dominam. Quero Esta não é uma resposta. Embora
mudar. Acho tudo isso muito horrível. E você tenha me surpreendido com sua
o pior de tudo é que me satisfaço ao ver carta, não foi sob o efeito da surpresa
que o outro não está se realizando. que resolvi escrever. Mas...
Quando este outro não se realiza, eu
Acho que está na hora de
digo não e me afasto. Esse “não” é a
esclarecer o motivo pelo qual tenho
minha vingança. Assim é no sexo e em
tomado algumas decisões. Esta é a
tudo. Não quero ceder mínima parte de
oportunidade para se tirar algumas
minha pessoa, achando que o outro
dúvidas que ficaram mergulhadas em
pode ocupar este espaço que é só meu.
torpor e silêncio durante esses
Há uma falta de medida de minha parte
últimos anos. Você pediu que eu não
que me interroga: em que medida entra
respondesse a sua carta, mas, no
o outro, e em que medida entro eu?
fundo, eu sei que você queria uma
Como se, para dar lugar ao outro, eu
posição de minha parte. Eu te
tivesse que sumir de repente. Então
conheço e sei que mesmo que você
radicalizo, porque se o outro chegar não
tenha mudado, como disse, existem
terei vez de ser eu mesma, me sentirei
alguns aspectos da sua personalidade
então anulada como anulo o resto do
que não mudarão jamais.
mundo. O certo significa para mim o

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Percebe-se na sua forma de não queria conhecer: o ressentimento


escrever, que você tem dons para e a indiferença!
escritor, e como tal, encontrou palavras
Você mencionou alguns detalhes,
que me causaram certa reação. Chegou
dos quais, eu me lembro de todos. E
a me impressionar o nível de
lembrei também de alguns que não
compreensão que você adquiriu, mas
foram mencionados. Por
sinceramente não me comoveu. É claro
esquecimento ou por propósito? Mas
que não ia ficar indiferente. Você
tem um em especial, que fiz questão
mencionou detalhes que eu julgava
de deixar bem lembrado, para você
esquecido. Reavivou em mim
principalmente, porque eu nunca
lembranças mortas e me fez refletir.
esqueci. Você foi o primeiro homem
Você sempre soube que você foi meu
da minha vida Saulo. Não estou
vício, e como idiota que fui deixei você
dizendo o primeiro namorado, nem
saber disso. Vício de amar
tão pouco a primeira transa, mas o
intensamente, de tê-lo dentro de mim. E
primeiro homem, o primeiro amor. E
que também foi recíproco o repúdio que
isto sempre lhe soou como mentira.
sentia. O ódio que senti em muitas
Talvez você continue não acreditando,
noites solitárias.
mas não tem importância. Na
Hoje, não sei dizer qual dos dois verdade eu nunca quis que isso fosse
sentimentos teve maior força: se o ódio motivo de obrigação para você estar
ou o amor por... É lógico que prevaleceu comigo. Estou só querendo lembrá-lo,
o amor, se não, ainda não estaríamos que eu não esqueci. Nenhuma mulher
aqui trocando cartas... Dando esquece o primeiro homem por
satisfações. Todavia, o mais estranho é menos importância que ele lhe dê.
que você ainda se julga no direito de
Agora sou eu quem vai fazer você
fazer de mim, apenas mais uma
recordar... Lembra-se do seu primeiro
personagem das suas histórias. Acho
conto escrito, quando foi publicado
que você nunca me considerou muito
naquele jornalzinho de bairro?
real, não é mesmo? Ou então, nunca
Enquanto você lia para mim, todo
soube entender minha realidade. Na sua
emocionado a ponto de suar sua mão
carta você cita detalhes que o
e a minha? Como eu me senti
transformaram em outro homem. Sabe
importante para você... Que emoção
Saulo, eu também posso dizer que sofri
senti está sendo importante para
muitas transformações. Esses mesmos
alguém, principalmente quando esse
detalhes que fizeram de mim uma
alguém é a pessoa que a gente ama.
mulher que sabia amar, numa pessoa
fria, estéril para o amor, me fazendo Quanto ao nosso esconderijo... O
sentir uma ponta de um sentimento que sítio do Gaspar lembra? Eu me

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

lembro mais do que você deve imaginar. obsedante me causava. Eu imagino


Minha mente registrou com precisão, às que você ao ler esta carta, eu esteja
inúmeras vezes que você me deixou só. longe. Que a cada frase lida, sejam
Lembro-me perfeitamente daquele quilômetros e quilômetros de
sábado que você saiu para fazer uma distância de você. Sentirei na
foto e voltou treze dias depois. E eu máquina avião, um retificador de meu
fiquei lá olhando as árvores, ser. A cada metro voado quererei
caminhando pelas veredas de sentir a lima limando a ferrugem que
carrapichos, que me grudavam na roupa você carcomeu nas minhas vontades.
e nas pernas, me deixando nervosa e Os fungos que você plantou dentro de
para acalentar passava boa parte do mim, nos tempos em que tiveste
tempo jogando pão para os patos a presente. Plangente alívio de minhas
beira do lago. Eu não me conformava carnes, do meu espírito. Tudo está
com sua ausência... E por mais incrível e consumado.
estranho que possa parecer, o que se
Eu sei que estou sendo muito
fazia mais presente, era justamente a
dura com você, contudo, não quero
sua não presença. Era apavorante
culpá-lo pelos prejuízos que eu
assistir impassível a ausência de algo
mesma me permiti. Se por amor ou
ocupando todo o meu espaço. Um
não, não importa. A única coisa que
verdadeiro oco existencial.
importa agora é extirpar isto de
Esses são alguns dos detalhes que dentro de mim. E para que eu fique
não te deixarei esquecer... Antes de curada de fato, é a você que tenho
minha viagem vou te lembrar de mais que confessar.
alguns”
Espero que nesse aspecto você
Sem mais, Elisa. me entenda. E não guarde mágoas.
No mais quero lhe dizer que o Carlos
Saulo, meu querido!
me ajudou muito a entender tudo
Tentarei ser sucinta e direta ao isso. Quando você perguntou
explicar porque decidi deixar o Brasil e ironicamente se eu iria arrumar outro
você. A verdade é que o Carlos me homem, já que eu ia me distanciar,
proporcionou o que você jamais pensou eu não falei nada sobre o Carlos para
em fazer por mim; Segurança! Não essa não te magoar. Mas não há porque
segurança que você imaginava estar me continuar escondendo. Espero que
dando. A tua segurança Saulo Maria é compreendas, e não leve para o mal.
limitada. É segurança de guarda-costas. Não pense como traição. Apenas
Nada disso. Ele fez com que eu me como minha solução. E também
sentisse importante, eliminando a quero salientar nestas palavras, que
grande angústia que o teu carinho

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

nunca ignorei a importância que você A Resposta de Saulo para ele


teve para mim. Mas agora isso faz parte mesmo
do passado que não mais atua sobre
E você Elisa Maria? Se você
mim. Por estar livre é que me sinto no
soubesse o quanto não suporto
direito de formular este desabafo.
pescoço. Você já tentou olhar para
Somos homem e mulher diferentes uma pessoa sem lhe ver o pescoço? A
agora. Não existe mais nada entre nós. boca, os dentes, o nariz, os cabelos,
Até acho que você tenha mudado como as orelhas, os ombros, os braços, as
homem. Porque eu mudei como mulher. mãos, os dedos, as unhas, as pernas,
Agora já não sinto medos. Estou livre os pés? Não Elisa, eu não consigo ver
dos meus fantasmas. Sinto que cresci, nenhuma dessas coisas nas pessoas,
agora já sei aonde ir e como chegar lá, que não lembre você. Isto sem falar
sem muletas. Sem você. Oh, senhor do seu falar, do seu cheiro, do andar,
Saulo Maria! Se você soubesse como me do seu sabor. Não Elisa! Tudo lembra
é odiento e abominante certas imagens. você. Então estou eu fadado a
Se você soubesse o quanto eu não subestimar todas as coisas da vida
suporto fitar uma fotografia. Pois todas por você?
elas me lembram você. Reflexos,
Será mentira ou será verdadeira?
manchas, nódoas. Tudo para mim são
Tantas acusações! Até onde somos
máculas tuas.
involuntários malfeitores? Agora
Espero, quando voltar ao Brasil para estou eu na mesa de um bar, quase
rever os amigos e família, ainda me embriagado, derramando lágrimas
reste no fundo, no fundo, uma pequena furtivas, apertadas, doídas e
vontade de te ver. E se isto ainda restar angustiadas. Achando-me sentado no
em você, quem sabe nos encontremos. cabo de uma navalha, equilibrando o
Afinal irei ver e rever pessoas que balanço do corpo para não escorregar
fizeram parte de meu passado e você é para o gume e ser degolado por
uma delas. Agradeço aos bons injúrias. Ora, já foi confirmado: não
momentos que você me proporcionou na há pecado desse lado de cá da linha
vida. De tudo se tira proveito. do equador. Mesmo se houvesse, não
sendo sabedor do pecado que se
Elisa
comete, o que pagar ao inquisidor?

Email: pluis.177@globomail.com

https://www.facebook.com/pauloluis.ferreira.10/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Rozz Messias
Colombo/PR

Respirar

50
28ª edição

Jul./Ago.

Alan Rubens- São Luís/MA – Perdoar


Cleidirene Rosa Machado – Catalão/GO - Reflexões sobre a vida sexual das mulheres
Daniela Genaro - São Paulo/SP - Na sua janela
Dias Campos – São Paulo/SP - Contra o mal, a poesia
Jorge Gonçalves de Abrantes – Lastro/PB - Alegoria à Mulher
Leandro Emanuel Pereira – Matosinhos, Portugal - Futebol – O ópio do povo
Maria Toinha e Marcos Andrade – Lavagem/Trairi/CE - O caso assombroso da finada
Alice Braga
Ovidiu-Marius Bocsa – Romenia – Mágico
Sandra Modesto – Ituiutaba/MG - Ponto De Partida
Valéria Barbosa – Rio de Janeiro/RJ - Vento protetor
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Alan Rubens
São Luís/MA

Perdoar

Perdoar
Tem que sair
Do coração
Como demonstração
De grandeza
E humildade

Perdoar
É uma virtude
Que necessita
De atitude
Para ser posta
Em prática

Perdoar
É um nobre
Sentimento
Que envolve
Simplicidade
Com leveza

O perdão
É um gentileza
Da alma
Um aconchego
Que acolhe.

https://alanrubens.wordpress.com/author/alanrubens/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Cleidirene Rosa Machado


Catalão/GO

Refexões sobre a vida sexual das mulheres

Pesquisas confiáveis mostram que A realidade é que não é bem


apenas 4% das mulheres do mundo assim que as coisas acontecem. Na
conseguem ter um orgasmo. Sim! maioria das vezes, o homem continua
Verdade. Bem, eu realmente não sei se as horas, em suas tentativas, mas,
esse orgasmo quer dizer que seja ao para a mulher a coisa parece tão sem
lado de um homem, ou se realmente graça ou tão dolorosa que ela quer
96% de todas as mulheres do mundo sair dali a todo custo. A fêmea
não sabem o que é um turbilhão de racional, começa a imaginar a torta
emoções em seu corpo. de morangos que está na geladeira, e
A grande verdade é que a maioria então ela diz: “pronto gostosão” “Foi
das mulheres mentem para seus Maravilhoso”, “agora é sua vez”,
parceiros dizendo que aquela transa da “vamos!” “rápido!”, “mais rápido!”
noite em questão foi a melhor de toda a “Isso!” “Uau! Acabou!” e lá no silencio
sua vida e que esse tal homem é o dela ela diz: “Graças a Deus isso
melhor de todos. E nós temos nossos acabou logo! Consegui!
motivos para agir assim. O homem se sente todo satisfeito
Em primeiro lugar, muitos homens e se achando o melhor parceiro
talvez tenham até uma boa intensão em sexual de todo o um mundo terrestre,
satisfazer aquela mulher da vez, e mesmo que a mulher nunca tenha
então, vai passando as horas e ela contado para ele, que ela nunca viu
aguardando o homem, e ele nada. Ela ao menos uma única estrelinha a
esperando-o e ele esperando-a dizer: dois, e na verdade, aquela noite ela
“Consegui! Foi Maravilhoso! Você é o viu monstros do pântano.
máximo”! A maioria das mulheres tem
preguiça em dizer o que o homem

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

realmente deve fazer, onde tocar, como sexual, seja privado ou explicito.
a tratar entre quatro paredes... Pode ser que realmente essas
Mulheres nunca querer ser as mulheres encontrem alguma razão
professoras sexuais, elas querem um para isso, mas eu tenho minhas
homem que já seja sábio por natureza. dúvidas se elas encontraram a
Complexo não? verdadeira fonte de clímax nesse tipo
Algumas de nós descobrimos que de vivência.
podemos nos satisfazer sozinhas, e as Em contrapartida fico imaginando
vezes, somente conseguimos nos também as mulheres com pouca
satisfazer sexualmente quando estamos experiencia sexual e que
sozinhas. Conseguimos atingir aquele provavelmente também nunca
orgasmo perfeito, cheio de contrações saberão o que é um orgasmo
uterinas, vaginais, sensação de tremor feminino. Ouvi dizer que certas
pelo corpo e pequenos choquinhos que mulheres consideram orgasmo,
somente uma mulher em são momento, simplesmente o encontro entre pênis
entende o que é. e vagina. Bem, isso acontece porque
Mas, fico imaginando as tais 96% do certos homens são tão rápidos no
restante das mulheres que ao que gatilho que até parecem ser
parecem não conhecem nem ao menos descendentes dos coelhos e não da
a si mesmas e espera que o homem vá evolução de Homo Sapiens. Ao que
descobrir seus pontos fracos se tudo indica, esse tipo de coito, visa
baseando em filmes pornôs da mais única e exclusivamente a procriação.
baixa categoria. Pode ser que daqui a alguns
Eu não tenho nada contra aquela anos, nós mulheres passamos a
mulher que gosta mesmo de levar tapas conhecer melhor o nosso corpo e
na bunda ou de servir como um saco de quem sabe consigamos também a
pancada do homem, também não vou nossa independência sexual.
me sensibilizar com daquelas que Independência sexual? Que palavras
aceitam ser objetos de fetiches em um duras são essas não é mesmo? E
sexo grupal, masoquismo ou qualquer como fica a nossa reprodução? Será
outro tipo promíscuo de exposição que uma inseminação artificial? Ou

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

será que ainda podemos fazer da forma belíssimo orgasmo espontâneo... Ao


convencional visando nosso objetivo final, ele olhou meu cabelo que agora
reprodutivo? O mundo está cada vez tinha nuances bem loiras que se
mais complexo e as pessoas também. misturavam a cor de chocolate
Ainda temos tempo para pensar em uma avermelhado (meu natural) e me
solução. disse: “Você parece uma vampira
Mas, a última vez em que estive com esse cabelo”. Eu não entendi
com um rapaz, antes deste texto, eu muito bem na hora, mas, juntando os
estava tentando explicar parar ele que fatos, certamente que ele havia
devido ao formato do pênis dele, aquilo acabado de me matar com aquela
parecia uma faca e quando entrava eu faca.
sentia que poderia sangrar até morrer, Desejo que todas as mulheres
(e na verdade havia um pouquinho de entendam e compreendam uma “La
sangue de menstruação naquele dia). Petite Mort”, isso porque uma
Bem, ele ficou bem calado até que tudo pequena morte é sempre boa.
terminasse. E eu tive com ele um

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Daniela Genaro
São Paulo/SP

Na sua janela

Desenho: Mariana Genaro

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Dias Campos
São Paulo/SP

Contra o mal, a poesia

Paulo, engenheiro de profissão, Como o sarau seguinte


tinha uma paixão, uma aversão, e uma aconteceria em casa de Paulo, a
cruz que carregar. Aquela era a tensão aumentava a todo instante.
predileção pelo poeta Castro Alves; Até que, certo dia, ele recebeu
essa, o mal-estar que experimentava ao uma ligação de Cristina. Era para
ver um pássaro engaiolado; e esta, contar que levaria Éverton ao
Éverton, o primo rico com quem não se próximo encontro.
dava desde os tempos de criança. O desagrado que sentiu só não
Uma vez por mês, Paulo e seus foi maior que o prazer experimentado
amigos reuniam-se em um sarau por seu desafeto. É que, ao ouvir de
literário. Era um momento mágico, em Cristina que eram amigos, e ao saber
que todos se nutriam do que havia de onde seria o próximo sarau, Éverton
melhor. foi tomado por uma comichão que há
Ele jamais imaginou que um dia tempos não sentia. – um retorno aos
essa reunião pudesse deixar de ser velhos tempos, uma excelente
prazerosa. No entanto, o destino é oportunidade para infernizá-lo!
caprichoso; quando não, provocador. E Ora, como bem conhecia a antiga
quando Paulo soube que Cristina, aversão de seu primo; como estava
integrante daquele grupo, estava viajando pelo México; como já lhe
namorando o antipático do seu primo, tinham oferecido aves capturadas
uma nuvem agourenta começou a pairar (mercado negro); e como regressaria
sobre aquele aprisco. Afinal, não era para o Brasil a bordo do seu iate
incomum convidarem-se outras pessoas particular, o que driblaria a
para que se nutrissem com a boa fiscalização, Éverton achou que não
literatura. seria nem um pouco educado ir

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

visitar um familiar de mãos abanando. E Mas como Éverton o encarasse,


tratou de comprar um Pássaro Preto. cobrando o prometido, Paulo não teve
O milionário chegou ao Brasil alternativa senão a de ir pegar o
efusivo e cheio de expectativas. Já o embrulho que deixara no rol de
pássaro, triste e enfraquecido. entrada.
Na noite marcada para o sarau, E como retornasse sob um
Éverton foi buscar Cristina na hora entusiástico coro de “Abre! abre!...”,
aprazada. Mas ao entrar no automóvel, passou a desatar o laço.
a poetisa viu um grande saco de veludo Ao levantar o conteúdo, ficou
azul escuro que jazia no banco de trás. estarrecido! Era uma gaiola
E como deduzisse que era para Paulo, esmaltada em branco, e que, por
elogiou o namorado por tamanha isso, realçava a cor do seu
delicadeza. – Ela notou pequenos furos prisioneiro. – Ao ser surpreendida
no tecido, mas achou melhor não com o novo ambiente, a pobre da
comentar. avezinha pulava de um lado para o
O casal foi o último a chegar à casa outro, como a buscar um buraco por
de Paulo, que os recebeu com polidez, onde pudesse fugir.
mas com um sorriso amarelo. E se é verdade que ninguém
Éverton entregou o presente ao sabia da real intenção de Éverton,
dono da casa, blasonou-se de tê-lo também é exato afirmar que todos
trazido no seu próprio iate, e pediu que torceram o nariz para esse tipo de
só o abrisse momentos antes de agrado.
começar a falar, justificando que o mimo Paulo pôs o presente sobre a
mexicano o inspiraria noite adentro. mesa de centro, e ficou mudo e
Paulo prometeu que o faria. imóvel por alguns segundos, como a
Depois das apresentações, Paulo tentar reaprumar-se.
abriu oficialmente o sarau e perguntou E depois de enfatizar que o
quem primeiro declamaria. pássaro era negro, que fora
Não se precisaria dizer que todos o comprado no exterior, e que tinha
intimaram a que começasse. sido trazido pelo mar, o anfitrião disse
que a única maneira com que poderia

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

exprimir o seu contentamento seria por Andrada! arranca esse pendão


meio destes conhecidos e clamorosos dos ares!
versos: Colombo! fecha a porta dos teus
“Fatalidade atroz que a mente mares!”
esmaga! Com exceção de Éverton, que
Extingue nesta hora o brigue permaneceu sentado e sem nada
imundo entender, todos ficaram de pé e
O trilho que Colombo abriu nas aplaudiram com entusiasmo a última
vagas, estrofe de O navio negreiro. – Mesmo
Como um íris no pélago profundo! envergonhada, Cristina preferiu o
Mas é infâmia demais!... Da etérea brado ao namorado.
plaga E como a mensagem de Castro Alves

Levantai-vos, heróis do Novo tinha sido apreendida pela maioria, o sarau


teve que ser interrompido para que o
Mundo!
Pássaro Preto ganhasse a liberdade.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Jorge Gonçalves de Abrantes


Lastro/PB

Alegoria à Mulher

Ó estupenda e esplendorosa criatura! És tu muralha imponente, castelo


Tu és ao mundo perfeição e glória, prepotente,
Dádiva prodígio, crônica da história, Princesa varonil, deusa onipotente,
Apoteose conspícua, divina arquitetura! Estrela fulgurante, altar grego!

És tu Éden aprazível, deleite de loucura, Ah! Que figura outra poderia ter
Bálsamo bucólico, beleza vanglória, emprego
Deusa acalanto, Nike da vitória, Nesta imagem, agora que o ímpeto
Arte sacra, Diva escultura! eloquente
Da inspiração me foge com o fôlego?!

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Leandro Emanuel Pereira


Matosinhos, Portugal

Futebol – O ópio do povo

Que vibração sinto eu;


Quando vejo a redondinha;
A voar para o céu;
Quando jogo uma peladinha...

Pode o meu avô não ter reforma;


Mas peço no natal aquela bola;
Que nos sonhos me consola;
E me faz herói da escola...

Que sensação sente o povo;


Quando joga a seleção;
Como se nascesse um país novo;
Onde a esperança não é em vão...

Pode a guarida escassear;


E o trabalho não aparecer;
Mas ninguém nos vai calar;
Quando o golo acontecer…

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Maria Toinha e Marcos Andrade


Lavagem/Trairi/CE

O caso assombroso da fnada Alice Braga

A finada Alice Braga foi uma mulher Seu último desejo foi muito curioso,
muito rica enquanto viveu em mas todos lhe obedeceram. Ela pediu
Paraipaba. Minha avó trabalhou como ao marido e aos filhos que ao ser
lavadeira em sua casa. Era curiosa levada para o túmulo gostaria que
aquela relação de trabalho, pois a Alice seu corpo estivesse enfeitado com
gostava de enrolar minha boa avó. Ela todas as suas joias e a dentadura
jamais reclamou desses excessos da com dentes de ouro. Assim foi feito,
patroa. Minha avó era uma mulher embora todos soubessem que não se
baixa, negra, cabelos cacheados. Seu leva nada quando se parte dessa
nome era Justina Amélia de Moura, uma vida. Até as estórias declinam. O
mulher nobre e generosa, marcada pela espírito deve partir tão limpo como
pobreza. A Alice pagava seu serviço pela quando chega na terra. O mistério
quantidade de peças de roupas. Fazia que se realiza nas partidas é
assim: quando minha avó saía da sua verdadeiramente profundo.
casa levava uma quantidade de peças O caso é que não demorou um
para lavar e quando voltava com elas mês desde o sepultamento da Alice e
lavadas, então a Alice contava de um seu espírito começou a aparecer.
jeito diferente e assim pagava menos Todos que a viam ou sonhavam com
dinheiro para minha avó. Minha avó ela se assombravam. Ninguém queria
jamais fez questão por isso e no dia da conversar com aquela “pantaforma”.
morte da Alice, ela chamou a vovó e lhe Quando foi um dia seu próprio marido
pagou tudo o que devia. Não sei que teve a sorte de vê-la no quintal. O
arrumação foi aquela. compadre Antônio Braga já estava
A morte da Alice foi muito rápida e idoso como a esposa, mas passava
tranquila, completamente sem sombras. muito bem. Ele saiu para o quintal na

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

boca da noite e ninguém o viu mais. consigo depois que morre. Onde já se
Preocupado, seu filho mais velho foi viu entrar com ouro no céu?
procurá-lo e o encontrou caído no chão. A resposta do filho do compadre
O homem trouxe seu pai para dentro de Antônio Braga foi desalentadora.
casa e procurou acordá-lo. O velho Porém o velho procurou o auxílio dos
estava assombrado e quase não tinha outros filhos para ajudar sua esposa
voz para contar o que havia acontecido. que sofria no além. O filho mais novo
Mesmo assim articulou: pagou um coveiro para desenterrar o
— Meu filho, acabei de ver a sua corpo da mãe e retirar as joias e a
mãe. Ela não pode descansar por causa dentadura que ela levou para a cova.
do ouro que levou consigo para o túmulo A carne ainda não tinha sido
e me pediu pelo amor de Deus que consumida pela terra e era capaz
cavasse a sepultura para tirar o ouro dos daquilo ter se encantado se tivessem
seus ossos. Eu não aguentei vê-la e demorado mais tempo. Depois que
desmaiei. fizeram o serviço nunca mais se ouviu
— Pois eu não vou fazer nada por falar da finada Alice Braga.
ela. Avisei que ninguém leva nada

https://www.amisticadosencantados.com.br/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Ovidiu-Marius Bocsa
Romênia

Mágico

Todos os dias ele vai para a cabana


e abaixe com cuidado, um por um
as cerca de sete galinhas,
que ele então alimenta,
e afugente as pombas que vêm
comer com galinhas vizinhas.

Mas, em segredo, ele deixa


três grãos de milho no telhado.

Há algum tempo, o pombo teve um par


e as galinhas - eles não sabem
mais o seu número,mas eles parecem menos
- à medida que o número de pombos aumenta.
Mas isso não é possível, a menos que de alguma forma …

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Sandra Modesto
Ituiutaba/MG

Ponto De Partida
No ponto do ônibus em que Carolina esperava sempre pra ir pra casa, depois de
um longo dia de trabalho, aglomerados sonhos densos e mesmo assim, no corre
da vida, ela estava ali doída de saudades diárias.

Igual a tanta gente, tantos caminhos, tantos desejos a percorrer nessa busca
rebuscando os traços de tantas feridas.
O que Carolina podia? Chegar e receber os carinhos do filho miúdo e do marido
que tinha feito o jantar.

Quereres despido das emoções presas.


Marcos, o marido, não via a hora de Carolina chegar.

Quando ela apontava na esquina abaixo, ele já sentia o cheiro de jasmim.


A pressa daquela noite estava diferente. O outono estava com temperaturas de
verão. Carolina, quase chegando.
Já passavam das onze horas, Marcos não sentiu o cheiro de Carolina.
Alguém bate à porta. Marcos coloca a comida pra esquentar às pressas.
Abre o coração pra receber Carolina.
Mas, ela não veio.
Era alguém, Marcos não conhecia. Apenas ouviu algumas palavras que jamais
esquecera;
– Senhor Marcos Santos? Só falta um corpo pra ser reconhecido. Queira me
acompanhar.
Tudo rodopiou ao derredor.
O amanhecer no IML. Os cheiros de mortes no ar.
Um menino de quatro anos acordou estabanado pela casa perguntando pela mãe.
A partida tem sempre um ponto.

https://www.facebook.com/sandraluciamodesto.modesto

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Valéria Barbosa
Rio de Janeiro/RJ

Vento protetor

Tem um vento trabalhando para mudar o meu destino!

Segreda nos meus ouvidos ações para eu desenvolver.

Desenterra as vicissitudes e assopra para bem longe o mal querer.

Tem um vento conhecido, dançarino e aquecedor,

que move o meu destino com energia e amor.

É um vento incansável que acende a minha vontade,

Desperta a minha razão e leva suas mensagens

Pra dentro do meu coração.

Que venha o vento do dia, que traga o vento da tarde.

Que me embale o vento da vida

Que me beije o vento da noite

É que Iansã de Balé me livre de todos os açoites.

66
29ª edição

Set./Out.

Alberto Arecchi - Pavia – Itália - Praias de Venenos


Ariane de Medeiros Pereira – Caicó/RN - Um plano avesso: entre a vida e a morte
Caroline Cristina Pinto Souza – Botucatu/SP - Smooth Criminal
Denis Roso – Londres, Inglaterra - O Vazio Cheio de Mim
Marvyn Castilho - Arraial do Cabo/RJ - Poeta Maldito
Nazareth Ferrari – Taubaté/SP – Bailarina
Nilde Serejo - São Luís/MA - O Espírito de Lisa
Roberto Schima – Itanhaém/SP - Quando se Escreviam Cartas
Rosa Maria Soares Bugarin – Brasília/DF – Navegando
Willian Fontana – Rio de Janeiro/RJ - Memórias Póstumas de Um Mundo Morto
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Alberto Arecchi
Pavia – Itália

Praias de Venenos

Desde o ano 1990, a Somália, na a história, a lenda, tornou-se o


região do Corno da África, foi por muitos esconderijo de toneladas de lixo,
anos "terra de ninguém", no meio de altamente tóxicas e radioativas. As
uma sangrenta guerra civil. Os tráfegos populações locais e os pescadores
ilegais fundaram por aí o paraíso das pagaram as conseqüências, saindo de
lixeiras e da poluição. Até, para resolver um banho de mar com as carnes
os problemas da poluição nos Países gangrenosas e o sistema nervoso em
“desenvolvidos”, um engenheiro queda. Fumos de incenso e sândalo
inventara o “Projeto Urano”: recipientes não podem ser suficientes para
de resíduos tóxicos e radioativos, purificar a pilha de lixo da miséria
transformados em torpedos e jogados humana, o tráfico de crianças-
nas profundezas do mar, ao longo da soldados, arrancadas às famílias pela
costa, fincando na base do continente guerra de gangues.
africano. Um dia, um pescador encontrou
Navios carregados com lixo tóxico e um pedaço de metal, um invólucro
radioativo viajavam ao longo do Mar brilhante, preso no recife, não muito
Vermelho para chegar a essas costas. longe do farol português. Ele tocou o
Os recifes com caranguejos, lagostas, cilindro, curioso, e ganhou uma
conchas do mar, palmeiras e sensação de ardor cruel. Não foi só
manguezais, as praias de areia, a uma queimadura: o braço enfraquecia
música evocativa, o cheiro do incenso e e a pele era clara, queimada, como se
da mirra do Iêmen, as memórias tivesse tocado uma substância ácida.
seculares de comerciantes, marinheiros Então seu cabelo começou a cair. O
e viajantes, de Simbad, o Marujo, e de homem morreu lenta e
Vasco da Gama... Tudo isso, a natureza, dolorosamente. Um fogo interno o

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

devorou e não havia médico, não havia Sem mencionar o tapete de peixe
cura que pudesse salvá-lo. O que ele morto, ficando nas praias, ao pé dos
encontrara era uma caixa de resíduos coqueiros e das aldeias. Não foi
radioativos, uma pequena parte da apenas o peixe a ser exterminado
vasta quantidade de resíduos que pela onda do maremoto. Centenas de
nossos navios começaram a descarregar animais do fundo do mar morreram,
contra as costas do Corno de África. devido à contaminação química da
No dia 26 de dezembro de 2004, um água. Barris de produtos nocivos
terremoto atingiu a ilha de Sumatra. Da moviam-se com as correntes e as
Indonésia saíram ondas gigantes de até populações costeiras acusaram
trinta metros de altura, que distúrbios incomuns: anemia,
atravessaram o Oceano Índico e inchaço, problemas respiratórios,
trouxeram a morte e a ruína. Quase insuficiência hepática.
trezentos mil mortos, mas as perdas ao Mohamud era um menino de seis
longo da costa africana não foram anos de idade. Ele brincava com seus
sérias, pelo menos não em termos de amigos Abdi e Alió na longa praia,
vidas humanas. O maremoto devastou e que todas as crianças deste mundo
destruiu grandes extensões de recifes de gostariam de ter. Ficavam na areia,
coral, deslocando milhões de metros enquanto a maré descia, perseguindo
cúbicos de areia, e trouxe à luz os caranguejos rápidos, que então
torpedos, cheios de recipientes de saíam de suas cavernas. Com a
resíduos perigosos. Muitos desses malícia ingênua das crianças, eles
contêineres começaram a flutuar nas chutavam-nos, como se estivessem
ondas, abriram-se e derramaram seu jogando bolas. Depois de dois tiros o
conteúdo nas praias daquele canto do caranguejo ficava atordoado, depois
paraíso. de três ou quatro era reduzido em um
Raras luminescências podiam ser piscar de olhos. Os meninos, sem
vistas à noite, no recife, e a mortalidade piedade, iam procurar outros.
de caranguejos e lagostas se espalhava Um dia, correndo, Mohamud
como uma epidemia ao longo da costa. chegou ao promontório e viu uma

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

caixa, da qual escorria um líquido verde, paraísos condenados, em um mundo


denso, brilhante, vagamente onde não há paz nem
fluorescente. O menino tentou tocar e desenvolvimento.
esfregou as mãos, como fazia com A indiferença do mundo é quase
sabão. Foi o pior erro de toda a sua total, exceto quando está em causa o
jovem vida. Desde então, o menino financiamento internacional para
esteve consumindo lentamente, com grandes projetos de construção:
uma dor terrível. Não comia mais, não barragens, estradas, aeroportos e,
dormia à noite e se contorcia. Logo, não especialmente, o fornecimento de
conseguiu mais segurar suas pernas. armas. Mais uma vez, quem poderia
Todo seu cabelo caiu. Ele desvendou estar interessado na morte de alguns
rapidamente. Para o nosso amiguinho, milhares de pessoas distantes, com
infelizmente, não se podia fazer nada. uma cor de pele diferente da nossa?
Mohamud ainda não tinha sete anos Uma esperança secreta, no
de idade. Quem sabe que seu sacrifício entanto, me diz que lá, perto da linha
não constitua o preço porque esta terra, do equador, alguém está esperando,
com seu mar, retorne à paz e à beleza nas sombras, atrás de um cego de
do passado? Pelo menos, pode contar sândalo, no intenso aroma de incenso
como uma pequena moeda em todo o e flores de pau-rosa. Alguém que um
preço a pagar, que cresce dia a dia e dia vai receber-me com um simples
tende a ser enorme. aceno de cabeça, como se eu tivesse
Quero lembrar o sacrifício daquela saído pouco antes de ir comprar a
criança como um pequeno símbolo, uma fruta no mercado. Como alguém da
gota no oceano dos sofrimentos que família, de que se conhece o ritmo do
afetaram e continuam assombrando o passo, o cheiro, a forma dos ombros
Corno da África. Um sacrifício capaz de quando sai e o som dos passos
nos convencer a salvar os povos, os quando voltar.
mares, as praias dos países equatoriais,

https://www.liutprand.it

70
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Ariane de Medeiros Pereira


Caicó/RN

Um plano avesso: entre a vida e a morte

Os dias se passavam e em minha que o marido ia fazer seus exercícios


mente parecia que o que temia físicos e a boa esposa sempre levava
aconteceria, mas caminhava esperando sua água desejada. Claro, se Tobias
que o milagre viesse de pronto. Sabia sentisse algum mal estar saberia que
que o que rogava era difícil de poderia advir dos exercícios físicos.
acontecer, dado que, as chances eram Charlene continua encoberta pela
mínimas, mas a esperança era tamanha. máscara de esposa amável e
Fazia algum tempo que havia descoberto preocupada.
que Charlene estava envenenando o seu Pensava todos os dias em
companheiro, Tobias, com o intuito de começar a lançar suspeita a Tobias
ficar com sua fortuna, haja vista que, sobre o caráter de sua esposa, no
possuía diversas empresas do ramo entanto, não obtinha sucesso em
automobilístico. meus objetivos. Tobias ainda brincava
Tobia, por outro lado, amava sua que desde de criança eu me
esposa e jamais suspeitaria que ela preocupava demais com ele e que
atentasse contra sua vida. Tudo parecia jamais o deixava sozinho em suas
transcorrer na mais remota preocupações. Éramos primos
tranquilidade na vida daquela família. Eu inseparáveis, como se fossemos
assistia o desenrolar, de modo almas gêmeas. Sorri e percebi que
apreensivo, buscando uma forma de não adiantava argumentar com meu
informar a situação, entretanto, não via primo, ele estava com sua visão
saída. Resolvi vigiar mais de perto encoberta pelo amor que sentia por
Charlene e perceber de que maneira ela Charlene. Certamente teria que usar
escondia o veneno, e em que momento, novas estratégias.
aproveitava para colocar na água do Passei a me aproximar cada dia
marido. mais de Charlene, acompanhava de
Com dias a fio perseguindo a vida perto suas ações, percebi que sempre
de Charlene, na espreita, consegui guardava o saquinho plástico com
observar o momento exato em que ela uma substância branca dentro de sua
cometia o abominável. Ela era uma bolsa e a deixava sempre bem
mulher astuta e se passava de boa guardada, para evitar que alguém a
esposa, passou esperar o momento em descobrisse. Logo, consegui uma

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

pequena amostra que mandei para ser quando Charlene recebeu uma
analisada, não restava dúvida, era um ligação da clínica sobre seus exames.
veneno poderoso que ia sendo O médico a pedia que fosse a ter ele
introduzido no organismo e promovendo para que conversasse. Ela não deu
a morte das células lentamente. grande importância. Ao que dias mais
Como faria para resolver aquela tarde recebeu nova ligação pedindo
situação? O que pensar para que esta fosse a clínica que era
desmascarar Charlene? Não via uma urgente. Charlene se dispôs a ir
solução cabível. Tudo parecia muito bem bastante aborrecida, pois estava mais
organizado, mas não tardou a me vir a cansada.
ideia de trocar a substância por outra. Ao retornar da clínica vinha
Assim, fiz coloquei uma substância bastante abalada, afirmando que, o
branca no plástico que Charlene usava e médico havia encontrado uma
continuei a segui-la de perto. Sempre anomalia em seus exames, mas que
que percebia que já deveria está perto o não conseguia identificar a causa,
final da substância ficava atenta para parecia que Charlene estava sendo
trocar. envenenada, mas que, não conseguia
Tobias passou a sentir alguns detectar nenhuma substância. O
sintomas de fraqueza que não sabia médico havia dito a mesma que não
pensar o que seria, pois já havia ido ao sabia se o quadro dela poderia
médico e este não havia identificado evoluir, e continuaria a pesquisar.
nada de anormal. Sua esposa parecia Charlene estava desesperada como
bastante “preocupada”, mas o seguia esse fato poderia está ocorrendo com
firme em seus exercícios, com os dias ela? Ela teria um inimigo oculto? Não
Tobias não reclamava mais. Tudo poderia ser isso chegou à conclusão.
transcorria como de costume e Charlene Mas, também, não deixou seu plano
parecia mais feliz que nunca. Estava de lado para com Tobias.
radiante esperando o dia que não teria Tobias continuava bem, apenas,
mais que suportar Tobias e seus sentindo de vez em quando, o
familiares. desconforto estomacal. E Charlene
Os dias se passaram e Charlene criava expectativa. O médico pediu
começou a se sentir cansada e abatida, que ela refizesse os exames, o que
resolveu fazer alguns exames, mas tudo ela acatou. Os exames revelaram que
parecia normal. Por outro lado, Tobias o quadro dela havia piorado e ela não
algumas vezes chegou a reclamar de sabia qual seria o motivo.
dores abdominais. E Charlene Assim, transcorria os dias. O
aumentava suas expectativas de viver médico chegou a dizer a ela que
sua liberdade e com a riqueza deixado talvez, ele não tivesse o que fazer por
pelo esposo. Não passou muitos dias, ela. Charlene ficou desesperada.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Passou a cuidar de sua alimentação com algo assim. Mas, perguntou ao


medo de alguém está envenenando. médico qual seria o tratamento se
Mas, não sentia melhoras. Recebeu fosse o caso, este apenas balançou a
novamente a ligação da clínica, na qual cabeça negativamente e disse: não
o médico pedia para que ela retornasse, existe. Charlene voltou para casa com
pois havia descoberto uma possibilidade seu fim traçado, mas se perguntava
que poderia ser a causa da doença porque Tobias ainda não havia
misteriosa de Charlene. De pronto, ela falecido se o veneno era tão letal? Os
saiu para a clínica. Ao chegar lá, o dias seguiam e ela continuava a
médico disse a ela que a mesma poderia piorar e carregava a culpa de seu
estar contaminada com uma substância plano. Resolveu contar a família seus
venenosa, mas que ela não havia planos na ânsia da morte. Tobias não
ingerido. Apenas teria tido contato ao podia crê, mas a prima Ester o
manuseá-la. Charlene logo lembrou do advertiu, e disse: tentei te avisar
veneno que comprava para o marido e como você não me ouviu, a solução
que sempre o tocava e colocava na foi trocar o veneno que Charlene
bolsa e que, às vezes, caia algumas usava. E por sorte, eu não me
partículas em sua bolsa. contaminei, pois sempre usei luvas.
Em silêncio disse que era Agora, ela está passando para outro
impossível, pois não tinha manuseado plano por seu próprio veneno de
ganância e de ambição.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Caroline Cristina Pinto Souza


Botucatu/SP

Smooth Criminal

Eis que soa uma acústica grave


Semicolcheias enlouquecidas pela partitura monumental
Batalham uma a uma na armadura de clave
Em escape da barra dupla, compasso final.

Falanges escorrem minuciosas ao longo do cello


A batida se eleva "tum"; "tum", destacada percussão
Num ligeiro ímpeto, as notas engendradas num desnovelo
Os olhos atentos, o suor escorrido e a pausa como intervenção.
Aaow!

A eufonia vai se afunilando a sons mais agudos


O ritmo vertiginoso, apertado...
Em pensamento: “estudo, estudo, estudo!!!"
E vemos no chão um musicista golpeado -

Eu o indaguei se passava bem


Debruço desmaiado num entrave
Contei vinte, quarenta e cem
Mais uma vítima do criminoso suave.

Aaow!

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Denis Roso
Londres, Inglaterra

O Vazio Cheio de Mim


Por favor mantenham a minha cadeira vazia
Nos jantares de família,
No almoço de repente da titia.

Nas mesas de bar,


Na sacada da minha ilha,
No famoso churrasco do Márcio,
Em Bolton e em Southsea.

Mantenham ela assim,


Vazia,
Sabendo que é minha.

Em casamentos,
Em funerais,
Nos aniversários das crianças,
Nas salas de espera que desesperam com a mamãe,
Nas sessões de fisioterapia do papai.

Mantenham ela sem ninguém


E a defendam com unhas e dentes,
Porque é de alguém,
É minha.

Aquela cadeira vazia no jantar à luz de velas,


Aquela rede que balança sem mim
Em Trindade.
Aquele lugar de honra em sua despedida.

Se não for pedir demais


Mantenham tudo desse jeitinho.
Por mim
Para mim.

21:10, 15/05/21.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Marvyn Castilho
Arraial do Cabo/RJ

Poeta Maldito

Bardo errante e maldito,


Com o crânio febril a esmaecer.
Sob a mortalha do fenecer...
Sua agrura levada ao silamento.

Seu estofo carnal olvidado,


Em uma frígida e estéril sepultura,
Lúridos bernes, dando epílogo a sua desventura,
Sob o velário da morte, o cingir ledo.

Seu halo no ósculo do ataúde,


Na campa... O findar do amor debalde,
E do sonho do ulterior de ventura.

Em seus versos indeléveis,


E no fulgor dos seus tomos afáveis,
Seus ínferos sentimentos, a errar pela Terra.

Em V de março de MMXXI. E. V.
Dies veneris.
Marvyn Castilho.

https://www.facebook.com/marvyn.castilho

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Nazareth Ferrari
Taubaté/SP

Bailarina

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Nilde Serejo
São Luís/MA

O Espírito de Lisa
Nas férias escolares, a família Souza foi viajar. Brenda, a filha mais velha,
preferiu ficar em casa estudando e fazendo curso à distância.
Na verdade, Brenda adorava a ideia de ter a casa só pra ela, sem obrigação de
ter hora pra tudo e perturbação dos irmãos menores.
Numa dessas noites, Brenda ficou vendo TV até tarde. Alguém bateu na porta.
Ela olhou no relógio 23hs.
– Quem vem incomodar essa hora?
Ela foi até a sala e as batidas mais fortes. Ela espiou pela janela e viu sua amiga
Lisa.
Lisa pediu pra passar a noite com ela, disse que havia sofrfido assalto na rua,
apanhou e para os pais não a virem assim, ela disse que dormiria lá. Brenda
disse sim, mas que pela manhã fariam um BO.
Brenda acorda com o toc do celular.
– Alô!
– Brenda, é a mãe da Lisa.
Oi dona Beatriz. Tudo bem?
– Você já soube o que aconteceu com Lisa
Sim. Ela me contou tudo, por isso dormiu aqui. -Como assim? Lisa dormiu ai?
Sim. Ela está aqui, respondeu Brenda vendo a amiga deitada.
– Brenda, não sei o que está acontecendo mas a Lisa está morta. Foi atacada. O
corpo acaba de chegar aqui.
Brenda olha assustada para a cama e a amiga sorri.

https://www.youtube.com/channel/UCfdmz7rn0chRab-2Lcut3Vg

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Roberto Schima
Salto/SP

Qando se Escreviam Cartas

Saudade do tempo da ela estivesse ali ao lado, podia


correspondência quando, no sossego de escutar suas confidências, ouvir suas
uma escrivaninha, punha-me a discorrer risadas, compartilhar suas emoções,
sobre acontecimentos do dia ou atentar-me aos detalhes de sua
pequenos tumultos do pensamento, caligrafia.
sobre certezas e incertezas, Havia cumplicidade.
amenidades, decepções, vitórias e Não obstante os contratempos
derrotas, um programa na TV, um livro (ou até por causa deles) de escrever-
apreciado, um passeio realizado, uma se uma carta à mão, adquirir
recordação de infância e coisas assim. envelope e selo, pegar uma fila na
Saudade dessa época em que agência de correio mais próxima e
podia contar com a privacidade e aguardar dias ansiosos pela resposta,
explorar em maior profundidade um esse tempinho deixou sua cota de
tema qualquer, para aquela pessoa em nostalgia e poder reler uma ou outra
particular, a quem eu poderia melhor das antigas correspondências é
conhecer, compreender ou até discordar resgatar não somente essa fase, mas
e discutir. a pessoa a quem confiamos nossas
Ao escrever, eu podia entrar em dissertações e filosofices de pára-
um contato mais íntimo comigo mesmo, choque de caminhão, e, igualmente,
refletir melhor sobre as palavras a escutarmos seus sonhos, suas
serem utilizadas e que melhor pudessem alegrias e decepções.
expressar meus pensamentos e Os tempos mudaram...
sentimentos. A informática e a Internet se
Ao ler, eu podia ouvir a voz da por um lado facilitaram de forma
pessoa junto ao meu ouvido, como se extraordinária o contato, por outro - e

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

paradoxalmente - distanciaram as idealizamos, fizemos, presenciamos,


pessoas ou, pelo menos, tornaram as o que passou e o porvir.
"conversas" mais superficiais, genéricas Falamos em demasia e dizemos
e impessoais. muito pouco.
A privacidade se foi. Nossos ouvidos estão
A profundidade tornou-se tão rasa atordoados por tantas vozes vazias.
quanto um pires. Onde estará aquele sussurro
A reflexão cedeu lugar a amigo, junto ao nosso ouvido, na paz
impulsividade. de uma escrivaninha, enquanto que,
Obviamente, isso vale para mim através da janela, os últimos raios de
também. Confesso não ter mais sol despejam-se no horizonte?
paciência para apanhar uma fila no Restaram ecos. Ecos em consonância
correio. Tampouco os dias corridos a um melancólico suspiro.
contribuem para que tenhamos um raro É o progresso...
momento a fim de colocarmos as idéias ... é pena.
no lugar, dialogarmos conosco, meditar E, assim, mais uma noite
com um mínimo de humildade ou chegará a trazer os sons de grilos e o
discernimento sobre algo que cintilar solitário das estrelas.

NOTA DO AUTOR: Esta pequena reflexão foi escrita em 06.01.2016. Sobre


a correspondência, eu gosto de mencionar um artigo intitulado "Escrever Cartas -
uma Arte Esquecida", de Flora Rheta Schreiber, publicado em "Seleções do
Reader's Digest" (março de 1961), onde a autora conclui: "... Reler essas cartas,
recordando as emoções tranquilamente, é um infinito consolo que permite
recapturar o passado sem perder-me nele e voltar para casa com marcos a
indicar o caminho".

http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/search?q=roberto+schima

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Rosa Maria Soares Bugarin


Brasília/DF

Navegando

Nas páginas brancas do céu azul,


o poeta escreve suas saudades.
O pássaro que passa em voo de ballet,
em doce piscadela,
oferece uma pena.
As árvores ofertam
a tinta de sua seiva.
E o sol que desponta,
inspira, suspirando calor
que aquece memórias.
Então, o poeta viajante,
escreve suas crenças,
no mistério de gestar suas lembranças,
recostando em brancas nuvens,
desenhando conforto de abraços,
o poeta escolher palavras,
vai rimando esperanças, em doce ilusão
e busca de calmo pertencimento.
Luzes, sons, cores,
salpicam os contornos da poesia
que nasce da despedida da noite,
do adeus do luar,
e do nascer de um dia que se abre,
em ofertas de promessas de riquezas

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

de construções de imagens,
Assim, navegando,
o poeta escreve seus temores,
encontrando a paz de seus pensares,
em tons de aspiração de eternidade.
E vai vestindo de esperanças
seu coração inquieto,
em transfusão de azul.
Sonhador, o poeta repousa,
na contemplação de sua escrita,
Tremulando na brisa da manhã,
como bandeira de ideal,
da liberdade do vagar.
Trafegando no silêncio criativo,
em simbiose plena,
que edifica a voz da poesia,
o poeta se ilumina
e se torna abertura de sonhos,
em palavras
que perpetuam
o seu
muito
sentir.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Willian Fontana
Rio de Janeiro/RJ

Memórias Póstumas de Um Mundo Morto

Minha vida parecia um sonho, havia e outros bens. Todavia havia os filhos
me casado com a bela filha de um de um feudo do qual anos atrás o
visconde e minha plantação de café tomateiro de seus pais havia pego
estava produzindo como nunca. fogo após inúmeras denúncias de
Certamente havia sido um dos primeiros maus-tratos como torturas, estupros
abolicionistas ao passar pagar meus ex- e até mortes de negros.
escravos que por terem se afeiçoado a Os petulantes sujeitos
minha pessoa ante os bons tratos não caucasianos haviam aberto um
quiseram me abandonar com a lei comércio ao arrendarem as terras
áurea. Tivemos algumas dificuldades para plantio de cana ainda que
econômicas iniciais na transição do continuassem a morar numa casa
sistema escravocrata para o comércio de grande lá estabelecida. O problema é
trabalhistas negros. Porém, minha que eles tinha amigos poderosos do
solução fora assim torna-los sócios de qual sendo escravocratas pareciam
meu engenho, algo ousado que levantou nutrir ódio ao saberem de nosso
a fúria de alguns racistas da região. sucesso em relação ao fracasso deles
Todavia o modelo teve sucesso ainda após o incêndio. E a inveja asseverou
que inicialmente todos tenhamos o ódio e ganância desses obtusos ao
ficamos com os lucros escassos e hostilizarem frequentemente meus
dividendos, mas que ao invés de sócios e filhos quando iam a cidade.
empregados a agora cooperativa tornava Eles eram apedrejados e impedidos
todos nós aos lucros mutuamente, ainda de entrar nos comércios e por vezes
que a fazenda continuasse a ser minha. mesmo de caminhar nas calçadas.
Tudo era próspero e tínhamos uma Fora assim que certo dia fui ao centro
vida feliz e plenamente realizada, os com meu sócio Joaquim Silva quando
negros se casavam e davam filhos que soubemos de um negro sendo
eram enviados a uma escola jesuíta da hospitalizado pelos Martins, como
região afim de que estes alçassem voos eram conhecidos.
mais distantes que seus pais, ainda que O sujeito era escritor e tentava
agora eles mesmos começassem a fazer vender seus livros na cidade, se
aquisições de propriedades, de terrenos chamava Machado de Assis. Quando

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

os encontramos os Martins vociferavam Ficamos sem reação ao vê-lo


ao incitarem o ódio enquanto esperavam queimar os papéis numa fogueira aos
seus amigos chegarem a cidade. Um prantos após retirá-lo do lugar.
deles ao seu lado observava a – Meu destino sempre será a
movimentação enquanto Machado escuridão como todos mestiços,
limpava o rosto de dois tomates. negros e pardos. Sermos tratados
– A abolição está na moda, seu como cães e caçados.
Martins, sabemos que será efêmero mas – Não fique assim, Sr.Machado.
devemos ser prudentes e se aproveitar Talvez deva ir para outra cidade...
do momento. Talvez seria mais
interessante fingir que promovemos – Não! Mudamos de lugar várias
esse preto safado. Os progressistas vezes! Passava por essa cidade pra
gostariam de saber disto. tentar vender algo, mas sempre me
chamavam de vagabundo e cão. Os
– Você está maluco! Por causa de Martins tem muita influência mesmo
pretos como esse que ao dedurarem ao na Academia de Letras e ter problema
fazer nosso direito que perdemos tudo! com eles é o fim.
Por mim esse preto pode sumir na
escuridão da noite pois suas obras Oferecemos comida para o
apenas um Fernando Pessoa poderia homem e hospedagem, porém, após
fazer! Ele nem é ser humano! comer ele se retirou indo viajar de
volta para sua casa. No entanto, mal
Machado de Assis pegava seus sabia que problemas ainda maiores
textos do chão como se fosse lixo, caído iriam me sobrevir como represália ao
um menino pisou sobre ele e abaixando- defender Machado e uns negros ainda
se empurrou sua face para o chão rindo. mais indesejados que ele. Eram
– Acabou, consegue enxergar? arbitrários e extremamente
Pretos imundos como você servem vingativos e cheios de ódio, e agora
apenas para servir o chão ou virar nós nos tornarmos alvos daqueles
adubo! monstros sem qualquer compromisso
Um punhado de pessoa ria ao ver legal ou social.
isso, porém ao intervir estes vaiaram Naquela noite uma resposta viria.
achando um absurdo como loiro No breu ensurdecedor da madrugada
defender alguém que eles achavam ser negros invadiram o terreno e atearam
inferior. Puxei ele do chão e Machado fogo nas casas. Ao verem aquilo
aos prantos jurava agora que nunca todos foram até os incêndios sem
mais escreveria pois vinha sofrendo saber que era a distração para que as
mesmo ameaças de estupro e morte. mulheres fossem violadas. Mesmo
minha amada Sabrina assim
tomaram, sua pele branca de

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

porcelana ficou avermelhada e com constante assédios dos Martins para


marcas roxas, cor que nos deixaram de lhes vender o terreno. Apenas Chico e
ódio pela covardia que sofremos. Joaquim ficaram comigo, pois minha
No dia seguinte fomos fazer o esposa havia voltado a casa da mãe .
rescaldo para certificar os danos – Oferecemos um preço justo ao
tenebrosos levando quase toda terreno dado o estado que se
plantação, três casas e parte de meu encontra, vossa mercê poderá
casarão. Sete negros morreram comprar uma casa modesta pra viver
carbonizados e outros três lutando com com seus crioulos de estimação.
os invasores. Meu sonho assim se – Eles não são cães. – Ameacei
tornou um pesadelo como se pessoas sob os risos debochados de dois
perversas possuindo um mapa dos deles. – Por qual motivo vocês se
sonhos os usassem apenas para os julgam no direito disso?
destruir. Restava-nos acordar para se
libertar de algo sufocante que abafava – Vocês não sabem de nada,
mesmo nosso livre-arbítrio como as temos conhecimentos superiores que
correntes dos grilhões dos negros. Parte nos dão direito a isso! Porém,
dos negros que invadiram foram caçados voltemos aos negócios. Você não terá
e outros por falso testemunho como pagar os impostos esse mês,
enforcados sob enganosos alegados mas caso venda pra nós
envolvimentos. Os Martins estavam conseguiremos providenciar algo.
presentes rindo ao comentar com os Senão sua casa será tomada pelo
demais que aquilo eram as provas de governo.
que os negros eram encarnações Ao ouvir aquelas palavras apenas
humanas de demônios, seres cuspi no chão ao ver aqueles homens
essencialmente malignos. subirem no cavalo e espancando-os
Havia algo estranho no tom dele, fizeram correr aos berros.
porém, agora tentava salvar a Todavia o falado se consumou
propriedade junto aos demais nos meses com um rigor autoritário incomum,
seguintes, o que não teve retorno. O indicando o poder de influência
clima racial na região aumentou daqueles monstros sobre as
intensamente levando negros a autoridades. Usando da lei de modo
frequentemente sofrerem hostilidade tendencioso, ameaças, e outras
sem nada terem feito, de modo que alegações de problemas gerados a
meus sócios não mais iam a cidade comunidade pelo meu projeto, os
temendo os males que poderia serem oficiais da lei dizem que nosso projeto
acometidos. Disso fomos ladeira abaixo econômico e social era desastroso e
ao onerar nosso orçamento levando a potencialmente perigoso para a
parte dos negros a partir sob os sociedade e por isso sob as ordens de

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

'superiores' o empreendimento seria sejam os Martins que dominam nossa


tomado caso não pagassem impostos cidade. – Comentei com ele pesaroso.
especialmente extorsivos para nós. – Sim, conhecer esses
Tivemos apenas tempo de tomar alguns cavalheiros. Servem os mesmos que
pertences com Joaquim e Chico Silva nos caçaram e mataram nas
para partirmos numa carruagem sem cruzadas. Muitos nomes e roupagens
rumo. Passamos horas cavalgando para tem, usando o nome de Deus para o
o mais longe possível até pararmos para que lhe é oposto. Me informaram que
comer quando lembrei-me de algo. Um foram eles quem enviaram os negros
tio meu que estava num ramo de atacá-los para instigar o medo racial.
transportes e comércio com seu país Sigam-me.
árabe.
Ao recebermos convite para
Meu nobre tio que traído, Salim entrarmos o homem preparou comida
Rachid Mustafá fora destituído dos servida por dois de seus empregados
títulos honoríficos, fraudado suas e contou sua história após ser
propriedades intelectuais ao criar a fraudado e roubado.
Academia Filoversista de Letras quando
ele se viu lançado a sarjeta do – Após nos falirem me uni a um
esquecimento com a tomada de uma grupo de desajustados, mendigos e
elite autarquista de corruptos charlatões pivetes e os instrui as artes e
que buscava se infiltrar na Arábia. De conhecimentos que conjuram
algum modo meu sábio parente havia se vingança aos atrozes que promovem
reerguido e por isso fomos tomar a desigualdade e corrupção impune
satisfações e auxílio com ele. Hoje ele para se exaltar. Fundamos uma
possuía toda uma linha de transportes Fraternidade da Miséria auxiliada por
marítimos de produtos árabes. um grupo conhecido apenas por
lendas ainda que imitado por versões
O homem em túnicas longas nos criminosas e perigosas. Há homens
recebeu sorridente em seu infiltrados em todas as sociedades
estabelecimento que vendia mercearias, para nós roubar e destrui-las por
destituído de preconceitos parecia dentro, em sua política, cultura e
remeter o apogeu do Oriente Médio em religião. Esses ratos tomaram os
tempos medievais e abraçou meus lugares dos príncipes, os ímpios dos
sócios aos cumprimentos de 'Alá'. piedosos, e agora os príncipes como
– Alá abençoar esses homens livres ratos iriam infiltra-los do mesmo
que agora são! modo que nos fizeram.
– Temos problemas e destruíram – Do que o senhor está falando?
todo nosso patrimônio. Acredito que – Por favor nos siga.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

O homem fez todos se levantarem Comentei ao ver vários objetos


novamente e assim nós fizemos indo bizarros em estantes e mesas.
comércio adentro até uma passagem por – Coleções de artefatos que não
de trás de uma estante que dava a uma deveriam estar aqui nesse mundo ou
escada de madeira que descia até um nesse tempo. Sua procedência são
porão. Lá haviam vários artefatos e apenas rumores e os protegemos
pergaminhos quando ele começou a para que estes não se apropriem
contar. mentirosamente como criadores e
– Há uma guerra muito antiga de acusem as vítimas do que são, se
homens de negro que tendo possível.
conhecimentos de eventos futuros Ao me aproximar pego algo que
atuam para tomar as rédeas do destino parecia uma arma quando ela
humano. Por isso há uns séculos ex- disparou um feixe de luz. O homem
templários que nos entregaram tais tomou rapidamente de mim e
planos e conhecimentos junto a um comentou.
homem misterioso criaram uma ordem
que visa combater esses ladrões da – Não brinquem com isso! Nas
liberdade e saberes humanos. mãos dele apenas será desgraça! O
que meu líder diz é que algum dia a
– Como o senhor sabes dessas procedência disto tudo será revelada,
coisas? – Perguntei perplexo. quem fez e criou tal como onde. Os
– Eles promovem crimes em rumores dizem que estes tiveram
segredo para que ocultos usem deles de contatos com outras dimensões
chantagem para outros mais contra infernais ou mundo indistintos de
nossos direitos, sabem estarem sonhos, porém, como cavalheiro do
condenados por Alá e pelo destino, Sul guardo tais coisas para preservar
porém, justamente por saberem disso não apenas a verdade, mas o certo e
nutrem sonhos de uma possibilidade impedir os crimes desses monstros
ínfima do oposto ao destruir a que dizem já ter mudado o destino
humanidade, o amor, a liberdade aqui.
responsável, a verdade e tomar – Como assim?
conhecimentos para a todos dominar em
monopólio. Os que se diziam Jesus, hoje – O que não possui motivo ou
como diabo foge da cruz. Roubam o que justificativa é doloso quando
é direito nosso para cobrar. Por isso sua intencional ainda que nem tudo que
pequena ética da etiqueta apenas é seja intencional tenha motivo ou
grande quando custa caro. justificativa como o torpe e a
crueldade. Nisso reside a diferença
– Quem são? E o que são essas entre acidental e intencional. E estes
coisas? fazem isso para subverter não apenas

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

a humanidade mas o destino. Você – Algumas pessoas percebem as


conheceu Machado de Assis e olhe esse variações de coisas sem a existência
livro. deles mesmos. No mundo realmente
Ao pegar o livro em brochura vi o dominante dele ele fez acordos com
nome dele e o título 'Memórias racistas para publicá-los e ficar
Póstumas de Brás Cuba'. famoso.

– Ele queimou seus escritos! Como Fui tomado por uma enorme
pode? Nem escreveu isso! fraqueza levando-me a sentar numa
cadeira, e tremendo pensava nas
– Sim! Na verdade ele fora morto possibilidades. Talvez todos
enforcado ontem. Seria como se esse estivéssemos mortos numa dimensão
livro fosse ironicamente as memórias morta por mortos morais, e aquelas
dele... era as memórias póstumas de um
Um livro sobre um morto escrito por mundo morto.
alguém morto? Fiquei perplexo.

88
30ª edição

Nov./Dez.

Carlos Jorge Azevedo - Santa Marinha do Zêzere - Baião - Portugal – Sulcos


Conceição Maciel - Capanema-Pará-Brasil – Brevidade
Gisela Peçanha – Niterói/RJ – Arde
Luisa Cisterna – Canadá - Onde está você, menino?
Paulo Cezar Tórtora - Rio de Janeiro/RJ – Segredos
Rosangela Maluf - Belo Horizonte/MG - No Aeroporto
Sigridi Borges - São Paulo/SP - Sou Lua
Reinaldo da Silva Fernandes – Brumadinho/MG - Paixão de uma vida Inteira
Tauã Lima Verdan Rangel - Mimoso do Sul/ES - Confissão Delirante
Vadô Cabrera – Jacareí/SP - Natal É Vida
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Carlos Jorge Azevedo


Santa Marinha do Zêzere - Baião – Portugal

Sulcos
A face é um livro todo aberto
Em que se esculpem no maior primor
Sinais dos tempos, crus, a descoberto,
Em nobres tatuagens, com fulgor!
Sinais lavrados com pincel de artista
Que o tempo é assim mesmo, farsante
E subtil mas vai deixando a pista,
Desgasta e não passa de um pedante.
Adoro esses sulcos no teu rosto
Que as intempéries teimam em gravar
Gerando uma tela fascinante!
Quisera não parar de contemplar
O brilho tão puro e transbordante
Que emana desse todo a meu gosto.

90
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Conceição Maciel
Capanema/PA

Brevidade

Um sorriso aflorou
No rosto cansado
Um misto de encanto
Um riso cantante
Um rasgo na noite
Ainda fresquinha
Nos olhos sem sono
Um quê de ternura
Um olhar de brandura
E o canto ecoou
Na brevidade noturna
Uma lembrança vagou
No corpo cansado
Uma saudade despertou
No coração tão amado
E o sono amparou
A ilusão do momento
Assoviando se foi
Pelas ruas que dormiam
Desmaiadas das horas vividas.

91
LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Gisela Peçanha
Niterói/RJ

AR

DE

Lábios derretem

Entre seios: os meus

Grandes e brancos.

Açúcar, isopor

Cheios como bolhas

Nuvens flutuando

Sugando, incessantes:

Amamentando

A fome, a sede

O deserto, o fogo:

Labareda dos amantes.

A saliência e a rasura

Completude da alma

Crua e nua.

Colostro de beijos

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Licor dos desejos...

Te amo

Aguada

Ardendo

Molhada

De branco

Vermelho

O vinho

O leite

Das flamas

Morro:

— Na fogueira do instante.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Luisa Cisterna
Canadá

Onde está você, menino?

Onde está você, menino, que vive dentro de mim?


Saia daí e venha brincar comigo, me trazer a singela alegria de infância.
Quero correr por aí na chuva, chutando as poças enlameadas da rua de chão.
Não tem problema se a unha levantar, se o pé machucar, quero mesmo correr e
correr, dando gargalhadas, olhando para as nuvens carregadas, com a língua
para fora pegando as gotas no ar.
Vem comigo, meu menino, sai daí do coração para ver os passarinhos saltar de
galho em galho, cantando essas cantigas do rouxinol.
Na beira do riacho, vamos jogar pedrinhas nas marolas e espirrar gotículas no ar
para fazer pequenos arco-íris. Quero só ver essas cores para lembrar que nem
tudo é preto e branco.
Menino, corre e vem fazer um jogo-da-velha no chão. Pega aquele galho seco e
faz os riscos; eu sou o círculo e você o X. Quem ganhar sobe árvore primeiro
para pegar a melhor manga e se o vizinho sair atrás de nós, corremos feito
loucos e pulamos na lagoa.
Vem logo, vamos andar de bicicleta. Não tem problema se ela não tem freio; a
gente arrasta o pé no chão. Se você cair, te dou a mão. Levanta de novo e vamos
descer a ladeira com o vento secando o suor do rosto vermelho.
Ô, menino, olha lá o trem passando. Vamos sentar na pedra e contar os vagões.
Um, dois, tantos, tantos. Para onde o trem vai? Para algum lugar distante,
encantado.
Que felicidade, menino, quando estou com você! Minha vida é muito complicada
e preciso da sua alegria e amizade para me animar nessa caminhada tão pesada.
Sai do seu esconderijo e vem me lembrar quem eu sou.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Paulo Cezar Tórtora


Rio de Janeiro/RJ

Segredos

Nossos segredos, num cofre guardados,


São nossos sonhos, ocultos assim...
Hão de ficar sempre ali, bem trancados,
Bem escondidos, até nosso fim.

E essa vontade de, a cada segundo,


Um riso louco que, arrebatador,
A explodir forte, anuncie a esse mundo
A intensidade desse nosso amor...

Essa vontade há de ser sufocada,


O sentimento disfarçado em nada
Como se fosse paixão passageira,

Nossos segredos, sonhos confinados,


Tem seus destinos de há muito traçados:
― Serem sonhados pela vida inteira!...

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Reinaldo da Silva Fernandes


Brumadinho/MG

Paixão de uma vida Inteira


— Pai, o Lula é o 13? – gritou lá de Luis da Silva, de Graciliano -, certa
dentro da cabine de votação. incerteza no futuro.
A presidenta da seção eleitoral fez “É Lula! É Lula! É Lula”, pôs-se a
aquela cara de quem não sabia o que gritar o menino. O pai abraçado a ele,
fazer, no que foi seguida pelo pai que a meio desconcertado, olhava o olhar
olhava em busca de socorro. da presidenta da seção, como a dizer:
Ele o acompanhara e estava à porta “Não tenho culpa, ele é assim!”
da seção, com uma fila quilométrica — Diz a ele que não pode fazer
naquela hora do dia. boca-de-urna aqui, interpelou o 1º
Como a presidenta não se decidia, mesário da seção, este já parecendo
por xingar ou por autorizar a resposta, menos compreensivo do que a
ele arriscou, meio tímido: presidenta, cara fechada de
— É, filho, Lula é o 13. autoridade.
Segundos depois o pai ouviu o “tlin, Enquanto ordenava, o mesário
tlin, tlin, tlin, tlin” da urna após o estendeu a mão ao pai para entregar
“CONFIRMA”. O menino saiu de trás da o comprovante de votação que o
cabine e correu para abraçar o pai, menino, eufórico ao cruzar a linha de
como se acabasse de realizar uma chegada da São Silvestre, não se
grande façanha, vencer uma São preocupara em pegar. Ele, pendurado
Silvestre, ganhar sozinho na Mega-Sena no pescoço do pai, feliz feito eu em
da virada ou receber o título de dia de chuva; o pai, com aquele
“Doutor”. sorriso orgulhoso de quem bate no
O “menino” completara 18 anos. peito e diz: “É meu filho!”, generoso
Mas continuava um menino. Os olhos na tonicidade do “meu”.
oblíquos, num rosto arredondado, O menino era sempre assim:
circulado por cabelos pretos, lisos, diferente. Não tinha apenas
repartidos do lado, a franja quase cromossomos a mais em cada célula,
chegando aos olhos, meio gordinho. Não tinha amor a mais em cada célula,
passava de 1,65 m, com certeza. carinho a mais em cada célula,
O pai o recebeu com um sorriso sorriso a mais, leveza a mais.
maior ainda, cheio de amor. Os olhos – Inocência demais. Pureza.
do pai - brilhavam um brilho que não Lembro-me bem do dia do
pude entender se só de amor ou se casamento da prima Bruna. Neste,
mesclado com certa angústia – feito um digamos, quesito, Rafa não era

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

diferente de nenhum de nós: seu Jamil se apaixonara (olha o mais


primeiro amor também fora (acho bonito que perfeito de novo!) por Bruna
esse Passado Mais do que Perfeito do quando a viu como Isolda numa peça
Indicativo: é perfeito!). Voltemos: seu de teatro no Festival de Talentos da
primeiro amor fora uma prima. Primeiro, escola. Nunca se soube se apaixonara
único e último. pelos talentos teatrais da menina ou
Bruna era aquela menina boba. Não se por aqueles olhos negros e
bobinha. Sim, é diferente. Bobinha não grandes. Ou por aqueles tantos
é diminutivo de boba. E nem “boba” é cabelos pretos cacheados. O nariz
palavra de cunho negativo. Bruna era quase bolotinha e os lábios carnudos
aquela boba que acha graça em tudo, e avermelhados, como se de batom
que ri de tudo, até de piadas contadas estivessem vinte e quatro horas por
pelo tio Wilas (sabe aquele tio tipo piada dia.
do “é pavê ou pra comer?”, “o tiozão da Ou se pelos dois aspectos, o que
internet”?, pois é...). É o tipo de garota era bem possível. A verdade é que se
que todo rapaz apaixonado quer ter apaixonara, a levara para um passeio,
como paixão: a conquista será certa se declarara e ganhara o coração de
porque, quando convidá-la para um Bruna, como tínhamos previsto
passeio, e ela topar, vai rir de tudo, vai anteriormente. Daí, para o casamento
achar graça em tudo, vai ficar ser marcado, foi um pulo.
maravilhada com toda besteira que o Aconteceu dali a cinco anos, ela
rapaz falar. Foi o que aconteceu com com vinte e três, ele com um ano
Jamil. menos e Rafa com dezenove.
Jamil, convenhamos, não era o que Os pais de Bruna não eram ricos.
se pode chamar de belo (ironia: Jamil, No máximo, classe média-média,
em árabe, significa “formoso”). Ah! Mas para usar uma categoria do IBGE.
Jamil tinha um senso de humor como Mas fizeram questão de “gastar
poucos! Era praticamente um palhaço! algum” no casamento da filha. Era
(Cuidado, de olho na gramática: filha única, vocês sabem...
substantivo “palhaço”, profissão, o que A igreja lotada de convidados.
faz rir; não o adjetivo palhaço, idiota, Piano, quarteto de cordas, violino e
besta... embora besta também possa vir flauta transversal para a marcha
a ser elogio: “alegre”, “brincalhão”, nupcial. O altar cheio de anjos. As
“engraçado”, do tipo: “Nooooooooosssa! mais de dez daminhas de honra. Os
Você é muito besta!”. Diferente de: parentes de Governador Valadares.
”Deixa de ser besta, seu otário!”) Todas as colegas da Faculdade de
Pronto, novamente estou eu em um Artes Cênicas. Alguns penetras de
tapete mágico, viajando, fugindo do olho na festa que seria num sítio que
assunto! O palhaço, digo, o Jamil, era amigos do casal bondosamente
todo dentes! ofertara. Jamil num terno marrom

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

impecável e gravata-borboleta. E Rafa. O grito deu lugar ao choro.


Rafa? Estrondoso no começo, as lágrimas
Sim, o menino recebera o convite. O caindo na gravata azul-celeste.
pai lhe empetecara num terno azul- Depois baixinho, como um cãozinho
celeste, sua cor preferida, camisa recém tirado de uma chuva
branca e gravata também azul-celeste. torrencial.
Ao lado do pai, na primeira fileira de Calmamente soltou-se do abraço
bancos – reservada aos convidados do pai. Caminhou rumo ao altar, os
especiais, conforme informara Eliete convidados abrindo passagem. Eu
Rinco, da “Casamentos Felizes Buffet”. observava a cena como que atrás de
Mas era um Rafa diferente, mais sério, uma câmera de Alfred ao som da
mais quieto, pensativo. trilha sonora de Bernard Herrmann.
Ali estava seu primeiro amor, por Pensei que, a qualquer momento,
quem era apaixonado desde os sete fossem cair pássaros mortos do céu.
anos. E estava de mãos dadas com O padre, Bruna, Jamil, ninguém
outro, pronta para dizer o “sim”. Ansiosa sabia o que fazer. Ninguém, a não ser
para se entregar a outro. o pai, sabia daquela paixão de uma
A cerimônia transcorria. Do rosto do vida inteira.
pai, corria. Lentamente, um suor frio. Bruna e Jamil ficaram assim, de
Olhava de soslaio para o filho, mãos dadas, um de frente para a
pressentindo algo. Seu coração estava outra, como que petrificados.
inquieto. Como alguém sentado na Lembrei-me de Capitu, em “Laços de
frente da TV assistindo Psicose ou Família”, ao ver que Maurinho
Janela Indiscreta, de Hitchcock. Absorto descobrira seu grande segredo.
em seus pensamentos, quase caiu para Rafa aproximou-se dos dois.
trás quando Rafael gritou: Separou suas mãos. Pôs-se de costas
— Eu! Eu! Eu! para Jamil, de frente para Bruna,
A igreja inteira se voltou para o como se fosse o próprio noivo. De
menino que não parava de gritar “Eu! repente, transfigurou-se, e sorria
Eu! Eu!” para ela, como se fosse o próprio
Padre Pedro Paulo Pereira noivo. De onde eu os via, pareceu-me
perguntara se naquele recinto havia que a felicidade tomara conta de si.
alguém contra aquela união e que — Eu aceito, sussurrou, com seus
falasse agora ou se calasse para olhos oblíquos fixos nos olhos negros
sempre. e grandes de Bruna.
Cheio de amor, o pai lhe abraçara “O que você disse?”, perguntou o
forte, prendendo-o a si. padre, despertando de sua hipnose.
Agitado no início, agora Rafa parava — Eu aceito! – repetiu ele.
de se debater nos braços do pai. O grito A igreja toda em silêncio. Rostos
foi baixando, baixando. espantados. Expectativa. Se de algum

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

lugar se produzia algum som naquele central, no tapete vermelho de


momento, o que os músicos tocavam casamento, rumo à saída da igreja.
era a cantata The Storm Clouds. Pelo Seguiu assim, as pessoas se
menos, era o que meus ouvidos ouviam. virando aos poucos quando ele
Antes que qualquer palavra pudesse passava, para acompanhar sua
sair da boca do padre – se é que o caminhada, tal qual fizeram quando
padre conseguiria dizer algo -, Rafa da entrada da noiva.
moveu seu corpo lentamente para mais No meio do caminho, parou.
perto de Bruna, sempre sorrindo, como Girou devagar o próprio corpo. Olhou
se fosse o próprio noivo. Ficou na ponta mais uma vez para Bruna, que
dos pés, beijou-lhe suavemente a continuava lá, no altar, no mesmo
fronte. Seus lábios ficaram ali, alguns lugar. Seus olhares se encontraram. A
segundos. mim pareceu-me que Bruna olhava-o
Afastou-se tão lentamente quanto ternamente, com piedade, com pena.
se aproximara, olhou o rosto da noiva, Talvez com amor, não sou capaz de
sorrindo um sorriso suave, garantir. Também para mim, Bruma
contemplando-a como se fora, Bruna, pareceu-me enigmática. Talvez como
um ser de luz, divina. Sempre quem se despedia?
lentamente, soltou-lhe as mãos. Foi Rafa sorriu:
virando-se devagar. Seus olhos se — Eu aceito!, disse mais uma
fixaram nas figuras dos anjos. vez.
Deve ter ficado assim por quase Virou-se e saiu correndo.
dois minutos, olhos fixos nos anjos, de Ao chegar à escadaria que
costas para os convidados, balançando, conduzia à saída da igreja, abriu os
em gestos comedidos, a cabeça para a braços e atirou-se no ar. Fez um
esquerda, para a direita, como se movimento como se batesse asas e
estivesse tentando entender os anjos, foi subindo, subindo, subindo... até
decifrar suas formas, absorver sua que o azul de suas vestes se
essência. Depois desceu do altar. E confundiu com o azul do céu.
começou a caminhar pelo corredor

https://www.facebook.com/reinaldo.13.fernandes/

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Rosangela Maluf
Belo Horizonte/MG

No Aeroporto

Ao descer do avião, tudo parecia estar amplamente esperado. E combinado,


em silêncio naquele aeroporto tão e acertado.
movimentado.
Havia sido um planejamento de
Ninguém falava nada. Não se ouvia meses. A folga no trabalho, a emenda
nenhuma palavra. Nenhum ruído, daquele final de semana com o
nenhum som. Silêncio completo. feriado, possível aos dois. A família
Entretanto seu coração fazia barulho, de cada um. O comunicado aos filhos.
batia forte. Um tum-tum-tum intenso. Tudo precisava coincidir para que,
Respirava fundo tentando não finalmente, o encontro se desse.
demonstrar a imensa ansiedade que lhe Afinal, era o primeiro e quem sabe o
consumia. Andava calmamente tentando início de uma série de outros? Bem
disfarçar o tremor das pernas. Trocou de que podia ser, pensou.
mão a pequena valise que carregava.
Ela se sentiu num filme. Andava em
Passou a bolsa para o outro ombro.
câmera lenta. Muito lenta. Ele a viu.
Olhou o relógio, o voo chegara no
Acenou. E também em câmera lenta
horário. Suspiro.
veio em sua direção. O estranho e
O caminho até a saída nunca lhe total silêncio continuava. Nenhum
parecera tão longo. O silêncio absoluto som. Estranho.
continuava. Respiração profunda. E o
Foram se aproximando. Os dois
frio na barriga, nas mãos, nos pés? E o
esboçaram um tímido sorriso. Tudo
coração continuava a bater, menos
que viam era novidade. A altura, o
acelerado, mas ainda barulhento. Era o
cabelo, ainda mollhado, os olhos, a
único som que ela ouvia.
roupa, a boca e o sorriso que passo
A porta se abriu e ansiosamente ela a passo se abria um pouco mais.
buscou com o olhar as pessoas que Cada um sorrindo o mais feliz dos
aguardavam do lado de fora. Não estava sorrisos.
em frente à saída. Caminhou mais um
Ele abriu os braços e ela mergulhou
pouco e pode então olhar dos dois lados.
naquele abraço quente. Fechou os
Sim, perto de uma pilastra, lá estava
olhos e, como se já houvesse sido
ele. Esperando por ela conforme o
combinado contaram: um, dois, três,

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

quatro, cinco, seis, sete, oito. retiravam mechas do cabelo que lhe
Separaram-se. De novo, um abraço. cobriam o rosto. Os cheiros além dos
Contagem até oito, já que nenhum bom perfumes. O respirar de cada um. O
abraço deve durar menos que oito hálito adocicado. Outro abraço que
segundos. Nenhum dos dois disse não queria ter fim. Outro beijo nem
palavra! tão suave. Apertos significativos.
Respirações junto ao ouvido. Outros
Aquele calor tão imaginado. Os cheiros.
pequenos e suaves beijos. Outra
Os sorrisos. Os abraços tão demorados.
pausa. Um abraço lento e demorado.
Um beijo. Lento, bem lento. Molhado.
Olhares que falavam por si.
Uma troca de sentimento até então,
apenas sonhado. As mãos subindo pela Ah, nenhuma palavra se fazia
nuca, também em câmera lenta. Pausa. necessária.
Mais um abraço, apertado. Outros
E assim, entrelaçados seguiram em
olhares. Outros beijos. Mãos que
direção ao estacionamento.
acariciavam o rosto e, com carinho

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Sigridi Borges
São Paulo/SP

Sou Lua
Sou Lua
sou sua
sou céu
sou véu.

Sou densa
intensa
brilho errante
cintilante.

Na imensidão
sou luz
sou paz
sou fugaz
sou escuridão.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Tauã Lima Verdan Rangel


Mimoso do Sul/ES

Confssão Delirante

Em desejos, o corpo não é capaz de obedecer


Abrasadora lascívia! Eis um desmedido querer
A minha boca umedece diante de tua presença
O corpo esbraseia diante da delirante essência

O perfume é intenso e a boca tem cítrico sabor


A pele aquecida abunda em um onírico ardor
Os lábios tentam, em êxtase, render confissão
Os olhos atalham diante de majestosa paixão

A minh’alma se manifesta sem qualquer pudor


Apresento-me na inteireza, dispo-me do temor
Envolvo-me nos braços fortes e acolhedores

A voz exalta a sua presença ímpar, constante


Porto-seguro em um caleidoscópio delirante
Comprazo-me em ti e em beijos arrebatadores

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

Vadô Cabrera
Jacareí/SP

Natal, data máxima do Mundo Cristão.


Comemoramos o nascimento de Jesus,
O Maior, entre todos os homens.
Momentos de reflexão.

Fechamos o balanço anual de nossas vidas.


Onde lucramos mais?
No Material ou no Espiritual?
Vamos à retrospectiva mental:

No que fizemos...
Será que fomos humanos, justos e éticos?
No que plantamos...
Será que colheremos os dividendos?

Será que estendemos a mão amiga?


Dissemos a palavra meiga e consoladora?
Conhecemos o valor e a leveza do perdão?
Praticamos a prece espontânea e revitalizadora?

Mais um ano que termina...


Quantos obstáculos ainda a transpor.
Estamos mais velhos, inevitavelmente.

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LiteraLivre Edição Especial nº 05 - 2021

O que planejamos para o próximo ano?

A cada dia uma nova lição.


Aprendemos com o Amor ou com a Dor.
A escolha é nossa, só nossa.
Sejamos amigos, sejamos irmãos.

Seguimos nossos caminhos


Iluminados por uma intensa Luz,
Emanada pelo Supremo Ser,
Cujo Filho é nosso irmão Jesus.

Felizes daqueles que nas oportunidades


Serviram seus semelhantes,
Pois, sabemos que:
“A necessidade é amarga e a abundância é doce”.

Que o Natal seja o momento de refletirmos sobre a Vida.

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