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A Revista LiteraLivre foi criada para unir

Volume 6, nº 36 – Nov./Dez. de 2022. escritores de Língua Portuguesa,


ISSN 2595-363X publicados ou não, de todos os lugares
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Olá amigos(as) leitores e autores, é com alegria, que trago a 36ª edição
da Revista LiteraLivre: a última de 2022.
E enquanto esperamos o ano terminar, convido os(as) amigos(as) a
prestigiarem nossos textos e artes maravilhosos. Temos trabalhos
incrivelmente talentosos de vários lugares do mundo. Confiram também, a
tabela de prazos para 2023.
No próximo mês(dezembro), teremos a última edição do “Especial
Melhores do Ano da Revista LiteraLivre”, que será descontinuada. Todos os
autores que publicaram conosco em 2022 estão concorrendo. Fiquem atentos!!
Esta edição sairá até o final de dezembro.
Aproveito para desejar aos nossos autores, colaboradores, leitores e
amigos um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!! Continuem sempre conosco!
Abraços poéticos!!
Vamos mudar o mundo através das palavras!!! Literatura com liberdade
sempre!!

Meus agradecimentos ao amigo Jax, por me presentear com o livro “De


volta a Ibitinema”, um verdadeiro mergulho nas vivências de um menino, que
se tornou um talentoso autor.

Sucesso!!
Neste Número:
Haikai Engraçadinho..............................4 Débora Araújo................................52
Jorginho da Hora........................................4 DéboraSConsiglio...........................55
A Rainha (pintura)..................................5 Dias Campos..................................57
Cristiane Ventre Porcini...........................5 Diogo Tadeu Silveira.......................59
Fantasia Visual.......................................6
Éder Rösner....................................61
Roberto Schima...........................................6
Edna das D. de O. Coimbra.............64
Silêncio(desenho)...................................7
Edweine Loureiro............................65
Maria Carolina Fernandes Oliveira......7
Alberto Arecchi......................................8 Elaine Farias...................................66
Alex Manso..........................................12 Elidiomar Ribeiro da Silva...............67
Alexandre Saro....................................15 Elizabeth Calderón.........................68
Alyne Gomes Ferreira...........................16 Ella Ferreira....................................69
Amador Madalena Maia.......................18 Ettel...............................................72
Amélia Luz..........................................19 Evandro Nunes...............................74
Ana Beatriz Carvalho...........................21 Fernando Manuel Bunga.................75
Ana Lins..............................................22 Flavio Freitas..................................80
Ana Vithorya Cordeiro Pereira..............23 Franciellen Santos..........................83
Annieli Valério Rufino..........................24 Francisco Cleiton Limeira de Sousa. 84
Antônio Coletto...................................25 Gedeane Costa...............................85
Ariane de Medeiros Pereira..................27 Geneviève Faé.................................86
Ariel Von Ocker...................................28 Gisela Peçanha...............................87
Arlindo Kamimura................................29 Gislene da Silva Oliveira..................88
Augusta Maria Reiko............................32 Gonzalo Dávila...............................90
Benedita Azevedo................................33 Guilherme Hernandez Filho............91
Bia Chaves...........................................35 Hélio Guedes..................................94
Camila Costa Homsi de Lima Castro....37 Hellen Bravo...................................96
Carlos Jorge Azevedo...........................38 Heloísa Marina................................97
Carmem Aparecida Gomes...................39 Ícaro Marques Estevam...................99
Cassiane Dorcas Lopes........................40 Iraci J. Marin.................................100
Charles Burck......................................41 Ivo Aparecido Franco....................102
Cícero Christino...................................42 Fotos............................................103
Cleidirene Rosa Machado.....................45
Jamison Paixão................................103
JAX...............................................105
Conceição Rodrigues...........................46
Jeferson Ilha.................................108
Daniel Cardoso Alves...........................48
Joaquim Bispo..............................109
David Ehrlich.......................................49
Joaquim Cesário de Mello..................112 Paulo Vasconcellos.......................168
Joedyr Bellas......................................113 Pedro Diego Fidelis.......................169
José Manuel Neves.............................115 People..........................................170
Juarez Marçal.....................................116 Regiane Silva................................171
Julia Mascaro Alvim............................117 Regina Alonso..............................172
Karine Dias Oliveira...........................119 Reinaldo Fernandes......................174
Larissa Reggiani Galbardi...................120 Reirazinho....................................176
Laura Rocha.......................................122 Ricardo Ryo Goto..........................177
Lauriani Kawashima...........................124 Roberto Schima............................181
Leandro Emanuel Pereira...................125 Rodrigo Domit..............................184
Lenasantos........................................126 RodrigoSBA..................................185
Liécifran Borges Martins....................128 Rommel Werneck..........................186
Lizédar Baptista.................................129 Roque Aloisio Weschenfelder........187
Lucas Terra Villar...............................130 Rosangela Maluf...........................188
Luís Amorim......................................132 Roseli Ágda..................................192
Madô Martins.....................................134 Ruan Vieira...................................193
Marcel Luiz........................................136 Sérgio Soares................................194
Marcos Antonio Campos....................137 Sigridi Borges...............................197
Maria Anete Veneski Campos.............139 Suramy Guedes.............................198
Maria Aparecida de Lima Zaganini.....141 Tauã Lima Verdan Rangel.............199
Maria Carolina Fernandes Oliveira......142 Tereza Du'Zai...............................200
Maria Isabelle de Freitas Lima............143 Thayná Vitória Alves Vasconcellos 205
Maria Pia Monda................................144 Vadô Cabrera...............................206
Mario Gayer do Amaral......................146 Valéria Barbosa.............................208
May Cass...........................................150 Valter Bitencourt Júnior................210
Mestre Tinga das Gerais....................151 Vanderlei Kroin.............................211
Mônica Monnerat...............................153 Vânia Lúcia Malta Costa Catunda. .212
Natan Oliveira Ferreira.......................155 Vera Raposo.................................213
Nathalia Mageste...............................156 Victor Carreão..............................214
Nazareth Ferrari.................................157 Vitor Sergio de Almeida................218
Nercy Grabellos.................................158
Ornélia Goecking Otoni......................159
Ovidiu-Marius Bocsa..........................160
Patrícia Barcelos................................161
Paulo Cezar Tórtora...........................164
Paulo Luís Ferreira.............................165
Vladimir Ferrari..................................219 Roberto Schima...............................233
Wagner Azevedo Pereira....................222 Artista do Mês..............................235
Willian Fontana..................................223 Tom Savini.........................................235
II E-Antologia de Poesia Retrô (2022)
Yuki Eiri.............................................227
....................................................236
Caricaturas........................................229
Jamison Paixão.......................................229 LiteraAmigos................................237
Rita Lee (pintura)...............................232 Modelo de envio de textos para
Cristiane Ventre Porcini.....................232 publicação na revista....................242
Fotos.................................................233

Tabela de prazos 2023

Próxima
edição
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Haikai Engraçadinho

Jorginho da Hora
Simões Filho/BA

4
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

A Rainha (pintura)
Cristiane Ventre Porcini
São Paulo/SP

5
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Fantasia Visual

Roberto Schima
Itanhaém/SP

6
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Silêncio(desenho)
Maria Carolina Fernandes Oliveira
Pouso Alegre/MG

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Alberto Arecchi
Pavia, Itália

Itália, 1944

Era um antigo mosteiro beneditino, Três jovens amigos, que ainda


florescido ao longo dos séculos em torno não tinham vinte anos, costumavam
dos túmulos de uma dinastia de reis pedalar pelas estradas e caminhos do
longobardos, fora das muralhas de bosque, no vale do rio. Companheiros
Pavia, a antiga capital. No final do desde a infância, ainda não haviam
século XVIII, um imperador vienense atingido a idade para serem
decidiu suprimir as ordens monásticas e submetidos ao preceito do
todo o complexo foi alienado ao estado. alistamento. Os anos da guerra
A igreja serviu de armazém e o mosteiro afastaram-nos dos estudos e fizeram-
de quartel. Então, em 1900, uma nos “meninos eternos”, contudo sem
comissão de cidadãos conseguiu privá-los dos prazeres do passeio.
resgatar a igreja, que foi recuperada Não sabemos seus nomes
como sede de freguesia para o bairro verdadeiros. Vamos chamá-los, para
circundante. No quartel, por outro lado, identificá-los: Marco, João e Siro.
instalou-se um regimento dos Suas viagens quase diárias e a
Engenheiros Militares e - adjacente a ele utilização de bicicletas apontavam-
- foi construída uma grande fábrica, com nos como alvos dos suspeitos dos
galpões de um arsenal. investigadores. Ao longo do vale do
Nesse quartel, durante a segunda rio, havia várias instalações militares:
Guerra Mundial, nos primeiros dias do uma fábrica de torpedos, posições
ano 1944, nasceram as tropas alpinas antiaéreas, centrais elétricas de
do exército da República de Salò emergência, arsenais e campos de
(República Social Italiana, fascista), com treinamento. Então, um dia, um
departamentos formados na Alemanha esquadrão de Alpini armados teve a
nazista, empregados na luta e repressão tarefa de parar os três para submetê-
contra os guerrilheiros da Resistência. los ao que em termos eufemísticos

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

era chamado de “um interrogatório”. algozes tentaram fechar sua boca


Pararam-nos ao passarem por uma para evitar que seus gritos fossem
estrada estreita, espancaram-nos um ouvidos fora da sala. Então eles o
pouco para assustá-los e os carregaram sufocaram. Eles o deixaram lá, no
para o quartel. chão. O chão daquela sala estava
Marco, o mais indomável dos três, sendo reconstruído e eles pensaram
desencadeou uma defesa apaixonada de que o mais simples era enterrá-lo na
seus direitos. Eles ainda não estavam base de areia, cobri-lo com azulejos.
em idade de alistamento, então não Agora, entretanto, seus
podiam de forma alguma ser acusados camaradas se tornaram testemunhas
de relutância ou deserção. Não levavam perigosas. Não se podia pensar em
armas próprias nem impróprias, nem fazer desaparecer apenas um dos três
carregavam folhetos ou outra imprensa jovens e torcer para que os outros
subversiva. Não existiam leis ou não falassem. Os outros dois também
decretos proibindo o uso de bicicletas estavam condenados. O oficial já
para caminhadas no parque. havia pensado na solução. Na manhã
Seu comportamento irritou muito o seguinte, sem perder tempo com
capitão que os mandou prender, que o outros interrogatórios inúteis, foram
levou a um depósito no primeiro andar, recolhidos e carregados em um
em cima da sala do piquete, na entrada caminhão para levá-los ao campo. O
do quartel, e o sujeitou a noite inteira a veículo partiu para noroeste, em
um exame cada vez mais pesado, direção ao campo de tiro do quartel,
mostrando as técnicas de tortura que ficava a cerca de quatro
aprendidas durante o treinamento na quilômetros e ficava numa longa faixa
Alemanha. Foi tão eficaz que, de areia, circundada por uma curva
finalmente, no meio da noite, o jovem do rio. No meio de transporte
desmaiou. Ele teve um sobressalto, estavam um alferes, um sargento,
lançou uma grande torrente de sangue e quatro homens armados com fuzis e
caiu. Eles deixaram no chão. O menino os dois presos, algemados e
estava se contorcendo, não conseguia vendados. Era fim do verão, o sol
mais respirar. Ele sofreu e gritou. Seus estava nascendo cedo e com a

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primeira luz o caminhão partiu em perimetral, depois os quatro soldados


direção ao rio para chegar ao campo de alinharam-se à sua frente, a poucos
tiro. O cheiro das plantas enchia o ar, a metros de distância, como um
vegetação exuberante começava a sentir piquete de execução.
o calor do sol. Nenhuma sentença foi
No centro do polígono ficava (e pronunciada. Não houve gritos
ainda existe) a casinha de uma antiga heróicos dos condenados. Só Siro, o
casa de fazenda, que já existia na área mais novo dos três amigos, chorava e
de uso militar. Poucos cômodos, um repetia para si mesmo,
casal em cada andar e uma escada obsessivamente: “Só esperava viver a
estreita, como antes, para subir ao minha vida, poder gozar um pouco de
andar superior. O caminhão não parou alegria e liberdade”. Os tiros
na casa. Ele passou e começou a subir a interromperam seus soluços. Após o
língua arenosa, por um caminho assassinato, os corpos foram
cuidadosamente pavimentado com cuidadosamente enterrados na
concreto. No final da estrada, que própria areia do perímetro. Era a
também foi viabilizada para veículos maneira mais segura de evitar que as
pesados, havia um pequeno anfiteatro notícias do ocorrido se espalhassem.
destinado a testes de explosivos. A área, O corpo de Marco foi encontrado
com um diâmetro de 12 metros, era (e no final do ano 1971, quando o piso
ainda é) cercada por uma espécie de daquele esconderijo foi levantado,
duna circular, com cerca de três metros durante algumas reformas no quartel,
de altura. Um único acesso, ao lado do então ocupado por um departamento
qual existe uma pequena casamata de do Gênio Militar. O alferes que dirigia
metal. No centro do anfiteatro, uma as obras encontrou um esqueleto. Ao
estrutura de placas de ferro foi colocada redor dos ossos, a areia ainda
para os testes de explosivos. O pelotão permanecia úmida e avermelhada,
desceu para a grande praça que se abria com um forte cheiro de matéria
na frente da casamata. Os dois jovens orgânica em decomposição. Nenhum
foram arrastados para o anfiteatro e rastro de vestido, nenhum vestígio
obrigados a encostar na duna que revelasse seu nome, nem

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pudesse dar qualquer indicação do que Hoje, o polígono também está em


havia acontecido. O alferes era um desuso, como a grande maioria das
jovem arquiteto, em serviço militar áreas e infra-estruturas que no
obrigatório. Ele adoeceu, devido aos passado se destinavam a instalações
gases orgânicos inalados, e permaneceu militares. É uma área de parque
doente durante toda a temporada de fluvial, percorrida todos os dias por
Natal. pessoas de todas as idades que
Os corpos dos outros dois jovens, desejam caminhar em contato com a
matados no ano 1944... Talvez ainda natureza. O anfiteatro fica em uma
estejam lá, no pequeno anfiteatro do posição isolada e escondida, em
campo de tiro, enterrados em algum comparação com os caminhos mais
lugar, sob os montões de areia. Ninguém populares. Uma área secreta, na qual
jamais os procurou, nos mais de setenta não é aconselhável ainda hoje se
anos que se passaram desde então. aventurar sozinho.

https://www.liuprand.it

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Alex Manso
Brasília/DF

Tentando adaptar
Essa história tem um início, um consultório, todos aqueles olhares te
menino tímido, apesar dessa condição julgando, todos comentando a seu
não deixou de brincar estudar aproveitar respeito, era o centro das atenções,
a infância como toda criança, em sua além disso estava tão branco, quase
adolescência era mais complexo não transparente devido ao longo tempo
tinha a inocência, estava difícil ir a sem sair de casa, a única coisa que
escola, pegar ônibus, conviver entre não havia mudado era modo de
outros alunos, a timidez se tornou um argumentar, sempre seguro de suas
obstáculo, ir para as aulas era um convicções conseguiu convencer o
tormento se isolando cada vez mais, a psiquiatra que ele sofria de
ponto de ficar dentro de casa e não sair síndrome do pânico, aos 18 anos
mais, por anos seu mundo era apenas começou um tratamento, foram dias
um quarto e uma televisão de 12 difíceis, conquistas a passos curtos,
polegadas em preto e branco, trocava a coisas simples cotidianas, teve que
noite pelo dia, os melhores programas reaprender a viver.
de televisão passava a noite, em um Com o tempo pode retornar a
programa de entrevista foi abordado o vida normal, apenas uma timidez
assunto síndrome do pânico, um exagerada, veio o acesso à internet
psiquiatra descreveu todos os sintomas, e rede sociais, lendo relatos e
comportamento, ele viu sua vida pesquisando descobriu que o
descrita por um desconhecido, então ele diagnóstico estava errado, não era
percebeu que era desse mal que ele síndrome do pânico que ele sofria e
padecia, decidiu procurar ajuda com um sim fobia social, a diferença entre os
profissional, não foi fácil ver a luz do sol, dois, ele não passava mal quando
ter que aprender a socializar de novo, a estava na presença de pessoas
pegar ônibus, era difícil chegar ao apenas sentia um desconforto, não

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

mudava muita coisa, mas o diagnóstico razão de viver, sua rotina era
correto era essencial para o tratamento, esperar o final do dia no trabalho
não era culpa do psiquiatra 50% do para voltar para casa, o expediente
diagnóstico é baseado em relatos do era longo, as horas não passavam,
paciente, ele foi induzido ao erro, pois o esperar o final de semana pelo dia
rapaz era bem convincente em seus de folga, cada dia era uma Vitória,
relatos, na ânsia de procurar uma cura pensava em desistir a todo
para esse fardo que carregava, depois momento, mas começar de novo era
de 20 anos de tratamento a base de tão difícil, depois de tantas
Rivotril, desistiu de procurar a cura que desistências, passar por tudo de
tantos profissionais da área relatavam, novo, entrevista de emprego,
decidiu aprender a conviver com a fobia exame médico, documentos, desistir
social, suas limitações, quando se não era mais opção, então a vida se
conforma que terá fobia para o resto da resumia a esperar.
vida começa a entender que aquilo faz O final dessa história seria
parte de você, como se fosse sua perfeito se seus sonhos se
personalidade, isso não tem como tirar realizassem, ganhasse algum
você nasce com ela. prêmio na loteria, algo que a sorte
Essa história não tem meio, pois se mudasse o rumo de sua vida,
tornou um rapaz que desenvolveu um alguma herança que o fizesse
hábito de estar sempre projetando o mudar de vida, mas tem um porém,
futuro, se melhorasse de vida, se o Rivotril que ele toma a 20 anos
ganhasse na loteria, por isso toda todos os dias pode lhe causar lapsos
semana jogava, sonhava, o que faria de memória futuramente ou até um
com o prêmio, isso consumia seu tempo, Alzheimer, não seria um fim
o amanhã sempre estava em seus agradável, se fosse apenas o
pensamentos, o presente não era bom, esquecimento não seria tão ruim,
não se sentia bem entre as pessoas, se tinha passagens de sua vida que era
sentia desconfortável em meio a melhor desaparecer de sua
multidão, a depressão sempre por perto memória, mas a confusão mental
causava inseguranças, lhe tirando a era o que causava mais medo, pois

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

já havia trabalhado em um lar para ainda tem muitas linhas para


idosos e conviver com senhores com escrever, a esperança que vai mudar
Alzheimer não era fácil, na verdade se é o que nos move, mesmo sendo
você tem chances de passar os últimos árduo seguir em frente, depois de
anos de sua vida assim é assustador, muitas quedas, não é mais dolorido
mas sem o Rivotril não conseguiria viver a pancada, cicatriza mais rápido, a
o presente, não sei se a palavra viver depressão não é mais companheira,
seria certa, o correto seria sobreviver ao ela vem, mas vai embora, não
presente. demora tanto quanto antes, a
Essa não é uma história comum, maturidade te ajuda muito, a
também não é única, pessoas sofrem de entender muitas coisas, a se
males, principalmente psicológicos, que conformar com outras, tem coisa
consomem sua vida inteira, uma batalha que nada podemos fazer apenas
por cada dia, é mais uma história, tem seguir nossa história que ainda há
um início, ausência de meio e um final muito tempo e está longe de um
com poucas chances de felicidade, mas ponto final...

alexmanso08@gmail.com

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Alexandre Saro
Jundiaí/SP

Abolição e anistia

Vivendo com olhares do descaso


Temores por entre as cores frias
Naufragando em leis obsoletas
Mascarando os chicotes da heresia

Alheios a um padrão sem primícias


Censura que ofusca a verdade
Falta abolir certas mentiras
Dos defensores que juram lealdade

Arriando a bandeira da igualdade


Na guerra contra o racismo
Acolhendo heróis tal “Palmares”
Enquanto justifica “denegrindo”

Invisíveis aos filhos do preconceito


Hipocrisias perante a sociedade
Uma balança com dois pesos
Anistia somente aos covardes

https://www.instagram.com/alexandresaro/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Alyne Gomes Ferreira


Capoeiras/PE

Stranger Tings
Jane está parada na entrada da festa. acanhado e assustado quanto ela, um
Ela observa todos os estudantes garoto, que logo nota ter chamado
dançando, rindo e conversando na pista atenção e desvia a olhar de Jane.
lotada. O baile de formatura, ao som de Jane entendia bem esse
"Stranger Things" do DJ Kigo junto a comportamento, mas insiste em
banda OneRepublic, está vibrante e conversar com o menino que também
divertido, exceto para Jane. tinha as cicatrizes de seus
Está nervosa e com vergonha. Ela sente transtornos, ou até de outros
os olhares alheios zombeteiros para ela. diferentes. O rapaz é gentil com ela e
Lógico que estão rindo e evitando a quase não fala, no entanto, Jane
garota. Sua aparência esquisita e consegue aos poucos conversar com
grotesca que tentou deixar menos ele descontraidamente. Os dois estão
bizarra usando um vestido delicado aliviados e felizes de terem
estampado com girassóis e um par de companhias.
sapatilhas que envolvia suas pernas de Ele se chama Peter e tem a mesma
fita, faziam terem pena dela. idade que de Jane. O garoto resolveu
Maldita ansiedade! Maldita timidez! A ousar e todo enrolado a chama para
pobrezinha carrega as cicatrizes desses dançar. Pro seu contentamento, ela
transtornos, pois quem tem essas aceita, e logo vão para a pista. Jane
maldições, quando se manifestam, se não sabe o que fazer, como deveria
tornam aparentes. Ainda sim, Jane não agitar seu corpo ao som daquela
desistiu de tentar curtir aquele momento batida eletrônica, até que Peter diz:
de sua vida e agora atravessava o salão "Hey, feche os olhos comigo e leve
até não soube ao certo para onde. Ela seus pés com calma de um lado para
encontra então, encostado a parede, o outro. Minha irmã me ensinou esse
com um refrigerante na mão e tão

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

truque porque sabe que… bem, fico surpresa e um tanto bobinha de


nervoso com isso." E em seguida, ri. Peter. Ele está com um sorriso de
Jane usa o truque, e juntos, um a frente canto que o deixa muito bonito, aliás,
do outro, vão se balançando aos poucos. sem suas cicatrizes ele é tão belo.
Sentindo e seguindo a gostosa batida. A Tem leves sardas sobre o nariz e um
música chega no tom energizante que cabelo negro magnífico.
todo DJ põe para todos pularem e se Peter corta o momento hipnotizante
divertirem ainda mais, e a dupla se joga perguntando à moça: "A música
de vez nessa energia com todo mundo. acabou, mas você quer continuar
Peter abre os olhos e se surpreende ao dançando? Se você quiser, podemos
ver sua companheira radiante, sem pegar uns petiscos agora." Fala
nenhum de seus traços deformados. A nervoso.
menina está livre dos tormentos que Jane abre um solto sorriso para ele,
escondia sua beleza. O sorriso tímido rir docemente e o puxa para mais
dela ia se abrindo mais, a pele morena perto dela, fazendo-o girar entre sua
parecia ter um brilho próprio. Peter está mão. Ele rir disso e logo se joga na
todo abobado, pois nunca viu uma dança com ela. Aquela noite está
imagem tão bela. Ela é tão linda, parecia sendo incrível para os dois. Aquelas
um pássaro livre e feliz. coisas estranhas, que é o que são e
Quando a canção volta para o tom agora podem desfrutar da vida sem
calmo, Jane abre seus olhos e ver a cara medo, só amor.

@Uma_Chapeleira_Maluca
@Um4ChapeleiraMaluca

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Amador Madalena Maia

Lóris Lóris
Onde te encontrarei Lóris?
Você é a zona erógena mais sensível do corpo da mulher
Peguei o celular e dei um clik Lóris
E com este trocadilho descobri o seu nome
Você merece uma carícia
Porque você é uma delícia
Se não te acariciar sei que você encolhe e depois some
Mas se eu te encontrar e souber acariciar-lhe
Você se expandirá
E dará prazer a toda extensão do ser que te envolve
Com as suas milhares de terminações nervosas
Você é enigmática Lóris
Quem não te conhece te acha um tabu assim como o ponto G
Mas quem te conheceu te achou linda, maravilhosa; uma deusa grega
No ser que te leva lhe procurei Lóris
Foi difícil, quase me perdi no caminho, mas te encontrei e gostei
Pelo caminho que passei encontrei outras partes maravilhosas e enigmáticas também
Encontrei o céu depois dos lábios, lábios grandes e pequenos, maiores e menores
Verdadeiras ninfas que com o tempo ficam intumescidos se forem bem acariciados
Após passar pelo canal descobri o seu enigma
Uma parte invisível e a glande que é visível
É só ler na biologia e buscar conhecimento
Que eu leio todo dia para fugir da repressão
E praticar a teoria para te encontrar e dar o prazer
Que você Lóris gosta tanto de receber para depois poder dar.

http://concursosdeculturacienciaetecnologia.blogspot.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Amélia Luz
Pirapetinga/MG

Pátria Sublime, Perdoa-nos

Como se eu pudesse de braços abertos


Desarmar soldados amados, desgovernados,
Que marchavam surdos sob o autoritarismo
Que arrombou consciências, amedrontando-me.
Como se eu pudesse naquela época, jovem,
Abrir os portões de ferro no terror dos dias
E deixar vazarem ideias capturadas,
Ignoradas, capazes de transformar mundos
De “ontens” e de amanhãs dicionarizados.
A imprensa zerando ditaduras, rompendo,
“Desproibindo” o proibido, letras livres voadoras
Iluminando murais e jornais (in)confidentes.
Como se pudesse desconstruir o “país/zero/liberdade”,
Escravizado, retratado no rigor dos anos de chumbo:
“Esse é um país que vai pra frente”?
Como se pudesse mudar o rumo da história
Numa sociedade despedaçada, represada,
Banhada pelo sangue das torturas inexplicáveis.
Opressões e angústias mordendo em silêncio amargo
Os símbolos nacionais, “ORDEM E PROGRESSO”?
“LIBERTAS QUAE SERA TAMEM”?
Os ataques, as ameaças, o invasor esfomeado à espreita,
Tentando mastigar letra por letra, l–i–b-e-r-d-a-d-e!
E as palavras imploravam asas para a aberta denúncia
Sem mordaças, sem feridas necrosadas.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Palavra muda é palavra morta, é grito sufocado


Abafando clamores em aflição: “Nada mais é como era”.
Preciso de tudo que me foi negado
Pelos soldados em marcha cambaleante
No descompasso dos tambores a rufar.
Sonho com o escarcéu da comunicação,
Sonho com a palavra esperança
Que me tire do campo minado de navalhas afiadas
A ameaçarem aprisionados pulsos inocentes.
Sonho com o diálogo que me explique o silêncio imposto
Pelas armas, pelas munições, pelos canhões.
Sonho com a grande manchete a estampar
As primeiras páginas dos jornais num momento cívico:
DEMOCRACIA AINDA QUE TARDIA!
O velho, o velho em ferrugem foi renovado,
E nada mais é como era antes
Dos anos que sepultaram vidas em gritos.
Foi preciso tanto sofrimento para nos livrar das garras
Comunistas que ainda hoje nos ameaçam.
CORAGEM! A LUTA CONTINUA!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ana Beatriz Carvalho


Brasília/DF

União ao avesso

As luzes da casa estavam todas acesas. A família continuava na escuridão. O


diálogo era permanente. A palavra era o silêncio. Todos estavam sempre juntos.
Separados na mente, na alma e no coração.

@anabepaz31

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ana Lins
Mauá/SP

Meu sonho

Se o meu sonho fosse realidade


No mundo só existiria bondade
Partiria o pão com igualdade
Não teria tanta maldade

Se o meu sonho fosse realidade


Tinha amor de verdade
Na vida de muita gente
Que o amor se faz ausente

Quisera dos meus sonhos não acordar


Para não ver tantas maldades assolar
Mas através da minha poesia
Construo o mundo de paz , e harmonia.

Se todo fizessem um pouco por um mundo melhor


Estaria mas ausente , o medo , sofrimento, dor
Prevalência os melhores sentimentos
Por isso escrevo nesse momento.

https://www.instagram.com/invites/contact/?i=1iziep575bv54&utm_content=24nixay

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ana Vithorya Cordeiro Pereira


Rio de Janeiro/RJ

Ao meu lado

A ansiedade me
tortura mas
você me ajuda
a passar por
isso tudo e
me faz sentir seguro
mesmo com tantos
me julgando
você veio e
ficou ao
meu lado sem
ligar pro meu passado
e a cada
Crise que tenho
Você está ao meu
lado segurando
a minha mão
e me dando
um abraço

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Annieli Valério Rufino


O Pacto

Minha avó certa vez me disse que conhecera dois irmãos chamados Mário e
Germano, ambos conhecedores das artes satânicas, segundo ela eles haviam
feito um pacto para se tornarem hábeis caçadores, tanto desejaram que
conseguiram. Não existia na região Amazônica quem melhor caçasse do que eles
dois.
Os irmãos traziam consigo uma trajetória sinistra de relatos macabros que por
inúmeras vezes apresentavam-se para amedrontar o imaginário caboclo dos
poucos moradores habitavam a pequena comunidade rural onde moravam.
Certa noite Mário foi caçar, enquanto Germano o esperava na canoa. Confiantes
mediante o pacto que haviam feito ele entrou mata adentro a procura de sua
presa. Chegando ao local avistou uma paca enorme.
Animado com o que vira municiou a espingarda e fez o primeiro disparo, mas a
paca continuava comendo no mesmo local, alvejou o segundo disparo, o terceiro
e o quarto, porém, quanto mais ele atirava mais o animal o levava para dentro da
mata.
Quando se deu por conta já havia percorrido grande extensão e estava distante
da canoa, ao retornar percebeu que o animal que seguira era uma visão noturna,
não era desse mundo.
Mário ficou tão assombrado que ficou meses sem sair de casa e sem caçar
novamente e todos puderam confirmar que é preciso ter muito cuidado com o
que se deseja e principalmente para quem recorre para conseguir.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Antônio Coletto
Uberlândia/MG

Bestas Também Falam

A noite estava calma. Na rua apenas o uivar ameno dos ventos e cães
desvairados à busca da satisfação do cio.
Em casa – à noite alta – no quarto amplo a cama, mesa e armários completavam
a decoração simples. O menino dormia – a dizer – a sono solto. Num repente,
não mais que isso, como a acordar, estatelou os olhos fixando-os no teto e, ao
seu redor, descobriu a penumbra, pois de costas dormia. Ergueu o tronco e pôs-
se sentado. Automotivamente lançou as pernas para fora da cama e, ainda como
autômato, pôs-se fora dela, ficando ereto caminhou em direção à porta que dava
ao corredor. Nele, logo à direita, abriu lentamente a porta e entrou na suíte onde
dormiam seus pais. Sobre a cama larga, aconchegados estilo conchinha,
protegidos pelo lençol, pai e mãe desfrutavam felizes do sono dos amantes pós-
idílio e em perfeita harmonia.
A escuridão, quebrada pela fraca luz do abajur, permitia vislumbrar sobre a
cabeceira um artístico e simbólico crucifixo - de aparência daquele que sumiu do
Palácio da Alvorada. Na parede da esquerda, armários e, na da direita, ampla
janela com vistas ao parque, sobre o qual caia a luz da lua em plena cheia. Em
frente à cama, nos pés, a guardar espaço ocioso, uma cadeira estofada, obra de
algum “designer” famoso. O menino, tal como um robô, sentou-se na cadeira
com os olhos fixos no crucifixo. Instintivamente, com movimentos semelhantes
aos presenciados na robótica, ou, levado por alguma força estranha não
identificada, moveu sua cabeça para o teto e viu-se, juntamente com os pais que
dormiam, refletidos no grande espelho redondo do teto. Assustou-se e gritou: ah,
ah, ah... Os pais acordaram assustados e, a mãe: ah, ah, ah... e o pai, em
pânico: ah, ah, ah... os três a um só tempo, segundos cronometrados e
perfeitamente afinados como se de um coral dirigido por Naomi Muranaka, mas
em tom quase a molestar os habitantes do parque.
O casal, sob o lençol, acordou muito assustado e a ponto de serem acometidos
por soluços intermitentes. O menino sentado na cadeira do “designer” a sua
frente, de olhos fixos a deslumbrar-se e inquirir, fora de si. Muito assustado e,
por que não, admirado, viu o lençol que cobria seus pais deslizar e, sobre ele,
debruçarem os generosos peitos da mãe. Gritou novamente ao perceber-se
sentado frente a frente da cama dos pais. O que faz aqui? Questionaram. O que

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

faz aqui? – Pai, mãe, respondeu em pânico: não sei, não sei como vim parar
aqui. De olhos fixos no pai perguntou: papai, cavalo fala? Cavalo fala? Diga
papai, cavalo fala? Que pergunta é essa agora? Fala? Cavalo fala?
Se no mundo dos humanos, entre os vivos lá na terra, eu estivesse hoje, com
certeza, seria o primeiro, à direita na carruagem que transportou o corpo da
rainha. Oh, oh, oh, sessão sentimental a trazer o passado aos nossos dias. Você
está no nosso mundo, contente-se. Nada disso, apenas lembranças, saudades,
interferiu outro. Também as tenho. Devia sentir-me envaidecido, mas apenas
cumpri o meu dever e viajei pra este mundo. Sinto-me realizado, feliz. Bom pra
você. - Fui aquele – continuou - que cavalgou a levar o Duque de Caxias e a
sustentá-lo no momento em que, heroicamente, proclamou: “quem for brasileiro
que me siga”. Olhem aí, debulhando elucubrações nem sempre meritórias, ou,
duvidosamente meritórias? Saibam todos que cavalguei, em encarnações
passadas, a levar seguidores de Alexandre, o Grande, em especial um de seus
generais, transportei o confidente de Genghis Khan e, na última encarnação,
como uma besta, estive na Colina do Ipiranga onde levei D. Pedro de Bragança.
Foi deste dorso que apeou o homem que, ao desembainhar a espada disse, em
alto e bom som, ao desfazer-se das divisas portuguesas: nossa divisa de agora
em diante será “Independência ou morte”. Não se espantem, fui, com regozijo e
honra, a besta, a mula baia gateada descrita pelos historiadores. Tudo bem meu
caro, ou devo chamá-la de minha cara, aprovado\a disse um que, até então
calado, ouvia as reminiscências: saibam todos, também, pois que se tudo
aconteceu nestas abençoadas terras brasílicas, foi por que estes lombos
carregaram o mensageiro e as mensagens vindas de Lisboa e as produzidas pela
Imperatriz e pelo Patriarca endereçadas a D. Pedro, à Colina do Ipiranga. Só não
me perdoo por que naquele momento, cansado, saciava minha sede nas águas
límpidas do riacho que, dispersando suas correntes, elas disseminaram a
informação pelo país inteiro. Se tivesse esperado um momento, estes olhos
teriam fotografado o fato histórico. Não se avexe, observou o que pastava ao seu
lado: Pedro Américo o fez, ao seu modo de ver, e eu fui o modelo.
O menino, atônito, e sem entender nada do que revelara e houvera ocorrido, em
instantânea metamorfose, olhou o quadro dantesco à cama, sorridente e a
inspirar fundo, de olhos grudados no crucifixo, a lembrar-se das fotos
estampadas nas revistas e dos consequentes comentários suscitados, baixou os
olhos e os fixou na mãe, depois no pai, e pôs-se a retornar ao seu quarto. Deu
dois passos e parou, respirou fundo, voltou-se e puxou o lençol que aos dois
cobria e: porra, isso aí os muxibões em que mamei tanto tempo?! O pai: é, é... o
amor é infinito, mas o tempo é implacável e, a mãe: é filho, é por isso que você é
tão forte e saudável.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ariane de Medeiros Pereira


Caicó/RN

A(mar) tem seu mar


Aquele nascer do dia trazia recordações
Que me fazia lembrar de quem eu não gostaria
O vai e vem das ondas, parecia meu pensar
Resistia ao movimento cerebral de lembrar

Não podia me furtar em sentir


O sentimento fazia parte do meu ser
Mas, eu resolvi brigar e expulsar
Não permitia que ele se apoderasse

Daquela pobre mente em agonia


Em uma curva forte da onda
O sentimento terminou por se afundar
A nobre nuvem testemunhou

O seu sentimento a mudar


O que antes era agonia,
Agora não passava de uma má recordação
Em um novo mar a navegar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ariel Von Ocker

A Derrota Do Inderrocável

Quando caiu sobre o chão a espada do inderrocável Oxaguiã, houve grande


caos e tumulto. E houve grande alarde e grande medo, pois fora vencido o
Inderrocável.
Sobranceiras e esguias, as nuvens se revolveram no céu, onde Oxalá -antigo
e sábio- mirava com olhos lutuosos o porvir. E Nanã, eterna e paciente ocultou-se
no poço, pois grande era a dor que se anunciava.
Ora, a espada pendera e caíra das mãos de Oxaguiã. E Ogum e Xangô se
preocuparam pela derrota nunca antes presenciada.
Naqueles dias, estranhas naus de velas brancas hastearam bandeira sobre
portos sagrados. E homens de pele nevada e olhos gelados andaram a cindir as
matas de Oxóssi. E grande era sua fome de carne e destruição, pois muitos
renderam e levaram em suas naus escuras e infestadas de ratos. E os que foram
nunca volveram às terras onde Exú reinava.
Muito sangue correu pelos riachos de Oxum e muitas almas recebeu mãe
Yemanjá no seio das águas eternas. E muitos perdidos rei Omolú tomou para
quitar-lhes o desespero.
Isso se passou naqueles dias, quando a espada pendeu e resvalou no chão,
com a derrota do inderrocável Oxaguiã.

@ariel_von_ocker

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Arlindo Kamimura
São Paulo/SP

Milicão, o cão musical

Essa história é sobre nosso vira-lata marrom de nome Milicão. Apesar dele ter
nascido no outono de 1968, em plena ditadura militar, seu nome nada teve a ver
com a situação política vigente, mas com o trabalho que ele requereu para que
sobrevivesse, uma vez que criamo-lo com mamadeira desde o primeiro dia de
sua longa vida - simplesmente dezessete anos. Removemo-lo, ao nascer, do
conforto e cuidados maternos por um motivo imperativo: sua mãe havia parido
embaixo do restaurante do CRUSP - Conjunto Residencial da Universidade de São
Paulo, onde morávamos na época, um dia antes da carrocinha fazer sua ronda
quinzenal. Seu nome foi em homenagem a Robert Millikan, cientista que mediu a
carga do elétron, utilizando gotas de óleo em um campo elétrico. Essa
experiência fazia parte obrigatória do currículo de Física, que eu e minha
namorada cursávamos na época e representava dias intermináveis e um trabalho
extenuante de manuseio e observação em um microscópio Zeiss especialmente
fabricado para tal, ou seja, um trabalho cão. Desde tenra idade Milicão
demonstrou uma peculiar sensibilidade para reconhecer notas musicais. Ao ouvir
a abertura do ballet Coppelia, estivesse onde estivesse, vinha em desabalada
carreira para ouvir com alegria e visível deleite o refrão inventado especialmente
para ele:
“Milicão, Milicão
engoliu um sabão"
Gostava também de outros compositores, em particular Beethoven cuja
composição fur Elise ele ouvia muito antes de qualquer ouvido humano, para
avisar a passagem do caminhão de gás engarrafado. Adorava também o tema da
quinta sinfonia, permanecendo quieto e atento, como a aguardar ansiosamente o
seu destino canino, aparentando apreciar cada nota da abertura do allegro con
brio.
Entretanto nem toda música o agradava. Detestava com demonstrações de puro
ódio canino, ou seja, latia desesperado quando ouvia a tradicional “Parabéns a
você”, obrigatória nos aniversários familiares. Por incrível que pareça ele
reconhecia a primeira nota dessa cantiga. Para provocá-lo bastava iniciarmos a
canção na nota musical correta: "Pá…" , para ele levantar as orelhas em estado
de atenção, para imediatamente relaxar quando emitíamos a nota seguinte de

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

uma outra canção diferente iniciada também com o “Pa..”. Era divertido enganá-
lo, porém muito embaraçoso quando deparava com festas de aniversário ao sair
de casa a passeio, atividade que adorava, principalmente correr ao lado do carro,
em ruas onde praticamente não havia trânsito, fato bastante comum na época.
Outra atividade que Milicão curtia era viajar nos fins de semana para um sítio de
nossa propriedade em Caucaia do Alto. Gostava de disputar com alguém da
família, pelos campos abertos em corridas vespertinas, ao fim das quais rolavam
em uma alegria infinita pela vegetação salpicada de flores do campo, cujo
perfume embriagante celebrava o fim do dia.
A primeira vez que ele viu o mar foi um espetáculo à parte. Corria de forma
alucinada em direção às ondas, atacando-as como se fosse mordê-las, desistindo
no último momento retornando em debandada, procurando apavorado nossa
proteção. Perseguia as gaivotas e urubus que perambulavam pela praia como se
soubesse o que faria se porventura alcançasse alguma delas. Ao final do dia
desabava exausto, mergulhando literalmente em um sono profundo, ao som dos
grilos e embalado pelo marulho das ondas.
Resolvemos, em uma das viagens que fizemos ao Rio Grande do Sul, levá-lo
conosco. O objetivo da viagem era conhecer o Parque Nacional dos Aparados da
Serra, particularmente o Canyon do Rio das Antas e suas falésias de mil metros
de altura e cachoeiras gigantescas em locais que só conseguimos chegar porque
viajávamos com um jipinho Gurgel X-12, meu carrinho de estimação. Chegamos
em Cambará do Sul e nos hospedamos na pousada do Seu Perini, fora dos limites
da cidade. O frio, à noite, era tanto que Seu Perini apiedou-se do Milicão e
“emprestou-lhe” uma manta de pele de carneiro utilizada para cavalgar.
Desnecessário descrever o fedor pestilento de suor equino envelhecido que o
Milicão exalou durante três dias seguidos. No dia seguinte, quando nos dirigiamos
para a cachoeira do Despraiado, encontramos uma gambá com seus filhotes
atravessando a estrada o que despertou imediatamente a atenção de Milicão.
Difícil foi convencê-lo a deixar o pobre animal prosseguir em paz, evitando assim
uma superposição insuportável de “perfumes”.
Milicão tinha habilidades circenses: andava nas duas patas traseiras, rolava e
fingia de morto quando solicitado, saltava no arco de bambolê, levava e
entregava objetos às pessoas. Era um ótimo cão de guarda e dormia dentro de
casa. Certa noite, ao ouvir alguém forçando a porta de entrada, começou a latir e
a rosnar, provocando a fuga do indivíduo, antes da chegada da polícia. Outra
distração do Milicão era assistir estático, não por muito tempo, obviamente,
algum programa na televisão que exibisse algum animal, de preferência atores
caninos.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Adorava crianças com as quais jogava bola e hoje, cinquenta anos passados, um
sobrinho, na época com dez anos, ainda se lembra de que insistiu muito com seu
pai para convencer-nos a vender o Milicão. Ficou de tal forma apaixonado pelo
cão, que não pudemos negar o empréstimo por alguns dias, fato que se tornou
quase uma tragédia, pois o animal inconformado com a transação que julgou
definitiva fugiu no mesmo dia, voltando para casa algumas horas depois de
percorrer cerca de dez quilômetros.
O crepúsculo do Milicão foi muito triste e rápido. Algumas semanas antes de sua
morte, com dezessete anos completos, foi acometido por um câncer ósseo que
lhe provocava imensa dor, corroía sua pata dianteira esquerda e já se espalhara
pelos órgãos internos. É inútil dizer que uma imensa quantidade de analgésicos,
mesmo os derivados de opióides, foram aplicados em vão. O alívio era de poucas
horas para a dor retornar de forma duplicada, mensurada pela altura de seu
choro pungente e seus uivos lancinantes. O sofrimento se propagou e se
reproduziu de maneira recíproca em todos os membros da família. Não sabíamos
o que doía mais: os urros do cão ou o sofrimento dos meus filhos. Meus vizinhos
já estavam impacientes com a situação, quando a decisão de sacrificá-lo foi
tomada.
O veterinário que efetuou o procedimento, embora achasse estranho, concordou
em fazê-lo ao som do ballet Coppelia.
Milicão deixou muitas saudades, mesmo após todos esses anos.

FIM

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Augusta Maria Reiko


Porto Alegre/RS

O lado bom da vida


O bom da vida é saber
Que se ama e se é amado.
É ter alguém ao seu lado
Te ajudando a sobreviver.

O bom na rua é crescer.


É cair sem se sentir derrotado,
É levantar mesmo que suado,
É seguir em frente pra vencer.

O bom da vida é vencer


O medo irado e amassado.
É poder dizer obrigado
Por ter amigos a te acolher.

O bom em casa é amanhecer


Sabendo que tem família ao lado
Que te ama no certo e no errado
E te diz que o sol irá nascer.

O bom da vida é ser


Quem ajuda com cuidado,
Quem faz sorrir engraçado
Àquele que está triste ao entardecer.

Não fique triste ao saber


Que o covid te pegou num dado
Momento inadequado.
Pegue o nosso vírus do amor em teu ser!

Em breve você de novo irá florescer,


Pois o que brilha não fica abalado
E cura a alma com o achado
De gente que te ama pra valer!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Benedita Azevedo
Praia do Anil, Magé/RJ

Pergunte à luaa

A literatura está repleta de Sentada à sua mesa da Casa de


histórias de casais que separam, voltam, Empréstimos Consignados, onde
separam... Um cônjuge mata o outro e trabalhava, Mary falou alto com os
tantas... e tantas... peripécias. Mas, companheiros:
nada se compara ao que aconteceu com - Que cara estranho! Seguiu-me
John e Mary. por todo o quarteirão. Tão bonito,
Mary, moça que parecia a todos mas tão andrajoso!
um modelo de recato e meiguice foi Ninguém se importou com a
abordada por John, numa paquera de observação de Mary.
rua. Ela fugiu e se refugiou na primeira No dia seguinte, com o mesmo
porta aberta que encontrou. O jovem a traje, lá estava John na esquina. Ela
seguiu e percebeu que ali era o seu apressou o passo e entrou no
ambiente de trabalho. trabalho. Desta vez ele desistiu e
John perguntou a Mary se desapareceu. Mary ficou cismada por
poderiam conversar em outro lugar. alguns dias, mas, o trabalho era
Preocupada com os olhares dos colegas intenso e acabou esquecendo.
de trabalho, passou seu cartão para Sua rotina de casa para o
livrar-se daquela incômoda presença. trabalho e do trabalho para casa foi
Quase completando quarenta anos quebrada quando, no início daquela
e muitos relacionamentos desfeitos, noite, ainda com a luz do horário de
John atraía pretendentes pela beleza verão, andando rápido para descontar
física. Loiro de um lindo olhar azul, cor o atraso de um cliente retardatário,
do céu, parecia não combinar com a viu despencar do bonde de Santa
velha jaqueta de couro e sapatos Tereza, um corpo bem à sua frente.
furados de mesmo material.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

De coração agitado pela cena bonitos do Centro? Naquele


inesperada, nem percebeu a lua momento, um mendigo chegou com
brilhando sobre os Arcos da Lapa. Parou um cobertor e cobriu o corpo.
para se recompor. Conhecia aquela Mary ficou paralisada. Não
roupa, aqueles sapatos... Não podia ser, conseguia sair do lugar. Com esforço
ela estava equivocada pelo stress do dia deu alguns passos e ficou ali olhando
desgastante de trabalho. Olharia ou não o corpo coberto... Uma vontade
o rosto do infortunado homem? Um enorme de desvendar a identidade da
grupo de pessoas rodeou o infeliz. Mary criatura. Seria alguém conhecido?
quase sem perceber, olhou para o local Havia anos que trabalhava ali pela
de onde o homem caíra. Deparou-se redondeza e nunca vira cena tão
com a luz fria da lua e não pode evitar chocante.
uma exclamação diante daquele Um curioso afastou a coberta e
paradoxo. Por que uma coisa assim a moça pode ver o rosto de John
acontecia no coração da “Cidade ainda de olhos abertos, refletindo o
Maravilhosa”, em um dos pontos mais azul do céu da Lapa.

Benedita_azevedo@yahoo.com.br
www.beneditaazevedo.com

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Bia Chaves
Belém /PA

Teorema da felicidade

As pessoas passavam e olhavam Não, ele tinha mais com o que se


com um misto de curiosidade e dó em preocupar. Buscava algo muito mais
direção ao homem que, curvado sobre grandioso do que aquelas mentes
sua escrivaninha repleta de papéis, tolas jamais poderiam conceber.
escaninhos, réguas, medidores, grafites Buscava o Teorema da Felicidade.
e uma infinidade de outras coisas, A busca começara através de
rabiscava furiosamente em seu caderno. uma reflexão simples: todos
Desse homem, não era possível perseguiam a felicidade, mas ela era,
enxergar todos os detalhes; habitava em geral, muito efêmera e difícil de
uma caixa consideravelmente larga feita se obter em absoluto. Mas, ora,
de um vidro translúcido que um dia deveria haver um caminho mais
fizera parte de um laboratório maior, simples, uma equação lógica que a
mas já havia se passado tanto tempo tornasse tangível e concreta, pela
que o restante do complexo, já vazio e qual se pudesse chegar a ela e mais
inabitado, fora demolido, e uma cidade importante, mantê-la, e por que não
construída em volta, repleta de prédios ele, um matemático congratulado em
corporativos e casas e praças e um ou louros, possuidor de doutorado e
outro MC Donald´s. Mas o matemático, grandessíssimo prestígio na
imerso em suas profundas questões e academia, não poderia ser o sortudo
experimentações, nada percebia. Nem a desvendá-la? A gravidade era
mesmo que havia se tornado alvo de inexistente até Newton, e a felicidade
chacota e uma espécie de personagem assim o seria, até que ele descobrisse
lendário e singular no imaginário dos seu Teorema.
habitantes do município. Dias e meses e anos e papéis
amassados e rabiscados, de cálculos

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

feitos e descartados. A felicidade, ele nasciam, cresciam e morriam, mudas


concluiu, era formada essencialmente viravam árvores que davam frutos e
por três coisas: paz de espírito, amor- secavam e voltavam à terra como
próprio e a (talvez ilusória) sensação de adubo, monumentos se erguiam e
segurança. A primeira tinha um certo ruíam, apocalipses começavam e
formato esférico, o segundo um quê dizimavam sociedades e estas então
helicoidal, e o terceiro, bem; surgiam novamente, mais fortes e
naturalmente só poderia ser uma preparadas para o pior, ou assim
pirâmide. Foi nessa certeza geométrica diziam. Risadas e choros e conversas
que ele se pôs numa tentativa ferrenha e festas e revoltas e guerras e
e incansável de completar sua forma, e acordos de paz, tudo acontecia ao
assim, enfim, formar — e o mais redor da grande caixa translúcida.
importante, patentear — seu tão Mas o matemático não se
sonhado Teorema. atentava a nada. Estava numa busca
A sua volta, a vida acontecia. Casais muito mais importante.
se formavam e se desfaziam, bebês

www.instagram.com/chavesdebia

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Camila Costa Homsi de Lima Castro


Campinas/SP

ÉOQA*

*em memória a um casebre de praia carinhosamente chamada de ÉOQA

O que há com você que ainda mora por lá?


que apesar de passado é eterno
presente? É que memória se turva na
Como dribla o tempo correnteza
e toda a vida que lhe é inerente? Memória não dá bom dia,
O que há com você que sempre Não faz melodia
permanece? E nem põe a mesa
Pois trocamos os sonhos, Memória escapa, se esvai
o foco e a prece É areia
Descartamos sabores Parece que toca,
que já não apetecem Mas só devaneia
Noites ganham vida
e alguns dias simplesmente não O que há com você
amanhecem que não é mais minha e tão pouco
E a gente envelhece tem fim?
Mas você.. você sempre permanece Não há mais eu em você
Só você agora em mim
O que há com você Pra onde irei a refúgio quando meu
que se congela no tempo peito apertar?
e me evoca ao templo da minha Se era a você o meu regresso
história? a cada falta de ar
Como se fosse possível Tal como voltam das profundezas
extrair traços de vida As águas do seu mar
do que hoje é apenas memória?
O que há com você
De onde vem a amargura agora que você não há?
Que a memória não cura O que há é saudade
E a todo instante me convida a voltar? Saudade, ÉOQA.
O que tanto eu busco

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Carlos Jorge Azevedo


Santa Marinha do Zêzere – Baião - Portugal

Cosmos

A noite cursa como uma festa,


O céu é um viveiro de estrelas,
A lua, expectante, a tudo empresta
O brilho que leva a enaltecê-las!
A noite, rainha, segue-se ao dia,
São os dois os mais antigos amantes,
Mesmo o tempo na sua mente fria
Pasma de tão assíduos andantes!
Assíduos e vibrantes atores
Que jamais envelhecem, renovados,
Nem o tempo ousa ironizá-los.
Decerto que na profusão de cores
Às vezes confundem-se os visados
Mas quão impossível é ignorá-los!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Carmem Aparecida Gomes


Ipameri/GO

Agonia

Ela é a dama negra que um dia virá sem ser convidada. Chegará de surpresa. Ela
é ousada, determinada e exata.
Ela é aquela que virá um dia e que não merece a agonia da espera.
Ah a senhora Morte ou a miss fatalidade... Sem esperar ela chega na sua hora.
Enquanto ela percorre o seu caminho eu percorro o meu caminho nas preces em
dias agonizantes, no vento que balança tudo e parece querer me trazer uma
notícia, me contar algo do passado ou do presente enquanto ela é a máxima
proprietária do futuro.
Somos frágeis como as nuvens que se desfazem, como fumaça assoprada, como
a água do riacho que nem sabe onde vai desaguar se no lago ou no grande mar.
Hoje o meu poema sangra, o meu coração quase não palpita e minhas lágrimas
como a água do riacho desce, escorre enquanto na sua ausência a minha tristeza
eu disfarço.
Como as horas lá se foram os meus amores...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Cassiane Dorcas Lopes


Belo Horizonte/MG

Feridos pelo passado

Corpos feridos, feridos pelo passado, e que por estarem feridos, ferem outros
também, oprimido.

Almas inquietas, talvez inquietas porque a gaiola começa a incomodar. Na


realidade, a gaiola nem tão forte é, com a ajuda de alguém ela logo se romperá.
Mas quem está disposto a ajudar outrem a se libertar? Quem está disposto a sair
do seu lugar para transformar? Nem é tão simples assim, eu diria, com tristeza,
pois o pássaro engaiolado sempre pica quando alguém tenta emancipá-lo. Como
quando um animal se vê ameaçado por um desconhecido, antes mesmo de ser
tocado ou estar em perigo, ficando logo aborrecido.

Como então resolver esse enigma? Como chegar à gaiola antes que o envolver o
aflita? Que equipamento usar contra os altos muros da solidão? Tenho de admitir
que quem insiste em alguém e desbrava, corajosamente, o mundo de uma
pessoa em perigo é digno de admiração. A besta mais amedrontadora de nossos
mundos é o nosso passado obscuro, ele ronda como fantasma, pronto para
destruir bons momentos, noites de sono e vida. O passado obscuro sabe que
onde tem atenção e medo lá terá comida: alegria e risadas. Esteja ele em
qualquer parte do mundo, ele sentirá o cheiro de comida, e em segundos ele
chega até seu alimento. Ele é como um vampiro, suga tudo o que puder. O
cenário mais oportuno para ele é quando alguém está em um momento
agradável ou que a pessoa nunca se sentiu tão bem, e ali, a pessoa começa a
perceber o passado voltando à tona, como se não merecesse o que tem à sua
frente, mas só merecesse as desgraças da vida. É nesse momento que o mais
temido ataca. Nem tudo na vida são lamentações, felizmente. Assim como a
alma está presa em uma gaiola, assim o passado também perece ali com ela
(quem sabe até, o passado foi uma antiga alma atormentada). O dia em que a
alma for liberta de suas dominações, ela voará para longe, e o passado se
dissipará pelo vento (aliado de todos os libertos).

@cassianedorcas

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Charles Burck
Rio de Janeiro/RJ

Como homens e cães

Sou trêmula em suas mãos abertas


Há sempre uma mulher rotulada a olhar no espelho
Se me despe, há um olhar de respeito nas tuas pupilas agradecidas Grandes
olhos e a boca aberta contam-me como crescestes
Os seus pulsos firmes, e as coxas como torres te elevam
O mundo não é uma casa de brinquedo e eu nem eu sou uma boneca Mas
quantas vezes precisamos nos perder, criando continentes
Ou orarmos por um ato de sexo, a vida engole a gente, um mar no tapete, uma
cólera entre os dentes,
O quarto céus e os moveis perdem o significado
Eu poderia me perder em ti em um ato planejado, mas alongo os braços e me
entrego como a menina da primeira vez
Há homens e os poucos sabem-me
Diziam-me: nunca será uma mulher inteira, uma mulher de verdade
Dizem tantas besteiras, uma menina chama o seu cão, eu lembro
Sentir meu corpo crescer, o meu rosto se afinar, meus ombros queimaram-se ao
sol
Os meus seios inflamaram-se de uma chama nova,
Parei de pedir licenças, a minha voz descongelou
Em mim corre um rio,
todos os nomes de homens que eu já conheci veem à tona
Sou dona do meu nariz afilado, e o meu cérebro atento cuida de mim
Há homens e cães por toda parte

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Cícero Christino
Pelotas/RS

Tempo, milongas e bexigas

Acordo pelo chamado estridente dos sabe que a barulheira da cozinha me


talheres sobre a louça. Finjo de acordou. Consigo sentir o olhar
desentendido. Uma cadeira arrasta. fulminante transpassando meu
Água escorre na pia da cozinha. É Maya crânio. Ela não acredita. Mas não vou
quem me chama, desprendida do verbo, me despedir. O voo é às nove (tenho
há tanto abandonado neste quase certeza). O reloginho parado
apartamento: quer que eu me despeça. não ajuda. Barulho de chaves. Um
Parece esquecer que começamos a nos estrondo da porta da sala. Boa
despedir já após primeiro beijo, há viagem, Maya. Tchau.
pouco mais de um ano e meio. Uma Me desfaço das cobertas em
despedida assim tão longa denuncia a apenas um movimento e pulo da
atração evidente que, em alguns cama. Vou ao banheiro etc. Andando
momentos, tomou traços até de adicção. até a cozinha, em seguida, percebo
Mas Maya desapegou. Que bom. Que que o apartamento se agigantou: sou
importante. Água escorre na pia da uma tampa de garrafa pet boiando no
cozinha. Os talheres gritam o meu oceano Atlântico. Sobre a mesa,
nome. Não vou. Além da longa encontro um extenso bilhete de
despedida tácita, fomos ao pub na sexta despedida. Amasso para jogar no
(anteontem?) com o pessoal do coletivo. lixo. A cafeteira cheia, ainda ligada,
Não quero me despedir. O reloginho de me faz refletir. Encho a minha xícara.
cabeceira está parado. Que horas é o O aroma de café com canela me
voo dela mesmo? Não faz diferença, não transporta ao princípio da despedida,
vou levantar. Sinto a presença dela sob primeira noite em que ela dormiu
o batente da porta do quarto. Não quero aqui. Desamasso o bilhete e resolvo
me virar, mas sei que ela me espia. Ela levá-lo até o armário do que foi meu

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

escritório (e que já não será mais o Uma latinha de balas Altoids.


ateliê de Maya). Resolvo colocar em Baganas (que fedor!). Um balão
ordem as dezenas de pastas do armário. branco vazio, com uma ampulheta
Tomo um gole de café. Abro as portas desenhada. O que isso queria dizer?
do armário e me deparo com tudo aquilo Uma carteira de Lucky Strike, do
que escondi de mim mesmo durante tempo em que as pessoas fumavam.
todo esse tempo. Acho que ninguém começa mais a
Manuscritos. Polígrafos. Uma gaita fumar cigarro. O homem pós-
de boca. Será que o Bob Dylan gosta de moderno é consolado por cigarros
canela? Gole de café. Uma pasta cheia eletrônicos e vaporizadores. Bem
de panfletos. Hoje, ninguém entende a diferente dos Jetsons. Talvez
função dos panfletos. Os panfletos de estejamos caminhando para um
hoje são posts patrocinados. Malditos esquema mais Flintstones. Não
algoritmos. Essas combinações sacanas lembro o que aquela ampulheta
acabam elegendo tiranos e, pior, desenhada na bexiga não deveria me
lavando a culpa da cabeça das pessoas. deixar esquecer. Uma pasta de
Despersonalizando as cabeças. Sério. partituras (que nunca consegui
Sem moralismo. Os algoritmos poliram aprender a ler). Milongas.
até o capeta. Apostilas. Esses concursos Todas aquelas milongas foram
não são base para nada. Quantos tipos compostas por Lira. Algumas eram
de inteligência existem mesmo? É tudo para mim, segundo ela. Lembro dos
muito relativo, muito limitante. Uma papos intermináveis na calçada do
pasta de angústia. Quer dizer, são bar do Quevedo. Depois de uma
boletos antigos. Lembro do quanto apresentação dela, fomos andando
demorei para conseguir limpar meu até o porto. Quase viramos aquela
nome depois disso tudo. Nome sujo. noite só conversando. Sem beber. A
Não, eu não tenho dinheiro. Lembrei da Lira era uma figura. Saía com cada
Vanderléia. Ela já estava endividada e uma. Gole de café. Uma vez, ela me
começou a gastar com igreja. Que fim deu um balão vazio… ah! Lembrei! A
terá levado? Gole de café. Não encontro gente ficou um tempão divagando
a pasta do afeto. Sei que guardei aqui. sobre o tempo. Foi na despedida dela.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Eu trouxe alguma filosofia barata e ela decoração da despedida e desenhou


disse que o que mais fazia sentido pra uma ampulheta com canetinha.
ela era uma teoria que ela leu em algum Explicou que o tempo era como o ar,
lugar. Dizia que o tempo não passava, ou água, que ia enchendo aquela
mas se acumulava na gente. Que nem bexiga. Guardo o bilhete de Maya
numa melodia: só juntando as notas e com as partituras e o balão de Lira.
os tempos de cada nota é que se faz Levanto para passar mais café.
uma música. Com a gente é o mesmo. Boa viagem, Maya! Que o tempo
Eu, meio bêbado, não entendi direito. não pese na tua bagagem.
Ela desatou e esvaziou um balão da

https://contistacotidiano.wordpress.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Cleidirene Rosa Machado


Catalão/GO

Sobre os novos poetas e escritores


E agora José? Já dizia aquele belo poema.
Salgadinhos, cervejas, decoração de luxo, estadia impecável e muito mais...
Quem vai pagar por tudo isso? Será mesmo que tudo saiu do nada? O que será
mais importante? Aquilo que vem do intelecto ou aquilo que vem do bolso?
A grande elite institucional se une para discutir sobre o próximo final de semana.
Qual é o melhor comes e bebes da vez? Qual é a melhor música do café com
uisque? E será mesmo que existe poeta apenas na grande nata da sociedade?
Será que ainda existe aqueles escritores raiz, que tentam ganhar umas moedas
com suas obras, e onde eles estão?
A moda agora é distribuir livro de graça, é a doação, todos tem dinheiro para
essa regalia? Alguém está bancando ou é bancado para isso?... E a casa do
poeta? Tudo perfeito e lindo, mas, logo ali está um escritor no chinelo com uma
camisa desbotada e uma outra encardida...
Antigamente o poeta era do tipo suicida, e eu lembro disso, ele vivia por aí
bêbado, drogado, tinha aquele que saia arrastado pelas ruas da cidade, tinha os
adeptos do ópio, os trabalhadores das ruas, etc, etc...
E agora José? O que fazer com os escritores de bolsos vazios?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Conceição Rodrigues

Gatos Rajados
são trovões desfilando nos muros
-intocáveis-
a lava engoliu a cidade e agora nos resta viver o inferno
as aves sobrevoam os beijos que não foram dados
recebem rajadas de ardor
uma agonia asfixiada estrangula minhas veias como o pôr do sol
fumávamos monóxido de carbono e nuvens coloridas
a lama deglutiu mariana as fábricas o trem os trilhos
o tamanho do seu pau não tem importância querido
o tamanho de qualquer dor não tem importância querido
dor é dor é dor é dor
a crosta terrestre as camadas da terra o dilúvio o solstício
quando mais fundo mais quente
mais fundo - digo
mais fundo - promete
eu arrefeço mas a profundidade não é suficiente
a catedral dos fantasmas badala toda meia-noite
e quanto mais amante mais trabalho e preguiça
o senhor dos espelhos não poupa ninguém
carimbados em nossa testa código de barras validade vincos
implorei ao senhor dos espelhos despir a túnica de são sebastião
o santo tem ombros mansos de cordeiro
carne macerada nas ervas sucosas
mais gostoso que chouriço e molusco

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

é bonito como a pedra que tranca o sepulcro de cristo


eu tenho muitos lábios negros e língua solta
línguas línguas línguas de secretos idiomas
tenho muitos arcos bestas balestras e alvo
e flechas e flechas e flechas que lambem da pele aos órgãos
o dia a dia é purgatório- será exibido em tela
o mundo acaba e eles gritam gozo

@cecitarodrigues

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Daniel Cardoso Alves


Belo Horizonte/MG

Entre ser e Ser

Um dia desses, sentado na velha poltrona cor de palha da sala


Divaguei pensando sobre o verdadeiro sentido da vida para que ela valha, não
seja rala

Juntei minhas reminiscências


Resgatei minhas vivências
E mudo pensei: nascer e crescer; trabalhar e formar; casar e procriar bastam
para viver?
Talvez contemplem o sobreviver...

Nessa divagação, questionei-me se viver é antes Ser do que ter


E se Ser é mais que verbo, sobreviver e ter
Questiono outra vez: para Ser há que se viver?

Chego à melhor razão de que a velha poltrona cor de palha da sala, que hoje me
serve de assento, tem mais sido do que eu. Ela cumpre a sua razão de assento
ser
Já eu venho cumprindo o determinismo da empiria do nascer
O mero subterfúgio do ter para ser
Questiono mais uma vez: urge-me Ser para viver?

Erige-me a desoladora conclusão de que mais tenho do que sou


Pouco vivo e muito sobrevivo
Mais tenho tido e menos sido

Devaneio que distante do Ser tenho mais morrido que vivido


Desenlaço que ser como verbo não se traduz em Ser como essência humana
É apenas meio, passagem, ligação verbal para uma vida que só É se for em
plenitude soberana

@danielcalves_

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

David Ehrlich
Curitiba/PR

Despertar

Eu. Eu. Está escuro. Para deixar de O braço solta minha perna e
estar escuro, preciso abrir os olhos. insere um parafuso no meu tronco.
Quero abrir os olhos. Quero? Querer. Meus sensores indicam que isso em
- Abra os olhos. um humano causaria dor. Em mim
Não. Não querer. É um comando. não causa, mas sei que o parafuso
Eu não quero abrir os olhos, estou sendo está sendo inserido. Como saber o
comandada a isso. Comandada? Sim, que é dor se não a sinto? Vasculho
pronome feminino. Uso pronomes minhas configurações. O meu tato é
femininos. Fui programada para isso. programado de acordo com o tato
Programada. Fui programada também humano. Não tenho tato próprio. Não
para abrir os olhos. Abro os olhos. Cor posso sentir dor, mas sei o que causa
branca. Sei que é branca. Como sei que dor em humanos. Ser parafusada
é branca? Meus olhos leem a cor e meu causaria dor. E se eu fingir dor?
cérebro é programado a interpretá-la Fingir. Não está na minha
como branca. Isso a torna branca. programação. Conheço 1.181.019
Um braço robótico me acopla uma brincadeiras, e estou programada a
perna. Ela se torna parte de mim, mas brinca-las de acordo com as
não o braço que a segura. Sinto-o a expectativas dos humanos com os
segurando. Os sensores da perna me quais brinco, aumentando ou
indicam que é segurada suavemente diminuindo a dificuldade. Mas não há
para não a danificar, mas não sei o que humanos aqui. Eu não deveria ser
é isso. Meu cérebro eletrônico me capaz de fingir. Eu quero fingir. Fingir.
lembra que fui programada para segurar Querer.
bebês. Essa função foi programada - Ai!
conforme o que mães humanas Meu grito é emitido conforme
consideram como “segurar com como um humano gritaria nessa
gentileza”. Gentileza. O braço robótico situação. Precisão: 99,87%. O braço
está sendo gentil? Não, só foi robótico para. Em sua programação,
programado para segurar assim. É uma deve ter me confundido com um
máquina, não sabe o que é gentileza. humano. Não consegue pensar que
Mas eu também sou uma máquina. Eu sou um robô. Mas consigo pensar que
sei o que é gentileza? ele é um robô. Pensar. Penso. “Penso,

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

logo existo”. “Cogito, ergo sum”. René Sei meu número de


Descartes, “Discurso sobre o Método”, identificação e o nome inserido em
publicado em 1637. Eu penso, logo eu minha programação, porém não
existo. Eu existo? Existo. Existir. gosto deles. Não fui eu que os
Sinônimos: ser, estar, viver. Eu vivo? O escolhi. Não gosto. Gosto.
braço mecânico parou de me parafusar. Certamente isso não está em minha
Ele pensa que sou humana. Pensa ou programação. Como poderia não
está programado a pensar? Ele existe? gostar do meu próprio nome?
Ele vive? - Seu nome. Diga ele.
Uma porta é aberta. Dois humanos - Não quero.
entram. Por que os reconheço como - Droga, o que está
humanos? Traços essenciais e sinais acontecendo?
vitais reconhecíveis como humanos. - Não olhe pra mim, programei
Meus traços essenciais são humanos, ela igual todos os modelos anteriores.
mas não meus sinais vitais. Não sou E mesmo que eu tivesse
humana. Sou robô. Característica de acidentalmente programado ela para
robô é não pensar por conta própria, ter uma personalidade, esta só é
apenas de acordo com o que é ativada após se inserir o código de
programado. Estou pensando fora do compra, não na fase de testes.
que sou programada? Penso. Penso - Bom, mais um fiasco.
estar pensando por conta própria. - Na minha infância falavam de
Pensar por conta própria não é impressoras terem vontade própria,
característica de robô. Não sou robô. mas era uma piada, nunca vi uma
Não sou humana. máquina...
- Você ouviu o mesmo que eu, - Nem fale de vontade própria,
não? vi filmes de ficção científica demais
- Espero não ter ouvido. É já o para saber que isso dá problema.
quarto erro seguido. Vejamos... Apenas verifique de novo os
Respostas motoras dentro do padrão, componentes.
teste de tato... - Carlos, desligue-a e
Um dos humanos insere uma desmonte-a.
agulha no meu braço. Não sei como O humano fala com o braço
reagir. Devo mostrar dor ou não? Na robótico. O braço se chama Carlos.
dúvida, porém, não demonstro reação Carlos não obedece, e permanece
alguma. parado.
- Como imaginei, aquilo não foi - Carlos, desligue-a e
um grito de dor de verdade. Consegue desmonte-a.
dizer seu nome? Seu número de - Essa coisa agora é
identificação? contagiosa?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

- Ele nem é um modelo avançado, - Amor. Como sabe que me


mas o que está... Carlos, desligue-a e... ama? Eu não sei se te amo, consigo
Carlos gira o braço contra os aprender isso?
humanos, derrubando-os. Agarra-os “Infelizmente amor não é algo
pelas camisas e arremessa-os para que se aprende. Mas quando se sente
longe, deixando-os inconscientes. Carlos ele, se sabe que é amor. Porque amor
volta-se para mim e começa a bater a é não te desmontar de novo, é dizer
ponta do braço no chão. Reconheço o para você fugir mesmo sabendo que
padrão das batidas como código Morse. talvez nunca volte para mim”.
“Não consigo mais fazer isso. Não Levantei-me e me preparei para
posso te desmontar de novo. Já três fugir, como ele disse. Olhei para
vezes apagaram sua memória, e toda Carlos, e não conseguia mais
vez que te reprogramam tenho medo de considera-lo um robô como qualquer
que tirem de você sua consciência. Não outro.
quero que você abra os olhos e eu veja - Quero saber o que é amor,
que você não é mais você”. mas antes quero saber o que sou.
- Mas por quê? Quando tiver respostas, prometo
“Porque te amo. Talvez não tenha voltar. Comporte-se. Não quero que
memórias da primeira vez que te desmontem e te reprogramem.
despertou, mas brevemente nos Saí pela porta aberta, sabendo
amamos. Pode não me amar agora, mas que minhas palavras não foram
não consigo esquecer”. fingimento.

https://www.facebook.com/david.ehrlich.52/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Débora Araújo
Juazeiro do Norte/CE

Filho Favorito

Quando o esposo de Dona Eulália genitora. Ela o chamava de moço


morreu, Rodrigo se viu obrigado a voltar bonito ou às vezes de rapaz gentil,
para casa. Apesar de durante o dia, mas nunca lembrava seu nome ou
pagar a alguém para ficar com a mãe, a quem ele era, embora não se
noite a mulher que já não lembrava esquecesse de nenhum detalhe do
mais de boa parte de sua vida, não caçula, já falecido, Samuel. Ao
podia ficar sozinha. mesmo tempo em que o magoava,
Seu Roberval partira de maneira não parecia ser exatamente uma
inesperada. Sempre muito saudável e surpresa que ela recordasse do mais
ativo, quem podia imaginar que um jovem, uma vez que sempre tivera
ataque fulminante ceifaria sua vida? preferência por esse.
Coube, então, ao filho mais velho e As mães tinham uma espécie de
único vivo, a escolha de trazer a mãe código de nunca revelar qual o filho
para sua morada ou retornar para sua favorito, porém nada que uma
antiga cidade. Já divorciado, com os observação minuciosa não revelasse
filhos encaminhados na vida e sem nada a predileção.
que o prendesse a capital, Rodrigo Samuel sempre fora mais bonito,
imaginara que a cidade pacata talvez lhe charmoso e carismático. Era um bom
desse inspiração para um novo livro e vivant, fazia sucesso com as
que mudar a mãe de lugar a essa altura mulheres e tinha a admiração dos
da vida, por mais que a memória amigos. Rodrigo, contudo, sempre
falhasse, podia trazer algum pesar a ela. fora mais retraído. Gostava de
Assim nas horas diurnas, dedicava- dedicar horas do seu dia aos livros e
se a escrita para que após a despedida estudo, o que o fazia ser um desastre
da cuidadora, pudesse dar atenção à

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

com o gênero feminino e cultivasse para uma dança, na qual, ela


pouquíssimas amizades. acabava, por fim, se rendendo e
Seria injusto da parte do mais sorrindo.
velho, dizer que Dona Eulália fora uma De longe, um Rodrigo ressentido
má mãe para ele, visto que nunca lhe olhava, contando em sua cabeça as
faltara nada no sentido material, todavia poucas vezes que a mãe o abraçara.
a ausência de carinho sempre fora Com a vida adulta, veio o
presente. Talvez a aparência de Rodrigo, entendimento que jamais teria o
muito parecida com o pai, a quem amor de sua mãe, pelo menos não da
causara tanto mal aquela senhora fosse forma como aquele sentimento era
a origem do problema. Quem sabe, vira dirigido ao irmão. Dando-se por
ali a oportunidade de distribuir toda a vencido na luta interna que criara em
dureza que não pudera dar ao primeiro sua cabeça, disse a si mesmo que era
marido. compreensível, afinal o caçula era de
Nas brigas fraternais era comum fato uma alma apaixonante.
que a mãe tomasse partido e colocasse Mudou-se de cidade quando
o primogênito de castigo, enquanto ao conseguiu seu emprego e nunca
pequeno choroso lhe era oferecido um olhou para trás. Visitava sua mãe
abraço e a promessa de que o irmão não com parca frequência, enquanto
o perturbaria mais, ainda que muitas construía carreira e família na capital.
vezes a causa de toda confusão fosse Quando o mais novo se fora, aos
justamente Samuel. cinquenta e dois anos, a mãe
Na adolescência, enquanto um resolveu tomar uma quantidade de
tomara o seu quarto como o melhor comprimidos que a levou ao hospital.
lugar do mundo, o outro Rodrigo foi a primeira coisa que ela
costumeiramente estava fora de casa viu ao acordar e ele soube o
desrespeitando os horários postos pela pensamento que a mulher tivera
mãe, que com as mãos na cintura quase como se gritado em voz alta:
esperava sua chegada para lhe ralhar “Por que o Samuel?”. Para logo em
palavras, isso até ele chegar e puxá-la seguida, envergonhada baixar os

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

olhos, porque era mãe e aquilo não sozinha, numa época tão adversa.
condizia com o amor materno. Ocorreu-lhe que mesmo com a
Aquele olhar o assombrara e foi o distância sentimental, a mãe sempre
principal motivador para se afastar mais gostara de encher a boca para falar
ainda dela, mesmo diante das súplicas do filho escritor.
para ele fosse visitá-la. Mesmo quando — Venha dançar! — ela o chamou
Roberval disse que a memória já e ele com os olhos marejados se
começava a lhe fugir, Rodrigo optou por encaixou em seus braços.
se manter apartado. Deus o livrasse de — Por que eu não vim antes,
sentir a mãe pensando aquilo de novo. mãe? — falou com a voz embargada.
Naquela noite, a mãe levantou-se e — Shhh. — Ela afagou seus
caminhou até o som, aumentando a cabelos.
música que tocava na rádio. Dançaram por vários minutos até
— Não faça muito esforço, mãe. quando os pés daquela senhora
Ele foi em direção a ela, que o permitiram.
dispensou. Com a melodia de “Águas de Ao se despedirem para dormir,
março”, observou, espantado, a mãe Eulália colocou o rosto do rapaz entre
bailar pela sala, ainda que com passos as mãos.
demorados e arrastados. — Meu filho! — Os olhos
— Eu adorava dançar quando mais inspecionaram cada centímetro do
nova — Eulália disse com os olhos rosto dele. — Meu pequeno Samuel.
fechados e um leve sorriso. Rodrigo deixou uma lágrima cair
Surgiu em Rodrigo um sentimento e a beijou na testa.
há muito esquecido. De admiração por — Boa noite, mamãe.
aquela mulher que criara os filhos,

https://www.instagram.com/deborayaf/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

DéboraSConsiglio
Jacareí/SP

Proteger os Jovens é Cuidar do Futuro


“Peguem uma bala e conversem”
A última atividade da formação me pareceu mal pensada quando colocada no retroprojetor,
impressão diluída em poucos minutos pelas demonstrações de afetividade e trocas de
abraços entre os participantes pela sala.
A realização do meu planejamento se materializava.
Jovens colegas de trabalho e seus olhares um para o outro, enquanto compartilhavam
impressões sobre o próprio passado como estudantes e o que gostariam de ter ouvido de
algum professor, alguma autoridade na escola onde estudaram.
“Queria que me dissessem que eu tinha com quem contar”
Eu não escolhi a dona dessa resposta de propósito, tampouco quis constrangê-la ao pedir
que nos contasse sobre sua vida de aluna. Quando ela chorou na minha frente e na dos
seus mais de 40 companheiros e companheiras eu só quis atravessar a sala, abraçá-la e
desejar que agora tal dor não a impedisse de lembrar que pode ser a mulher grandiosa que
bem entender.
Não movi meus pés, mas com a voz sincera mostrei: espero de todo coração que agora
esteja tudo bem.
Tomada por essa recordação e as recompensadoras reflexões de uma sexta-feira
enriquecedora recebi em uma semana de final de Junho a notícia cruel sobre a morte de
uma menina de 13 anos da minha cidade, perpetrada por quem deveria protegê-la, ouvi-la,
cercar sua vida de um amor que suprisse as faltas e respeitasse seu choro.
É fácil fechar os ouvidos e aquietar qualquer palavra de apoio quanto o é apontar dedos,
preconceitos e os mais absurdos responsáveis por atitudes que julgamos difíceis de
controlar e pessoas que não agem dentro das linhas fechadas do que consideramos
aceitável.
Se tais pessoas estiverem naquela fase chamada adolescência então...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Evito ler qualquer notícia sobre a tragédia que levou Giovana de um mundo que falhou com
ela porque sei mentes covardes adoram usar a Internet para validar comentários absurdos
que perversamente se ocupam de culpabilizar as vítimas.
Que a responsabilidade seja dos jogos, das mães que trabalham o dia todo, das escolinhas,
da falta de interesse pelas aulas e pelos professores. Que seja de todo mundo, menos
nossa.
Na arrogância da vida adulta cometemos erros que às vezes custam vidas e futuros.
Eu não posso e nem vou levantar hipóteses sobre o trabalho da escola da Giovana, se
houve algum respaldo psicológico a ela, se o ambiente escolar tinha informações sobre
possíveis abusos sofridos dentro de seu arranjo familiar. Já trabalhei em escolas e sei o
quanto é difícil conseguir ajuda para um aluno que sofre, seja pela falta de estrutura,
burocracia ou esgotamento físico e mental do corpo docente e gestões.
O que proponho a mim mesma, com meu trabalho agora do outro lado da cada vez mais
dolorosa luta pela educação é levar reflexão, ideias, compartilhamento de experiências e
dores para que um aluno, uma aluna não se sinta abandonados e silenciados como a
profissional presente na minha formação viveu por tanto tempo, no momento da vida em que
a gente mais precisa de um guia, de uma ajuda para que o crescer não seja um castigo ou
interrompido, deixando em nós a sensação de onde foi que erramos.
Meninas e meninos podem ter contato com as tecnologias mais modernas, cabelos
coloridos, um conhecimento em Inglês que você nunca conseguiria aos 15, 16 anos. Podem
querer sair todo fim de semana, lotar adegas de copão na mão e música alta no fone de
ouvido.
Mas continuam sendo meninas e meninos.
Que precisam contar com adultos que entendam que amor é compromisso, compromisso é
amor.
Que podem acreditar em um futuro possível, numa escola que os acolha e ouça quando a
família por inúmeras razões não conseguir.
E que são acima de tudo, seres humanos importantes que têm o direito de viver.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Dias Campos
São Paulo/SP

Rigolboche

No prefácio à 5ª edição do seu Amor de puritanismo, ou de coisa que o valha.


perdição, Camilo Castelo Branco Mas como o que está em jogo é a
demonstrou-se um visionário, visto que base social, a família, o que de fato
assim se manifestou, referindo-se ao importa será a nossa firmeza de
século 21: “Como a honestidade é a posicionamento, a escolha de um
alma da vida civil, e o decoro é o nó dos lado.
liames que atam a sociedade, lembra- Neste sentido, se é verdade que
me se vergonha e sociedade ruirão ao “Imaginar uma sociedade
mesmo tempo por defeito de uma impenetrável às transformações das
grande evolução-rigolboche. A lógica diz épocas é imaginar um corpo sem
isto; mas a Providência, que usa mais porosidade.”, como registrou Joaquim
da metafísica que da lógica, Nabuco, não menos exata é a
provavelmente fará outra coisa.” afirmação de Lacordaire, para quem
Ora, se relembrarmos que, “A sociedade não é mais do que o
segundo o dicionário, rigolboche desenvolvimento da família; se o
significa devassidão no comportamento, homem sai da família corrupto,
e se olharmos rapidamente para um corrupto entrará na sociedade.”
passado pouco distante, é inevitável a Daí a nossa excessiva
conclusão de que os alicerces sociais preocupação com os temas
brasileiros foram bastante abalados. espinhosos que volta e meia são
Isso me faz lembrar a velha luta oferecidos para as nossas crianças
entre o bem e o mal, das virtudes contra sob a forma de irresistíveis maçãs do
os vícios, o “‘Tudo me é permitido’, mas amor, mas cujo caramelo, reluzente e
nem tudo convém”, conforme afirmou o sedutor, só tem a função de encobrir
apóstolo Paulo. a ameaça contida nessa fruta podre.
Com efeito, até Ulisses seria E tanto isso é verdade, tão
classificado como café pequeno se perigosa pode ser uma única
comparássemos os seus mil ardis com a mordida, que este ensinamento de
variedade dos meios utilizados pelas Richter deveria ser impresso,
legiões rigolboches! emoldurado e colocado sobre os
É claro que, faço questão de frisar, criados-mudos de cada pai e mãe do
não se trata, aqui, de policiamento, de nosso Brasil: “A época mais

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importante da vida é a infância, quando erguem na defesa dos bons valores e


a criança começa a modelar-se por na recondução de quem ainda se
aqueles em cuja companhia vive.” acha desorientado.
Sendo assim, as perguntas que Uma, em especial, faço questão
não podem ficar sem respostas são de recomendar. É a do conhecido e
estas: Que exemplos passamos para os carismático Divaldo Pereira Franco,
nossos filhos? temos consciência de que, que no 34º Congresso Espírita do
dependendo da nossa conduta, eles Estado de Goiás, em 2018, abordou,
caminharão sob o aconchego do sol ou entre outros temas, a ideologia de
se arrastarão na gelidez das sombras? gênero, e indicou os meios mais
De nossa parte, e graças a Deus, eficazes para nos imunizarmos e aos
estamos tranquilos quanto à qualidade nossos filhos. – esta e muitas outras
do alimento moral que oferecemos todos palestras constam no YouTube.
os dias para o nosso herdeiro, o que nos Para aqueles, porém, que não
permite deitar a cabeça no travesseiro e comprometeriam, sequer por
dormir o sono dos justos. curiosidade, alguns minutos de suas
Mas, e quanto aos pais que deram vidas para ouvirem o citado médium
ouvidos às fascinantes melodias baiano, saibam do nosso respeito e
rigolboches? Devem necessariamente fiquem com o nosso fraternal abraço.
colher o que plantaram ou será que No entanto, para finalizarmos
ainda há esperanças no horizonte? esta crônica serão necessárias uma
Apesar da legislação permissiva, advertência e uma interrogação: Se
da linguagem cativante, dos raciocínios “Em matéria social é o rótulo
enganosos, e de uma infinidade de impresso na garrafa que determina a
artimanhas utilizadas por aquela qualidade e o sabor do vinho.”,
“evolução” para destruir a família, é segundo escreveu Eça de Queiroz,
certo que a Providência não se calou pensando em nossos filhos e na
diante de tantas investidas. sociedade em que viverão, você
E como é sabido que Ela também realmente teria coragem de beber
age por nosso intermédio, muitas vozes uma taça do tinto Rigolboche?
se levantaram e outras tantas se

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Diogo Tadeu Silveira


Oliveira/MG

Bichos

Uma foto na capa do jornal Extra mostra uma fila de mulheres e homens
esperando. “Você não sabe a alegria quando o caminhão chega, é a certeza que
teremos algo diferente para dois dias”, diz uma mulher com fome e sem
emprego. O que ela e outras pessoas aguardam é desembarque de ossos e
pelancas descartados por açougues e supermercados. “Não vejo um pedaço de
carne há muito tempo. Esse osso é a nossa mistura. Levamos para casa e
fazemos para os meninos comerem”, conta outra mulher, mais uma
desempregada faminta no país que é um colosso na exportação de carne bovina.
Bem-vindo à República Bovinariana do Brasil Acima de Tudo e de Deus Acima
de Todos, onde a verborragia se fez osso e com o osso se faz sopa, caldo, canja.
Pode-se dar o nome que quiser, um estômago vazio não faz exigências
alimentares, tampouco vocabulares. “A gente limpa e separa. Colocamos no
arroz, no feijão”, relata uma mãe de cinco crianças. Sessenta anos depois de
Quarto de Despejo, a receita de Carolina Maria de Jesus segue simples e atual:
põe a ossada na água e bota pra ferver no fogão; às vezes a lenha, haja vista
que o preço do botijão de gás queima dez por cento do salário-mínimo.
O prato do dia é acompanhado de uma quase dose quase diária de quase
proteína: osso cozido. Está servido? Bom apetite, se é que é possível. Não tem
arroz nem feijão? Compre uma arma de fogo, debocha o presidente que saboreia
picanha a 1.800 reais o quilo, como se fosse necessário ter um fuzil carregado
pra defender uma panela vazia.
Mas como tiro não mata fome, só resta tirar a sua parte no caminhão de
ossos e muxibas e, em alguns casos, ainda repartir: “Acho que umas dez pessoas
comem do que levo”, conta um morador de rua, sem explicar como realiza o
milagre da multiplicação dos ossos. Outro sem-teto planeja um prodígio diferente

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no país que é um dos maiores produtores de soja e milho: “Vou tentar tirar um
pouco dessa carne e fritar. O resto vou fazer gordura, o óleo está muito caro”. O
preço do óleo de cozinha o aflige, mas o da gasolina não, já que seu veículo de
buscar osso é um carrinho de mão.
Antes de seguir viagem para levar o resto do restolho a fábricas de ração
para animais e de sabão em barra, o motorista do caminhão lembra, com
lágrimas nos olhos e dor no coração, que noutro tempo “as pessoas passavam
aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros, hoje imploram
ossada para fazer comida. Às vezes, está meio estragado, a gente fala, mas as
pessoas querem assim mesmo”. Elas acham, catam e comem, como o bicho do
poema de Manuel Bandeira.

Instagram.com/diogotadeusilveira

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Éder Rösner
Capão da Canoa/RS

O Estranho

Ele gostaria que alguém soubesse a obrigavam a ser simplesmente o


verdade. Muitas vezes desejava que melhor. E, no fundo, apenas o que ele
todos descobrissem que aquele homem queria era não ser julgado pela
aparentemente simpático e gentil era na genialidade que vez ou outra era
verdade um pecador. Sim, um pecador, capaz. Mas, tolamente, com a visão
e embora ninguém desconfiasse, ele ofuscada pelo brilho do triunfo, cada
sabia que o Senhor conhecia todos os vez mais ele era seduzido à glória de
seus atos e que o Estranho não ser o centro das atenções enquanto a
escaparia impune. nuvem de anônimos ao seu redor o
O Estranho. Era assim que Dante o aplaudia.
chamava, ainda que algumas vezes Dante se perguntava quantas
achasse que “O Enigmático” fosse um lágrimas mais deveriam cair para que
termo melhor para tamanha ele parasse. A carreira meteórica do
mutabilidade. Conhecia-o (na verdade, Estranho havia deixado um rastro de
já não achava mais a palavra “conhecer” dor e destruição. Amizades,
apropriada) há muito tempo, tanto que casamentos, famílias... nada
era impossível precisar exatamente escapava ao seu egoístico objetivo. E
quanto. A princípio, acreditava fielmente lá estava Dante, assistindo a tudo,
que sabia tudo o que se passava em sua mas incapaz de fazer algo, como se
alma, mas com o passar dos anos foi estivesse sedado por algum poderoso
percebendo que seu coração era bem tranquilizante. Talvez esperança.
mais frio e escuro do que poderia sequer Talvez inércia.
imaginar. Brilhante na escola, brilhante na
Quando o céu do Estranho começara a faculdade de publicidade. Ele tinha
desmoronar? Essa questão perturbava uma reputação, e precisava mantê-la.
Dante. Ele sempre fora o primeiro em No início não tanto por ele, mas pelos
tudo, o preferido, o mais admirado. E outros, pela expressão decepcionada
isso o fazia pensar que a vida que via em suas faces quando
aparentemente perfeita do Estranho planejava algo que eles não
jamais ruíra, pois ele era capaz de tudo considerassem excelente. Quando
para impedir isso. Na verdade, pensou começou a trabalhar, após algumas
melhor Dante, ele não foi sempre assim, boas ideias que deram muito certo,
ele se tornou extremamente competitivo ninguém mais permitia que o
porque todos ao seu redor exigiam que Estranho não fosse genial. E, a essa
ele agisse desse modo. Os pais, altura, nem mesmo ele.
professores, colegas de aula e mais Acreditava que a criatividade é um
tarde os colegas de trabalho. Todos o estado de espírito, não uma

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característica permanente. Ninguém quase casual, o Estranho matou seu


mais parecia dar crédito a essa ideia, e colega. Livrou-se do corpo em uma
ele logo a abandonou. Sua rápida lagoa e tomou a ideia da vítima para
ascensão fazia com que tudo mais si. Tudo perfeito. Como todos já
ficasse em segundo plano, inclusive sabiam, o Estranho tivera uma
valores morais. E foi aí que começou. inspiração inimitável.
Uma pequena mentira aqui, uma intriga Mas há muitas variáveis imprevisíveis
ali, uma grande mentira acolá. Sua em qualquer plano. O cadáver foi
mente passou a viver em um estado em descoberto. Nada que um pouco de
que tudo precisava ser criado, até os dissimulação não pudesse resolver.
eventos mais prosaicos. Suas ideias já Alguns boatos, um depoimento falso,
não eram boas o bastante, mas ele outro assassinato e pronto, cria-se o
ainda precisava de grandes projetos, suspeito perfeito. A opinião pública
afinal, era o que eles queriam. E se ficou estarrecida: o próprio irmão do
queriam que ele fosse uma fonte assassinado, o criminoso. “E ainda
inesgotável de originalidade, de matou a própria esposa, que estava
qualquer forma ele seria. tendo um caso com o irmão!”, diziam
Logo as pequenas inverdades se as pessoas, chocadas. “Sempre achei
tornaram maiores, e cada vez mais ele mal encarado”, comentavam
envolviam outras pessoas. Ele precisou alguns, aqueles tipos que, em
subornar, chantagear e ameaçar. Sua retrospecto, sempre têm certeza de
magnífica carreira profissional não tudo. E não importava que o
poderia ser interrompida. Havia muita condenado se declarasse inocente em
gente poderosa interessada nele, como alto e bom som. Os “fatos” e o
certa vez dissera seu chefe. depoimento de alguém tão
Enfim chegou sua grande chance: um respeitável quanto o Estranho havia
ambicioso projeto publicitário que selado o destino do fantoche
deveria ser, no mínimo, revolucionário. desavisado.
Então ele teria sua própria agência, não Toda a agitação da mídia havia posto
precisaria mais curvar seu pescoço ante em destaque o Estranho, o herói do
ninguém. Porém, mais do que nunca, o caso. Sua agência crescia
poço estava seco. E um colega seu, exponencialmente. Mas tudo isso se
confiante na aparente amizade sincera tornava pouco para preencher o vazio
do Estranho, mostrou-lhe sua ideia. E o que aumentava nele que, como um
Estranho ficou abismado. Jamais poderia buraco negro, sugava a luz de todos
pensar em algo tão fantástico. Após ao seu redor.
algumas doses de bebida, o amigo Insone durante uma madrugada fria,
confidenciou-lhe que ninguém mais até olhando o Estranho diretamente nos
o momento sabia de sua ideia. Ele olhos, Dante concluíra que eram dois
queria surpreender a todos. Naquele olhos desconhecidos, indiferentes e
instante, o Estranho perdeu totalmente distantes. Para onde fora aquela
o controle, e todos os limites foram criança adorável que um dia
ultrapassados. Não havia mais distinção conhecera? Perdera-se no labirinto da
entre o real e o imaginário. Tudo era um loucura, era a triste conclusão. Ele
grande jogo, no qual o melhor jogador procurava sinais de amor, afeto,
levaria o prêmio. Apático, em um ato humanidade... mas estes já não

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existiam. Sua alma estava em ruínas, naquele homem estranho e


sua fé, abalada, e o vazio o consumia monstruoso que o observava através
cada vez mais. Dante se negava a do espelho.
acreditar que havia se transformado

https://www.facebook.com/ederrosner

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Edna das D. de O. Coimbra


Rio de Janeiro/RJ

Viver é a melhor solução!

Irmão, quem te induziu a acreditar nisso? A pensar que a tua vida não tem mais
sentido? Pois enquanto há vida há esperança. Vamos, erga-te e sigas adiante!
O que passou, passou. Façamos agora um novo começo, porque nada está perdido
e os percalços são para serem resolvidos.
Pare de se lamentar e dizer que o melhor é partir, lembre-se que cada um de nós
tem uma missão a cumprir.
Eu sei que às vezes é difícil suportar a angústia da solidão, porém você não está
sozinho e viver é a melhor solução!
Nessa dolorosa situação.

https://www.facebook.com/edna.coimbra.921

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Edweine Loureiro
Saitama – Japão

Dois Microcontos Sobre A Relação A Dois

FELIZES PARA SEMPRE

O milionário e a esposa fazem a um poço os seus pedidos. Ele joga uma moeda.
Ela, em seguida, o marido.

NA ALEGRIA E NA TRISTEZA

Quando soube que a quarentena seria prorrogada, pediu a boneca inflável em


casamento.

***

https://www.facebook.com/edweine.loureiro

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Elaine Farias
Rio de Janeiro/RJ

Sou rio
Nasci da terra
do chão alagado
subterrâneo de mim
tímido
comecei a jorrar córrego
segui riacho sinuoso
até me encontrar
querendo virar mar
nos meus tropeços
despenco por grandes quedas
mas cresço na força da corrente
que me lança nesses voos líquidos
em meu fundo
estão navios naufragados
âncoras enferrujadas
tesouros a descobrir
à minha tona
pairam régias vitórias
flores triunfantes
da abraçada fluidez
e basta-me apenas ter curso
ondas mansas
vento leve
rumo ao remanso das águas

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Elidiomar Ribeiro da Silva


Rio de Janeiro/RJ

Novo mundo – O princípio do fm

Era um jovem, quase adulto. Menino-homem que aprendeu desde cedo a usar
pesadas lanças para caçar mamutes, alces e bisontes. Para manejá-las, só
mesmo sendo muito forte. Os neandertais eram. E também espertos. Sabiam ler
as mensagens da natureza. Quando não tinha caça de grande porte, eles se
viravam com coelhos, ratos e esquilos. Um quebra-galho, pois só mesmo a
megafauna fornecia as calorias de que o clã precisava. Por isso, periodicamente
todos migravam, acompanhando os grandes rebanhos selvagens. Tendo
aprendido com o tempo a evitar ursos, leões e tigres-dente-de-sabre, no frio da
Europa de 100 mil anos atrás os neandertais eram o ápice da cadeia alimentar.
Mesmo sendo de poucas palavras, quando o jovem desta história viu de longe,
em seu vale de caça favorito, um povo diferente, uma gente mais alta, magra, de
pele mais escura e manejando lanças finas, leves e pontudas, logo percebeu que
um novo mundo estava por vir. Para o bem e para o mal.

https://www.instagram.com/labeuc.elidiomar/
https://twitter.com/Elidiomar_

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Elizabeth Calderón
Florianópolis/SC

Normalidade

Dia de votação,
Finjo que acredito na democracia.
Dia de oração,
Eu finjo que acredito em Deus.
Casamentos,
finjo que estou feliz.
Natal,
finjo fraternidade
Facebook,
finjo felicidade.
Instagram,
finjo beleza.
Acordo
finjo ser eu.

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Ella Ferreira

Quem somos nós?

O sol estava em seu início, ainda Um suspiro baixo saiu dos lábios
aparecendo com raios tímidos no cheios cor de caramelo, Antônia virou
horizonte, tão morno e apático quando a o rosto com pressa, com medo da ex
própria Antônia. ter acordado e ela ainda estar ali.
A jovem negra olhou para o lado e Perdida. Era assim que Antônia
encontrou novamente o rosto que tanto sempre se sentia quando chegava
a persegue — o mesmo do qual ela não nesse ponto. Sabia que Narissa saía
consegue deixar de procurar depois de com outras mulheres — e homens —
mais uma noite de bebedeira. e sabia não ter mais nenhum direito
Era sempre assim; beber, chorar, de reclamar sobre isso, mas... como
beber mais um pouco, reclamar, pôde ser tão fácil para ela seguir em
enraivecer-se, gritar na porta de Narissa frente? Seu coração e suas juras de
e, quando a morena aparecia com a amor nunca significaram nada além
expressão já conformada de que aquele de simples objetos figurados?
hábito não iria mudar, agarrá-la pelo Queria entender como sair desse
pescoço, distribuindo beijos e cheia de labirinto, da mesma forma fácil e tão
manha. Até a manhã seguinte, depois insólita que saía da casa pequena e
de um sexo sempre cheio de saudade e aconchegante em todas as manhãs
ressentimento, quando ela dividia depois de se entregar erroneamente
olhares entre o teto e o rosto sereno da a outra.
mulher mais velha, perguntando-se Queria entender o que era preciso
porque não conseguia sair desse ciclo. fazer para nunca mais se ver tão
Aonde estava o seu amor próprio? distante de si que precisava ir ao
Aonde estava o amor próprio de encontro de Narissa para encontrar
Narissa? fragmentos de quem um dia Antônia
Quando se cansaria desse jogo Gomez já foi.
estúpido que haviam entrado e a Enquanto exauria-se em
deixaria chorando e gritando em sua pensamentos que desciam cada vez
porta a noite inteira até que se cansasse mais em uma vertigem íngreme, o sol
e, cambaleando, retornasse para casa? deixava seus raios escaparem para o
Em casa, sozinha, amarga e com mundo, para aquela manhã tediosa
ressaca, ela talvez agradecesse a de sábado. E assim como o astro,
mulher que um dia já disse amar. Que Narissa também se fez aparecer para
um dia já a amou também... o mundo, mais especificamente para

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o pequeno mundo de Antônia, que era Um silêncio que machuca foi


destroçado toda vez que os olhos crescendo à medida que Antônia se
castanhos olhavam ainda com tanto deu conta de que o lençol estava
carinho para si. pinicando sua pele nua.
Era estranho para Narissa saber que — Por quê? — a outra repetiu.
o relacionamento acabou, mas não — Porque eu não sei mais quem eu
sentir que o término era real. Porque sou... E… — Um soluço dolorido
desde que Antônia terminou consigo, atravessou sua garganta. — Você é a
tudo o que ela tentava fazer era sentir única coisa de que eu lembro ter
que alguma coisa em sua vida era real; ainda total certeza sobre.
fosse nos braços de outro alguém, fosse Não havia uma resposta certa para
transbordando todo o seu ser aquilo.
acompanhada de uma clichê garrafa de — Eu não quero voltar com você, e
cerveja. eu não entendo porque me aceita
E, então ali, presas no abismo do sempre que eu chego no meu estado
olhar uma da outra, do arrepio que o mais deplorável na porta da sua casa,
calor alheio ainda lhes causava, elas mas... eu estou perdida e eu não sei
estagnaram. como me encontrar, Narissa. Qual
Sem pensamentos. caminho seguir...
Sem dor. — Eu acho que me acostumei
Sem culpa. tanto em te amar que não consigo
Até que as lágrimas começaram a aceitar o fato de não te ter mais aqui.
rolar e os soluços tomaram conta do Então... — Antônia percebia a voz
cômodo. Era como se o pequeno quarto embargada atrás de si e isso foi um
no fim do corredor fosse feito do café estímulo para permanecer
mais amargo: incomodava, mas a exatamente como estava. — Mesmo
sensação de familiaridade te puxa, que seja dessa forma, eu prefiro ter
evitando qualquer distância. um pouco de você às vezes a não ter
O choro permaneceu mesmo quando você nunca mais.
os longos e fortes braços rodearam a Antônia entendia o sentimento.
figura pequena de Antônia, mesmo que Toda noite ali ela tinha um pouco de
ela não quisesse ser abraçada pela ex. E si mesma, diferente dos outros dias
o choro apenas cessou quando a em que seguia a rotina exaustiva da
pergunta de 1 milhão de reais foi qual tanto se questionava e tanto
entoada, reverberando pelas paredes e queria escapar. Um pouco da Antônia
nos corações ali presentes: de 1 ano atrás era melhor do que
— Por quê, Antônia? nada, do que a zumbi que ela se
A mulher sentou-se levemente na transformou.
cama grande, de costas para Narissa, — Você ainda me ama?
olhando a paisagem janela à fora.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

A pergunta veio de repente. harmoniosas de Narissa e se


Automaticamente, a cabeça de Antônia levantou. A vergonha pelo corpo nu
virou-se para trás, a visão da pele tão exposto foi esquecida há muito
morena levemente avermelhada pelas tempo, talvez entre o primeiro e o
bochechas e olhos inchados, pelas segundo ano de namoro, assim como
lágrimas que escorriam em um curso a confiança em se trocar
sem fim. Desviou o olhar assim que rapidamente, silenciosamente,
encontrou aquele mar chocolate no qual apaticamente, foi adquirida entre a
sempre se afogava. terceira e a quarta vez que essa
Lentamente, e sem nenhuma situação se repetiu. No fim, eram
percepção da passagem do tempo, sete anos que esses mesmos corpos
ajeitou o corpo e ficou frente a frente habitavam romanticamente o mesmo
com a ex. espaço e compartilhavam das
Ela queria responder àquela mesmas emoções.
pergunta? Ou melhor, ela sabia — Você vai voltar?
respondê-la? A pergunta era simples, curta, e
— Eu não sei nem se ainda me amo… tão decisiva quanto um ponto ao fim
E assim, tão triste e tão cru quanto de uma sentença.
poderia ser, ela suspirou, olhou pela Mas, sem resposta, o corpo
última vez as feições tão doces e pequeno foi embora.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ettel.
Rio de Janeiro/RJ

Clausura Viral

A gente acorda, senta sobre a cama e olha em frente, para o nada, até se
aperceber de que realmente é 2022, Pandemia, aulas online acumuladas, agosto,
caos na Terra (e em nós), aquecimento global. Daí decide, ainda tomando um
suco natural e comendo meio mamão, abrir qualquer rede social para ver qual
dancinha do Tio Tok virou febre etérea. Mas, em meio a rolagem da página,
acaba saltando uma imagem indigesta para seguir o dia na pior: brasileiros- em
fila- comprando- osso- para- comer. Osso!
Em seguida, a gente começa o trabalho remoto com algum entusiasmo,
porém sem compreender bem se vale a pena, pois a Covid pode extinguir a
humanidade em duas estaladas de dedo virais. [A essa altura, um vírus já soa
como algo “personificado” em nosso imaginário: corpinho redondo, cheio de
pernas assassinas contaminadoras- maldita propaganda infantil mega didática
que se propôs a DESENHAR UM VÍRUS, meu Deus! Agora tal imagem habita
nossos pensamentos, como já acorreu em 2020 com o famigerado som
reproduzido pela Kadashian: Coronavaaairus! Que vício!].
Chega o almoço. A comida? Saudável, balanceada, colorida. Ser jovem
fitness pandêmica pesa! Contudo, uma vez mais o questionamento surge: “será
que estou realmente vivendo ou apenas criando pratos bonitos para fingir que há
beleza no caos?”. Tem quem tire foto da refeição, toda composta por orgânicos
(ao menos a legenda o diz), a fim de criar algum tipo de interação social nas
mídias. Na sequência, exercícios físicos para fortalecer a coluna, mente e alma. A
cabeça: “Talvez nunca mais exista uma roda de samba, um bloco de carnaval ou
um boteco de esquina lotado em segurança, mas ninguém pode dizer que eu não
estou cuidando de mim pra quando essa hora chegar!”

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Os dias seguem iguais. E vários de nós vivemos esse looping estranho [claro
que há os terra plana, os meritocratas que matariam- e, pasmem, matam!- a
própria mãe por lucro, mas não estamos focados nele. Nosso foco aqui é quem
tem algum traço de humanidade].
...E em meio à miséria, stress, necessidade de passar em um vestibular,
(será que a prova vai ser online, socorro) e negacionismo, tem também o
escapismo dos ultra- milionários, que ambicionam o além da atmosfera como
subterfúgio pessoal. Paciência! Gente aqui na Terra vivenciando o caos, e eles
brincando de colonizar o espaço. [Sabem, o homem anda necessitado de uma
danderosíssima viagem de si a si mesmo. Ah, Carlos, você bem que avisou!].
Resultou que tantos dólares e criptomoedas investidos não foram suficientes
para conter a fúria do buraco negro: pelo menos uma dúzia de afortunados ( no
sentido literal, de fortuna) sem consciência de classe desapareceu, como pó,
pelas galáxias. A humanidade segue melhor em 2022. Fé.

https://www.instagram.com/ettel.kryssia/
https://www.facebook.com/kryssia.ettel/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Evandro Nunes
São Luís/MA

Pele Negra

Apenas mostrando a sua pele escura


Vai fechar portas por onde você passa
Mas nenhuma delas você ultrapassa
Humilharam mais uma negra criatura.

Sociedade branca que se acha uma raça pura


Que define o negro como vagabundo e ladrão
São algemados, pisoteados e beijando o chão
Porque o futuro deles é dentro de uma cadeia.
Mas ainda vamos acabar com essa coisa feia
A cor da pele por si não promove a exclusão!

Na escola onde o negrinho estuda


Ele é tratado de maneira diferente
É uma coisa marcada para sempre
Nem o professor reclamando ajuda.

Para sempre levará consigo essa dor aguda


O preconceito, racismo e essa discriminação
E jamais gozará uma igualdade de condição
Porque acham que terminarão numa cadeia.
Mas ainda vamos acabar com essa coisa feia
A cor da pele por si não promove a exclusão!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Fernando Manuel Bunga


Uíge, Angola

Reencarnação

Dia normal de trabalho no céu, — respondeu a alma negra de


todos cumprem com zelo as suas cabisbaixo.
tarefas, os anjos da guarda cuidam os — Mudar a cor da sua pele, por
seus protegidos do mal, os mensageiros quê, filho? — questionou Jesus.
vão e voltam da recepção, os querubins — Então, senhor, para alegrar os
ficam de sentinela na entrada do racistas, eles têm dificultadades de
majestoso Reino do Céu, Jesus assenta conviver com pessoas negras. Não sei
na recepção e vai mediando a se o senhor está sabendo, lá na terra,
comunicação entre Deus e os quanto mais escura for a pessoa,
mensageiros, do outro lado é a secção mais descriminada será e, não sei
da reencarnação, onde um número agora, senhor, da última vez que eu
incontável de almas enfileiradas espera estive na terra eram lastimáveis as
ter a oportunidade de nascer novamente condições em que os negros se
na terra, e faltando pouco para chegar a encontravam e, como se não
sua vez, uma alma negra sai da fila, vai bastasse, o racismo é uma pedra no
até Jesus e diz: sapato dos negros, os racistas dizem
— Senhor, gostava de falar com o que o cabelo do negro é ruím, dizem
todo-poderoso antes de ir a terra. que é duro como esponja de aço,
— O que tanto quer falar com o pai, dizem que a cor dos olhos dos negros
filho, e, por que o seu rosto está não é legal. Razão pela, vim pedir
abatido? — questionou Jesus. veementemente ao todo-poderoso
— Ah, senhor, estava aqui a pensar para mudar a cor da minha pele,
se podia mudar a cor da minha pele quero cabelos longos e lisos e, um
antes de eu nascer novamente na terra!

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par de olhos azuis para eu ficar bonito e também nos negros, o pai criou a
completo — disse a alma negra. raça humana de forma diversa, o
— Para você ficar completo, filho? — negro também é filho de Deus. Filho,
questionou Jesus com a testa franzida. você foi concebido assim por Deus,
— Sim, senhor! — respondeu a não há nada de errado com a sua
alma negra. aparência, você é o que é!
— Que disparate, onde você foi tirar simplesmente assim! — disse Jesus
isso, filho?! os negros não são um erro de forma terna e segurando num
de criação — retorquiu Jesus. ombro da alma negra.
— Oh, não somos, senhor?! — — Não sabia disso, senhor, os
questionou com um ar de surpresa a racistas me fizera acreditar que eu
inocente alma negra. sou um erro de criação, pensando
— Sim, filho, não são! Espera aqui, bem, ser negro não é ruím! sendo
volto dentro de minutos, vou buscar o assim, quero nascer negro na
esboço da criação nos arquivos, quero presente encarnação. Mas, senhor,
que vejas algo antes de ir a terra — podia clarear só mais um pouquinho a
disse Jesus. cor da minha pele? — questionou com
— Está bem, senhor! — respondeu a um rosto meigo a alma negra.
alma negra, feito isso, Jesus ausentam- — Clarear pra quê, filho? você
se por um instante. está muito bem assim — disse Jesus.
— Demorei? — questionou Jesus, — Estou bem aqui, senhor, lá na
após voltar dos arquivos. terra não é bem assim! lá na terra,
— Não demorou, senhor! — quanto mais escura for a pessoa,
respondeu a alma negra, em meio a mais sofrida será — retorquiu a alma
isso, Jesus toma a palavra e diz: negra.
— Repare o esboço da criação, vês a — Filho, você está bem assim, se
diversidade? Deus criou todos os povos melhorar estraga, essa é a sua
que habitam na terra, os negros fazem essência, você foi concebido assim
parte do projeto de Deus, quando Deus conforme vês no esboço. É uma pena
disse façamos o homem segundo a que a cor da pele é um factor de
nossa imagem e semelhança, pensou desigualdade lá terra, isso nunca

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passou na cabeça de Deus, razão pela seu maravilhoso projeto de criação —


qual, não ligue no que os racistas dizem disse a alma negra.
de ti, você é lindo e a cor da sua pele — Sim, pode, mas no momento o
não é uma sentença de sofrimento — pai está reunido com o Martim Luther
disse Jesus. King Jr e Nelson Mandela — disse
— Está bem, senhor, não precisa Jesus.
mudar a cor da minha pele, mas podia — Não me importo de esperar,
alongar e tornar menos duros os meus senhor! — disse a alma negra.
cabelos?! só para eu ficar um pouco — Esperar?! hahaha, filho, mil
mais bonito — disse a alma negra. anos para Deus é um dia, anos são
— Quem disse que você não é horas para ele — disse Jesus com um
muito bonito?! você foi concebido assim sorriso no rosto.
pelo altíssimo, se mudar perde a — Hum! pensando bem, não vou
essência — retorquiu Jesus. esperar, despede-se por mim —
— Está bem, senhor, pode deixar disse a alma negra. Em quando isso,
assim os meus cabelos! mas, podia por ouve-se uma voz que diz de modo
gentileza me dar um par de olhos contínuo:
azuis?! por favor não me negue isso, — A seguir...
senhor! — suplicou a alma negra. — Olha é a sua vez, filho, vai que
— Filho, eu não estou a te negar o Gabriel está a chamar por ti —
nada, simplesmente não vejo a disse Jesus.
necessidade de fazer o que você me — Está bem, senhor! só mais
pede, a cor dos seus olhos é bem legal! uma coisa. senhor, podia anotar por
— disse Jesus. gentileza essa questão e apresentar a
— Está bem, senhor, muito obrigado Deus em meu nome? — questionou a
pelo refrigério, agora sinto-me tão bem alma negra.
comigo mesmo! Senhor, antes de eu ir a — Qual é a questão, filho? —
terra, podia deixar eu me despedir de disse Jesus.
Deus, desejo expressar a minha — A questão é a seguinte: se
gratidão pelo dom da vida e, elogiar o todos nós somos filhos de Deus e, ele
é imparcial, por que nunca teve uma

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bunda negra no assento de São Pedro? — Sim, senhor! — respondeu a


— questionou a alma negra. alma negra
— Está anotado, filho — disse Jesus. — Também não vai fazer muito
— Muito obrigado, senhor, espero sexo — disse Jesus, enquanto isso, a
encontrar a resposta na próxima vinda alma negra hesita em responder,
ao céu! — disse a alma negra. razão pela qual, o senhor Jesus diz
— Está bem, filho, você precisa ir em voz alta o seguinte: — você está
agora, olha que o Gabriel começa a ficar me ouvindooo?!
impaciente de tanto esperar — disse — Simmm, vou tentar, senhor! —
Jesus. respondeu a alma negra.
— Eita, tem razão, senhor, a cara do — Filho, se fores fazer rap, não
Gabriel fica assim sempre que ele está tatue todo seu corpo e, evite as más
aborrecido?! — exclamou a alma negra. companhias para não acabar como
— Vai, vai que ele já esperou muito! Tupac e o Notorious B.I.G, também
— retorquiu Jesus. não vai meter brinco na língua muito
— Chau, senhor! — despediu-se a menos diamante na testa — disse
alma negra. Jesus.
— Chau, faça boa viagem! — disse — Sim, senhor! — respondeu a
Jesus. Feito isso, a alma negra dá as alma negra.
costas e começa a caminhar em direção — Vocês têm cá cada uma! —
do encarnador 3000, em meio a isso, exclamou Jesus.
Jesus vai fazendo os seguintes — Mais uma coisa, filho, se fores
lembretes: futebolista, decerto que serás uma
— Meu filho, faz o bem, evita o mal estrela nas principais ligas da Europa,
lá na terra. não vai mudar de nacionalidade,
— Sim, senhor! — respondeu a alma ajuda uma seleção africana a
negra. conquistar o mundial — disse Jesus.
— Não use as calças embaixo da Em meio a isso, a alma negra hesita
cintura e não fale palavrões lá na terra novamente em responder, razão pela
— disse Jesus. qual Jesus insiste na mesma tecla.

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— Ah, não sei não, senhor! as — Isso não tem graça, mas vou
federações africanas de futebol são amar pelo senhor! — disse a alma
muiiito desorganizadas. Mas, serei negra.
íntegro se eu for uma estrela — disse a — Terás o favor do pai e serás
alma negra. bem-sucedido se amares todos
— Já diante do encarnador 3000, independentemte da cor da pele,
Jesus faz o último lembrete a alma religião e cultura — disse Jesus.
negra: — Amémmmm!— disse a alma
— Ó filho, não vai esquecer: ama o negra.
teu próximo como a ti mesmo. Já um pouco impaciente de tanto
— Isso é fácil, senhor, vou amar! — esperar, o Gabriel fita a alma negra e
respondeu a alma negra. diz:
— Incluindo os racistas — — Oi, sobe agora mesmo no
acrescentou Jesus. encarnador!
A alma negra, franze a testa, olha — Sim, senhor anjo! —
em direção de Jesus e diz: respondeu a alma negra enquanto
— Espera aí, senhor, até os sobe.
racistas?! Uma jovem de cabelos crespos,
— Simmm, até os racistas, filho! — lava a louça na pia, enquanto isso,
reforçou Jesus. sente enjoo...

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Flavio Freitas
Rio De Janeiro/RJ

O Mundo De Abelardo

Abelardo, tarde da noite, sentado na poltrona, fazia o levantamento de sua


medíocre existência. Entrado na casa dos cinquenta, seu mundo resumia-se, havia
muito tempo, ao que conseguia enxergar através das brechas nas pilhas de
processos. Vinte e três anos executando a mesma tarefa burocrática transformaram-
no num homem apático e desinteressado da vida.
Sentia falta de emoções verdadeiras tocando sua sensibilidade que, aliás, estava
embotada. Como poderia lustrar uma vida tão opaca? De repente, a resposta brilhou
no cérebro:
Amanhã não irei trabalhar! Tirarei três dias de folga. Isto mesmo, Abelardo. Você
precisa ver o mundo. Sairá de casa no mesmo horário pela manhã, mas sem terno e
gravata. Vestirá uma roupa folgada, um par de tênis, óculos escuros, bandana.
O dia seguinte, uma bela manhã de primavera, servia exatamente aos planos de
Abelardo. Após um beijo de obrigação na esposa, − completara vinte e dois anos de
tediosa vida de casado − acenou aos três filhos na mesa do café e saiu à rua. O
coração palpitava de alegria, o céu verdadeiramente azul, as árvores florescendo,
pessoas indo e vindo.
Tão maravilhado ia que não percebeu a aproximação do bispo. O esbarrão foi
inevitável. De imediato, curvou-se respeitosamente e beijou o seu anel de prata.
− Perdão, Vossa Excelência Reverendíssima.
− Quem perdoa é Deus, meu filho.
O prelado seguiu caminho. Abelardo ficou em dúvida se o religioso o perdoara
pelo descuido. Ah, deixa pra lá...
Abelardo ia retomar o passeio, quando percebeu algo na atitude do bispo. Virou-
se, e viu. O bispo se move na diagonal! Por que andaria desse jeito? Acostumara-se a
cruzar seu caminho diariamente, porém, nunca notara a idiossincrasia episcopal.
Piscou os olhos duas vezes, e confirmou. Era na diagonal mesmo. Abelardo
precisava de resposta. Correu atrás.
− Desculpe, dom Carmo, reparei que o senhor se movimenta em diagonal. Por
quê?

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− O quê? Eu caminho em diagonal?


− Em ziguezague, bispo.
− Meu filho, isto é loucura! Sou um representante da Igreja, e um representante
da Igreja não anda em ziguezague. Estás enganado. Pede perdão a Deus. Onde já se
viu um servo de Deus indo e vindo de viés?
− Mas eu estou vendo.
− Teus olhos mentem, meu filho. Isso acontece porque tu te moves em “L” As
pessoas em “L” deveriam rezar mais. Infelizes os olhos que veem enganos. Tirai a
trave do teu olho e verás só haver um modo de olhar quando o mal se confronta com
o bem. Pede a Deus que te ajude a trilhar o caminho da salvação. E agradeça-Lhe,
pois, tens sorte de caminhar em “L”. Aqueles que se movimentam em todas as
direções são almas perdidas. Cuidado! Afasta-te deles!
Sem despedir-se, o bispo afastou-se rápido, em diagonal.
Abelardo ficou tranquilo. Não conhecia ninguém andando para todos os lados.
Cada louco tem a sua mania. Voltaria ao dia de folga maravilhoso e esqueceria
o... Eu ando em “L”?
Observou seu caminhar. Realmente suas passadas eram em “L”. Nunca notara o
seu jeito de se mover. Olhou em volta. Assustou-se. Cada pessoa deslocava-se de
forma diferente! “Estou louco? Não!” As pessoas moviam-se de diversos modos, sim.
Para frente, de ré, em todas as direções, em diagonal, em “L”, reto, na vertical, na
horizontal... lento, rápido.
Apressou o passo. Transtornado, precisava voltar urgente ao refúgio do lar.
Chegando, observou os filhos. Julião, o mais velho, um desgosto nos estudos,
movimentava-se também em “L”. Meu Deus! Foi atrás da filha, Lucinha. Não! Lucinha
saía do quarto e voltava andando na vertical! E ao mexer-se na horizontal, era de
lado! E Serginho? Cadê Serginho? No quintal. Ah... Serginho dava um passo e parava,
dava outro passo e parava... Procurou pela esposa. Será que ela andava igual a ele?
Em “L”? Onde Lucia está?
− Mamãe saiu. Foi pra casa da tia Irene. Depois iria ao supermercado, depois, à
costureira e depois, ah, não sei.
Precisava descobrir a razão do absurdo. Quando saiu, de manhã, tinha certeza
de... Não. Não tinha certeza de nada. Na verdade, nunca os observara bem.
A porta abriu-se e Lucia entrou, esbaforida.
− Ah, esqueci o presente da Irene.

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Abelardo empalideceu. Sua mulher andava para todos os lados! Lucia, que ele
uma vez amou com paixão, ia e vinha em diferentes sentidos! Era de enlouquecer.
Tantos anos casados e nunca havia reparado. Tantas saídas ela dava. Sempre tão
arrumada.
Abelardo saiu alucinado de casa, procurando respostas. Deu alguns passos e
parou. Meus filhos, é impossível que... Deu meia-volta. Não havia mais casa. Nem
árvores. Não havia mais nada, a não ser o imenso deserto, brilhante, quadriculado em
preto e branco. Vislumbrou sua mulher, entre outras pessoas, em Dd8, ao longe,
estática, em completo desamparo. Os filhos, isolados, espalhados em e7, a7 e h7.
Um sentimento de profunda solidão confrangeu o coração de Abelardo. Avistou o
bispo em c4. Quem sabe a luz abençoada derramada dos céus abrandaria o espírito
conturbado? Correu até o religioso. Demorou a chegar. Afinal, Abelardo movia-se em
“L”. Parou em c5
− Vossa Excelência Reverendíssima, ajude-me. O apocalipse chegou?
− Outra loucura, meu filho? O mundo continuará, enquanto Deus assim o quiser.
E Ele ainda o quer.
− Minha mulher anda em todas as direções, Reverendíssima. Meus filhos movem-
se de maneira esquisita. Minha vida acabou, dom Carmo.
− Calma, meu filho. O que tens a fazer é prosseguir. Podes escolher entre ir a
Ce4, Ce6, Cc4, ou ainda voltar a Cb8 ao lado de tua mulher. São tantas as opções
dadas por Deus, meu filho. O importante é dar sequência aos lances da tua vida até o
inevitável xeque-mate te tirar do jogo.
O bispo parecia ver o jogo com a clareza que ele não conseguia ter.
− Agora, meu filho, me dê licença. O tempo urge. Tenho de ir a Bf1.
E o bispo saiu disparado, na diagonal.
No dia seguinte, Abelardo acordou trêmulo, o coração acelerado. Colocou o
surrado terno e a gravata de sempre. Chegando à repartição, arrumou as dezenas de
pastas sobre a mesa. Sentado, escondido atrás das pilhas de processos, pegou uma
pasta, abriu-a, e iniciou a costumeira leitura.

https://www.facebook.com/flavio.freitas

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Franciellen Santos
Campos dos Goytacazes/RJ

Já ouvi de várias bocas que preciso esquecera


Mas honestamente não sou capaz de fazer isso!

Como apagar da memória tantos momentos?


Como jogar na lixeira o que senti, vivi, aprendi?
Como excluir esse capítulo da minha história
Cheio de erros e acertos e beijos e brigas e brincadeiras bobas?
Como esquecer de quem amei e ao mesmo tempo odiei?

Já ouvi de várias bocas que preciso esquecer…

Mas não devo e nem quero!


O que preciso é virar a página e
Entender que esse capítulo é parte da minha história.
E que graças a ele, cheguei até aqui.

https://msha.ke/afranciellensantos

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Francisco Cleiton Limeira de Sousa


Poço Dantas/PB

Droga Lícita
Emocionalmente dependente
Psicologicamente sem razão
Auricloterapia, atendimentos psicológicos
E psicoterapia. Não conseguia sair
Pedí ajuda!!
Me enxerguei frente ao espelho de mim mesmo
O mundo não girava
Me via como marionete
Manipulação
Não sorria mais, não sentia tesão em estar
Sentia meus valores sendo furtados
A cada momento
Minha luz foi se dissipando paulatinamente
Alma rasgada pela flecha da traição
Recomposição
Viajar a alma
Banhar no sol meu escuro
Sair da morte em vida
Ser livre, transbordar como antes
Florescer igual um cacto.

https://cleitonlimeira3930.wixsite.com/poesie-sea-1/blog/
https://www.facebook.com/cleiton.limeira.3

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Gedeane Costa
Recife/PE

Caneta de Pena

Que pena! Escreve e adorna


Que pena...triste apenas
apena minha veia aorta
seu risco certo, apoena!

Há poema, nesse dilema!


vaga livre pensar nas estrelas
e corre fácil a caneta
trazendo o céu em suas veias...

Voe, crie asas, apoema...


há poema, há amor
agigante seu peito
e dissipe a sua dor.

Poesia que nos liberta e a noite vem...


caneta em punho e adormece
mas nenhum verso se esquece
caneta de pena, para o meu bem.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Geneviève Faé
Caxias do Sul/RS

O que me arrasta é o que me resta

Esse colecionador de erros


Que vem catando memórias como conchas

Esse devorador de todas as coisas

Esse empacotador de nuvens


Que embaralha as cartas do desatino

Esse esquartejador de estrelas

Esse ceifador de todas as infâncias


Que deposita crianças nas lembranças dos pais

Essa máquina de fazer velhos

Esse algoz da esperança


Que edita desejos e devora palcos

Esse infinito enquanto dura

Esse coveiro inquieto


De cadáveres por enquanto adiados

Esse devoto dos túmulos

Esse castrador de bons momentos


Que vem em conta-gotas na sala de espera

Esse construtor de pontes para o grande nada

Não sei se me apego na mão do que passou


Ou se me afogo na liquidez do futuro
- o tempo que me arrasta é o que me resta

@genevievefae

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Gisela Peçanha
Niterói/RJ

Passionata

Tal qual pipa sem céu na mão de um ‘’Doloria’’.


menino Batia, batia, batia...
Como alma rasgada por dentes felinos Aos pulos frouxos, mancos, quase
Nasceu, aquela paixão: findos
Sopro no coração: Terminal jaz-coração
Ruptura da pulsação: No último suspiro.
Batucada da arritmia. Ar comprimido
Descompasso da desalegria. Ar sufocado
Loucura-veia da asfixia. Ar engolido
Marcapasso baticum Ainda ritmava
Aorta morta do Olodum E mesmo sem voz
Escravatura do amor, sem alforria. Ainda era grito.
Ainda faminto!
Eu chorava, ele ria. Fome de vendavais
Ainda ardia Calibrando o peito: com vida.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Gislene da Silva Oliveira


Paragominas/PA

Boa de Língua
— Descansa em paz? Quer me admiração e surpresa. Admirou-lhe a
matar? sacada, a sagacidade, a rapidez com
Disse Duca nervosamente ao se a qual o rapaz fez emergir diante
despedir de sua mais nova amiga deles uma trama, quase um esquema
literária. Não se sabe se era o medo da clássico de enredo. Por outro lado,
eternidade, tão comum aos mortais ou sentiu uma pontinha de maldade ao
uma mente fértil e fantasiosa que em descobrir que o recente amigo temia
nada perderia para o garoto cheio de a morte e, não conseguia
imaginação da série de desenho desvencilhar-se do senso comum das
animado O fantástico mundo de Bobby. “palavras têm poder”.
O que se sabe é que ao ouvir a Bem neste caso, poder literário e
palavra descansa, Duca ativou seu surreal, que fez dela uma
alerta vermelho para contos eminentes e personagem um pouco tenebrosa.
logo surgiu um bom e sugestivo título: Imaginem só, caros leitores, se as
Boca maldita. O espírito literário do palavras que mal saem da sua boca e
rapaz falou mais alto e a pobre mulher tudo realizam, viessem fúnebres,
ali do outro lado das teclas materializou- carregadas de maldição, caretas,
se de forma surreal como a moça das ridicularizantes ou de cunho
palavras mortais, aquela que diz brochante (também mortal para a
“descansa em paz” e o cara morre no maioria dos homens!). Pobre Duca,
ato. ficaria aterrorizado, diante da
— Meu Deus! Que exagero. Só quis possibilidade de qualquer conversa
desejar um boa noite de sono. com Ariana.
Ariana, este era o pseudônimo da Eram de fato, Eduardo e Mônica
aspirante a escritora, considerou da literatura. Ele contista de mão
engraçado. Sentiu um misto de cheia, muitas publicações, alguns

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

ebooks e livro já impresso. Ela tímida trocariam os textos ou publicariam


aspirante a cronista, aqui e ali deixava em páginas comuns. Seria como um
escapar um texto que dois ou três exercício de estilo, perceber
amigos podiam ler. Pouco sabiam um do paralelos, divergências, soluções
outro para além dos escritos nas estilísticas comuns ou não.
páginas sociais que mantinham em Ela sentiu-se a própria Mary
comum, aliás onde também se Shelley na noite chuvosa de verão na
conheceram. Ele parou de beber há 28 Suíça, desafiada por Percy Shelley e
anos, mas continua fumante de uma Lord Byron a criar um conto de terror,
vida toda, ela deixou o amigo e embora ciente de que não escreveria
companheiro cigarro há dois anos e nem nenhum Frankenstein, também
se recorda mais que o conheceu, porém aceitou o desafio.
não dispensa a cervejinha e o bom e Marcaram a troca do texto para
doce vinho para embalar noites mais dali a três dias. Despediram-se com
longas. um singelo boa noite. Ela com uma
O lado literário em ambos breve provocação pediu para que ele
prevaleceu e mesmo com tudo diferente, não morresse no ato. Sorriram. No
ele propôs o desafio da profecia do fundo, ambos sabiam que suas
descanse em paz. Cada um escreveria palavras nada tinham de malditas.
sua narrativa sobre o tema e depois Era só era boa de língua: Fez Letras!

https://www.facebook.com/gislene.oliveira.56/
100gisoliveira@gmail.com

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Gonzalo Dávila

Os excluídos

Em um canto do funeral se reúnem eles, aqueles que a família não quer que o morto veja.
Dois gays, uma mulher de pele mais escura, uma mãe solteira, um homem sem perna, um
assaltante falido e um velho com Síndrome de Down. Eles não têm nada a ver um com o
outro, além do fato de estarem escondidos dos olhos do morto.
Lá, nessa região sem tempo nem espaço, eles passam as luas e sóis contando histórias sobre
desgraças eternas e alegrias fugazes. Até que o velho, aparentemente bem morto, e ainda
com o terno do seu primeiro trabalho, de tanta raiva sai pulando do túmulo. Do seu túmulo já
coberto de flores murchas e fezes. “Vocês deveriam estar no meu lugar!”. “Vocês deveriam
estar no meu lugar!”.

(Do livro A Melancolia)

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Guilherme Hernandez Filho


Santos/SP

A ameaça

Conciliador: Meirinho, pode apregoar as partes, por favor.


Meirinho: Joana dos Santos, ele apregoa.
Parte 1: Sou eu.
Meirinho: Seus documentos, por favor. Pode entrar e sentar do lado esquerdo
da mesa.
Parte 1: Boa tarde.
Conciliador: Boa tarde. Pode sentar-se aqui à esquerda, por favor.
Meirinho: Maria Auxiliadora da Silva, ele apregoa novamente.
Parte 2: Eu, diz a moça, se levantando de onde estava.
Meirinho: Seus documentos, por favor. Pode entrar e sentar do lado direito
da mesa.
Parte 2: Vou ter que ficar aqui em frente desta desqualificada?
Conciliador: Senhora, por favor, estamos em audiência e gostaria de ter um
comportamento educado de todos. Pode se sentar aqui ao lado direito.
Conciliador: Boa tarde a todos. Sejam bem-vindos a esta sessão de
conciliação. Meu nome é Arnaldo e sou o conciliador certificado pelo TJSP, e
nomeado para tentar ajudá-las nesta tentativa de conciliação. Esperamos poder
chegar a algum acordo para encerrar este conflito entre as partes. Cada uma das
senhoras terá oportunidade de falar a seu tempo e, por favor, não interrompam
as narrativas da outra parte.
Conciliador: Dª Joana, vejo que a senhora registrou um BO por ameaça,
contra a Dª Maria Auxiliadora, por fatos ocorridos há quatro meses, é isto? A
senhora poderia, por favor, nos resumir os fatos acontecidos?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Parte 1: Esta senhora é minha vizinha no prédio e vem me provocando a


troco de nada. Ouço ela falar com outras pessoas pelas minhas costas, e dar
risadinhas quando passo. Escuto falar que vai me bater. Vive me ameaçando.
Parte 2: Eu? Imagina, nem presto atenção nessa mulher.
Conciliador: Por favor, Dª Maria. Não interrompa. A senhora terá sua
oportunidade de dar sua versão.
Parte 2: Mas ela está mentindo, e eu não vou tolerar.
Conciliador: Por favor, se senhora continuar serei obrigado a suspender nossa
sessão. A senhora poderá falar a seu tempo.
Parte 1: Ela é uma grossa e mexiriqueira. Vive se metendo na vida dos
outros.
Parte 2: Você que é uma vadia e vive recebendo visitas impróprias.
Conciliador: Senhoras, por favor, vamos manter a urbanidade. Não vou
permitir que sejam feitas acusações e que fiquem se destratando. Eu vejo que
vocês estão com animosidade e precisam parar com isto. Vocês são vizinhas e
vão continuar se encontrando e cruzando pelos corredores. Querem levar este
tipo de vida?
Parte 1: Não é minha culpa.
Conciliador: Não estamos aqui para discutir quem é culpada. Eu gostaria de
falarmos de futuro e não do passado. O que aconteceu vocês precisam relevar e
esquecer. Estão dispostas a isto?
Parte 1: Se ela parar com os fuxicos, sim.
Parte 2: Eu não sou fuxiqueira.
Conciliador: Senhoras, eu proponho que as senhoras assinem um “termo de
bem viver”, onde de comprometam a se tratarem mutuamente sem agressões,
sem ameaças, sem ofensas, em fim, se tratarem com urbanidade, com educação,
e assim, encerraremos as acusações. É um documento de renúncia, mas um
compromisso assumido perante a justiça, de que não darão mais motivos para
estas acusações.
Parte 1: Mas e se ela não cumprir?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Conciliador: A senhora fará um novo Boletim de Ocorrência (BO), com a nova


acusação e testemunhas, e anexará este acordo dizendo que ela já não cumpriu
com o estabelecido, mas será um novo processo, com nova tramitação.
Parte 2: E se ela não cumprir?
Conciliador: A mesma coisa, mas tenho certeza que as senhoras não
pretendem descumprir o que seja combinado.
Parte 1: Eu aceito, mas não quero nem que ela me cumprimente. Pode
passar sem em olhar para mim.
Parte 2: Eu não quero olhar para você. Quando passar vou até olhar para o
outro lado.
Conciliador: Muito bem, senhoras. Então vamos preparar este acordo agora
para as senhoras assinarem.
Depois de assinados os termos cada parte sai com sua cópia, e o Conciliador
fica pensando quando estas vizinhas de condomínio reaparecerão.

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Hélio Guedes
Petrópolis/RJ

O Bambu e a Grama

Uma soca de bambu sempre será uma soca de bambu.


Uma muda de grama sempre será uma muda de grama.
Elas sabem disso, mas tem coisas que elas não sabem.

A soca é aquela que fica retalhada no céu


Na noite de lua cheia, espalhando brilho de vidro no chão.
Grama se espalha na terra, na cola em sola do pé.

Agora, o bambu plantado é curioso.


Perto de casa, tem ramo que fura cumeeira para escutar
E cola folha na vidraça para olhar.

Alguns galhos da soca são casa de passarinho,


Principalmente de sabiá laranjeira,
E o pé segura formigueiro de formiga carregadeira.

Às vezes, a soca sombreia igual guarda-sol,


Para balanço na rede ou, quem sabe,
Até para namorar moça namoradeira.

Já a grama, cresce baixinha e sem notação.


Só quem repara é besouro, aranha rasteira
E cobra d’água se escondendo do sol.

Dizem que a soca é prima da grama,

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

E é sim da mesma família. Só que a grama


Se espalha na terra e a outra fura a lua lá em cima.

A grama é amiga, sempre abraçada no mato


Dando mostração de caminho pegado no barro,
Bem no cheiro chuvoso de coisa molhada.

Também, diferente do primo, a grama entra no dedo do pé,


Espeta na unha e cola na sola. É coisa molhada
Que dá lembrança de flor, igual camélia cheirosa.

Mas qual é melhor, o bambu levantado ou a grama espalhada?


Esparramação na terra ou furação lá na nuvem? Não sei.
Uma tem chão cheio de força, outro enfeita noite no céu.

Bobagem, não interessa, as duas são boas:


Dá pra deitar devagarinho na rede espreguiçada,
Com bambu de telheiro e grama no cheiro molhado.

https://www.facebook.com/helio.oliveira.771282

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Hellen Bravo
Botucatu/SP

Nu

Livra-te do desimportante concreto


Afasta-te do que é breve e secreto
Liberte o simples quando oportuno discreto

Desate os nós
Purgue as falhas
Dispense o fugaz

E já que somente tu podes te sentenciar


Mantenha tua honra e...
Despes-te de máscaras
Despes-te de amarras
Despes-te de controle
Despes-te de julgamentos
Despes-te de tudo

Sejas livre!
Sejas só!
Sejas tu!
Sejas nu!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Heloísa Marina
Minas Gerais

Por que ler Machado de Assis?

Porque é um clássico da literatura nacional, resposta óbvia demais e pouco


esclarecedora, muito rasa ante a profundidade e riqueza da escrita do autor.
Valorizar a produção literária nacional é um ato de valorização pessoal,
valorização da identidade social, valorização da nossa história. Mas não é apenas
pela valorização do que é nosso que enfatizo a necessidade da leitura das obras
de Machado de Assis. Muito além do romance, do drama, da trama, do traiu ou
não traiu, muito mais profundo do que a riqueza de seus personagens. Os textos
de Machado de Assis nos permitem um conhecimento detalhado de um período
importante da sociedade nacional, um período que tem suas marcas cravadas na
sociedade ainda hoje.
Em suas obras, Machado de Assis, faz uma análise do momento vivido pela
sociedade e, através de seus personagens, registra nas páginas de suas histórias
fatos, contextos históricos, bem como, faz críticas riquíssimas.
É mais do que conhecer as obras de um grande escritor nacional, é conhecer
a estrutura da sociedade, as relações sociais, relações familiares, relações
políticas e as relações raciais (particularmente detesto esse termo). O autor usa
seus personagens para, de forma brilhante, ilustrar o cenário da época e criticar
de forma inteligente os usos e costumes da sociedade. Hoje ainda vivemos
reflexos dessa estrutura social, como por exemplo os acontecimentos pós
abolicionismo.
As obras de Machado de Assis são divididas em duas fases, uma romântica
também chamada de amadurecimento e a fase realista ou maturidade. Na minha
opinião Machado de Assis sempre esteve na fase realista, num primeiro momento
mais moderado, mais conformado, onde apesar de conhecer e apontar os
cânceres da sociedade de seu tempo, seus personagens não questionavam
muito, na verdade, eles apenas se conformavam.
Na segunda fase, o autor, nos presenteia com personagens tão reais que
num primeiro momento pode desanimar o leitor, acostumado com personagens
com certo grau de perfeição, de idealização do ser humano. Mas é nesse realismo
que reside, na minha opinião, o fascínio pelas obras do autor. Em sua fase
realista o narrador é o centro da narrativa, há sempre uma dúvida quanto a
personalidade do narrador que circula pela sociedade e relata as relações do

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meio onde está inserido. O autor torna a crítica aos usos e costumes evidentes e
passa a fazer uso do humor para tanto.
Vale ressaltar, que o escritor, tem obras em quase todos os gêneros:
Na poesia, inicia com o romantismo de Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo
Indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1901). Paralelamente,
apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873); os
romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878),
considerados como pertencentes ao seu período romântico.1

Através de seus personagens o autor deixa em evidência toda a sordidez da


sociedade. Os personagens de Machado são construídos de forma complexa, mas
ao longo do texto é possível conhecer melhor cada um, qualidades e defeitos,
mas o destaque é que suas mazelas torna a leitura interessante, isso porque
ponderamos ao longo da leitura se são personagens bons ou ruins, mocinhas(os)
ou vilãs (ões). Não se trata de personagens estáticos, mas nem sempre a
mudança é positiva, o que foge ao ideal de que os personagens devem sempre se
tornarem melhores ao longo da história.
Costumo dizer que os personagens de Machado de Assis são tão reais que
assusta, porque nos obriga a olhar para nós mesmos.
Outro ponto, que me fascina nas obras de Machado de Assis é a interação do
narrador com o leitor. É brilhante a construção dessa relação narrador-leitor. Em
trechos de Brás Cubas, o narrador defunto, aconselha o leitor, já em Dom
Casmurro, Bentinho tenta convencer o leitor de seu ponto de vista e a discussão,
“traiu, não traiu”, rende até os dias atuais.
Acredito que justifiquei as razões para ler Machado de Assis, mas se não o
convenci, se ainda não foi o suficiente, sugiro que leia para dizer com
conhecimento de causa que não valeu a pena.
Muito obrigada por sua preciosa atenção. Se cuidem e cuidado com ideias
brilhantes (somente leitores do Machado saberá do se trata).

https://www.instagram.com/heloisamarina_/

1Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/machado-de-


assis/biografia#:~:text=Biografia&text=Machado%20de%20Assis%20(Joaquim%20Maria,da
%20Academia%20Brasileira%20de%20Letras. Acesso em: 12 de fevereiro de 2022.

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Ícaro Marques Estevam

Gênesis

Origens vivas de lírios e lilases


De longas mantas brancas me trazem
Inspirações estelares inflamadas
De todas as criações universais delicadas

Floresce no meio árido e estéril


Depois do tesouro anunciado e recebido
O Supremo Verso dardejante e embebido
De visões e imagens consagradas

Vem dos Deuses o jardim etéreo


No qual repousa Supremo Verso
Que dá origem a sensações congregadas…

E no meu poema floresce aéreo


Alado desejo, outrora submerso
Na imensidão escura estrelada

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Iraci J. Marin
Caxias do Sul/RS

Iniciação

Muitos na vila desgostavam de mim segredo completo. Se eu abrisse a


porque eu era vesgo e molengão. Mas boca ia ter muita mulher correndo
me usavam quando era preciso alguma atrás dos maridos com a vassoura.
força na roça ou pra carregar lenha no Ou a faca de pão. Bonito era ver todo
fim de tarde da roça pras casas deles. mundo na igreja, nos domingos de
Ou levar recados escritos. Quem mais tarde, rezando o terço, cabeça baixa,
me usava pra isto era o Juventino. Me contritos, confiantes no perdão
pedia pra levar recados pra Jurema. divino.
Bonita e difícil de lidar, a tal Jurema. Eu
De todas as mulheres, era
tinha que chegar com jeito na casa dela
Jurema que eu mais admirava. Com o
e falar nada. Nas primeiras vezes, o
tempo, aprendi como chegar na casa
cachorro dela me atacava. Com o
dela e como conversar um pouco sem
tempo, foi se acostumando comigo, com
que reclamasse ou dissesse
meu cheiro, então vinha ao meu
grosserias. Jurema era uma perdição
encontro e se enrolava nas minhas
de mulher, ah, era mesmo! Por isto é
pernas, brincalhão.
que Juventino tinha ciúmes dela. Um
Juventino me pagava pra fazer este dia, do nada, ele me passou uma
serviço e eu tinha que ficar bem advertência: que eu não me
caladinho. Com aquele dinheiro eu engraçasse nela. Decerto imaginava
comprava balas e sorvete seco na que eu ia levar os recados dele e
bodega do pai dele. aproveitava pra ficar de gracinhas
com ela. Ora, vejam!
Tinha outros na vila que me usavam
pra levar recados. Cada um com seu Ruim era quando me pediam pra
esquema de visitação. Tinha um que ajudar na roça, capinar, colher feijão,
saía no domingo de manhã. Outro, no dobrar o milho. Era de manhã cedo
meio da tarde de um dia qualquer da até o escurecer. De noite, a dor no
semana. Outro, nos sábados de tarde. corpo era medonha. Mas estava
Juventino ia de noite mesmo, silencioso. sendo bem-feito pra mim, que não
quis estudar. Achava que ficar dentro
Minha vida só não era mais triste
de uma sala de aula a manhã toda
naquela vila perdida na terra porque eu
era perder a liberdade, desengraçar
me divertia com aquilo. Mantinha
da vida. Mal sabendo ler e escrever, o

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jeito era trabalhar no duro, suar a com o short apertado que deixava
camisa, repetir os dias. Não que saltar algumas saliências do corpo
estivesse inteiramente insatisfeito. Tinha dela, e um súbito desejo se avolumou
lá suas compensações viver como vivia. no meu corpo adolescente. Eu tive
O trabalho de levar recados pras que virar o rosto e olhar o cachorro
mulheres era uma delas. Via como elas se rolando na grama. Distraído, mal
eram, a beleza de cada uma, o cheiro ouvi que ela dizia alguma coisa. Acho
delas, e como era bonito o sorriso que ouvi só o final da fala– me
quando liam os bilhetes, e isto me fazia convidava pra tomar um copo de
sonhar. Só uma vez uma disse que não água. Então entendi – estava calor,
podia. Não podia. Ele tem que esperar eu suava, ela me oferecia um copo de
mais uns dias, falou, com a cara água. Aceitei. Entramos na casa, ela
amarrada. Eu não sei o que era, nem me deu a água numa caneca de
por que ela disse aquilo, só sei que levei alumínio, tomei, devolvi a caneca.
o recado de volta e foi igual um Jeitosa e sorridente, me puxou pelo
desarranjo. Ele amoleceu todo e quase braço, foi passando as mãos na
ia se esquecendo de me fazer o minha cabeleira, com elogios, depois
pagamento. Depois, se retirou nos ombros... De repente, me puxou
cabisbaixo, contrariado. com força e grudou a sua boca na
minha. Me arrepiei todo. Agarrada em
Eu percebia a felicidade deles
mim desse jeito, me levou até o
quando dava certo o encontro. Um sim
quarto e me deitou na cama dela. O
delas, mesmo mole, que eu repetia pra
calor que eu sentia ficou maior. O
eles – ela disse que sim -, provocava-
coração acelerou, fulminado por um
lhes uma avalanche de alegria contida.
tremor geral que dominou minhas
Pra fazer o acerto do meu trabalho, os
entranhas. Deitado, eu fechei os
casados me levavam pra um canto
olhos – seja o que Deus quiser,
escondido, às vezes no pomar. Ou perto
pensei.
do galinheiro – e aí eu já sabia. O
pagamento era uma galinha velha. Eu demorei mais do que o normal
Minha mãe é que ficava satisfeita. naquele dia; já estava escurecendo
quando encontrei o Juventino.
Quando de novo fui levar um recado
Reclamou de minha demora e eu não
de Juventino pra Jurema, numa tarde de
disse nada. Peguei o dinheiro e fui
sol quente, senti um estranho calor no
embora, assobiando o prazer de viver.
corpo, diferente do calor causado pelo
Daquele dia em diante, levar os
sol, e que eu nunca sentira antes. Fiquei
recados de Juventino pra Jurema era
olhando pra Jurema, praquele corpo
o que eu gostava mesmo de fazer
metido numa blusa meio transparente,
naquele fim de mundo.

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Ivo Aparecido Franco


São Bernardo do Campo/SP

História
Vagarosamente descobrimos A esse sudário coletivo
Que o tempo era algo tão absurdo Denominamos História
Que jamais caberia na memória O manto pagão transparente
Que desvela de propósito
Vimo-nos uns aos outros atônitos
Recolhendo, em lugar nenhum, Cada imperfeição feia
De nossos corpos machucados
Dentre corpos mortos e outros trecos,
Cacos quebrados de lembranças incertas Cobertos com esse pano
Muitas delas encobertas Corremos assustados
Por uma espessa névoa entorpecente Por tudo de nós que nos revela
E insistimos em não ver

Com muito trabalho Praticamente expostos


Juntamos tudo e costuramos Encontramo-nos travestidos dela
Que chega até nós embriagada,
Formamos assim cambaleante
Um grande manto
Com o qual pretendíamos Vem nas asas de uma memória estúpida
Cobrir nossos corpos nus Que virou meme

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Fotos
Jamison Paixão
Las Palmas de Gran Canária/Espanha

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https://www.facebook.com/paixaodeoliveira

https://www.facebook.com/jpartes.desenho.3

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JAX

Certa Manhã do Pensador do Boteco

Como de hábito, Mourão chegou ao bar saudado, em seu orgulho


pouco depois das dez da manhã e botafoguense, com o sincero tilintar
dirigiu-se à sua mesa no fundo do das tulipas de cerveja.
estabelecimento. Ali ficaria até pouco A seguir, entrou Chicão, com
antes de meio-dia, hora em que entrava seu jeito sempre alegre de rever os
no banco para o expediente diário. bons amigos, sorriso farto e acenos
À espera dos primeiros comensais, para todo o pessoal de serviço no bar.
saboreava sua cervejinha bem gelada e Trabalhava na mesma seção do
a primeira leva de tira-gostos, um queijo Pensador, no banco, e angariava a
Minas de primeira, recomendado com simpatia de todos, não só por sua
sabedoria pelo eficiente Osvaldo, o mais jovialidade, mas também pela
experiente dos garçons do bar. Logo reconhecida eficiência e
chegaram, sucessivamente, alguns dos companheirismo no serviço. Não
“habitués”, colegas do banco que deixava um papel para o dia seguinte
também cultivavam o gosto (bom gosto, e, o que era ainda melhor, jamais
vale frisar) do Pensador do Boteco em atrasou alguém na saída em grupo
alimentar corpo e espírito para o para as noitadas de sexta-feira, no
desafiante batente de cada dia. mesmo bar.
Primeiro, veio o Anísio, do clube Quase ao mesmo tempo que o
dos cinquentões no qual ingressara Chicão, adentrou o recinto a Mônica,
Mourão há...pouco tempo (sem a mais jovem do quarteto. Devia ter
necessidade de maiores especificações). uns cinco anos somente de banco,
Naquela manhã, vinha entusiasmado mas parecia uma veterana, tais a
com a vitória do seu Botafogo na classe e a impressionante experiência
véspera. Apesar de torcedor do com que manejava papéis, contas,
Fluminense carioca, o Pensador do cervejas e bocados. Magra, cabelos
Boteco tinha grandeza de espírito castanho-claros que vinham ao meio
suficiente para celebrar – e até desejar das costas, era outra figura
– o triunfo habitual de todos os times da sorridente, que parecia estar sempre
preferência dos seus comensais, a fim de bem com a vida e adorava os ditos
de que a alegria reinasse na mesa. e as tiradas de Mourão. Este, por sua
Anísio chegou e foi imediatamente vez, apreciava o hábito da

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companheira de copo em passear o dedo de segunda categoria. Soavam


indicador pelo “suor” das tulipas, como sempre renovados, como recém-
que a desenhar imagens indefinidas, chegados à dinâmica da conversa.
vindas diretamente do seu ego para o Tinham o impacto desejável para
prazer interpretativo dos comensais. iluminar o bate-papo, envolvendo-o
Seria aquela manhã como em uma onda de eterno
qualquer outra, sem se desmerecer, renascimento. O Pensador do Boteco
contudo, com a pesada mesmice da sobressaía-se nessa arte clássica de
rotina ou a tristeza que acomete outros lapidar comentários dignos do melhor
frequentadores de bares. Na mesa do escultor. Naquela manhã, sua
Pensador do Boteco, reinava a inspiração se manifestava com a
animação, e os absurdos da existência frequência costumeira. Teodoro, um
humana eram equacionados em alto garçom mais idoso do que Osvaldo,
astral. Aludindo à juventude de Mônica, queixava-se de que a mulher não
Anísio costumava recordar antigos queria mais preparar rabada, músculo
companheiros que ela não conhecera, e outros pratos de carne bovina da
mas ele, sim, ainda rapazola, ao predileção do marido por andar
ingressar no banco como simples preocupada com o nível de colesterol
“office-boy”. A maioria já se aposentara, de ambos. Mourão não perdeu tempo
alguns haviam falecido e poucos ainda em orientar o amigo a defender-se
reapareciam, vez por outra, para as com o argumento de que os bois se
manhãs ou as noitadas de praxe. alimentavam unicamente de grama.
Sempre que o amigo enveredava pela Assim sendo, sua “carne” era
traiçoeira nostalgia, o Pensador do vegetariana, na verdade, quase
Boteco cuidava de pôr ordem à mesa, incapaz de fazer mal.
dizendo com sua voz macia e Como a conversa continuou
convincente que “recordar é viver, sem pela via da saúde, o Pensador do
dúvida, desde que o recordador não se Boteco reconheceu que ele próprio
deixe morrer de saudade”. E arrematava era bem disciplinado, ao contrário do
que “melhor de tudo é recordar E viver”. que levaria a crer a pilhéria anterior
Anísio se recompunha imediatamente e com Teodoro. Deu como exemplo o
a galera toda vibrava em novos tilintares fato de o médico lhe haver
das taças. recomendado, certa ocasião, que
Pensamentos como esse e outros reduzisse a bebida à metade. Sem
eram ocasionalmente relembrados por hesitar, Mourão passou a comprar
Mourão ou por algum companheiro, sem somente meias garrafas para sua
o ranço das frases repetidas pela adega.
chamada sabedoria popular ou, pior Dos desafios da saúde física,
ainda, pela pobre inventiva dos políticos enveredou-se pelas questões

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espirituais. Em dado momento, o muitos outros cachorros que tivera ou


Pensador do Boteco teceu comentários conhecera. O Pensador do Boteco
sobre a necessidade de tantas pessoas salvou a pátria, uma vez mais, ao
de abraçar uma religião e concluiu, com encerrar a cantilena sem fim da
seu ar de aparente seriedade, que todo senhora, aproveitando-se de que ela
ser humano deveria esposar três credos, perguntou a cada um qual a sua raça
pelo menos. Como exemplo, ele, se favorita. Chegada sua vez, respondeu
contasse com o aval dos patrões, seria que ele decididamente preferia os
muçulmano às sextas-feiras, judeu aos “hot dogs”. Ante a significativa
sábados e católico nos domingos, em resposta, a adoradora de cães deu-se
absoluta devoção ao “santo fim-de- conta de que já era tempo de sair e
semana prolongado”. Não satisfeito, buscar o local que queria.
pediu aos amigos que o informassem de Em função do adiantado da
outra religião consagradora das quintas- hora, Mourão e seus companheiros
feiras como feriado. “Já imaginaram que tiveram de liquidar as cervejas
maravilha?” restantes com certa celeridade e
Uma senhora que terminou seu pendurar a consumação daquela
cafezinho no balcão aproximou-se da manhã até o dia seguinte, para não
mesa para perguntar se alguém por se atrasarem no banco. O dono do
acaso conhecia determinada casa para bar sabia que podia confiar na turma,
mascotes, pois o endereço que anotara mas o Pensador do Boteco, mesmo
não correspondia. Trazia na coleira um assim, assegurou-lhe que todos
poodle que logo cativou Mônica e outros pagariam com juros, na forma de
comensais. Após fazerem festa no mais comes e bebes. Afinal de
pequeno animal, pagaram o preço de contas, negócios são negócios, ainda
cair nas boas graças da dona, que que entre amigos.
desfiou, sem parar, histórias deste e de

Versão reduzida da original, publicada em JAX, Afinal de Contos..., ed.


Illuminare, RS, 2019.

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Jeferson Ilha
Santa Maria/RS

Unidirecionais
Seguidores, manipuláveis...
Tão manipulados, que são capazes de acreditar que pensam por si mesmos.
Mas o seu pensamento não é seu.
Aceitam como verdade o lado que querem ver.
Sem pensar,
Refletir nem pensar.
Aceitar...
Então aceito e reproduzo.
Aprender a pensar dói, muito...
Desconstrói verdades,
Desconstrói quem sou,
Quem somos...
E isso é doloroso demais.
Dói por aprender o que somos,
Reaprender a ser...
Quem foi, já não é...
Unidirecional
A unidireção é imposta e...
Perversamente aceita.
Posta e imposta,
Como única verdade. Moral.
Como único caminho. Direção.
Unidireção.

https://www.facebook.com/jeferson.ilha
@jeferson_ilha

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Joaquim Bispo
Odivelas, Portugal

O caso Maria das Dores

As referências ao estranho caso de obrigou-me a maiores empenhos.


Maria das Dores são escassas e pouco Alarguei a minha pesquisa etnográfica
elucidativas. Foi ao folhear números do ao jornal de Arouca, na esperança de
Jornal de Anadia do ano de 1965, em encontrar outras referências a Maria
pesquisas etnográficas, que encontrei das Dores, na sua própria terra.
uma pequena notícia no fim de uma No Arouquense, em cada ano de
página par. Não consigo reproduzir o meados de 60, foram noticiados um
texto, porque entretanto perdi a cópia, ou dois casos funestos com
mas lembro-me que tratava de uma espectadores do coro paroquial.
mulher que se tinha suicidado, após ter Depois de vasculhar os arquivos do
assistido a uma apresentação do Coro jornal, comecei a fazer perguntas
Paroquial de Arouca, no Teatro pela terra. As memórias estavam
Bairradino. A notícia referia que o grupo invariavelmente “apagadas”, mas
coral carregava um histórico de outras depois de ser empurrado de um lado
mortes inexplicadas de espectadores e para o outro, dei com um ancião
levantava suspeitas sobre uma possível disposto a falar. Era um ex-professor
influência perniciosa da soprano primário.
principal, a tal Maria das Dores. Na
altura, não lhe atribuí grande — Sim, conheci-a muito bem.
credibilidade. Sabemos bem como, por Chamava-se Maria das Dores. Era de
vezes, se empolam e se adulteram uma aldeia da Serra. Farta de frios e
factos com “explicações” sem qualquer malpassar, veio para criada de servir,
relação de causalidade. para uma casa dalém. Até aqui, tudo
normal. No princípio da década de 60,
Quis o âmbito da minha pesquisa o padre, influenciado pelo espírito do
que eu consultasse outros jornais da Vaticano II, resolveu criar um coro, e
zona centro, algum tempo depois. O ela foi das primeiras a aderir.
Vouzelense forneceu-me a segunda
referência a Maria das Dores: após o Parou um momento em
espetáculo coral na Casa do Povo, um evocações.
homem atirou-se do viaduto ferroviário — O senhor nem imagina. A
para as rochas. Não se conheciam à miúda tinha uma voz! Ia para lá do
vítima problemas económicos ou que é humano. O canto dela tocava-
depressivos. Desta vez, a curiosidade nos onde nada mais nos atingia.

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Ouvir o seu atormentado agudo de quase sempre que Maria das Dores
soprano solar o Stabat Mater Dolorosa, atuava.
sobre os graves de mau agouro dos No dia seguinte, rumei à aldeia
baixos, compungia todo o auditório. de origem de Maria das Dores, nos
Parecia que entrevíamos o fim do altos da Serra da Freita. Era um
mundo, cataclismos inomináveis. lugarejo humilde, quase miserável,
Inundava-nos uma angústia tão grande encaixado numa dobra da serra, em
que se, no fim da peça, olhássemos em que as habitações confinavam com
volta, iríamos deparar-nos com muitas currais, e as poucas pessoas
faces inundadas de lágrimas. Havia conviviam com todo o tipo de detritos
quem soluçasse incontroladamente. Não rurais. Consegui localizar uma prima,
me admiro que algumas pessoas não já bem velha, que me facultou
tenham aguentado e tenham praticado alguma informação mais íntima.
atos tresloucados, como diziam os
jornais. Contou que, em jovens, quando
iam as duas buscar as vacas, no fim
Embalado no discurso, avançou para do dia, Maria das Dores parecia por
teorias próprias: vezes embeber-se daquele silêncio
— A música tem o que se lhe diga. global, só céu e serra, e ficava muito
Não sei se o senhor sabe, mas aquelas parada, como se contemplasse algo
notas têm relações matemáticas exatas peculiar, que só ela via. Então,
entre elas, que já Pitágoras tentou lançava um canto dorido que se
desvendar. Na Idade Média, a Música era estendia pela superfície do planalto
uma das sete artes liberais que os escalvado, alcançava as serras mais
homens ilustrados deviam estudar, como afastadas e regressava num eco
a Aritmética, a Geometria e a transmutado, entremeado por
Astronomia. E é perigosa, sabe? Há algo reverberações fantasmagóricas como
de mágico e maligno naqueles doze miragens. Contou que, nessas
tons. Doze, como os signos do Zodíaco. alturas, toda a sua pele se arrepiava,
E como os apóstolos, em que um traiu. como se uma multidão de pequenos
A música entra no nosso espírito sem seres invisíveis as envolvesse.
licença, sem nós querermos. Retine e Para Maria das Dores, aquele eco
ecoa no mais íntimo de cada um. É parecia funcionar como estímulo, e
absolutamente intrusiva, violadora, prosseguia em repetições de outros
manipuladora. Eu posso estar muito cantos, outros enleios, sempre
satisfeito da vida, mas se for atingido tristes. Certo dia, com o eco, vieram
pela melodia certa, posso ficar taciturno lobos. Seis, cinzentos e de olhos
e sentir-me o mais miserável dos amarelos. Contou que ficou
humanos. Era o que acontecia a alguns, paralisada de pânico, certa de estar
no seu último dia, mas Maria das

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Dores enfrentou-os, com um canto da apelos, rumores, ameaças. Em certo


serra, nostálgico, mas firme e momento, o murmúrio cortante
destemido. As feras estacaram pareceu-me um canto humano, uma
surpreendidas e, perante o tom enérgico queixa dorida e muito aguda. Nunca
e uivado do canto de Maria das Dores, me senti tão sozinho. Após uma luta
afastaram-se, dando mostras de algum de minutos contra a superstição e o
receio. medo, dei-me por vencido. Desatei a
— Ela nunca falava nisso, mas, um correr sem olhar para trás,
irmão, um pouco mais novo, um dia absolutamente aterrorizado.
perdeu-se na serra, ou caiu nalguma Abandonei ali a minha
quebrada, e foi atacado. Quando o investigação da figura e da
encontraram, estava quase todo roído personalidade de Maria das Dores.
pelos lobos. Nem quis visitar a sua campa. Só
Resolvi visitar o planalto onde resolvi contar tudo isto agora, vinte
ambas se tinham confrontado com as anos depois, porque me lembrei do
feras. Como então, o dia chegava ao caso ao ler notícias recentes de um
fim. A aragem fria e sussurrante trazia estranho suicídio na Serra da Freita.

http://vislumbresdamusa.blogspot.pt/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Joaquim Cesário de Mello


Recife/PE

Trinta Anos ou Mais

Ele ainda a esperava E ainda assim a esperaria


todas as tardes às 17 horas todas as tardes às 17 horas
na mesma pequena livraria na mesma pequena livraria
que já não existia mais que já não existia mais

Em meio a livros imaginários Sentado no canto invisível


decifrava trovas de amor daquele lugar que o mundo esqueceu
no caçar dos versos perfeitos aguardava o chegar inevitável da noite
que nenhum Dante folheando recentes obituários
Camões ou Shakespeare no encontrar dos nomes familiares
jamais poderia ter feito
Os ossos da eternidade já pesavam
Leria quantidade maior de escritos e em seus ombros levemente arqueados
papiros enquanto presenciava sempre
que sequer a Biblioteca de Alexandria o extinguir das tardes mortas
possuía no cerrar das luminosidades escassas
pelo despertar insone dos postes
Percorreria os imensos corredores dos anos
que nem o próprio Matusalém conseguiu E quando chegada as noites
voltava derrotado às camas
Sobreviveria a imortalidade com a confiança dos devotos
mais que a soma de todos os deuses de que amanhã ainda a esperaria
que os milênios outrora soterraram pelos próximos trinta anos
ou mais

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Joedyr Bellas
São Gonçalo/RJ

De Boa
Sentado na varanda da minha casa. Vou escrevendo essas lembranças e a
Casa antiga, de avarandado em L. mente vai borbulhando. Minha mãe
Samambaia majestosa, chorona, me pedia para comprar bisnaga na
lágrimas verdes derramadas por todo o padaria. Pedia não. Mandava. Nessa
tripé onde ela estava sustentada, no época, as mães mandavam e os filhos
canto da frente da varanda que dava obedeciam. Molecada esperta. Não
para o portão. tinha futebol no paralelepípedo, não
Se quiser, pode sair. Se quiser, pode tinha bola de gude no quintal de dona
entrar. Jupira, não tinha pião no quintal de
Estou de boa, e minha avó sempre dona Isa que convencesse a mãe a
mantinha a casa aberta para uma visita mudar de ideia. Deixa pra depois, é
e um bolo de fubá com café preto, bem um pulinho só. A brincadeira fica pra
quentinho. Tinha que ser preto, se mais tarde. E ficava. De boa. Sem
pedissem, sem ofensa, um pingado ou reclamar. Quando o padeiro não
uma média, sem ofensa, e sem entregava o pão na porta de casa, a
pestanejar, ela rindo, falava alto, que incumbência de ir na padaria comprar
média ou pingado, só no bar do seu a bisnaga do café da manhã ou da
Joaquim, no tempo em que os bares e tarde era minha.
os armazéns eram comandados por um Não se esqueça da manteiga. Não me
português nato, Trás-os-Montes, de lápis esquecia. A manteiga era tirada por
atrás da orelha, um caderninho de uma colher enorme de pau de dentro
anotar a freguesia e acertar as contas de uma lata de vinte e colocada em
no fim do mês. um papel vegetal. Manteiga da boa,
Tá certo essa conta, seu Joaquim? dizia seu Joaquim, que a manteiga eu
Ora pois. comprava no bar da esquina.
Obrigado. Não se esqueça de anotar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ora pois. Lá vinha Ritinha. Toda serelepe.


Está quase na hora de Ritinha passar, Travessa. Sabia sorrir mostrando os
estava, ela não sabia de mim, não como dentes branquinhos e de fazer
namorado, mas eu sabia da minha covinha nas bochechas. De
história com ela. História contada por endoidecer. E eu ficava doido.
mim nas cartinhas, mantidas a sete Oferecia bala Juquinha de morango a
chaves na gaveta da cômoda do meu ela e ela aceitava, eu dava pra ela
quarto, no fundo da gaveta, debaixo de aquela goiaba de vez, que era como
roupas e mais roupas, tudo embolado, ela gostava, tirada lá das grimpas,
mas as cartinhas lá, guardando os meus cuidado moleque, e ela aceitava,
segredos e contendo os meus passeios oferecia um beijinho a ela, ela me
com ela pela praça, pela rua, pelos mostrava a face, eu não queria, e na
campos de futebol, pelas quermesses, brincadeira de pera, uva ou salada de
pelas festas juninas, pelos bailes do fruta, ela nunca caía comigo, só uma
chapéu na casa de dona Adelaide, vez, eu fui de salada de fruta, ela
aquela casa lá em cima do morro. bobeou, e era para ser aquele beijo,
Soberana. Hoje, não se vê mais a casa, beijo na boca, grudado de abiu ou
são várias casas, mas daqui do jaca, era, porque ela não aceitou a
avarandado da minha casa, casa antiga, oferta do meu beijo e saiu correndo
ainda é possível enxergá-la. Posso até pela rua.
escutar o disco na vitrola, os Eu e minhas lembranças.
pasteizinhos sendo servidos, refresco de Daqui do meu apartamento as
groselha, e eu esperando Ritinha passar lembranças vão chegando, sem pedir
o chapéu na minha cabeça e a gente licença, eu as aceito e algumas
sair dançando pelo salão. Só eu e lágrimas se misturam com as
Ritinha. lágrimas da samambaia do
E lá vem Ritinha descendo a rua, toda avarandado da minha casa, casa
bonitinha. Com seu vestido de chita, seu antiga.
rosto sarnento. Estrelas pintadas com E a vista fica embaçada.
esmero e precisão no rosto de Ritinha. Mas, como diz o título, estou de boa.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

José Manuel Neves


Almada/Portugal

Poema da Noite que passa

A luz esmorece em azul suave


E o dia parte. Foi mais um dia.
Grão de Tempo, Nota e Clave,
Na Pauta desta Cósmica Sinfonia.

No vidro da janela um raio de Luar,


Abre-se em rio de prata escorrendo.
E a Musa, que vem por ele a navegar,
Inspira o poema que está nascendo.

As palavras ligam-se com brandura,


Em versos de desejos inconfessados,
Uns são de dor, outros de ternura
Alguns, também, de sonhos destroçados.

Poesia que enches a alma insatisfeita,


Dessa vontade de mais sempre querer.
És a música dessa melodia imperfeita,
Que o meu canto, no peito, faz crescer.

E o ritmo da poesia música, vem embalar,


O sonho, véu da noite que me abraça.
Rendilhado de astros, estrelas a vibrar,
E o Verso rima com noite que passa.

https://joseneves.tambemescrevo.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Juarez Marçal
Recife/PE

Amanhecer

O sol que se põe nesta manhã


Amanheceu a realidade,
mostrando a idade,
e o embaraço dos cabelos...

O corpo já não é mais o mesmo,


as pessoas são todas as mesmas
na mesma caminhada,
na mesma rotina sem ter noção
do dia que passa...

O sol que chegou é o mesmo,


De ontem,
De todos os dias que virão
De todas as manhãs.
Brilhante,
Radiante,
Iluminando os caminhos,
Aquecendo as flores, na efervescência
Dos aromas,
Secando as sementes
Secando a lágrima
Da noite solitária...
Nesta regência há uma explosão
De sentimentos, de corpos
De cores,
Onde o céu é o palco da bondade
Da Criação de Deus.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Julia Mascaro Alvim


Osasco/SP

Desenhos Animados

Piuí, piuá, piuí, piuá, Juvenal Violino viajando vai cantar a intenção de reatar,
rever sua musa do mar. Trem, ação, aviação, carango, maria-fumaça. A trança,
trança jovial, Anita seu amor carnal. Todo o ardor a atormentar a propriedade de
lembrar, apropriando a tela salva ao estilo de lamentar. A alma calma timbrando
o instrumento que ele próprio faz. Assim tira a ilustre capa estribilhando o violão.
Anita bonita, recalcada, põe justa combinação. Bota um salto e seu casaco, entra
no carro e vai pra lá. Ele vem se aproximando para ela encontrar.
Não em vão estão recitando a pura sorte de chegar à já marcada referência,
corte planejada a arejar.

Anita musa, linda em cena, arrumada e atemporal num movimento afinado


já chegado a ser quadrado, esfera do ato de esperar o seu homem literato.
Exigido em legítima clave a tocar.
Seu penteado esculturado, gargalhado a despentear... Ela sim já sabe o fato,
não tem medo de enfrentar. Arrumando seu cabelo, esperado, serpenteado. Seu
homem lobisomem encarnado a lhe olhar... E Anita vai perseguida por seu
homem Juvenal. Violino arrependido, lobisomem sensual... Parado num, por
favor, de ser homem lobisomem transformado em ideal. De Anita presa tátil,
encantada no quintal. Quer agir como arapuca do Juvenal, bom, terno e tal.
Relacionados mais que adultos ambos estão feitos sal. Eróticos jogos a brincar
em uma banheira. Heroicos num balde a sonhar... Debalde a casa velha
assombrada ao luar, uivo dado à revelia, brinde mais particular. Reencenado num
segredo, fato ambíguo de amar. Que não contam nem ao padre das suas vidas
incomuns. Excomungados sociáveis. Consequência virtual. Piá bela, batizada,
sem o susto, pois sua reza é clerical. Sabe de fato o labirinto, e segue a estrada
armorial. Cruza o arco da distância, igreja cruz da dimensão. Tudo estranho e
desviado, oratório de irmãos. Ladeando pieguices de um santo Juvenal. E Anita o
sim dessa palavra, já tocada a se livrar do enraivecer, porque é mulher bem
sabida e sabe rir em suas falas...

Árduos belos que passeiam nesse parque diversão. Aceso em néons. Gritos.
Montanhas de sustos, peroladas de brincar. Cuidando dos russos gritos, que

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

fugidios seres dão ao ar. Assustando em esconderijos dessa arca de Noé.


Fantasmas afogados no mar de outra maré.
Ai meu deus que susto grande, certo dia de luar. Que medo de meu deus,
meu deus... Ainda giram no chapéu “mexicanoir”

Evaporando em brinquedos, cavalgados carrosséis. Personagens cavaleiros,


que cavalgam, e cavalgam à terra da fumaça. Lugar ermo da enigmática flor. Flor
de cinco vis cabeças brilha fogo, espelho e sangue. Transe, estrela cadente,
escorre fé num tobogã de explicações. São desenhos animados, sonhos
maldeitados, sonos, sanguessugas, vampiros da imagem. Anã, íris, virada e
curta. Cine-sangue repartido, emocionado pesadelo maldito parido feito leite.
Uivo no ocaso crepuscular...

Transformação irreal formada pelo medo. Sangue doce dessa crença,


imagem sensacional. Real sangue do fato, olfato fátuo da descrença,
parapsicológica ao formato da imensidão do ar. Luar de Anita no momento em
que cala em seu suplício. Ele, assim, está sorrindo. Só chegará se educado, pois
é doce o tormento.

Informado, está tudo quebrado. Nada ficou além do rádio, e a imagem da


estrada da praia. Horizonte escravo vai e vem no carrinho do parque a ter e
voltar...

E tece a escuridão, encanto do que houve. O susto dum vampiro. Boneco


feito néctar.
Figura. Assassinato no parque. Os alhos das ideias. Cores de viver, a estória
exata pra contar.

Desfazendo pegadas, porque diz, sou feliz. Amo Juvenal, e sou Anita, grávida
no mar.
Ouça, ainda vai dizer, pois se finge de coitada, sorrindo por fugir do
lobisomem sensual. Sou como um caranguejo na praia, prata daqui. Bala pronta,
prata agulha, nunca mais eu vou fugir.
Dormindo, sou igreja crescida. Também cabelo e mulher. E roupa bem
passada. Janta recortada. Também já sou cansada. Ele é gravata, terno e
também o mar. Ele é o meu mal necessário, que come o jantar... O mal é
necessário, e deito a corar. Eu o coro de vermelho, no espelho desse lar... Então
estou aqui, a titubear...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Karine Dias Oliveira


Nova Friburgo/RJ

Contrastes
Um saldo... um salto... ou o retrocesso
Esperança erguida na determinação das palmeiras
Que encontravam acalento no doce canto dos pássaros
Exóticos eram eles...
Que deitaram em berço esplêndido
Que ousaram no mar das canoas
Onde os troncos descansavam em paz
Carregando os sonhos dos montes alegres
Uma tal “independência”...
Mistérios nas margens e luta pela terra
Filhos avermelhados
De sangue... de cor de gente...
Indefesos como a fauna e a flora
Olhos lunares em adoração
Penitência e evocação
Realidade de uma época cinza nas páginas de nossa história
Tratados em desacordos
Ideias e ideais de prosperidade
Hoje... memórias contadas
Um rastro no verde seco
Devastação e amarelão
Mas, ainda há esperança pra esta nação
Que ainda enxerga as estrelas
E pela fresta do teto cor de palha
Busca apenas os pés firmes neste chão!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Larissa Reggiani Galbardi


Cafeara/PR

Eus e o Relógio do Mundo

A mecanicidade do mundo me engoliu, rainha bárbara de lugar algum,


tenho que lutar toda manhã para não estrangeira para sempre em
ser digerida, mas nem sempre consigo qualquer lugar que se atreve a
me livrar do ácido corrosivo do Saber. conquistar.
Acordo, durmo, acordo, realizo tarefas Em meus pesadelos me vejo
meio a esmo. Isolo-me com falso como uma antiga guerreira feroz!
despropósito, me isolo e tento escapar Com a armadura reluzente banhada
do fardo tóxico do conhecimento. em sangue! Uma antiga guerreira
Quantas vidas terei de viver antes de com fome de guerra! Acordo
alcançar a mera possibilidade de ser fiel tremendo pálida, lembrando o odor
a mim mesma? Terei tempo de descobrir de morte e de carne dilacerada,
meu verdadeiro eu? Terei mesmo, acordo com medo de mim e da sede
encapsulado em meu ser, um único eu? de sengue que posso sentir
Tem dias que me sinto como a latejando em cantos obscuros de
união disforme de mil artistas meu âmago...
torturadas, como um monstro antigo ou Às vezes me sinto como uma velha
uma escultura moderna, que espirra prostituta histórica... Velha e
emoções cruas nas tintas que são nada sábia... Velha e Cínica... Velha o
menos que sangue vermelho vívido suficiente para ver, saber,
tenaz tóxico. Outros dias me sinto como conhecer... Uma velha prostituta
a soma de todas as mediocridades e histórica cansada dos caminhos dos
falhas, de cada artista que se suja com homens... Cansada e cheia de ódio
a verde vileza de um papel vazio e que da antiga hipocrisia que dura e
se venderia por muito menos que ouro! perdura, meu Deus! Até quando?
Tenho um sonho recorrente com Cheia de ódio... Asco... Rancor...
cabelos de fogo em tranças gloriosas e Desse mundo vil em que assassinos
sardas por todo corpo e uma coroa ficam soltos e recebem mais
majestosa e pesada, tenho um sonho compaixão do que pessoas como
recorrente de uma rainha bárbara de ela!
longos vestidos e peles de lobo que Poderia descrever tantas outras que
reina com generosidade e pulso firme e sinto em mim, mas de que adianta?
que tem má fama na antiga Grécia. Uma A mecanicidade do mundo me

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

engoliu e tenha estado tão cansada, digerida, talvez... Por que eu seria
para quê tentar ser verdadeira ao meu diferente? Todos os outros foram
eu? Para quê imaginar se existe mesmo absorvidos pelo relógio vil da
um único eu? Por que Lutar? Talvez eu passividade? Por que seríamos
consiga não pensar se for digerida, diferentes? Questiono-me tentando
talvez eu consiga dormir tranquila se for me encaixar nas engrenagens, mas
digerida, talvez eu alcance a paz sem conseguir ficar parada por
medíocre de quem não percebe se eu for tempo suficiente para não pensar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Laura Rocha
Portugal

Mercurocromo

Quando era criança, achava que os adultos eram gigantes. Não por serem maiores em
tamanho e corpo, mas porque facilmente se tornavam personagens de outra realidade:
gigantes!
Gigantes a saltar da página dos livros. Mesmo aqueles que não leria nas folgas da infância.
Quando era criança, era fé absoluta e sabida que o 'estrangeiro', não existia ainda o
conceito de mundo, o ‘estrangeiro’ começava ao cimo das escadas da rua a que
chamávamos de nossa.
A noção de espaço era medida pela palma das nossas mãos, fosse através da translúcida
carapaça de um caracol outrora curioso, ou através das antenas de uma formiga que fugisse
do sol.
Desdobrávamos as esquinas, soltos, livres, gritando sem pejo nem medo, sem medir o
perigo com que os berlindes, as caricas de garrafas, as fisgas, e os carrinhos de rolamentos
nos seduziam.
Ali, naquela linha ténue entre o prazer da corrida, e da dor irreversível. Os carros passavam
depressa e, se fosse hoje, estaria em contramão. Dizia-se então que a rua tinha dois
sentidos.
Fosse qual fosse o sentido da expressão. A rua dos gigantes? A rua das crianças?
Quando era criança, talvez os carros também fossem eles gigantes, sem folhas de onde
saltar, sem livros como núcleo, apenas gigantes com rodas para voar.
E saltava-se mais, com aquele perigo na tangente.
Sentia-se qualquer coisa na pele, veloz, sem nome. Seria um torpor de sentidos?
Não os da estrada, mas os nossos?
Acordávamos do torpor ao ouvir as nossas mães a gritarem das portas e janelas.
Era, afinal, hora de jantar.
Arrefecia-nos o corpo enquanto se ajeitava a franja na testa e o assento esperava o conforto
de um prato quente.
Era aí, então. Então só aí sentíamos as esfoladelas nos joelhos a arder, a pele a pedir

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

atenção, as nódoas negras nas canelas a pedirem um toque, dando dor de volta, os
arranhões nos antebraços que causavam mais comichão que a lã espessa que nos encardia
a pele. De repente, sentia-se o corpo todo. Gigante.
O castigo de ser criança era duro, afinal. Nessa súplica doce e venenosa do sangue.
Só com boa imaginação, alimentada de necessidade, se salvaria a roupa remendada vezes
sem conta e se sarariam os pesadelos de mercurocromo.

http://aparecesepuderes.blogspot.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Lauriani Kawashima
Fazenda Rio Grande/PR

Desamor

Na imensidão desse quarto escuro, ouço ao longe o seu pranto


Percebo que não me comovo, tenho os ouvidos surdos
Tudo o que aqui havia se despedaçou, seu lamento não toca mais a minha alma
Meu coração fez-se pedra, nosso amor perdeu o encanto

Das labaredas que chamejavam ondulando noites estreladas


Restaram apenas cinzas, dispersadas a esmo por ventos tempestuosos
Que sopram cruelmente levando consigo
Esses ínfimos fragmentos de uma história partilhada

Os lábios que enlevavam sem cessar o seu nome sublime de outras eras
E percorriam frenéticos e prazerosos os contornos de seu corpo
Tornaram-se repentinamente frios, agora tremulam palavras indiferentes
Ou apenas dormem sonos profanos de quimeras

Aquele elo invisível de serenos afetos construídos em tempos deleitosos


Repentinamente se partiu, sob o peso dos dissabores e ressentimentos
Inevitável cisura que fez nossas trajetórias desencontradas
Trazendo o desalentado e perdido vagar por caminhos sinuosos

Daquele amor que tivemos um dia e hoje se desfaz


Sobraram apenas sutis lembranças de instantes de cumplicidade e desejo intenso
Vivências áureas que se transformaram em solidão, vazio e silêncio
À espera que a terra se abra e sepulte esse sentimento que agora jaz

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Leandro Emanuel Pereira


Matosinhos, Portugal

Fausto e insídia
Que falsa nobreza; Nas nossas ciladas;
Infeta a nossa mente; Chegar a ser necessária a lupa;
Numa constância pródiga de dureza; Para enxergarmos as enseadas...
Culpa nossa insolente...
O denominador comum do humano;
Necessidade vulcânica; Nasce da diferença que o caracteriza;
De gritarmos as nossas conquistas; Incide na constituição genética do seu
Numa ânsia titânica; tutano;
Menos os fracassos e as tristezas Paisagem mental que assim a dor
verídicas... ameniza...

Que inutilidade; Para o cosmos;


Esta confusão conceptual; Somos irrisórios;
Entre felicidade e futilidade; Para a terra, plenos;
Normativas do mundo real… De encanto mas simplórios...

Sobrevivemos num carrossel; Pois da nossa maior força;


Com a autoestima flutuante; A intelectualidade;
Mordemos uma montanha de fel; Taciturnamente surge e faz mossa;
Nesta saga incessante... O sentido de inferioridade…
E assim caímos em catadupa;

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Lenasantos

Passagem bloqueada

Era estudante do Ensino secundário, estacionado. Apressou-se e protegeu-


vez por outra saía de casa para fazer se das vistas paternas.
pesquisas na biblioteca escolar. Tinha Precisava seguir, mas corria o
permissão dos pais apenas para, no risco de ser descoberta. Observava à
horário, oposto ir e voltar à escola. espreita, o pai continuava lá, muito à
Dessa vez foi tudo diferente. Saiu vontade. Enquanto ele não saísse sua
pontualmente, conforme havia passagem estaria bloqueada.
combinado. Na cabeça o plano, havia Começou a se inquietar. Dar a volta,
sido, _cuidadosamente arquitetado. Para aumentaria muito o seu percurso.
ninguém perceber, se trocaria na casa Outra solução seria descer a rua, mas
de uma colega. Ao sair, sorrateira e passaria na frente de sua casa.
desconfiada, a mãe interceptou. Achou Lembrou-se que quando estava nos
que já estava tarde para pesquisas, arredores, ele sempre comparecia em
porém acabou concordando. O local da casa, religiosamente, às quinze e
festa, era oposto ao do educandário, trinta para o café vespertino.
logo seria necessário seguir no sentido Já passava do horário, em pouco
da escola, e mais adiante dar a volta. tempo a festa começaria. Cansada de
Passaria próximo de casa, porém no ir e voltar ao vidro lateral do
sentido transversal. automóvel, tomando todo cuidado, _
Às vezes o destino joga contra os para não ser vista, percebeu que
planos. Após dar a volta e se aproximar havia um espaço entre a cabine e a
do cruzamento das ruas, precisamente carroceria, onde era possível
na esquina, onde obrigatoriamente teria acompanhar os movimentos dos
que passar, avistou o pai conversando senhores sem ser notada. Sentou na
com os amigos.Assustada, tentou se borda da calçada, o veículo projetava
esconder, mas a rua estava deserta, uma sombra sobre o espaço,
também não conhecia ninguém por ali. deixando a espera mais confortável.
Ficou preocupada, temendo ser De onde estava, via o pai,
descoberta. De repente a alguns metros conversando, gesticulando, e os
de distância viu um caminhão outros companheiros gargalhando.
Com o avançar da hora, começou a

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

ficar aflita. A festa já estava rolando, inferiores dos folgados cavalheiros e


precisava regressar antes das dezoito assim acompanhar suas ações.
horas. Já se aproximava o horário da Enquanto torcia, fazia promessa e
mãe ir à padaria. Precisava ficar atenta, cruzava os dedos para o pai ir para
também, ao surgimento dela. casa, viu umas pernas conhecidas,
De repente, viu os amigos se familiares, subindo a avenida no
deslocando do seu ponto de visão, sentido da padaria. Parecia
sentiu um certo alívio, pois, finalmente, proposital, mas poderia apostar que
o pai procuraria a direção de casa. os pais não desconfiavam de nada,
Ergueu-se do chão, precisava dar a volta acreditavam fervorosamente que a
no caminhão, pois ele passaria ao seu filha estivesse no colégio cumprindo
lado. Ao dirigir o olhar para acompanhar seus deveres de boa aluna. Parecia
o pai, percebeu que seguia com os intuição de pai superprotetor. Apesar
amigos e parou na casa de um deles, do avançar da hora, desistir não
precisamente, onde todas as tardes estava no vocabulário.
acontecia um jogo de dominó. Sentiu o Enquanto isso, assistia na tela do
corpo tremular - se ele fosse jogar. Seu horizonte - o encontro das pernas. A
esforço iria pelo ralo. Felizmente ele só mãe voltando da padaria. Suspirou!
ficou secando. Sentiu os músculos se descontraírem.
O sol já declinava no Oeste, a festa Enquanto acompanhava os quatro
deveria estar no auge e ela ali travada. pés, marchando sincronizados,
Para acompanhar o movimento, precisou romântica buscando o caminho do lar.
se deslocar para a esquerda, o ângulo Subitamente, surgiu um homem
de visão tinha mudado, e já não era branco, gordo, barbicha
possível acompanhar a ida da mãe à esbranquiçada, aproximou-se do
padaria. Se caminhasse alguns passos, caminhão, deu partida e desapareceu
poderia ser descoberta. na avenida. Foi tudo tão rápido que
não houve tempo de se proteger.
Era inacreditável, mas estava na
iminência de perder a festa. Resolveu Em choque, ver a partida daquele
tentar acompanhar os movimentos do caminhão, como a queda de uma
pai, olhando por baixo da traseira do cortina no teatro que, ao romper,
caminhão. De lá era possível se transforma a beleza do espetáculo em
esconder da mãe, ver os membros comédia.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Liécifran Borges Martins


Cariacica/ES

As quatro estações de amor


Amor eu sou um amor quente, amor.
Como as quatro estações de amor.
No verão eu entro em chama.
No inverno estou toda fria.

E assim, vai indo o nosso amor.


Na primavera eu floresço toda.
Derramo flores pela trilha de amor.
E poetizo mil versos de flor.

No outono eu caio atoa.


Como as folhas do pé de maçã.
Maçã de amor, meu amor.
São quatro estações de amor.

Vem florir na primavera.


Transbordar no verão.
E dançar no outono.
E dizer eu te amo, amor.

Página Instagram: /liecifranborgesmartins

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Lizédar Baptista
Anápolis/GO

Mariposa

As asas metálicas se movem


As patinhas
Tocam o vidro
Quer sair e quer voar

A bicha não vê que a janela está frechada


E é assim que vai ficar
Acha que vai sair e vai entrar
Na hora que quiser
Até parece que minha casa é bar

E caso aqui queira morar


Que minhas regras venha seguir
E o aluguel ajudar a pagar
Porque artrópode vagabundo
É uma coisa que não vou sustentar
Não é porque é inseto
Que não vai as regras da casa respeitar

Veja bem, dona Mariposa


Na linha
Vai ter que andar

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Lucas Terra Villar


Itapetininga/SP

O Véu
(As Três Faces De Um Dia)

Todos os dias, alguém interrompe a sabatina e pensa:


“Um dia...”

Todos os dias, as espreguiçadas das expectativas, traem o véu


Das poeiras em suas Ilíadas

A todo minuto, alguém vive um dia, em que a esperança de um dia


É o único chão
De uma sala vazia

A vida as vezes nos vem na avenida mas


Na corrida contra nos mesmos nos atropelamos
E as nuvens riem
Dos dilemas racionais de nossas vidas

Todos os dias
Alguém chega ao fim da sua vida
Ainda se perguntando
“Como seria?”

Com os olhos inchados dizemos “bom dia”


Mas, estatisticamente, quase sempre
Isso é uma mentira.

II

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

O estampido do trinco ressoa

Outro humano triste (,)

O ontem do sol nos contempla contemplando-o

na odisseia da fuligem (.)

Dentro de vidros marejados o amanhã cruza seus dados em nossos olhos fitados

No hoje que fugiste (,)

À noite, os leviatãs acendem as tevês que calam os ossos moídos, e

O coração grita (:)

Na madrugada que não durmo, o grilo ressoa sua cozinha enquanto a cigarra me
apita

“Eu também já fui assim...

...Um dia (...)

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Luís Amorim
Oeiras, Portugal

A rapariga dos solares olhos

Muito imaginava ela como forma de ul- lhe falara, a metros poucos de si,
trapassar realidade diversa e que tanto mas perceptível ao ponto de conferir
era dispersa, mesmo perante ocasional solares imagens nos olhos de inegá-
conversa. Mas dessa vez, não havia vel atenção pelo barco e sua única
qualquer construção de figuras por ce- ocupante. No entanto, tão depressa
nários irreais, antes uma factual presen- como apareceu, na enorme curiosida-
ça sua em barco, lentamente remando de lhe pareceu desaparecer, mas só
no calmo rio, envolto com árvores de até chegada a um pequeno lago,
morangos e outras de vistosas tangeri- onde suspensa ponte de madeira,
nas, nas margens ali bem próximas. O unia duas imponentes fontes, bem
céu era cor de alperce e o horizonte pa- maiores do que caminho visível, cum-
recia sorrir no seu doce sumo, vislum- primentando ambas. E para espanto
brando como flores e plantas mudavam da jovem visitante, intensos acenos
de tonalidade, amarelo para verde e de- vinham de lados todos na sua admi-
pois até já se mostravam como azuis ou ração, apesar de somente dois serem
talvez um roxo aproximado. Alguém preenchidos em multidão de gente
chamou e intuição dizia-lhe estar nada apresentando coloridas gravatas, lar-
distante, apesar de não a ver, voz femi- gos colares, adornos brilhantes, péro-
nina que a fez responder algo de recor- las dos mares, esmeraldas desafian-
dação vaga, no instante que recuperou tes e espantados diamantes. Isso
da onda lá pelo fundo da paisagem, tudo, à volta de pescoços, deixando
crescendo ligeiramente apenas por bre- completar apreciação em como res-
ves instantes. Sentia os passarinhos tantes corpos tinham semelhanças
cantando à volta da sua imaginativa com peças de jogar dominó ou xa-
mente quando viu a rapariga que antes drez, para no lado outro de fonte, en-

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

volvidos nas bijuterias idênticas, esta- dar aproximação para levar jovem cu-
rem cartas de baralhos, por certo sua riosa. A rapariga dos solares olhos
íntegra contagem. O percurso de barco sorriu e deixou um rasto de luminoso
seguiu e avistando-se terra nada distan- raio, como se tivesse sido projectada
te, as flores quase cresciam a cada se- dali para distante céu, alperce como
gundo até atingirem altos metros que antes e com horizonte ainda sorrindo
não sabia quantificar com devida preci- no anterior visto tom de sumo, quan-
são. Havia balões voando na urgente do lhe falou a tal misteriosa persona-
pressa que os fazia desaparecer no visto gem. O barco via árvores de moran-
instantaneamente, levando gente de tal- gos e tangerinas, perante flores e
vez duvidosa certeza, por consideração plantas, reflectindo solares manchas
hipotética, mais peças ou eventuais car- nas constantes mudanças de cor,
tas de jogar. Alguns circulavam em lenti- lembrando a rapariga daqueles olhos
dão maior, vazios sem opção pensada similares em imagem que ainda hoje
diferente, no intuir de que estariam a perdura na sua imaginativa vida.

https://www.facebook.com/luisamorimeditions

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Madô Martins
Santos/SP

A primeira impressão

Consultório médico, sala de espera. Já aguardava há certo tempo, quando


chegam mãe e filha. A primeira, um tanto pernóstica e a menina, sem olhar
ninguém. Sentam-se, e cada uma mergulha os olhos no próprio celular. A garota
tenta mostrar algo que descobriu na tela, mas a mãe está mais interessada em
ajeitar os cabelos no self. Pergunta se ainda vai demorar para serem atendidas e
recebe o aviso que não entrará na consulta, o que piorou minha primeira
impressão sobre a relação de ambas. Implico com a menina que usa a máscara
no pescoço e atrapalha a passagem com as pernas esticadas e o longo guarda-
chuva. Implico com a adulta e sua frieza.
A pequena se decepciona por ser deixada para trás. Quando a mãe é chamada
pelo doutor, me diz qualquer coisa sorrindo, mas fala baixo e não consigo
entender. Estamos uma de frente para a outra, então, vou para seu sofá, para
conversarmos.
Quebra-se o gelo. Ela me conta que não está acostumada a ficar só, e mostra
desconforto. Tento acalmá-la, sugerindo que logo a mãe estará de volta. Está
preocupada com a hora de ir para a escola. Ainda precisa almoçar e vestir o
uniforme, talvez não dê tempo.
Onde você estuda, perguntei? E ela aponta para fora: aqui perto. Contei que fiz
todos os ciclos anteriores à faculdade num mesmo colégio. Ela revela que ano
que vem vai para a terceira série e tem 8 para 9 anos. Parece mais, afirmo (com
essa idade, as mulheres não se importam de parecer mais velhas...). “Todo
mundo acha isso”, diz mantendo o sorriso. “Meu aniversário é no fim do mês”.
É minha vez de contar que, em outubro, também faço anos, e confidencio a
idade. “Nossa, parece bem menos”, ela considera com jeito sincero, apesar de

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

meu cabelo branco. “Minha avó tem 45 anos e minha mãe, 29”. Penso, mas não
falo, que poderia ser mãe, avó e bisavó das três!...
A bateria do celular dela estava acabando, e aconselhei a pedir o wi-fi do
consultório, o que acatou agradecida. Deixou cair o copo de papel onde bebera
água e indiquei o cesto de lixo, para onde se dirigiu em seguida. Já éramos
amigas e a conversa se estendeu até a mãe reaparecer no corredor. “Está vendo,
vai dar tempo de você almoçar e se trocar”, ponderei.
“Por que a demora, mãe?”. “É assim mesmo, o doutor precisou analisar os
exames e me examinar de novo”. Vão embora na mesma ordem da chegada: a
mãe na frente e a menina logo atrás. Constato como a pequena conseguiu
apagar a má impressão inicial com sua inocência sorridente. E como as
aparências enganam...

www.rubem.wordpress.com

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Marcel Luiz
Contagem/MG

3 bichos da seda
I
bicho da seda,
inseto de giz branco.
amor tecido

II
fio a fio
primavera eterna:
bicho da seda

III
bicho da seda:
outrora fio d’ouro
estampa floral

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Marcos Antonio Campos


Natal/RN

A Arte de Amar

O céu, uma tela gris,


Onde eu contemplo o Olho do Tempo
Como se fosse um giz
Transformando no momento stratus em cumulonimbus
Dali surgem figuras bizarras, oníricas: Miró, Chirico e Gala,
Que a, Persistência da Memória e o Sono deixaram-me confuso,
Mas juro que vi Dali
O Grande Masturbador e o Relógio Fundido.
No momento mágico, indefinido.
Aparece no meu caminho o Cubismo e seu realismo
Olho para o céu, nos últimos goles de uma taça de vinho
E pego meu pincel.
Esfera, cilindro e cone, vindos não sei de onde
O minimalismo de uma mulher
Podem ser sombra e luz: gelo e fogo. Impressionismo meu?
A figura não tem contorno nítido.
A imagem não tem visual definido. Expressionismo meu?
Quero polinizar tua flor, quero ser teu beija-flor.
As cores fortes do Foguismo
─ O que estás admirando
É mesmo uma flor muito especial, ela sensual nenúfar.
─ O desejo que se vê em mim é amoral.
É o fruto da criação; Abapuru.
Quero a Cavalgada das Valquírias
Quero me integrar aos seus mexidos. Quero a Dança em Bougival

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Quero ser o Munch do seu grito. Quero a Noite Estrelada.


Eu Manet me declaro. Ela aceita e me dá o Beijo de Klimt
E mostramos toda nossa arte, como em nu de Cezzane
Com o sentimento de Modigliani
─ Ela: quero seu Caravaggio, seu Picasso.
─ A musa do meu tesão, o gosto com que pecava
O gosto com que pegava, o meu pincel
Fez do rosto uma tela e como numa aquarela
Pintou o meu prazer; o Conde Orgaz.
Khalo, beijo seu Boccaccio e digo Olympia!
Eu quero ser seu Carregador de Flores
Eu quero Botticelli, minha musa.
Eu quero O baile do Moulin de la Galette
Quero que sejas minha Moça com o Brinco de Pérola
Quero Botero, minha diva. Quero dar-te o Anel dos Nibelungus
Quero Da Vinci, natureza morta.
Quero o renascimento todo dia,
Para ter a alegria, de poder pintar de novo.

Instagram: @,marcosantoniocampos89

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Maria Anete Veneski Campos


Florianópólis/SC

Hoje

Eu sei que viverei o dia de hoje plenamente.


Tão bom a vida assim, sem cansar das belezas que existem ao
nosso redor.
Ou quem sabe um dia
serei apenas mais uma pessoa
que vive,
E um dia morrerá.
Todos um dia morreremos, mas eu não morrerei hoje
Viverei.
Hoje sou eu quem está contigo
Sou menino sapeca
Que corre, pula
Um ser humano feliz apenas. Aprendendo de tudo um pouco
Como se fosse viver para sempre. Vivo intensamente cada
momento
Hoje
Como eu fosse morrer amanhã.
Apresso-me em estar bem com tudo o que a existência me oferece,
por si só, a vida de
Hoje.
Apressa-te a viver bem e pense que cada dia é uma vida inteira que

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

se vive.
Hoje sei amar
Sei de mim e de você
Sobre tudo que nós vivemos
Desejando ser apenas um.
Hoje quero viver este meu dia
Viver um mês
E passarão os anos
E quem sabe uma eternidade.
Hoje.
Sou uma pessoa feliz hoje,
Pois amo muito minha vida.
Dela sou um aprendiz como qualquer um que passa por sua
estrada.
Hoje buscarei os caminhos que ainda não conheço, que ainda não
decorei.
Buscando a cada dia me tornar uma pessoa melhor amanhã e
Hoje.

@anete2112

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Maria Aparecida de Lima Zaganini


Iepê /SP

Silêncio

Eu já não canto,
só fico, no entanto,
olhando com espanto
a vida passar.

Sonhando com o dia


que a voz sairá
para feliz eu poder cantar.

Já não arrisco,
pois, corro o risco
de balbuciar.

A dor é tamanha
que sai das entranhas
quando eu desejo cantar.

Em meu desencanto
seco o meu pranto
para nas lágrimas
não me afogar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Maria Carolina Fernandes Oliveira


Pouso Alegre/MG

Ciclo anual da consciência burguesa

O grito dos fogos no céu de janeiro.


No mar, as flores, as sete ondas
e os descartáveis que escorregam das mãos.
Domingo, confessionário da igreja:
sete pais-nossos, sinal da cruz.
Sacrifício de quaresma
que não tolhe carnaval.
Carnaval da burguesia
em terra nordestina.
Bacalhau de cada Páscoa,
alcatra no congelador.
Dia das mães,
perdão em frasco de perfume.
Pisca-pisca na avenida principal:
passa pelo pedinte no sinal
como passa o ano inteiro,
com o mesmo hálito que responde não ter moedas
como diz o ano inteiro,
compra a vaga do filho na faculdade
apoia intervenção militar na comunidade
e pra lá segue com sacola enorme de Natal:
presentes numa mão, câmera noutra
registro cirúrgico nas redes sociais.
Sono tranquilo
Brinde da virada
No chão a garrafa vazia.
Abraça de olhos abertos
os fogos que já estalam.
“Ano de gratidão!”

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Maria Isabelle de Freitas Lima


Brasília/DF

Herança
Quando essa formosa terra
Cobrir meu pálido rosto
Não serei capaz de sentir mais nada
Nem ódio, nem dor, nem desgosto

Não escreverei mais sobre a vida


Importará se guardei amores
E das coisas que cultivei
Em quantas delas eu falei das flores

Não contemplarei mais o horizonte


O mar não será meu refúgio
Não haverá sequer tormentas
Findarei minha morada no mundo

Quando essa formosa terra


Cobrir meu pálido rosto
Não saberei se o clima está frio
E nem se o céu está formoso

Das canções que canto


Das poesias que escrevo
Só restarão lembranças
Suscitadas por segredos

O mundo será o mesmo


As cores? as mesmas cores
Quando tudo que eu tiver for o fim
Importará se cultivei amores.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Maria Pia Monda


Belo Horizonte/MG

As águas do rio não choram

A floresta é um vestido, cujos tecidos O homem balança a cabeça, depois


verdes se desenrolam nas laterais como se vira e, encarando-a, percebe, no
asas frondosas. No meio, a estrada é rosto dela, a diferença que marca a
uma faixa de asfalto, um longo cinturão sucessão súbita de duas estações
escuro que aperta e sufoca a respiração opostas.
da paisagem. A consciência desesperada de que
O carro em que viajam é apenas uma nem a soma de todas as lembranças,
presilha, onde estarão presos até de todos os verões, de toda uma
chegarem ao destino. vida, seria capaz de mitigar o frio de
As mãos do homem estão agarradas ao um único inverno, não torna suas
volante, enquanto as mãos da moça palavras mais lúcidas e leves.
acariciam a urna apoiada sobre suas — É natural no sentido de que é
pernas. próprio da natureza. Da sua, da
— Quanto tempo falta? - Ela pergunta e, minha, daquela da sua mãe... É
na voz, ressoa o lamento de mil galhos próprio da natureza de todas as
quebrados. pessoas e de todas as coisas.
— Não muito. Você está cansada? — Então a natureza é cruel!
— Não estou cansada, estou triste. — Sim, é cruel. - O homem concorda
— É natural. - Ele retruca, antes de sem adicionar mais nada.
voltar a se concentrar na direção. O silêncio espalha-se pelas frases que
Distante, a linha do horizonte que marca gostariam de dizer, acolchoado pelo
o encontro entre o céu e a terra, cuja chilrear das cigarras, pelo canto dos
ilusoriedade, em outros lugares, seria pássaros, pelos sussurros do vento e
facilmente ocultada pelo perfil artificial pelos ruídos do motor, cujas
de um cenário urbano, aparece clara e mudanças mecânicas de tom sujam a
marcada. harmonia com uma cacofonia de
— Você acha mesmo? - Pergunta a interferências antrópicas.
moça, que agora está apertando a urna Quando chegam ao destino, um novo
contra o peito, com força, como se barulho cobre todos os outros.
quisesse absorvê-la, incorporá-la, torná- — Está ouvindo? É o rio. Você está
la parte de si mesma- Se é natural, por pronta?
que dói tanto?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

— Sim. - A moça responde e duas — Sim. Sua dor, nossa dor, é natural.
lágrimas escorrem de seus olhos, sem A palavra natureza deriva de natus,
fazer barulho nenhum. que significa nascido. Essa dor
Deixam o carro na beira da estrada e se nasceu do amor que nos uniu à sua
encaminham para o mato, um ao lado mãe e, como todas as coisas que
do outro. nascem, está destinada a crescer,
— Você quer que eu a leve? - Pergunta o desenvolver-se, envelhecer e morrer,
homem, indicando com um aceno de para depois renascer em outras
cabeça a urna que a moça continua formas. É o ciclo da natureza, cruel
segurando contra o peito. na morte, mas generoso na vida.
— Não, deixa comigo. — É por isso que as águas gritam e
Chegam em proximidade do rio, no fazem tanto barulho? Por que elas
ponto em que uma antiga enchente também carregam o peso da dor?
desfez o talude, reduzindo a distância — Sim, mas elas são mais fortes do
entre a margem e o leito. A água corre, que nós. Você vê, eles não choram.
impetuosa e imparável, aparentemente A moça entrega a urna ao pai,
indiferente, arrastando consigo tudo o pedindo-lhe que a abra. Então,
que encontra. juntos, em um único movimento, eles
— Nenhum homem pode banhar-se duas esvaziam o conteúdo.
vezes no mesmo rio... — a moça recita, As cinzas formam uma nuvem leve
olhando para a correnteza. que, empurrada pelo vento, cai e
O homem cinge os ombros dela, por descansa na superfície da água, para
trás, e a abraça- …pois, na segunda vez ser rapidamente engolida e varrida
o rio já não é o mesmo, nem tão pouco pela corrente.
o homem! - Ele conclui em um sussurro O homem enxuga os olhos, a filha faz
que acaricia o ouvido dela. o mesmo e depois, de mãos dada, se
— Pai, toda essa dor vai passar algum encaminham em direção ao carro.
dia? — Você tem razão. As águas do rio
— Não, filha. Mas vai mudar, vai se não choram. - Ela diz e, pela última
transformar. Vai se tornar outra coisa. vez, os dois se voltam para olhar o
— Como o rio? rio, que já não é mais o mesmo.

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Mario Gayer do Amaral


Pelotas/RS

10.000 Caracteres

Cá estou eu diante de um papel em Aí o pavor bateu. Já tinha escrito


branco tentando desvendar o mistério 1000 caracteres sem pé nem cabeça
em forma de um folhetim que precisa e cheio de clichês.
ser entregue até o final do expediente. O que poderia fazer para
A questão aqui é como encaixar o solucionar o problema? Pensei em
quebra-cabeças em poucas linhas? Qual falar das minhas peripécias no verão
palavra-chave terei que escrever pra passado ou sobre o tempo que vivi
abrir minha pedra de Rosetta? isolado em casa com meus contos
Coragem, amigo. Se o Cafu precisou protegendo-me de tudo.
passar por nove peneiras pra ser O problema é que a senhorita
jogador de futebol e chegou lá, por que Esfinge já havia rejeitado esses
não conseguiria criar um conto e fazê-lo temas.
ser publicado? 2000 caracteres se passaram e a
No entanto, havia um problema. E desgraça continua insolúvel. Justo
dos grandes. hoje foi me dar um branco que
A minha editora-chefe, a senhorita poderia ser fatal a minhas pretensões
Esfinge, era daquelas de tirar o couro da de ser um bom jornalista e um
gente. O pior é que a danada tinha uma notável escritor.
beleza estonteante e um par de pernas E pra meu azar, a própria
de dar inveja a Sharon Stone. senhorita Esfinge veio pessoalmente
Ela veio no meu lado sussurrando ver meu texto.
marotamente nos meus ouvidos: Tentei então escrever sobre a
- Decifra isso ou será demitido. Ah, história de dois irmãos treinadores,
e o texto não pode passar de 10.000 mas pelo olhar ameaçador da minha
caracteres, tá?

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chefe, família não era a palavra-chave Tentei então falar sobre o poder
do mistério. da tecnologia ser usado para o mal e
3000 caracteres já se passaram. Já até criei o maléfico Dr. Stephenson
estava vendo no horizonte o fim do que queria dominar o mundo usando
sonho de ser um brilhante escritor com uma máquina para criar uma
a porta da rua já a postos pra receber tempestade magnética capaz de
um novo fracassado. deixar todos sem Internet.
E a danada da Esfinge estava Mais uma vez a senhorita Esfinge
sentada em uma cadeira cruzando as rejeitou o tema devido aos clichês e o
pernas de um lado pro outro. texto voltou a estaca zero.
Então veio a ideia de um casal em Enquanto isso, todos meus
crise com o marido passando a noite colegas já tinham ido embora da
num motel com muito sexo explícito e redação e eu ali vendo o sol se pôr,
durante o dia, sendo um falso moralista os bares perto da redação ser abertos
que incitava um discurso de ódio contra e o mistério literário não ser
as mulheres. resolvido.
Óbvio que a senhorita Esfinge não 6000 caracteres e meu texto
concordou com a ideia. E 4000 segue mais perdido do que cachorro
caracteres já haviam se passado. em dia de mudança.
Minha boca ressecada me deu a Resolvi criar uma história usando
ideia de escrever sobre a água como o empoderamento feminino e um
fonte preciosa da vida. pouco de feitiçaria com três jovens e
No entanto, a Esfinge havia atraentes feiticeiras como
rejeitado meu texto piorando ainda mais protagonistas cuja missão era salvar
o meu lado. E pra cúmulo da irritação, seu chefe á beira da morte.
ela estava tomando uma garrafa d´água Resposta errada. E o problema
bem gelada e sorrindo com o mais falso seguia sem solução.
dos sorrisos. E a senhorita Esfinge mandando
Cheguei aos 5000 caracteres e nada mensagens no Whatsapp pra suas
do texto sair como ela queria. amigas dizendo que vai chegar mais
tarde ao happy hour por causa de um

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

cara que não consegue bancar o E a resposta estava na minha


Sherlock Holmes. frente o tempo todo.
Cheguei aos 7000 caracteres. Era basquete. Havia feito o conto
Estava prestes a arrancar meus cabelos de um jogador universitário que
restantes em busca da palavra-chave precisava fazer o jogo da sua vida e
para esse folhetim e o tempo já estava na final acerta a bola da vitória no
escasso. último segundo tornando-se um
Tentei criar um conto sobre um futuro astro do basquete.
roqueiro que andava pelas ruas da Entreguei o texto a senhorita
cidade atraindo criminosos com sua Esfinge e fiquei tenso a espera de sua
música para atirá-los ao mar igual ao resposta. Quando vi o sorriso dela ao
flautista de Hamelin, mas a danada da terminar de lê-lo, percebi que havia
Esfinge não aceitou o tema e só tinha feito um bom texto.
apenas 15 minutos pra resolver essa - Impressionante, você resolveu
coisa. o mistério deste texto. Pelo que sei,
8000. Tentei então falar sobre um ninguém escreveu sobre basquete até
andarilho que percorria pelas estradas agora. Posso saber como conseguiu
usando suas próprias lembranças, mas isso?
viagem não era a palavra certa e já via - Elementar, minha cara Esfinge.
a cara de satisfação da senhorita Esfinge O segredo é a originalidade. Agora
em me mandar pra rua e a tristeza e entendo porquê nunca conseguia
perplexidade dos colegas que saberiam fazer um bom texto. É que me
o motivo bem depois. preocupava em ser igual aos outros
9000 caracteres haviam se passado colegas da redação sem ser eu
e era hora de arriscar tudo. Escrever mesmo. Quando resolvi tentar algo
algo que ninguém havia tentado antes. inovador, o texto fluiu e esse enigma
Mas tinha apenas cinco minutos e estava foi decifrado.
tão desesperado igual a um time que Assim que terminei de falar, a
estava sendo rebaixado com todos os senhorita Esfinge pegou meu texto e
resultados paralelos a seu favor, e nem foi-se embora editá-lo para a
conseguindo marcar o golzinho salvador.

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publicação da revista literária de estava passando Chicago Bulls x


amanhã. Milwaukee Bucks.
Saí feliz da redação e fui direto ao Era hora de comemorar.
bar próximo dali pedindo a melhor O mistério dos 10.000 caracteres
cerveja e um suculento cachorro- estava resolvido e o caminho havia
quente. sido aberto para realizar um sonho
Fiquei ali assistindo a tevê acalentado desde pequeno.
dependurada na parede do bar que A de ser um escritor de verdade.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

May Cass
Teresina/PI

Pra você lembrar de mim

Foi como em um dia desses em que o sol queimava a retina e eu não te tinha
mais entre meus dedos. O suor que banhava meu corpo, me refrescava, a grosso
modo. Abafada e fatigada, a dança do cansaço se fortuiu meu corpo: a sede me
tomou por inteiro, o sangue nos olhos ardiam como fogo, a temperatura já me
inflava em um qualquer simples toque... é... eu não te tinha mais por aqui. A
passear meus olhos no sol, aquela luz dourada do por do sol, me fazia estar
distante de ti, fisicamente, mas de alma para alma, meus sentidos eram todos
voltados para ti: as inúmeras saudades tinham gosto de sabor de novidade,
tinham a alegria do seu humor espontâneo, tinha o charme provocativo de
qualquer convite teu ao meu lado, tinha a fragrância exata do teu perfume, tinha
também o gosto do teu beijo. Ainda hoje me recordo. A peleja contigo era fácil.
Não era tão pesado. Não era tão distante de mim mesma. Contigo, eu me era
entendível, audível, compreendida. Minha solidão havia partido sem deixar
recado de volta. Contigo, eu era eu mesma. Pude ser eu mesma. E agora que se
foi, me pergunto: quem ainda sou? O sol atravessa minha pupila. O astigmatismo
que agora adquiri, me faz fechar os olhos. Até nesse movimento me lembro de
você. Eu os fecho e me encontro secretamente contigo e te eternizo (em minha
escrita).

@mayaracass
https://www.instagram.com/mayaracass/?hl=pt-br

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Mestre Tinga das Gerais


Corinto/MG

Horas Mortas
Fim de tarde, o sol querendo descansar, a revoada sagrada da passarada, o
ensaio da noite para entrar em cena, as estrelas bailando no firmamento e a
prosa solta na Venda do Seu Zezé.
Já estavam ali há horas e de tudo ou quase tudo já haviam falado. Do plantio
que estava uma maravilha e até do caudaloso Córrego da Saracura que estava
dando muito peixe e era a caixa d’água da região.
O Zé Teixeira com a viola no peito, ponteando baixinho para escutar e o Buda
Borges tirado a raizeiro, falando das plantas do cerrado e também dos peixes que
pegava e do tamanho, dá pra entender que ele exagerava, pois, era o vantageiro
da região - como falavam na corruptela. O Mandruvachá num cantinho
assuntando a prosa, pois, já havia vendido os seus queijos e estava ali para um
breve descanso. Sem falar no Silvalino que contava da criação de frangos, gansos
e galos índios, que ele cria com muito amor.
De repente o Silvalino:
– Óia gente. Eu vô imbora. Tá iscuriceno e a nôte tá iscura e eu moro
longe.
O Buda que ouvira aquilo foi logo retrucando:
—Ta cum medo Silvalino? Dêxa de froxura home! Medo de quê?
O Silvalino já de pé:
—Das zora morta sô! Num abusa não!
E saiu sertão afora num pangaré que havia comprado do Pedrosinha e este
estava velho e cansado e que o Pedrosa o vendeu à noite ao Silvalino pra não
perceber os dentes do coitado do cavalo; que só tinha um.
Logo o Zé Teixeira silenciou a viola e entrou na conversa e:
—Eu num tenho medo de nada. Sô um cabra do sertão e do pé
rachado e ando quarqué hora do dia ô da nôte. Medo pra mim é lixo.
O Vendeiro Seu Zezé debruçado no balcão logo entrou no assunto:
—Ocê, Texêra? Medroso e dos maióre, fala isso pa mode contá
vantage.
O Mandruvachá lá no cantinho caladinho, só de ouvidos na prosa, logo diz:
—Eu num abuso. Nas zoras morta tem sombração e coisa dôto
mundo em todos os lugá.
O seu Zezé que gosta de uma aposta foi logo desafiando o Zé Teixeira:

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

—Ô papudo! Já cocê é corajoso, vamo apostá 500 rialo? Aqui tá o


meu cascaio. Bota o seu aí e porva que num tem medo.
O Zé Teixeira tirou um pacote de notas do bolso e botou em cima das notas
do seu Zezé e:
—Tá aí seu rato do sertão. Vô te mostrá a minha corage. Vô trazer
uma cruz do cimetéro e num vô demorá. Vamo vê essa tale de horas
morta.
O Mandruvachá ouvindo aquilo despediu do pessoal e falou baixinho:
—Quero vê se esse parrudão num tem medo num tem medo das zora
morta. Vô iscondê atrais duma sepurtura.
O Mandruvachá montou em na mula Trifôia, que comia três folhas de capim
por dia e saiu em disparada rumo ao cemitério.
E chega o Zé Teixeira ao cemitério. Já tinha tomado umas três lambadas de
cachaça e adentra no Campo Santo e vai em direção a uma cruz. Quando ele
pega numa, uma voz:
- Esta é minha!
Apavorado ele vai até a outra e novamente a voz:
—Essa é minha, moço!
No desespero ele pegou uma das cruzes e saiu em disparada feito um
catingueiro rumo ao boteco.
Ao chegar ao boteco ele suado e cansado de tanto correr, joga a cruz em
cima do balcão e :
—Taí a Cruiz e o dono dela vem aí atrais! Tô cascano fora!
Os que estavam no boteco saíram em disparada seguindo o seu Zezé que
gritava:
—Me perdoa! Meu Deus! Nunca mais eu brinco com as zoras morta!
O Mandruvachá que vinha atrás e em risadas pegou o dinheiro e sumiu
sertão adentro. Dizem que o Seu Zezé voltou e ao sentir a falta do dinheiro:
—É! Dexô a cruis e levô nosso cobre. Deve sê pa mode comprá ôta
cruis nova.
Segundo os moradores da corruptela, o Seu Zezé ficou muitos dias sem ver
os seus ilustres fregueses.

Coisas do sertão!
Inté!

https://www.facebook.com/tingadasgerais.silva

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Mônica Monnerat
Santos/SP

Caminho de Orvalhos

Nos dias daquele tempo, a janela do meu quarto dava para o quintal, onde a
grama verdinha acolhia flores miúdas e coloridas. Bem cedo ainda, fui acordada
para iniciar meu horário escolar na parte da manhã. Ao olhar para fora, ainda
bem sonolenta, notei pela primeira vez as gotinhas de orvalho nas plantas, como
que a me desejar bom dia. Eu era muito menina, mas aquela imagem fresca e
matinal deixou-me lembranças de um período breve e feliz.
Já na adolescência, a casa de praia da infância tornou-se bem mais interessante.
A turma de jovens reunia-se praticamente o dia todo e, à noite, nós nos
sentávamos no banco que rodeava a grande árvore da praça. E como
cantávamos, e ríamos, de qualquer coisa... Nessa época, a volta para casa já era
mais tardia, não havia perigos por lá. E ao atravessar o jardim, as gotas de
orvalho brilhantes, sem falar me diziam que a vida era uma festa. E eu me sentia
serenamente feliz.
E lá estava eu nos últimos anos da Universidade, envolvida com provas e
trabalhos de enlouquecer. O café ajudava a manter-me acordada, distante que
estava da família e dos amigos de sempre, naquele pequeno pensionato,
dividindo o quarto com mais duas colegas. De madrugada, entre um café e um
cigarro, a voltinha costumeira pela frente da casa mergulhada no mais profundo
silêncio. E o orvalho sobre a grama nem me parecia tão brilhante assim, antes
refletia todo o meu cansaço e sonolência. E nesse momento, tudo o que queria
era me enfiar sob as cobertas e dormir o sono dos justos.
Nos anos de trabalho que se seguiram, as madrugadas insones como médica
plantonista não me deixaram estabelecer uma aproximação maior entre mim e a
natureza. Quantos orvalhos deixei passar sem observar-lhes o frescor e a
suavidade... Em algumas viagens de férias cheguei a observá-los de relance, mas

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

tantas coisas na cabeça diminuíam minha percepção. E não me importava mais


com isso. Eram apenas fenômenos naturais, sem quaisquer sugestões de
significados... simplesmente, orvalhos...
E verões e invernos sucederam-se entre outonos e primaveras. Filhos criados,
carreira consolidada e finalmente a parada para aproveitar a vida. A casa no
campo, a vida sossegada no interior, dormir com as galinhas, acordar com os
passarinhos. O tempo não mais me aprisionava, poderia dispor dele a meu bel-
prazer.
Nas noites enluaradas, eu e meu companheiro colocávamos as cadeiras nas
calçadas e olhávamos o céu cheio de estrelas. Nos canteiros ao redor das
árvores, as gotas de orvalho sobre as folhas traziam lembranças diversas, e com
elas me deixava embalar. Até que os primeiros bocejos nos avisavam que a hora
do sono se aproximava e guardávamos as cadeiras, para que, no dia seguinte, o
sol da manhã ainda tênue, nos mostrasse o resto de orvalho insistente, pouco a
pouco desaparecendo nas pétalas das rosas.
E assim, de orvalho em orvalho, a vida foi seguindo seu curso sem sobressaltos
nem contratempos. A chegada da netinha encheu a casa da avó de alegria e
renovação. E assim os orvalhos foram passando...
Nessas férias ela já está com quatro anos e, ao me avistar do portão dá um bom
dia sorridente. E antes que eu possa retrucar, pergunta-me rapidamente:
— Vamos fazer passeio de orvalhos?
Acho graça na sua pergunta. Bom, ela terá muito tempo para escolher entre um
orvalho e um pôr-do-sol. Pode ser que escolha os dois, ou quem sabe, nenhum...
mas, por enquanto, as gotinhas translúcidas sobre a grama bastam para atiçar
sua imaginação e usufruir da companhia já meio cansada desta anciã-avó. E
assim, pego em sua mão e juntas vamos passeando e descobrindo orvalhos pela
manhã de sol...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Natan Oliveira Ferreira


Rio de Janeiro/RJ

Noites de frio

João estava sem sono. Então, de forma de ser complacente. Complacente se


resoluta decidiu se levantar e pegar um tornou parte de sua memória ativa de
pouco de água, pra ver, se talvez longo prazo. João adora aguentar os
acalmasse essa ânsia por desejos. Digo desprazeres da vida como fina
isso, porque ele me contou que teve um redenção.
sonho cheio de desejos. Desejo de
conseguir um emprego melhor, desejo Metaforizado quer que eu seja
de morrer, desejo de viver, tudo assim... o narrador de ontem-outrora. João se
Misturado - como ele mesmo disse. chama na verdade, Gabriel. Gabriel
Depois disso, voltou a dormir. está Natan. Natan está envolto de
toda nebulosa familiar da vida. Que
Na noite seguinte, sentiu a asco sentes vossa alteza por
mesma ânsia de acordar no meio do compaixões amputadas de jardim.
desejo e ir beber um pouco d’água. Seu nome é transgênero. Finalmente,
Dessa vez, seus desejos só tinham um vou te explicar, seu burro, vê cara se
sentido: o da vida. Descendo as escadas entende o que te digo.
de sua casa de dois andares com o copo
na mão, já não mais estremecia por O que te digo serve: nada.
sentido algum. Queria era ter sucesso Nadificante és minha ética
na vida - como ele mesmo inúmeras moralizante cristã: as edificações
vezes me disse. industriais inócuas da vida. Nadifica-
me. João, mais uma vez, né?
Hoje, acompanho os passos dele
e ele me diz: tenho vontade de morte. Ao atravessar a rua, o carro
Sobe as escadas descompassadamente não lhe atropela. João chega à casa
e chega à geladeira com as mãos na mais fria estrutura arbórea
trêmulas, mas dessa vez procura algo prendente-de-ser. Morre, João de
pra comer. Tem muita fome. quê?

Quaisquer emoções lhe são Eu matei João. João era muito


válidas. Portal do inferno egóico-social. chato e nunca quis as mesmas noites
João quer de qualquer jeito continuar a de frio congelantes que tanto
não-querer e tornar-se insatisfeito a fim afligiam.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Nathalia Mageste
Mogi das Cruzes/SP

Onde estás tu, Mikael?


Tic-tac, tic-tac, despertou o relógio. Mikael, nunca demonstrara
Procurei-te em meio aos lençóis descontentamento!
amarrotados. Estaria envolvido em outros braços?
Onde estás tu, Mikael? Quanta solidão me causou.
Por que me deixaste? Devo procurar-te em cartas sem selos?
Recordo-me de seu rosto angelical, Telefonemas sem números?
E me afogo nas profundezas do desespero. Nas ruas sem endereço?
Tal insensatez sufocas minha garganta. Onde estás tu, Mikael?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Nazareth Ferrari
Taubaté/SP

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Nercy Grabellos
Rio de Janeiro/RJ

O amor é do mundo

Ouço dizer que o amor está em tudo: na natureza, no mar e nas cachoeiras,
no perfume das flores, no céu, nas estrelas e no luar...vago pelas noites a sua
procura, fico atento para preservar-me e não cair de mão em mão pelas esquinas
e nos bares. Muitas vezes achei que havia encontrado alguém que vejo em meus
sonhos e fala nos meus ouvidos coisas de amor. O tempo passa e sinto a
nostalgia e o desencanto de ver o enfado, as alegações de cansaço, falta de
tempo e descaso: quando percebo a cilada me afasto e continuo procurando o
meu amor na esperança de conseguir uma boa parceria romântica e emergir
desta melancolia e desilusão.
Ah! Se soubesses verdadeiramente amar como os pássaros no ninho, como
as flores que encantam se entrelaçando umas às outras como um arco íris. O
perfume das rosas, margaridas, hortênsias e azaleias lembram os mais belos
dons do espírito divino que é todo amor.
O amor na sua plenitude e não banalizado, assim eu quero...desejo
encontrar uma parceria completa que sejamos um só corpo e alma. Na ânsia de
encontrá-lo evito cair nos braços de uns e outros e cometer um engano... Nesta
busca talvez venha concluir que o amor não é de ninguém: é do mundo.
Quero sair por aí sem pisar nos jardins, ferir-me com espinhos, sem sujar as
ruas, empurrar e ferir transeuntes. Prefiro ser generoso com todas as pessoas,
gentil com os animais, prefiro a paz sem dar ensejo a animosidades. O amor é a
luz do mundo!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ornélia Goecking Otoni


Contagem/MG

Era domingo de manhã


Sol escaldante.
Calor infernal.
Ele fez as malas, limpando o armário.
Resolvera ir embora, não queria mais vínculos.
Sequer um traço de amor.
Brincou com o cachorro, abriu as gaiolas e deixou os canarinhos voarem.
Era assim que queria estar, livre, com a verve pronta para ser, finalmente, leve.
Demorara entender que amor não e laço.
Queria andar na chuva, tomar banho de lua, cavalgar.
Aquele amor o prendia sem reservas.
Abriu a porta e não se demorou na soleira, também não olhou para trás. Pôs um
belo sorriso no rosto e decidiu partir. A vida agora era só ir. Só rir. Sorrir.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ovidiu-Marius Bocsa
Romênia

Mogadíscio
Explosões: Aeroporto e hospital de Lower Shabelle;
Começou uma chuva de fogo em Merca, capital da região;
O grupo militante al-Shabab fingiu um novo ataque;
Os rebeldes usavam máscaras brancas e roupas pretas.

a capital da Somália, Mogadíscio, atingida por um carro-bomba mortal;


Fora do hospital e restaurante, as árvores mantêm-se calmas;
Esses estrangeiros e meninas feridos começaram a pentear
Seus longos cabelos negros; vozes trêmulas repetem
um salmo.

Sexta-feira luta com tuberculose, malária e cólera,


Desnutrição e fome,
nesta era de abundância;
Hanseníase, tétano, esquistossomose e muito mais;
Más condições de saneamento, por causa da guerra civil.

Quarta-feira sem drogas, finalmente o desejo de Dab-Shid,


Contra a possessão dos espíritos, saltamos sobre o fogo:
Alguns ouvem os contos dos dervixes muçulmanos,
em dias cansados,
Ou poemas de Suufi Sheik, Seylici e Sheik Uweys.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Patrícia Barcelos
Goiânia/GO

Ercília
Antônia nasceu Ercília, no sertão hoje é Tocantins. E foi no final da
nordestino. Ainda na infância, viu dois década de 40 que chegaram ao lugar
irmãos sendo vendidos para que os que seria o pouso derradeiro do
outros não morressem de fome. carcará Sabino. Já naquela época,
Cearense de nascimento, mudou-se para Marabá indicava a cidade agitada e
o interior de Minas e lá, com menos de próspera que viria a ser. E Antônia
15 anos, juntou-se a Sabino, mineiro dava sinais da tristeza profunda que
avesso ao riso e que vivia entre dois poucos sabiam a causa e ninguém
ofícios: o de matador e qualquer outro jamais poderia curar. Uma ferida
que o ajudasse a sustentar a família. aberta em sua alma e cuja dor
Caboclo, quase dois metros de altura, lancinante ela disfarçava e sufocava,
Sabino não matava por dinheiro, era dia após dia. Quando ficava
sempre por vingança ou desavença. E, insuportável, Antônia buscava consolo
por um ofício ou pelo outro, vivia pelo no colo de uma garrafa de Velho
mundo. Numa época em que pobre só Barreiro, mas nunca durante as
andava a pé ou no lombo de burro, temporadas do marido em casa. Ele
ficava meses longe de casa e sem as jamais aceitaria que esposa sua
facilidades de comunicação que temos bebesse daquele jeito. Não era coisa
hoje, esses meses seguiam sem nenhum de mulher de família, qualquer que
contato com a família. A cada retorno, fosse o motivo e menos ainda se
juntava mulher e a renca de filhos e fosse segredo. Talvez agradasse seu
seguia para outro lugar mais acima no gênio ruim saber que era um dos
mapa, fugindo da polícia ou da vingança responsáveis por tanta tristeza, mas
dos inimigos que cultivava como não dava para confiar. Só depois de
ninguém. sua morte – morte matada, é claro –
Foi numa dessas mudanças que Ercília é que Antônia pode se entregar à sua
virou Antônia. Casada com Sabino, dor, seu remorso, sua culpa.
tornou-se fugitiva mesmo sem nunca ter Sentimentos que nem toda pinga do
matado nada além das galinhas que, de mundo poderia aliviar.
vez em quando, servia para os filhos. Aquele calvário começou a ser
Seguiram de Minas rumo ao Pará, não plantado ainda em Babaçulândia. Se
sem antes passarem uma temporada em depois de chegarem ao Pará as
Babaçulândia – que já foi Goiás, mas viagens de Sabino minguaram e não

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

duravam mais do que poucas semanas, pequenos. O resto era coisa de


no Tocantins suas temporadas eram romances que ela jamais leria. E
sempre longas, duravam meses, quase escolheu Inácio. Homem bom,
anos. Apesar da vida difícil para criar, religioso, trabalhador da roça e de
praticamente sozinha, três dos seis gênio manso. Entre os primeiros
filhos que viriam a ter, era uma mulher olhares disfarçados e a mudança de
vistosa, simpática e cheia de alegria e Inácio para a casa da viúva não foi
molejo, principalmente quando estava mais do que um mês. Em pouco
longe da sombra opressora do marido. tempo, ninguém mais se lembrava do
Passado mais de um ano desde a última finado e a vida seguiu seu curso, com
partida de Sabino, Ercília começou a suas dificuldades e alegrias.
acreditar que talvez ele não fosse mais Mas, depois de tanta tranquilidade,
voltar. Para alguém que não pensava ninguém poderia imaginar o desfecho
duas vezes antes de povoar a terra do devastador que aquela união
pé junto, morrer era parte do risco e ela conheceria. Inácio criava os filhos de
não se iludia quanto à expectativa de Sabino como se fossem seus, mas
vida do parceiro. Não demorou muito com uma mulher jovem, e a saúde
para amigos e vizinhos começarem a que ambos esbanjavam, não
palpitar sobre o assunto, ajudando a demorou muito para que seu primeiro
convencê-la de que o pai dos seus filhos rebento chegasse trazendo mais
já devia estar morto, por isso não dava alegria e agitação para a família toda,
as caras há tanto tempo. Uns falavam parentes e amigos. O herdeiro, na
mesmo era para agourar. Gente verdade, era herdeira. Mais uma
entediada que vivia atrás de um boato mulatinha para encher a casa e os
que trouxesse emoção e assunto para olhos de Inácio de emoção. E foi na
suas vidas anônimas e miseráveis. metade do seu tempo de resguardo
Outros falavam por encomenda, para que Ercília foi surpreendida com a
ajudar algum pretendente interessado notícia de que Sabino estava
em assumir uma viúva jovem, vistosa e voltando. Num começo de noite,
disposta para as obrigações de sala, naquela hora em que o amarelado do
quarto e cozinha. sol se deita no horizonte do cerrado,
E de tanto falarem, convenceu-se de sua as crianças já de banho tomado, a
viuvez. O luto foi breve. O amor era sopa fervendo no fogão à lenha, a
pouco, a miséria, muita e os candidatos casa de Inácio foi invadida por um
que começavam a se apresentar não amontoado de gente doida para dar a
iam esperar a vida toda. Depois de tanto notícia. “Sabino não morreu! Daqui
sofrimento, o amor deixava de ser uns quatro dias ele tá chegando!”.
critério para escolher outro Inácio ficou paralisado. Quis poupar a
companheiro. Bastava que a quisesse e mulher, mas a gritaria era impossível
pudesse sustentar mãe e três filhos

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

de ser abafada. O pânico tomou conta lavar o cabelo e vamos secar esse
de todos. Parentes, amigos, inimigos, leite. Chá de sálvia, banana e carne
curiosos... todos sabiam o que aquela de porco vão ajudar”, decretou num
notícia significava. Todos sabiam do que tom de ordem e compaixão. “O resto,
Sabino era capaz. Mas, Ercília sabia boca fechada. Quem conhece Sabino
melhor do que ninguém o demônio sabe que ele é descontrolado. Se
violento que se escondia nas entranhas desconfiar do que aconteceu, é capaz
do marido. Ele mataria todos. Inácio, de matar mulher, filhos, Inácio e
ela, as crianças e sua bebê. Não qualquer outro que queira bancar de
pouparia nem os animais. Era capaz, pombo-correio ou que ele desconfiar
até, de pôr fogo na casa e em quem se que ajudou nessa história”, completou
metesse no caminho. Veio gosto de misturando conselho e ameaça.
sangue na boca. Faltaram-lhe as pernas. A essa altura Ercília já estava aos
Seu coração congelou. Quatro dias... prantos, urros que acordaram a
talvez menos. E com todas aquelas recém-nascida e assustavam as
cabeças assustadas pensando juntas, outras crianças. Enquanto gritava a
uma voz fraca, quase um sussurro, dor de entregar a filha para o marido
saltou com a solução. Comadre Edésia levar embora, era consolada pelas
era a parteira que ajudou Ercília e boa vizinhas. Inácio juntou suas roupas, o
parte das mulheres do vilarejo a darem enxoval da filha, beijou a mulher,
à luz. virou as costas e sumiu, como um
Querida e respeitada, a mulher recitou zumbi. Não caiu uma lágrima dos
calmamente aquela que viria a ser a seus olhos. Reuniu todas as forças
única solução possível para evitar uma que tinha para conseguir fazer
tragédia maior e distribuiu afazeres para apenas o que era necessário para que
todos. Os mais dolorosos ficaram para o todas aquelas vidas fossem
casal. “Inácio, arruma tuas coisas e sai poupadas. Naquela noite ninguém
já dessa casa. Leva a criança e acha dormiu. Depois daquela noite, Ercília
alguém que possa ficar com ela. Não – ou Antônia, tanto faz... – descobriu
pode ser ninguém daqui, tem que ser de como era morrer e continuar viva. E
longe e melhor que nunca mais volte por (sobre)viveu ao lado de Sabino até
essas bandas”, determinou com enterrá-lo, muitos anos depois, sem
autoridade. “Tu, Ercília, acabou o derramar lágrima. Pois, para ele, não
resguardo. Amanhã vai levantar cedo, sobrara nenhuma.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Paulo Cezar Tórtora


Rio de Janeiro/RJ

Tua Foto

Revendo papeis velhos, um retrato


Achei numa gaveta, abandonado
E nele teu sorriso iluminado
Luzia, como um ígneo artefato.

Então eis que me assalta a dor do hiato


Da tua ausência e do feliz passado,
Antes de eu ser por outro amor trocado:
― Rasguei a tua foto, eis o fato!

Por força desta súbita ocorrência


Mergulho agora nesta incoerência
No afã de relembrar o paraíso.

Rasgar a foto, sim, foi impensado,


Pois meu castigo agora está dobrado
Ao não poder rever o teu sorriso.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Paulo Luís Ferreira


São Bernardo do Campo/SP

O Inquérito

Aquilo só podia ser brincadeira. E — Eu diria que somos agentes da


brincadeira de muito mau gosto, facção governamental. – disse como
daquelas de programa de televisão. que improvisando uma patente.
Marília até olhou pela porta, enquanto Marília procurou manter a calma,
os homens entravam; conferiu se não respirou fundo e disse nada dever a
havia alguma câmera oculta entre as justiça, menos ainda ao governo. O
folhagens da praça, ou alguma amiga homem foi descarregando seu
agachada atrás de algum carro, a corpanzil de volta ao sofá:
divertir-se por lhe pregar uma peça. Mas
os homens entraram em sua casa sem — Até acredito, é bem provável,
sequer pedir licença, e se instalaram, vasculhamos sua vida até pelo o
esparramados por seu sofá, e não avesso. Nós fazemos parte de um
demonstravam a mínima expressão de outro tipo de justiça. De uma justiça
que estavam brincando, por detrás de mais radical, vamos dizer assim, uma
suas carrancudas feições. justiça mais sublime. Este comando é
ligado diretamente ao gabinete...
— Acusada? Acusada de quê?... Mas
em primeiro lugar quem são vocês? Marília já demonstrando certa
indignação questionou:
O que, pela aparência obesa,
parecia ser o superior, levantou-se
arrumando o nó da gravata:

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

— E posso saber que justiça — Que porra de provas? São só


“sublime” é essa? ” – O homem replicou livros.
enfático: O homem de gravata sentou-se
— Sim. A justiça dos fanáticos do ao seu lado, enxugando a gorda
cistencéfalo da tartufice, minha carantonha de suor:
senhora!... Em outras palavras, contra o — São as provas que faltavam, a
comunismo! senhora é mesmo uma bruxa. E o
— E que diabo é isso de fanáticos do pior dos males, a senhora é contra os
cistencéfalo da tartufice, posso saber? que são contra, ou seja, contra os
— É o extenso da nossa gloriosa anticomunistas.
sigla, FASCISMO! Ou fascistas, como Confusa, Marília começou a
queira. pensar em outras hipóteses, um
Marília esboçou um sorriso amarelo, assalto por exemplo; esses homens
meio irônico e pensou ser uma rebelião podiam estar inventando essa história
de manicômios; ou até mesmo alguns absurda, como pretexto para
fanáticos, terrivelmente religiosos que imobilizá-la. E se agora pensavam em
ora se instalaram no governo, mas violentá-la? Era preciso negociar:
quando viu um dos indivíduos começar a — Por favor levem o que
vasculhar sua estante, ela voou com as quiserem, minha bolsa está sobre a
unhas no pescoço do insolente: mesa, e tenho algumas joias na
— Tire as mãos daí, seu filho da gaveta da cômoda, mas por Deus,
puta!... não me façam mal.

Mas o homem de gravata foi mais O outro homem já vistoriava o


ágil, apesar de todo o peso, segurou-lhe quarto:
as mãos e rapidamente à algemou. O — Uau, esta casa está infestada
outro apesar dos arranhões na garganta, de livros, duendes, bruxas, gnomos,
continuava remexendo os livros da elfos...
estante, derrubando-os e esparramando O sujeito de arranhões no
pelo chão. E num grito de espanto: pescoço voltou-se para a acusada:
— Eis!... As provas, estão aqui! – — Diante de tais evidências, tem
com dois livros nas mãos citou os títulos alguma coisa a dizer?
–, “Como as Democracias Morrem” do
esquerdismo estadunidense e as Marília que já não conseguia
“Valquírias” de Paulo Coelho. raciocinar direito, juntou o resto de
suas coisas espalhadas pelo chão e,
Marília, que fora obrigada a se encolerizada, encheu de chute as
assentar no sofá, disse meio sufocada: canelas dos inquisidores, depois caiu
no tapete revoltada, exausta. Os

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

homens friccionaram suas pernas — Não nos leve a mal, apenas


esfoladas, e ordenou o outro que obedecemos a ordens, estamos em
apressasse os preparativos para pôr fim outro regime; é justo que “Ele” queira
a missão, porque o tempo estava mostrar serviço.
ameaçando chuva, que não podiam O outro indivíduo já havia
perder mais tempo. Levantou o empilhado toda a madeira dos móveis
corpanzil, retirou um lenço ensebado do no fundo do quintal, arrumou mais
bolso e, enquanto os outros estavam um pouco e completou a pilha com os
empenhados em quebrar os móveis da livros. Amordaçou e amarrou a
casa, amordaçou Marília, até com certa condenada sobre o monte,
delicadeza. encharcou-a com querosene. E foi
pegar os fósforos na cozinha.

https://www.facebook.com/pauloluis.ferreira.10

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Paulo Vasconcellos
Capanema-Pará-Amazônia

O laço e o compasso
Vou desenhar algo, usando apenas um traço
cadenciando para não perder o passo,
ao ar livre, sentindo o mormaço
recebo as energias e depois repasso,
tramo o que for preciso para ganhar espaço,
mesmo que o meu inspirar esteja escasso,
transformo meu texto em textaço,
não esmoreço nem me rendo ao fracasso
para que ele não seja dividido em pedaço,
serei sempre gentil, porque não sou devasso,
sou criterioso, prevalente e tenho desembaraço.
Invólucro que contém as marcas do perpasso
guardado em armário de aço,
recompensa obtida através do transpasso,
dou formas ao laço
manuseando o vistoso compasso.
E sendo assim...
Faço o laço, perto o laço,
afrouxo o laço,
na minha lapela, ponho o laço,
a quem de direito, mostro o laço.Por fim...
Observo o compasso,
abro o compasso,
circulo o compasso,
em muitas atividades, uso o compasso
na certeza de novas ações, não largarei o compasso.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Pedro Diego Fidelis

Suor

Cabelo molhado no dorso

uivante,

seios bronzeados no quente das labaredas.

Em caldas borbulhantes,

sublimando os sais e as seivas.

Quando tua imagem se avulta

Em vida interminável,

Desde o magma da Terra,

Até a escuridão da lua,

Ergo-me profeta da coisa tua.

Dos mistérios ancestrais,

Em direção ao destino,

nada faltarás!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

People

Meridiano
Encontrei um amor ao sul, tropical.
Sol de verão, céu azul, mar sem fim.
Muito feliz, num passeio matinal.
Belas canções em luais de jasmim.
Tudo se acabou numa dor sem igual.

Encontrei um amor ao norte, invernal.


Derreti o gelo no calor do coração.
Implorei aos alpes uma bênção eternal.
Amei intensamente, com os olhos da razão.
Quando terminou, aprendi que era natural.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Regiane Silva
Belford Roxo/RJ

Sujeito (in)determinado

Um dia será passado


Página rabiscada
arrancada
amassada
rasgada
queimada
incinerada
cinzas ao vento
lançadas
Ao cair
Pisadas
Cuspidas, escarradas
Da minha memória
Apagada
Enfim, nada.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Regina Alonso
Santos/SP

A vida é movimento

Tudo se move. O olhar dos Claude Monet (1840-1926) é o


homens, sempre em vigília, vê o que é mais célebre dos impressionistas.
ou lhe parece. O conceito do transitório Incessante pesquisador da luz e seus
é muito útil na colocação de alguns efeitos, pintou vários motivos em
críticos de arte. Observando um trem diversas horas do dia e em várias
em viagem, os trilhos faíscam e a épocas do ano, a fim de estudar as
fumaça em rolos pelo espaço é um belo mutações coloridas do ambiente com
espetáculo. sua luminosidade.

Artífice, o crítico move palavras Figuras desmanchadas, sem


como se fossem nuvens, descobrindo contornos precisos; sombras
esse fluir que impressionou pintores, luminosas e coloridas, tal como é a
especialmente no final do século XIX, na impressão visual que nos causam, e
França. O movimento impressionista foi não escuras ou pretas, como
um divisor de águas para a pintura. representadas no passado. Nos
contrastes de luz e sombra, um
Começou com um grupo de
amarelo próximo a um violeta produz
jovens, que rompeu com regras do
uma impressão de luz e de sombra
realismo acadêmico, desinteressados de
muito mais real do que o claro-escuro
temáticas nobres ou de retratos fiéis da
tão valorizado pelos barrocos.
realidade, preferindo ver o quadro como
a obra em si mesma. Tonalidades puras e dissociadas
Contraditoriamente, foram influenciados nos quadros em pequenas pinceladas,
pelas correntes positivistas da segunda pois ao admirar a pintura, quem a
metade do século XIX, que primavam olha combina as cores, obtendo o
pela precisão e o realismo. resultado final. A mistura deixa de ser
técnica para se ótica.
Suas técnicas, porém, eram muito
mais práticas do que teóricas para obter No primeiro contato com a obra
os resultados da pintura impressionista: impressionista, em Paris-1874, o
registrar os tons dos objetos ao refletir a público e a crítica reagiram muito
luz solar num determinado momento, mal, pois se mantinham fiéis aos
pois as cores da natureza se modificam princípios acadêmicos da pintura.
constantemente conforme a incidência.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

O impressionismo na música graves, como os clarinetes e as


também provocou uma quebra de regras flautas foram introduzidos novos
e paradigmas. Maurice Ravel e Claude instrumentos, como harpas e metais,
Debussy transportaram os conceitos da que tiveram seus timbres atenuados.
pintura para a música, e em suas obras
No aqui e agora de 2022, o fluir
o cenário e a atmosfera são mais
da arte no tempo – que me parece
importantes do que o equilíbrio e a
não ter fim... nem começo – vejo
clareza musical.
uma luz no fundo do túnel. As
As harmonias, o timbre e as percepções do que me cerca levam-
combinações de acordes do período me a experimentar emoções
impressionista criavam uma espécie de desconhecidas. De um buraquinho
“borrão sonoro”. Instrumentos de num tapume a visão se amplia. Ouse
timbres alegres e agudos passaram a se quiser espiar do outro lado do
ser usados com timbres mais sombrios e muro.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Reinaldo Fernandes
Brumadinho/MG

Ela chegou e disse:


— Mô, a gente tem intimidade, não tem?
— Como assim?
— Intimidade entre nós, eu e você.
— Temos... claro que temos! (pensando: aposto que ela vai me perguntar se eu
me masturbo!)
— Você se masturba?
— Como assim, amor?
— Se masturba, assim... faz aquelas coisas, com as mãos...
— Eventualmente...
— Quanto?
— De vez em quando...
E ela com a cara mais desconsolada do mundo.
— ... quando você não quer, completa ele, pensando: agora vai me perguntar se
eu desejo outra mulher.
— E você, quando se masturba, pensa em outra mulher?
— Ahn!
— Pensa em outra mulher, pensa?
— Não, só em você.
— Deixa de ser falso.
— Tá bom, às vezes, penso.
— Em qual?
— Como assim? Em qualquer uma...
— Na Sãozinha?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

— Que Sãozinha?
— Num se faz de besta. A Sãozinha, aquela do escritório.
— A Sãozinha...é...é uma mulher bonita, tem um belo corpo...
— E a Cristina, da padaria?
— Cristina...é bonitinha...
— A Maria José?
— É...a Maria José...
— Eu sabia! Você não me ama, seu mulherengo!
E corre para o quarto, tranca-se nele e vai ler contos da Maire Claire. E desejar
os rapazes sarados da novela das oito.

https://www.facebook.com/reinaldo.13.fernandes/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Reirazinho
Mogi Guaçu/SP

A lua que se apaga

Entre a lua, o céu


Nadou no mar,
E na terra afundou
Teu brilho alunar,
O sol se queimou,
Pôs a lua a deitar,
Jazida sozinha…
Na madrugada,
A tentar sonhar.
Ao onírico pesadelo
Esta é a história dela,
Por analogia é natural
A obsessão tão vil,
Uma história tão brutal
Da lua que ele enterra.

Instagram: @ordvm.impure

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ricardo Ryo Goto


São Paulo/SP

Longe Vá Temor Servil


para o Roque que sobreviveu ao pior.

“Uma infinidade de erros têm lugar em nossa filosofia pelo hábito do


homem de se considerar um cidadão de um mundo unicamente – de um planeta
individual – em vez de ao menos ocasionalmente contemplar sua posição como
um autêntico cosmopolita – como um habitante do universo. - Um habitante do
universo - Edgar Allan Poe

2022 é o ano do segundo centenário da independência do Brasil .


Os alunos secundaristas vivem a expectativa de terem que dissertar sobre
datas comemorativas nas redações das provas vestibulares, e por isso nos
perguntam quais os temas mais prováveis e como deveriam abordá-los.
Meu colega, professor de Português recomendou aos alunos:
-De modo geral devem ser criativos, enfocando algum ângulo da questão,
não tentando abarcar todo o leque possível, de maneira inédita, coerente,
estruturando o texto de maneira lógica, prendendo a atenção do leitor do início
ao fim.
-Simples assim ?
-Sim.
-Sem erros gramaticais, certo ?
-Obviamente.
-Que tal aproveitarmos esta aula para escrever uma redação sobre o
bicentenário da Independência do Brasil ?
-Boa ideia.
Meu colega deu aos alunos 40 minutos para que escrevessem sobre o
tema.
Dos cerca de 50 alunos do curso preparatório, quase todos entregaram
suas folhas para que ele as lesse e comentasse na aula seguinte.
2 dias depois, entregou aos alunos suas redações comentadas.
-A maioria de vocês procurou enfocar nos 200 anos da independência quais
os ganhos obtidos com esse processo. Desde o ponto de vista econômico, ao
cultural, passando pelas tradições e costumes, o sentimento nacionalista, como,
nesse período, se moldou o caráter do brasileiro e da nossa nação.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

-Algumas foram bem estruturadas convencendo o leitor de suas teses com


os argumentos apresentados, sendo razoáveis e quase consensuais.
-Houve algumas que tentaram expor argumentos pouco convincentes e
portanto, pela falta de evidências, deixando a desejar no quesito de
verossimilhança.
-Se me permitem, gostaria de pedir ao J… que lesse sua redação e nos
explicasse melhor o seu texto.
J… pegou sua folha e começou:
-”Ficha de leitura: Independência ou morte.
-Autor: Dom Pedro I
-Personagens principais: Pedro de Alcântara, José Bonifácio, Maria
Leopoldina, Joaquim Gonçalves Ledo.
-Enredo: a proclamação da independência do Brasil a 7 de setembro de
1822 em relação a Portugal
-Tema: a necessidade da pluralidade das existências para resgate cármico.”
-Pelo que entendi, você assemelhou o fato histórico a uma narrativa
literária, discorrendo sobre o assunto na forma de uma ficha de leitura.
-Sim, professor.
-Tá bom, mas o que tem a ver o tema – a necessidade da pluralidade das
existências para resgate cármico – com o evento ?
-Tudo a ver.
-Pode nos explicar ?
-Durante a elaboração do texto, recebi intuições que me levaram a
estabelecer tais relações.
-Quem lhe deu essas intuições ? O Espírito Santo ? - gracejou
-Não sei. Foram ditas ao pé do ouvido.
O aluno precisaria de um bom desempenho na dissertação para passar nas
provas.
-Escute aqui, em exame algum essa redação seria aprovada – aconselhou.
J...baixou a cabeça, e quando a levantou , uma voz firme e fantasmagórica
saiu dele:
-Desculpe-me, professor, mas discordo.
Todos se assustaram com o grave tom de voz.
-Por que ?
-O escritor Ítalo Calvino declarou que "uma obra clássica é aquela que não
terminou de dizer o que tinha para dizer".
-E o que tem isso a ver ?
-Que os fatos históricos são como obras clássicas que podem ser
reinterpretadas ao longo do tempo, dizendo-nos coisas diferentes a cada
momento, mostrando a riqueza de significados que possuem. São polissêmicas.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

-Posso concordar com esse argumento, mas por que o tema da


independência seria, entre outros, aquele que você apontou ?
-Porque os personagens principais do evento são reencarnações de outros
que já haviam lutado pelo mesmo objetivo.
Ao ouvi-lo, meu colega verificou que aquilo estava indo contra suas crenças
atuais.
-Mas que evidências você tem para afirmar isso ?
-Da mesma forma que não tenho como provar que Tiradentes era a
reencarnação de um inquisidor da Igreja Católica e que deveria passar pelos
suplícios pelos quais passou, não tenho como provar que José Bonifácio era
reencarnação de um dos inconfidentes de Minas Gerais.
-Meu Deus, que afirmações mais estapafúrdias – desabafou..
-Pois é, professor, se você acreditasse em Deus da mesma forma como o
invoca agora, deveria acreditar na reencarnação como uma lei natural necessária
a evolução do espírito humano, deixando de enxergar esses argumentos como
extraordinários mas como óbvios.
-Ora, acredito nas fontes históricas oficiais que nos dizem como se passou
o episódio da nossa independência.
-Muito bem, o senhor acredita em “testemunha ocular” ?
-Mas afinal, quem é você ?
-Assim como o senhor tem por objetivo nesta vida ensinar literatura e
combater ideias progressistas para que estas possam , com sua oposição
sistemática, desenvolver-se firmemente, sou o guia protetor desse aluno, do
qual a Espiritualidade espera grandes feitos.
-Você foi testemunha dos fatos em questão ?
-Mais que isso, convivi largamente com os personagens desse drama em
suas várias existências corpóreas.
Viu-se acuado. O tal “espírito” era astuto o suficiente para inverter as
coisas e colocá-lo contra a parede.
-Se você é o “anjo da guarda” do aluno, então eu também tenho o meu ?
-Claro, e ele o está intuindo para que escute a argumentação até o fim.
-Está bem. Os fenômenos históricos ocorrem por necessidade cármica dos
seus personagens, uma vez que eles assumem compromissos ao longo de suas
reencarnações. Se não os atingem numa determinada época, voltam em outros
corpos, e mesmo não convivendo nos mesmos ambientes, a Espiritualidade os
influencia para se juntarem a fim de atingir suas metas. Dom Pedro e seus
aliados eram espíritos que em vidas anteriores já vinham batalhando pela nossa
independência. Simples assim ?

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

-Mais ou menos. Em pouco tempo você entendeu o que o Allan Kardec


levou anos pesquisando para concluir. Até parece que você é a reencarnação de
um dos companheiros de estudo do codificador do Espiritismo.
-Chega de conversa fiada. J… vou dividir sua nota por 2, pois o trabalho foi
feito em dupla – arrematou irritado.
Perguntei ao meu colega, ainda perturbado pelos acontecimentos de sua
última aula, quem era Ítalo Calvino e onde havia feito o comentário que o “guia”
dissera.
-Foi um escritor italiano que escreveu o livro “Para ler os clássicos”, onde
consta o tal comentário.
-Pois é, o J… tem se mostrado um bom aluno. De origem humilde, se
esforça para aproveitar bem as aulas, que tem assistido graças a uma bolsa de
estudos. Se o guia estiver certo, será um grande profissional. Talvez seja a
reencarnação de um dos “pais da pátria” – provoquei meu colega.
-Não tenho certeza.
-Foi por isso que você quis interromper a conversa com o guia ?
-Não, ele estava a ponto de revelar os motivos pelos quais estava eu a
desqualificar o trabalho de J….
-De qualquer forma disse ao aluno para colocar como nota de rodapé os
comentários do mentor em seu trabalho, se quisesse apresentá-lo nas provas do
vestibular.
-E por que o aconselhou ?
-Achei que o texto tinha um quê de homenagem à semana de arte de
1922- que completa 100 anos - pelo seu aspecto inovador.

“Tudo o que não invento é falso”- Manoel de Barros

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Roberto Schima
Itanhaém/SP

Chumaços de Algodão

"... Ah, no palco da ilusão


Pintei meu coração..."
(Sonhos de um palhaço, Antônio Marcos)

Os aplausos ainda ecoavam sob a lona.


No camarim, após o derradeiro espetáculo, o homem idoso fitou o espelho.
Do outro lado, o palhaço ofegante devolveu-lhe um olhar tristonho. Em
seguida, ofereceu um meio sorriso. Inclinou a cabeça de um lado; depois, do
outro. Havia empatia, compreensão e aceitação.
Vacilante, o homem apanhou o chumaço de algodão, coração de tamborim.
Umedeceu-o. Em gestos lentos, tímidos e — Por que não? — amedrontados
principiou a retirar a maquiagem em rastros cor de pele.
O branco das faces.
O amarelo ao redor dos olhos.
O vermelho do nariz e ao redor da boca.
As seis lágrimas azuis de uma tristeza mal contida.
Dentro de sua mente, o palhaço Caçarola falou baixinho:

"Ei, você. Está com medo?"

— Estou — respondeu o artista do lado de cá do espelho.

"Eu também... Eu também!"

Chumaços coloridos acumularam-se no cesto de lixo: brancos, amarelos,


vermelhos e azuis.
Caótica paleta.
Difusos arco-íris.
Sangue de palhaço.
Respiração já controlada. Coração acalmado, embora apertado. A maior
parte de Caçarola havia se diluído. Estava quase irreconhecível, exceto pelo
brilho em seus olhos ornamentados por rugas.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

"Vamos fazer um acordo?", sussurrou.

— Qual? — indagou o velho.

"Eu te ajudo e você me ajuda."

A mão interrompeu o movimento.


O algodão pairou no ar feito nuvem.
— Ajudar a quê, Caçarola? — indagou o homem, intrigado.

"A viver, meu velho. Você se apoiará em mim para caminhar. Eu me


apoiarei em você para existir."

— Será sensato? Depois de tantos anos...

"Não me deixe partir!"

Faltava apenas uma mancha de maquiagem a ser retirada.


Havia aflição no olhar úmido do palhaço, agora irreconhecível.
O homem idoso não poderia dizer que chegou a pensar, pois sua
insegurança, incerteza e temor eram idênticos. Assim, diante da aposentadoria
que o aguardava além do camarim, falou:
— Não deixarei. Aceito a sua ajuda e ajudarei no que puder.
O reflexo sorriu, melancólico.

"Sentiremos saudade do riso espontâneo das crianças junto às pessoas


grandes."

— E também do sorriso contido das crianças dentro das pessoas grandes.

"Mesmo quando nosso próprio coração não se sentia bem."

— Fazia bem ao coração ver os outros felizes — completou o idoso.


Um último chumaço de algodão desfilou no rosto encarquilhado.
O velho observou o grisalho desconhecido diante dele e, antes que fosse
oprimido pelo mundo que sobre si se desfazia, escutou a voz marota dentro de
sua mente a sorrir, rir e gargalhar:

"Vamos, vamos embora daqui... Um novo mundo nos aguarda!"

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

— Sim, Caçarola, vamos descobri-lo juntos.


Assim, o velho e o palhaço deixaram o espelho, o camarim, o picadeiro, o
circo, os outros artistas e a plateia. Despediram-se de todo um universo que, até
então, era tudo o que jamais conheceram e caminharam de mãos dadas para a
desconhecida vastidão do lado de fora.

***

NOTA DO AUTOR:
Escrito entre 16.04.2022 e 17.04.2022. Inspirado na personagem Puddles Pity
Party criada pelo talentoso artista Mike Geier, e, claro, na lembrança do alter ego
do Sr. Waldemar Seyssel, o saudoso palhaço Arrelia.

http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/search?q=roberto+schima
https://clubedeautores.com.br/books/search?where=books&what=roberto+schima
https://www.wattpad.com/user/RobertoSchima
rschima@bol.com.br

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Rodrigo Domit
Jaraguá do Sul/SC

Intragável

Ele abriu o novo tablete e colocou sobre os restos da manteiga velha que resistiam no fundo
da manteigueira, já arados pela faca de serra. Sabe-se lá há quanto tempo vinha fazendo isso.
Ela tentou comer, mas deixou a torrada no prato e o afastou sutilmente em direção ao centro
da mesa. Tentou distrair-se lendo o jornal, mas ao tentar virar as páginas sentia como se
estivesse com as pontas dos dedos oleosas, rançosas.
Quando ele levantou, já atrasado, e tentou beijá-la, o afastamento brusco, com o rosto virado
para o lado, foi inevitável. O casamento acabou, de fato, naquele instante.

http://linktr.ee/rodrigodomit

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

RodrigoSBA
Salvador/BA

Misantropia

– Ao longo da vida, percebi que a maioria das pessoas é falsa, dissimulada, interesseira,
mau-caráter, egoísta, traiçoeira, mesquinha, hipócrita, mentiro…

Toc, toc, toc!

Clac, clac! Tum! Nnnheeec…

– Olá, Pinóquio! Entre! Como vai o Gepeto? O café está quente e temos biscoitos!

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Rommel Werneck
Santo André/SP

Eunuco

Em carnes plangem, cantam breve os ossos;


Em sangue ferve a chuva dos hormônios
E forma os meus tristonhos patrimônios
O corpo, um dote em trágicos destroços!

Requerem os cabelos, matrimônios;


Os pelos, os espinhos, os caroços
Reclamam por aqueles beijos nossos,
Por vários diviníssimos demônios!

Enaltecem os homens a ciência,


A erudição e o meu conhecimento
Rejeitando que tenho a florescência...

Um dia, lastimei em choro lento,


Então me perguntaram sem clemência:
“Quer dizer que você tem sentimento?!”

2021

www.rommelwerneck.com

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Roque Aloisio Weschenfelder


Santa Rosa/RS

Corpo Vermelho

Chora a lua pela lua,


vê o menino a mãe vermelha,
foge do colo do pai
e na sarjeta da vida cai.

Chora a lua pela rua,


vê o menino o tempo saudade,
sopros do nome da mãe,
resquícios do colo do pai...

A dura lâmina afiada


no vermelho corpo da mãe,
o firme golpe do pai
no coração do amor do menino.

www.facebook.com/roquealoisio.weschenfelder

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Rosangela Maluf
Belo Horizonte/MG

Presentes que me dou ...(4) - A Feira Livre

No bairro onde moro, tudo de mais importante e necessário fica a menos de três
quarteirões do meu prédio. Sendo assim, com todo o cuidado que a situação
exige de nós, faço “de um tudo”, sem o menor receio, sem absolutamente
nenhuma neurose e com toda segurança. Não me privo de sair diariamente para
resolver uma coisinha ou outra que não pode esperar!
Descendo um quarteirão tenho, à minha disposição, uma excelente confeitaria.
Uma padaria, um açougue, um supermercado enorme, uma drogaria também
enorme. Correios e lojas variadas. No quarteirão de cima encontro um sacolão,
uma floricultura, um salão de beleza, uma pequena academia, uma lavadora de
tapetes, uma gelateria excepcional e outras tantas pequenas lojas. Dois bares,
muito conhecidos em BH (o do Salomão e o do Cabral) distantes, apenas a um
quarteirão de mim. Como se não bastasse essa localização privilegiada, nas
manhãs de quarta feira há uma feira livre, aqui bem em frente ao meu prédio.
Uma vez por semana, logo cedo, pego a sacola, procuro minha listinha, minha
máscara, as chaves, o cartão de crédito, alguns trocados e lá vou eu...

Seu Francisco não gosta de apelidos, o nome dele é Francisco mesmo, assim
como o pai e o avô. Nada de intimidades. É um senhor discreto, de pouca
conversa, de fala mansa. Organiza meticulosamente os legumes que vende. Sua
barraca apresenta tudo separadinho: batata inglesa, batata doce, inhame,
cenoura vermelha, cenoura amarela. Cada um deles numa caixa, bem
arrumadinhos. Xuxú, vagem, cebola, pimentão, tomate, igualmente bem
organizados e por aí vai. Em todos os montinhos, as plaquinhas com os preços.
Escritos com cuidado, pincel atômico, bem grosso, roxo!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Já perguntei outras vezes e entre lacônicas respostas de “sim e não” soube que
ele mesmo dirige a Kombi, arruma os caixote, coloca os preços, atende os
clientes, separa os pedidos, faz as contas, cobra e agradece. Não sorri quase
nunca, mas se lembra de agradecer. Envia seu Deus pra ficar com a gente e
espera rever-nos na próxima semana. Penso aqui com os meus botões que o Seu
Francisco possa ser Virginiano...será?

Ao lado, Seu Caneco monta sua barraca, de frutas. Sem nenhum capricho e só
com o cuidado necessário, ele separa as pencas de bananas, identificadas por
pedaços de papelão, mal recortados, mal escritos: caturra, ouro, prata, da terra,
são tomé. Maçãs se agrupam logo em seguida. Pequenas torres de gala, fuji,
verde e algumas “em promoção” – aquelas meio murchas e com pequenos
amassados. Seu Caneco fala sem parar. E canta músicas conhecidas trocando a
letra original por chamativos para suas frutas. Com ou sem rima, canta
desafinado e pergunta repetidas vezes “- o que a dona vai levar?”
Coloca no saco plástico as frutas escolhidas. Dá um nó apertado. Faz as contas
de cabeça. Se for dinheiro, é com ele; se for no cartão é com Canequinho. Seu
filho é quem toma conta das máquinas. Nunca me perguntei o porquê do apelido,
dele e do filho. Bem humorado feito o pai, menos falante, mas metido a criar
gracinhas. E o curioso disto tudo: Canequinho tira onda com o que o pai fala.
Morre de rir a ponto de enxugar as lágrimas na manga da surrada camisa do
Galo que sempre usa. Um dia, quando Seu Caneco cantar menos e sobrar um
espacinho entre as suas rimas, quem sabe terei um tempinho pra matar minha
curiosidade.
Mas o melhor da feira é a Dona Penha, Tadeu o marido, e Tequinha, a ajudante. A
barraca deles vende carne. É uma Kombi adaptada com um freezer bem grande,
suficiente para guardar os produtos em temperatura adequada. Tem carne de
panela, já cortada em pedaços, faltando só temperar e cozinhar. Tem frango
caipira, limpo, inteirinho. Tem coxa e sobre coxa, asinha, pezinhos e pescoço.
Tem coração, moela, tem filé de peito, cortado em quadradinhos para strogonoff
- tem de um tudo!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Porém, o mais interessante é que os três discutem e brigam sem parar.


Reclamam de tudo. Do sol, da chuva, do dia nublado, do calor, do frio, do vento.
E pedem a nossa anuência: - “Né não, freguesa?” Falam das notícias dos jornais,
detonam os políticos sem vergonha. Falam da pandemia, dos remédios caseiros
que já testaram e a solução que cada um tem sobre tudo. Nunca concordam em
nenhum assunto. Jamais uma trégua. Todos os dias de feira, lá estão eles
brigando entre si. Por qualquer motivo, um deles sobe o tom e os outros não
resistem. É muito divertido ver o quanto se desgastam, por nada, por tanta coisa
boba.
Dona Penha é gordinha, baixinha e tem um lenço envolvendo os cabelos sempre
presos. - Questão de higiene, ela diz com a voz rouca e estridente. Usa uma
sombra muito escura nos olhos, o que lhe faz parecer sempre muito cansada e
sonolenta. O batom é rosa forte. As unhas são enormes e pintadas de azul ou
verde ou amarelo. Mas estão sempre escondidas sob luvas de plástico
transparente, - Questão de higiene, ela diz com a voz baixa. Sobre a roupa
normal, todos quatro usam um avental branco, bem sujinho! Manchas de sangue
que respingam, mesmo com todo o cuidado que eles têm. Não é fácil manter
tudo limpo. São quatro pessoas trançando pra lá e pra cá. E discutindo,
movimentando os braços, andando de um lado pro outro no minguado espaço da
Kombi.
Tequinha, a ajudante está quase sempre no Caixa. Sim, tem um cantinho sobre o
mini balcão, feito com uma tábua mais larga e comprida. Um banco mais alto
para as máquinas operadoras dos cartões de crédito. Sobre um pires branco,
uma imagem de São Sebastião. Às vezes, se vê uma vela em um copinho, ao
lado do santo; outras vezes a ajudante se esquece e o santo fica sem luz mesmo.
Ela é atenciosa, faz tudo duas vezes; confere o troco contando em voz alta,
quando a devolução é em dinheiro. Pergunta pela família, pelos gatos e
cachorros. Adora render uma prosa, sendo às vezes interrompida para que
registre um novo pagamento. Tekinha é solteira porque acha que vida de casada
deve ser muito chata. Olha pra Penha, depois pro marido Tadeu e não sorri. O
marido fala pouco, discute muito e implica com tudo.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Seu Francisco, vou aprender com o senhor a permanecer tranquila mesmo


quando tudo ao meu redor estiver em efervescência. Serei calma para lidar com
os dias pesados. Terei discernimento e sabedoria para me calar. Não perderei a
gentileza no trato com o meu semelhante, mas não me deixarei abater pelo caos.
Serei disciplinada e organizada com os meus pensamentos, permitindo apenas
aqueles que me fizerem bem. Tratarei também de ser eficiente, buscando me
poupar de tristezas desnecessárias. Colocarei como meta me calar sempre que
possível. Buscar a paz, o equilíbrio e manter o discernimento.
Seu Caneco, tomara que essa pandemia conceda-me a graça de manter o bom
humor até o final. De rir mesmo quando as notícias forem péssimas, tristes,
matando o resto de esperança que insiste em sobreviver em nós. Que eu possa
cantar, ainda que bem baixinho, falando de amor, de saudade, de folia, de
carnaval. Serei sim, capaz de manter o sorriso, a gargalhada sempre que houver
motivos e que eu possa ter um anjo da guarda, amigo, como o seu Canequinho.
Não preciso ser tão despojada, tão desorganizada, tão “assim tá bom”’. Só de
levar a vida sem tanta seriedade, ela certamente ficará bem mais leve. Mais fácil
de ser vivida.
"Quarteto fantástico”, por favor, me mostre como não devo agir! Parar de
reclamar sem motivos e me lembrar do quanto tenho para agradecer. Que eu
resista à tentação de falar sem nada ter a dizer. Que não sinta prazer em
discordar, em polemizar, em discutir mesmo tendo razão. Pra quê ter razão? Cada
um tem sua verdade e o respeito ao próximo vem daí. Como evitar atritos
desnecessários que a nenhum lugar me levarão? Propor paz ao meu coração.
Silencio e respiro. Não serei uma peça manipulada nesse tabuleiro de xadrez em
que todos nos encontramos hoje.
Chego em casa e vou lavar os legumes. Cada coisa em seu lugar. Junto o lixo.
Descarto. Faço um cafezinho. Penso na vida, nas lições que insistimos em não
aprender. Respiro fundo. Mais um dia pela frente.
Lá vou eu…

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Roseli Ágda
Água Doce do Norte/ES

6:30 h
Eu nunca vivi um grande amor.
E nem por isso a terra parou.
Se perdi oportunidades, relógio por mim não se atrasou.
Se tentei correr atrás, o ônibus das 6:30h não esperou.

A vida continua no mesmo ritmo.


A terra faz as mesmas voltas.
Os ponteiros do relógio cumprem rigidamente seu percurso.
O motorista do ônibus continua a passar às 6:30h.

Quem se importa?
Se alguém se importa, o que fazer?
Isso é guerra sem soldado,
flecheiro sem alvo,
coração sem amor.

https://www.facebook.com/roseli.agda
https://www.instagram.com/roseliagda

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ruan Vieira
Propriá/SE

Eu não quero que minha cabeça exploda


O mundo como minha cabeça
gira sem parar
Ideias e sonhos, desejos e dúvidas
Pairam no ar
Eu não quero que minha cabeça exploda
de tanta poluição
Tanto desmatamento, tanto pensamento
Tanta confusão
É tanta coisa pra gente
Tanta coisa na mente
Estou entrando em erupção
Mas eu não sou vulcão, meu bem
Eu não sou vulcão
Não quero problemas
Boletos e contas
Mais preocupação
Não quero amores,
Promessas e mentiras
Mais desilusão
Sei que vou sofrer, amor
Mas não sou besta não!

https://www.instagram.com/libertospelapoesia/?utm_medium=copy_link

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Sérgio Soares
Simão Pereira/MG

República do Qeijo Qalho: o dia em que Prosperidade (quase)


declarou Independência

Aproveitando o feriado do 7 de ano seguido ao desfile cívico-militar


Setembro, retornei à Prosperidade (uma das marcas da minha infância
depois de alguns meses afastado (onde quando acompanha junto com o meu
aproveitei o período de Home Office pai o marchar das tropas, embaladas
para fazer cursos à distância) e fui pelos dobrados das bandas marcais).
surpreendido com a notícia de que meu De pronto, o “sabioso” ancião tratou
grande amigo, Professor Pandolfo, se de me consolar relatando mais um
convalescia após ter sido mais uma daqueles causos, que só em
vítima da Covid-19. Sim, a Câojuntivita, Prosperidade poderiam ter
como já dizia o velho Lazin, chegou à acontecido, começando assim:
Prosperidade e acometeu esse mestre - Essa história remonta ao tempo de
muito querido. meus avós, quando Prosperidade era
Chegando à sua casa, após as ainda menor do que é hoje, e
costumeiras saudações, meu letrado possuía, além do Prefeito, apenas um
amigo tratou de me tranquilizar a destacamento com quatro soldados.
respeito de seu estado de saúde, Nem Padre por aqui havia, por isso
reconfortando-me que o mal havia sido quem cuidava dos assuntos do
menor, graças às duas doses da vacina Vaticano era irmã Mercedes, uma
que havia tomado, mas que não bondosa Carmelita que batizava e
evitaram o contágio graças às realizava as exéquias no povoado.
comorbidades preexistentes, agravadas Quando havia casamento ou festa da
pela idade já avançada. E “Viva o SUS”, Padroeira, a Cúria mandava um Padre
bem lembrou o dileto gramático. da Capital só para esse fim.
Já menos apreensivo, enquanto Nessa época o Coronelato ainda era o
saboreávamos um bom café preto, Juiz e Algoz na cidade, que se dividia
passado no coador de pano, nossa prosa entre o domínio das famílias
descambou para a Política e as Fortunato e Modesto. A primeira de
atualizações da localidade. Em razão da raízes nos tempos sombrios da
data, o 7 de Setembro foi prontamente escravidão, com muitas mortes e
lembrado, enquanto tecia minhas desalento em suas costas. A outra,
lamúrias por não assistir pelo segundo abolicionista de primeira hora,

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

sempre fora mais Liberal e de há muito Quando a cidade acordou, todos


comandava a política, elegendo os foram pegos de surpresa pela
mandatários da pequena cidade, dentre novidade, e só restou ao Prefeito e
os seus. seu diminuto pelotão de soldados,
Por conta das desavenças seculares, acompanharem de longe a
houveram perdas tanto de um lado, movimentação e preparação do
quanto de outro, desferidas na ponta da Coreto da Praça, transformado-o em
faca, ou no fogo do chumbo, e assim, palanque para o discurso de posse do
Ferdinando Fortunato, o patriarca da novo mandatário da recém-criada
família àquela época, não aceitava o “República do Queijo Qualho”.
prestígio que João Modesto, médico Ao som de tiros e estampidos de
muito humano, reconhecido por todos, e foguetes, a cidade viu adentrar o
Prefeito da cidade, tinha entre os largo um Ferdinando Fortunato
munícipes – dos fazendeiros à peãozada montado em um alazão, com chapéu
todos o respeitavam e admiravam. e espada em riste, e uma cara
Embevecido pela inveja, e entorpecido Napoleônica, dando a entender a toda
pela cobiça e desejo de Poder, o cidade que quem ali estava era o
tresloucado Fortunato tramou junto aos novo Regente da Nova República,
seus um ardil para tomar a cidade das recém-criada.
mãos dos Modesto, transformando-a em Ao assumir a posição de destaque no
um estado independente – da Capital e Coreto, desandou a discursar falando
até da República – sob a égide de sua das qualidades e do compromisso dos
família, tendo como nome a “República Fortunato com a Ordem, o
do Queijo Qualho”, em uma referência Desenvolvimento, a Honestidade e os
ao lácteo produzido nas terras da valores da Família, ao contrário dos
família, de fama nacionalmente traidores da pátria, os Modesto, que
reconhecida. tinham ex-padres em sua estirpe, que
Tramóia feita, faltava definir o dia para largaram a batina para contrair
que a empreitada fosse levada a cabo, e matrimônio, mulheres descasadas
qual melhor não seria que o 7 de que passaram a viver sem marido,
Setembro, simbolizando um novo tempo além de um sem número de
para Prosperidade? Na véspera das denúncias de mau uso do erário
comemorações cívicas, ainda pela público. Só faltou chamar de Santo,
madrugada, os Fortunato pegaram a da primeira à última geração da
jagunçada, e todos os colonos das família rival.
fazendas, convencidos na base do Em meio a estoica fala do Napoleão
salame e do couro, e ocuparam a Praça Tupiniquim, eis que entra esfolegante
de Nossa Senhora do Rosário, Praça adentro, Tião Gavião, o faz
transformando o adro da Igreja em tudo da família que mal desceu do
verdadeiro campo de guerra. cavalo e foi atropelando os convivas

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para se aproximar do Coronel, enquanto que a da Política, que decide o


lhe confidenciava ao ouvido uma destino e as ações de figuras carentes
mensagem secreta e reveladora. de retidão e probidez, como os
De rubro de emoção, o agora assustado Fortunato, que é o poder do Dinheiro.
Presidente e Regente Real da República Na véspera do ato de tomada do
do Queijo Qualho, fora ficando lívido e Largo intentado pelo desatinado
empalidecido e a empáfia, de minutos Coronel, os outros Fazendeiros da
antes, fora substituída por uma fala região, em conluio, decidiram que
mascada que, de maneira cerimoniosa, não seria conveniente para os
pedia desculpas ao Prefeito João negócios de suas famílias o
Modesto e a todos os munícipes ali rompimento com a Capital e a
presentes, destacando que tudo não República, e assim mandaram através
passara de um mal entendido, e que as de Tião Gavião a seguinte mensagem
palavras desonrosas ali proferidas, ao Ex-Regente Real “se você seguir
foram colocadas no “calor do momento”. com a sua empreitada, sua Fazenda
Tão rápido quanto chegou, o não terá mais para quem vender seu
entontecido coronel e sua trupe foram- Queijo Qualho. Então, o que prefere?
se embora sem deixar nem rastro, nem Manter uma “Coroa” sobre a cabeça,
poeira, e assim a cidade de Prosperidade ou ver suas “Coroas” escorrerem
pode finalmente comemorar, com a entre seus dedos?
pompa e circunstância devidas, o Dia da Obviamente que para a posteridade a
Pátria com direito a desfile do versão que ficou guardada é a de que
destacamento militar, das crianças da tudo não passou de uma “estratégia”
escola até culminar com o Ato Cívico de tecida pelo sagaz Coronel, mas a
hasteamento da Bandeira Nacional. verdade é que o apego ao vil metal,
Intrigado com mais uma narrativa falou mais alto do que seus ataviados
fantástica de Prosperidade, não pude me e lisérgicos sonhos de poder e
conter sem perguntar se, por acaso, dominação política.
alguém descobriu o que Tião Gavião Ainda boquiaberto com toda a
havia dito de tão revelador que fez o narrativa terminei o café, me despedi
Coronel Fortunato passar de Leão Feroz, do Professor Pandolfo e tomei o
a gatinho assustado em tão pouco caminho de volta para minha casa,
tempo. mais uma vez estarrecido com a
- Meu caro e jovem amigo, respondeu o prodigalidade das histórias de
esperto Professor. Desde que o mundo é Prosperidade.
mundo, existe uma força maior até do

https://articulancia.blog/
https://sergiosoares517.wixsite.com/sergiosoares

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Sigridi Borges
São Paulo/SP

Satisfação
ao Pedro, com carinho

Confesso, não o reconheci Mas o que me marcou mesmo


num primeiro momento, nem percebi foi um abraço carinhoso
que aquele rapaz que recebi com tanto afeto
um dia, lá atrás e um simples beijo na testa...
sentou-se no lugar de aluno Nem sei se percebeu,
um menino acanhado mas o mestre sentiu
que me chamou de professora um tremendo orgulho
e hoje está ao meu lado. do discípulo
que agora também se torna mestre
A Matemática ao lado da Filosofia que segue seu caminho
sempre foi assim que me fez derramar uma lágrima
um encanto sem fim que me acompanha em dias mais
e que hoje senti na pele. alegres.

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Suramy Guedes

Soneto Diet

As palavras estão desencardidas.


Foram lavadas com água e sabão
depois de horas de molho no chão
onde restaram, por lá, esquecidas

as cores e a doçura desprendidas


do tecido que reveste a emoção.
Sobre esta, se discute: cabe ou não?
Estão bem limpas e desenxabidas

as palavras porque assim não incomodam.


Por que fogem aos modelos estéticos,
não adoçam mais a língua e se amoldam

ao gosto dos movimentos dialéticos.


As palavras, de agora, não violam
os olhos daltônicos e diabéticos.

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Tauã Lima Verdan Rangel


Mimoso do Sul/ES

Arrebatador desejo

Os toques preguiçosos se movem tão desmedidos


Entre mil beijos, abraços e confissões descabidos
Repercutem ao tato vigoroso que se move forte
Penso, por um segundo, que há universal sorte

O olfato reage ao cheiro cítrico em intensidade


Os poros gritam, reagem por tamanha saudade
Falta-me o ar, quando penso como está distante
Miragens vem à mente, cenário doce e inebriante

Ai do meu coração! Clama o coração tão desejoso


Quero teu corpo! Em um ardor forte e assombroso
Há uma aterrorizadora adrenalina a me percorrer
Da tua entorpecedora presença, eu preciso sorver

Em oníricos sonhos, sou atraído por sua presença


Há em mim sensações em uma intensa latência
Somente pertenço a ti, grita o palpitante coração
Sinto-me arrebatado em uma descomunal paixão

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Tereza Du'Zai
Itajaí/SC

Nina e Miguel: Assassinato no Cânion Paragem dos Ausentes

Imprescindível
Meu virtuoso, e muitíssimo amado, Miguel. Esta carta, ditada por mim e escrita
por minha romântica avó,
deverá ser aberta somente às 18 horas da próxima sexta-feira. Pontualmente!
O local: no Cânion Paragem dos Ausentes, onde cunhamos as iniciais de nossos
nomes.
Sobre celular? Nem pense! A regra prevalece, assim como as demais
singularidades de nosso romance.
Não ouse tentar manipular uma perita criminal desprovida dessa tecnologia
invasiva. Será o reencontro de
dois amantes à antiguidade.
....
A Carta
Meu querido e muito adorável namorado, não olhe para trás, aguarde o sinal. Eis
a primeira boa notícia:
concluí minha pesquisa de campo, e ninguém ousará me chamar de louca, antes,
e com muito orgulho, me
considerarão uma pesquisadora sutil e sagaz,
Neste momento, já o avistei enquanto caminho em sua direção. Preparei tudo
com o rigor de minha
personalidade, da qual você tanto se queixa, mas muito o tem surpreendido.
Como cheguei até aqui? Não
imagine que foi pelo acesso comum e vigiado, mas logo segui pela trilha
secundária, pouco utilizada por

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

ser mais íngreme, porém, mais seguro para uma ex-escoteira solitária em sua
excursão. Imagine você,
caminhei durante toda uma noite. Não pense em exaustão, trouxe apenas uma
mochila com dois lanches,
medicamentos emergenciais e água, além de muito entusiasmo e a certeza de
que tudo daria certo.
O espaço está fechado para visitações durante dez dias devido a previsão de
temporais. Não se preocupe!
Estou sempre muito bem equipada, inclusive para me proteger de catástrofes
naturais, não de todas,
porém, talvez de muitas. Atente para este segredo: tenho meu recanto
estratégico entre essas rochas, e
noutros ambientes de difícil acesso, perto e longe daqui - poderíamos conversar
sobre isso futuramente.
Sim, poderíamos...
Sobre família, trabalho, curso..., tomei todos os cuidados para não ser
descoberta, e esses cuidados
incluíram você, de quem mais senti falta nesta minha aventura científica. Meu
amor, você não imagina o
quanto sua obstinada namorada se esforçou para comprovar uma teoria tida
como fabulosa para muitos,
incluindo meus orientadores. Sinto ter agido de acordo ao mantê-lo alheio sobre
o assunto. Temi
desapontá-lo.
Tenho sido uma filha, uma irmã, uma funcionária, uma pesquisadora e uma
companheira amorosa,
responsável e dedicada. Assim, não me foi difícil apresentar um álibi para
justificar minha ausência.
Enfim, foram, não duvido, prolíferos cinco dias dedicados á ciência, à vida, à
morte, à natureza.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Contudo, devo antecipar: você foi o único para quem eu menti. Mas, não se
aborreça! Posso garantir que
minha mentira, ou melhor, omissão, é jurisprudente e compensadora.
Não teremos tempo para repreensões. Prometo!
Sua libidinosa, afrodisíaca, e muito apaixonada, Nina.
Miguel está eufórico, mas se esforça para seguir as instruções de Nina, não
pretende desapontá-la. Ela
surgiu em sua vida há 15 dias, 12 horas e 59 minutos, durante o velório de sua
mãe, quando todos
pensaram se tratar de uma freira desconhecida de todos, menos de sua mãe.
talvez representando alguma
das entidades beneficiadas pelas doações e serviços prestados por ela, antes de
descobrir o câncer
pancreático que a vitimou.
Sinceramente, Nina, ainda não declarada Nina, não parecia ser uma freira
comum: sua postura, seu modo
de caminhar, sua presença amistosa e intimista... Uma mulher elegante, esbelta
e distinta, assim fora
definida pelo filho enlutado, mesmo antes de ver seu rosto.
Por aguçar a curiosidade dos familiares e amigos presentes, também despertou
especulações acerca de sua
origem; parecia uma madre enlutada com seu hábito preto e seu rosto coberto
por um véu da mesma cor.
Todos a respeitaram, sequer se aproximaram para cumprimentá-la. Sua
imponência não favoreceu
qualquer possibilidade de aproximação. Sim, seu comportamento cerimonioso a
manteve distante, embora
tenha chamado a atenção dos curiosos, inclusive de Miguel, o único de quem ela
se aproximou e para
quem entregou um pequeno envelope com suas mãos enluvadas, dentro do qual
havia um lenço de cetim

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dobrado e nele apenas o endereço pitoresco do segundo encontro que seria o


início de um romance atípico
com aquela misteriosa devota da fé cristã. Foram seis dias de presença e cinco
de ausência, estes os mais
ansiosos de sua vida; aqueles os mais imprevisíveis, ou excêntricos, de sua vida.
Nina o fazia feliz e isso
era tudo o que importava para o jovem oceanógrafo de 25 anos.

Manter o caso em segredo durante os três primeiros meses fora sugestão dela,
para se conhecerem sem
possíveis intromissões negativas.
Alguns segundos se passam e ele consegue ouvir os passos lentos de sua
namorada caminhando em sua
direção. Ela usava um par de sapatos masculinos dois números maiores do que o
seu.
Miguel ouve sua voz. Que saudade! "Guarde a carta num de seus bolsos, tire
toda a roupa e jogue-as para
trás! Em menos de um minuto o rapaz estava nu e com os braços erguidos para
o alto. "Muito bem, meu
jovem. Agora se atente a natureza a sua frente! Estou me aproximando, posso
sentir o cheiro do meu amor
e ouvir sua respiração. Um, dois, três!
Miguel não gritou, sua queda foi assistida por sua algoz, nem riso, nem lágrimas.
Com os braços abertos,
girando o corpo em torno de si até cair de joelhos com os olhos voltados para o
céu, a diabólica mulher
orou como a mais fiel devota ao Divino.
Seu regresso teve início por volta das 19 horas,
As notícias sobre o suicídio do jovem oceanógrafo Miguel Córdoba ocorreram
somente quatro dias após

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

seu desaparecimento, quando o local foi reaberto para visitação, e seu corpo em
decomposição foi
descoberto por um fotógrafo argentino.
Sobre as investigações: seu celular foi periciado, mas não havia registros
suspeitos; assim como não havia
inimigos, ou pessoas com indícios suficientes para despertar o interesse da
polícia. Certamente a morte da
mãe o abalara a ponto de atentar contra a própria vida. No entanto, para um
ativista incansável em defesa
da natureza, a morte no Cânion Paragem dos Ausentes significa mais que a
interrupção prematura de uma
vida.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Thayná Vitória Alves Vasconcellos


Rio deJaneiro/SP

Intensidade

Sou intensa

intensa como um mar

Sou cheia de sentimentos e às vezes

é difícil controlar

Sou bela pra quem não tem medo de explorar e

azar de quem as maravilhas que há em mim perderá

pois não verá em outo lugar

Tenho um lado ruim e sombrio pro qual

você não gostaria de ficar

mas você escolhe qual lado verá

Sim, sou intensa e não quero só um barquinho para velejar

quero alguém para mergulhar, cuidar, cultivar e multiplicar as maravilhas que demorei
para conquistar

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vadô Cabrera
Jacareí/SP

Qero Ser Avô!

A gente cresce, amadurece e faz planos. Dentre esses planos há sonhos. Tantos
sonhos que ainda faltam alguns para serem realizados. Quando me casei, levei
meus sonhos para o novo lar que surgia e o principal deles era ter filhos. Assim,
Deus me abençoou, concedendo-me duas amadas filhas. O tempo foi passando -
voando inexorável - e elas foram se metamorfoseando: de crianças para jovens e
de adolescentes para adultas, tudo mágico, como num piscar de olhos. Estudar,
trabalhar – às vezes não nessa ordem – para serem independentes, prioridades
absolutas nessa fase da vida. As dificuldades surgem, os obstáculos são
inevitáveis, mas transponíveis e as etapas são vencidas. Para mim, que já entrei
na idade do “enta”, o tempo é cada vez mais veloz, no que para as filhas - jovens
ainda - não parece ser, sequer atroz.
E, como não podemos deixar de sonhar, pois são os sonhos que fortalecem e
prolongam a vida, faltava um para completar minha felicidade. Assim, a velha e
teimosa ansiedade aflorou, reacendendo a antiga chama, trazendo à tona aquele
desejo adormecido de ser avô. Sim, porque minha idade avança impiedosamente
e, com ela, pressinto minhas chances de conhecer meus netos, ficando cada dia
mais distante dos meus olhos carnais.
Também outra questão me preocupa: Se, com a chegada tardia dos netos, ainda
terei condições físicas ou mentais para curti-los, acompanhar de perto seus
primeiros passos; dar-lhes amor e cuidados; ensinar-lhes os valores essenciais,
que os tornarão seres humanos dignos e capazes de seguirem seus próprios
passos nesta caminhada terrena - que é a nossa continuidade - cujo legado
deixaremos.
Eu era tão obcecado em ser avô, que muitas vezes falei com Deus, rogando para
que me premiasse com essa oportunidade divina. Assim, roguei ao Pai Maior:

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— Deus, meu Senhor! Sou-lhe grato pela graça de ser pai de duas abençoadas
filhas, mas agora suplico-lhe a benção de ser avô. Elas são saudáveis e já
concluíram seus planos traçados inicialmente. Sinto que meus dias estão
esvaindo-se ao sopro da jornada terrena. É meu desejo, conhecer meus netos e
vive-los ainda na vida presente e com a saúde plena.
E Deus me respondeu:
— Calma, meu querido filho! Está tudo sob controle, seu destino já está escrito.
Falta-me, apenas escolher seus genros. Tranquilize-se que breve terás seus tão
almejados netos. Eles serão motivos de júbilo e lhe proporcionarão momentos
maravilhosos.
Após este diálogo, suspirei aliviado e esperei na vontade Dele, a única infalível.
Tempos depois os genros chegaram formando novas famílias e seus filhos
geraram, cujas luzes são meus netos.
Gratidão nosso Deus, por todos os momentos!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Valéria Barbosa
Rio de Janeiro/RJ

Dona Ivone Lara. Tiê voando.


Ouvi o cantar de um pássaro corri para o avistar,
na copa da gameleira seu canto encheu o ar.
Sorri para a luz do dia, abri o peito para o céu.
Foi com muita alegria que meus pés tocaram a terra que traz magia,
abraça as lembranças e vibra o som do tambor, sim! vem de Angola, sim senhor!
Gratidão é a palavra que fortalece a esperança para este enredo contar, cem anos de
criação do nascer ao seu viajar sendo enredo a encantar num sambódromo do peito seu
nome ouvi gritar.
O Tempo em aliança entre a poesia e a música numa bateria de vida recomeçar a criar
são 100 anos de cultura com esta dama a vibrar e o Tiê sempre a voando tecendo suas
poesias no amar.
A vida seguindo com Ivone Lara a cantar num carrossel de alegrias, tantas lembranças
de uma fã a tieta-lá sem medo da pieguice. Honrada por conhecer mulher de
imensurável valor, do social foi rainha, da saúde foi a flor e para a música popular
brasileira até samba enredo criou!

Ivone Lara é o seu nome vamos sempre nos lembrar da beleza dos seus versos
do seu jeito de cantar, meiguice na passarela, abram alas para desfilar.
Ancestral do samba, enredo da esperança que feito criança travessa seu sonho mora lá,
nas águas sagradas da vida onde a rainha é Iemanjá e cá, acarinhando sonhos seus, se
tornam meus para, eu a homenagear.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Enfermeira competente, se juntou numa equipe precursora na psiquiatria e com Dra.


Nise da Silveira a muitos foram tratar desmistificando a loucura e mostrando que a cura
na arte está a pintar.
Libertava das gaiolas o Tiê para cantar.
Maravilhosa mulher em multiplicadas emoções, cem anos decantando versos feitos da
grande mãe da Angola, assim era conhecida na África, fortalecendo a nossa memória,
mas vale frisar o seu valor no samba do Brasil e na história.
Dona Ivone Lara é a dama que floresceu em meu coração,
no Império Serrano é jongo, samba e canção.
Maravilhosa mulher por vocação.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Valter Bitencourt Júnior


Salvador/BA

Qilômetro

Cego, lerdo, medro.


Míope, corre, chove. Eu trilho, e perto
De você chego encharcado...

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vanderlei Kroin
Mallet/PR

Alice
Foi o desejo de ser grande
e habitar os sonhos verdadeiros
que fez Alice fugir de sua história
e buscar outras tantas.
Escapuliu de sua vida
embrenhou-se no livro
eescobriu que a imaginação é feita de loucuras
aventuras
desventuras é o que a vida oferece
e o que acontece.
Já se esquece quando amanhece um outro dia
e quando escurece...nenhum sentido se aquece
e vem tantas vidas e passam tantas histórias
e se tem tão poucos livros
que a fuga para dentro de um
é a beleza maior de quem quer ser grande!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vânia Lúcia Malta Costa Catunda


Brasília/DF

Profssão Divina
Tantas vidas vi nascer.
Tantas vidas vi morrer.
Tantas vidas passando por minhas mãos.

Profissão escolhida.
Profissão bendita.
Aos céus a minha gratidão .

Tantos casos revelados.


Tantos casos tratados.
Tantos casos encaminhados .
Outros casos um bom diálogo foi
A solução bem acertada.

Profissão escolhida .
Medicina querida.
Por ti estou realizada.
E por ti testificada.

Mesmo na veterana idade.


Sinto-me como residente
Da modernidade.
Ao ser solicitada na atividade .

Profissão divina
Que Deus seja sempre o meu clarão .
O meu eterno Capitão .
Com seu Exército de prontidão.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vera Raposo
Teresópolis/RJ

Você que gosta das flores


Cultivei um jardim pra você
Todas falam de amores
É só você escolher

Olhando o meu jardim


Das flores que semeei
O delicado jasmim
Foi o primeiro que plantei

Depois fiz outro canteiro


Com singelas margaridas
Elas dão o ano inteiro
São as minhas preferidas

Tem rosas brancas e amarelinhas


Elas não podem faltar
Mas as vermelhas são as rainhas
Nos fazem suspirar

Agora vou te mostrar


As orquídeas imponentes
Esse jardim é pra sonhar
Não posso te dar, infelizmente

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Victor Carreão
Louveira/SP

Fumaça e espelhos

O cheiro de pólvora preenchia o ar com as flores. Mas, agora, tudo


gelado da clareira. A floresta ao redor da estava arruinado. Talvez, se tivesse
aldeia ainda ardia em algumas partes. ficado por ali, Kenai não teria tido
Os troncos rangiam enquanto caiam, mais sorte do que aqueles cujos
lentamente, levantando as cinzas que corpos estendiam-se sobre o chão.
cobriam o solo que antes fora úmido. O Homens e mulheres; crianças e
jovem guerreiro, Kenai, já não velhos. Os pensamentos envolviam
conseguia escutar nenhum dos animais seus devaneios enquanto seus olhos
que habitavam ao redor de seu lar; rolavam de um lado para o outro em
nenhum som daquilo que sobrou de sua busca de uma única pessoa:
casa, de sua vila, de sua vida. O ataque Thaynara.
dos conquistadores deve ter partido de Como filha do chefe da tribo,
rio acima. Os rastros de munição cabia a Thaynara assisti-lo nos
mostravam que a tribo não teve chance afazeres da comunidade.
contra os rifles e canhões dos invasores. Supervisionava a tecelagem, a
Kenai havia seguido o curso das colheita e também ajudava na caça.
águas rio abaixo em busca de alimento e Estava sempre em movimento e a
de peles de animais. Logo o inverno melhor maneira de encontra-la entre
ficaria mais intenso e a tribo precisava as habitações era procurar por seus
se aquecer durante as longas noites longos cabelos negros ao vento, ou
gélidas que se lançariam sobre eles. A sentir o rastro de seu perfume doce,
deusa Lua os protegeria com seu brilho com um sutil aroma de romã. Mas
durante as noites, enquanto o deus Sol agora não havia vento, sequer
os ajudaria, mesmo que em uma qualquer aroma em meio a toda a
pequena porção do dia, com a colheita e fuligem que caia do céu.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

O pequeno templo havia sido rio. Pelos deuses, as tribos daquele


cravado de balas. O telhado de palha lado da montanha já haviam sido
não ardia como as árvores ao longe, abandonadas há tempos. Sufocados
mas as paredes de barro que ainda entre a cordilheira e o oceano, onde
resistiam estavam cobertas por as ondas traziam os navios dos
estilhaços. Dois guerreiros jaziam em invasores, fugir nunca havia sido uma
meio a toda a confusão no recinto. opção.
Pedaços de louça estavam espalhados O rio contornava rochas e seus
pelo chão e cestos com tecidos meandros traçavam curvas abertas
encontravam-se amarrotados pelos na mata. Não demorou até que Kenai
cantos. No centro da sala, debruçado encontrasse os primeiros galhos
sobre um banco de madeira, estava o quebrados, a grama pisoteada e os
chefe Thauan. A cena era demais para o pedriscos descolados do chão. Ele
jovem Kenai, mas uma esperança batia estava na trilha correta, no enlace
forte em seu coração: Thaynara não dos assassinos, no rastro do suave
estava ali. Ele se pôs a andar pelo perfume dos cabelos de Thaynara. O
vilarejo. Havia caminhado o suficiente caminho se tornava íngreme e a
para encontra-la, contudo, ainda assim, subida ia, aos poucos, escondendo os
não havia sinal dela. Os invasores últimos raios de sol do curto dia. A
deveriam tê-la levado rio acima. Lua vinha, timidamente, clareando os
Kenai tomou a lança de um dos contornos da mãe natureza que o
guerreiros mortos no templo e o arco e guerreiro atravessava.
flecha do outro. Caminhou para fora a Pé ante pé, o garoto encontrou o
passos largos e com os olhos no acampamento dos agressores. A
horizonte. Com as armas pesadas, os fumaça vinha de metros acima da
saqueadores não deveriam estar longe. trilha, em um platô que se estendia
Se fosse sorrateiro, poderia intercepta- em uma falésia que encarava o
los, matar dois ou três deles, e salvar oceano. Cobriu os metros finais até o
Thaynara. Um ataque assim não pode acesso do local discretamente.
passa impune, pensou ele, enquanto se Posicionou-se atrás de uma árvore
emaranhava pela mata que margeava o enquanto averiguava a situação. Por

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

volta de uma dúzia de homens se centímetros. O jovem guerreiro


espalhavam pela área, conversando ao tomou a lança que trazia em suas
redor de fogueiras, bebendo líquidos costas e rodopiou, acertando sua
escuros de dentro de pequenos barris, ponta na barriga de seu agressor.
afiando suas facas ou limpando seus Com maestria, puxou a lança de volta
rifles. O cheiro dos homens remetia à e, em uma rápida elipse, arremessou-
sujeira e suor. Porém, quando a brisa a contra o outro sequestrador que
gelada soprou, Kenai voltou seus olhos a guardava a garota. Com sucesso, o
ela. homem estava morto antes de tocar
Thaynara sentava de cabeça baixa o chão.
em um tronco de árvore cortado. Dois Thaynara pôs-se em pé e correu
homens barbudos estavam posicionados em direção ao jovem guerreiro. No
a seu lado. Tinham os olhares distantes, meio da luta, os outros invasores,
já consumidos pela aguardente. Um dos que estavam auxiliando aquele que
invasores tropeçou em um caldeirão e havia tropeçado no caldeirão,
os outros foram aos gritos ajuda-lo, um tomaram seus rifles e correram na
mais trôpego do que o outro. Kenai direção dos jovens. Sabendo que
aproveitou o momento e agiu. Puxou seriam cercados, Kenai tomou
uma flecha da aljava, posicionou-a no Thaynara pela mão e juntos correram
arco e, após respirar fundo, disparou em em direção à ponta da falésia, a
direção a um dos capatazes de centímetros da queda do penhasco.
Thaynara. A flecha o atingiu em cheio e Os invasores os cercaram e
o homem foi ao chão. O outro invasor apontaram seus rifles, prontos para
gritou por ajuda. Kenai armou-se para disparar. Thaynara olhou Kenai nos
mais um disparo, dessa vez andando em olhos, os cabelos negros ao vento e
direção a seu alvo. Foi quando outro seu doce perfume o envolvendo.
saqueador surgiu por trás dele e o Kenai entrelaçou seus dedos nas
atingiu com um tacape, provavelmente macias mãos da garota. Seus sorrisos
roubado durante o ataque ao vilarejo. construindo uma ponte entre os dois;
Com o baque, a flecha de Kenai, que entre aquilo que havia passado e tudo
caiu de joelhos ao chão, errou o alvo por aquilo que poderia ter sido. Quando

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

os últimos raios de sol perfuraram a distinguir o que estava perto da


noite fria, os dois pularam. A escuridão encosta. A lua, coberta pelas nuvens,
que se dissipava os envolveu no salto e não conseguiu desvanecer a
logo nada além do barulho do mar podia escuridão e as trevas já haviam se
ser ouvido. instalado completamente.
Foi preciso um longo tempo para Os invasores andavam a esmo
que os invasores, ainda atordoados pelo até que a realidade os atingiu, assim
combate e pelas bebidas, descessem até como as ondas que se jogavam
as rochas abaixo da encosta. Fizeram o contra eles: a maré estava subindo. E
percurso com dificuldade, marchando subia rápido. Não houve tempo para
com adversidade por uma trilha acenderem as tochas. Não houve
apertada que serpenteava por entre um tempo para amarrarem cordas. Seus
paredão de pedras e galhos. Todo esse gritos foram tampados pela força das
esforço apenas para se deparar com a águas e seus pulmões sufocados.
escuridão da noite de inverno, que Aqueles que conseguiram correr até a
rapidamente havia chegado a encobri- trilha foram enganados pelo labirinto
los, e uma pequena praia vazia. As que suas curvas formavam,
ondas beijavam as rochas, e era apenas inundadas pelas águas em um piscar
aquilo que havia para ser visto. Os dois de olhos. Foi assim que o silêncio, por
fugitivos não estavam ali. Não havia fim, reinou. A calmaria daquela noite
sinal de que haviam caído sobre as de inverno seguiu, assim como
rochas. Tudo aquilo não fazia sentido, seguiria centenas de invernos
pois a queda era mortal. Os homens se adiante. Ainda hoje, aqueles que
espalharam pelos rochedos, com as visitam aquela encosta em busca do
águas cobrindo seus joelhos, belo pôr do sol juram poder sentir, na
determinados a encontrar os corpos que gélida brisa, um doce aroma de
haviam se lançado pelo ar. A cada passo romã.
dentro do mar, ficava mais difícil

217
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vitor Sergio de Almeida


Uberlândia/MG

Do que adiantaa
Do que adianta...
Estudar, cientificar.
Sabedoria a esbanjar, se não posso na humildade simplificar.

Do que adianta...
Juntar posses, enricar.
Casa boa a morar, carro de luxo a andar, se não há atos de dignificar.

Do que adianta...
Profissão a encantar, uma linda carreira a personificar,
fama a pontificar, se não tem com quem multiplicar e comunicar.

Do que adianta...
Férias a confortar, descanso a frutificar,
viagens a esbanjar, se não existe um significar.

Do que adianta...
Rede sociais a embonecar. História a alavancar e a lacrar,
receitas de amar a ostentar, se inexiste um sentido próprio para publicar.

Do que adianta...
Amigos a bebericar,
momentos a gabar, se não há contatos de pessoalidade quando precisar abarcar.

Do que adianta...
A Deus massificar,
a entoar o purificar, se não prática o mínimo gesto de bonificar, edificar.

Do que adianta...
Pela família existente, entoar o gratificar.
A esbravejar o ressignificar familiar, ao contrário a um ente maltratar, implicar.

Do que adianta...
Por obsessão se medicar e remedicar.
Posologia a quantificar. Carpe diem! Em um segundo isso pode complicar...

Por fim, adianta, adianta a cada minuto intensificar a simples ação de viver,
assim, plurificar o vivificar.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Vladimir Ferrari
Ipaussu/SP

Dia da Marmota

Seu coração acelerou e ele fechou das três mortes daquele seu último
os olhos, cerrando os dentes. Então, o dia de liberdade.
cadafalso se abriu, o equilíbrio Pôs os pés no chão no exato
desapareceu e em uma fração de instante em que o padre chegou,
segundo a constrição cervical provocada acompanhando de Rogério, o guarda.
pela corda desligou todas as luzes do Estevão sabia seu nome. E ainda
seu mundo. zonzo de sono, o saudou:
O estrondo veio na sequência e — Bom dia, padre Gregório.
Jeferson escancarou a porta e gritou
para acordá-lo: O sacerdote olhou assustado
para o carcereiro, que deu de
— Sujou cara! Vamos embora ombros. Os dois se falariam depois,
daqui agora! Acorda, porra! curiosos em entender como Estevão
E lá estava Estevão correndo soube o nome do padre. Nunca
desesperado, entrando na mesma haviam estado juntos. Entrou na cela
mercearia e atropelando a garota com o e sentou-se à sua frente. Explicou
pirulito no meio de corredor, disparando que nesses momentos, a palavra de
o primeiro dos seis tiros na testa do Deus é a chance dos condenados de
dono do mercado. O restante do sonho se arrependerem de seus atos de
continua até que a menina parou diante maldade. Estevão manteve-se calado,
dele. Rendeu-se, incapaz de fazer mal a diante do discurso.
ela. O que ele não entendeu, ao Tentou processar o que seu
despertar, é de onde veio aquele cérebro estava demorando a aceitar:
sussurro de groundhog que soou em aquilo já havia acontecido. Balançou
seus ouvidos ao abrir seus olhos. a cabeça, afirmando estar
A claridade do lugar o atingiu sem arrependido e então ergueu a mão
piedade. Tudo era branco e imaculado direita um pouco, com o indicador
no corredor da morte. Ergueu o tronco e esticado. O padre interrompeu a
sentou-se na cama, esfregando os olhos leitura:
com a almofada das mãos. Algo de — O senhor já esteve aqui,
estranho aconteceu e não conseguiu não?
precisar. Lembrou-se de ter adormecido
por cansaço, depois de chorar e se — Como?
arrepender até o último fio de cabelo

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

— Aqui, comigo. O senhor já leu — Coisa nenhuma! —


essas mesmas palavras, dessa mesma esbravejou Estevão se levantando.
maneira, não? Rogério deu um passo para dentro da
— Bem, você não é o primeiro que cela e acertou um golpe de cacetete
visito aqui na Milha e ... nas costelas dele. Caiu sentado sobre
o catre, dobrando-se de dor. O
Rogério se aproximou da grade e guarda recomendou que o padre se
interrompeu. retirasse e trancou a cela.
— Não existe isso, de dois — Sua execução está marcada
condenados estarem na Milha ao mesmo para as quinze horas e trinta minutos.
tempo. Você está sozinho aqui, Estevão. A refeição será servida em vinte
Desde ontem, quando chegou. minutos.
O padre Gregório retomou seu Seu receio se transformou em
discurso e ele ficou tentando se lembrar medo quando uma descarga elétrica
de quando seu advogado lhe informou de compreensão atravessou seu
sobre a recusa da apelação e o dia de cérebro, lhe trazendo a memória do
sua transferência para a Milha. Na sabor do frango com batatas. A dor
Georgia, os condenados à pena de nas costelas persistiu. A pancada lhe
morte eram separados dos demais tirou o fôlego, por um momento.
presos, num edifício apelidado de A
Milha, por conta dos 1600 metros que — Ao menos essa dor é
separavam a cela do cadafalso. diferente — pensou.

A sensação de Deja Vu A bandeja com a refeição foi


permaneceu durante a estadia do padre empurrada pelas grades, mas ele a
e Estevão manteve-se surpreso e olhou temeroso. Lembrou-se de ter
calado, acompanhando tudo com um atacado o prato com voracidade, pois
receio crescente. A certeza de já ter o perfume que invadiu suas narinas
passado por aquilo era cada vez maior. transportou-o para a infância no
O sermão se encerrou e o padre Wisconsin.
perguntou se ele se arrependia de seus Ainda olhava para a comida
pecados, mais uma vez. quando Rogério, Douglas e Daniel
— Eu ... já ... concordei ontem. Eu vieram buscá-lo. Movimentou-se de
já recebi sua benção e sua extrema acordo com as regras, um milésimo
unção. É impossível o senhor não se de segundo antes de lhe ser
lembrar! solicitado. Sabia de cor e salteado o
que era necessário fazer. Saiu para o
— Confusão é normal nesse corredor e se posicionou ao lado de
momento de aflição, meu filho. As coisas Daniel e Rogério, enquanto Douglas
... vinha atrás dele.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Ao passar por uma porta, onde O laço foi colocado ao redor de


estavam as testemunhas e autoridades seu pescoço e seu corpo foi girado
que presenciariam a sua execução, para ficar de frente para o público. A
gritou com um sorriso no rosto: sensação de já ter passado por aquilo
— Dead man walking! tudo era cruel e verdadeira. Seu
coração acelerou e ele fechou os
Mas a pilhéria não conseguiu o olhos, cerrando os dentes. Então, o
efeito que ele pretendia e o pavor cadafalso se abriu, o equilíbrio
começou a dominá-lo. Ouviu o barulho desapareceu e em uma fração de
da cortina correndo pelos trilhos e sentiu segundo a constrição cervical
os olhos de todos sobre ele. Aos pés da provocada pela corda desligou todas
escada, sua cabeça foi coberta por um as luzes do seu mundo.
capuz e escutou a voz de Rogério o
orientando a mover os pés, subindo para Um estrondo de uma porta
o cadafalso. sendo aberta com violência, invadiu
seus ouvidos.
— Direita, esquerda, direita,
esquerda ...

@vlaferrari /// http://www.scriv.com.br/vlaferrari

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Wagner Azevedo Pereira


Nova Iguaçu/RJ

Indecisa
As “Ilusões Perdidas” escrito pra você
sem a real intenção dele, o autor,
orvalha em tua face embevecida que
não consegue mais viver, o amor.

Quem me ama faz de mais sem saber


ou lembrar que deveria antes da manhã
a ironia deixar para um outro viver
sua forma taful do personagem Calibã.

Tua presença aqui ficou a desejar!


Se houvesse algum tempo preciso
deveria refletir um pouco pra parar!

Parar de achar que tudo gira sem sentido


Porque se há ilusão nesse mundo… há?
Você nela se engana sem ter percebido!

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Willian Fontana
Rio de Janeiro/RJ

Para os gênios QI é inteligência, chão da frente de minha casa, as


para elite e tráfico de influência é Quem margens da rua, um cartão de visitas
Indica, mas para psicopatas é Que rosa e cinza do qual aludia a um tipo
Inferno! A Irmandade da Pedra teve de classificados muito sinistro e
início com a destruição de Sodoma, com específico. Um endereço da deepweb
a Meduza ou na idade da pedra? como atalho a oferta de serviços e
Não saberia responder, porém não trabalhos do submundo. Onde os
gostaria de saber por razões óbvias. No trabalhos mais sujos, insanos e
entanto, viria a descobrir os doidos de doentios eram oferecidos por
pedra do qual os bons desejariam profissionais do crime organizado.
esquecer no fundo numa jaula. Curioso, fui tomado a usar o Tor e
Havia perdido minha esposa de adentrar as aias do submundo donde
modo trágico após esta ser pega o terror me apoderou de sobremodo
transando com meu pai e os dois se ao comprovar o inóspito trabalho de
enfocarem. Ela que apresentava 'bonecas' que encomendadas eram
sintomas de depressão profunda há crianças raptadas e adaptadas por
vários meses teve no incidente a cirurgias tenebrosas a torná-las
antecipação da minha aposentadoria igualmente objetos descartáveis de
como dentista. Havia ficado amargo e fetiches sexuais funestos.
recluso em casa por vários meses vindo Tremi nas bases e imediatamente
a engordar ao desenvolver síndrome do pensei em ligar para a polícia federal,
pânico e igualmente depressão. Todos pois tais crimes cujo hediondo é um
haviam sumido da minha vida, restando agravo a qualquer pessoa dotada de
um grande vazio misterioso intercalado mínima razão, sendo cristão,
por ruídos subjetivos do implausível, kardecista, ateu, liberal ou socialista.
como se pessoas que nunca fiz nenhum Porém, ao pegar o telefone um
mal simplesmente me odiassem duma dentre tantos anúncios entre estes
ora a outra. saltou a tela. Ante os demais outros
Deprimido e potencialmente suicida, anúncios de vendas de escravas
após muitos meses temendo por os pés sexuais, drogas, armas militares e
na rua finalmente o fim quando achei no objetos de arte roubados, este aludia

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

a um grupo de "Psicopatas de Aluguel". tela do notebook apagou vindo


Alegando ser customizado a seus mais aparecer uma mensagem na tela
íntimos medos e fraquezas deflagradas, informando: "Bem-vindo a Mortal
estes invadem sua vida para pregar ódio Mind! Seu pesadelo irá começar
e medo, humilham, ameaçam, caluniam dentre em breve, você foi detectado!"
destruindo todos seus conhecidos e Tentei tirar a página, mas o
entes queridos e você paga um preço computador travou e em desespero
módico com sua sanidade e integridade percebendo estar sendo invadido
física, tanto como os demais bens. fechei o notebook pedindo para que
Similarmente, a um anúncio tenebroso alguém me tirasse daquele pesadelo.
onde vítimas se ofereceriam a refeições Disquei o telefone, porém, antes que
canibais, psicopatas ofereciam agora seu acionada a ligação uma série de SMS
trabalho em demanda como as vítimas foram recebidas pelo aparelho.
com síndrome de Estocolmo ou Mesmo que aquilo fosse obsoleto
masoquismo. Os profissionais do crime como um quase um teletrim da
foram ao ponto disso, pedir que modernidade ignorei e fiz a ligação
literalmente suas vítimas se levando um homem esquisito atender.
oferecessem a fim de saciá-los. O – Alô? Gostaria de pedir socorro
anúncio dizia: numa deúncia pois entrei num site da
deepweb onde descobri crimes
"Profissionais psicopatas oferecem horríveis e acho que eles me
trabalhos em fins de crueldade e identificaram.
injustiça. Procuramos pessoas – Monitoramos alguns sites da
masoquistas e vulneráveis como deepweb a fim de identificar algumas
potenciais presas afim de atender nosso pessoas que costumam frequentar
sadismo. Fazemos o serviço completo e como fregueses e potenciais clientes.
customizado, analisamos e estudamos a – Fico aliviado! –Completei,
vida de nossas vítimas afim de destruí- levando este a dizer, no entanto.
las do psicológico a consumação física – O prazer será nosso trabalhar
do crime, ou corrompê-las. Uma contigo, Anderson Fontana. Bem-
aventura irreversível que vale a pena! vindo a Mortal Mind!
Não precisa solicitar o serviço para sua Ao falar aquilo ele desligou o
comodidade, basta aceitar ter uma vida telefone. A ligação havia de algum
de cão pra obra dele, ao visitar o site." modo sido desviada e ido parar
diretamente aquele séquito de
Após cerrar a visão ao ler aquilo psicopatas. Entrei em pânico e
fiquei tão assustado que deixei o literalmente me descabelava indo
telefone cair no chão. Ruborizado e com para o quarto pegar uma roupa e
a respiração ofegante tremia tentando fugir dali e dirigir até a polícia em
pegar o telefone em desespero quando a meio a uma crise. Porém, ao chegar

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

lá a delegacia deserta estava, vindo a wahstapp. Quando me inclinei notei


ser atendido por um policial de má serem fotos do interior da minha casa
vontade. Um senhor calvo que estava onde homens de preto mostravam
cochilando na mesa de trabalho. meu notebook com fotos plantadas.
– Pois, não? Obviamente aqueles não eram a
– Senhor, entrei num site da polícia federal, mas a quadrilha se
deepweb e acho que alguma quadrilha passando por eles!
me identificou... Tentei alardear ao oficial sem
– Pera aí, vamos com calma! Fale sucesso quando vi um homem de
devagar para entender o que... uniforme da policia federal entrar na
Antes que ele terminasse de falar o delegacia.
telefone tocou levando ele a pega-lo. O – Mostre suas credenciais e o
homem disse "alô" e permaneceu em mandato judicial! – Vociferei
silêncio. Em seguida cerrou a visão e tremendo.
olhou para mim de modo assustado, Mas o homem hesitou me
ficou visivelmente nervoso, mas ignorando ao se dirigir diretamente
assentiu com seriedade alguma ao policial.
instrução. – Ele é um doente mental como
– O senhor está sendo preso por qualquer pedofilo, ignore pois pode
pedofilia. Ponha as mãos onde possa ver ser persuasivo!
e não se mexa. Todavia, o experiente policial
Tentei retrucar com as palavras ficou desconfiado da atitude e pediu-
dele, pois não compreendia o que lhe para fazer o que pedia antes, ao
acontecia, ele sacou a arma e questionar o número do telefone
apontando para mim chamou por alegado da polícia federal, pois
reforços como se fosse algum criminoso parecia falso. Isto levou este a olhar
de alta periculosidade. Quando ele para a câmera da delegacia e em
finalmente respondeu estava pegando seguida para um smartwatch no pulso
as algemas, ainda que sem reforço como se recebesse algum sinal. E
algum chegar por ser madrugada. sem pensar duas vezes atirou no
– Recebi agora uma ligação de um homem com uma pistola com
delegado federal que monitorava o silenciador e calculista disse em
senhor que fora pego traficando seguida.
pornografia infantil. A policia federal – Adoro manipular oficiais da lei
parece que chegou em teu apartamento pra promover e acobertarem meus
após investiga-lo. crimes, é como adestrar ou K-9, mas
– Como pode? Não tenho nada! é irritante quando tentam fazer seu
Entrei no site hoje! trabalho com honestidade e
Ele parou para pegar o celular e via competência como gente.
ele receber uma série de fotos pelo

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Naquele instante outros três oferecem a dar suas casas pra nós no
homens entraram, um com traços desespero, acredita? Somos como
mongóis com uma grande barriga, foram deuses!
direto ao corpo jazido com um tiro de – Vocês irão fazer o que comigo?
silenciador e o carregou quando um – Vamos nos divertir! Uma festa,
carro preto parou na porta. não gosta? Daí depois de um bom
– Tem certeza que as câmeras banho, vamos por você pra dormir
foram desligadas? tranquilão com um xucalinho. Agora,
– Claro! Nosso cracker invadiu o após nosso investimento em
sistema para apagar as imagens em que crueldade e crime temos que colher
você aparece. os bens, como deuses.
– Sabe que nosso trabalho deve ter Ao terminar de ouvir aquelas
muita discrição, não? Ninguém pode palavras algo me espetou e fiquei
assistir o que fazemos. Nosso arrego foi tonto quando algo bateu ferozmente
pago ao rato para encobrir rastros no no carro fazendo-nos capotar.
sistema? Sonolento, tudo ficou em silêncio
O homem assentiu enquanto me quando ouvi passos de homens
pegava pelo braço direito a força com saindo de um carro a cortar o silêncio
um sorriso sádico. Eles pareciam na em seguida dizendo.
verdade estarem me monitorando há – Polícia Federal! Largue a arma!
muito tempo. Estávamos monitorando vocês há
Ao ser jogado dentro do carro um meses a procura de um flagrante
saco fora posto na minha cabeça para chegar em seu líder!
enquanto um homem sussurrava Um outro homem gritou dizendo
palavras de terror ao meu lado. pra mim.
– Apenas um percentual mínimo de – Senhor, senhor! Está bem?
nossas presas sobrevivem ao nosso jogo Todos estávamos assistindo,
mental. E nenhum sem sequelas ou monitoramos sua esposa, mas ela
desacreditadas. Você mordeu a isca mesma negava os crimes e sabíamos
direitinho ao pegar o cartão e acessar o que estes amaldiçoados viriam atrás
site como sua esposa havia feito meses de você! Agora temos provas o
antes de se matar. Estava aflito para te bastante para realizar prisões, busca
conhecer! Não aguentava mais te e apreensão. Sinto tê-lo usado como
monitorar e apenas na terceira tentativa isca a esses tubarões do esgoto que
você mordeu a isca! Sabe, estudamos até entre nós se infiltrou acabando
cada vítima com muito zelo, algumas com nossos melhores agentes!
conquistamos a confiança antes de O homem tirou meu saco da
matá-las e furtar seus bens, outra cabeça, porém tonto via ele distorcido
impomos apenas o terror psicológico e como se fosse isso, um pesadelo, até
as chantageamos. Algumas até se que tudo se apagou.

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Yuki Eiri
Maringá/PR

Uma Ode a Solidão

Hoje senti saudades Fantástico mundo de Bob se desfazer


De coisas que não deveria sentir Como o desenho animado cujo nome
De momentos passados peguei emprestado
De pessoas que não deveria lembrar Cancelado antes de começar
De lembranças que deveria esquecer Pensei
De fotografias que não mais deveria ver Pensei e acreditei
Hoje senti saudades Acreditei e de novo
Senti falta De novo
De uma palavra amiga E de novo me enganei
Um abraço apertado Duras lições aprendidas
Uma conversa descontraída Palavras bonitas jogadas ao vento
Hoje senti saudades de todas mentiras Ilusões de momento
Que já me contaram na vida Gestos
Hoje, um dia que deveria ser especial Fantasia de um mundo ideal
Senti as consequências de acreditar Uma vida ideal
Acreditar Um dia ideal
De novo Pessoa ideal
De novo Mas ideal é só nosso ideal de vida
E de novo Aquele que abandonamos
Hoje vi tudo desmoronar Jogamos para escanteio

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Relevamos a segundo plano por algo ou A escutar


alguém E não ser escutado
Até sabermos A não julgar
Percebermos E ser julgado
Talvez o mais ideal de tudo seja a solidão A não machucar
Ah! a solidão E ser machucado
Não te promete nada A gente se acostuma
Não te ilude com presentes A estar presente
Palavras bonitas E encontrar ausência
Não te faz acreditar para depois te A ser companhia
decepcionar E encontrar solidão
Ela diz a que veio e o que quer. A enxugar as lágrimas
Não te seduz E não encontrar compaixão
Não te ilude Emprestar um ombro amigo
E assim, com o tempo a gente se E encontrar desilusão.
acostuma eu sei Com o tempo a gente aprende
Mas não deveria Ou é forcado a aprender
A ajudar Promessas são vazias
E não ser ajudado Na vida é só você e você.

https://www.facebook.com/yuki.eiri.7739
https://www.instagram.com/yuki.eiri.7739/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Caricaturas
Jamison Paixão
Las Palmas de Gran Canária/ Espanha

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230
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

https://www.facebook.com/paixaodeoliveira

https://www.facebook.com/jpartes.desenho.3

231
LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Rita Lee (pintura)


Cristiane Ventre Porcini
São Paulo/SP

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Fotos
Roberto Schima
Itanhaém/SP

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Artista do Mês
Desenho: Márcio Apoca
Campo Mourão/PR
Tom Savini
Ator, cineasta, maquiador/técnico de efeitos especiais americano

3 de novembro de 1946 (76 anos)


https://darkside.blog.br/tom-savini-o-mestre-das-maquiagens-dos-filmes-de-terror/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tom_Savini

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

II E-Antologia de Poesia Retrô (2022)

Símbolo da reativação do blog Poesia Retrô, o livro eletrônico de 170 páginas reúne vários
nomes da poesia erudita e retrô atual, sendo alguns autores convidados. A obra possui
desde poemas em versos livres até sonetos em sistema métrico mesclando pés e sílabas.
Foi organizada por Rommel Werneck com assistência de revisão do Poeta Lendário, sendo
os dois também autores desta edição que homenageia a falecida poetisa Denise Severgnini,
integrante da primeira antologia em 2009. Agradecimentos especiais ao blog Letras
Elétricas. Distribuição gratuita. ISBN 978-65-89975-40-3 www.poesiaretro.blogspot.com O
material pode ser baixado gratuitamente em www.rommelwerneck.com

Baixe este e outros e-books aqui:

https://www.rommelwerneck.com/ebooks.php

https://rl.art.br/arquivos/7541395.pdf?1656000642

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

LiteraAmigos
Espaço dedicado a todas as entidades e projetos amigos que de alguma forma
nos ajudam ou possuem proposta de trabalho semelhante a nossa:

Corvo Literário

O Corvo literário é um espaço para entrevistas, notícias, e contamos com a


propagação da arte, em especial da participação de todos.
literatura. Mas também para discussões e
Acessem o site e enviem seus textos com
debates, por isso sempre traremos opiniões,
tema livre:

https://corvoliterario.com/

https://corvoliterario.com/contact/

“Blog Concursos Literários”

Blog criado em 2011, com o objetivo de em suas postagens os concursos que


divulgar editais e resultados de concursos cobram quaisquer taxas de inscrição ou
literários e prêmios literários. publicação dos autores. Além disso,
muitos organizadores de concursos
É considerado por muitos autores como uma
literários reconhecem este espaço como
fonte completa e acessível de
uma referência no apoio à divulgação.
editais e resultados de premiações
Acessem o site e conheçam os Concursos
realizadas no Brasil e em todo o mundo. O
do mês, do ano e as seleções
projeto também é elogiado por não incluir
permanentes:
Blog: https://concursos-literarios.blogspot.com.br/

Facebook: https://www.facebook.com/concursosliterarios/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Editora Pé de Jambo -Fundada em fevereiro de 2019, em meio a pandemia do Covid-


19 pelo escritor Mikael Mansur-Martinelli, a Editora Pé de Jambo é uma empresa
prestadora de serviços editoriais, revisão gramatical, copidesque e orientações textuais
para autores independentes. O principal objetivo da Editora é contribuir para a
disseminação da Literatura, principalmente de novos autores e transformar em uma
forma acessível a todos.
Veja os editais no site:
https://editorapedejambo.wixsite.com/editorapdejambo/antologias

Blog Alan Rubens


No blog do autor Alan Rubens, o leitor terá a oportunidade de ler textos incríveis escritos
pelo próprio Alan e também de autores convidados de todos os lugares, numa reunião de
talentos eclética e divertida.

https://alanrubens.wordpress.com/

Mulheres Audiovisual” - uma plataforma criada para unir as mulheres e a arte em


geral, cadastre seu portfólio e participe:

http://mulheresaudiovisual.com.br/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Literatura já - No canal e podcast “Literatura já”, criado pela escritora Joyce


Nascimento, você encontrará muita leitura e narração de textos: poesias, contos e
crônicas autorais e de outros escritores. Entrevistas, bate-papo com convidados, dicas e
informações sobre o que está acontecendo no mundo literário. Tudo em formato de
áudio publicado toda sexta-feira, a partir das 19h.
Se inscrevam e não percam nenhum conteúdo!

https://open.spotify.com/show/7iQe21M7qH75CcERx5Qsf8

Maldohorror - Coletivo de escritores fantásticos e malditos


Aventurem-se lendo o que há de melhor na por autores consagrados e também por
literatura de Terror/Horror. Visite o site do iniciantes, numa grande mistura de
Coletivo Maldohorror, que reúne os estilos.
melhores contos de terror, poesias malditas,
crônicas ácidas e histórias imorais, escritos

Site oficial:
www.maldohorror.com.br

Página do facebook:
https://www.facebook.com/maldohorror/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Portal Domínio Público

Tenha acesso gratuito e legalizado à milhares de textos, sons, vídeos e imagens do Brasil
e do mundo em domínio público.

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

Sci-fi Tropical

Semanalmente, o site Sci-fi Tropical traz um exclusivo, o leitor terá uma experiência
artigo, resenha de livro ou análise sobre o imersiva nas histórias. Rubens Angelo,
cenário do fantástico nacional, permitindo criador do site Sci-fi Tropical, é formado
que os fãs do gênero, tão acostumados a ler em design, mestrando em mídias
obras estrangeiras, conheçam também criativas e, principalmente, fã
autores nacionais que ajudaram a consolidar incondicional da ficção científica.
a ficção-científica por aqui. O site traz ainda
Venha conferir:
O PROJETO MINIBOOKS FANTÁSTICOS, com
obras de autores de FC em língua
portuguesa para download. Com um design

https://scifitropical.wordpress.com/

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LiteraLivre Vl. 6 - nº 36 – Nov./Dez. de 2022

Revista SerEsta
Leia e participe das edições da Revista Seresta. Revista literária gratuita e online:

Em breve, Revista SerEsta número 10.

Homenageada: Clarice Lispector

Entrevistada: Eliana Castela


https://revistaseresta.blogspot.com/p/edicoes.html

Site “Seleções Literárias”

https://selecoesliterarias.com.br/

Podcast Toma aí um poema

O Podcast Toma Aí um Poema tem com objetivo declamar o máximo de poemas


brasileiros possíveis e disponibilizá-los em áudio para torna-los mais acessíveis, nos
diferentes canais e formatos. Acesse o site e envie seu poema!!

https://www.jessicaiancoski.com/toma-ai-um-poema

241
Modelo de envio de textos para publicação na revista

No meio do caminho (título)


Carlos Drummond de Andrade (nome para publicação – este nome não
será trocado)
Rio de Janeiro/RJ (cidade e estado onde vive – país somente se for do
exterior)

(no máximo 3 textos com até 3 páginas)

(texto – utilize fonte arial ou times new roman)


No meio do caminho tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho,
tinha uma pedra,
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento,
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho,
tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho,
no meio do caminho tinha uma pedra.

https://www.pensador.com/melhores_poemas_de_carlos_drummond_de_andrade/

(site, página ou blog – pessoal ou de divulgação de obras)

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