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Terra Brasilis

Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e


Geografia Histórica 
16 | 2021
Espaços balneários em questão

Espaços balneários em questão


Leticia Parente Ribeiro e Maria Isabel de Jesus Chrysostomo

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/9410
DOI: 10.4000/terrabrasilis.9410
ISSN: 2316-7793

Editora
Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica
 

Refêrencia eletrónica
Leticia Parente Ribeiro e Maria Isabel de Jesus Chrysostomo, «Espaços balneários em questão», Terra
Brasilis [Online], 16 | 2021, posto online no dia 31 dezembro 2021, consultado o 05 dezembro 2022.
URL: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/9410 ; DOI: https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.
9410

Este documento foi criado de forma automática no dia 5 dezembro 2022.

All rights reserved


Espaços balneários em questão 1

Espaços balneários em questão


Leticia Parente Ribeiro e Maria Isabel de Jesus Chrysostomo

Agradecemos aos professores Laurent Vidal e Paulo Cesar da Costa Gomes — ambos
coordenadores do projeto A produção do espaço balneário nas cidades litorâneas: circulação de
modelos e experiências (CAPES/COFECUB) — por terem intermediado nosso contato,
respectivamente, com as equipes francesa e brasileira do projeto que contribuíram para tornar
possível a publicação do presente dossiê.
1 Durante os primeiros meses da pandemia da COVID-19, imagens de praias “desertas” ao
redor do mundo proliferaram nos meios de comunicação. Esses espaços, marcados por
grandes, conquanto sazonais, aglomerações de banhistas, veranistas e turistas, tiveram
seus usos associados a comportamentos de risco e se viram, de forma abrupta,
esvaziados de seus ocupantes humanos. Quando contemplamos tais imagens, temos a
impressão de estarmos diante do cenário de uma ficção pós-apocalíptica (Figuras 1 e 2).

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Figura 1. Praia de Copacabana (Rio de Janeiro, Brasil, 2020)

Fonte: ©Dhavid Normando/Futura Press via Estadão Conteúdo, reproduzido por G1 Rio (13/04/2020).
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/13/witzel-prorroga-medidas-de-
combate-a-covid-19-ate-30-de-abril.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-
desktop&utm_campaign=materias

Figura 2. Plage de la Grande-Conche (Royan, França, 2021)

Fonte: ©Ronan Chérel/Sud Ouest (29/06/2021). Disponível em: https://www.sudouest.fr/charente-


maritime/royan/baignade-royan-reautorise-pour-quatre-plages-saint-georges-de-didonne-
interdit-3967863.php

2 Ademais, nas cidades litorâneas fortemente conectadas às redes de turismo


internacional, a interrupção da circulação aérea e as restrições impostas, pela grande
maioria dos países, à entrada de estrangeiros produziram efeitos econômicos
profundos, cujos desdobramentos ainda são pouco conhecidos. Portanto, a crise
sanitária, ao romper os vínculos entre formas espaciais e usos sociais que caracterizam
os espaços balneários, evidenciou seu caráter historicamente construído (Figuras 3 e 4).

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Figura 3. Plage de la Grande-Conche (Royan, França, 2020)

Fonte: ©Archives Sud Ouest (12/08/2020). Disponível em: https://www.sudouest.fr/charente-


maritime/saint-georges-de-didonne/pays-royannais-des-plages-interdites-a-la-baignade-par-
prevention-1877181.php

Figura 4. Praia de Copacabana (Rio de Janeiro, Brasil)

Fonte: ©Tânia Rêgo/Agência Brasil (20/03/2021). Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/


foto/2021-03/praias-do-rio-de-janeiro-interditadas-1616263420

3 Mesmo antes da irrupção da emergência sanitária em escala global, as zonas costeiras já


ocupavam um lugar de destaque no debate sobre os riscos associados ao Antropoceno.
Sua situação geográfica, combinada às altas densidades populacionais e do espaço
construído, as tornam particularmente vulneráveis às mudanças climáticas. Entretanto, a
pandemia da COVID-19 tornou patente que as lógicas, práticas e formas espaciais
vinculados à função balneária, ao reforçar a conectividade dos lugares e produzir
situações de forte interação e contato social, ampliam a fragilidade dessas áreas.

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4 Na atualidade, diversos estudos de caráter prospectivo e propostas de gestão territorial


têm sido elaborados no intuito de fazer frente a esses e outros desafios enfrentados
pelas cidades e regiões litorâneas. Entendemos que tais desafios devem ser abordados,
também, à luz dos processos históricos e geográficos que os ensejaram. Foi a partir
desse interesse comum de pesquisa que reunimos, aqui, as contribuições de geógrafas/
os e historiadoras/es que participam do projeto de cooperação internacional CAPES/
COFECUB intitulado: A produção do espaço balneário nas cidades litorâneas: circulação de
modelos e experiências.1
5 A noção de balnearização constitui o eixo que atravessa todo o dossiê. Com ela estamos
nos referindo ao processo articulado de produção de formas espaciais e práticas sociais
vinculadas à valorização e ao ordenamento das zonas litorâneas. Os artigos enfatizam
ambas as dimensões, material e simbólica, desse processo. Do ponto de vista dos
enquadramentos geográfico e histórico, o dossiê privilegia o litoral atlântico do Brasil e
da França, em particular a cidade do Rio de Janeiro e o departamento francês de
Charente-Maritime, e o período entre o final do século XIX e a primeira metade do
século XX. Entretanto, algumas incursões em territórios e tempos diferentes também se
fazem presentes.
6 Mas é a variedade dos modos de indagar o fenômeno balneário que sobressai da leitura
do conjunto. Ressalta-se, sobretudo, a diversidade das fontes de pesquisa utilizadas:
jornais, revistas ilustradas, cartões-postais, obras literárias, material publicitário, entre
outros, são mobilizados para explorar diferentes aspectos da produção de espaços,
culturas e imaginários balneários.
7 Tal diversidade atesta o vínculo intrínseco do fenômeno balneário à modernidade
urbano-industrial ocidental. Sobretudo a partir de meados do século XIX, os problemas
e conflitos associados às urbanizações balneárias passam a ser regularmente debatidos
em jornais e revistas, em um período de franca expansão e diversificação dos veículos
de imprensa. A difusão de novas mercadorias, vinculadas à valorização das zonas
litorâneas, se beneficia da crescente associação entre os meios de comunicação e as
emergentes estratégias de propaganda. Cenários privilegiados de novas formas de
sociabilidade e lazer, as praias se convertem em topos de novos gêneros e movimentos
literários, e locus da construção de uma nova cultura visual, fortemente marcada pelos
avanços das técnicas fotográficas.
8 Do ponto de vista conceitual, destaca-se, nos dois textos de abertura do dossiê, o
emprego da noção histórico-geográfica de fronteira para analisar diferentes aspectos da
urbanização balneária no Brasil e na França. A constelação de conceitos vinculados à
noção de fronteira remete às formas, às dinâmicas e aos processos caracterizados por
descontinuidades espaço-temporais, como é o caso das frentes pioneiras, que, por seu
turno, refuncionalizam e ressignificam outras descontinuidades como, por exemplo, a
interface entre urbano e rural ou entre cidade e natureza.
9 Laurent Vidal e Maria Isabel Chrysostomo propõem, em seu artigo, um modelo de
análise do fenômeno balneário moderno que se funda na observação de dinâmicas de
fronteira em diferentes escalas de análise, que vão do mundo ao corpo. Articulando essas
dinâmicas às noções de processo e limiar, os autores nos instigam a reconhecer o caráter
fluido e aberto das situações sociais e dos ordenamentos espaciais que caracterizam os
processos de urbanização balneária.

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10 O modelo é então experimentado para analisar o caso francês e, em particular, o da


região de La Rochelle, no litoral atlântico, a partir do início do século XIX. No jogo entre
as escalas urbana e regional, o fenômeno balneário é descrito a partir da ativação de
frentes pioneiras que orientam a expansão das manchas urbanas, (re)articulam os
núcleos urbanos a partir da extensão de redes de transporte, colonizam novas terras,
modificam as hierarquias entre os lugares, produzindo, ao mesmo tempo, conflitos,
dinâmicas de espoliação urbana, bem como o apagamento de certos grupos sociais e a
destruição de seus modos de vida.
11 As implicações culturais dos processos de balnearização também podem ser analisadas,
como sugerem os autores, a partir da noção de fronteira. Nesse sentido, a “intrusão
balneária” estaria ligada à imposição de novas formas de comportamento que, por sua
vez, funcionam como elementos de distinção, classificação e hierarquização social. Com
originalidade, o artigo explora como a valorização da prática do bronzeamento (que, no
caso francês, remonta à década de 1920) alcança a última fronteira do corpo, a da pele,
reativando “um discurso colonial de desprezo pela cor preta natural do autóctone como
dominado”.
12 Já o artigo de Leticia Parente Ribeiro e Paulo Cesar da Costa Gomes mobiliza a noção de
fronteira para analisar a balnearização da cidade do Rio de Janeiro a partir de um de
seus objetos geográficos mais icônicos: a orla de Copacabana. Os autores sugerem que,
ao final dos anos 1910, durante a gestão do prefeito Paulo de Frontin (1860-1933), a orla
emerge como uma forma espacial, internamente diferenciada, composta de subespaços
(como a faixa de areia, os passeios e as pistas de rolamento) que visam conter,
classificar, controlar e, ao mesmo tempo, reprimir diferentes usos sociais e variados
interesses. É também nas primeiras décadas do século XX que a orla se converte em
modelo, tanto para a gestão da interface entre a cidade e o mar como para a expansão
urbana do Rio de Janeiro ao longo do eixo litorâneo.
13 A forma orla constituiria, ainda segundo os autores, a síntese provisória de um processo
no qual diferentes problemas urbanos se tornam “públicos” — a partir de sua
apresentação na faixa litorânea do bairro de Copacabana e, ao mesmo tempo, em
função da visibilidade que eles adquirem na imprensa periódica da época. Portanto, o
principal argumento do artigo é que as dinâmicas de fronteira que marcam a
emergência da orla como objeto geográfico — extensão, diferenciação e gestão de
interfaces — foram agenciadas a partir das condições efetivas de produção dos espaços
públicos urbanos e de construção da esfera pública presentes no Brasil, particularmente
na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX.
14 A orla de Copacabana passou por uma nova metamorfose no final da década de 1960.
Um projeto grandioso, que incluía intervenções urbanísticas, paisagísticas e obras de
engenharia, redesenhou o sistema de espaços públicos e alterou de modo significativo a
interface entre a cidade e o mar. Uma das principais obras associadas ao projeto, a
alimentação artificial da praia de Copacabana, é discutida no artigo de Priscila Linhares
da Silva e Flávia Lins de Barros. Realizada entre 1969 e 1970, a intervenção mobilizou
cerca de 3,5 milhões de metros cúbicos de areia, transferidos de outras áreas da cidade.
Trata-se de uma das maiores obras de alimentação de praias já realizadas no mundo.
15 Como as alterações ocorridas no início dos anos 1970 influenciaram a vulnerabilidade
atual da praia à erosão costeira? Para responder a essa pergunta, e com o intuito de
caracterizar a dinâmica atual da praia e reconstruir suas características
geomorfológicas no período que antecedeu a obra, as autoras combinaram algumas

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técnicas de monitoramento à consulta de acervos documentais. Também foram feitas


entrevistas com engenheiros que participaram diretamente do projeto de alimentação
artificial. O material das entrevistas trouxe à tona diversos aspectos relacionados ao
contexto institucional e, sobretudo, à circulação de ideias, saberes e práticas implicados
na obra. Nesse sentido, o emprego de métodos mistos de pesquisa não só permitiu
reconstruir as paisagens litorâneas de outrora, como também evidenciou aspectos
pouco conhecidos da história da gestão costeira no Brasil.
16 Devemos destacar ainda a atenção concedida no dossiê aos processos de balnearização
de espaços insulares e sua articulação com as transformações em curso nas regiões
continentais circunvizinhas. Para a França, são estudados os casos de duas ilhas do
Pertuis d’Antioche, estreito situado na costa atlântica do departamento de Charente-
Maritime; e, para o Brasil, há também um estudo da Ilha do Governador, que está
situada na porção oeste da Baía de Guanabara (Rio de Janeiro).
17 Em Un oásis en plein océan, Mickaël Augeron analisa o período inicial de balnearização da
ilha de Ré, tendo como base um vasto conjunto de documentos coletados
minuciosamente em acervos locais ainda pouco explorados. A riqueza do material
documental possibilita uma descrição pormenorizada dos diferentes agentes, objetos,
formas e práticas associados à difusão da função balneária na ilha, ao menos entre as
décadas 1870 e 1930. As décadas que antecedem a Primeira Guerra Mundial são
marcadas pelo incremento das conexões do espaço insular com o continente. Já as
iniciativas de atração de visitantes, sobretudo por parte de agentes privados,
permaneceram esporádicas e pouco articuladas.
18 O período entreguerras, por sua vez, se caracteriza pela expansão dos investimentos
financeiros, destacando-se as campanhas publicitárias e toda sorte de associação de
capitais com o propósito de “atrair os turistas e banhistas visando ampliar a
prosperidade local”. Mas é sobretudo a partir de 1930 que o turismo balneário se
consolida como a principal alternativa para a crise econômica enfrentada na ilha. Seu
agenciamento passa então a se realizar a partir de iniciativas conjuntas de agentes
públicos e privados e perde, definitivamente, o caráter “espontâneo e esporádico” do
período anterior. É o início da massificação do turismo insular. E, embora não se
detenha em tal aspecto, o artigo nos fornece indícios de que o aumento e a
diversificação dos fluxos turísticos, especialmente durante o verão, desencadearam um
conjunto de tensões, motivando tímidas, conquanto visíveis, manifestações dos ilhéus
em reação aos impactos causados pelos visitantes e seus hábitos “urbanos” sobre os
modos de vida locais.
19 A problemática do turismo de massa nos espaços insulares é retomada por Débora
Chueiri, Rafael Fortunato e Thierry Sauzeau. Os autores têm por objetivo, a partir de
um estudo comparado, identificar os impactos do aumento dos fluxos turísticos nas
dinâmicas territoriais das ilhas Grande (Brasil) e Oléron (França). Para atender a tal
objetivo, em primeiro lugar, foi elaborada uma proposta de periodização — baseada em
uma leitura sistemática da bibliografia — das diversas etapas históricas relativas à
transformação das paisagens das referidas ilhas. Eis-nos, assim, diante de configurações
insulares distintas: por um lado, se se considera a Ilha Grande nos anos 1970, há um
período de proteção ambiental que antecede o aumento dos fluxos turísticos, iniciado
em meados dos anos 1990. Na Ilha de Oléron, por sua vez, a etapa de consolidação do
turismo de massa se iniciou na década de 1960, enquanto o período definido pela
implantação de políticas de proteção ambiental é posterior (dos anos 1990 em diante).

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20 Em segundo lugar, os autores combinam uma análise diacrônica de imagens de satélite


— com vistas à compreensão das transformações da paisagem associadas à urbanização
balneária na segunda metade do século XX — à percepção de tais transformações por
antigos moradores em entrevistas. A despeito de suas particularidades, constatou-se
uma regularidade nos impactos sociais e ambientais da urbanização balneária de ambas
as ilhas, a exemplo dos seguintes: a reconfiguração dos modos de vida e do perfil
socioeconômico das populações tradicionais; a alteração dos padrões demográficos; a
reorganização dos mercados fundiário e imobiliário; e, é claro, os profundos danos aos
ecossistemas insulares.
21 O artigo de autoria de Benjamin Caillaud amplia a compreensão da balnearização da
zona insular da região de Charente-Maritime e focaliza, por sua vez, a ilha de Oléron.
Em lugar da variedade de fontes que distingue a contribuição de Mickaël Augeron, a
análise de Caillaud é constituída a partir de um tipo muito específico de documento, até
recentemente negligenciado pela pesquisa acadêmica: o cartão-postal fotográfico.
Objeto material vinculado à modernidade industrial e urbana, difundido e consumido
em massa, colecionado e compartilhado, o cartão-postal constitui, nas palavras de
Christian Malaurie retomadas por Caillaud, um “suporte de enunciação e visibilidade”,
portador de múltiplos significados.
22 A análise detalhada que Benjamin Caillaud faz de coleções de cartões-postais da Ilha de
Oléron evidencia como esses “objetos-visuais” funcionaram como instrumentos de
indução dos fluxos turísticos que, até o início do século XX, ainda eram pouco
expressivos na região. Comercializados e consumidos enquanto “objetos totêmicos da
experiência balneária”, os cartões-postais também constroem “novas percepções do
espaço”. Neles são registradas as práticas, modos de habitar, personagens e
equipamentos associados ao balneário e, ao mesmo tempo, são figurados os “tipos
humanos” e “modos de vida” locais, bem como o aspecto pitoresco das praias e do
litoral. Como sugere Caillaud, as imagens veiculadas em cartões-postais participaram da
“invenção” da ilha de Oléron como destino turístico balneário, às vésperas da Primeira
Guerra Mundial. Um espaço-tempo extraordinário e unificado, a ser desfrutado por
“forasteiros” atraídos pela “força da insularidade como meio existencial” e desejosos de
estabelecer novos vínculos com uma natureza e uma sociedade “autênticas”.
23 Em texto intitulado Do lote ao bairro, guiados por três jovens geógrafos — Bernardo
Castro, Leonardo Iorio e Rhuan Fernandes —, somos conduzidos em um percurso pela
Ilha do Governador, a ilha de maior extensão territorial da Baía de Guanabara, ao longo
de aproximadamente quatro décadas de sua ocupação. Do lote ao bairro. Ideia curiosa, é
verdade. “Interessou-nos realizar uma análise geográfica das imagens que permitisse
compreender a transformação do Jardim Guanabara entre 1920 e 1960, que, de um
loteamento produzido pela Cia. Santa Cruz, se tornou um bairro consolidado da cidade”
— escrevem os nossos guias nas páginas finais de seu artigo. No limite entre uma forma
e outra (do lote ao bairro, como aludem os autores), as ações de uma companhia
imobiliária na divulgação do novo loteamento e na produção de objetos geográficos
típicos da vida balneária posicionam-se na passagem entre dois modos de ocupação: a
residência permanente e a residência veranista.
24 Formas físicas e modos de ocupar em mudança no Jardim Guanabara. Isso foi o que
realçamos no parágrafo anterior. Se, até aqui, já conhecemos o ponto de partida e
alguns dos limites do itinerário traçado pelos guias do percurso, resta-nos conhecer
brevemente os principais pontos de parada e meios de deslocamento — contamos, aqui,

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com a disposição do leitor em nos acompanhar em tal metáfora. Qual é, por exemplo, o
sentido de percorrer tal itinerário de transformações do Jardim Guanabara baseando-se
em imagens? Ao analisar uma série de documentos, sobretudo anúncios de divulgação e
comercialização de lotes, nossos guias identificaram que, ao apresentar o recém-criado
Jardim Guanabara, a referida companhia imobiliária produziu uma série de discursos
visuais sobre a cidade. Tais discursos — frequentemente publicados na imprensa em
combinações de textos e imagens, podemos acrescentar — foram reconhecidos pelos
autores a partir da consideração de algumas variáveis: os elementos figurados (o que se
vê), os pontos de vista (de onde se vê) e a composição (posições relativas dos elementos
figurados).2
25 Voltemos, agora, ao continente. As fotografias também fazem parte do conjunto
documental no qual se baseia o artigo de Lohanne Ferreira. Nele, a autora observa as
praias da cidade do Rio de Janeiro a partir das imagens veiculadas nas páginas da
revista ilustrada O Cruzeiro. Trata-se do primeiro periódico do gênero a ter uma
circulação nacional, e também o de maior vendagem no país até a década de 1950.
Integradas às capas, colunas e fotorreportagens da revista, as imagens analisadas
registram o deslocamento do locus do lazer balneário, já a partir das primeiras décadas
do século XX, do mar para as faixas de areia das praias.
26 A hipótese central do artigo é de que, além de exercer uma função documental, as
fotografias e ilustrações de O Cruzeiro atuam na consolidação de um “imaginário
espacial balneário” associado à cidade do Rio de Janeiro. A autora descreve, então, o
conjunto de elementos que compõem a “estrutura mínima” desse imaginário, tal como
ele se apresenta nas páginas da revista: os corpos “saudáveis” das mulheres das classes
abastadas, trajados em maiôs e biquínis, desfrutando o lazer nas areias das praias
oceânicas da zona sul da cidade. Trata-se, portanto, de uma associação entre a
apresentação do corpo feminino, o hedonismo e as paisagens litorâneas de certos
bairros que funciona como indicador e vetor de distinção social.
27 É sobre as páginas de um outro periódico, neste caso, a revista das praias balneárias sul-
rio-grandenses A Gaivota, que Joana Schossler se debruça em seu artigo Sonhar a casa de
férias. A partir do material publicitário ali contido, a autora analisa as transformações
nos repertórios arquitetônicos que inspiraram a produção de casas de veraneio no
litoral meridional do país, entre 1930 e 1950.
28 As mudanças nos materiais, estilos e tipologias dos imóveis evidenciam as dinâmicas de
especialização e de concorrência do setor imobiliário, bem como a diversidade de
públicos consumidores e o papel das novas exigências da legislação urbana. Mas a casa
de veraneio também atendia a múltiplas e emergentes aspirações sociais: o reencontro
com a natureza selvagem, a experimentação de uma outra temporalidade, o consumo
de novos objetos e a exibição do corpo. Nesse sentido, “o sonho da casa de férias”
sinaliza não apenas a emergência de uma nova modalidade de mercado de terras
urbanas, mas também de novos devaneios sociais, os quais associam o espaço doméstico
com o ritual do tempo livre.
29 Já o artigo de Antoine Huerta, L’humour et les femmes, nos convida a aprofundar a
reflexão acerca da construção do “imaginário balneário” a partir de um estudo
comparado de obras literárias. O autor propõe uma leitura das comédias de costumes
(moeurs) francesas e brasileiras, publicadas no final do século XIX. É nesse período que
os “banhos de mar” passam a estar associados mais às atividades de lazer do que às
práticas terapêuticas.

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30 Huerta identifica, em obras naturalistas de escritores como Émile Zola, Machado de


Assis e os irmãos Azevedo (Arthur e Aluízio), um topos literário balneário composto por
personagens da burguesia retratados nas praias e caracterizado pelo emprego de
metáforas animais (conchas e órgãos genitais femininos) e arquiteturais (grutas,
palácios, cabanas) associadas à erotização dos corpos femininos. A hipocrisia e a ironia
presentes nas fontes consultadas pelo autor constituem uma das chaves para a
compreensão da emergente cultura balneária moderna, bem como das formas de
circulação das ideias e dos valores morais e estéticos a ela associados.
31 Estes são apenas alguns dos temas desenvolvidos e das questões ensejadas pelos artigos
reunidos neste dossiê. Esperamos que suscitem novas perguntas e estimulem outros
pesquisadores a indagar, a partir de métodos e fontes variados, os múltiplos aspectos
relacionados à produção dos espaços balneários de ontem e de hoje.
Boa leitura!

NOTAS
1. Nos anos de 2018 e 2019, o projeto promoveu intercâmbios fecundos entre pesquisadores
brasileiros e franceses por meio de missões de trabalho e estudo, encontros científicos e
trabalhos de campo. O projeto sofreu uma interrupção brusca durante os anos de 2020 e 2021, em
virtude da pandemia de COVID-19, porém, no início de 2022, obteve uma prorrogação de um ano.
2. Gomes, Paulo (2013). O Lugar do Olhar: Elementos para uma geografia da visibilidade. 1. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil.

AUTORES
LETICIA PARENTE RIBEIRO
Mestre em Geografia, Professora Assistente do Departamento de Geografia/UFRJ. E-mail:
leticiapr@igeo.ufrj.br

MARIA ISABEL DE JESUS CHRYSOSTOMO


Professora Associada da Universidade Federal de Viçosa. Integrante do projeto Capes-Cofecub.
Endereço: UFV – Departamento de Geografia – Av. PH Rolfs, s/n; Campus universitário; 36570-900
Viçosa-MG. E-mail: isachrysostomo@ufv.br

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