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PAISAGISMO E DESENHO

AMBIENTAL
Lucimeire Pessoa de Lima
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SUMÁRIO

1 CONCEITOS GERAIS DE PAISAGEM, DESENHO AMBIENTAL, PAISAGEM


URBANA E HISTÓRIA DO PAISAGISMO ....................................................... 3
2 PROJETO PAISAGÍSTICO ......................................................................... 18
3 FORMA URBANA E ARQUITETURA PAISAGÍSTICA: ESTUDOS DE CASO ... 31
4 MOBILIDADE URBANA E SISTEMAS DE CIRCULAÇÃO ............................. 42
5 ESPAÇOS PÚBLICOS: RUAS, PRAÇAS, PARQUES ..................................... 53
6 RECUPERAÇÃO DE CENTROS URBANOS ................................................. 66

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1 CONCEITOS GERAIS DE PAISAGEM, DESENHO AMBIENTAL, PAISAGEM


URBANA E HISTÓRIA DO PAISAGISMO

Apresentação

Olá, querido(a) aluno(a)!

No bloco 1 conheceremos os conceitos básicos de Paisagismo e Desenho Ambiental,


como eles se inserem na compreensão mais ampla sobre Arquitetura, Desenho Urbano
e Urbanismo e o porquê dividimos em tantos nomes e conceitos, que advêm do
mesmo pensamento: o projeto dos espaços, sejam internos ou externos.

Vamos discutir sobre os discursos que essas diferentes denominações incorporam e


como esses conceitos auxiliarão a compreender as diversas atuações dos arquitetos
urbanistas, especializados em paisagismo ou não. Também abordaremos a História do
Paisagismo e do Desenho Ambiental e como esse último vai além das questões
estéticas e funcionais, que guiavam o Paisagismo antes de seu surgimento e os
elementos que essa nova denominação incorporou. Além disso, compreenderemos de
que forma a inclusão dos conhecimentos da Ecologia e o estabelecimento de um
campo de estudos teóricos sobre a História do Paisagismo valorizaram a atuação dos
profissionais dessa área.

Ao final deste bloco, você será capaz de reconhecer as diversas possibilidades de


atuação profissional no campo do Paisagismo e do Desenho Ambiental, em suas
diferentes escalas e abordagens. Temos certeza de que depois de percorrer esta trilha
de aprendizagem você terá um olhar mais aprofundado e sensível aos espaços livres e
suas diversas funções para a vida humana.

Bons estudos!

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1.1 Paisagem e meio ambiente

Quando pensamos em paisagem, nos lembramos daquelas fotos de natureza, que


tiramos quando estamos em férias. Na verdade, a palavra paisagem, do francês
paysage, vem exatamente daí: desse trecho de mundo que alcançamos com a vista e
que gostamos de retratar, em séculos passados, na forma de pinturas, e desde a
invenção da fotografia, também em fotos. Por meio dessas representações, podemos
enxergar com mais detalhes o mundo em nossa volta e compreendê-lo melhor.

A partir do século XV, portugueses, espanhóis e outros povos saíram da Europa rumo à
América e outras localidades do globo com objetivos comerciais, mas também de
expansão territorial. Durante alguns séculos, as representações dos territórios
explorados e colonizados eram feitas através de pinturas, desenhos e cartas. Esses
registros eram muito importantes para contar como era o nosso ambiente por aqui: o
relevo, os corpos d´água, as plantas, os animais e os povos originários do nosso
continente. Esse processo durou quase quatro séculos e, no início do século XIX, foi
fundada a Missão Artística Francesa no Rio de Janeiro, que tinha dentre seus
professores Jean-Baptiste Debret, importante pintor de paisagens dessa época.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Jean_baptiste_debret_-_ca%C3%A7ador_escravos.jpg.

Figura 1.1 — O Caçador de Escravos, quadro de Debret que mostra várias espécies
vegetais, o relevo e um pouco do cotidiano dos povos colonizados.

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Naquela época, os elementos naturais das paisagens se destacavam: o mar, as


florestas, as montanhas e os rios não eram um mero pano de fundo de uma cena, eles
faziam parte da vida cotidiana das povoações. Hoje temos à nossa volta nas cidades
tantos elementos construídos pelo homem que fica difícil reconhecer o meio natural.
Naquela época, a natureza imperava e os elementos construídos pelo ser humano não
conseguiam apagá-la, até porque a população era bem menor e a ocupação do
território se dava mais lentamente.

É a partir da Revolução Industrial, em meados do século XIX, que o crescimento


populacional acelera exponencialmente. Esse crescimento desembocou ao longo dos
séculos XIX e XX na inversão da proporção entre a população rural e a urbana. Essa
transformação mudou totalmente a forma de nos relacionarmos com a natureza e com
a paisagem natural.

No Brasil, segundo dados de Santos (1996), é entre as décadas de 1960 e 1970 que a
população passa a ser majoritariamente urbana. Segundo o site do IBGE (2022), as
populações urbana e rural brasileiras representavam, respectivamente, 87,1% e 12,9%
em 2020. Só no Brasil, mais de 20% da população vive em 17 municípios com mais de 1
milhão de habitantes (BRASIL, 2021).

Entretanto, é mais difícil e caro gerir os problemas ambientais causados por grandes
cidades: não é possível contar com a natural transformação e dispersão dos poluentes
gerados por essas gigantescas populações como única forma de devolver a qualidade
ao ambiente. A poluição dos rios por dejetos humanos, por exemplo, se não for
volumosa, a própria fauna e flora é capaz de absorvê-la e devolver a qualidade à água,
o mesmo não acontece quando o volume dessa poluição ultrapassa a capacidade de
regeneração do ambiente.

Com o desenvolvimento de tecnologias, a poluição causada pela indústria diminuiu,


mas o enorme crescimento dos consumidores de produtos industrializados,
acompanhado do uso indiscriminado do carbono presente no carvão, no petróleo e no
gás natural ainda são responsáveis pela intensiva degradação do planeta. O enorme
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gasto de energia e matéria-prima para sustentar os padrões de consumo atuais de


grande parte da população mundial, com a imensa geração de resíduos desses
processos, são as principais causas da poluição generalizada e pouco controlada do
meio ambiente.

A poluição da atmosfera, por derivados da queima do petróleo, ocasionou o aumento


da temperatura global, acarretando a maior frequência de catástrofes naturais como
as enchentes e os furacões. Além disso, o derretimento das geleiras tende a aumentar
gradativamente o nível dos oceanos, expulsando enormes contingentes de populações
litorâneas.

O grau de alterações no ambiente natural é tão alto e irreversível que cientistas


cunharam o termo Antropoceno, para designar a nova era planetária, em que a
influência da população humana mundial sobre o mundo pode ser considerada um
fator de escala geológica.

A vida humana depende da saúde do planeta, tanto em escala global, como em escala
local. É imprescindível que comecemos a compreender mais profundamente nossas
interações com o planeta. Precisamos mudar de atitude.

Quando alguém joga uma bituca de cigarro na rua, não se dá conta que esse pequeno
resíduo pode parar no sistema de coleta de águas pluviais, rumar até os rios e atingir,
mesmo que só em termos de elementos químicos poluentes, os oceanos. Da mesma
forma, como arquitetos e profissionais de paisagismo, somos responsáveis por
escolhas como impermeabilizar ou não o solo, escolher espécies nativas ou exóticas,
utilizar materiais existentes na região ou trazidos de longe, que gastam mais ou menos
energia na sua fabricação etc. Todas essas escolhas vão ocasionar diferentes impactos
na natureza e contribuir, ou não, para a preservação do meio ambiente.

A partir de meados do século XX, a comunidade científica começa a questionar o modo


de vida das nações mais desenvolvidas. Farr (2008) faz uma contundente crítica ao
modo de vida norte-americano, que representa a exacerbação dos níveis de conforto
propagados pela sociedade de consumo. O estilo de vida dos norte-americanos está
baseado no uso do automóvel individual, na alimentação fast food e nos condomínios
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de casas nos subúrbios, distantes dos centros urbanos. Esses elementos acarretam alta
propensão à obesidade da população, horas diárias despendidas no trânsito ou dentro
de automóveis, pouco contato com a natureza e quase nenhuma atividade física. Além
dos impactos diretos na saúde física e psíquica das pessoas, esse modo de vida
aumenta muito a poluição atmosférica global, pelo excesso de queima de combustíveis
fósseis e impacta, diretamente, o meio ambiente pelo alto consumo de energia e
matérias-primas para alimentar as demandas desse imenso mercado consumidor.

Com certeza, um norte-americano típico é mais responsável pelo aquecimento global


do que um cidadão africano ou até mesmo europeu; isso pode ser medido a partir do
conceito de ‘pegada ecológica’. Segundo o WWF (2022), ONG internacional, ‘pegada
ecológica’ é uma metodologia de contabilidade ambiental, que avalia a pressão do
consumo das populações humanas sobre os recursos naturais.

Em poucos séculos, a relação do ser humano com a natureza mudou totalmente. De


um simples habitante do planeta, ele tornou-se um dos protagonistas das
transformações no meio ambiente em escala global. Essa compreensão é fundamental
para entendermos a diferença entre Paisagismo e Desenho Ambiental e atuarmos,
profissionalmente, de modo consciente.

1.2 Paisagismo e desenho ambiental

Podemos entender o paisagismo de uma maneira simples: à semelhança da


arquitetura, ambos têm como principal objetivo atender as demandas dos futuros
usuários dos espaços que projetam, utilizando de diversos elementos formais naturais
e/ou artificiais. A diferença é que o paisagismo se concentra nos espaços externos às
edificações.

Sua origem está relacionada à antiga e milenar tradição dos jardins. No Brasil durante
muito tempo, no Império e na República, foram utilizados modelos formais para os
espaços livres, inspirados nas tradições inglesa ou francesa. Os jardins ingleses
remetiam a uma imitação da natureza, com características formais mais livres;
enquanto os jardins franceses, advindos da tradição renascentista italiana (em que
imperava a geometria e a simetria), utilizavam a poda das espécies vegetais, numa
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tentativa de fazê-las semelhantes a esculturas e formas simples, contrárias às formas


complexas da natureza.

Fonte: Michal Balada via Shutterstock.

Figura 1.2 — Jardim francês: simétrico e com espécies podadas geometricamente.

Fonte: Ragemax via Shutterstock.

Figura 1.3 — Jardim inglês: imitação da natureza.

A atividade profissional do paisagista surge no Brasil em meados do século XIX, com a


chegada da família real que convidou Auguste François Marie Glaziou, em 1858, para
atuar como Diretor Geral de Matas e Jardins no Rio de Janeiro. Entre os séculos XIX e
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XX, a vinda de paisagistas franceses ao Brasil e à América Latina foi importante para a
implantação do paisagismo no continente. Desde a segunda década do século XX,
distinguiram-se outras correntes paisagísticas, associadas ao movimento modernista.
Destaca-se nesse contexto, Mina Klabin, responsável pelo projeto paisagístico das
casas projetadas pelo seu marido, Gregori Warchavchik, autor da primeira casa
modernista (SILVA, 2008).

Já Desenho Ambiental é um termo mais recente e que amplia o escopo do paisagismo,


pois incorpora a preocupação com o meio ambiente entre suas premissas. O Desenho
Ambiental é orientado pela ideia de Ecologia, que enxerga nas ações humanas a
responsabilidade pelo meio ambiente e pela manutenção da vida, a partir da
consciência da necessidade de preservação dos ecossistemas naturais. O profissional
arquiteto paisagista que atua a partir das premissas do Desenho Ambiental procura
harmonizar as demandas humanas e o cuidado com o meio ambiente.

Essa consciência começa a surgir com a publicação, em 1953, do livro “Fundamentos


da Ecologia” por Eugene P. Odum, formando as bases desta disciplina incipiente, mas
cujos princípios revolucionaram os métodos de abordagem do paisagismo e do
planejamento urbano. Para Odum (1953), a cidade é um exemplo de ecossistema
heterotrófico, que necessita buscar ‘alimento’ em outros ecossistemas,
diferentemente de um ecossistema autotrófico, que é capaz de gerar seu próprio
alimento, através dos seus processos internos. Compreender o conceito de
ecossistema foi fundamental para mudar a visão da atuação humana na natureza, mas
o livro de Odum não foi o único acontecimento que fez surgir o novo paradigma
ecológico. A seguir, contaremos mais alguns fatos relevantes a esse respeito.

1.3 Um pouco mais de história...

É importante resgatar alguns acontecimentos do século XX que colocaram a


perspectiva ambiental definitivamente na agenda de preocupações para o futuro da
humanidade. A terrível destruição ocasionada pelas bombas atômicas que atingiram as
cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, no fim da 2ª Guerra Mundial, chocou a
população mundial, mobilizou inúmeros ativistas e deu força ao movimento
ambientalista. Além de dizimar milhares de vidas, a radiação expelida pelas bombas

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provocou o sofrimento dos sobreviventes por décadas, com vários tipos de


deformações e doenças. A Guerra do Vietnã, que durou de 1959 a 1975, também era
alvo do ativismo pacifista e ambientalista da década de 1960, que fazia o ser humano
repensar a respeito dos destinos da humanidade.

Em 1962, Rachel Carson escreveu o livro “Primavera Silenciosa”, que tratava das
consequências do uso indiscriminado de agrotóxicos, mostrando um estudo sobre o
impacto do uso do DDT na agricultura norte-americana nas décadas de 1940 e 1950.
Além do minucioso estudo científico, Carson apresenta argumentos contra a crença
ilimitada no progresso tecnológico. Também podemos citar o livro “Design with
Nature”, escrito em 1969 por Ian McHarg, que como muitos de sua geração faz uma
ligação direta entre cidade e doença. Nele o autor se opõe duramente à poluição,
feiura e falta de vegetação de sua cidade nativa, Glascow. Ambos, Carson e McHarg,
inspiraram o movimento ambientalista que cresce a partir da década de 1960,
desembocando em diversas vertentes (FARR, 2008).

Outro potente discurso sobre o desequilíbrio ambiental foi o livro “Gaia: uma nova
visão da vida na Terra”1, escrito em 1972, por James Lovelock, meteorologista da
NASA, que descreve a contundente hipótese Gaia. Nela, a fina casca habitada pela vida
na Terra foi descrita como um sistema autorregulado e em evolução, dotado de vida e
inteligência, mas que estava sofrendo danos irreparáveis pela ação humana. Lovelock
acreditava que haveria possibilidade de sobrevivência da espécie humana se
mudássemos de atitude em relação à Gaia. Uma de suas maiores preocupações era o
aquecimento global gerado pela queima de combustíveis fósseis, por isso propõe a
substituição das fontes de energia poluentes por fontes limpas, como a energia
nuclear.

Nesse mesmo ano, com o crescimento da preocupação sobre o uso saudável e


sustentável do planeta e de seus recursos, a ONU – Organização das Nações Unidas –
convocou a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo

1
Outro livro recente (2006) de Lovelock é A vingança de Gaia (o título completo em inglês é The revenge
of Gaia: why the earth is fighting back, and how we can still save the humanity.
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(Suécia). Nessa ocasião, foram declarados 19 princípios que conformaram um


Manifesto Ambiental (CETESB, 2020).

PARA SABER MAIS:


https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
https://www.un.org/es/

Na década de 1980, dando continuidade à discussão da década anterior, novamente a


ONU se destaca como organização mundial preocupada com o meio ambiente. Dessa
vez, produz um relatório, o ‘Nosso Futuro Comum’, feito pela Comissão Mundial sobre
o Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela médica norueguesa especialista
em saúde pública, Gro Harlem Brundtland. Esse relatório, também conhecido como
relatório Brundtland, foi produzido a partir de uma visão ampliada dos problemas
ambientais e humanos e foi capaz de convocar os preceitos do desenvolvimento
sustentável para o discurso público (CETESB, 2020). O relatório Brundtland também foi
inovador ao oferecer dados sobre o aquecimento global e a destruição da camada de
ozônio, assuntos que eram incipientes à época.

Em 1988, o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – e a OMM
– Organização Meteorológica Mundial, se uniram para criar o IPCC – Painel
Intergovernamental para as Mudanças Climáticas, que se tornou a principal fonte de
informações científicas relacionadas às mudanças climáticas. Em 1997, foi adotado o
Protocolo de Kyoto, que estabeleceu metas obrigatórias de redução das emissões dos
gases causadores do efeito estufa para 37 países industrializados e para a comunidade
europeia (CETESB, 2020).

As recomendações feitas pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e


Desenvolvimento, na década de 1980, levaram à realização da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, destacando e
ampliando ainda mais o debate no âmbito público. Realizada no Rio de Janeiro, a
‘Cúpula da Terra’, como ficou conhecida, desenvolveu a ‘Agenda 21’, trouxe princípios
para a proteção do nosso planeta, através do seu desenvolvimento sustentável
(CETESB, 2020).

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Anteriormente destacamos alguns dos principais eventos relacionados à


sustentabilidade ambiental, no século XX. No novo milênio, o debate não só
continuou, como se estendeu para muitas instâncias da sociedade. Na Arquitetura,
presenciamos a inserção definitiva de uma discussão ambiental bem mais elaborada,
refém da inclusão de fatores técnicos contemporâneos. Uma evidência desse processo
é a inclusão das certificações ambientais, selos e outras normas no rol dos projetos
arquitetônicos há algumas décadas, no sentido de medir, avaliar, comparar e gerar
pontuações (GRAZZIANO, 2019).

Além desse cenário voltado à questão ambiental, Franco (1997) mostra que o estudo
acadêmico do paisagismo e sua história valorizou a atuação profissional e formou a
base formal e técnica desse ramo do conhecimento, culminando na atuação de figuras
como Roberto Burle Marx, Silvia Crowe, Ernest Cramer, Luis Barragán, Garret Eckbo,
Kevin Lynch, Donald Appleyard, Jane Jacobs, Lawrence Halprin e Ian Mcharg. Também
gostaríamos de incluir a importante paisagista brasileira Rosa Kliass, que fez inúmeros
projetos de espaços públicos em São Paulo, destacando-se o projeto paisagístico da
Av. Paulista (1973), a reurbanização do Vale do Anhangabaú (1981) – ambos não
existem mais – e o Parque da Juventude (2003).

1.4 Cidades e paisagem urbana

Há pelo menos sete mil anos, as cidades fazem parte do mundo habitado pelo ser
humano. Nelas se dão os grandes avanços e recuos da humanidade, a história da
civilização manifesta-se nos espaços urbanos. As diferentes paisagens urbanas têm
revelado as singularidades dos períodos históricos em que apareceram: as cidades-
Estados gregas como Atenas, Esparta, Tebas, Creta e Troia com seus monumentais
templos e edifícios públicos, espelhavam as características de suas sociedades; assim
como as protegidas cidades muradas da Idade Média, reflexos de suas sociedades
fechadas, sem mobilidade social e dominadas pelo clero, que detinha conhecimento
guardado. Durante a Revolução Industrial, já no século XIX da nossa era, as cidades
crescem com a imigração do campo e passam a ser os locais onde se dão os avanços
sociais, tecnológicos, culturais e políticos.

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Contudo, uma visão que contrapunha a cidade e a natureza predominou durante


muito tempo no imaginário humano. Como vimos, vários teóricos propugnavam uma
aversão aos sistemas humanos e os primeiros ambientalistas defendiam ideias radicais
de retorno a uma vida natural, contrária ao mundo tecnológico e artificial, responsável
pela poluição e destruição da natureza. Todavia, outras formas de encarar a relação
homem-natureza foram surgindo, dentre elas podemos citar a de Anne Spirn (1995)
que descreveu com uma potente linguagem poética associada a pesquisas científicas
as interações da ocupação humana com o meio natural. O conhecimento sobre o meio
natural deveria refletir em novas formas, mais harmônicas, de ocupar o território.
Ocupar as várzeas dos rios que são naturalmente alagáveis, por exemplo, é estabelecer
uma relação de confronto com a natureza.

A cidade é um jardim de granito, composto por muitos jardins menores, disposto num
“mundo-jardim”. Partes do jardim de granito são cultivadas intensivamente, mas a
maior parte não é reconhecida e é negligenciada.

Para o olhar desatento, árvores e parques são os únicos remanescentes da natureza na


cidade. Mas a natureza na cidade é muito mais do que árvores, jardins e ervas nas
frestas das calçadas e nos terrenos baldios. É o ar que respiramos, o solo que pisamos,
a água que bebemos e expelimos e os organismos com os quais dividimos nosso
habitat. A natureza na cidade é uma força poderosa que pode sacudir a terra, fazendo-
a deslizar, deslocar-se ou desmoronar-se (SPIRN, 1995, p. 20).

Outro livro muito interessante é o “Cidades para um Pequeno Planeta”, de 1997 (a


edição em português é de 2001) de Richard Rogers. Nele, Rogers inspirado, dentre
outros, no “Manual de operações para o Planeta Terra” de Buckminster Fuller que
compara o planeta Terra a uma nave espacial, reforça que os recursos de nosso
planeta são esgotáveis. Ainda permanece uma preocupação grande em equilibrar
população e recursos naturais. Para Rogers, as cidades são parasitas, que consomem
os recursos naturais e lançam dejetos, mas também são palco da riqueza cultural
humana. O modelo de cidade proposto é o de uma cidade densa, que aumenta a
eficiência energética e interfere menos no meio circundante, com menor
desmatamento das áreas verdes. Nele, o tamanho da cidade deve ser controlado,
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dividindo-a em várias unidades autossustentáveis, interligadas por transporte de


grande velocidade. Além dessas propostas utópicas, Rogers também tem um olhar
atento para as cidades reais, defende os espaços multifuncionais como responsáveis
pela vitalidade urbana e a necessidade de qualificar os espaços públicos. Descreve
alguns aspectos especiais de cidades como Londres e Curitiba, preocupadas com a
qualidade de vida de seus habitantes e com a sustentabilidade ambiental.

As cidades e as paisagens urbanas se transformam no decorrer do tempo e são o


resultado de uma miríade de relações humanas, de uma determinada época histórica,
que detém uma tecnologia específica e participa de uma cultura, toda intrincada com
o ambiente onde se situa. A cidade não é objeto de estudo exclusivo do urbanista,
muito menos fruto unívoco de seus projetos. A cidade é uma criação humana e sob
interferência de muitos atores sociais, como o mercado imobiliário, os movimentos de
luta por moradia, os governos, empresas, cidadãos etc. Na verdade, toda a sociedade
possui menor ou maior grau de influência sobre a forma da cidade. Cabe a nós,
arquitetos urbanistas, especializados ou não em desenho urbano, paisagismo ou
desenho ambiental, ter consciência das consequências de nossas escolhas de projeto e
lutar, como cidadãos, por cidades mais justas, agradáveis, bonitas e sustentáveis.
Nossos conhecimentos podem ajudar muito.

1.5 Com tudo isso, onde atuamos?

É muito amplo o leque de atuação profissional dos arquitetos urbanistas relacionado


ao desenho ambiental e ao paisagismo. Segundo as especificações do CAU BR –
Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – sobre as atividades e atribuições
profissionais do arquiteto urbanista, podemos trabalhar diretamente com arquitetura
paisagística, concebendo e/ou executando projetos para espaços externos, livres e
abertos, privados ou públicos, como parques e praças. Alguns dos produtos do
trabalho nesse campo são: levantamento paisagístico; prospecção e inventário;
projeto de arquitetura paisagística; projeto de recuperação paisagística; plano de
manejo e conservação paisagística; execução de obra de arquitetura paisagística;
execução de recuperação paisagística; implementação de plano de manejo e
conservação.

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Na área de trabalho que engloba o patrimônio arquitetônico, urbanístico e


paisagístico, podemos trabalhar com a preservação de jardins e parques históricos;
execução de obras de restauração paisagística; execução de requalificação paisagística
e a implementação de planos de manejo e conservação.

Também podemos trabalhar produzindo estudos de viabilidade técnica e ambiental,


avaliando impactos ambientais, participando de licenciamentos ambientais etc.
Trabalhos nessa área geralmente são desenvolvidos por consultorias especializadas ou
órgãos públicos no sentido de produzir informações ambientais, identificar e propor
zoneamentos geoambientais e produzir diagnósticos ambientais gerando documentos
oficiais, como: Relatório Ambiental Simplificado e Estudo de Impacto de Vizinhança –
EIV; o Estudo de Viabilidade Ambiental – EVA; o Estudo de Impacto Ambiental –
Relatório de Impacto no Meio Ambiente – EIA – RIMA; o estudo de Impacto Ambiental
complementar – EIAc. Também constam dessa área o Plano de Monitoramento
Ambiental, o Plano de Controle Ambiental – PCA, o Relatório de Controle Ambiental –
RCA, o Plano de Manejo Ambiental, o Plano de Recuperação de Áreas Degradadas –
PRAD e o Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos – PGRS.

Além disso, a área ambiental também abarca a escala do Planejamento Territorial, com
trabalhos como levantamento físico-territorial, socioeconômico e ambiental;
diagnóstico socioeconômico e ambiental; plano de desenvolvimento regional; plano de
desenvolvimento metropolitano; plano de desenvolvimento integrado do turismo
sustentável – PDITs; plano de desenvolvimento de região integrada – RIDE; plano
diretor de mobilidade e transporte. Na escala do planejamento urbano, estão
levantamento ou inventário urbano; diagnóstico físico-territorial, socioeconômico e
ambiental; planejamento setorial urbano e plano de intervenção local.

Também atuamos no desenvolvimento de planos diretores, tais como plano de


saneamento básico ambiental, plano diretor de drenagem pluvial, plano diretor de
mobilidade e transporte, plano diretor de desenvolvimento integrado do turismo
sustentável – PDITs, plano de habitação de interesse social e plano de regularização
fundiária. Existem outras funções importantes para os arquitetos urbanistas dentro do
Planejamento Urbano: análise e aplicação dos instrumentos do estatuto das cidades,
plano ou traçado de cidade, plano de requalificação urbana etc.

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Conclusão

Nesta trilha de aprendizagem, introduzimos alguns conceitos sobre paisagismo e


desenho ambiental, comparando seus objetivos e atividades com os desenvolvidos
pela arquitetura de modo geral. Os assuntos foram conduzidos através de um viés
histórico livre, destacando fatos relevantes de diversas épocas que auxiliaram a
contextualizar o desenvolvimento da profissão do arquiteto paisagista. Também nos
concentramos em abordar o paradigma ecológico e sua evolução para enfrentar os
problemas do novo milênio com as ferramentas da arquitetura e urbanismo. Dessa
compreensão ampla, seguiremos compreendendo mais detidamente qual o escopo do
trabalho do arquiteto paisagista e os desafios ecológicos enfrentados atualmente no
pensamento sobre a cidade.

REFERÊNCIAS

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Mudanças Climáticas do Estado de São Paulo. Conferências Internacionais. 11 dez.
2013. Disponível em: https://bit.ly/3w6jgCc. Acesso em: 12 maio 2022.

BRASIL. Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. Resolução CAU/BR n. 21, de 5


de abril de 2012. Atividades e Atribuições Profissionais do Arquiteto Urbanista. p. 7,
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BRASIL. Estatísticas – População brasileira chega a 213,3 milhões de habitantes,


estima IBGE. 27 ago. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3MbUFBJ. Acesso em: 12 maio
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BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Países – Brasil. Disponível em:


https://bit.ly/3Mmo6kk. Acesso em: 12 maio 2022.

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Sons, 2008.

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com o paradigma ecológico. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1997.

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GRAZZIANO, R. Virtualidades e contradições no espaço sob padrões globais: LEED® e


arquitetura corporativa em São Paulo. 2019. 440 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo. 2019.

ODUM, E. P. Fundamentals of ecology. Philadelphia e Londres: W.B. Saunders Co.,


1953.

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SANTOS, M. A urbanização brasileira. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

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SPIRN, A. W. O jardim de granito: a natureza no desenho da cidade. São Paulo: Edusp,


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WORLD WIDE FUND FOR NATURE. Pegada ecológica? O que é isso? WWF, 22 jan.
2022. Disponível em: https://bit.ly/3N89V2v. Acesso em: 12 maio 2022

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2 PROJETO PAISAGÍSTICO

Apresentação

Neste bloco vamos abordar as principais fases do projeto paisagístico, lembrando que
este é apenas uma das atribuições profissionais possíveis do(a) arquiteto(a) paisagista.
Trataremos das informações necessárias para iniciar um projeto e como delinear
diretrizes para o seu desenvolvimento, por meio da definição de um Partido.
Trataremos também de algumas especificidades dos projetos paisagísticos, como a
especificação da vegetação. Tenho certeza de que nos debruçarmos sobre os
elementos que definem o trabalho do(a) arquiteto(a) paisagista, vai instigar sua
percepção e aumentará sua compreensão sobre os espaços livres e suas diversas
demandas.

2.1 Análise do sítio físico e outras condicionantes do projeto

Antes de iniciar qualquer projeto é necessário saber onde será feito. Mais do que isso,
é imprescindível saber como é este lugar, quais são as suas características sob vários
aspectos. Para evitar surpresas desagradáveis durante a obra, o primeiro trabalho que
se faz é um levantamento, um relatório sucinto que organiza todas as características e
elementos do local de projeto.

Em primeiro lugar distinguir se é um lote urbano ou um lote rural e ter conhecimento


de toda a infraestrutura que o serve. Se possui rede de energia elétrica e qual a sua
potência, se tem redes de gás, internet, telefone, água encanada, rede de esgoto e
escoamento de águas pluviais, coleta de lixo e em que dias e horários é feita ou se há
sistemas intermediários de depósito de lixo, como caçambas especiais para coleta de
lixo.

É necessário saber também sobre as condições da(s) via(s) que dão acesso ao lote, se
são asfaltadas ou não, largura e possibilidades de chegar com caminhões ou outros
equipamentos de obra de porte grande, como guindastes, gruas etc. Pois se for
intenção do projeto chegar com uma estrutura pré-fabricada ou uma árvore de grande

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porte para replantio, por exemplo, é necessário saber como se dará o acesso. Se a
fiação é enterrada ou aérea, onde se localizam os postes, se há iluminação de rua,
como são as calçadas, se existem árvores nelas. Listar todos os elementos que possam
ser barreiras ao projeto que se pretende.

Sobre o próprio lote, é necessário saber suas condições físicas: o formato, as


dimensões, a área, a declividade, o tipo de solo, a orientação do Sol e dos ventos e
informações gerais sobre o clima da região. Se há vegetação nativa, pedras de grande
porte, corpos d'água naturais ou artificiais, estas ocorrências podem significar que
existem áreas de preservação. O projeto de paisagismo deve se integrar
harmonicamente ao meio existente, natural ou edificado, por isso o levantamento
Inicial deve dar conta de descrever sumariamente as edificações preexistentes, de
caráter histórico ou não, e outros elementos significativos, como vegetação de grande
porte, matas nativas, monumentos, caminhos etc.

Também é necessário conhecer a legislação municipal2 incidente no lote, além da


legislação ambiental incidente na área, se se trata de uma APP – Áreas de Preservação
Permanente, por exemplo. Outras situações podem demandar atenção também, no
sul do Brasil, por exemplo, foi proibida a derrubada da espécie arbórea Araucária.
Então, se você especificar o plantio dessa espécie neste local, ela ficará para sempre.
Curiosidade: esta lei foi aprovada para evitar a extinção desta espécie, contudo tem
surtido efeito contrário, já que os proprietários de terra têm eliminado praticamente
todas as mudas que se reproduzem naturalmente, com receio de não poder fazê-lo
quando estiverem mais crescidas.

Da mesma forma, é necessário ter informações sobre a vizinhança do lote, como são
as construções, que altura têm e que sombras projetam no lote do projeto. Existe uma
canalização de vento? Existem fontes de ruído, como bares, pontos de ônibus? É
próximo ao transporte público?

2
Leis municipais de parcelamento do solo e zoneamento (registro de uso, recuos e afastamentos,
coeficiente de construção, taxa de ocupação e gabaritos).
19
,

Todas estas informações podem ser extraídas de diversas fontes, como o próprio
cliente, mas é imprescindível que o arquiteto faça uma visita ao local para verificá-las
com olhar técnico. Sugere-se que vá munido de bloco de notas, máquina fotográfica,
bússola e a(s) planta(s) base do local para anotações, em escala reduzida, que caiba
numa prancheta de mão.

Além de todas estas informações objetivas, com certeza a visita ao terreno também é
importante para identificar outras características do local, um pouco mais subjetivas,
como: qual é a melhor vista, qual é a relação que se quer ter com a vizinhança no
sentido de abrir visualmente o projeto, destacá-lo do entorno ou mimetizá-lo etc.

O ideal é que haja uma integração entre os projetos Paisagístico e Arquitetônico, na


verdade, ambos deveriam ser pensados conjuntamente, ainda na fase inicial do
projeto. Este é um dos objetivos do desenho de Implantação. Contudo, muitas vezes o
projeto paisagístico vem a posteriori e encontra um edifício pré-existente com o qual
tem que lidar, o que não é uma situação ideal. Contudo, ainda hoje é uma situação
comum o projeto de paisagismo só ser contratado depois, o que exige saber lidar com
o existente para propor soluções que atendam às demandas do cliente e do projeto.

2.2 Desenvolvimento do programa de necessidades

O programa de necessidades de um projeto paisagístico inclui todas as funções


convenientes a determinado uso humano, mas não só. O programa de necessidades
guiará as demandas do projeto paisagístico, seja de grande porte ou de uma pequena
área livre residencial ou comercial, não importa a escala. As demandas podem ser
divididas em diversas categorias: dos usuários, dos clientes, do meio ambiente, da
cidade etc. Constituem uma forma de ampliar o escopo inicial do projeto e incentivar
ideias.

Quais são as atividades que fazemos em uma praça? Faça uma lista antes de
continuar lendo. E se fosse um parque, mudaria o quê na sua lista? Incluiria algum
esporte? Uma quadra de basquete ou um paredão, se o parque for pequeno. Um
lago? Para que serve um lago? Tem uma função muito importante e pouco tangível
nos projetos paisagísticos denominada contemplação. Mas um lago pode ter outras
20
,

funções também: acumular as águas das chuvas, criar peixes, resfriar o ambiente por
evaporação etc. Vá a um parque da sua cidade e observe, agora faça uma lista de todas
as funções que você conseguiu observar. Quanta coisa podemos fazer ao ar livre, não é
mesmo?

Na escala da cidade, o projeto de paisagismo para os espaços públicos deve considerar


o projeto de urbanismo, que define o traçado urbano, os volumes edificados, os usos,
a localização dos lotes, as áreas institucionais (escolas, unidades de saúde, unidades
administrativas) e públicas (parques e praças) e trabalhar com elementos que os
qualifiquem ambientalmente.

2.3 Partido: conceitos e formas


A ideia de ‘partido’ do projeto, termo muito utilizado, assim como o termo
‘composição’, indicam que existe uma subjetividade expressiva determinando as
escolhas de projeto. É o que diferencia a mera construção da arquitetura e a aproxima
da arte. Este pensamento é capaz de tornar um projeto belo ou monumental,
intrigante ou acolhedor, não importa o adjetivo escolhido: sempre será um projeto
que não pode passar despercebido, pois sua forma é o resultado da discussão de um
conteúdo. Isto não é diferente no projeto paisagístico.

Gostaria de brevemente contar para você um pouco sobre o porquê aproximamos a


arquitetura e a arte, antiga e sempre provocativa discussão. Há quem discorde
totalmente do que vamos dizer, por entender a arquitetura necessariamente como
obra coletiva. De qualquer forma, existe um motivo muito importante para aproximar
a arquitetura e a arte e não se trata de ‘embelezamento’. Não estamos tratando do
entendimento ordinário sobre estes termos, por isso é importante aprofundar um
pouco.

O pensamento artístico exposto em uma obra de arte é capaz de condensar uma visão
de mundo, expressar um argumento forte, fazer uma leitura da realidade a partir de
um determinado ponto de vista. Assim também é o pensamento arquitetônico,
quando considera a dimensão da arte, em suas mais diversas acepções, dentre elas a
compositiva (mais relacionada à forma).

21
,

Mas como chegar na tão desejada síntese arquitetônica? Como incutir esta
característica forte ao projeto, que bonito ou não, terá, digamos, esta ‘personalidade’?
É o que chamamos de partido ou conceito e existe um caminho para dotar os projetos
desta peculiaridade que os fazem, no mínimo, interessantes.

O partido (ou conceito, daqui para frente vou adotar o termo partido, mas são quase
sinônimos) nasce da problematização e interpretação das condicionantes de projeto,
sejam físicas, culturais, financeiras ou de outras naturezas, associada ao programa de
necessidades. Ou seja, é saber fazer um bom trabalho com o que se tem, para chegar
aonde se quer.

Exemplificando, tratarei rapidamente de um projeto paulistano icônico: o MASP –


Museu de Arte de São Paulo – da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi. Trata-se de
um grande bloco monolítico levantado do chão por uma expressiva estrutura em
pórtico. No MASP, o mais importante não é a forma arquitetônica, mas o vazio que ela
cria. Mais do que um edifício imponente, Lina criou um recorte na paisagem paulistana
para quem passa andando nas calçadas da Avenida Paulista. Para quem não conhece
São Paulo, é importante dizer que a Avenida Paulista está localizada numa crista do
relevo, por isso oferece uma vista privilegiada da cidade.

Fonte: ADVTP via Shutterstock.

Figura 2.1 – Foto do MASP incrustado na paisagem urbana paulistana: destaque para
os jardins que se estendem em direção ao Viaduto 9 de Julho (parte inferior da
fotografia).
22
,

Contudo, o que nem todos sabem é que existia uma condicionante de projeto que
induziu esta escolha projetual. O terreno que o MASP ocupa hoje havia sido doado
para a Prefeitura com uma condição específica: manter a vista, ou seja, o belvedere.
Esta era uma condicionante legal, pressuposto indispensável para a execução do
projeto naquele lote. Foi deste ponto de partida que Lina começou o projeto: Como
construir um Museu neste terreno e ao mesmo tempo manter a vista para a cidade?
Foi assim que nasceu o partido para o MASP: o bloco maciço levantado do chão.

Espero que este exemplo tenha sido esclarecedor sobre a riqueza existente na
definição de um partido arquitetônico de qualquer projeto. O conceito e a forma
arquitetônicos refletem a ideia de um partido arquitetônico materializado em um
objeto construído. Isto não é diferente nos projetos paisagísticos. Os conceitos nascem
das mais diversas orientações e não só das condicionantes de projeto. Surgem
especialmente influenciados pela visão de mundo do(a) arquiteto(a) e de suas
referências estéticas.

2.4 Elementos do projeto de paisagismo

O(a)s arquiteto(a)s paisagistas exploram diversos elementos, naturais e artificiais, para


compor as características desejadas dos espaços que projetam como: a vegetação,
morfologia do terreno, as rochas, os pavimentos, a água – em suas mais diversas
ocorrências, o sol, as sombras, os equipamentos de lazer, o mobiliário externo e a
iluminação artificial.

2.4.1 Vegetação

A escolha da vegetação é elemento fundamental de um projeto paisagístico e deve


considerar o tipo (arbórea, arbustiva ou forração), o porte (dimensões dos indivíduos
adultos), o tempo de crescimento, o tipo de raiz, os cuidados necessários, como a
iluminação requerida, o tipo de solo, época de floração e as características das flores e
frutos, a toxidade etc. A resistência às pragas, a necessidade ou não de poda, a
disponibilidade no mercado, o preço e se é uma planta nativa da região ou não, são
elementos norteadores das escolhas das espécies.

23
,

A vegetação, como os outros elementos do projeto, responde às funções específicas,


por exemplo: uma árvore pode suprir a necessidade de sombra ou um conjunto de
árvores dispostas linearmente pode delimitar um espaço aberto. Lembrar sempre que
a vegetação é viva e mutante. Pode-se tirar partido das árvores caducifólias para
propiciar sombreamento no verão, mas deixar o sol passar no outono, se o clima do
lugar assim requerer.

As forrações são divididas em gramíneas e forrações propriamente ditas. As


gramíneas, principalmente a grama batatais, são utilizadas em áreas que podem ser
pisadas. Outros tipos de forrações poderão ser empregados em áreas para
contemplação, onde não se circula, como aquelas que se destacam pelas florações. As
forrações também podem auxiliar na contenção do solo em taludes e áreas inclinadas
sujeitas a desbarrancamento.

A vegetação, assim como outros elementos naturais, pode ser compreendida tanto
como ‘chão’, planos horizontais, quanto como ‘paredes’, planos verticais, como massas
arbustivas, ou como ‘pilares’, sequência de elementos verticais. Uma maneira de
entender a arquitetura em geral, incluindo a paisagística, é simplificar seus elementos
como se fizessem parte de uma gramática universal das formas e utilizá-los para
desenhar os espaços desejados.

2.4.2 Terra, rochas e pisos

A morfologia descreve a forma do terreno, nas três dimensões, nos planos horizontal e
vertical. O formato de base que o terreno pode adquirir deve estar integrado tanto às
funções dos usuários deste espaço, quanto às necessidades de preservação ambiental.
A terra não é estática, naturalmente se move, mas num tempo geológico. As
intervenções humanas aceleram e brecam este tempo, com movimentos de terra
mecânicos e pavimentações.

Ao lidar com o projeto de ‘moldagem’ do terreno é necessário considerar o tipo de


solo e os usos que se estabelecerão nos espaços abertos. É mais comum que os
humanos desenvolvam atividades em planos horizontais, mas também podemos nos
sentar em um talude, por exemplo, gramado. Assim como é mais comum caminhar em
24
,

um pavimento artificial e seco – se o local tiver um grande fluxo de pessoas é a


situação mais adequada, mas também eventualmente podemos tirar os sapatos e pisar
em espelhos d'água e outros elementos arquitetônicos preparados para este uso.

É necessário prover circulação universal acessível por escadas e rampas,


principalmente se forem locais de uso público. A pavimentação auxilia o uso humano,
pois requer menos manutenção e oferece características mais uniformes, diferentes
dos ambientes naturais. Há vários tipos de pisos, mas nem todos oferecem conforto a
todos os tipos de circulação, como as dos cadeirantes. Tratando-se de espaços públicos
é essencial prover pelo menos uma rota acessível para fruição completa do local. Há de
se usar o bom senso, isto não significa pavimentar toda a área.

Também é desejável oferecer interações mais diretas com a natureza, integrando a


presença de solo, rochas e vegetação a diferentes formas de fruição do espaço, tais
como quando o número de usuários seja limitado em quantidade ou no tempo. É difícil
e indesejável estabelecer parâmetros rígidos de projeto.

Gostaria de citar a Casa das Canoas, do arquiteto Oscar Niemeyer, que rompe com os
parâmetros mais convencionais adotados a espaços externos e internos. Nela,
Niemeyer integra os elementos naturais aos espaços de vida, sem uma quebra
abrupta, num continuo espacial. Veja a Figura 2.2, mostrando a pedra existente no
terreno que está tanto para dentro quanto para fora, reforçando a sutileza da
presença do vidro como fechamento para os ventos e intempéries e abertura para a
visão.

Fonte: https://diariodorio.com/historia-da-casa-das-canoas/ 2.4.3 Água

Figura 2.2 – Casa das Canoas, Oscar Niemeyer


25
,

A água pode assumir diversas formas e usos, é fluida, refresca, acalma e encanta. Pode
estar em quaisquer planos, no chão, em espelhos, aprofundar-se criando um espaço
invertido, como uma piscina, um lago; estar numa parede, como queda; nas
coberturas, apoiada em planos transparentes; e até em forma de gotículas.

2.4.3 Sol e sombra

No paisagismo, o sol e a sombra são elementos fundamentais. Importantes para a


vegetação, mas não só. A consciência sobre esses elementos constituintes dos espaços
externos é necessária para prever sua adequação a várias funções, como uma quadra
esportiva, por exemplo. Alguns jogos, como o vôlei, são muito prejudicados por uma
incidência frontal do sol nos jogadores de um dos times.

O caminho do sol no céu durante o ano deve ser de conhecimento do paisagista, assim
como as horas de conforto e desconforto, em que a luz do sol é requerida ou
indesejável. O sol está diretamente relacionado com as sombras e estas podem ser
projetadas por elementos naturais, como a vegetação ou construídos, como uma
pérgula.

2.4.4 Elementos artificiais: equipamentos de lazer, mobiliários, iluminação artificial

Assim como nos espaços internos, os equipamentos e mobiliários facilitam as funções


e atividades humanas, propiciam segurança, bem-estar e diversão. Vão desde um
singelo banco em uma praça, até uma arquibancada; um bebedouro ou uma fonte; um
corrimão ou um elevador. Em uma cidade, fazem parte das intervenções urbanas,
como uma quadra de futebol ou um estádio.

Além desta infinidade de objetos que acompanham a vida ao ar livre, como os


brinquedos dos playgrounds, as mesinhas com bancos para jogos, as escadarias largas
para nos sentarmos, os monumentos etc. também faz parte deste conjunto a
iluminação artificial. A iluminação artificial proporciona segurança e estende os
horários de uso dos espaços livres.

Na Figura 2.3 vemos um projeto de paisagismo simples, no quintal de uma residência.


Mesmo nesta pequena escala podemos identificar como a vegetação enriqueceu as

26
,

situações espaciais e se adequou ao projeto da habitação, deixando livres as janelas


para entrada de sol e escondendo as divisas (possivelmente com muros). Como o
paisagismo, apenas com a exploração de três elementos: vegetação, mobiliário e
diferença de pisos, proveu áreas diferenciadas, gramadas ou pavimentadas,
desenhando caminhos mais diretos ou mais contemplativos e com mobiliário externo,
onde poderia haver a demanda de concentração de pessoas.

Fonte: charobnica via Shutterstock.

Figura 2.3 – Planta de projeto paisagístico

2.5 Do estudo preliminar ao executivo – plano de especificação de vegetação


De posse das informações sobre algum projeto específico (Condicionantes do Projeto e
Programa de Necessidades), utilizamos nosso repertório e nosso conhecimento sobre
os diversos elementos paisagísticos para realizá-lo. Realizar um projeto de arquitetura
paisagística, assim como outro qualquer, é um processo longo e complexo e
naturalmente é dividido em fases, para facilitá-lo. Primeiro se inicia com os relatórios
iniciais, os Levantamentos, parte-se para um Estudo Preliminar e um Anteprojeto,
quando são lançadas as primeiras ideias, a serem discutidas com o cliente, depois da
aprovação pelo cliente, desenvolve-se o projeto básico e finalmente o projeto
executivo, que contém todas (ou quase todas) as indicações necessárias para a sua
execução.
27
,

Nos projetos paisagísticos, como em quaisquer outros, primeiro pensamos no geral,


nos elementos de projeto e nas massas vegetais, em seu porte e algumas
características. Já no estudo preliminar é desenvolvido o plano de massas por meio de
um desenho de Implantação, contemplando a proposta de ocupação do local,
localizando e dimensionando os diferentes usos, indicando e dimensionando as
circulações e especificando a volumetria da vegetação em sua fase adulta. Esse dado é
o indicador para a escolha das espécies, na fase final do projeto, Projeto Executivo.

Na prática profissional precisamos saber algumas informações sobre as espécies que


escolhemos, como a disponibilidade no mercado, faixa de preço, tamanho das mudas
para plantio, adubagem e cuidados com o solo, necessidade de sombra ou sol,
quantidade de rega, necessidade de poda etc. Iremos adquirindo essas informações
com a prática, como em qualquer outra área projetual.

Apesar de nos acostumarmos a chamar o projeto paisagístico como aquele que se


concentra nas áreas externas, é sempre importante destacar que o projeto
arquitetônico deve tratar das diretrizes gerais de todos os espaços. Existe a
possibilidade de existirem grandes áreas vegetadas em espaços internos, por exemplo.
De qualquer forma, é no produto que costumamos designar como projeto paisagístico
que aparecem as informações sobre as espécies de vegetação empregadas no projeto,
em uma tabela de vegetação também chamada plano de especificação de vegetação.
Veja um modelo deste produto abaixo, com pouquíssimas espécies, a título de
exemplo:

Fonte: Autora, 2022.

Figura 2.4 – Plano de especificação de vegetação


28
,

Esse modelo pode sofrer algumas alterações conforme as necessidades de projeto.


Também é interessante entregar para o cliente um plano de manutenção, onde são
descritos detalhadamente os cuidados necessários com a vegetação, como adubação,
tempo de vida etc.

Conclusão
Neste bloco foram abordadas as principais fases dos projetos paisagísticos, começando
com o levantamento de dados e o programa de necessidades e terminando com o
exemplo de um plano de especificação de vegetação. Também nos debruçamos sobre
o conceito de partido arquitetônico, que também serve ao projeto paisagístico, para
compreender o campo expressivo da arquitetura e sua interação com a arte e como
ela o inspira e alimenta. Discorremos sobre os elementos constituintes dos projetos
paisagísticos para instigar e ampliar o repertório projetual, oferecendo alguns
exemplos para clarear alguns assuntos. Em outra oportunidade trabalharemos mais a
fundo vários estudos de caso de projetos paisagísticos. Por hora, esperamos que você
tenha ampliado sua visão sobre as especificidades desta área projetual.

REFERÊNCIAS

MACEDO, Silvio Soares; ROBBA, Fabio. Praças brasileiras. São Paulo: Edusp, 2002.

LORENZI, Harri. Árvores brasileiras: manual de identificação e cultivo de plantas


arbóreas nativas do Brasil. Vol.2, 2. ed. Nova Odessa, SP: Instituto Plantarum, 2002.

Normas

ABNT NBR 13532 – Elaboração de projeto de edificações – Arquitetura. Nov. 1995.

ABNT NBR 16636 – Elaboração e desenvolvimento de serviços técnicos especializados


de projetos arquitetônicos e urbanísticos, Parte 1: Diretrizes e terminologia. Dez 2017.

ABNT NBR 16636 – Elaboração e desenvolvimento de serviços técnicos especializados


de projetos arquitetônicos e urbanísticos, Parte 2: Projeto arquitetônico. Dez 2017.

ABNT NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos


urbanos. 4. ed. ago. 2020. Edição corrigida, jan. 2021.

29
,

Sites

CDHU, Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano. coord. Iara A. Rigon


Ortega. autoras: Iara A. Rigon Ortega, Iracema Miguel, Maria Rita Cartillone, Marta
Junqueira da Silva. Manual de Paisagismo. 2008. Disponível em:
https://www.cdhu.sp.gov.br/documents/20143/37009/manual-de-
paisagismo.pdf/d491a326-1880-52ce-6ea0-d17673c1ef7e Acesso em: 20 jul. 2022.

30
,

3 FORMA URBANA E ARQUITETURA PAISAGÍSTICA: ESTUDOS DE CASO

Apresentação

Neste bloco iremos conhecer alguns conceitos caros ao urbanismo contemporâneo,


pautado, por um lado, por uma leitura humanizada da vida urbana e, por outro, pelo
objetivo de contribuir com os fundamentos e preceitos do desenho ambiental, na
figura das cidades sustentáveis. Após discutirmos brevemente estes assuntos,
trabalharemos alguns estudos de caso de arquitetura paisagística integrados a este
modo de compreender a cidade e a urbanidade.

3.1 Forma urbana, usos diferenciados e densificação

A forma urbana é um conceito amplo que abarca elementos tangíveis e intangíveis do


sistema urbano. É o resultado do acolhimento das atividades e comportamentos
humanos, criando um ambiente e um significado (LIMA, 2005).

Desde aproximadamente 4000 a.C. que o ser humano vem construindo seus
abrigos em agrupamentos mais complexos chamados cidades. No último
século, ocorreu um processo acelerado de urbanização, conjuntamente com
um enorme aumento populacional. Esses fatores fizeram com que as
diferentes formas urbanas que as cidades vêm adquirindo tomassem
relevância no meio natural, gerando fortes impactos neste, inclusive
influenciando os processos climáticos (LIMA, 2005, p.47).

Através da história, muitos modelos foram propostos para as cidades, como formas de
dominação de povos colonizados, para controlar e sanear a vida das populações
urbanas ou para implantar cidades rigidamente divididas por funções. Contudo, frente
aos problemas atuais, desde aproximadamente a década de 1960 do século XX, que
muitos urbanistas se resignaram a aceitar a complexidade urbana inerente ao sistema
urbano como a forma mais interessante para despertar o senso de urbanidade.

A forma urbana é o resultado da interação entre diversos atores sociais e reflete os


acordos e as contradições da sociedade e do tempo em que está imbricada. Em outras
palavras, as cidades são o palco da vida urbana, com todas as suas conquistas,
desastres, incertezas, incongruências, sucessos e desafios. Populações pobres têm
menos recursos materiais para prover o meio urbano de condições adequadas à vida
31
,

(apesar das inúmeras iniciativas humanas que se esforçam para prover melhorias
nestes locais). Da mesma forma, populações ricas são capazes de produzir – e cobrar
dos governantes – meios urbanos organizados, limpos e convenientes. Em ambas as
situações, podem surgir aglomerações urbanas plurais e interessantes, que traduzem
os esforços criativos humanos.

O urbanismo modernista funcionalista não conseguiu resolver efetivamente os


problemas das cidades arrasadas pelas grandes guerras do século XX, pois suas
soluções massificadas e em grande escala geraram, na maioria dos casos, situações
desagradáveis. A cidade funcionalista não foi capaz de se tornar um modelo replicável
como queriam os urbanistas, pois não se adequaram às características da sociedade
real.

Por estas razões, dentre outras, este modelo recebe muitas críticas, dentre as quais,
uma das mais contundentes foi a da jornalista norte-americana Jane Jacobs, que
escreveu, em 1961, o livro ‘The death and life of great american cities’, traduzido para
o português como ‘Vida e morte das grandes cidades’. Nele Jacobs se opõe duramente
aos modelos urbanísticos vigentes à época e escancara seus fracassos. Também
propõe novos princípios urbanísticos, diametralmente opostos aos que foram
defendidos pela longa tradição iniciada por Ebenezer Howard, com o livro ‘Cidades-
jardim de amanhã’, de 1898.

Jacobs defende a rua como espaço de sociabilidade e dinamismo urbano, a existência


de comércios e serviços misturados às residências, ou seja, os usos diferenciados, as
cidades percorríveis a pé, com quadras curtas, por exemplo e a segurança naturalizada
pela convivência dos moradores e grande circulação de pessoas. Criou o termo ‘os
olhos da rua’ para descrever as situações urbanas com presença constante de pessoas
circulando ou mesmo avistando a vida cotidiana de suas janelas, em prédios não muito
altos, até quatro ou seis pavimentos.

Sobre os parques urbanos Jacobs (2014) indica quatro elementos presentes naqueles
que são mais utilizados pelas pessoas: a complexidade, com diferentes paisagens,
dinamicidade dos espaços e multiplicidade de usos; a centralidade, conformando-se

32
,

como locais de encontro, valorizados pelas pessoas; a insolação, que atrai as pessoas
no inverno e seu contraponto, atraindo-as também no verão e, por fim, a delimitação
espacial, com edifícios no entorno que os envolvem e conformam. Ela dedica seu livro
‘Morte e vida das grandes cidades (americanas)’ para a cidade de Nova York.

Desde a década de 1960, ideias que colocam as necessidades das pessoas como
protagonistas do urbanismo têm ganhado destaque. As ideias do arquiteto e urbanista
dinamarquês Jan Gehl, responsável por transformar a vida urbana de Copenhagen
nesta mesma década, foram descritas em vários livros de sua autoria, baseados em
suas experiências com urbanismo em várias cidades do mundo.

O livro de Jan Gehl de 2013, ‘Cidades para Pessoas’, destaca quatro objetivos
universais para as cidades do novo milênio: ‘cidades vivas, seguras, sustentáveis e
saudáveis’. Estas características têm a ver com uma grande ocupação dos espaços
públicos pelas pessoas; com o uso de transportes ativos, como a pé e as bicicletas e
com o modelo de cidade compacta, que agrupa o comércio, os serviços e as moradias,
diminuindo as distâncias e possibilitando a mobilidade sustentável (GEHL, 2013). Agora
trataremos de alguns estudos de caso de projetos paisagísticos em várias cidades do
mundo, procurando identificar algumas coincidências.

3.2 Estudos de caso de arquitetura paisagística: Central Park, Nova York (EUA)

O Central Park, de Nova York, de 1858 foi construído para atender às necessidades de
lazer dos moradores desta cidade em crescimento acelerado na época. Foi realizado
um concurso, cujo edital pedia um parque que incluísse uma torre de vigia, uma fonte,
uma pista de patinação, quatro ruas transversais, uma esplanada e um espaço de
exposições. Os vencedores foram Frederick Law Olmsted e Calvert Vaux, que
propuseram uma ‘experiência de campo’, com uma variedade de paisagens e um
design pitoresco com amplos gramados, extensos bosques, riachos sinuosos e grandes
lagos, conectados por caminhos sinuosos e um passeio de carruagem (CASACOR,
2021).

33
,

Fonte: CASACOR, 2022.

Figura 3.1 – Mapa do Central Park de 1863. Acervo da Biblioteca Pública de Nova
York

O Central Park foi um projeto ambicioso para a época e até hoje tem um papel
importante não só para a vida dos habitantes (e turistas) de Nova York, mas para
amenizar os efeitos da ilha de calor, limpar o ar e servir como habitat para animais
selvagens, principalmente pássaros. Rogers (2001) trata da importância dos espaços
públicos, tais como os de Nova York, que se conectam na malha urbana reticulada,
mas comenta:

A maior parte de nossos parques públicos, praças e ruas são um legado dos
séculos anteriores. Nesta era moderna da democracia, poderíamos esperar
acréscimos mais importantes ao âmbito público, mas de fato, nossa
contribuição surge como um elemento de destruição destes espaços,
realizada pelo tráfego e pela ambição pessoal. O âmbito público está sendo
reduzido pela presença excessiva de segurança, imposição de taxas de
entrada a instituições culturais, diminuição de equipamentos públicos e
domínio do automóvel, que reduz os espaços públicos a estreitas
circulações. E os edifícios vêm sendo projetados como objetos isolados, em
vez de elementos que compreendam e conformem a esfera do público
(ROGERS, 2001, p. 71).

34
,

Fonte: Mak3t via Shutterstock.

Figura 3.2 – Central Park, em Nova York, EUA, no século XXI. Perceba como os
edifícios ‘desenham’ as fronteiras do parque, delineando a sua forma.

3.3 Estudos de caso de arquitetura paisagística: Parc de la Villette, Paris (França)

Em Paris, nos anos de 1982 e 1983, foi lançado um concurso internacional com a
intenção de revitalizar terrenos pouco utilizados na área do mercado de carnes e
matadouro, vencido por Bernard Tschumi, dentre mais de 470 participantes. A área
era bastante extensa com mais de 1 kilômetro de extensão e 700 metros de largura e o
projeto de Tschumi a organizou em: superfícies, linhas e pontos. As superfícies eram os
espaços verdes abertos; as linhas, os caminhos do parque e os pontos, localizados no
entroncamento de uma malha de 120m, eram estruturas sem programa definido,
pintadas de vermelho, que se apresentavam como os pontos focais do parque.
Tschumi quis destacar o uso cultural do parque, tanto com as estruturas
multifuncionais vermelhas, quanto com os amplos gramados que abrigam eventos de
grande escala ao ar livre, no verão (SOUZA, 2022).

35
,

Fonte: olrat via Shutterstock.

Figura 3.3 – Parc de la Villette, Paris (França), as estruturas em vermelho, dispostas


em malha regular dão uma noção de localização e escala aos visitantes.

3.4 Estudos de caso de arquitetura paisagística: Parque Tanguá, Curitiba (Brasil)

A cidade de Curitiba é exemplo internacional de boas práticas urbanísticas. É citada


por Richard Rogers em seu livro ‘Cidades para um pequeno planeta’ de 2001, em que
destaca as soluções urbanas introduzidas por Jaime Lerner, como a organização do
transporte coletivo de massa, os sistemas de parques urbanos e ciclovias, a reciclagem
do lixo, dentre outras, todas em direção a uma cidade mais sustentável e participativa.

No início da década de 1960, jovens arquitetos formados pela primeira turma da


Universidade Federal do Paraná levam ao prefeito a ideia de desenvolver um novo
plano urbanístico para Curitiba. O então prefeito, Ivo Arzua, integra os jovens ao corpo
técnico da Prefeitura e organiza uma concorrência pública para elaboração de um
plano preliminar de urbanismo. A empresa vencedora é a Sociedade Serete de Estudos
e Projetos Ltda., associada ao arquiteto Jorge Wilheim, que contava com os arquitetos
Paulo Zimbres e Rosa Kliass. No plano, Wilheim propôs que fosse criada uma agência
local para acompanhamento do projeto, que culminou na criação do IPPUC – Instituto
de Pesquisa e Planejamento de Curitiba, em 1965 (SAKATA, 2011).

Desta maneira se estabeleceu definitivamente a prática efetiva do planejamento


urbano em Curitiba (que historicamente já tinha algum alcance, como o
desenvolvimento do Plano Agache, de 1943, por exemplo), com uma equipe de

36
,

técnicos fixa, independente dos governos eleitos. Dentre os jovens arquitetos


contratados pela Prefeitura estava também Jaime Lerner, que foi nomeado prefeito
pela primeira vez em 1971 e acumulava tanto uma visão urbanística, como sabia
promover, através da propaganda, os planos para a cidade. Esta atuação rendeu-lhe
uma participação intensa no governo, sendo três vezes prefeito de Curitiba e duas
vezes governador do Paraná.

O sistema de parques, bosques e ciclovias, faz parte dos planos urbanísticos que foram
sendo implantados ao longo das décadas nesta cidade, ficavam localizados
prioritariamente ao longo dos cursos d'água, como forma de reter as águas das chuvas
que causavam enchentes frequentes no início deste processo. Sua implantação pode
prevenir a ocupação desordenada dos mananciais e servir como espaços de lazer para
a população. O sucesso dos parques, além da preservação das áreas verdes e dos
cursos d'água, acarretou valorização imobiliária, o que gerou a implantação de mais
parques (SAKATA, 2011). Atualmente, Curitiba possui 64,5m² de área verde por
habitante, segundo dados do governo estadual, note que o índice sugerido pela
Organização Mundial do Meio Ambiente (OMS) é de 12m² de área verde por
habitante.

A rede de parques, integrados à criação da imagem da cidade, com temas relacionados


principalmente aos povos imigrantes que formaram os cidadãos curitibanos, serviu
também para incentivar o turismo. Alguns deles nasceram da intenção de requalificar
áreas degradadas ambientalmente, dentre estes, gostaríamos de destacar o parque
Tanguá.

Fonte: gonthiagon via Shutterstock.

Figura 3.4 – Parque Tanguá, Curitiba, Brasil: processo de recuperação ambiental de


uma antiga pedreira.
37
,

O parque Tanguá nasce da intenção de requalificar a área de uma antiga pedreira,


ocupando uma área de 23,5 ha. Seu paisagismo é composto de áreas que preservam
os aspectos naturais e uma significativa intervenção na entrada do parque, acessado
por um platô, mais alto que o restante da área. Nesta intervenção foi construído um
jardim de perspectiva e um edifício mirante. O jardim e o edifício exploram uma
composição clássica, recriada com elementos formais mais simplificados, uma extensa
fonte e a presença marcante de flores que arrematam o visual romântico e se
configura como um dos cartões postais da cidade. Vide entrada do parque na figura a
seguir:

Fonte: Davi Ivanowski via Shutterstock.

Figura 3.5 – Parque Tanguá, Curitiba, Brasil: entrada marcante pelo desenho
simétrico dos jardins e do edifício mirante.

3.5 Estudos de caso de arquitetura paisagística: Parque Ibirapuera, São Paulo (Brasil)

Difícil escolher apenas quatro estudos de caso, para pensar sobre o paisagismo
urbano, mas não poderíamos deixar de incluir o Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Construído na década de 1950, para comemorar o IV Centenário da cidade de São
Paulo, foi projetado por Oscar Niemeyer em 1951, que contou com a participação dos
arquitetos Hélio Uchôa, Zenon Lotufo e Eduardo Kneese de Mello para a realização do
anteprojeto. O parque surgiu para propiciar melhoramentos em uma área vazia de
mangue e com a intenção de abrigar edifícios para exposições temporárias e
permanentes e alguns edifícios administrativos (PARQUE Ibirapuera, 2022).

38
,

O Ibirapuera é um exemplo ímpar de integração do construído com o ambiente


natural, de forma harmônica. Os edifícios construídos, como o Museu de Arte
Moderna (MAM) e o prédio da Bienal, concentram uma série de atividades de lazer e
cultura na metrópole paulistana. A extensa marquise de linhas curvas, interliga alguns
dos edifícios e provê uma grande cobertura para atividades diversas e foi
intensamente apropriada pela população, que a utiliza como palco informal de
inúmeras atividades. É um exemplo de arquitetura com uso indeterminado, mas que
foi capaz de abrigar e incentivar uma intensa vivacidade urbana.

Fonte: Reginaldo Bianco via Shutterstock.

Figura 3.6 – Parque Ibirapuera, São Paulo (Brasil). Importante área verde para a
cidade que tem a atmosfera bastante poluída pelo intenso tráfego de automóveis,
vide a linha do horizonte cinza.

Fonte: Igor Guatelli, 2006.

Figura 3.7 – Um destaque para a Marquise do Parque Ibirapuera (que ficou muito
escondida na foto anterior): grande cobertura que abriga uma infinidade de usos,
totalmente apropriada pela população.
39
,

Conclusão

Neste bloco tratamos de alguns atributos do Urbanismo e do Desenho Ambiental


correlacionados à visão de cidade humanista e sustentável. Compreendemos de que
forma a maior densidade urbana – a cidade compacta – e a diversificação dos usos
auxiliam na adoção de soluções urbanas mais sustentáveis, como o uso do transporte
público e/ou ativo (o transporte que não utiliza motores de combustão é chamado de
ativo e até mesmo de saudável). Acompanhamos brevemente a mudança de foco do
urbanismo, da circulação de automóveis para a circulação das pessoas. Também
pudemos notar porque as cidades mais humanizadas são mais seguras, com espaços
públicos dinâmicos e ocupados pela população.

Por fim, citamos quatro estudos de caso de projetos paisagísticos de destaque, que
tem muito a ensinar sobre urbanidade. A escolha se deteve em parques, por serem
espaços públicos e por isso acessíveis a toda população, mas poderia ter incluído
praças, públicas ou de edifícios comerciais, orlas de rios ou praias, calçadões e até
mesmo jardins particulares. Contudo, pela expressão urbanística desses espaços e
pelas relações que mantém com as cidades onde estão, escolhemos ‘a dedo’ estes
quatro parques. Quais as conclusões que você tirou sobre as semelhanças destes
projetos?

REFERÊNCIAS

GEHL, J. Cidades para Pessoas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011.

LIMA, L. P. Clima e forma urbana: métodos de avaliação do efeito das condições


climáticas locais nos graus de conforto térmico e no consumo de energia elétrica em
edificações. Dissertação [mestrado] Curitiba: Centro Federal de Educação Tecnológica
do Paraná. Programa de pós graduação em tecnologia, 2005. 153f.

ROGERS, Richard. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona: Editorial Gustavo Gili,
S.A., 2001.

40
,

SAKATA, F. G. Paisagismo Urbano: Requalificação e Criação de Imagens. São Paulo:


Edusp, 2011.

Sites

CASACOR. O paisagismo do Central Park: uma obra-prima que ultrapassa os tempos.


Disponível em: https://casacor.abril.com.br/paisagismo/paisagismo-central-park-nova-
york/ Acesso em: 20 jul. 2022.

41
,

4 MOBILIDADE URBANA E SISTEMAS DE CIRCULAÇÃO

Apresentação

Neste bloco iremos tratar das relações entre mobilidade e planejamento urbano. A
ideia é ampliar sua visão sobre este assunto para que você possa compreender as
interrelações entre a mobilidade, o urbanismo e o desenho urbano. Ande pela sua
cidade, experimente outros modos de se locomover, diferentes dos seus habituais.
Desta forma você poderá criar outros pontos de vista sobre este assunto. Estas
vivências são essenciais para a sensibilização sobre os modelos de cidade vigentes – e
possíveis – e a construção da sua própria consciência crítica.

4.1 Mobilidade, uso do solo e densidade populacional

As nossas cidades mundiais deste terceiro milênio tendem a continuar crescendo,


mesmo que num ritmo menos acelerado que no final do século XX. Isto significa
acomodar a vida urbana, com todas as suas características positivas, em cidades cada
vez mais complexas. A vida urbana é o reflexo, nas cidades, das vidas das pessoas que
as habitam.

Morar em uma cidade é positivo porque as trocas humanas ficam facilitadas. Inúmeras
e essenciais para a vida humana contemporânea, as trocas dizem respeito tanto à
sociabilidade, quanto ao comércio e aos serviços. A sociedade humana existe para
possibilitar essas trocas. Trocamos nossas habilidades pelos itens essenciais à vida, que
não são somente coisas materiais, mas também palavras, gestos de afetividade, calor
humano. Somos seres gregários, necessitamos dos outros para muitas atividades que
fazemos e conseguimos viver melhor assim. O isolamento não é saudável para a vida
humana.

Viver em uma cidade facilita muito as trocas, pois para a maioria delas precisamos nos
deslocar, ou que alguém se desloque até nós. Ir ao mercado é mais fácil que plantar e
colher para sobreviver. Trabalhar para ter dinheiro para ir ao mercado, se o trabalho e
perto de casa, faz sobrar mais tempo para estar com a família ou com amigos ou para

42
,

estudar. Pessoas e coisas próximas diminuem os deslocamentos e facilitam a vida. Este


é o raciocínio que norteia a defesa das cidades compactas.

As cidades compactas, como o próprio nome diz, são cidades concentradas.


Contrapõem-se ao modelo de cidade espraiada no território. Conduzem à diversidade,
tanto em relação ao uso do solo – comércio, serviços e moradias, quanto às diferentes
classes sociais, todos compartilhando os espaços urbanos. O modelo de cidade
compacta se relaciona diretamente à mobilidade, pois infere-se que em uma cidade
com estas características, os deslocamentos tendem a ser menores.

A defesa da cidade compacta se contrapõe ao modelo de cidade funcionalista


moderno, que pretendia organizar a vida humana em setores e integrá-la à natureza,
propondo uma nova forma de viver, associada aos avanços tecnológicos e às máquinas
– como o automóvel que resolveria os deslocamentos, no sentido de melhorar a vida
das pessoas. Este modelo respondia a uma sociedade devastada pelas guerras do
século XX e à necessidade de reconstruir as cidades rapidamente, provendo
principalmente moradia, em grande escala. Contudo, assistiu-se, no final do século XX,
ao fracasso deste modelo propugnado pelos urbanistas do começo do século.

Nenhum desses modelos corresponde diretamente à realidade, como o nome indica,


são modelos, que servem para pensá-la através de simplificações. Não é verdade que
em uma cidade compacta necessariamente diminuam os deslocamentos, mesmo
tendo todas as facilidades urbanas próximas ao local de moradia, as relações sociais
são complexas e se refletem nas necessidades de deslocamento. Por isso, uma cidade
amigável deve prover mobilidade, sustentabilidade e acessibilidade.

4.2 Mobilidade, acessibilidade e sustentabilidade

Pensar sobre o conceito de mobilidade, entendendo-a como uma característica de


uma cidade, é bastante útil ao planejamento urbano. Reflita um pouco antes de
continuar lendo sobre o que você considera essencial em uma cidade em relação à
mobilidade, agora tente escrever o que é mobilidade urbana para você.

43
,

Para o desenvolvimento da Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável foi


determinado que mobilidade urbana é:

[...] um atributo das cidades e se refere à facilidade de deslocamento de


pessoas e bens no espaço urbano. Tais deslocamentos são feitos através de
veículos, vias e toda a infraestrutura (vias, calçadas etc.) É o resultado da
interação entre os deslocamentos das pessoas e bens com a cidade
(Ministério das Cidades, 2004, p.13).

Veja que este conceito de mobilidade coloca o foco nas pessoas, não nos modos de
transporte. Estes deslocamentos das pessoas no meio urbano podem ser classificados
de três maneiras distintas:

• Quanto à propriedade do transporte: público ou privado;

• Quanto ao número de pessoas transportadas: transporte coletivo ou individual;

• Quanto à sustentabilidade ambiental: poluente ou não poluente.

Vamos discutir brevemente os conceitos de acessibilidade e sustentabilidade de


integrados ao de mobilidades antes de nos determos nas especificidades destes
deslocamentos?

Acessibilidade é o termo que temos utilizado para incluir as pessoas em toda a


diversidade de condições físicas, com conforto, no uso da cidade. Trouxemos aqui um
conceito bem formulado de acessibilidade:

Acessibilidade significa a condição do indivíduo se movimentar, locomover e


atingir um destino desejado, dentro de suas capacidades individuais, isto é,
realizar qualquer movimentação ou deslocamento por seus próprios meios,
com total autonomia e em condições seguras, mesmo que para isso precise
se utilizar de objetos e aparelhos específicos (PlanMob, 2007a, p.42).

Na prática, isto significa prover o ambiente urbano de condições especiais de uso,


como rampas, corrimãos, pisos táteis e outros elementos que auxiliam na
acessibilidade de pessoas com deficiência. Todos estes elementos possuem normas
específicas, como a ABNT NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços
e equipamentos urbanos. Vamos discutir a acessibilidade junto com a mobilidade.

44
,

A sustentabilidade é um conceito amplo, que reflete as preocupações humanas com a


preservação do meio ambiente. Está associada com as formas de desenvolvimento
sustentável, que pode ser definido como:

Um modelo de desenvolvimento que permite às gerações presentes


satisfazer as suas necessidades sem que com isso ponham em risco a
possibilidade das gerações futuras virem a satisfazer as suas próprias
necessidades (PlanMob, 2007a, p.42).

4.3 Transporte público

Como sabemos, as cidades têm se tornado cada vez maiores e mais populosas, este é
um processo irreversível. Por isso, as cidades grandes e as metrópoles necessitam de
transporte público de massa eficiente, articulados com outras modalidades de
transporte sustentáveis. O ideal em um sistema público de transportes é que se
constitua como uma rede integrada, dando várias alternativas para os usuários.

As redes de transportes públicos podem conter vários tipos de veículos de alta ou


média capacidade de lotação, dependentes de diferentes matrizes energéticas. Os
ônibus e micro-ônibus, geralmente são movidos à diesel, mas há uma tendência de
substituição destes combustíveis de matriz energética do carbono, por fontes mais
limpas, como o gás natural ou biodiesel. Os veículos de tração elétrica, tem caído em
desuso por causa principalmente do alto custo desta energia atualmente.

O importante para uma rede de transportes racional, é que ela consiga atender às
expectativas de conforto, segurança e rapidez dos usuários, agredindo o mínimo
possível o ambiente. Os sistemas de metrô atendem muito bem todas essas
expectativas dos usuários, mas o custo ambiental e financeiro de implantação é alto.
Por ser um sistema de alta capacidade, a longo prazo o custo ambiental provavelmente
seja compensatório, se comparado com a quantidade de emissão de poluentes por
uma frota motorizada com a mesma capacidade.

45
,

Fonte: VectorTower via Shutterstock.

Figura 4.1 – Metrô subterrâneo, imagem ilustrativa, note os elementos destacados


deste meio de transporte: regularidade de horário, com intervalos de tempo curtos,
alta capacidade, rapidez, acessibilidade e segurança.

Os sistemas que utilizam VLTs (veículos leves sobre trilhos) ou VLPs (veículos leves
sobre pneus) têm sido bastante implantados atualmente, pois conseguem atender
uma demanda elevada, com menor custo de implantação que os sistemas de alta
capacidade. Além disso, possuem mais facilidade de integração direta com o meio
urbano e baixo impacto ambiental, desde sua implantação.

Fonte: Kyllian Santos via Shutterstock.

Figura 4.2 – VLT – veículo leve sobre trilhos, alta capacidade e integração amigável
com o meio urbano.

46
,

Os trens urbanos de passageiros são um modo de transporte há muito tempo utilizado


no Brasil, semelhantes aos metrôs, pela alta capacidade, diferenciam-se
principalmente por percorrerem a cidade no nível do chão – diferentemente do metrô
que se elevam em estruturas acima do solo ou constroem túneis específicos para sua
operação, impondo-se como barreira física. Além disso, emitem vibração e poluição
sonora, aumentando a poluição ambiental, com maior impacto nas áreas lindeiras.

O transporte hidroviário também pode ser uma boa forma de transporte coletivo, com
menor impacto ambiental, mas necessita de um sistema aquático, de mar, rios ou
canais apropriados ao trânsito das barcas.

4.4 Sistemas cicloviários

A bicicleta é um meio de transporte individual, movido à tração humana, por isso,


saudável para os usuários e para as cidades. As vias de maior tráfego de uma grande
cidade são, muitas vezes, hostis ao trânsito de ciclistas, apesar do código de trânsito
brasileiro considerar a bicicleta um veículo e orientar os motoristas de transportes
motorizados a tomarem cuidado com os ciclistas. Por isso, separa-se o trânsito dos
ciclistas dos motoristas.

Há algumas formas de se fazer isso com segurança. Se a via é de trânsito intenso,


indica-se a implantação de uma ciclovia, totalmente segregada do trânsito de veículos
motorizados, por um desnível, de no mínimo 0,20m, ou por um elemento físico
intransponível pelos carros. As ciclovias podem localizar-se nos canteiros centrais ou
lindeiras às calçadas, nas laterais das vias. A escolha para implantação de uma ou outra
opção irá depender das características pré-existentes da via, assim como das
características da área urbana onde será implantada, como o uso do solo, a densidade
de pedestres etc.

47
,

Fonte: Alex Sipeta via Shutterstock.

Figura 4.3 – Ciclovia: infraestrutura cicloviária totalmente segregada do fluxo de


automóveis.

Se a via tem fluxo menos intenso, pode-se adotar a solução chamada ciclofaixa, em
que a segregação do tráfego lindeiro é baixa, mas existe uma sinalização intensa
indicando a presença de ciclistas. A largura mínima para uma faixa unidirecional para
trânsito de bicicletas é de 1,50m, considerando as dimensões da bicicleta (0,60m), o
espaço necessário para o movimento dos braços e das pernas do ciclista (0,20m de
cada lado) e um acréscimo de segurança, relacionado à movimentação e equilíbrio do
ciclista (0,25m para cada lado).

Fonte: Alf Ribeiro via Shutterstock.

Figura 4.4 – Ciclofaixa, estrutura cicloviária pouco segregada, mas possível em


situações em que há dificuldades físicas para implantação de ciclovia.
48
,

Os aspectos urbanos que incentivam o uso da bicicleta são: infraestrutura cicloviária


segura, qualidade ambiental dos trajetos, continuidade da infraestrutura, integração
com outros modos de transportes, existência de sistemas de bicicletas de aluguel,
facilidade e segurança para guardar a bicicleta.

Existem dois jeitos de guardar a bicicleta de forma confortável e segura: os paraciclos e


os bicicletários. Os primeiros são mobiliários urbanos e são mais confortáveis, pois
podem estar espalhados em muitos pontos da cidade, justamente por ocuparem
pouco espaço. São mais adequados a paradas eventuais e de pequena duração.

Já os bicicletários, são estruturas mais complexas, semelhantes a estacionamentos,


pois são de preferência cobertos e possuem um sistema de controle da guarda da
bicicleta. Ou seja, são construções específicas para este uso e geralmente dependem
da presença de um funcionário para o controle da guarda da bicicleta. Por isso, muitas
vezes, possuem horários restritos de funcionamento, o que pode impedir o uso, em
determinadas situações. Contudo, são mais seguros para a guarda por períodos mais
longos.

O uso da bicicleta e seu incentivo são formas de requalificação urbana e foram capazes
de transformar algumas cidades que tinham sofrido degradação pelo intenso uso do
automóvel. A cidade de Copenhagen, por exemplo, é mundialmente conhecida pelas
transformações positivas que teve em seu espaço urbano após a introdução do uso da
bicicleta como um efetivo modo de transporte.

49
,

Fonte: lkoimages via Shutterstock.

Figura 4.5 – Cidade de Copenhagen, o uso da bicicleta qualificou o meio urbano.

O uso da bicicleta é possível em cidades de quaisquer tamanhos; nas cidades maiores,


é interessante que o sistema cicloviário se conecte aos outros modos coletivos de
transporte. Que seja possível acessar o metrô, o trem e a barca (se existir) de bicicleta
e que nas estações existam bicicletários para guardá-la. E que nos ônibus existam
lugares destinados aos ciclistas com suas bicicletas também.

4.5 A Caminhada como modo de locomoção

Somos sempre pedestres, nem que seja para ir até a garagem e, quando chegamos ao
nosso destino, muitas vezes andamos em trechos da cidade. Por isso e outros motivos,
as calçadas são elementos muito importantes do meio urbano. O seu projeto deve
considerar muitos elementos importantes: as ‘faixas’ que organizam todas as suas
funções, a arborização, a iluminação pública e a presença de mobiliário urbano, como
paraciclos, bancos, lixeiras etc.

As faixas de uma calçada são delimitações imaginárias para organizar as suas funções,
mas a mais importante é a circulação de pedestres. Para esta função, deixamos uma
‘faixa livre’, ou seja, desobstruída, que deve ter uma largura mínima de 1,20m, para
possibilitar a acessibilidade universal, ou seja, o uso por pessoas em diferentes
condições físicas, com ou sem equipamentos de auxílio, como cadeiras de rodas. O
ideal é que esta faixa tenha 1,50m, para que não haja constrangimentos no
50
,

cruzamento de pessoas. Dependendo do lugar, se o fluxo de pedestres for intenso, é


necessário aumentar a largura da faixa livre.

Outra faixa importante é a faixa de serviços, nela deveriam estar contidos os acessos a
todos os serviços de infraestrutura, como telefonia, redes de internet etc. É desejável
que este acesso possa ser facilitado por materiais de encaixe ou tampas de inspeção,
para facilitar a manutenção da calçada. Também é importante que as infraestruturas
não estejam localizadas nas esquinas, pois nestes locais é necessário implantar rampas
que vençam a altura do meio fio, com não mais de 8,33% de inclinação. A norma ABNT
NBR 9050 contém todas as especificações para prover as calçadas urbanas de
acessibilidade universal.

Fonte: Wileydoc; Monkey Business Images via Shutterstock.

Figura 4.6 – Dois exemplos de calçadas, a primeira se localiza em área comercial e


oferece bancos dentre o mobiliário urbano; a segunda, em área mais residencial,
priorizou as faixas verdes, com áreas sem impermeabilização. Observe que mesmo
assim, ela mantém uma faixa pavimentada apropriada para a circulação universal.

Conclusão
Neste bloco tratamos sobre os sistemas de mobilidade urbana e suas interações com
os modelos de planejamento urbano. Não abordamos sobre os modos motorizados
individuais, como o automóvel, o táxi etc. Subentende-se que esta omissão é
proposital. O automóvel particular tem sido o grande vilão dos meios urbanos, que
sofrem pelos congestionamentos ocasionados por este, ou as longas distâncias que se
propõe a percorrer, incentivando o espraiamento da infraestrutura urbana,
impactando o meio ambiente por causa desta extensão das cidades, que causa maior
51
,

emissão de gases poluentes. Além disso, também incentivam formas de habitação


antiurbanas, como o condomínio murado e/ou afastado da mancha urbanizada. Por
estas razões, nos detivemos nos meios de transporte sustentáveis: públicos e não
motorizados. Tratamos sobre o ônibus, o metrô, o VLT e o VLP, o trem e a barca nos
meios de transportes públicos. Sobre os transportes não motorizados ou sustentáveis
ou saudáveis, tratamos sobre o modo a pé e o que utiliza a bicicleta e seus suportes
urbanos, ciclovias, ciclofaixas e calçadas.

REFERÊNCIAS
D´OTTAVIANO, Camila. A cidade do pedestre: áreas pedestrianizadas no centro de
São Paulo: parâmetros de intervenção. Trabalho de Graduação Interdisciplinar. FAU
USP, São Paulo: 1994.

GEHL, J. Cidades para Pessoas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011.

Ministério das Cidades (2004) – Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável –


Cadernos MCidades nº 6 – Ministério das Cidades, Brasília, 2004.

Ministério das Cidades (2007a) – PlanMob, Construindo a Cidade Sustentável –


Caderno de referência para elaboração de Plano de Mobilidade Urbana – Ministério
das Cidades, Brasília, 2007.

Ministério das Cidades (2007b) – Programa Bicicleta Brasil, Caderno de referência para
elaboração de: Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades – Ministério das Cidades,
Brasília, 2007.

Normas

ABNT NBR 9050, – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos


urbanos. 4. ed. ago. 2020. Edição corrigida, jan. 2021.

52
,

5 ESPAÇOS PÚBLICOS: RUAS, PRAÇAS, PARQUES

Apresentação

Neste bloco iremos tratar dos espaços públicos das cidades: ruas, calçadas, praças e
parques. Iremos compreender como o paisagismo e o desenho urbano interferem na
qualificação destes locais e mostraremos alguns exemplos.

Espero que o estudo deste bloco mude ou amplie a sua visão para os espaços públicos
de sua cidade.

5.1 Espaços públicos e privados: Diferentes formas de apropriação

Nas nossas cidades só existem dois tipos de espaço em relação à propriedade: público
ou privado. Um espaço privado, como uma casa, tem um dono particular. Um espaço
público, como uma praça, também tem dono. Ela é de todos os cidadãos, apenas está
sob a responsabilidade da municipalidade que cuida do nosso patrimônio, com o
dinheiro dos nossos impostos. O público não é uma entidade abstrata. O público
somos nós.

Contudo, em relação aos usos, não é tão simples: temos uma infinidade de diferentes
formas de apropriação dos espaços de uma cidade. Apropriar-se não é
necessariamente tornar-se dono, mas agir como se fosse. Na maioria das vezes, as
formas de apropriação dos espaços de uma cidade por sua população são positivas.
Apropriar-se tem a ver com o uso que se dá a um espaço, com a atividade que ali se faz
e de que maneira você marca a sua presença. Até na natureza existe esta relação
espacial entre os animais e os espaços: é uma demarcação de território. Estas relações
de apropriação podem ser – e na maioria das vezes são – muito mais fugazes que as
relações de posse efetiva, registrada em um documento oficial.

Mas o que tudo isso tem a ver com Arquitetura, Desenho Urbano e Paisagismo? Tudo a
ver! Não devemos esquecer nunca que nós arquitetos trabalhamos para prover
espaços adequados e agradáveis para a vida humana e que, apesar de sermos pagos
pelos nossos clientes, servimos aos usuários dos espaços. Há uma diferença
53
,

importante entre cliente e usuário: cliente é o dono do espaço e usuário é quem vai
efetivamente utilizá-lo. No projeto de uma edificação unifamiliar o dono e o usuário
podem ser a mesma pessoa, mas se for um edifício de vários apartamentos,
provavelmente não. E se o projeto for de uma praça pública? Reflita.

5.2 Praças

Na época medieval, a praça é o local de encontro e trocas, é o lugar do mercado e da


feira e, nestas cidades sem carros, representam praticamente o próprio conceito de
espaço público. Lembrar que as circulações eram muito menos amplas, os espaços
livres e abertos das cidades eram as praças.

Fonte: Resul Muslu via Shutterstock.

Figura 5.1 – Piazza San Marco, em Veneza, Itália

No Brasil colonial, os templos eram edifícios muito importantes nas vilas e povoações e
seus adros, grandes espaços abertos na frente ou ao lado das igrejas, atraíam as outras
ocupações, as vendas, as casas e geralmente o paço da câmara. Esses largos pátios,
rocios e terreiros, ganhavam o nome do santo consagrado pela igreja e garantiam um
espaço aberto para acesso dos fiéis e chegada das procissões. Por causa das suas
dimensões generosas, também atendiam a outras funções, como as de mercado, lazer
e de caráter político e militar (MARX, 1980).

54
,

Fonte: gustavomellossa via Shutterstock.

Figura 5.2 – Centro histórico, Pelourinho, Salvador, Bahia, Brasil. Este lugar conserva
as características de nossas praças coloniais.

Segundo Sylvio Macedo e Fabio Robba há muitos tipos de praças, que foram sofrendo
modificações ao longo da história, assim como há discordâncias entre os
entendimentos atuais sobre como conceituá-las, por isso definiram este conceito
simplesmente como “espaços livres públicos urbanos destinados ao lazer e ao convívio
da população, acessíveis aos cidadãos e livres de veículos” (MACEDO e ROBBA, 2002,
p.17).

Podemos dizer que, nos nossos dias, as praças servem a muitas funções para as
pessoas, tais como: recreação, lazer esportivo, lazer cultural, circulação de pedestres,
contemplação, convívio social, comércio (feiras, mercados) e turismo. Também
possuem funções relacionadas ao meio ambiente: absorção da poluição atmosférica
pela vegetação, penetração das águas das chuvas pelo solo, amenização dos efeitos
térmicos das ilhas de calor, habitat para fauna selvagem de pássaros, podem até
mesmo fazer parte de sistemas de preservação de córregos ou interligação de áreas
preservadas (corredores verdes).

55
,

Existem lotes de empreendimentos privados que se abrem para a cidade, como se


fossem praças, especialmente nos térreos de edifícios comerciais ou multifuncionais.
Em relação ao uso, poderíamos dizer que são espaços semi-públicos, pois mesmo
abertos à cidade, geralmente possuem vigilância vinte e quatro horas e impedem o uso
por pessoas ‘indesejáveis’. Estes locais servem para valorizar o empreendimento, pois
têm forte apelo contemplativo. Macedo (2015), tratando sobre o paisagismo
contemporâneo brasileiro, afirma:

Os espaços junto a prédios, destinados a grandes corporações ou ao aluguel


para escritórios, seguem um padrão de arquitetura nitidamente baseado
nas tendências internacionais, inspirando-se também nos espaços livres dos
seus congêneres americanos e canadenses. Esses espaços são em geral
concebidos com pouca vegetação, grandes pisos de materiais “nobres”,
como granitos, apresentando eventualmente esculturas e fontes. A
vegetação tropical pode até estar presente, mas disposto de um modo
controlado, visando valorizar a entrada e a fachada da torre (MACEDO,
2015, P. 117).

Fonte: Felipecbit via Shutterstock.

Figura 5.3 – Brascan, São Paulo: Espaço privado de uso semi-público, apesar da
circulação das pessoas estar desimpedida, há um certo constrangimento implícito
para pessoas indesejáveis, como um morador de rua, por exemplo.

56
,

Fonte: https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/04.044/2397

Figura 5.4 – Brascan, quadra aberta de um conjunto de edifícios multifuncionais, no


bairro do Itaim Bibi: projeto de Jorge Königsberger e Gianfranco Vannucchi.

5.3 Parques

O primeiro jardim urbano construído no Brasil foi o Passeio Público, no Rio de Janeiro,
e representa um conjunto de espaços ajardinados ibero-americanos implantados
durante o século XVIII. Ao contrário dos espaços abertos presentes no Brasil Colônia,
não representa diretamente um símbolo de poder religioso ou de autoridade
portuguesa. Não servia para emoldurar nenhum monumento, era em si mesmo, um
monumento à natureza (FARAH et. al, 2010).

Os jardins do século XVIII são os antecedentes dos parques atuais. Assim como as
praças, os parques são espaços públicos, mas têm uma relação mais direta com a
natureza, pelas suas dimensões geralmente maiores e seus objetivos de conformarem
áreas urbanas dedicadas à fruição e manutenção da natureza. A Secretaria do Verde e
Meio Ambiente paulistana classifica os parques em dois tipos: o parque urbano e o
parque linear. Esta divisão está diretamente relacionada às necessidades de gestão
pública que estes demandam:

57
,

Urbanos - estão situados dentro da cidade, podem proteger


trechos de mata ou lagos dentro do perímetro urbano.
Possuem um sistema próprio de administração, com portaria,
zeladoria e proteção física ao seu redor (gradis). Seu foco é a
proteção da biodiversidade, mas suas instalações contemplam
recursos para o lazer e até a prática esportiva, em alguns casos
(Prefeitura de São Paulo, 2022).

Lineares – em geral são abertos (sem gradis), embora alguns


possam apresentar essa contenção física. Sua principal função é
“proteger e recuperar as áreas de preservação permanente e
os ecossistemas ligados aos corpos d’água; proteger, conservar
e recuperar corredores ecológicos; conectar áreas verdes e
espaços públicos; controlar enchentes; evitar a ocupação
inadequada dos fundos de vale; propiciar áreas verdes
destinadas à conservação ambiental, lazer, fruição e atividades
culturais; ampliar a percepção dos cidadãos sobre o meio
físico” (art. 273 do PDE). Por suas características, nem todos os
parques lineares possuem uma sede administrativa; no
entanto, podem apresentar boa infraestrutura para o lazer,
como equipamentos de ginástica e parque infantil (Prefeitura
de São Paulo, 2022).

Vê-se, portanto, que são muitas as atribuições deste tipo de espaço público, lazer,
fruição, descanso e preservação da natureza. Os parques são feitos para serem lugares
‘bonitos’, com a licença da palavra de uso comum. Contudo, alguns se destacam tanto,
que viram atrações turísticas especiais. Gostaria de citar brevemente o parque Güell,
em Barcelona, Espanha. Ele é muito diferente, pois os elementos construídos foram
desenhados por Gaudí, que é um arquiteto que tem uma inconfundível expressão
estética.

58
,

Fonte: Lukasz Janyst via Shutterstock.

Figura 5.5 – Parque Guëll, Barcelona, Espanha. Projeto de Gaudí. Note as escavações
no relevo que formam um local na sombra e lembram um pouco uma caverna, pelo
contraste com o ensolarado redor.

Outro parque que gostaria de citar também é o Parque Mangal das Garças, em Belém
do Pará. O projeto é de Rosa Kliass e Gláucia Dias Pinheiro e foi construído para
recuperar uma área de várzea degradada com sucessivos aterros. Este parque
reintegrou a área do rio e restaurou o aningal (plantação de aninga-açu, espécie nativa
da região) que antes existia naquele local. O projeto foi dividido em duas grandes
áreas, a primeira com uma praça central e grande parte das edificações do parque, o
Armazém do Tempo, o restaurante e o Memorial Amazônico da navegação. A outra
destacou-se por explorar o elemento plástico água para a integração compositiva do
conjunto, constituído por fonte, cascata, rio e lago. O projeto de vegetação utiliza (e
representa) as espécies nativas dos três ambientes naturais do estado do Pará: os
campos, as áreas de várzea e as matas de terra firme (FARAH et. al, 2010).

59
,

Fonte: Arnika Ganten via Shutterstock.

Figura 5.6 – Parque Mangal das Garças, Belém do Pará, Brasil. Projeto de Rosa Kliass
e Gláucia Dias Pinheiro.

5.4 Ruas

As ruas são espaços públicos, por isso são locais de sociabilidade, de troca, de
encontro, como todos os outros espaços desta natureza. Também tem outra
importante função urbana: a circulação de pessoas e mercadorias. Na verdade, o
termo técnico mais abrangente é via. A rua é, antes de tudo, uma das vias de uma
cidade, que contém também avenidas, alamedas, travessas, com nomes diferentes por
terem características diversas, relacionadas ao trânsito de veículos e pessoas.

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro via é uma “superfície por onde transitam
veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e o
canteiro central”. O CTB contém a classificação legal das vias, que primeiro as dividem
em urbanas e rurais. O primeiro conjunto se subdivide em vias de trânsito rápido,
arteriais, coletoras e locais. O segundo, em rodovias e estradas. A classificação do CTB

60
,

serve para definir as velocidades máximas permitidas em cada tipo de via, exceto casos
particulares, que recebem sinalização específica de trânsito.

As vias também servem para abrigar uma grande parte da infraestrutura urbana. É sob
elas que passam as redes de distribuição de serviços, como abastecimento de água, luz
e telefonia, coleta de esgoto e águas pluviais.

O planejamento, a operação e a manutenção das vias e dos serviços que se


dão nelas são fatores essenciais para a qualidade de vida nas cidades e para
a eficiência da circulação urbana.

O planejamento do sistema viário depende, em parte, das orientações e do


controle sobre a distribuição das atividades econômicas e sociais pela
cidade, mas depende também da construção e da organização das próprias
vias (PlanMob, 2007, p. 74).

Para o urbanismo, é importante compreender principalmente a função do elemento


para circulação das pessoas: a calçada. Primeiro porque é nela que acontecem os
eventos mais relacionados à nossa profissão, como a calçada de um bar ou de um
condomínio. Apesar de fazer parte da via – que é desenhada e mantida pela
municipalidade, a calçada é desenhada pelos arquitetos que projetam determinado
empreendimento, seguindo a legislação incidente no local.

É importante integrar todas estas funções no desenho urbano e paisagístico de


calçada. Uma calçada é constituída, no mínimo, de uma faixa de circulação de pessoas
chamada passeio, que deve ter largura mínima de 1,20m e prover acessibilidade
universal, por isso a necessidade de rampas nas esquinas. Também pode conter uma
faixa de serviços, onde deveriam se concentrar toda a infraestrutura, uma faixa livre,
que pode conter ajardinamento etc. Todos estes elementos obedecem a normas
específicas, como a ABNT NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços
e equipamentos urbanos.

Alguns projetos de requalificação urbana utilizam o conceito de ‘calçadões’, ou vias de


pedestres, eliminando o tráfego de veículos motorizados da via, ou seja, a pista,
fazendo a calçada ocupar toda a sua largura. Geralmente são projetos em partes
centrais das cidades, onde o fluxo de pedestres é intenso. Em São Paulo, foi feita uma

61
,

grande readequação da área central para o fluxo de pedestres na década de 1970,


junto com a implantação do transporte de massa pelo metrô.

Fonte: Alf Ribeiro via Shutterstock.

Figura 5.7 – Calçadão no centro da cidade de São Paulo, Brasil.

5.5 Orlas

O tratamento paisagístico de orlas, locais que fazem a transição entre uma área
urbanizada e um curso d'água expressivo, como um rio, uma represa ou o mar, é
importante para estabelecer uma relação de respeito à natureza e ao mesmo tempo
oferecer algumas comodidades aos usuários destes locais. Orlas com tratamentos
paisagísticos adequados protegem os cursos d'água da degradação ocasionada pela
ocupação humana desregulada, ao mesmo tempo que podem beneficiar a área urbana
lindeira.

Não poderíamos deixar de incluir nesta disciplina o projeto icônico da orla carioca de
Copacabana, executado por Roberto Burle Marx, nosso mais icônico paisagista, na
década de 1970. Nele, Burle Marx desenhou 4 km de calçadas que, junto com a
deslumbrante paisagem carioca, se tornaram um dos nossos cartões postais mais
conhecidos. Vide Figura 5.8:
62
,

Fonte: Burle Marx e Cia. Ltda., Rio de Janeiro.

Figura 5.8 – Calçadas de Copacabana, Rio de Janeiro. O antigo desenho de ondas foi
incorporado na expressiva paginação de Burle Marx com maestria.

63
,

No paisagismo contemporâneo, este tipo de projeto, continua demandado e


valorizado, mas tem seguido um padrão muito repetitivo, como comenta Macedo
(2015):

O uso múltiplo ainda pode ser observado em todos os novos calçadões de praia, nos
quais se torna obrigatória a implantação de quiosques de alimentação, ao lado de
ciclovias, bancos, quadras, vegetação e pórticos decorativos (MACEDO, 2015, p. 108).

Conclusão

Neste bloco abordamos algumas questões chave sobre os espaços públicos de uma
cidade, como a simplicidade sobre o significado de espaço público e de espaço privado,
relacionado à propriedade. E por outro lado, a complexidade das inúmeras formas de
apropriação dos espaços, relacionadas aos usos, independentemente da posse legal
efetiva. Esta discussão serviu para alimentar os estudos sobre os tipos mais comuns de
espaços públicos: praças, parques, ruas e orlas.

REFERÊNCIAS

ABNT NBR 9050 – Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos


urbanos. 4. ed. ago. 2020. Edição corrigida, jan. 2021.

FARAH, I.; SCHLEE, M.B.; TARDIN, R. (organizadoras). Arquitetura paisagística


contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora SENAC São Paulo/ABAP – Associação
Brasileira de Arquitetos Paisagistas, 2010.

MACEDO, S.S. Quadro do paisagismo no Brasil: 1783-2000. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2015.

MACEDO, S. S.; ROBBA, F. Praças brasileiras. São Paulo: Edusp, 2002.

MARX, Murillo. Cidade brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1980.

PlanMob – Construindo a cidade sustentável: Caderno de Referência para Elaboração


de Plano de Mobilidade Urbana. Secretaria Nacional de Transporte e Mobilidade
Urbana. Ministério das Cidades, 2007.

64
,

Sites

CHAN, K. Roberto Burle Marx: um mestre muito além do paisagista modernista.


Revista digital Archdaily. Disponível em:
https://www.archdaily.com.br/br/792669/roberto-burle-marx-um-mestre-muito-
alem-do-paisagista-modernista?ad_medium=gallery. Acesso em: 21 jul. 2022.

Código de Trânsito Brasileiro. Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm> Acesso em: 21 jul. 2022.

Prefeitura de São Paulo, Secretaria do Verde e Meio Ambiente. Divisão de Gestão de


Parques Urbanos – DGPU, 2022. Disponível em:
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/parques/index.p
hp?p=292393, Acesso em: 21 jul. 2022.

65
,

6 RECUPERAÇÃO DE CENTROS URBANOS

Apresentação

As nossas cidades mundiais do terceiro milênio enfrentam problemas de naturezas


diversas, que refletem os próprios problemas das sociedades em que se inserem, mas
também estão relacionados aos modelos de urbanização e planejamento urbano que
vêm sendo adotados há décadas. Por outro lado, muitas cidades têm descoberto novas
formas de lidar com as problemáticas urbanas, trocando o foco de atenção da
circulação e eficiência para a humanização e o cuidado com o meio ambiente.

Neste bloco trataremos brevemente sobre algumas teorias urbanas e seus contextos,
tentando exemplificar de que maneira o pensamento sobre a cidade impacta
diretamente sobre as possíveis formas de intervir sobre ela. De qualquer forma, é
necessário considerar todos os atores sociais presentes e atuantes na conformação da
forma urbana: o capital imobiliário, governos, urbanistas e a população (reunida em
massa crítica) para que qualquer plano tenha mais chances de alcançar sucesso.

Então com este bloco você ampliará sua visão sobre os problemas urbanos, que são
complexos, urgentes e instigantes, pois estão envolvidos com a nossa própria forma de
habitar as cidades, nos relacionando com as suas especificidades históricas, suas pré-
existências naturais, com a cultura de nossa época e entre nós mesmos, como
cidadãos.

6.1 Cidades atuais, problemas urbanos e processos participativos

Como sabemos, as cidades tiveram um crescimento muito acelerado nos últimos 150
anos, período em que também tivemos mudanças expressivas nas tecnologias que
cercam nossas vidas. Este processo não cessou, estamos em pleno processo de
transformação e essas mudanças nas cidades e no uso das tecnologias de informação e
comunicação, têm transformado os modos como nos relacionamos com o mundo e
com as pessoas.

66
,

Tudo isto reflete em como utilizamos os espaços públicos das cidades e como estes se
apresentam para nós. Os espaços urbanos oferecem diferentes possibilidades de
ocupação, também. E estas duas coisas se autoalimentam. Sabemos que o poder
público democrático age (ou deveria agir) conforme as demandas de seus cidadãos. A
percepção das demandas também afeta as ações públicas. Podemos afirmar que
políticas públicas que respondem aos desejos sociais tendem a ser apropriadas pela
população, que preza e se manifesta, se necessário, pela sua continuidade. Mesmo
com a troca de governos, é difícil voltar atrás na resposta positiva a direitos adquiridos.

Os urbanistas devem ter em conta o elemento fundamental para o sucesso dos planos:
a participação da população. A população é quem usa a cidade e é ao mesmo tempo
também, em última instância o cliente, representado pelos governantes eleitos. Por
isso é necessário dialogar com as comunidades e envolvê-las nos processos de
planejamento. Em locais onde não há esta tradição, tudo fica mais difícil. De qualquer
forma, a relação entre as pessoas e suas cidades é recíproca, cidades amigáveis
convidam para os espaços públicos, que são capazes de transformar as relações
sociais. Por isso nos alerta Jan Gehl, renomado urbanista e consultor internacional:

Igualmente urgente é reforçar a função social do espaço da cidade como local de


encontro que contribui para os objetivos da sustentabilidade social e para uma
sociedade democrática e aberta (GEHL, 2013, p. 6).

Uma política pública urbana que ganhou destaque pela sua apropriação pela
população foi a inserção de infraestruturas cicloviárias nas cidades, como apoio aos
modos sustentáveis de mobilidade. Pode-se observar este processo nas cidades de
Bogotá, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e na Baixada Santista paulistana, em que os
índices de uso da bicicleta como meio de transporte subiram muito nas últimas
décadas.

6.2 A degradação dos centros urbanos

Os principais problemas que atingem os centros urbanos atuais não estão diretamente
relacionados à riqueza financeira da cidade em questão. As cidades e principalmente
seus centros, devem ser organismos vivos e pulsantes, onde a vida urbana possa se
67
,

desenvolver com conforto, segurança e saúde. Os principais males dos espaços


públicos são ocasionados por duas fontes principais, das quais se derivam vários outros
problemas: a falta de diversidade em relação ao uso do solo e a conturbação gerada
pelo excesso de uso dos veículos motorizados.

Quando usamos o termo uso do solo, estamos nos referindo aos tipos de usos nos
lotes que podem ocorrer em uma cidade: comerciais, de serviços, residenciais e
industriais. Existe uma relação direta entre o uso do solo mono funcional e a
degradação urbana, pois a diversidade do uso do solo se reflete na diversidade de usos
e traz a riqueza cultural da mistura de faixas de renda, de diferentes idades, de
diferentes etnias. Cada qual usando o espaço público de formas diferentes, em
horários diferentes, em dias diferentes, criando várias situações, responsáveis pela
animação e vivacidade da cidade.

Por isso, a grande antipatia atual por soluções de prancheta que organizam a cidade
sem considerar a vida das pessoas que nela habitam. As teorias urbanas modernistas,
estabelecidas nos primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (os
CIAM de 1928 e 1933), propuseram a divisão funcional da cidade. Naquela época,
contrapunham-se à cidade industrial e insalubre e tinham a tarefa de reconstrução das
cidades arrasadas pelas grandes guerras, de forma rápida e eficiente. Estas condições
foram importantes fatores de indução destas teorias, que sugeriam uma cisão entre o
meio natural e a cidade, espalhando as habitações em grandes áreas verdes.

A criação de áreas industriais afastadas das áreas residenciais, eram benéficas naquele
contexto em que as indústrias eram extremamente poluentes, muitas com matriz
energética à carvão. De fato, houve muitas transformações desde então, as indústrias
se afastaram dos meios urbanos, assim como desenvolveram tecnologias para controle
da poluição. Hoje exigir das indústrias uma produção limpa é um fato, apesar de ainda
serem responsáveis por grande parte da degradação ambiental e empregarem um
contingente expressivo de pessoas.

Contudo, hoje nossa visão sobre a divisão funcional de uma cidade é completamente
inversa. Reconhecemos que uma das maiores qualidades do meio urbano é a

68
,

diversidade do uso do solo, que reflete a diversidade das atividades humanas,


concentra deslocamentos e vivifica o espaço público. O planejamento e o desenho
urbano não podem ser desvinculados dos contextos em que estão inseridos.

Os usos residenciais qualificam os espaços urbanos, pois são responsáveis pela


utilização do espaço urbano 24hrs por dia e atraem usos que vivificam as cidades,
como pequenos comércios, restaurantes, bares, supermercados etc. Os centros
urbanos que tiveram uma mudança total de uso, tornando-se exclusivamente centros
financeiros, de serviços e comércio, encontraram grandes dificuldades com a
degradação urbana ocasionada pelo vazio de ocupação fora do horário comercial.

Os usos residenciais são os mais abundantes e bastante diversificados, refletem a


diversidade econômica e cultural da população. Em sociedades extremamente
desiguais e onde há pobreza extrema, muitas famílias não conseguem se inserir
socialmente nem mesmo em uma habitação subnormal (em favelas e cortiços) e
acabam por ocupar as ruas. A pobreza não é a única causa do aparecimento dos
moradores de rua, mas é a mais importante, pois não reflete um desejo destes
moradores. Com o esvaziamento dos espaços centrais monofuncionais, as famílias em
situação de rua acabam por ocupar principalmente estas áreas ‘sem dono’.

Jacobs (2011) analisou o processo substituição dos usos diversificados, por apenas um
uso predominante, nas grandes cidades americanas. Ela entendeu que o próprio
sucesso de valorização de uma área da cidade poderia ser o motivo de sua decadência
no futuro. Este processo aconteceu por volta das décadas de 1960 e 1970 na área de
Manhattan, em Nova York, por exemplo. Com estas análises, Jacobs sugeriu que o
poder público criasse maneiras de frear a reprodução excessiva de determinado uso
em determinado local, direcionando-a para outro. Outra crítica que podemos fazer a
Jacobs é a concentração de esforços para criticar os urbanistas e a crença exagerada
no poder público como ferramenta de intervenção na cidade, subestimando o poder
dos proprietários de imóveis e do capital imobiliário e suas estratégias para
maximização de lucros.

69
,

No centro histórico de São Paulo, como o de outras metrópoles, este processo de


expulsão das moradias para abrigar usos comerciais e financeiros também ocorreu.
Nesta cidade o centro ‘deslocou-se’, primeiramente para a região da Avenida Paulista,
depois para a região da Avenida Berrini. Outro fator importante que motivou este
processo de deslocamento das empresas foi a obsolescência das instalações prediais e
a oferta de capital financeiro excedente, desejoso de investir em imóveis comerciais de
tecnologia de ponta.

De maneira geral, o uso do solo mono funcional, decorrente de planos urbanísticos


equivocados ou da especulação imobiliária é um dos vilões da degradação dos centros
urbanos de grandes cidades. O outro vilão é o uso desenfreado do automóvel e outros
modos motorizados, que ocuparam os espaços públicos e congestionam as vias,
expulsando os pedestres e, paulatinamente, a vida urbana.

A fruição da cidade se dá a pé, é andando que estamos atentos ao nosso redor e


disponíveis para trocar um ‘bom dia’. Mas não só, andando entramos eventualmente
em uma loja, descobrimos um novo restaurante, sentamo-nos em um banco para
observar uma paisagem urbana, povoamos os espaços urbanos com pessoas de bem.
Os delinquentes são sempre minoria e escolhem lugares mais vazios para infringir a lei.
As pessoas e suas exigências é que tornam as cidades mais amigáveis, seguras e cheias
de vivacidade.

Gehl (2013) afirma que mais vias para automóveis gera mais trânsito, ao contrário do
que se poderia supor. O aumento de vias funciona como uma espécie de convite ao
uso do automóvel. Foi o que se verificou em Xangai, na China, por exemplo. Outro
exemplo que ele cita é o de uma grande via expressa em São Francisco, EUA, a
Embarcadero, que ficou um tempo fechada por causa de um terremoto. Neste tempo
de fechamento, descobriu-se que o tráfego de automóveis se reorganizou em outras
rotas. Hoje, a Embarcadero é uma via exclusiva para veículos leves sobre pneus (VLPs)
e ciclistas e transformou-se em um arborizado e aprazível bulevar.

70
,

Fonte: DTM Media via Shutterstock.

Figura 6.1 – Embarcadero, São Francisco, EUA. Transformação urbana depois de


diminuir a prioridade do uso do automóvel e inserir transporte coletivo de qualidade
e infraestrutura cicloviária.

6.3 Soluções: Elementos urbanos

Para Gehl (2013) é necessário tratar o espaço urbano como se fosse um espaço de
estar, garantindo a escala humana e o conforto para os cinco sentidos. A escala
humana tem a ver com a altura dos edifícios, por exemplo. A vida na cidade é
percebida até no máximo os quarto e quinto andares, sendo mais diretas as relações
dos ocupantes do primeiro, segundo e terceiro andares com a rua. Acima de cinco
andares, perde-se o contato visual com o que está acontecendo lá: não há mais a
possibilidade de contar com os ‘olhos da rua’.

Espaços públicos utilizados são mais convidativos: as pessoas gostam de ver as


pessoas. Mesas na calçada, bancos, cuidados com o desenho urbano, iluminação
pública adequada nos horários noturnos, tudo isso incentiva que mais pessoas usem os
espaços públicos e, no fim, pessoas atraem pessoas, em um círculo virtuoso. Ruas
povoadas são mais seguras e para garantir a vivacidade das ruas, o urbanismo pode
trabalhar com medidas de diversificação de usos e de inclusão de moradias,
preferencialmente de diversas faixas econômicas. O edifício Copan, no centro de São

71
,

Paulo, por exemplo, por ser constituído de apartamentos de tamanhos muito variados,
possibilita o convívio saudável de várias classes sociais, vide Figura 6.2:

Fonte: CYSUN via Shutterstock.

Figura 6.2 – Edifício Copan, São Paulo

Fonte: Archdaily.

Figura 6.3 – Edifício Copan, corte que mostra a divisão das várias tipologias.

72
,

Fonte: Oukawa, 2010.

Figura 6.4 – Edifício Copan, planta de um andar tipo, mostra a divisão das tipologias
habitacionais de tamanhos diferentes.

A experiência dos sentidos é outro fator importante que motiva os humanos a usarem
a cidade. O comércio investe muito na experiência dos sentidos em suas vitrines, na
exposição das mercadorias e na arquitetura das lojas. Uma rua de comércio
especializado pode atrair muitas pessoas, como os comércios de instrumentos
musicais na Rua Teodoro Sampaio, na metrópole paulistana. Outra rua que ganhou
destaque por seu requintado espaço público, foi a Rua Oscar Freire, vide Figura 6.5.
Além da decoração das lojas, que se esmeram por chamar atenção, teve sua fiação
enterrada e as calçadas redesenhadas, com pisos homogêneos e neutros, de boa
qualidade e mobiliário urbano (bancos e lixeiras) e aço inoxidável. O projeto de
requalificação da Rua Oscar Freire foi feito por meio de uma parceria entre os lojistas e
a prefeitura municipal.

73
,

Fonte: Diego Grandi via Shutterstock.

Figura 6.5 – Rua Oscar Freire, em São Paulo, notar o mobiliário urbano, o tratamento
dos pisos das calçadas e arborização, que tornam o passeio mais agradável.

O calor excessivo ou o frio excessivo também são elementos que desencorajam o uso
dos espaços públicos. A sombra de uma árvore, uma marquise, o toldo de um
restaurante, um gramado ensolarado, uma fonte de água, são todos elementos
urbanos que auxiliam a obtenção do conforto térmico. O novo projeto para o Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, tirou partido do elemento água e reorganizou os espaços
públicos com a presença de comércio nos quiosques lindeiros à grande praça pública.

Fonte: Alf Ribeiro via Shutterstock.

Figura 6.6 – Vale do Anhangabaú, São Paulo. Note os pontos de água no piso e a
ambientação mais na escala humana com a presença dos quiosques e arborização na
periferia da grande praça.
74
,

O conforto olfativo em uma cidade é muito importante e pode melhorar muito com a
implantação de banheiros públicos ou a diminuição do tráfego de automóveis. Uma
fonte, um chafariz, um espelho d’água ou outro elemento com água, também pode
melhorar a qualidade da respiração em climas muito secos.

Ruas com tráfego acalmado, traffic calming, ou pedestrianizadas, também oferecem


maior conforto acústico. É o caso da Rua Avanhandava, concentrando vários
restaurantes, no centro de São Paulo, ganhou um novo desenho após a parceria entre
os donos dos restaurantes e o poder público, vide Figura 6.6:

Fonte: Nelson Antoine via Shutterstock.

Figura 6.7 – Rua Avanhandava, em São Paulo. Os restaurantes se apropriaram de


partes das calçadas, criando um cenário urbano convidativo.

6.4 Soluções: Incentivos ao transporte saudável

Cidades saudáveis, com pessoas saudáveis, utilizam meios de transporte saudáveis, ou


seja, aqueles que contribuem com a saúde das pessoas e das cidades. É um círculo
virtuoso. Andar a pé ou de bicicleta melhora a vida urbana e podem ser experiências
muito prazerosas. O que é melhor, ficar parado no trânsito mais de uma hora ou
caminhar cinco quadras até o trabalho? Talvez você ache melhor ir de carro, mas seu
coração não acha.

A experiência humana em relação à cidade também é definida pela velocidade de


locomoção. Os meios saudáveis ou ativos desaceleram os cenários por onde passamos

75
,

e assim somos capazes de fruir a cidade em seus detalhes, assim como prestar atenção
nas pessoas. A velocidade média da caminhada é de 5km/h, a da corrida é 12km/h e
andando de bicicleta atingimos em média 18km/h, velocidades adequadas a um modo
de vida possível em uma cidade compacta.

Cidades que possuem infraestrutura cicloviária convidam mais pessoas a utilizarem a


bicicleta como meio de transporte. Precisamos de vias seguras para pedalar, assim
como lugares especiais para deixar a bicicleta. Em cidades grandes e espalhadas, onde
as distâncias a percorrer são muito longas, também é necessário que tenhamos a
integração entre os meios de transporte público e as vias de bicicleta (ciclovias,
ciclofaixas ou faixas compartilhadas).

Fonte: Deni Williams via Shutterstock.

Figura 6.8 – Ciclovia na Avenida Faria Lima em São Paulo, estrutura cicloviária bem
implantada em área consolidada da cidade.

76
,

Fonte: Alf Ribeiro via Shutterstock.

Figura 6.9 – Ciclovia na Avenida Faria Lima em São Paulo, pouco tempo depois da
implantação gerou trânsito de ciclistas no horário de ida para o trabalho.

6.5 Requalificação de centros urbanos: Estudos de caso

Jacobs (2011), em seu livro ‘Morte e vida das grandes cidades’ (americanas) faz uma
dura crítica ao urbanismo ortodoxo que para ela é a principal fonte de alguns
problemas urbanos. Ela destaca em seu livro, escrito na década de 1960, que haveria
quatro fatores essenciais capazes de gerar a diversidade urbana: diversidade de uso do
solo, quadras curtas, edifícios de idades e estados de conservação diferentes e
concentração populacional. Sobre a diversidade do uso do solo, esta garantiria que
mais pessoas utilizassem o espaço urbano em diferentes horários e com motivos
diferentes. As quadras curtas garantiriam mais oportunidades de conexões e fluxos,
era uma crítica direta a quadras muito longas de Manhattan que segregavam trechos
de cidade. A diversidade de edifícios em idades e estados de conservação diferentes
parecia interessante para a diversificação dos inquilinos e dos tipos de ocupação
comerciais ou residenciais. E a concentração populacional garantiria que houvesse
uma densidade não muito baixa, importante para que houvesse diversidade entre as
pessoas.

77
,

Apesar de Jacobs apontar que estes quatro pontos eram os principais elementos do
seu livro, percebeu-se, com o tempo, que tais sugestões eram menos importantes que
a crítica que fez ao urbanismo ortodoxo (modernista) e a análise das relações de
vizinhança e dos usos das calçadas, na primeira parte do livro. Essas análises foram
inspiradoras para planejadores urbanos contemporâneos. Jan Gehl, urbanista
dinamarquês e consultor internacional de desenho urbano, bastante atuante desde a
década de 1960, fundamentou muitas de suas teorias com as leituras de Jane Jacobs.
Gehl (2013) dá continuidade às críticas ao urbanismo ortodoxo ‘modernista’ e,
também inclui análises sociológicas no rol das principais atividades dos arquitetos
urbanistas.

A teoria urbanística de Gehl se fundamenta em quatro principais pontos, que são a


procura por cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis. Estes pontos estão
diretamente relacionados à diversidade do uso do solo, aos ‘olhos da rua’ e à utilização
dos meios ativos e saudáveis de transporte: a caminhada e a bicicleta. Em relação ao
desenho urbano, sugerimos algumas ações e discutimos algumas ideias sobre
requalificação de cidades e centros urbanos. Será que seríamos capazes de fazer uma
análise para detectar alguns destes elementos discutidos em algumas intervenções
urbanas brasileiras?

Fonte: William Avila via Shutterstock.

Figura 6.10 – Curitiba, Paraná. Centro, Praça Rui Barbosa, uma das inúmeras praças
desta capital.
78
,

Fonte: windwalk via Shutterstock.

Figura 6.11 – Pelourinho, Salvador, Bahia. Área pedestrianizada: destaque para


desenho do piso, desenho da iluminação e tratamento das fachadas históricas.

Fonte: Aleks49 via Shutterstock.

Figura 6.12 – Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Notar os paraciclos e os


mobiliários de mesas e cadeiras.

79
,

Fonte: luisapohren via Shutterstock.

Figura 6.13 – Orla do Rio Guaíba, Rio Grande do Sul. Notar o uso esportivo propiciado
pelo tratamento dos pisos e as pistas para skate.

Conclusão
Neste bloco tratamos sobre as principais problemáticas que geram a degradação dos
centros urbanos e da cidade, a falta de diversidade do uso do solo e uso demasiado do
automóvel, ambos causadores de vários problemas urbanos, como: perda da
sociabilidade, insegurança, degradação do meio urbano, pessoas em situação de rua,
poluição atmosférica e sonora, acidentes de trânsito, intensificação da ilha de calor
urbano etc.

Vimos que alguns dos nossos modelos de desenvolvimento estão fadados ao fracasso,
como o uso intensivo do automóvel como meio de locomoção privada, em grandes
cidades. Lembro-me muito de uma frase do célebre arquiteto Paulo Mendes da Rocha:
‘o automóvel é uma máquina burra, pois pesa uma tonelada para carregar 70 kilos...’
mais ou menos assim, ele se referia ao uso desenfreado do automóvel para percorrer
longas distâncias urbanas, com apenas uma pessoa dentro. Ele não é o único urbanista

80
,

que reconhece as qualidades da cidade compacta e diversa, não digo que para
solucionar todos os problemas urbanos, mas para não criar alguns desnecessários e
acentuar outros, enfim, temos muito a discutir sobre as cidades do presente e do
futuro.

Por isso trouxemos, ao final deste bloco, uma série de imagens sobre intervenções
urbanas diversas. Gostaria que estas imagens incentivassem você a percorrer algumas
dessas áreas, se possível, e a desenvolver sua própria consciência crítica sobre estas
intervenções urbanas. Caminhe em sua cidade, note os elementos urbanos que
ajudam a ambiência urbana, perceba o que está faltando. Vá até a fonte: nosso objeto
de estudo como urbanistas é o espaço da cidade!

REFERÊNCIAS

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JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011.

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análise musical. Dissertação [mestrado]. São Paulo: FAU – USP, Faculdade de
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Sites

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ruas comerciais: a parceria entre a associação de lojistas e a prefeitura municipal no
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