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Novos RUMOS UNIVERSALISMO, PARTICULARISMO E A QUESTAO DA IDENTIDADE: Nao existe alternativa real entre Espinosa e Hegel. ‘Mas isto nos poe num terreno bastante diferente, no qual a ‘possibilidade mesma da distingéio sujeito objeto resulta simplesmente da impossibilidade de se constituir quaisquer dos seus dois fermos. Muito se fala hoje sobre identida- dessociais, nacionaise politicas, A "mor- tedo sujeito”. que, nao faz muito tempo, foi orgulhosamente anunciada urhi et orbi, foi sucedida por um novo ¢ difun dido interesse nas miltiplas identidades que esto cmergindo e proliferando no mundo contemporinco. Estes dois mo- ‘vimentos no esto, entretanto, em to ‘marcado e dramtico contraste entre si ‘como somos tentados a crer & primeira vista, Talvez a morte do Sujcito (com S rmaiiisculo) tenha sido a principal pré~ condigao para este renovado interesse na questdo da subjetividade. Talvez seja a propria impossibilidade de se remetc~ rom as expressdes concretas ¢finitas de Ernesto Laclau** uma subjetividade multifacética a um centro transcendente que permita co centrarmos nossa atengdo sobre a multiplicidadcemsi, Osgestosfundantes ‘dos anos 60 ainda esto conosco, possi- bilitando as exploragdes tedricas ¢ poli- ticas nas quais nos engajamos hoje. Se, no entanio, surgiu esse hiato temporal entre o que tinha se tornando {coricamente concebivel ¢ 0 que efetiva- mente se conseguiu. € porque uma se~ ‘gunda © mais sutil tentagdo cercou 0 nirio intelectual da esquerda por tum tempo: a de substituir o sujeito inscendental pelo seu outro siméttico. ‘ade reinscrever as miltiplas formas de subjetividades indéceis numa totalidade objetiva, Dai derivou um conceito que foi Largamentocmpregado em nossa pré- historia imediata: o de "posig@es de su- ito". Mas csta no foi. obviamentc, superagao real da problematica de uma subjctividade transcedental (algo que nos cerca como uma auséncia esti nna verdadc, muitissimo presente) Historia € um processo sem sujcito” ‘Talvez, Mas como podemos saber disto? Nao estaria a propria possibilidade de ‘uma tal afirmagao jaa requerer 0 que se estava tentando evitar? Se a Historia ‘como totalidade ¢ um objeto possivel de ‘experigncia cdiscurso. quem poderia ser sujeito de tal experiéneia sendo osujei- to de um saber absoluto? Ora, se tentar- mos evitar essa deficiencia © negar 0 terreno quedaria sentido atal afirmagio. € a propria nog de posigde de sujcito 30 que se tornari problematic O que po- deria ser esta tiltima sendo um lugar especial no interior de uma totalidade. ¢ ‘o que poderia ser esta totalidade senio 0 objeto dacxperiéneia de umsujeitoabso- luto? No esato momento-em que oterte- no da subjetividade absoluta se desfaz desfiz-se também a propria possibilida- de de um objeto absoluto, Nao existem alternativas entre Espinosa e Hegel. Masisto nos poe num {erreno bastante diferente. no qual a possibilidade mesma de distingio sujei- Tolobjeto resulta simplesmente da im- possibilidade de se constitu quaisquer dos scus dois termos Sou um sueito precisamente porque no posso ser uma consciéncia absoluta. porque algo Cconstitutivamentc estranho me confron- ta: € mio pode haver qualquer objeto como resultado desta opacidads estranhamento (alienation) que mostra as marcas do sujeito no objeto Assim, desaparecido o objetivismo como “obstaculo epistemologic nout-se possivel desenvolver tod: implicagées da "morte do sujeito”. Nesse ponto. ésta iiltima mostrou o veneno ‘oculto que a habitava, a possibitidade de sua segunda morte: “a morte da mortedo sujeito", a re-emergéncia do sujeito em ecorréneia de sua propria morte: a pro- liferagao de finitudes coneretas cujas ‘des So a imagem de sua forca: 0 reconhecimento de que pode haver "su Jeitos" porque 0 vazio que "o Sujcito” deveria preencher é. na verdadc, irroparivel Isto no é apenas especulagio abs- trata: trata-se. ao contrario, deuma abor- dagem intelectual aberta pela propria siluagao em quea Historia nos langou:a :muluplicagio de novas-e no Ho novas éncia do colapso dos lugares 2 partir dos quais os sujeitos tuniversais falavam -, explostio de iden- lidades étnicas ¢ nacionais na Europa Oriental enos territériosdaantiga URSS. lotas de grupos imigrantes na Ocidental: novas formas de protesto ‘multicultural eautoafirmagae nos EUA os qquais temas que acrescentar uma ma de formas de contestagao associa das aos novos movimentos sociais. Sur fe. enldo. «1 questio: esta proliferagio dove ser pensada somente enquaanto pro- Inferagio - quer dizer. simplesmente em termos de sua multiplicidade? Para colo- caro problema cm sua forma mais ples: deve-se pensar 0 particularismo apenas a partir da dimensto diferencial jue ele aftrma? Scriam as relagdes entre liniversatism ¢ particularismo simples relagdes de exelusio mitua? Ou, se ormarmos a questio pelo ngulo opos- to, scraqueaaliemativatentreobjetivismo cesenciaisia esubjetivismo transcedental esgota olequedejogos de linguagem que se pode fiver com 0 “universal”? Estas so as principals questdes {que me propanho a diseutir. Nao vou pretender que o lugar de um ‘questionamento naoafeteanatureza das squestdes e que estas nao predeterminem ‘o tipo de resposta esperada, Nem todos fs caminhos levam a Roma, Mas, 1 confessart natureya tendenciasa de m hha intervengio, eu oferego ao leitor apenas a liberdade que esta em meu poder conceder: a de abandonar © meu discurso e rejeitar sua validade em ter- ‘mosque Sioessencialmente incomer riveis com cle. Assim, ao oferccer-Ihe ‘algumas superficies de inscrigao para a formuilagio de questoes mais do que respostas. estou me engajando numa luta de poder para a qual existe um nome hhegemonta Consideremos. para comegar. as Novos RUMOS formas historicas pelas quais a relagio centre universatidade © particularidade ‘tem sido pensada, Uma primeira abord ‘gemafirma: (3) quehii uma linha divis6- ria incontaminada entre 0 universal ¢ 0 particular: ¢ (b) que o palo universal € inteiramente compreensivel pela raza. Nesse caso no ha qualquer mediaga0 possivel entre universalidade c particu- laridade: oparticular s6 pode eorromper 0 universal. Estamos no terreno da filo~ sofia antiga chissica, Ou bem o particu lar realiza em si o universal - isto 6, climina-se enquanto particular ese trans forma mum meio transparenteatravésdo 4qual a universalidade opera: ou bem cle nega o universal pela afirmagaa de seu Pparticularismo (amas, comoeste ditimo & puramente srractonal. cle mio tem ne- nhumaexisténcia propria eso pode exis tir como cornupgio do set). A questa Sbvia refere ue separa a luniversalidade da paruiculanidade: ela é ‘universal ou particular? Se particular, a tuniversalidade so pode ser uma particu Iaridade que se defineem termosde vm excluszo ilimitada: se universal. a part cular em si se torna parte do universal e a linha divisoria ¢ outra ver turvada Masa possibitidade mesma de formular cesta tiltima questo requereria que a forma da universabidade como tal © © comer concteto 40 qual ela se associa esicjam sujeitos a uma clara diferenct 0, Tal diferenga, entretam. ser pensada pela filosofia A segunda possibilidadede pensar arelagio entre universalidadee panic laridade esti hyada ao Cristianismo, O pomto de vista da totalidade existe. mas cle pertence a Deus, 0 a nds, de modo que mio é acessivel a razao humana Credo quia ahsurdum. Assim, ovuniver- sal é um mero evento numa seqiténcia escafoldgica, apenas acessivel a nds por meio da revelagio. Isto cnvolve uma concepgio intciramente diferente da re lagdo entre particularidade e untversali- dade A linha divisoria nio pode ser como no pensamento antigo. quel en tue racionalidade ¢ irracionalidade, en tue uma camada profunda c outra super= ficial nointeriordacoisa, masentre dias séries de eventos: umasequcneia finitae contingente. por um lado. © a série escatoldgica, por outro, Como os desig hhios de Deus so inexcrutiveis, a cama- da profunda nao pode ser um mundo racionais. mast nporal de eventos essenciais uy No caso do marxismo, tem lugar uma reintrodugéio semethante dar logica da encarnagao. Entre 0 cartter universal das tarefas da classe operiria ea particularidade de suas demandas coneretas, abrin-se um crescente vazio que tinha que ser preenchide pelo Partido como representante dos inieresses hisioricos do proletariado. que nao podem ser captados pela razdo humana: © como cada um desses mo- ilOs universais fem que se realizar ‘numa reatidade finita que nao tem nada em comum com cles. a relagio entre as dduas ordens tem que ser também opaca e incompreensivel. Estetipodc relagao fo cchamado encarnagdo, cuja caracterist ca distintiva é que entre 0 universal 0 corpo que o encarna ndo Ini qualquer vinculo racional. Deus ¢ 0 nico c abso- luto mediador. Assim comegava a légica sutil, destinada ater uma profunda influ ncia em nossa tradigao intelectual: ado agente privilegiado da Historia, aquele cujo corpo particular era a expresso de universalidade qucotranscendia. A ‘idgia moderna de uma “classe universal eas virias formas decurac grande medidét, uma tentativa de inter- romper a logica da encarnago, Deus. a origem absoluta de tudo que existe. foi substituido cm sua fungao de fiador unt- versal da Rado. mas win fundamento e ‘origem racionas tém lépica propria, que muito diferente da de uma intervengdo divina - sendo a principal difercnga a de que os efeitos de uma fundamentagio racional {Gm que ser inteiramente trans- parentes di razo humana, Ora, este re~ uisito é totalmente incompativel coma ‘Numa sociedade sem classes as relagdes sociais serdao enfim totalmente transparentes. E verdade que se a crescente simplificagao da estrutura social sob 0 controle do capitalismo tivesse ocorrido conforme Marx previra, as conseqiiéncias desta abordagem nao teriam sido necessariamente autoritérias, porque a posi¢ao do proletariado como portador do ponto de vista da totalidade ¢ a posicao da vasta maioria da populacao teriam coincidido. logicadaencarnagao; se tudo temaque ser transparente a raziio, 0 vinculo entre 0 universal e 0 corpo que o encarna tam- bém tem que sé-lo; © neste caso a incomensurabilidade entre um universal ser encarnado e 0 corpo que 0 encarna tem que ser eliminada. Temos que pos- tular um corpo que ¢ em por si univer- sal © pleno reconhecimento destas implicagdes levou varios séculos. Des- cartes postulou um dualismo pelo qual 0 ideal de uma racionalidade plena ainda se recusava a se tornar um principio de reorganizagio do mundo social e politi- 0; mas as correntes principais do iluminismo iriamestabelecer uma nitida fronteira entre um passado, que era 0 ‘dominio dos errose loucuras dohomem, eum futuro racional, que resultaria de um ato de instituigdo absoluta. Um ulti- ‘mo estiigio no avango desta hegemonia racionalista teve lugar quando a brecha entre o racional eo irracional foi preen- chida pela representagao do ato de seu cancelamento como um momento neces- sério no autodescnvolvimento da razao: cesta foi a tarefa de Hegel © Marx, que afirmaram a transparéncia total, no sa- Novos RUMOS ber absoluto, do real rato. O corpo do proletariado nao € mais um corpo espe- cifico no qual a universalidade que Ihe é externa tenha que se encarmar: é antes tum corpo no qual a distingio entre par- ticularidade e universalidade é cancela- da, e como resultado a necessidade de toda encarnagio é definitivamente erradicada. ‘Neste ponto. entretanto,areatida- de social recusou-se a abandonar sua resisténcia aoracionalismo universalista Pois ainda restava um problema a resol- ver. O universal tinha encontrado seu prdprio corpo, mas esteainda era o compo de uma particularidade -a cultura euro- peia do século XIX. Assim, a cultura curopéia era pariculare ao mesmo tem- oa expresso -niio mais a encarnagdo + da esséncia humana universal (como a URSS seria depoisconsiderada.apdiria- ‘nde do socialism). O pontocrucial aqui que no havia quaisquer meios intelec- tuaisde dstinguirentreo particularismo curopeu e as fungBes universais que ele deveria encarnar, uma vez que 0 universaismo europeu tinka construido sua identidade precisamente pelo cance- lamentoda lgicada encarna¢ioe, como resultado, da universalizagio deseu pré- prio particularismo. Entio, a expansio imperialistaeuropéia tina queserapre- sentada em termos de uma fungao civilizatéria universal, modernizagio cle, AS resisténcias postas por outras culturas cram, entio, apresentadas no como lutas entre identidades e culturas particulares, mas como parte de uma luta abrangentee epocal entre universa- lidade ¢ particularismos - a nogio de ppovos sem historia expressava exata- ‘mente sua incapacidade de representaro universal Este argumento pode ser concebi: do em termos racistas bastante explici- tos, como nas varias formas de darwinismo social, maseletambém pode receber versbes mais "progressistas" - ‘como em alguns sefores da. Segunda Internacional - ao se afirmar que a mis- slo civilizadora da Europa terminaria comestabelecimento deuma ociedade ‘universalmente livre, em nivel mundial Assim, a légica da encarnagao fot reintroduzida - tendo a Europa que re- presentar por um certo periodo os inte= resses humans universais. No caso do marxismo, tem lugar uma reintrodugao semelhante da logica da encamacdo, Entre o carter universal das tarefas da 32 classe operiria e a particularidade de suas demandas concretas, criou-se um Cerescente vazio que tinha que ser preen- chido pelo Partido como representante dos interesses historicos do proletariado, O hiato entre a classe-em-si ¢ a classe- para-si abriu caminho para uma sequén- Cia de substituigdes: 0 Partido substituiu classe; oautocrata, 0 Partido: etc. Ora, esta conhecida migragdo do universal através de sucessivos corpos que 0 ‘encarnam diferia num ponto fundamen- tal da encarnagao crista. Nesta dltima, ‘um poder sobrenatural era responsdvel tanto pelo advento do evento universal pelo corpo que haveria de anos estariam tem pé de igualdade face a um poder que fs transcendia a todos. Mas, no caso de ‘uma escatologia secular, como aorigem do universal nao € externa mas interna ‘20 mundo, 0 universal s6 pode se mani festar por meio do estabelecimento de ‘uma desigualdade essencial entreas po- sigdes objetivas dos agentes sociais. Al- ‘guns deles vo ser agentes privilegiados ‘de mudanga historica, nao por conta de uma correlagdo contingente de forgas. ‘mas por serem a encarnago do univer- sal, O mesmo tipo de logica que opera no euracentrismo estabelecerato privilégio ontolégico do proletariado, Como este privilégio ontol6gico decorre de um processo que foi concebi- do como int racional. ele é duplicado como __privilégio epistemologico: o ponto de vista do pro- Ietariado supera a oposigito sujeito/obje- to, Numa sociedade sem classes as rele ¢@es sociais scrdocnfim totalmente trans- parenics. E verdade que se a crescente simplificagao da estrutura social sob 0 controle de capitalismo tivesse ocorride conforme Marx previra, asconseqiiénci as desta abordagem nao teriam sido n= ccessariamente autoritarias, porquea po- siglo do proletariado como portador do pponto de vista da totalidade e a posigiio da vasta maioria da populagio ter coincidido, Mas se processo seguisse - ‘como aconteceu - na ditego oposta. os sucessivos compos que cncarnassem 0 pontode vista da classe universal teriam ‘que assumir uma base social cada vez mais restrita, O partido de v como particularidade concreta pretender conhecer 0 "sentido objetivo” dequalquer evento, co ponto de vista das outras forgas sociais particulares teria que ser descartado como falsa conse cia, Deste ponto em diante, a guinada autoritaria era inevitavel. Toda essa hist6ria aparentemen- tenos leva a uma conclusdo inevitavel: a brecha entre o universal e 0 particular é irrepardvel - que equivale a dizer que 0 universal nada maisédo queum particu Jar que em algum momento se tornou

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